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Universidade Politécnica

A POLITÉCNICA
Escola Superior Aberta

GUIA DE ESTUDOS

Cultura Moçambicana e Educação


Curso de Ciências da Educação
(3º Semestre)

Moçambique
Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

FICHA TÉCNICA

Maputo, Outubro de 2010

© Série de Guias de Estudo para o Curso de Ciências da Educação


(Ensino a Distância).

Todos os direitos reservados à /Universidade Politécnica

Título: Guia de Estudo de Cultura e Educação


Edição: 1ª

Organização e Edição
Escola Superior Aberta (ESA)

Autor
Sara Jona Laisse (Conteúdo)

Benedito Marime (Revisão Textual)

Escola Superior Aberta/A Politécnica – Ensino a Distância 2


Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

ÍNDICE

Epígrafe ........................................................................................................................................... 4 
NOTA DE ABERTURA ................................................................................................................. 5 
NOTA IMPORTANTE ................................................................................................................... 6 
PROGRAMA TEMÁTICO ............................................................ Error! Bookmark not defined. 
Objectivo geral: ........................................................................................................................... 7 
Objectivos específicos: ............................................................................................................... 7 
CONTEÚDOS ........................................................................... Error! Bookmark not defined. 
ADVERTÊNCIA ........................................................................................................................ 8 
LIÇÃO Nº. 1 .................................................................................................................................... 9 
O CONCEITO CIENTÍFICO DE CULTURA E A SUA DEFINIÇÃO..................................... 9 
Lição Nº. 2 ..................................................................................................................................... 15 
CARACTERÍSTICAS DA CULTURA .................................................................................... 15 
Lição Nº. 3 ..................................................................................................................................... 18 
RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E CULTURA.................................................................... 18 
Lição Nº. 4 ..................................................................................................................................... 21 
O papel da cultura no processo educacional – continuação da aula anterior ............................ 21 
Lição Nº. 5 ..................................................................................................................................... 24 
CULTURA E PROCESSOS IDENTITÁRIOS EM MOÇAMBIQUE..................................... 24 
Lição Nº.6 ...................................................................................................................................... 27 
CULTURA E PROCESSOS IDENTITÁRIOS EM MOÇAMBIQUE - .................................. 27 
Continuação da lição anterior.................................................................................................... 27 
Lição Nº. 7 ..................................................................................................................................... 30 
Identidade e Moçambicanidade – Processo de formação da identidade Moçambicana –
Continuação da lição anterior.................................................................................................... 30 
Lição Nº. 8 ..................................................................................................................................... 32 
IDENTIDADE E MOCAMBICANIDADE – Porque falhou o projecto de Moçambicanidade?
................................................................................................................................................... 32 
Lição Nº.. 9 .................................................................................................................................... 36 
A PRETENÇÃO DA SUPERIORIDADE RACIAL – Formulação de juízo de valor ............. 36 
Lição Nº. 10 ................................................................................................................................... 39 
A pretensão da superioridade cultural: o relativismo cultural – continuação da aula anterior.. 39 
Lição Nº. 11 ................................................................................................................................... 42 
A PRETENÇÃO DA SUPERIORIDADE CULTURAL – continuação da aula anterior......... 42 
Lição Nº. 12 ................................................................................................................................... 45 
Escolas de pensamento antropológico – conclusão da lição anterior. ....................................... 45 
Lição Nº. 13 ................................................................................................................................... 48 
A FUNÇÃO SOCIAL DOS MITOS E RITOS EM MOÇAMBIQUE .................................... 48 
Alguns exemplos de rituais pós-guerra civil ................................................................................ 51 
Lição Nº. 14 ................................................................................................................................... 54 
Territorialidade de Moçambique – Fronteiras Geográficas e “Imaginárias” – A construção da
nação em África ........................................................................................................................ 54 
Lição Nº. 15 ................................................................................................................................... 59 
MODELO DE ANÁLISE DE CULTURA GEERTZ ............................................................... 59 
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................... 67 

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Epígrafe

No grande cosmos tu és o Semeador. Aguardando o ganho multiplicado!


Tu és presença e pessoa. Semeias porque não podes viver sem doar-se!
Não podes fugir à responsabilidade de semear! És dono de ti mesmo e da vida
Não digas: o solo é áspero, o sol queima, Quando trocas o teu pouco ou muito com o outro.
Chove frequentemente, a semente não presta! Sem esperar recompensas: serás recompensado!
Não é tua missão julgar a terra, Sem esperar riquezas: enriquecerás!
O tempo, as coisas, Sem esperar colheita: teus bens se multiplicarão!
Tua missão é semear! Porque semeias num mundo
As sementes são abundantes Onde doar é receber,
E germinam facilmente. Onde dar a vida é perdê-la,
Um pensamento, um gesto, Onde gastar servindo
Um sorriso, uma promessa de alento, É fazer crescer e transformar!
Um aperto de mão, um conselho amigo, Semeia sempre em todo o terreno,
Um pouco de água! Em todo o tempo e com muito carinho,
Não semeies, porém, descuidadamente, A semente,
Como alguém que se desincumbe de uma Como se estivesses semeando o próprio coração.
obrigação, A esperança a regará!
Ou que cumpre uma simples tarefa! Sai Semeador! Parte! Prepara!
Semeia com amor, com interesse, com atenção Leva contigo tudo o que tens, tudo o que sabes
Como quem encontra nisso o motivo de sua E acolhes o que o outro te dá!
felicidade! Aceita o desafio do Semeador
E ao semear não penses: Que semeia o bem, a verdade, a sabedoria!
Quanto me darão? Tu também és um grande Semeador!'.
Quando será a colheita?
Autor anónimo
Recorda que não semeias para enriquecer,

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NOTA DE ABERTURA

Caro estudante,

Tem nas suas mãos o manual da disciplina de Cultura e Educação, áreas que se
complementam, por serem duas faces da mesma moeda. Não se pode falar em cultura,
sem se falar em educação e vice-versa: ambas são adquiridas socialmente, dependendo da
época e da região do planeta em que ocorram.
Mas não nos esqueçamos que existem, no mundo, valores culturais universais, pelo que
não devemos relativizar a cultura e a educação de forma extremista. É com intuito de
fazê-lo conhecer diferentes vertentes de socialização secundária1 que este manual foi
feito para si. Além disso, queremos que aprenda pela prática. Por isso, para verificar se
conseguiu alcançar os objectivos traçados, em cada lição você terá que realizar um
exercício aplicado sobre a matéria leccionada.
Ao terminar a leitura de uma lição, verifique se conseguiu seguir e compreender os
objectivos traçados. Aconselhamo-lo a evitar passar para a lição seguinte, sem ter o
domínio do que estiver a estudar. Lembre-se ainda que, sem ler os materiais
recomendados, não chegará a lugar nenhum e irá limitar-se a responder às perguntas
colocadas, tanto nas actividades de cada lição, como nos testes por via “da adivinha” e
sem perceber aonde quer chegar com a sua resposta. Você é um futuro educador, um
semeador e por isso deve preparar-se sempre para ter “boa colheita”, com ou sem
intempéries. O semeador deve habituar-se, desde cedo, a lidar e a gerir o imprevisto, por
isso:
“Sai Semeador! Parte! Prepara!
Leva contigo tudo o que tens, tudo o que sabes
E acolhes o que o outro te dá!
Aceita o desafio do Semeador
Que semeia o bem, a verdade, a sabedoria!
Tu também és um grande Semeador!”.

1
A socialização primária é a que o indivíduo fica exposto na sua infância, ao tornar-se membro de uma
sociedade, sendo que a secundária é a introdução do indivíduo já socializado em outros sectores objectivos
da sociedade (Luckman e Berger (2004).

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NOTA IMPORTANTE

Consulte o plano temático da cadeira, para ver quantas horas precisa para fazer o
aprofundamento de cada lição. Deverá dedicar algum tempo para a leitura e compreensão
e outro para a resolução dos exercícios de aplicação a que chamamos actividade e ainda
outro momento para fazer as leituras recomendadas que complementam o que foi dito em
cada lição deste manual.

Você terá três momentos de avaliação nesta cadeira. Os dois primeiros irão consistir de
testes de frequência com pergunta e resposta e o terceiro será uma frequência realizada
através de um trabalho de pesquisa de campo.

Peça ao seu tutor para lhe dar a indicação das temáticas a serem abordadas em seminários
de integração, para que você vá preparado para expor questões relacionadas com o tema
em discussão.

Bom trabalho!

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Objectivo geral:

Colocar ao dispor do estudante instrumentos teóricos e de análise que o permitam


compreender a importância de transmitir e exercitar a interculturalidade no contexto
escolar, a fim de promover a coabitação com a diferença e com a equidade, i.e., gerir as
diferenças, sem preconceito.

Objectivos específicos:

• Realçar nos estudantes a necessidade de diminuir a “violência simbólica” que


as culturas maioritárias tendem a exercer sobre as minoritárias;
• Desenvolver o espírito crítico no que tange ao interculturalismo, realçando a
necessidade de se promover a coabitação com a diferença;
• Capacitar os alunos na análise de padrões culturais usando modelos teóricos;
• Debater sobre a pluralidade cultural de Moçambique, mitos e crenças,
realçando a necessidade, ainda que fugaz, de se alcançar uma coesão nacional;
• Debater sobre a necessidade de se ver a escola como um lugar de interacções
simbólicas, por vezes conflituantes (diversidade e diferença) e que não devem
ser analisadas, nem avaliadas a partir da perspectiva etnocêntrica do professor.

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Plano Tematico

Nº Conteúdos Horas

Perspectivas de definição de cultura (conceito cientifico) e suas características 6h

Relação entre Educação e Cultura 6h

Cultura e processos identitários em Moçambique 12h

A pretensão da superioridade racial/cultural, relativismo cultural e correntes 12h


antropológicas
A Função social dos mitos e ritos dos povos de Moçambique 3h

Territorialidade da “nação” moçambicana 3h

Modelo de análise etnográfica da cultura – Geertz 6h

Trabalho prático: Pesquisa etnográfica 30h

Avaliações 3h

Tutorias e/ou seminários 4

ADVERTÊNCIA

Nas páginas que se seguem, você irá encontrar 15 lições e a indicação sobre como
desenvolvê-las. Encontrará, também, todos os textos (bibliografia) a serem usados em
cada lição e durante o semestre todo, na cadeira de Cultura e Educação.
Você deverá ir lendo esse material, não só na perspectiva de ter que responder aos
objectivos de cada lição ou para responder às perguntas dos testes, mas também deve
preparar-se para realizar um trabalho de pesquisa que deverá ser depositado no seu centro
de apoio, no final do semestre ou da disciplina: - convinha que fosse fazendo o trabalho
de pesquisa aos poucos e não deixasse essa tarefa para o fim.

Bom trabalho!

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UNIDADE TEMÁTICA I

Cultura como conceito científico: perspectivas, definições e


características

Objectivos

No final desta unidade, você deverá ser capaz de:

• Discutir sobre diferentes concepções de cultura.


• Analisar características da cultura.

LIÇÃO Nº.1
O CONCEITO CIENTÍFICO DE CULTURA E A SUA DEFINIÇÃO

Antes de iniciarmos esta lição e as restantes, você deverá saber de antemão que os
termos cultura e educação têm merecido inúmeros debates, por serem polissémicos,
por abrirem várias possibilidades de interpretação e, sobre tudo, porque entre diferentes
autores muito dificilmente se encontra consenso.

Preste atenção ao seguinte:

Segundo Silia (1996) a cultura pode ser vista sob dois eixos principais:

¾ Objectivo: que se refere à interacção homem/natureza, onde o Homem, usando


a sua força física, transforma a natureza em seu benefício ou seja a
criação do conforto de que precisa para viver.
¾ Subjectivo: através do esforço mental, psíquico e intelectual satisfaz a sua vida
social, nomeadamente: educação, ciência, arte, crenças, mitos, leis,
religiões.

Nesse sentido, a educação é parte integrante da cultura. Se por um lado, “ a cultura é


tudo quanto é criado e feito pelo homem através do trabalho e da aplicação da força
humana no processo de transformação da natureza e do ser do homem em si”
(Silia:1996:39); por outro, a educação é vista como a “socialização adaptadora” do
indivíduo a uma determinada cultura (AKKARI, JALIL e MESQUIDA, PERI: 2000)

Nesta lição iremos falar sobre o conceito científico de cultura e a sua definição. Assim,
no final deverá ser capaz de:
9 distinguir as diferentes concepções científicas do termo cultura;
9 conhecer as definições de cultura postuladas por diferentes autores.

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Saiba que:

Esta lição é meramente teórica, mas você deverá fazer a fixação de conceitos, para
poder usá-los posteriormente em outras lições, especialmente no que diz respeito ao
conceito de relativismo cultural.
Leia o texto “A invenção do conceito científico de cultura” in CUCHE, Denys . A Noção
de cultura nas ciências sociais: 2004, para aprofundar mais esta matéria, cuja síntese
segue nas próximas linhas.

Anote:

O conceito de cultura surgiu das discussões e da atitude positivista2 havida entre a


Sociologia e a Antropologia como disciplinas científicas.

A Antropologia preocupa-se com a diversidade humana dos povos, seus usos e


costumes e vê a diversidade sob dois prismas: um privilegia a unidade e minimiza a
diversidade e outro que dá importância à diversidade, afirmando que ela não contradiz a
unidade da humanidade. A sociologia dedica-se ao estudo das sociedades humanas.

Concepção universalista da cultura

Edward Taylor, (1832-1917), é o pai da antropologia moderna, inventor do conceito


científico da cultura. Foi o primeiro a abordar os factos culturais numa perspectiva
sistemática e a empreender o estudo da cultura em todos os tipos de sociedade, sob
todos os seus aspectos, materiais, simbólicos e corporais, definindo cultura ou
civilização como sendo esse todo complexo que compreende o conhecimento, as
crenças, a arte, a moral, o Direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos
adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade (1871, p.1). Esta concepção é
puramente descritiva e objectiva, em vez de normativa É uma definição universalista
diferente da que fazia dos primitivos seres a parte. Este autor tinha em mente que os
seres humanos são iguais em qualquer lugar do mundo e que todos têm capacidade
para progredir. Além disso tem a ver com realizações humanas e não com a aquisição
inata, quer dizer: a cultura não é algo hereditário.

Taylor (1871) defende uma perspectiva comparativista, na qual comparava culturas


singulares entre elas, a fim de perceber o seu estágio de evolução. Assim, era possível
perceber-se a continuidade entre a cultura primitiva e a cultura mais avançada, porque
para ele a diferença entre culturas dependia do seu grau de avanço.

2
Posição filosófica que introduz a necessidade da exaltação de valores essencialmente humanos na
sociedade, a partir do Séc. XIX.

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Concepção particularista da cultura

Franz Boas (1858-1942), percursor desta corrente, é considerado o inventor da


etnografia, por ter introduzido a pesquisa de campo e a observação directa, usando o
método intensivo para comparar culturas.

Este autor defende que a diferença entre os grupos humanos tem uma sustentação
cultural e não racial, o que significa que, no seu entender, a diferença entre os
chamados povos primitivos e civilizados centra-se na cultura adquirida e não em
questões biológicas. Assim, o etnólogo, se quiser conhecer e compreender uma cultura,
deve apreender pessoalmente a língua do local pesquisado, realizar entrevistas (mais
ou menos formais), estando atento a tudo o que é dito durante as conversas
espontâneas. Por tudo isto se supõe que sejam feitas estadias prolongadas junto das
populações cuja cultura se escolheu estudar.
Boas defende a necessidade de se ter em conta o relativismo cultural na comparação
entre culturas, daí que advoga uma abordagem científica baseada na pesquisa de
campo, porque “cada cultura é única, especifica e representa uma totalidade singular e
todo o seu esforço consistiu em buscar aquilo que forma a sua unidade” Cuche, 2004:
48).
A sua preocupação estava centrada, não só na descrição dos factos culturais, mas na
sua compreensão em termos de articulação.

Concepção unitária da cultura

Esta concepção era marcada pela etnologia francesa, antes tida como reducionista,
porque considerava o estudo das sociedades humanas, sem considerar a sua cultura,
nem o conceito científico da cultura, preferindo usar o termo civilização. Nos primórdios
da sua investigação (no Século XIX e inícios do Séc. XX), para os precursores desta
corrente, o termo cultura só era usado quando fosse referente ao indivíduo de forma
particular (pessoa culta). Só nos anos 30 do Séc. XX é que se começou a verificar uma
autonomia da etnologia em relação à sociologia.

Nessa altura, Émile Durkein, pai da Sociologia, (1858-1917), percursor principal desta
corrente, não concebia uma diferença entre civilizados e primitivos, não punha em
causa a unidade do homem, por entender que a humanidade é una e que todas as
civilizações particulares contribuem para a civilização humana.

O autor dedicou-se a estudar o social em todas as formas de sociedades, sob todos os


seus efeitos, incluindo a cultura, embora este autor traduzisse o conceito cultura como
civilização. Esta questão tinha a ver com o facto de ele advogar que os fenómenos
sociais têm uma dimensão cultural, por serem também simbólicos.

A reforçar o pensamento de Durkein, Mauss refere: “a civilização de um povo nada é


mais que o conjunto dos seus fenómenos sociais; e falar de povos incultos, “sem
civilização”, de povos “naturais” é falar de coisas que não existem (L’Anné sociologique,
1901, p. 141), in Cuche, 2004, pg. 52.

Ao falar na existência de diferentes civilizações, Durkein retoma o conceito de


relativismo cultural, advogando que as sociedades não deveriam ser encaradas como

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tendo que seguir um sentido linear, no que concerne ao seu progresso, mas como
sociedades com diferentes árvores com ramos múltiplos e divergentes, ou seja, não
existem sociedades mais elevadas que outras. Dava o exemplo da China, considerada
sociedade inferior, mas que, no futuro, poderá tomar uma direcção diferente – o que na
verdade é o que está a acontecer, porquanto a China encontra-se actualmente no
mapa das economias com progresso surpreendente.

Importa reter que Durkein não usou o termo cultura de forma sistematizada como
Taylor, hesitando entre uma concepção unitária e outra diferencial.

Em termos metodológicos, o autor esforçava-se por propor uma concepção objectiva e


não normativa de civilização, que inclui a ideia de pluralidade das civilizações, sem
colocar em causa a unidade do homem. Advoga a necessidade de se estudar as
sociedades de forma holística, evitando-se os comparativismos especulativos

Concepção diferencial da cultura

Levy-Bruhl (1857-1939) dedicou-se a estudar a diferença cultural entre os povos,


usando como categoria de análise a “mentalidade”. O autor defende que a mentalidade
primitiva e civilizada nasceram uma da outra, sendo momentos de uma mesma
evolução.

Para o autor, o que difere entre as culturas é o facto de funcionarem de modos


diferentes, do ponto de vista do pensamento, e não o facto de terem estruturas de
pensamento diferente. Levy-Bruhl não era etnocentrista, apenas usava o conceito
“primitivo” como instrumento operacional. Para ele, o pensamento humano não
funcionava de uma única maneira – até porque as formas de raciocínio dentro de uma
mesma cultura não são homogéneos. Além de contestar o evolucionismo, não era a
favor da tese do progresso mental. Os seus estudos eram comparativistas.

Em suma, as diferentes concepções de cultura foram-lhe aqui fornecidas, para permitir


que você perceba de que forma é que o termo cultura emergiu como conceito científico.
Dissemos, no início desta lição, que a educação é a “socialização adaptadora” do
indivíduo a uma determinada cultura, por isso é que é importante que perceba os
pressupostos que por detrás do conceito cultura.

Mais adiante, neste manual, irá conhecer as relações existentes entre cultura e
educação. Daremos especial ênfase a questões culturais, uma vez que um dos
principais objectivos é fornecer materiais para que, na qualidade de educador, tenha em
consideração que, no acto de ensinar e no contexto educativo, é importante estimular a
diferença e evitar a supremacia de umas culturas sobre as outras.

OUTRAS DEFINIÇÕES DE CULTURA:

Para John Locke (1690) a mente humana não é mais do que uma caixa vazia, ao
nascer, dotada de capacidade para obter conhecimento, através da endocrinação.
Eliot (1948) defende que a cultura se refere à totalidade de costumes, leis, crenças,
técnicas, formas de arte, de linguagem e de pensamento.

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Lima Vaz (1993) afirma que a cultura é um todo ordenado, que garante a sobrevivência
do homem e é edificada à luz do ethos: conjunto de valores, costumes fundamentais
para a convivência pacífica dos homens em sociedade.
Blackburn (1997) refere que a cultura é o modo de vida de um povo, em que se
incluem as suas atitudes, valores, crenças, artes, ciências, modos de percepção e
hábitos do pensamento e de acção.

Como se pode depreender, todas as definições acima mostram que o termo cultura está
associado a uma tarefa social e não apenas individual. Essas definições revelam ainda
as experiências vivenciadas pelo homem, o que difere de outros animais3. Neste
sentido, pode-se afirmar que essa tarefa social carece de um processo de transmissão
a ser realizado, de uma geração já existente a outra acabada de “chegar” a esse
contexto ou mais nova. É a chamada “socialização adaptadora” ou enculturação.Vale
lembrar que existe uma socialização adaptadora em que o indivíduo por si adquire os
ensinamentos da sociedade. Verifica-se ainda que a cultura é um conjunto de
significados e valores partilhados e aceites por uma comunidade.

Actividade 1

1. Faça uma tabela em que mencione e descreva (sem se esquecer dos autores –
percursores) as diferentes concepções de cultura (abordagens: universalista,
particularista, unitária e diferencial). Para saber diferenciar essas
abordagens/métodos científicos usados desenhe uma tabela com os seguintes
tópicos/colunas: autor, tipo de concepção, descrição das características essenciais
dessa abordagem e método de pesquisa – em quatro parágrafos no máximo.

Síntese:

Nesta lição, você aprendeu que a cultura é objectiva e pressupõe o domínio da natureza
pelo homem (uso da força física) para viver e é subjectiva (uso da força
mental/intelectual) para agir através da educação, ciência, arte, crenças, mitos, leis e
religiões.
Aprendeu também as diferentes concepções sobre cultura, nomeadamente:

universalista, defendida por Taylor que defende uma perspectiva descritiva e


objectiva, e não normativa, considerando que os seres humanos são iguais em qualquer
lugar do mundo e que todos têm capacidade para progredir. Deste modo, para perceber
o seu estágio de evolução, era necessário usar-se a comparação de culturas singulares
entre elas;

3
Nesta lição não entraremos nas discussões filosóficas de Kant e de Rousseau que não consideram os
animais seres a parte, ou seja que colocam alguma paridade entre as vivências dos animais e dos seres
humanos, a partir da racionalidade, sensibilidade e moralidade. Na verdade, para estes autores a grande
diferença entre animais e seres humanos, está na capacidade ou não de mudarem os seus destinos.

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particularista, cujo precursor é Franz Boas, que defende que, para comparar culturas,
é preciso fazer-se pesquisa de campo (um estudo etnográfico, observando directamente
os factos), porque a diferença entre os grupos humanos tem uma sustentação cultural e
não racial, dado que a diferença entre os chamados povos primitivos e civilizados
centra-se na cultura adquirida e não em questões biológicas. Este autor advoga ainda a
necessidade de se ter em conta o relativismo cultural, porque cada cultura tem as suas
particularidades.

unitária, Émile Durkein, percursor principal desta corrente, não concebia uma diferença
entre civilizados e primitivos, não punha em causa a unidade do homem, por entender
que a humanidade é una e que todas as civilizações particulares contribuem para a
civilização humana.

O autor dedicou-se a estudar o social em todas as formas de sociedades, sob todos os


seus efeitos, incluindo a cultura, embora traduzisse o conceito cultura como civilização.
Esta questão tinha a ver com o facto de ele considerar que os fenómenos sociais têm
uma dimensão cultural, por serem também simbólicos.
Durkein retoma o conceito de relativismo cultural, advogando que as sociedades não
deveriam ser encaradas como tendo que seguir um sentido linear no que concerne ao
seu progresso, mas como sociedades com diferentes árvores com ramos múltiplos e
divergentes ou seja não existem sociedades mais elevadas que outras.
Em termos metodológicos, advogava a necessidade de se estudar as sociedades de
forma holística, evitando-se os comparativismos especulativos;

diferencial, Levy-Bruhl, precursor principal, dedicou-se a estudar a diferença cultural


entre os povos, usando como categoria de análise “mentalidade”, advogando que
primitiva e civilizada nasceram uma da outra – são momentos de uma mesma evolução
-, o que contrariava as teorias evolucionistas. Para o autor, o que difere entre as
culturas é o facto de funcionarem de modos diferentes, do ponto de vista do
pensamento, e não o facto terem estruturas de pensamento diferente.

Para ele, o pensamento humano não funcionava de uma única maneira, porque as
formas de raciocínio dentro de uma mesma cultura não são homogéneas. Os seus
estudos eram comparativistas.

Por fim, é de lembrar que o termo cultura está associado a uma tarefa social e não
apenas individual. E que a cultura revela experiências vividas pelo homem, o que
diferencia de outros animais.

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Lição Nº. 2

CARACTERÍSTICAS DA CULTURA

Mais do que ter definições e concepções diferentes sobre a cultura, é importante


perceber que elementos compõem a cultura ou como é que ela pode ser distinguida de
outras manifestações culturais, pelo que, vale a pena aprender sobre as características
da cultura.

No final desta lição você deverá ser capaz de:


9 Conhecer algumas características da cultura;
9 Dar exemplos sobre essas características.

Saiba que:

Para aprofundar mais sobre esta lição, use como material básico a obra de: MARTINEZ,
Francisco Lerma. Antropologia cultural. Guia para estudo. 2003.

Anote:

Além das características que veremos mais adiante, convém saber que a cultura é
dotada de alguns mecanismos, nomeadamente:

Mecanismo adaptativo da cultura:

Capacidade de fazer face ao ambiente em que se vive, criando condições desejáveis


para a sobrevivência.
Ex: criação de alternativas para sobrevivência – “quem não tem cão caça com gato” –
alguém que esteja a passar frio num descampado, sem cobertores, tem de usar
alternativas de sobrevivência para adaptar-se ao ambiente (sacos e folhas, p.ex.).

Mecanismo cumulativo:

É a capacidade de absorver/perceber vivências anteriores e adaptá-las ao momento


actual, conservando-as para gerações vindouras. Ex: meios de comunicação – da
passagem da comunicação através de sinais (fumo), até à cibernética.

Vamos então às características da cultura:

A cultura é transcendente ao indivíduo. Nenhum indivíduo pode viver todos os


elementos de uma cultura. Cada cultura tem os seus sinais particulares, a que se dá o
nome de valores.

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1. Cultura simbólica: valores transmitidos a partir de símbolos e sinais. Ex: vestes


de capulanas (tecido leve e transparente) garridas: esse valor simbólico remete-
nos logo ao norte de Moçambique; como é o caso do mussiro.
2. A Cultura é social: ninguém é totalmente desprovido de cultura. Qualquer
indivíduo, antes do seu primeiro acto consciente, já tem uma conduta
padronizada que modela o seu processo psicológico, a partir da sua mãe (há
autores que defendem que isso acontece, mesmo, durante a gravidez).

3. A Cultura é dinâmica (mudanças derivadas de vários factores – o progresso


científico, por exemplo) e estável (tradição, costumes: ritos de iniciação).

4. A cultura é selectiva (relegação de alguns valores e integração de novos). Ex.


durante muitos anos, foi negado o direito de estudar às meninas nos dias que
correm, uma das maiores batalhas da Organização das Nações Unidas é ter o
maior número possível de meninas nas escolas.

5. A Cultura é universal (não existem sociedades sem cultura) e regional (em


qualquer cultura particular existem diferentes instituições políticas, religiosas,
económicas, lúdicas, etc – que são uma representação universal, mas as suas
formas dependem do contexto em que estão inseridas) ou seja a
Escola/Universidade ou Creche é uma representação universal, mas em termos
de funcionamento varia de lugar para lugar.

6. A cultura é determinante (o comportamento humano é normado e padronizado


pela sociedade) e determinada/ adaptável – os seres humanos são capazes de
fazer face ao ambiente em que se vive, criando condições desejáveis para a
sobrevivência.

7. Aspectos cognitivos (são três):


- Significados normativos: impõem a maneira certa de se agir em determinada
sociedade;
- Significados morais: impõem valores éticos, desejáveis e/ou normas estéticas;
- Significados cosmológicos: significados do mundo, da natureza, do universo,
crenças dos povos.

Nota: estes são algumas características outras deverão ser lidas no texto de
Martinez (2003) – indicado para a presente lição.

Actividade 2

Socorra-se das lições anteriores e, obviamente de apontamentos da presente lição,


para responder às questões que seguem.

1) A Cultura não é um dado biológico. Explique porquê.

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

2) Encontre no seu dia-a-dia outros exemplos sobre as características da cultura.


Escreva-os no seu caderno (escreva exemplos diferentes dos que constam das
anotações deste manual).

Síntese:

Não faremos uma síntese com a mesma índole que a da aula anterior, mas
aconselhamo-lo a reler os exemplos e características da cultura acima apresentados.
Para além dos exemplos apresentados, habitue-se a ir procurando outros exemplos,
mesmo após ter estudado esta lição.

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

UNIDADE TEMÁTICA II
Educação e Cultura

Objectivos
No final desta unidade, você deverá ser capaz de:

• Perceber os diferentes contornos que a educação e a cultura podem tomar


(semelhanças, diferenças, processos de aquisição).
• Discutir de que forma é que a educação pode ser um veículo de transmissão de
ideologias culturais de uma sociedade.

Lição Nº. 3

RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO E CULTURA

Este é o tema central da disciplina de Cultura e Educação. Irá permitir-lhe perceber por
que razão não se pode falar em educação sem se levar em linha de conta a cultura.

Afirmámos anteriormente que este manual irá privilegiar aspectos ligados à cultura e
que devem ser considerados no contexto educativo, mas antes, convinha conhecer a
relação entre os dois conceitos.

Objectivos:
No final desta lição você deverá ser capaz de:
- Compreender a relação existente entre Educação e Cultura.

Anote:

De acordo com Veiga-Neto (2003) pode-se afirmar que, ao longo dos últimos dois ou
três séculos, não se procurou problematizar os significados modernos de cultura e
educação. Aceitou-se, de um modo geral e sem questionamentos, que cultura
designava o conjunto de tudo aquilo que a humanidade tinha produzido de melhor –
fosse em termos materiais, artísticos, filosóficos, científicos, literários etc. Assim, cultura
sempre foi pensada como única e universal. Única porque se referia ao que de melhor
se havia produzido e universal por fazer referência à humanidade – um conceito
totalizador.

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

Na óptica desse autor, começa-se a se diferenciar alta cultura e baixa cultura. A


primeira representava um modelo constituído por homens cultivados, que já tinham
chegado a esse estádio evoluído; ao contrário, a segunda representava a cultura
daqueles menos cultivados e que, por isso, ainda não tinham chegado à evolução. A
educação foi vista por muitos como o caminho natural para a elevação de um povo.

Veiga-Neto postula, ainda, que somente nos anos 20 do século passado começaram a
aparecer os primeiros questionamentos da antropologia, da linguística, da filosofia e da
sociologia – a epistemologia monocultural. Mais recentemente, a Politicologia e
especialmente os Estudos Culturais foram eficientes no sentido de desconstruir o
conceito moderno e nos mostrar a produtividade de entendermos que é melhor falarmos
de culturas em vez de falarmos em Cultura.

Relação existente entre educação e Cultura

A relação existente entre cultura e educação deve-se a vários factores, nomeadamente:

I. Indissociabilidade entre educação e cultura

Na concepção de Vygotski (1985) o conhecimento científico (que nos é transmitido pelo


processo educativo) é diferente do conhecimento do quotidiano (que pode ser
transmitido pela cultura4); no entanto, existe uma relação dialéctica entre os dois
conceitos, isto porque, o tipo de raciocínio e a terminologia exigida pela escola segue
padrões “universalmente” aceites, ao contrário do conhecimento do quotidiano que
funciona com regras que variam de sociedade para sociedade. No entanto, a cultura
constitui uma base fundamental para o processo pedagógico. Aliás, tal como defende
Gonçalves (sd)5 a educação é um acto eminentemente cultural.

Sobre a indissociabilidade entre a cultura e a educação Kant (1996, p.16) afirma:

“Não há ninguém que, tendo sido abandonado durante a juventude, seja capaz de
reconhecer na sua idade madura em que estado foi descuidado, se na disciplina ou na
cultura. Quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto, quem não tem
disciplina ou educação é um selvagem. A falta de disciplina é um mal pior que a falta de
cultura, pois essa pode ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode abolir o
estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina.

Muitas vezes, este autor usa o termo cultura de forma similar ao que se usa quando fala
em educação, porque, para ele, em ambos os processos há a aquisição de habilidades,
instrução, ensino e orientação. Mas alerta que não basta ser-se habilidoso, para
considerar-se que a pessoa é instruída (civilizada e disciplinada).

Daí que vale a pena lembrar a diferença entre o que Kant chama de cultura geral e
civilização (que é na verdade outro tipo de cultura); pois a civilização tem por finalidade
habilitar para a prudência, que é um estádio mais alto do que a cultura geral. Neste
ponto há alguma semelhança entre o que Kant (1996) e Vygotski (1985) defendem.
4
Ver, neste manual, as diferentes concepções de cultura. Veja-se ainda, na lição º. 1, a diferença entre
cultura objectiva e subjectiva.
5
O texto deste autor será usado na segunda parte da aula, quando abordarmos o papel da cultura no
processo educacional.

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

Na óptica de– Kant (1999) existem de dois estágios no processo de educação:

a) “Educação física” (fase primária), oposta à “educação prática”: que ocorre


nos primeiros anos de vida de uma criança, onde os pais/família ensinam os
cuidados que a criança deve ter para poder defender-se;

Para ele, a “educação prática” pressupõe a aquisição de: habilidades, do


pragmatismo ligado à prudência e à ética, estágios que contemplam a cultura.

b) A fase secundária ou o segundo estágio (tem a ver com a disciplina ou com o


treinamento), a que Kant chama de “domar a selvajaria”, onde os educadores
devem ensinar a criança a comportar-se de forma a ter atitudes aceites pela
humanidade (ser educado).

Nota: todos esses passos são assimilados de formas diferentes por cada indivíduo,
dependendo da idade que tem, da sociedade em que vive e dos elementos que são os
elos de transmissão desse conhecimento. Mas é preciso realçar que todos os indivíduos
nasceram com capacidade de poder aprender, independentemente da sua origem ou
condição social.

É ainda importante sublinhar que existem autores que usam os termos cultura e
educação como se de sinónimos se tratasse, quando, na verdade, são fenómenos
similares, tal como ficou acima esclarecido.

II. Processo de aquisição/assimilação de ambos:

Existe no processo de educação e no processo de aquisição de cultura (enculturação6),


por parte de um indivíduo, um fenómeno a que se pode chamar de dinamismo cultural,
onde a pessoa (em ambos os casos – educação ou enculturação) é submetida a:
1. Formação de atitudes: aquisição de usos, costumes e leis, impostos por
membros da sociedade (docentes, família e instituições).
2. Controle: há padrões sociais – posturas que devem ser seguidas/repetidas
(tanto na escola, como na sociedade) que, quando não seguidos de acordo com
o estipulado, o indivíduo é considerado “mal-educado”, “inculto”.
3. Formação da personalidade do indivíduo que atravessa factores emocionais e
psicológicos.
4. Assimilação de padrões culturais ou educacionais.
5. Aprendizagem de símbolos (saber relacionar o símbolo com o objecto que
representa, bem como interpretá-lo em cada contexto em que ocorre).

6
Os conceitos cultura e educação são plurissignificativos e não querem dizer a mesma coisa. Vamos, para
efeitos de compreensão da relação entre os dois termos, convir que, tanto na cultura como a educação
correspondem a atitudes padronizadas decorrentes de um processo de socialização. São um fenómeno
social que constitui uma forma de ver, estar e de perceber o cosmos.

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Actividade 3

1. Que diferença pode ser estabelecida entre a perspectiva de Silia (1996), quando
refere que a cultura é objectiva e subjectiva e a perspectiva de Kant(1999), quando
refere a educação primária e a educação prática? Comente esses posicionamentos

Síntese:

No final desta lição, é importante que nos detenhamos no pensamento de Kant, que
afirma que quem não tem educação é selvagem e não tem disciplina. Quem não tem
cultura é bruto e mal comportado. Há necessidade de se cultivar as duas vertentes, pois
não basta ser-se hábil (culto); é necessário também ser-se disciplinado
(treinado/educado/civilizado).

Dificilmente se pode dissociar o conceito cultura do conceito educação, pois os


processos de aquisição de ambos fenómenos são semelhantes. Mas, em alguns
momentos, alguns autores defendem que a educação é um estágio mais elevado do
que a cultura, pelo facto de a educação ser imediatamente associada ao domínio da
técnica e dos códigos científicos. A verdade é que, no processo de educar, deixam-se
sempre marcas culturais e vice-versa. No entanto, vale lembrar que a educação tem
características mais universais do que a cultura, pois a cultura depende do contexto
social em que ocorre: família e sociedade. Depende ainda da época, tal como o
demonstram as características da cultura.

Lição Nº. 4
O papel da cultura no processo educacional – (continuação da aula
anterior)

No final desta lição, você deverá ser capaz de:


- Discutir sobre o impacto da cultura no processo educacional.

Saiba:
Para chegar ao objectivo desta lição, você irá precisar de ler o texto: GONÇALVES,
António. “A Educação e a Cultura: caminhos cruzados”. (sd). Esse texto deverá estar
anexo ao presente manual, caso não esteja, peça ao seu polo para lhe facultar uma
fotocópia. Você deverá incidir a sua leitura em dois subcapítulos, nomeadamente:
9 A Educação como projecto cultural e
9 A educação como utopia e ideologia: função reprodutora.

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Anote:

Para aprofundar sobre esta matéria, poderá ler AKKARI, Jalil; MESQUIDA, Peri. Cultura
e educação: situação e perspectivas possíveis. 2000 e VEIGA-NETO, Alfredo. Cultura,
Culturas e educação. 2003.

Apesar de termos indicado os subcapítulos em que deve centrar-se, leia o texto todo,
porque irá precisar dos conteúdos para comentar, explicar e argumentar sobre o tema
“Cultura e Educação” nos testes ou seminários a que está sujeito.

Pretende-se que esta aula seja de índole prática (leitura e compreensão da matéria);
você deve ler o texto indicado para encontrar argumentos que o ajudem a discutir sobre
diferença/semelhança entre a educação e a cultura e sobre o impacto da cultura no
processo de educação.

Actividade 4

Para guiar a leitura e compreensão de Gonçalves (sd)7 recomendamos que procure


encontrar as respostas para as seguintes questões:

2. Qual é a relação existente entre cultura e educação, na perspectiva do autor do


texto?
3. Comente: “a educação é um acto eminentemente cultural” Gonçalves (sd: 14).
Inclua, na sua resposta, o ponto de vista de Durkein, no que concerne à
educação como um acto cultural.
4. Explique resumidamente por que razão se diz que a educação tem uma função
reprodutora.
5. Diga qual é a perspectiva do autor em análise, no que concerne ao papel da
escola na transmissão da cultura.

Síntese da lição:

Você aprendeu que tanto a educação como a cultura são fenómenos marcados pela
passagem de informação de uma geração para a outra e que a aquisição de ambos os
fenómenos depende de um processo de aculturação.
Em qualquer dos casos, mesmo que as gerações seguintes não mantenham a
originalidade das crenças, conhecimentos e valores, as pessoas têm a capacidade de
reestruturar e reorganizar a aprendizagem que fazem, algo tornado possível pela
adaptabilidade e selectividade da cultura e da educação.

7
O texto encontra-se depositado na biblioteca da Escola Superior Aberta - ESA, na Universidade A
Politécnica. Foi elabora e apresentado numa palestra nessa Universidade, para os alunos da ESA.

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No que concerne a relação entre educação e cultura,

Gonçalves (sd), ao socorrer-se de Arendt (2001) que refere que, cabe aos mais velhos
introduzir os mais novos no mundo da cultura, pela transmissão do ethos e que a
educação, normalmente, é feita através de instituições. Ambos os processos são de
socialização, sendo que a educação é um acto eminentemente cultural.

Quanto ao facto de a cultura ser um acto eminentemente cultural,

O referido autor, remete-nos ao pensamento de Durkein que postula que a educação é


portadora de valores, sentimentos gerais, crenças e práticas, partilhados pelos adultos
que pretendem inculcar nas crianças. Durkein defende, ainda, que a viabilidade da
sociedade é condicionada à modificação da natureza individual do homem em ser
social.
Gonçalves (sd) refere, por seu turno que, para perpetuar o equilíbrio social, os sistemas
sociais e a funcionalidade, os homens precisam de ser aculturados, i.e, educados e
cultos (disciplinados e não brutos). Desse modo, normalmente, os programas escolares
reflectem e transmitem aspectos culturais das regiões do mundo, onde esses currículos
estão inseridos.

A função reprodutora da educação

Segundo Gonçalves (sd), a educação, através da escola, no processo de transmissão


cultural, expressa os ideais a que objectiva, através de um conjunto organizado de
conteúdos de ensino programados. Procede à estruturação e institucionalização de
competências, representações e disposições que devem ser transmitidas aos alunos.
O autor afirma, ainda, que, aumentando o acesso à educação, há benefícios
económicos para a sociedade como um todo, e cita Freitag (1968), que defende que um
bom investimento na educação contribui para a qualificação da mão-de-obra e um
rápido desenvolvimento de uma nação.

Gonçalves (sd) acrescenta que a escola, para além de produzir indivíduos ajustáveis à
sociedade é também um lugar de reprodução das desigualdades sociais e económicas,
pois, para ele, e segundo Apple (1979), os estudantes culturalmente favorecidos lidarão
facilmente com a linguagem e cultura escolares, porque a acção pedagógica reproduz a
cultura dominante. Assim, a escola deverá preparar-se para lidar com as diferenças,
sem homogeneizar e sem criar exclusão social, dado que a cultura ministrada pela
escola contribui para a desigualdade extra muros.

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UNIDADE TEMÁTICA III

CULTURA E IDENTIDADE

Objectivos
No final desta unidade, você deverá ser capaz de:

• Discutir sobre a identidade enquanto fenómeno mutável.


• Reflectir sobre a importância da tolerância cultural e coabitação com a diferença,
especialmente em países de ambivalência cultural.
• Conhecer algumas dimensões de construção de Moçambicanidade.

Lição Nº. 5

CULTURA E PROCESSOS IDENTITÁRIOS EM MOÇAMBIQUE

Objectivos:
- Conhecer os diferentes contornos que o termo identidade pode tomar;
- Reflectir sobre a valorização da identidade enquanto fenómeno em constantes
mutações, susceptível de ser reformulada;

Memorize:

O termo identidade tem origem no latim escolástico identitate. O Latim escolástico é o


usado por São Tomás de Aquino, nos seus textos de filosofia. Esta palavra está calcada
do termo latino “idem”, que significa “o mesmo”: idem + entitate. (Laisse, 2007).

Conceitos básicos

Abordar o tema identidade pressupõe, à partida, ter em conta que a identidade é um


fenómeno/processo social que depende da sociedade. É inerente ao indivíduo e como
ele vive em sociedade, ela molda-o e este último molda-a, ou seja, as nossas formas de
ser, de estar e de agir, as nossas atitudes e a maneira como vemos o mundo são
elementos adquiridos na sociedade. É no processo de socialização que o indivíduo vai
adquirindo a sua identidade.

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Segundo Berger e Luckman (2004) qualquer indivíduo que nasça numa sociedade
aprende a interiorizar, à nascença (socialização primária) todos os elementos que
determinam o funcionamento da família com a qual vive ou convive. Ao crescer, ele vai
ganhando contacto com outros indivíduos diferentes dos da sua família, relaciona-se
com instituições e adquire os hábitos exigidos nesses contactos; chama/se a esse
fenómeno, socialização secundária.

Saiba:

Ao combinar as raízes idem + entitate, identidade pode significar “a mesma entidade”


(CALDAS; WOOD, JR. 1999, p.117).

Esses teóricos defendem que o conceito de identidade está relacionado com a ideia de
“permanência, unicidade e singularidade”, conceito apresentado por Heráclito, séc. VI
aC. e V aC., no que tange à existência das coisas. Este modo de pensar o conceito
identidade influenciou todas as outras definições de identidade em gerações posteriores
à de Heráclito (CALDAS; WOOD JR., 1999)

Segundo Caldas; Wood Jr. (1999a), a identidade de um indivíduo não é um processo


estático, ela sofre interacção simbólica, com o meio no qual o indivíduo se encontra
inserido. Para estes autores, o conceito de identidade é definido como algo que deixou
de caracterizar apenas o indivíduo, para abranger outros campos de conhecimento,
como, por exemplo, a análise organizacional, grupos sociais, nações, espécie humana,
entre outros, encontrando o seu ponto de partida nos estudos que abordam a questão
da identidade relacionada com questões psicanalíticas, por exemplo, as relacionadas
com o “ego”.

Bauer e Mesquita (2004) revelam que a identidade se apresenta sob diferentes


concepções, tais como: a) identidade como si-mesmo; b) identidade como processo de
identificação; c) identidade como relação; d) identidade como construção social.

A identidade em si mesma é algo pessoal e imutável, mesmo em contacto com outras


experiências sociais. A identidade como processo de identificação inclui a cultura, o
ambiente, educação, ou seja, inclui factores externos ao indivíduo, como por exemplo a
vivência adquirida no espaço do trabalho ou na sociedade. A identidade como relação é
similar ao pensamento da psicanálise, do Woodward (2000), isto é, a identidade como
um fenómeno relacional, onde se relaciona o si mesmo com outras identidades.
Identidade como construção social revela que a sociedade é preponderante em matéria
de identidade. Autores como Berger; Luckman (2004) são precursores desse
pensamento.

É de se lembrar que, para além da sociedade, o “si-mesmo” sofre reestruturações à


medida dos intercâmbios operados entre intervenientes da sociedade. Berger e
Luckman (2004) ao advogar a sua teoria sobre a identidade defendem que esta é uma
realidade subjectiva que influencia e é influenciada pelo contexto social. Isto explica o
facto de um americano ter uma identidade diferente da que é possuída por um francês
ou de um neozelandês, portanto a identidade é um fenómeno que deriva da dialéctica
entre o indivíduo e a sociedade.

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Assim, identidade é um processo que vai sendo construído e reformulado ao longo das
nossas vidas, em função do momento histórico que atravessamos, seja ele colectivo ou
individual.

Saiba ainda que:

A identificação é definida como um “processo psicológico pelo qual um indivíduo


assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou
parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. A personalidade constitui-se e
diferencia-se por uma série de identificações.” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1970, p.295).

Para Freud (1921) a identificação assume o valor de operação através da qual o


indivíduo humano se constitui. Operação essa que implica um laço emocional que
relaciona duas ou mais entidades. O grau de identificação do indivíduo com algo
(objecto) dependerá do tipo de socialização em causa (BERGER; LUCMAN, 2004).

O processo de socialização envolve processos de identificação, mas também envolve


pessoas diversas. Para fazer a ligação entre o uno e o diverso, Woodward (2000, p.18)
enfatiza a importância do aspecto cognitivo. Segundo o autor, a cognição faz esta
ligação no processo de identificação através de mecanismos de supostas similaridades.
Assim, seríamos capazes de nos identificarmos com outras pessoas, apesar das
diferenças e das separações.

Neste contexto, dir-se-ia que, para o processo de identificação, o aspecto cognitivo é


determinante, na medida em que um indivíduo assimila psicologicamente as
características do outro, seja instituição/grupo ou nação.

Segundo Moreira (2000, p.47), a identificação em psicanálise constitui a primeira


expressão de um laço emocional com outra pessoa e está ao serviço da afirmação e do
fortalecimento do Eu. O laço mútuo entre membros de um grupo tem a natureza de uma
identificação baseada numa qualidade emocional comum que envolve crenças.

Actividade 5

Esta actividade marca o início de um trabalho que deverá ser completado no final da
próxima lição.

1. Será a identidade um fenómeno estático, acabado ou mutável? Dê um exemplo.


Responda a esta questão considerando aspectos culturais de uma sociedade de um
contexto escolar, ou de uma empresa e as características da cultura.

2. Afirmámos, no início da presente aula, que a identidade é um processo de


identificação, por levar em linha de conta a cultura, o ambiente, educação e que é o que
nos faz iguais e diferentes de outros. Considerando essas afirmações, faça o
levantamento de dois aspectos da sociedade Moçambicana (música, dança, pintura,
rituais, língua, etc.) que nos fazem assumirmo-nos iguais e diferentes.

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Síntese:

Identidade é um processo social, cuja existência é de carácter individual, social e


relacional; quer dizer, um indivíduo tem a sua identidade marcada e a sua maneira de
agir e de ser distingue-se dos demais (identidade individual) ou o indivíduo torna-se e
age conforme o que lhe é incutido pela sociedade (identidade social). A identidade é
relacional, na medida em que ela existe quando comparada com outras, sendo um
processo de identificação por levar em linha de conta a cultura, o ambiente e a
educação - factores externos ao indivíduo: conhecimento adquirido na escola, na
sociedade ou no trabalho, tal como nos referimos acima. Resumindo a identidade é
unicidade, mas também diversidade. É o que nos faz iguais e diferentes de outros.

Aprendemos ainda que a identificação é definida como “processo psicológico pelo qual
um indivíduo assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se
transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. Pelo que a
identificação assume o valor de operação através da qual o indivíduo humano se
constitui. Operação essa que implica um laço emocional que relaciona duas ou mais
entidades. Assim, o grau de identificação do indivíduo com algo (objecto) dependerá do
tipo de socialização em causa.

Lição . Nº.6

CULTURA E PROCESSOS IDENTITÁRIOS EM MOÇAMBIQUE -


(Continuação da lição anterior )

No final desta lição, você deverá ser capaz de:


- Analisar questões referentes aos fenómenos identitários;
- Reflectir sobre a importância da tolerância cultural e coabitação com a diferença.

Para um melhor aproveitamento desta lição, e para poder acompanhar melhor os seus
objectivos, leia a obra de MAALOUF, Amin. Identidades Assassinas. 2005, um livro de
ensaios que o ajudará a perceber por que razão, no contexto de inclusão social, é
importante a tolerância cultural e a coabitação com a diferença.

Saiba que:

A obra “Identidades Assassinas”, de Amin Maalouf, ajuda-nos a compreender várias


questões sobre processos os identitários no mundo. De acordo com aquele autor, a

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

nossa identidade é complexa e tem vários níveis, mas não se compartimenta. Ela é feita
de todos os diferentes níveis que a formam. Para ele, há necessidade permanente de
se fazer uma reflexão em torno da identidade Por ser um fenómeno subjectivo, é
susceptível de criar conflitos sociais, onde umas identidades são “assassinadas” pelas
outras.

Maalouf faz-nos questionar por que razão é que as pessoas cometem crimes em nome
de uma identidade única, nacional ou religiosa.
Há, na obra, a discussão sobre como os conflitos religiosos, linguísticos, raciais, o
sufrágio universal e a pertença podem oprimir minorias ou, como é que, em nome da
unicidade, pode-se dizimar seres humanos. O autor chama-nos a atenção para o facto
do nosso olhar ser portador de preconceitos.

A visão que temos do mundo e as palavras que usamos podem, muitas vezes,
contribuir para o assassínio das identidades das pessoas. Contrariando essa ideia,
deve-se incentivar as pessoas a assumirem as suas múltiplas identidades ou múltiplas
pertenças. Uma atitude preconceituosa ou discriminatória é perigosa.
Cada vez mais, o mundo encontra-se a caminhar para uma unicidade económica da
qual já não podemos prescindir; no entanto, esse fenómeno deverá ser acompanhado
pela salvaguarda dos valores e crenças essenciais dos seres humanos.

Segundo Maalouf (2005), os seres humanos não são indiferentes às pertenças das
pessoas (religiosas ou étnicas e até de cor de pelo, mas o importante é que se encontre
uma fórmula para a valorização das diferentes qualidades humanas. Temos que chegar
a um momento em que eleger-se um presidente negro nos Estados Unidos da América
ou um presidente branco na República da África do Sul seja encarado como um
fenómeno comum. Devem ser valorizadas as qualidades humanas e não a pertença,
independentemente das crenças e da cor.

Para o autor uma atitude menos conturbada a nível social seria aquela em que a atitude
de tolerância é a aceitação do que é diferente, desde que não seja nocivo, porque as
pessoas devem ser encorajadas a assumirem as suas múltiplas identidades/pertenças
de forma descomplexada, porque impedir isso é “formar legiões de loucos, sanguinários
e alucinados ou de pessoas que se renegam a si próprios”.

A obra de que temos vindo a falar deixa os seguintes ensinamentos:


1. Respeitar tradições discriminatórias é desrespeitar a vida dos seres humanos;

2. Qualquer atentado à identidade de alguém é desrespeitar os direitos


fundamentais sobre homens e mulheres;

3. Ao caminharmos para identidades universais atropelamos as identidades


individuais, mas é importante uniformizar o que existe de positivo entre os
povos;

4. A religião molda as sociedades e estas a religião e, por isso, não se podem


atribuir atrocidades cometidas por determinadas pessoas a toda uma religião,
sem haver provas de tal facto.

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Maalouf coloca nessa obra os seguintes desafios:

5. Como podemos nos apropriar da modernidade, sem perdemos a nossa cultura?

6. Ao nos apropriarmos dos conhecimentos da ciência e da técnica podemos fazê-


lo, sem ficarmos reféns dos países que os produzem?

Actividade 6

1. Procure num Dicionário, Enciclopédia ou, em última instância pela internet, o que é
que significa afro pessimismo e unanismo. Não se esqueça de mencionar o autor e a
fonte da definição que encontrar.
2. Usando ainda a Internet, procure comentários feitos em torno da realização (ou não)
do mundial do futebol na África do Sul em 2010. Esses comentários deverão deixar
clara a ideia de afro pessimismo e de unanismo (conceito de que falámos na questão
anterior).
2.1. Faça uma análise desses comentários (os referidos em 2) tendo em conta:
- Os ensinamentos e os desafios colocados por Maalouf em “As identidades
Assassinas”;

- A seguinte afirmação do mesmo autor (mencionada anteriormente no presente


manual): “as pessoas devem ser encorajadas a assumirem as suas múltiplas
identidades/pertenças de forma descomplexada”.

Síntese
As pessoas são feitas de várias identidades e não há necessidade de compartimentá-
las, porque elas vão se ajustando/reformulando em cada momento, dependendo do
contexto. Por outro lado, há necessidade permanente de se fazer uma reflexão em
torno da identidade, por ser um fenómeno subjectivo é susceptível de criar conflitos
sociais, onde umas identidades são assassinadas pelas outras.

Ao se discutir a questão do sufrágio universal é importante ser-se consciente que há


sempre uma minoria oprimida, em nome da unicidade, o que pode dizimar seres
humanos e que o facto de olharmos o mundo com preconceitos ou apenas através
daquilo que valorizamos e aprendemos nas nossas culturas pode contribuir para o
assassínio das identidades das pessoas.
Cada vez mais, o mundo encontra-se a caminhar para uma unicidade económica da
qual já não podemos prescindir, no entanto, esse fenómeno deverá ser acompanhado
pela salvaguarda dos valores e crenças essenciais dos seres humanos e daquilo que é
positiva nas culturas.

Embora os seres humanos não sejam indiferentes às pertenças das pessoas


(religiosas ou étnicas e até raciais) é importante é que se encontre uma fórmula para a
valorização das diferentes qualidades humanas.

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Impedir que as pessoas assumam as suas diferentes identidades é “formar legiões de


loucos, sanguinários e alucinada ou de pessoas que se renegam a si próprias”.

Lição Nº.7

Identidade e Moçambicanidade – Processo de formação da


identidade Moçambicana – (Continuação da lição anterior)

No final desta lição, você deverá ser capaz de:


- Discutir sobre alguns processos identitários que marcam a cultura em Moçambique:
identitários moçambicanos

Leia a obra de GRAÇA, Pedro.”A construção da nação em África”. 2005, cap. III e IV,
para aprender sobre a formação de processos identitários em África e o texto de
NGOENHA, Severino “Identidade Moçambicana: já e ainda não”, inserido em SERRA,
Carlos, “Identidade, Moçambicanidade e Moçambicanização” (1998).

Saiba que:

A moçambicanidade é um conceito moderno, não só porque engloba todos os que


estão reunidos no mesmo espaço geopolítico de colonização, que passa a ser encarado
como espaço nacional, mas também, porque propõe o ultrapassar das particularidades
pela política (Mondlane, 1995).

Para Ngoenha (1996) o projecto Moçambicano de criação de nação8, nascido em 1962,


a partir do espaço geopolítico da colonização portuguesa, propunha-se unir todas as
micro-comunidades políticas e integrá-las numa única dinâmica política. A
moçambicanidade queria-se uma comunidade ideal de cidadãos. Ela reconhecia
simplesmente indivíduos iguais e ignorava as particularidades étnicas, regionais,
culturais, linguísticas e religiosas de cada um. Era essencialmente oposta aos micro-
nacionalismos, ao tribalismo e ao regionalismo, que só podem viver no isolamento de
cada um nas suas particularidades.

Graça, Pedro (2005) refere que é impossível falar-se na existência de uma identidade
comum no país, dada a multiplicidade de línguas e etnias; no entanto, deve-se referir
que a convivência com a cultura portuguesa é um marco comum nessas diferentes
etnias, uma vez que houve uma convivência social entre moçambicanos e portugueses.

8
O conceito de Nação é plurissignificativo, mais adiante, neste manual, abordaremos essa questão.

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

Retenha isto, caro aluno. Será importante no âmbito de várias discussões sobre
processos identitários referentes a Moçambique.

O autor refere ainda que, entre 1962 e 1968, havia no grupo várias tensões inter-étnicas
e até de origem racial, sendo que a questão central tinha a ver com o poder. A partir do
II congresso da FRELIMO (1968), verificou-se a necessidade de diminuir os conflitos e
de se fazer a reconstrução nacional, integrando a organização política, económica,
social, incluindo o desenvolvimento de uma cultura nacional.
Nesse âmbito, o chamamento era para que houvesse uma atitude de tolerância
relativamente aos valores culturais tradicionais. O combate contra o tribalismo, o
regionalismo e o racismo, constituíam o ideal nessa reconstrução e tornou-se tabu o
reconhecimento de antagonismos étnicos.

No entanto, o autor explica que a prioridade na reconstrução do país dava mais ênfase
a questões políticas e da implantação do Marxismo-Leninismo pela FRELIMO, o que fez
com que houvesse algum vazio no tratamento de aspectos ligados ao desenvolvimento
da cultura moçambicana. A primeira e a segunda reuniões nacionais da cultura,
organizadas pelo Ministério de Educação, foram reveladoras disso, isto porque, o
debate sobre a cultura redundou num fracasso.

O autor afirma ainda que, na sequência do III congresso, entre 1978 e 1982 foram
iniciadas campanhas para consolidar a cultura frelimista, nomeadamente a Campanha
Nacional de Preservação e Valorização do Património Cultural que culminou com a
criação do ARPAC, do Museu da Revolução, do Museu da Moeda, do Instituto Nacional
do Livro e do Disco e do Instituto Nacional do Cinema. Em 1978 teve lugar ainda o
primeiro festival de dança popular – que mostrou a diversidade cultural a partir das
massas. Só a partir dos anos 90, com a implantação da democracia é que se começou
a questionar o conceito de Nação e nessa altura começou a haver abertura para o
reconhecimento da existência da diversidade etnocultural, iniciando-se o
questionamento sobre a proporcionalidade relativamente à detenção de cargos
políticos.

O que se tem verificado actualmente é que cada vez mais se dá importância à


diversidade cultural – o que é salutar para a reconstrução do país, desde que se
trabalhe a questão da coabitação com a diferença. Ainda há muito caminho para ser
percorrido.

Actividade 7
1. Acha que a identidade moçambicana já está formada?
1.1Considerando apenas questões culturais, acha que pode afirma-se que existe uma
identidade Moçambicana (unicidade)? Leia o capítulo V da obra “A construção da
Nação em África”, para entender o pensamento de Graça (2005) sobre essa questão.
Leia e releia o que referimos que deveria ser retido no início da presente lição.

Síntese:

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

Ainda não é possível falar-se na existência de uma identidade comum no país, dada a
multiplicidade de línguas e etnias, no entanto, deve-se referir que a convivência com a
cultura portuguesa é um marco comum nessas diferentes etnias, uma vez que houve
uma convivência social entre moçambicanos e portugueses.

Como uma grande marca na arena cultural em Moçambique, no que concerne aos
processos identitários, pretendia-se uma comunidade ideal de cidadãos, que reconhecia
simplesmente indivíduos iguais e ignorava as particularidades étnicas, regionais,
culturais, linguísticas e religiosas de cada um. A política vigente nessa altura, antes da
independência, era essencialmente oposta aos micro-nacionalismos, ao tribalismo, ao
regionalismo, que só podem viver no isolamento de cada um nas suas particularidades.
O que quer dizer que esse processo gerou rupturas, uma vez que era e é importante
não impedir que haja coabitação com as diferenças.
Esse é um trabalho que tem tido um franco andamento, nos dias que correm, porque
cada vez mais se dá importância a diversidade cultural, o que é salutar para a
reconstrução do país.

Lição Nº. 8

IDENTIDADE E MOCAMBICANIDADE – Porque falhou o projecto de


Moçambicanidade?

Tal como na lição anterior, no final desta lição, você deverá ser capaz de:
- Discutir sobre alguns processos culturais que marcam a identidade dos
moçambicanos;
E ainda:
- Compreender alguns pressupostos para resgatar o projecto de Moçambicanidade.

Nesta lição, não iremos marcar exercícios para que reflicta sobre a matéria, mas
colocaremos questões que deverão servir de alicerce, no referente a discussões sobre
a moçambicanidade. Leia as respostas com muita atenção.

Aprenda com o filósofo moçambicano Severino Ngoenha. Leia a sua obra “Identidade
Moçambicana: já e ainda não”, inserido em Serra, “Identidade, Moçambicanidade e
Moçambicanização” (1998) para perceber de que recursos nos poderemos socorrer na
tentativa de resgatar o projecto de Moçambicanidade.

Lembra-se do que referiu Maalouf (2005)? Ele afirmou que é importante deixar conviver
as diferentes identidades do si mesmo ou as identidades relacionais. Não foi?

Saiba que:

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

Para Ngoenha (op. cit), a moçambicanidade é sobretudo, um dever e uma tarefa: dever
de conservar a liberdade e a soberania duramente conquistadas; tarefa de as consolidar
e de as incrementar para gerações futuras.
A sociologia pode descrever a crise e o perigo que ameaçam esta frágil unidade política
e moral que é Moçambique: do interior, pelos micro-nacionalismos e pelo economicismo
individualista; do exterior, pela globalização económica e pela usurpação do espaço
político nacional em acto, o que pode significar um colonialismo de retorno.

Enquanto as ciências sociais nos dão a existência de uma tal moçambicanidade, a


filosofia tem que nos dar o sentido da existência de uma tal identidade.
A existência não significa razão de existir. Se uma identidade moçambicana existe,
porque teve razão de existir no passado, a sua existência justifica-se hoje ainda? Se ela
tem razão de existir, estando, porém, a sua existência ameaçada, a filosofia tem,
normativamente, de proporcionar aos moçambicanos a defesa da sua identidade
ameaçada.
A filosofia tem a função de pensar e questionar o presente e os actos dos cidadãos para
atingir os fins sociais e históricos desejáveis.

Por que razão é urgente discutir-se a sobre os processos identitários nos dias
que correm?

Vivemos uma época de paradoxos. Nunca, como hoje, se falou tanto da identidade
moçambicana, ou de uma moçambicanidade, mas ao mesmo tempo, nunca, desde a
proclamação da independência, tal identidade esteve tão ameaçada como hoje. Do
exterior, pela limitação da soberania que comporta a internacionalização das trocas e a
interdependência das economias; do interior, pela ideologia produtivista, que exalta o
indivíduo e os seus interesses, mas ignora os cidadãos e os seus ideais.
Nada nos assegura que a moçambicanidade terá, no futuro, a capacidade de assegurar
as relações sociais entre Moçambicanos.

O intervencionismo da comunidade internacional parece meter em causa a ideia da


soberania.
Historicamente, a moçambicanidade é um projecto político singular. Como o projecto
político português nasceu da negação de Portugal ser uma província espanhola, o
projecto político moçambicano nasce da negação dos Moçambicanos em continuarem
província ultramarina portuguesa. No coração do projecto político moçambicano está a
aspiração à independência, que, por sua vez, se situa no largo movimento
independentista e pró-libertário dos negros do mundo inteiro.

O que falhou no projecto de moçambicanidade?

Uns dos maiores problemas da moçambicanidade foi, na Primeira República, e é ainda


mais na Segunda República, a falta de instituições à altura das suas ideias e do seu
projecto. As ideias vieram, naturalmente, de uma elite intelectual e moral, mas o futuro

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destas ideias dependia da sua capacidade de tomar corpo e incarnar-se em instituições


autonomizadas, isto é, criadas a partir da compreensão cultural das populações e,
portanto, susceptíveis de dar corpo ao projecto unitário.

Historicamente, o projecto político moçambicano formulado em 1962 atinge o seu ápice


com a proclamação da independência. Todavia, entre a formulação do projecto e a
proclamação da independência decorrem eventos significativos, que acabam
determinando a natureza da Nação moçambicana e das suas instituições.

O “universalismo” pan-moçambicano de projecto político da moçambicanidade e as


particularidades dos proto-nacionalismos explicam a tensão construtiva da identidade
moçambicana – tensão benéfica e produtiva, se as diferenças forem orientadas de
modo a dar uma contribuição específica ao bem comum da Nação global: tensão
maléfica e perigosa, se os actores sociais forem levados a fechar-se nas suas
particularidades (no etnocentrismo) e mesmo a combaterem a diferença (tribalismo).

O Estado inscreve a Nação no espaço. Por isso, a moçambicanidade é uma identidade


política territorializada. Mas, sobretudo, histórica. Quem diz histórica diz temporalidade.
Como um dia nascemos como Nação, um dia vamos poder ter que desaparecer.
Moçambique existe porque realiza o seu fim histórico, isto é, com o objectivo de levar os
moçambicanos à sua realização política e social. Se não, é melhor que desapareça.

Qual será a alternativa à moçambicanidade? Os micro-nacionalismos ou


panafricanismos?

A moçambicanidade baseou-se, desde os seus primórdios, na sabedoria de um pacto


político que uniu dinâmicas micro-nacionalistas isolacionistas num único e mesmo
“élan”. As ameaças neo-coloniais de hoje são mais fortes do que a capacidade
económica, política e, mesmo, militar do colonialismo português. Eventuais divisões ser-
nos-iam fatais, pois enfraqueceriam ulteriormente a nossa capacidade de defender e de
promover a nossa soberania.

Em 1994 Moçambique transformou-se numa nação democrática que vem com a


ideologia triunfante. Esta nova situação política descobriu os conflitos étnicos, regionais,
de interesses e de visões políticas, até então latentes, o que a priori, pode pôr em causa
a sobrevivência de uma identidade moçambicana.

Que alternativas?

A preservação e a consolidação da moçambicanidade dependem de um duplo pacto:


um “contrato cultural (unidade na diferença) e um contrato de inteligência social”.
O pacto cultural deveria reconciliar a política com as culturas nacionais. Isto permitiria
libertar as instituições estatais da política cultural sobre a qual vegetam, metendo-as
numa dinâmica de cultura política mais produtiva. É necessário pensar a política a partir
de baixo, a partir de marcadores identitários forjados nas culturas nacionais.
É necessária a capacidade integradora da Nação, isto é, a relação entre o projecto
político e as características étnicas e sociais das populações.

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Urge renovar o projecto político nacional e adaptá-lo aos imperativos hodiernos, através
de instituições comuns. Urge criar instituições comuns susceptíveis de renovar o
processo de integração das populações através de uma prática de cidadania e
participação na vida colectiva. Urge forjar um projecto capaz de assimilar as diferentes
populações a um projecto comum, sem desnaturar as suas especificidades.
É preciso um projecto que permita a colaboração de todos num único “élan” nacional,
um projecto fundado sobre a ideia do valor do inter-culturalismo. Um projecto que
favoreça a unidade na diferença.

A existência da Nação moçambicana depende da capacidade do projecto político de


resolver as rivalidades e os conflitos entre grupos sociais, religiosos, regionais ou
étnicos, segundo regras reconhecidas como legítimas.

Síntese:

Nada nos assegura que a moçambicanidade terá, no futuro, a capacidade de assegurar


as relações sociais entre Moçambicanos. O intervencionismo da comunidade
internacional parece meter em causa a ideia da soberania.
Historicamente, a moçambicanidade é um projecto político singular, formulado em 1962
e que atingiu o seu ápice com a independência nacional em 1975. O Estado inscreve a
Nação no espaço. Por isso, a moçambicanidade é uma identidade política
territorializada, mas principalmente histórica.
A tentativa de unicidade cria dois tipos de tensão: benéfica, se as diferenças forem
assumidas como um bem a valorizar o bem da Nação global, e maléficas, se as
pessoas forem orientadas para o etnocentrismo e para combaterem a diferença.
A preservação e a consolidação da moçambicanidade dependem de um duplo pacto:
um “contrato cultural (unidade na diferença), um contrato de inteligência social” e
reconciliar a política com as culturas nacionais.

É necessária a capacidade integradora da Nação, isto é, a relação entre o projecto


político e as características étnicas e sociais das populações e renovar o projecto
político nacional e adaptá-lo aos imperativos hodiernos, através de instituições comuns.,
incentivando a prática da cidadania e a promoção do interculturalismo.

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UNIDADE TEMÁTICA IV

A pretensão de superioridade cultura: correntes antropológicas

Objectivos

No final desta unidade, você deverá ser capaz de:


• Discutir sobre a formulação de juízos de valor.
• Discutir sobre a relatividade cultural.
• Analisar diferentes concepções antropológicas que marcaram a
mentalidade da humanidade.

Lição Nº. 9

A PRETENÇÃO DA SUPERIORIDADE RACIAL – Formulação de juízo de


valor

Este tema será abordado em quatro lições, nomeadamente:


- Formulação de juízo de valor com rigor científico;
- A relatividade cultural;
- A pretensão da superioridade cultural;
- Correntes antropológicas.

Anote

Para esta aula será importante trazer conhecimentos de História Universal e daquilo a
que se tem chamado de “humildade científica”. Leia especialmente Colleyn, JP . “A
pretensão da superioridade cultural. in Elementos de antropologia. 2005, capítulo II
ideologia social e cultural” de (2005), para perceber a presente lição e as próximas.

Para um melhor aprofundamento aconselhamo-lo, também a ler a obra BOFF,


Leonardo. “A Águia e a galinha”. 2009. . Essa obra, de carácter filosófico, irá ajudá-lo a
reflectir sobre a questão da superioridade de culturas e sobre a emissão de juízos de
valor e os desafios colocados para abordar este tema.

Disponibilizamos, também, um ensaio da autoria de Jona (2010) que aborda assuntos


relacionados com a obra de Boff. O mesmo irá ajuda-lo, não só a debater sobre a
supremacia de umas raças e culturas sobre as outras, mas também a desafiá-lo para
um dos objectivos da cadeira: compreensão da alteridade, promoção da equidade e da
coesão social.

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No final desta lição, você deverá ser capaz de:


- Comentar sobre a emissão de juízos de valor, para caracterizar ou teorizar sobre a
cultura;
- Perceber que o carácter valorativo é impróprio para a ciência e que as generalizações
só deverão ser feitas a partir do uso de um método que meça o facto que pretendemos
generalizar ou explicar;

Vamos começar por realizar um exercício?

Actividade 9

1.Escreva no seu caderno que passos tomaria para formular um juízo de valor acerca
de um acontecimento social, cultural ou político?
2. Leia o texto que segue e comente-o tendo em conta a importância de se considerar
o rigor científico, quando emitimos juízo de valor.

Depois dessa actividade, passemos ao assunto da presente lição. Leia atentamente o


texto.

TEXTO

Qualidades de uma grande mulher

…uma grande mulher não finge, não mente, não trai e nem denigre a vida alheia; não
abandona o marido nos momentos difíceis da vida, nem na pobreza e nem na tristeza,
pelo contrário consola-o, aconselha-o, fica do seu lado, enfim, transmite-lhe toda a
alegria!
Uma grande mulher não escolhe o marido pela cor da pele e nem pela condição
económica, muito menos pela riqueza, mas sim pelo amor, carinho e sinceridade.
Uma grande mulher chora por uma justa causa, chora pela sua dignidade ofendida, ri
quando for necessário, transmite o amor ao marido, perdoa, ajuda e constrói uma
família feliz, luta em prol do desenvolvimento da sociedade, pelos valores morais do seu
género, da sua sociedade e da sua nação.
Uma grande mulher não exibe o seu corpo, não ofende, não comete injúrias, pelo
contrário guia-se pela ética e decência.
Uma grande mulher transmite amor aos seus filhos, aos desesperados, aos sofredores,
aos amigos e à sociedade; ela luta pela causa da nação, usando a coragem, fé, força,
da alma e do espírito, aceita receber o marido, mesmo que ele volte de madrugada à
casa e não se envolve em discussões, tenta ficar forte e consegue! Mesmo magoada,
ela fica firme e simples, como se nada tivesse acontecido, porque o amor é mais forte.
Uma grande mulher vai à luta, arrisca a sua vida por uma causa, como a liberdade do
povo da sua nação.
Uma grande mulher não envereda pelo “materialismo” e nem pela luxúria na escolha do
parceiro, mas sim pelo amor e felicidade; ela sorri, alegra-se quando for necessário,

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enfrenta duras realidades, fala a verdade, arrepende-se e pede perdão e respeita a si


própria.
Uma grande mulher oferece flores, rosas e demais presentes a qualquer momento da
vida, nunca espera por ocasiões especiais para tal. Não engana e as suas virtudes são
construtivas, ela é simpática, alegre, realista e social, não se orgulha pela riqueza, não
ginga diante da convivência social, muito menos autoelogia-se, não comete infidelidade,
é sincera ao parceiro e cumpre com o amor infinito.
Uma grande mulher não se envolve em bebedeiras, drogas e em imundices, pois nos
tempos livres cuida da sua família e da sua imagem.
Uma grande mulher é mãe, educadora, patriota, empreendedora e solidária ao serviço
da nação.

Mateus Licusse, in Jornal notícias, Julho de 2010.

Então? O que achou do texto? Acha que é assim que deve ser uma grande mulher?
Porquê? Lembre-se que, tal como afirma Amin Maalouf, o nosso olhar não deve ser
prisioneiro dos nossos preconceitos! Voltaremos a esta questão, quando falarmos sobre
o relativismo cultural.

Saiba:

Para formular juízos de valor com rigor científico é imprescindível:

9 Usarmos métodos fiáveis (métodos científico) que facilmente possam ser


testados, verificados, medidos, por outros que não o pesquisador;

9 Deve-se juntar o maior número possível de evidências sobre os factos


pesquisados;

9 Pesquisar o facto, fenómeno no terreno, para não fazer julgamento a partir de


preconceitos ou aparências.

Por falta desse rigor, no mundo houve/há, na História da Humanidade, erros difíceis de
reparar (e que não encontram sustentação científica) e que marcaram a humanidade
advindos de “etnografia de varanda”, como é ocaso da ilusão da superioridade de raças
e de culturas: que, de acordo com Colleyn (2005), permitiram considerar que África é
um continente “bárbaro” e “selvagem”; pelo que deveria ser colonizado. Quais terão sido
os fundamentos científicos desse pressuposto?

Se África é o berço da Humanidade, um continente no qual, de acordo com Colleyn (op.


cit) há mais do que 2500 anos já se fazia a travessia do deserto; ao longo de muitos
anos já se tinham adoptado culturas asiáticas, como: trigo, cevada, inhame, cebola,
mangueira, banana, etc. Há mais de 2000 anos, fundiam-se metais preciosos e ferro
enviados ao mundo árabe através do Mediterrâneo, sem serem necessárias grandes
máquinas surgidas na revolução industrial9. Por que razão é que se considera um
continente “bárbaro e selvagem”? O que acontece é que muitas vezes emitimos juízos
de valor sobre esta ou aquela população que consideramos “preguiçosa”, “hábil”,

9
A Revolução Industrial surgiu na Inglaterra no final do séc. XVIII.

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

“trabalhadora”, “susceptível” ou “manhosa” – juízos que advêm de preconceitos que


formámos.

Daí que Colleyn (2005) afirme que ao comparar sociedades e fenómenos, não se pode
assumir que a ausência de determinada característica numa, é sinónimo de
inferioridade. As sociedades têm estádios de desenvolvimento diferentes. Os seres
humanos têm diferentes maneiras de ser e de estar. Não se pode tomar a parte pelo
todo ou ficar -se pelas aparências.

Assim, quando pretendemos formular juízos de valor relativamente a fenómenos


sociais, por exemplo, devemos nos certificar que encontramos um denominador
comum, universalmente aceite para comparar os fenómenos em análise.

Resumindo: a ciência não tem verdades absolutas, mas cada conclusão científica
deverá juntar o maior número possível de provas.

Actividade 10

3. Depois de ter lido o que acabamos de afirmar, reforce a sua resposta à questão
anterior. O que é que faltou, na formulação de juízo de valor no texto de Licusse?

Síntese

Aprendemos que para formular juízos de valor, temos que usar métodos científicos que
possam ser testados, verificados e mensurados por outras pessoas, para além da
pessoa que faz a pesquisa.
Além disso é importante usar dados fiáveis que podem ser obtidos de pesquisas de
campo, comparação de dados encontrados e entrevistas aos nativos.
Em termos de ética recomenda-se uma atitude não preconceituosa e não etnocêntrica,
para além de ter que se verificar todos os pormenores em volta do fenómeno estudado.

Lição Nº. 10

A pretensão da superioridade cultural: o relativismo cultural –


(continuação da aula anterior)

Afirmámos na aula passada que o tema sobre a pretensa superioridade racial é muito
complexo, pelo que requer uma abordagem faseada.

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Nesta lição, irá aprender sobre o relativismo cultural. Assim, terá que voltar às notas dos
textos indicados na aula passada, especialmente à introdução da obra “Elementos de
antropologia social e cultural” de Colleyn, JP (2005).

Leia ainda:

No final desta lição você deverá ser capaz de:


- Compreender a necessidade de usar a ética do relativismo, quando falamos em
fenómenos culturais.

Actividade 11
1. Procure pela Internet ou num dicionário de vocábulos de língua portuguesa o que
significa etnocentrismo.

Relativismo cultural é o processo pelo qual consideramos “naturais”, “normais” os


modelos culturais interiorizados por nós no nosso sistema educativo e “anormais” os
comportamentos dos “outros”. Normalmente lemos, classificamos o mundo e criticamo-
lo a partir de nós próprios ou das “lentes” da nossa cultura, é uma atitude etnocêntrica.

Nota:
Lembra-se do que leu sobre o conceito etnocentrismo? Se sim, relacione-o com a
expressão “atitude etnocêntrica”. Se não, volte a pesquisar o termo pela Internet ou
então use um dicionário de vocábulos de língua portuguesa.

Ao falar em relativismo cultural, Cardoso (1995) defende que é importante reter que
cada cultura tem especificidades que lhe são inerentes e que resultam de factores
socio-históricos que definem a identidade de seus detentores. É por isso que não é
defensável a ideia da superioridade racial ou cultural de um povo sobre o outro.

Segundo o autor, há uma crítica que é feita ao uso excessivo do relativismo cultural que
tem a ver com o facto de, em nome desse relativismo, as culturas se fecharem em si e
não permitirem um intercâmbio em contextos multiculturais.

Nesse sentido, é importante perceber que o relativismo cultural pressupõe o respeito


pelas diferenças, mas não implica a aceitação de que os conceitos ou a diferença entre
eles assentem em “areias tão movediças”. Existe, em todas as sociedades, uma
diferença entre valores considerados bons ou maus, pelo menos naquilo que concerne
à integridade e defesa do ser humano.

Existem ainda os valores universais, nomeadamente: o prazer pela estética, preceitos


de moral, critérios de verdade, lei, procura de alimentação, relações de amizade,
necessidade de protecção etc; o que quer dizer que a cultura não pode ser encarada
pela sua extrema relatividade. Existem também valores relativos: o funcionamento das
instituições, a escolha de alimentos e como confecciona-los, o tipo de objectos estéticos
que causem mais admiração, etc, o que varia de cultura para cultura.

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Segundo Colleyn (2005), a actividade sensorial do ser humano é educada, organizada e


condicionada pela cultura a que pertence. Normalmente, só nos damos conta que a
sociedade em que vivemos moldou todas as nossas percepções quando nos
encontramos numa civilização diferente e não conseguimos encontrar os nossos pontos
de referência. (o sotaque, a religião, os modelos familiares e parentesco, os preceitos
públicos, entre outros, por exemplo).

Para Cuche (2003), o relativismo cultural é uma ferramenta indispensável para as


Ciências Sociais. Existem, na sua perspectiva, três concepções de relativismo cultural,
a saber:

a) A que defende que as culturas são entidades separadas e de contornos


facilmente identificáveis, ou seja, distintas umas das outras, incomparáveis e
incomensuráveis entre si. (Posição grandemente contestada);
b) Princípio ético que preconiza a neutralidade perante diferentes culturas ou do
seu valor intrínseco. Mas essa neutralidade passa imperceptível aos juízos de
valor, uma vez que “todas as culturas valem o mesmo”. Este relativismo é
conhecido como defensor das culturas minoritárias. (Este posicionamento
também pode ser gerador de controvérsias, caso se trate da necessidade de
programas de afirmação para as minoritárias);
c) Que defende que não se pode avaliar fenómenos culturais, independentemente
dos sistemas em que ocorram ou pertençam, ou seja, cada cultura tem a sua
função dentro do contexto em que ocorre. (Esta constitui a concepção menos
contextualizada e é conhecida como a que relativiza o relativismo cultural e é a
que é mais aceite cientificamente, por ser mais operatória).

Actividade 12
1. Retomando o exemplo de texto analisado na aula anterior, reforce o seu comentário
tendo em conta o relativismo cultural e o etnocentrismo.

Síntese

O relativismo cultural pressupõe o respeito pelas diferenças, mas não implica a


aceitação de valores que são universais. Caracterizam toda a humanidade e valores
relativos, isto é, variam de sociedade para sociedade ou de contexto para contexto.

Uma atitude mais aceitável cientificamente, no que concerne à análise e comparação


entre culturas é aquela que defende que não se pode avaliar fenómenos culturais,
independentemente dos sistemas em que ocorrem ou pertencem e do tempo histórico
em que decorrem. Além disso é importante ter sempre presente a função
desempenhada pelos fenómenos estudados para cada sociedade.

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Lição Nº. 11

A PRETENÇÃO DA SUPERIORIDADE CULTURAL – (continuação da aula


anterior).

- Discutir as razões que guiaram a pretensão da superioridade cultural.

Saiba:

“O bárbaro é, antes de tudo, aquele que crê na barbárie” Claude Lévi-Strauss (1961),
“Race et Historie”, in Colleyn (2005)

Já se questionou sobre o porquê de a História Universal referir que África é o berço da


Humanidade? E no entanto ela ser classificada de primitiva, selvagem e bárbara? Há
nisto um paradoxo, não lhe parece?

Lembra-se do que dissemos na lição anterior? Dizíamos que não se pode avaliar os
fenómenos culturais independentemente dos contextos em que ocorrem, não foi? Vá
reler sobre o de relativismo cultural defendida por Cuche (2003).

Saiba ainda:

Tem se dito que o homem apareceu num período calculado entre 4 a 7 milhões de
anos na África centro-oriental, no Quénia. Após um longo período a viver numa
economia caracterizada pela caca e recolecção, passou-se à revolução ligada à
indústria da pedra polida, à descoberta da agricultura e da criação de animais.

De acordo com Colleyn (2005) muitos livros escolares continuam a apresentar a África
como um continente que se manteve selvagem devido ao seu isolamento. Continuam a
tratar da civilização egípcia e a de Méroe (onde foi inventada a escrita meroítica”) e
Kouch como se não fizessem parte do continente africano.

O comércio triangular Europa-América-África e o comércio de escravos permitiram aos


europeus exercer uma supremacia política e económica sobre a África, o que deturpou
a visão sobre o continente africano, isto porque, antigamente, o deserto norte-africano
não era um obstáculo intransponível, havia caravanas que o atravessavam há 2500
anos. Este autor defende que superioridade ocidental só se tornou decisiva após a
revolução industrial. Para justificar a missão civilizadora do ocidente, foi necessário criar
ilusões e ver a África como se pertencesse apenas ao reino da natureza e que só terá
saído de uma estagnação milenar após a conquista europeia.

Além disso, a África ao longo da sua história adoptou culturas de origem asiática e do
médio oriente como o inhame, o taro, a bananeira, a cevada, o trigo, o arroz, a cebola e
a mangueira. A sua população nómada cria, desde há séculos, bois de origem egípcia e

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zebus asiáticos e fundia o ferro há 2000 anos. Vejam-se os casos da arte de bronze do
Benin que, pelo mundo inteiro, têm causado espanto e admiração. Lembra-se que
afirmámos isso na lição nº9, não é? Não se lembra? Volte a essa lição, antes de
avançar.

África foi considerada primitiva porque os teorizadores e o domínio colonial desde a


sua expansão até ao terceiro quartel do Séc. XX comparavam factos diferentes em
diferentes culturas (ou seja comparou-se o Ocidente e a África usando critérios
diferentes: progresso científico, usos e costumes; este critério de comparação torna-se
ilusório, se considerarmos que cada cultura tem a sua função, dentro do contexto em
que ocorre.

Colleyn (op. cit.) defende que o domínio colonial é o principal responsável pelo atraso
económico de África. A concepção mais difundida, na opinião euro-americana, no que
concerne a diferentes culturas é a de que elas são as etapas sucessivas de um mesmo
desenvolvimento, de um progresso linear da humanidade. Nesta perspectiva, é cómodo
comparar sociedades contemporâneas que não possuem o domínio desta ou daquela
técnica (metalurgia, electricidade, escrita, etc) com o estágio da nossa sociedade, antes
da descoberta dessa técnica.

O autor defende, ainda, que, pela lógica, esse ponto de vista é indispensável: a partir da
ausência comum de determinada característica em duas sociedades, com que direito se
pode postular uma analogia entre essas duas sociedades sob todos os seus aspectos?
O erro desta ideia é confiar nas aparências, tomando a parte pelo todo, enquanto que
qualquer empreendimento científico consiste em ir para além das aparências.

Assim, considerar umas sociedades mais atrasadas que outras resulta de um devir
histórico cujo postulado se encontra incorrecto, dado que “...o progresso não é
necessariamente contínuo...a humanidade em progresso não se assemelha a uma
personagem que sobe uma escada” (Lévi-Strauss, 1961). Falar de progresso é emitir
um juízo de valor. Os valores não são universais, nem absolutos. Resultam das
exigências de cada sociedade.

Outras reflexões a que o autor nos remete, para responder à pergunta colocada
no início desta lição:

Que superioridade moral podem apresentar as grandes potências que, graças aos seus
fornecimentos de armas, alimentam todos os conflitos e apoiam todas as ditaduras?

Condenamos veementemente os ritos bárbaros dos povos africanos, mas as maiores


atrocidades sistemáticas, os campos de exterminação nazis, apareceram no ocidente
cristão. Facilmente associamos a África às guerras tribais, mas, na verdade, nenhuma
sociedade do mundo faz a guerra com tanta eficácia como a civilização ocidental. Veja-
se, por exemplo o caso da ex-Jugoslávia.

Outra qualidade de que o ocidente se orgulha é a racionalidade, mas porque será que o
ocidente se debate contra as suas próprias criações: dinheiro e técnica? Porque será
que com o progresso técnico, o aumento da produtividade se traduz em despedimentos
de pessoas e de emprego cada vez maior? Além disso, o desenvolvimento sem
precedentes da técnica tornou o homem num factor que ameaça os equilíbrios naturais
– a poluição cada vez maior, o aquecimento do planeta e o esgotamento dos recursos.

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Para avaliar a racionalidade de uma cultura, devem intervir critérios como a


conservação de recursos raros, o controlo do homem sobre a máquina económica, o
domínio do seu próprio trabalho, a capacidade de neutralizar as tensões sociais, a
qualidade das relações humanas, etc. As pequenas sociedades de caçadores
recolectores souberam aperfeiçoar, ao longo dos séculos, a sua articulação com uma
natureza que respeitavam, mais do que a sociedade industrial.

Em alguns destes domínios, poderíamos ir buscar muitos ensinamentos aos povos


exóticos. No entanto, passa-se o contrário. A sociedade ocidental deixou que se
desenvolvesse a procura exacerbada de satisfações ilusórias e difunde os seus
modelos pelos países em vias de desenvolvimento. Para se adoptarem a esses
modelos, as classes privilegiadas desses países confiscam a maior parte da ajuda
internacional, aumentando o dízimo que cobram ao mundo agrícola, e ridicularizam o
modelo de vida tradicional. Uma das tarefas da antropologia consiste em moldar a
diversidade das culturas e em reabilitar a diferença, face aos esforços de
“homogeneização” de todo o tipo.

Actividade 13

4. Depois do que leu até agora, encontra alguma razão científica que defenda a
supremacia de umas culturas sobre as outras? Ou de posturas sociais como por
exemplo as reportadas por Licusse no texto mencionado nas aulas anteriores? Não lhe
parece que as qualidades defendidas por esse autor deveriam caracterizar tanto
homens como mulheres? Ou por outra, será que em todas as culturas é ponto assente
que entre homem e mulher, as diferenças devem ser encaradas do jeito que o autor
propõe? Porque razão será que ele defende uma postura reducionista da mulher?

Síntese
Nesta lição deixamos espaço para que você faça a síntese do que aprendeu, mas
recordamo-lo que, ao comparar sociedades diferentes, é importante que tenha em
consideração que usa critérios similares para as duas sociedades. Além disso, é
importante ter em consideração que não há necessidade de que as sociedades tenham
um progresso linear ao longo do seu desenvolvimento.

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Lição Nº.12

Escolas de pensamento antropológico – (conclusão da lição anterior).

Anote:

Para um bom aproveitamento desta lição, leia Colleyn, Jean Paul. “Elementos de
Antropologia social e cultural”. 2005. Capítulo V e ainda Cuche, Denys. “A Noção de
culturas nas ciências sociais”. 2003. Cap. II, pg. 59 – 65.

Para melhor fundamentar a necessidade de se estudar a questão das diferenças


culturais, de forma científica e sistematizada, trouxemos a presente lição, que será
muito útil para a pesquisa de campo que terá de fazer.

No final, deverá ser capaz de:

- Discutir sobre as correntes antropológicas, para interpretar fenómenos sociais,


culturais e políticos.

Antes de iniciarmos com a abordagem das diferentes correntes, importa salientar que
elas não são compartimentos estanques e que pormenores sobre cada corrente podem
ser encontrados em outras correntes.

O evolucionismo

O evolucionismo cultural estudava a cultura como fenómeno próprio da espécie


humana. Esta corrente visava explicar os aspectos comuns a todos os povos e mostrar
as regularidades existentes no seu progresso. De acordo com Colleyn (2005) esta
escola defendia que as sociedades podem ser classificadas segundo o estágio de
desenvolvimento alcançado. Assim, para Morgan (1877) existem três estágios de
evolução para os seres humanos: a selvajaria, a barbárie e a civilização.

Nesse sentido, esta corrente postulava que os povos europeus eram superiores aos
demais, pelo facto de terem progresso tecnológico-cientifico derivado do seu estado
civilizacional. Nessa perspectiva, os outros povos eram considerados primitivos.

A escola evolucionista é criticada por defender que os estágios de desenvolvimento da


cultura advêm de uma dinâmica que deriva da constituição humana e reconhece a
invenção como responsável pelas transformações em oposição à acção histórica.

Outra crítica ao evolucionismo deveu-se à falta de rigor no emprego do método


comparativo. Este método não usou de forma crítica a informação utilizada (informação
bíblica, mitologia grega, fontes históricas, etc) e comparava povos de forma linear, isto
é, a ausência de uma característica num povo para esta corrente significava
inferioridade.

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Lewis Morgan e Durkein são alguns dos percursores desta escola, embora nem todos
tivessem exactamente as mesmas ideias.

O Difusionismo

É também conhecido como historicismo. Engloba três tendências da antropologia


cultural: a alemã, a americana e a inglesa. Esta corrente de pensamento é considerada
crítica, por reagir ao evolucionismo.
Baseia-se na história para explicar as semelhanças existentes entre culturas
particulares. Defende a compreensão das diferenças humanas, a partir de aspectos
culturais e não da raça. Dá relevo ao fenómeno da difusão e do contacto entre povos. É
uma corrente que se preocupou em aplicar os métodos da antropologia cultural mais
rigorosos, tendo-se baseado em pesquisas de campo.

O período do difusionismo é um período de etnografia por excelência, por se ter


dedicado à recolha de dados, para posteriormente elaborar a teoria.
Baseou as suas descrições na linguística e na observação participante e tinha como
foco de análise culturas particulares, não a cultura como um objecto universal, o que
permitiu obter uma maior segurança na informação trabalhada.

O funcionalismo

Os seguidores do funcionalismo tentam explicar o funcionamento de uma cultura num


determinado momento. Os pensadores desta corrente acreditam ser possível estudar a
cultura de um povo, sem estudar a sua história. Esta corrente também apoia as suas
teorias na pesquisa de campo.
Reforça o difusionismo. Os seus fundadores são: Bronislaw Malianowsky, Bowman,
Radcliffe-Brown (chamados africanistas). Para estes pensadores, o importante é que se
estude as funções estruturais, sociais, económicas, culturais e de parentesco, para
perceber como é que funcionam. Para eles, não existem povos atrasados, nem
evoluídos, pois cada povo tem a sua maneira de estar na sociedade.

O estruturalismo

O autor mais representativo desta corrente é Lévi-Strauss. É criticado por não levar em
linha de conta questões históricas, no estudo das culturas e por estudar as culturas
numa perspectiva determinística, em que o indivíduo não é visto como uma entidade
individual, mas colectiva
Para ele, o mais importante é estudar-se os símbolos, uma vez que as funções
estruturais da sociedade são iguais (os homens nascem de um mesmo átomo). Este
pensador questiona se existem povos mais evoluídos do que outros, uma vez que os
seres humanos nascem todos a partir de uma mesma estrutura.

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Actividade 14

1. Os africanos eram considerados “primitivos”, “bárbaros” e “selvagens”, por isso


precisavam de ser colonizados. Concorda com essa informação? Sustente a sua
resposta usando as correntes antropológicas que acabou de aprender.

Síntese

Para a escola evolucionista, a cultura dos povos é avaliada tendo em conta o


progresso técnico-científico. Esta corrente influenciou os movimentos de colonização,
por basear-se na premissa de que todos os povos com um nível de desenvolvimento
diferente do europeu são inferiores. Nesta óptica, os africanos foram considerados
“primitivos”, “bárbaros” e selvagens” e, por isso, tinham que ser colonizados, para serem
civilizados.

Há várias críticas a esta escola, por ela defender que os estágios de desenvolvimento
dos povos advêm da constituição humana e pelo facto de os seus percursores não
terem sido rigorosos no emprego do método comparativista.

O Difusionismo

Reage ao evolucionismo, explicando as semelhanças e disemelhanças entre as


culturas, a partir da história e da difusão feita a partir do intercâmbio entre povos.
O método de pesquisa desta corrente é considerado dos mais eficazes, por basear-se
na etnografia (pesquisa de terreno), que permite uma informação detalhada sobre os
factos encontrados nas sociedades estudadas.

O Funcionalismo

Esta corrente também apoia as suas teorias na pesquisa de campo e reforça o


difusionismo. Os seguidores do funcionalismo advogam que cada povo tem a sua
maneira de estar na sociedade e que, para o conhecer, é importante estudar as funções
estruturais, sociais, económicas, culturais e de parentesco, para perceber como é que
funcionam.

O Estruturalismo

Para Levivi-Strauss, autor mais representativo desta corrente, os seres humanos são
iguais, porque nascem a partir do mesmo átomo. Este autor não compara as culturas, a
parir de uma perspectiva histórica, mas, sim, a partir dos significados partilhados pelas
culturas.

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UNIDADE TEMÁTICA V
A função social dos mitos e ritos de Moçambique

Objectivos
No final desta unidade, você deverá ser capaz de:

• Discutir sobre a importância da preservação de mitos e ritos.

Lição Nº. 13

A FUNÇÃO SOCIAL DOS MITOS E RITOS EM MOÇAMBIQUE

Anote:

Para aprofundar os conhecimentos discutidos nesta lição, você precisará de ler:


HONWANA, Alcinda. Espíritos Vivos, Tradições Modernas – Possessão de Espíritos e
Reintegração Social Pós-Guerra No Sul de Moçambique. 2002.

No final desta lição, você será capaz de:


- reflectir sobre a importância da preservação dos valores culturais de um povo.

Sabia que a constituição da identidade moçambicana está marcada por uma


interdependência entre seres humanos e espíritos? Claro que sabia! As obras literárias
moçambicanas abordam muito essa questão, embora sob o ponto de vista ficcional.
Além disso, é comum, nas famílias ou na nossa sociedade ouvirmos dizer que
determinado assunto não correu bem por falta da bênção de antepassados, não é?

Actividade 15

1. Vá à Internet ou a um dicionário de vocábulos de língua portuguesa. Procure


informar-se sobre o que são ritos e mitos.

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Saiba ainda:
O contacto com o colonialismo em África abafou, de certa forma, as manifestações
culturais moçambicanas, como por exemplo o uso das línguas nacionais, dos rituais
tradicionais para convívio com antepassados ou para pedir sucesso na sementeira ou
em algum ritual familiar.

No Tempo colonial

Aquando da colonização de Moçambique, os portugueses, ao tomarem conhecimento


que os nativos tinham o seu cosmos circunscrito a rituais e crenças que os ligavam aos
seus antepassados, tudo fizeram para que esses actos fossem banidos.
Os colonialistas contavam com o apoio de régulos (chefes tribais africanos nomeados)
para a implementação da sua política colonial, nomeadamente, no caso do sul de
Moçambique, para a provisão de serviços portuários e ferroviários e o fornecimento de
mão-de-obra barata para os países da região e o desenvolvimento de uma agricultura
virada para exploração do algodão e do açúcar, entre outros produtos, usando mão-de-
obra barata.
Estes régulos, para além do apoio que davam aos portugueses na sua estratégia
económica, foram também quem os apoiou na repressão de valores culturais
tradicionais.
Os valores tradicionais africanos eram considerados “retrógrados” e “incivilizados” e, por
isso, na óptica do colonizador tinham de ser banidos, para que se introduzissem os
valores do cristianismo. Nesta sequência, práticas como a possessão dos espíritos
(adivinhação, exorcismo e cura espiritual), a feitiçaria e rituais com batuques, danças,
canções e rezas dirigidas aos antepassados foram reprimidos.
O Moçambicano que fosse encontrado a realizar tais práticas era punido com penas de
prisão, enviado para trabalhos forçados - xibalo (construção de estradas e pontes, ou
plantações), deportado para outras províncias ultramarinas, para trabalhar nas
plantações de cacau dos portugueses.
Vários dos rituais praticados pelos nativos eram dedicados à cura das pessoas, à
veneração de seus antepassados, como forma de pedir protecção contra os perigos da
vida ou exorcizar o mal, pedindo chuva e fertilidade para a terra.

Para conseguirem o apoio dos régulos, os portugueses escolhiam-nos numa região e


enviavam-nos para lugares afastados das suas povoações, onde eles iam substituir os
chefes tribais. Os colonialistas destruíram o poder tradicional existente e, nomeando os
régulos, tinham quem os apoiasse na montagem da sua estratégia, junto da população
nativa.

Alguns régulos, cientes da necessidade de a população continuar com as práticas


culturais, acabaram por autorizar a realização de rituais para venerar os espíritos dos
antepassados, assim como a prática de adivinhação, cura pelos espíritos e rituais para
a chuva, excepto a feitiçaria e o curandeirismo.

Essa autorização era feita como forma de estabelecer uma ligação entre si e os chefes
da população e também para manter a sua autoridade, a partir da protecção dos
espíritos. No entanto, os régulos a quem as autoridades coloniais reconhecessem
pactos desse tipo também eram punidos.

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Apesar da repressão, as práticas foram sempre mantidas pela população, dada a sua
importância para a manutenção do equilíbrio social. Até porque os antepassados
orientavam os régulos na governação do território e na sua relação com os
portugueses.

Os principais rituais por eles praticados eram o mhamba que se destinava a kuphahla
(venerar) os antepassados; os rituais da chuva (mbelele), destinados a promover a
fertilidade da terra e a boa produção agrícola; os rituais do Wukanyi, que se realizavam
para evitar maus comportamentos e conflitos no período do wukanyi.

A determinada altura, os portugueses começaram a aceitar os rituais, por terem


reparado que promoviam a paz e o bem-estar entre as pessoas. Por vezes, quando os
seus projectos estavam em risco, as autoridades coloniais aceitavam a realização dos
rituais, visando apaziguar os espíritos dos ancestrais.
Um exemplo disso foi no caso da construção da linha férrea entre o porto de Lourenço
Marques e a fronteira Rodesiana, onde se verificou que, num troço em Marracuene,
todas as manhãs, no mesmo sítio, os trabalhadores verificavam que o trabalho feito na
véspera tinha sido desmanchado e que as pedras e os barrotes se encontravam
empilhados. Era como se, durante a noite, alguém desfizesse o trabalho.

O que se dizia era que a linha férrea não passaria daquele local, porque havia, por
baixo, um cemitério dos donos da terra e seria necessário realizar-se uma cerimónia
para pedir autorização. Não havendo outra solução, os portugueses viram-se obrigados
a autorizar que se fizesse o ritual, até forneceram comida e bebida para a cerimónia.

Políticas culturais pós-coloniais: A FRELIMO

Após a independência nacional, a FRELIMO optou por uma orientação marxista-


leninista que favoreceu uma visão materialista-dialética das realidades sociais e
culturais que se propunha eliminar as chamadas crenças “supersticiosas” e
“obscurantistas” da sociedade tradicional.
Rejeitou:
- A autoridade tradicional, devido à sua ligação com o colonialismo;
- As crenças e práticas tradicionais ligadas à adoração dos antepassados, à
posse dos espíritos, rotulando-as de obscurantistas e supersticiosas;
- A prática dos ritos de iniciação, do lobolo e reprimiu a poligamia, que não
estava de acordo com a emancipação da mulher.
Esta rejeição desestabilizou o tecido social, dado que a FRELIMO não apresentou uma
alternativa efectiva que substituísse as práticas, o que gerou uma crise moral. Apesar
da repressão, as pessoas continuaram a realizar as chamadas práticas supersticiosas
ou obscurantistas, à noite (tanto nas zonas rurais, como nas urbanas, até mesmo os
membros da FRELIMO realizavam essas práticas).
Apenas no final dos anos 80 e início dos anos 90 é que a FRELIMO mostrou-se
tolerante (ainda que não o tenha anunciado publicamente) em relação à liberdade
religiosa, às estruturas tradicionais do poder e às crenças. Esta atitude visava a
reconquista do apoio do campesinato e o impedimento dos avanços militares da
RENAMO (que usava uma ideologia tradicionalista) em campo de batalha. Em 1992
encorajou a criação da AMETRAMO- Associação Moçambicana de Médicos

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Tradicionais de Moçambique e reconsiderou a sua atitude para com a autoridade


política do poder tradicional.

Alguns exemplos de rituais pós-guerra civil

Os rituais jogaram um papel importante como estratégia para se restaurar a paz, a


harmonia e o equilíbrio social após a guerra civil em Moçambique.
A guerra civil resultou na destruição de diversas infra-estruturas nacionais, para além de
mais de 1 milhão de mortos, milhões de refugiados e deslocados, inválidos, viúvas e
órfãos, milhares de crianças soldado e de pessoas sem-abrigo.
Para restabelecer o equilíbrio social, os rituais foram uma estratégia importante.
Mais do que apoio logístico para regressar aos locais de origem, as populações
precisavam de ser reintegradas socialmente, e, para tal, era importante ter-se em conta
o seu estado emocional e psicológico, dados os traumas causados pela guerra.
Estas acreditavam que os espíritos dos soldados e dos perecidos na guerra poderiam
assombrar as suas vidas, uma vez que tinham morrido amargurados.
Crendo que os espíritos têm a capacidade de fazer mal, de fazer adoecer ou, até, de
causar a morte de todos aqueles que mataram ou maltrataram em vida, entendiam ser
necessário fazer rituais para acalmar e apaziguar os espíritos (exorcizar os espíritos).

Conceito de purificação social:

Crê-se que indivíduos que tenham estado fora dos seus locais de origem possam ter
estado expostos à contaminação social – pelo facto de terem sido vítimas de magia ou
feitiçaria ou de terem apanhado espíritos desconhecidos, ou vítimas de doenças num
ambiente desconhecido.
Este grupo de pessoas é representado por aqueles que regressam das indústrias
mineiras sul-africanas ou de soldados ou refugiados do pós guerra que, por terem
convivido em algum ambiente de morte, poderão ser o veículo de assombração das
suas famílias, no lugar de regresso. Há, então, nas comunidades, um ritual de
reajustamento destes indivíduos ao seu meio social habitual. O processo de limpeza é
fundamental para o reajustamento dessas pessoas.
A realização de rituais de veneração e purificação possibilita ao indivíduo recriar uma
identidade perdida ou estabelecer uma nova.

Deste modo, cabe aos tinyanga o papel de realizar os seguintes rituais de purificação

Rituais para crianças regressadas da guerra:

Leva-se a criança para um lugar, longe de casa. Constrói-se uma palhota coberta de
capim seco. A criança é vestida com as roupas trazidas do campo de guerra. Já dentro

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da palhota é despida e lança-se fogo a palhota, e um familiar adulto ajuda-a a sair da


palhota, antes do fogo se alastrar. A palhota e a roupa têm de ser queimadas, até
ficarem em cinzas, como símbolo de se queimar os males da guerra.

Rituais para os soldados

Conta-se que, em guerras anteriores, os soldados, antes de irem para a guerra, tinham
de ser submetidos a rituais, para se protegerem dos males da guerra e para se
tornarem combatentes fortes e destemidos. Os soldados eram tratados com vacinas de
ervas, para que se tornassem corajosos e para se protegerem contra os perigos da
guerra. Fora essas vacinas, há nyangas que davam aos seus protegidos um talismã,
para se andar com ele preso à cintura.
O mesmo acontecia quando regressassem da guerra, fazendo-se um ritual de
purificação, para os preparar ao retorno do contacto social. A limpeza depois do
regresso da guerra servia para evitar que o soldado tenha mpfukwa (fosse assombrado
pelo sofrimento ou males que viu na guerra).
O ritual após o regresso é semelhante ao que era feito aos regressados da guerra. Fora
isso, o soldado era levado para a palhota dos espíritos e apresentado aos seus
antepassados para que o recebessem de volta a casa.
Estes rituais têm a função de libertar o indivíduo da poluição e restaurar a sua
identidade como membro do grupo. São feitos para estabelecer uma ruptura com o
passado e integrar o indivíduo no grupo social. Sem a realização destes rituais, o
indivíduo é considerado impuro e propenso a contaminar o resto da sociedade. Ele, sem
a realização deste ritual, é considerado uma ameaça ao colectivo.

Actividade 16

1. Explique porque é que os mitos e ritos cumprem a função social de reconstituição da


identidade moçambicana.

2. Os valores tradicionais africanos eram considerados “retrógrados” e “incivilizados”,


na óptica do colonizador e, por isso, tinham de ser banidos. Explica porque é que,
no âmbito da implantação da sua política, os colonialistas tiveram que recuar nesse
posicionamento, naquilo que concerne à cultura moçambicana.

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Síntese

A identidade moçambicana está marcada pela convivência entre vivos e mortos. Os


mortos são trazidos ao convívio com os vivos, para darem bênção e apaziguarem os
conflitos sociais e para pedir chuva ou boa colheita

Na época colonial, em Moçambique houve tentativa de se banir os rituais tradicionais,


para serem introduzidos os valores da cultura cristã. Os régulos, chefes tradicionais em
Moçambique, foram usados para contribuírem no impedimento da manifestação de
rituais bantu.
O banimento desses rituais não foi pacífico, visto que alguns dos empreendimentos
económicos dos colonialistas não avançavam, caso não se fizessem alguns rituais
bantu, por isso é que se tem dito que foi necessário recuar um pouco nessa política.
Mesmo assim, o moçambicano que fosse encontrado a praticar esses rituais era punido.
No entanto, alguns régulos e algumas populações mantiveram os rituais, por uma
questão de estabelecimento de equilíbrio social, nas suas sociedades.

Esse “banimento” marcou bastante a identidade dos moçambicanos, porque ainda hoje,
altura em que já são permitidas essas práticas (na verdade, desde o início dos anos 90
e finais de 80), elas são realizadas de forma discreta, salvo um e outro caso.

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UNIDADE TEMÁTICA VI
A Construção da nação em África

Objectivos

No final desta unidade, você deverá ser capaz de:


• Analisar os conceitos operatórios para a discutir territorialidade.

Lição Nº.14

Territorialidade de Moçambique – Fronteiras Geográficas e “Imaginárias” –


A construção da nação em África

Anote:

Para melhor aprofundar sobre o tema em discussão nesta lição Leia:


GRAÇA, Pedro. A Construção da Nação em África. 2005, Cap. I e III; FIRMINO,
Gregório. A Questão Linguística Na África Pós-Colonial – O Caso do Português e das
Línguas Autóctones em Moçambique. 2005 e MAGODE, José. . Etnicidades.
Nacionalismo e o Estado – Transição Inacabada. 1996.

No final desta lição, você deverá ser capaz de:

- Definir o conceito de nação;


- Explicar por que razão Moçambique é e não é uma nação.

Actividade 17

1. Pode-se considerar Moçambique uma nação? Porquê e em que medida?

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Saiba que:

De acordo com Graça (2005), o conceito Nação é plurissignificativo e,


etimologicamente, teve origem no latim natione, do verbo nasci (nascer). É usado para
se referir a pessoas nascidas num mesmo lugar.
O autor refere ainda que, na Bíblia, foi usado como sinónimo de países, povos e
línguas. No Séc. XVIII, com a Revolução Francesa, o conceito passou a designar um
conjunto de indivíduos reconhecidos como tendo em comum a pertença à mesma
realidade geo-histórica e integrava uma componente política, que passou a fundamentar
todos os movimentos de independência. No Séc. XIX, foi utilizado por Hegel como
sinónimo de Povo, dando a entender que Nação é um povo independente em relação
ao exterior – um povo detentor de um Estado.

Para ele, do ponto de vista científico, há tentativas de se fixar e de se universalizar a


definição do conceito, o que originou o surgimento de duas correntes, nomeadamente:
- A objectivista (linha de Fichte), que sublinha a geografia, a raça, a língua e a
cultura;
- A subjectivista (linha de Renan) que valoriza a vontade colectiva face a um
presente e a um destino comum.

Há, portanto, até aos nossos dias, uma certa ambiguidade no que o conceito nação
pretende designar. Contudo, a nação é um valor supremo de coesão dos Estados
contemporâneos, quer sejam homogéneos, quer sejam heterogéneos, do ponto de vista
étnico, linguístico e cultural. É possível, ainda, encontrarmos o conceito a significar
povo, pátria e etnia, sendo que, umas vezes, representam a realidade de nação e
outras não.

Moçambique é um país multicultural e multilinguístico, e falar de fronteiras imaginárias


pressupõe lembrar que a cobertura linguística de Moçambique vai para além das
fronteiras físicas, geográficas ou políticas.

De acordo com Magode (1996), as unidades sociais demarcadas, em termos territoriais


e de unidades sociopolíticas e administrativas, foram feitas obedecendo a questões
políticas, não tendo em conta as questões socioculturais ou étnicas que caracterizam
Moçambique, e esta é uma lacuna histórica

As fronteiras “imaginárias” mostram a homogeneidade de culturas entre Moçambique e


os países com que faz fronteira. A título de exemplo, encontramos demarcações não
estanques, naquilo que concerne a espaços de delimitação de uma comunidade
linguística. Segundo Lopes (2004):
1. Em Cabo Delgado fala-se Kiswahili e Shimakonde, línguas também faladas na
Tanzania.
2. No Niassa: Cyao e Cinyanja, línguas faladas, também, na Tanzânia e no Malawi.
3. Em Tete: Cinyanja, falado no Malawi, Tanzania e Zâmbia.
4. Em Sofala, parte de Zambézia, e parte de Tete, fala-se Cisena, língua também
falada na Zambézia e no Malawi.
5. Na Beira e em Manica fala-se o Cishona, que também é falado no Zimbabwe.

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6. Em Gaza fala-se o Xichangane que também é falado na África do Sul.


7. O Swazi é uma língua da Swazilândia que também é falada numa região de
Maputo, o mesmo acontecendo, também, com o Zulu, falado na África do Sul.

Como se pode depreender, a fronteira física demarcada entre os espaços mencionados,


em nada obedeceu aos intercâmbios socioculturais. A questão coloca-se sobre o
sentimento de pertença de uma comunidade específica e da posse de uma cidadania. A
título de exemplo, os macondes de Moçambique bem sabem que são moçambicanos e
os da margem esquerda do rio Rovuma que são Tanzanianos. Mas parece óbvio que
muitas vezes, e não só para os macondes, o sentimento de inclusão na respectiva etnia
é não só intimamente assumido por força da identidade cultural, como também
representa uma realidade prevalecente.

Assim, a Moçambicanidade pode ser entendida como um sentimento nacional clássico,


assumida unicamente pelos moçambicanos, qualquer que seja o seu lugar de
nascimento e domicílio, no país: pode, por outro lado, representar os sentimentos
nacionais em que as diversas maneiras de ser e de estar na vida social não sejam
consideradas como um critério com alguma influência.
Não será uma atitude realista a negação da moçambicanidade, no entanto, ela não
traduz ainda a existência de uma nação moçambicana e, muito menos, de um Estado-
Nação. Tal realidade não pode, nem seria conveniente subordinar a sua existência à
fundação de um Estado-Nação. Partindo-se da afirmação de elementos da pluralidade
étnica, a moçambicanidade terá de ser o resultado de uma aquisição sociocultural.

A etnia Machope, de acordo com Magode (1996), é das que, no território nacional,
existe num espaço delimitado, sem alargamento para regiões de fronteira entre
Moçambique e outros países. O resto do país é constituído por várias bolsas étnicas de
confluências culturais moçambicanas ou não.
Cahen (sociólogo Francês), citado por Magode (1996), refere que o nacionalismo,
enquanto ideologia de estruturação de Estado e de integração social, não simboliza as
realidades sócio-culturais africanas. Para ele, os processos políticos africanos sempre
se afirmaram numa espécie de tensão entre o ideal de construção de nação nos
moldes europeus e os grupos étnicos, enquanto unidades societais distintas.
Para este autor, o futuro de países sem nação, como é o caso de Moçambique, poderia
ser pensado fora do quadro de construção/imposição do Estado-Nação, adoptando o
sistema de relações políticas fundado no reconhecimento de várias jurisdições a serem
reconhecidas por questões sociais. Assim, o seu desenvolvimento basear-se-ia no
quadro de um Estado unitário, não nacional e democrático.
Magode (1996), afirma que, provavelmente por esse facto, o nacionalismo, além de
ideologia de Estado ou das elites no poder, degenera em etnicidade10, tornando-se,
assim, em força de criação de marginalidade social, em termos étnicos: facto que seria
suprido com a legitimação de uma lei geral do Estado, para os grupos socioculturais.
Aquando da estruturação do estado colonial (1890-1920), a territorialização e a divisão
político administrativa observadas visavam institucionalizar os particularismos
socioculturais e políticos. Deste modo, o Estado pôde desorganizar a reconstituição das
unidades políticas africanas e fragilizar a resistência contra o poder colonial. Por outro

10
A etnicidade é um conceito que envolve muitas dimensões, podendo ser um fenómeno de identidade
étnica, no sentido em que define os limites espaciais e socioculturais de uma comunidade. Neste caso, a
etnicidade é considerada um critério de classificação e de ordenamento de formações socioculturais em
termos de identidades sociais.

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

lado, o processo de integração limitada dos colonizados na base do assimilacionismo


era, ao mesmo tempo, uma tentativa de subversão às etnicidades.

Em sociedades multi-étnicas, como é Moçambique, o Estado unitário, apesar de ser


necessário, representa uma realidade muito controversa. É-o, particularmente,
enquanto mecanismo regulador da praxis social, em que interagem, sob determinadas
relações políticas, diferentes grupos socioculturais, de que podem resultar situações de
identidade para o estado ou de desintegração política.

Magode e Khan (1996) retomam este debate revelando que o modelo de Estado-Nação
assumido pelos países africanos é um processo transcendental à sua história, às suas
necessidades. Trata-se de uma teoria de Estado que invalida a sua própria experiência
de governo (cultura política) anterior à colonização.

Para estes autores, a formação do Estado pós-colonial, do nacionalismo reservou para


si a função de instrumento de integração social e étnica, de grupos sociais
heterogéneos. Chamam, porém, à atenção para o facto de que os processos
integracionistas sempre se efectuam sob determinadas relações sociais.
Nesta base, com referência a formações sociais plurais do ponto de vista cultural,
apresentam subsídios para a percepção de como a etnicidade modifica, incorpora ou se
substitui ao conflito de classes, enquanto paradigma de explicação de contribuições e
mudanças sociais.
Para um melhor entendimento sobre os conceitos nação/etnia, vale a pena ler Firmino
(2005) que afirma que o tipo ideal e fictício de Nação-Estado é definido como
”comunidade homogénea de pessoas que partilham a mesma cultura e a mesma língua,
que são governados por alguns dos seus membros, que servem os seu interesses”
(Navari, 1981: 13).

Ainda de acordo com esse autor, a emergência das Nações-Estado tem sido associada
a transformações políticas, económicas e culturais que levaram ao surgimento de
formas de capitalismo na Europa. O Nacionalismo constrói-se através de uma
consciência popular de nação, i.e, consciência de um povo que se sente como uma
comunidade ligada por laços históricos, culturais e de uma ancestralidade comum.

Existe, também, uma noção voluntarista de nação, que consiste em os membros de


uma determinada comunidade reconhecerem os direitos e deveres uns dos outros, em
virtude da sua condição de membros de uma determinada Nação (Geller – 1983, citado
por Firmino (2005).
Kellas (1991:3), citado por Firmino (2005) defende a existência de diferentes tipos de
nação:
1. “Nação étnica” – composta por um grupo étnico.
2. Nação social – nações compostas por vários grupos étnicos.
3. Nação oficial – nacionalismo de Estado ou patriotismo
4. Nação-Estado: usado em oposição aos “estados multinacionais”, como o Reino
Unido, a Suíça, a Bélgica e o Canadá. O termo Nação-Estado também é usado
para designar os países em que o Estado é a base para a criação de sentimentos
nacionalistas, como acontece, segundo Hughes (1981:122), em muitos países
africanos.

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As noções de grupo étnico e etnocentrismo são comparáveis às de nação e


nacionalismo, mas o “grupo-étnico”, seja em escala menor que a de nação
(etnocentrismo), está enquadrado num nacionalismo que tem uma dimensão política.

Não é possível falar-se de uma única identidade Moçambicana. Tantas são as línguas,
como as culturas e, por consequência várias identidades. Várias são as identidades
dentro do território Moçambicano, como em regiões fronteiriças do país. Há em
Moçambique, tal como vimos acima “um sistema heterogéneo constituído por
subsistemas homogéneos” e, cada um desses subgrupos projecta uma noção
etnocêntrica que os diferencia dos outros e também do propalado conceito de Nação.
(Graça, 2005)

A acrescentar este pensamento, Magode (1996) defende que o Estado unitário em


África é ainda uma questão muito controversa. Esta reflexão pretende ser um contributo
para a análise da problemática de Estado unitário e da questão nacional em
Moçambique, definindo-a como uma praxis social em que interagem, sob determinadas
relações políticas, diferentes grupos socioculturais de que podem resultar situações de
identidade ou de desintegração sociopolítica.

Síntese

Podemos resumir o que foi acima referido, usando o pensamento de Graça (2005:23),
que defende que o conceito nação é polissémico; no entanto, do ponto de vista
operacional, pode-se afirmar que a Nação é um sistema de relações sociais,
caracterizado por factores subjectivos e objectivos, que estruturam e dinamizam uma
situação de homogeneidade, ainda que parcial, assente na identidade cultural e na
consciência nacional, i.e, na síntese de elementos culturais que conferem identidade e
unidade a um conjunto de indivíduos, grupos e instituições, diferenciando-o de outros
que estão para além das fronteiras do Estado, e na noção de que os indivíduos têm de
pertencer a esse mesmo Estado, compreendendo o estatuto e o papel deste no sistema
das relações internacionais.
Assim, existem duas correntes a partir das quais se pode definir o conceito nação: a
subjectiva (que valorizam a vontade colectiva de fazer face a um objectivo comum) e a
objectiva, que leva em linha de conta a raça, a geografia, a língua e a cultura.

Não será uma atitude realista a negação da moçambicanidade; no entanto, ela não
traduz, ainda, a existência de uma nação moçambicana e, muito menos, de um Estado-
Nação. Tal realidade não pode, nem seria conveniente, subordinar a sua existência à
fundação de um Estado-Nação. Partindo-se da afirmação de elementos da pluralidade
étnica, a moçambicanidade terá de ser o resultado de uma aquisição sociocultural.

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UNIDADE TEMÁTICA VII


Modelo da análise de cultura

Objectivos

No final desta unidade, você deverá ser capaz de:


• Analisar fenómenos culturais usando um modelo científico.

Lição Nº. 15

MODELO DE ANÁLISE DE CULTURA GEERTZ

Pensamento: a antropologia interpretativa tem alguma função: re-


ensinar esta verdade fugaz. Geertz (1989)

No final desta lição, deverá ser capaz de:

- Interpretar padrões, fenómenos e variações culturais, à luz da teoria interpretativa de


Geertz;
- Conhecer e usar o modelo de Geertz.

Nota:
Esta aula está dividida em duas partes. A primeira é teórica, onde introduzimos a teoria
sobre o modelo e a segunda é prática, onde você deverá verificar e demarcar no texto,
alguns momentos entendidos como aplicação do modelo teórico de Geertz.

Saiba:
Na obra A interpretação das culturas, Geertz (1989) enuncia que a cultura deve ser
vista como um texto passível de leitura e interpretação, em busca do significado
expresso na lógica informal da vida real.
Sob esta perspectiva, o papel do antropólogo/investigador é o de um intérprete do
discurso social, traduzindo os significados que são cultural e socialmente construídos
pelos sujeitos investigados. Assim, para o autor, esta interpretação é operada a partir da
interpretação que os próprios sujeitos fazem da sua cultura, isto é, existe uma
intersubjectividade, que se dá a partir da intersecção de dois universos, o do
pesquisador e o do pesquisado.
Geertz (op. cit) visualiza a cultura como um conjunto de mecanismos de controlo, como
planos, receitas, regras, instruções, que ordenam o comportamento do homem,

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tornando-o dependente de tais mecanismos e sem os quais este comportamento seria


fatalmente ingovernável.
O autor defende, ainda, um conceito de cultura, essencialmente semiótico, baseado na
sociologia clássica de Max Weber, que entende que o homem só é capaz de viver num
mundo que tenha significado para ele. Assim, traduz a cultura como sendo a produção
desse sentido e análise.
Na perspectiva de Gertz, para interpretar a cultura pode-se usar o Método Etnográfico,
que consiste em:
1. Observar as diferentes estruturas de símbolos e significados, ritos, costumes, rituais
ou ideias que poderão ser complexas, mas que precisam de ser inventariadas, para
serem apresentadas.
2. Descrever e resgatar o acontecimento passado, para possibilitar o seu estudo, uma
descrição minuciosa dos eventos (ainda que questionáveis). A leitura do texto
etnográfico deve propiciar no leitor uma imagem fotográfica daquilo que é descrito e do
que os actores vivenciam (deve-se fazer uma dissecação e mostrar passo a passo o
ambiente que se vive).
3. Traduzir (deve reunir dois tipos de descrições – observações detalhadas e
caracterizações sinópticas). Devem também ser estabelecidas relações de semelhança
entre o significado encontrado e o contexto que se vive, para que a cultura faça sentido.
A tradução pode ser feita a partir de uma explicação.
4. Explicar: o investigador, nesta etapa, explica o que é que os símbolos, o contexto ou
o facto descrito querem transmitir, a partir daquilo que foi observado e mencionado
pelos nativos; quer dizer que não deve haver subjectividade do pesquisador. Explicar é
elucidar e, no caso deste modelo, a explicação deve ser feita a partir do que foi visto e
mencionado na comunidade estudada. (Neste caso, é muito mais usada a perspectiva
da comunidade estudada)
5. Interpretar: Uso do conhecimento daquilo que constitui a norma ou significados e
valores partilhados (consenso), entre o que foi visto e dito pelos nativos, para explicar a
importância e os contornos que o contexto pode tomar e como é que ele poderá
(provavelmente) ser entendido. Interpretar é também explicar, mas na interpretação
deve-se ter em conta a comparação do fenómeno estudado com outros contextos e
outros conhecimentos sobre o assunto. Neste caso, há subjectividade do pesquisador.
(É mais usada a perspectiva do pesquisador, a partir do seu conhecimento anterior,
coadjuvado pelo conhecimento colhido no terreno).
Para Geertz, a Antropologia sempre teve muito a noção de que aquilo que se vê
depende do lugar em que foi visto, e das outras coisas que foram vistas ao mesmo
tempo. No entanto, é importante recordar que a cultura é algo consensual e não
ambíguo, por isso devem-se evitar interpretações tendenciosas.
6.Sistematizar: constitui a síntese do fenómeno estudado.

A seguir, apresentaremos um texto que retrata a realidade Moçambicana. Não sabemos


se, ao escreve-lo, o autor tinha em mente o Modelo de Geertz, mas ele poderá servir de
exemplo de um texto escrito segundo uma perspectiva etnográfica. Embora sirva de
exemplo para esta lição, pela qualidade de pormenores que o texto nos traz e por
vermos que foi escrito a partir de uma observação em campo, gostávamos que
reparasse que há, no texto, um pormenor que poderia ter sido evitado pelo autor, o

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

facto de, no 13º parágrafo (veja a parte sublinhada no texto abaixo), emitir um juízo de
valor ao referir: “este método, por ser potencialmente compulsivo e retrógrado” (veja o
texto).
O termo retrógrado é valorativo e deve ser evitado quando se compararem ou se
estudam culturas, pois elas têm importância e significado para as comunidades que as
praticam. No caso de se tratar de um ritual cultural, em que põe-se em causa a
dignidade e os valores fundamentais dos seres humanos, o pesquisador, nas suas
recomendações, pode recomendar que o ritual seja realizado de forma diferente, por
exemplo:
Tratando-se do ritual da circuncisão, o pesquisador pode recomendar o uso de lâminas
individuais para cada circuncisado, uma vez que a prática tem sido fazer-se o ritual de
forma colectiva, usando a mesma lâmina. Este facto atenta contra a saúde pública. Ou
então, tratando-se de uma prática como a excisão do clítoris, o pesquisador poderá
sugerir o seu banimento, alegando o facto de essa prática atentar contra a vida e os
valores fundamentais da pessoa.

Actividade 19

Actividade – Segunda parte da lição


1. Leia o texto e identifique, nos seus períodos ou parágrafos, os passos
preconizados pelo modelo de análise de Geertz. Saiba que eles não são
elementos estanques, ou seja, é possível encontrarmos uma explicação, feita
através de uma descrição.

Nota:
No final de alguns parágrafos, irá encontrar entre parêntesis a indicação de alguns
critérios advogados por Geertz. São para servir de exemplo ao trabalho que
pretendemos que faça, para apreensão do modelo estudado.

Texto

MONTE BINGA – Casamentos tradicionais no Chinde (observação)

O distrito do Chinde fica situado na zona sul da província da Zambézia, limitando-se, a


norte, pelo distrito de Inhassunge, a oeste pelo distrito de Mopeia, a este, pelo Oceano
Índico e a sul, pelo distrito de Marromeu, em Sofala, através do rio Zambeze. A sua
sede distrital, uma ilha encravada no delta do Zambeze, dista cerca de 70 quilómetros a
sul de Quelimane, a capital provincial da Zambézia. (descrição)

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Administrativamente, o distrito está dividido em três postos administrativos (Chinde,


Micaúne e Luabo), compostos pelas localidades de: Vila de Chinde, Matilde,
Mucuandaia e Pambane, pertencentes ao Posto Administrativo-Sede, Luabo, Mangige,
Nzama, Rovuma, Samora Machel e 25 de Setembro, ao Posto administrativo de Luabo
e Arijuane, Magaza, Micaúne, Mitange e Nhamatamanga, ao Posto Administrativo de
Micaúne. (descrição)
A língua predominante é “maindo”, que é falada pela maioria da população do distrito,
calculada em mais de 130 mil habitantes e que cobre os postos administrativos de
Micaúne e sede distrital. Os habitantes do Posto Administrativo de Luabo comunicam-
se pela língua nacional cisena. (explicação)
Nas regiões de Sombo e Matilde, a sul da vila-sede do distrito e Maimba, em
Micaúne, a língua maindo começa a perder originalidade, admitindo a ocorrência de
palavras da língua chissena. Essa língua, que resulta da mistura de maindo com
chissena, falada predominantemente a Este de Luabo, chama-se podzo. (explicação)
Na parte nortenha do Posto Administrativo de Micaúne, ou seja as localidades de
Mitange, Arijuane e Magaza, a língua maindo começa igualmente a sofrer alterações,
sobretudo no sotaque, que começa a confundir-se com chicarungo, falada em
Inhassunge e que se assemelha a chuabo, predominante na cidade de Quelimane e
arredores. (explicação)
Diferentemente da chamada “Alta Zambézia”, que compreende os distritos a norte da
cidade de Quelimane falantes da língua lómuè, cujos casamentos são matrilineares,
Chinde e outros distritos da Zambézia situados ao longo do Vale do Zambeze,
perseguem o regime patrilinear, ou seja, o homem é quem manda em casa.
(explicação)
Neste distrito, a iniciativa do casamento pertence ao homem, a quem cabe a
responsabilidade de propor o namoro, embora a mulher tenha pleno direito de sugerir
as melhores modalidades a serem seguidas e os contornos pelos quais devem
decorrer as diferentes etapas das cerimónias matrimoniais. (explicação)
O casamento no distrito do Chinde inicia com o namoro, através do qual o homem
apaixonado propõe a namorada para sua futura esposa. Este encontro, regra geral,
decorre em locais de diversão nocturna, na sua maioria caracterizados por danças
tradicionais, sendo a mais influente “Ibondo”.
Mais tarde, com a presença de aparelhagem musical trazida pelos chamados
“madjonidjoni” ou seja, indivíduos que trabalham na África do Sul, a diversão nocturna
poderia ocorrer nos chamados clubes nocturnos, onde decorriam os bailes localmente
designados chinguere”. (tradução)
Os clubes, também conhecidos por assembleias, eram feitos de material local
precário, mais precisamente folhas de coqueiros e estacas de “micándala” ou outros
paus extraídos em matagais e mangais, abundantes na região costeira do distrito.
Normalmente eram construídos debaixo de árvores frondosas (mangueiras e
cajueiros), para conferir-lhes a necessária escuridão, que era do interesse dos
bailarinos, na sua maioria jovens.
Mais tarde, e apesar da oposição dos jovens, foram usados petromaxes, para iluminar
os referidos locais de diversão nocturna. Nesses convívios, por causa da forma como
as danças eram executadas, normalmente em pares de homens e mulheres, que se
seguravam uns aos outros, ora pelas costas e nádegas, ora pela cintura, a

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

semelhança do que acontece actualmente com as chamadas “passadas”, os


dançarinos poderiam apaixonar-se e, a partir daí, desencadear uma relação amorosa
que poderia culminar em casamento.(descrição)
Porém, nem tudo era uniforme. Alguns pares, mesmo aqueles a quem as danças
pudessem conduzir a inevitável atracção mútua, não chegavam a contrair matrimónio,
terminando, apenas, no amantismo.
Outras das formas não menos usadas de namoro e que resistem aos imperativos das
mudanças que o tempo impõe na mente, hábitos e costumes dos homens, consistem
em os pais escolherem esposas e maridos para seus filhos e filhas. Este método, por
ser potencialmente compulsivo e retrógrado e, obviamente menos apreciado pelos
jovens modernos, tende a desaparecer. Quando muito, o que os pais e familiares em
geral podem fazer para ajudar seus filhos e filhas na escolha de futuros genros ou
noras é identificar a pessoa e, por métodos subtis, propor ao interessado para análise
e aprovação.(interpretação)
Este processo, porem, é de difícil aplicação para as meninas, que não têm a liberdade
de escolher, por iniciativa própria, os futuros esposos. Aliás, qualquer mulher que
assim proceda será recusada e poderá ser acusada de mil e uma coisas, incluindo
feitiçaria, pois não é admitido, por tradição local e, por extensão, a algumas regiões do
país, mulheres proporem o namoro aos homens. (interpretação)
Se tiver iniciado o namoro, o rapaz e a rapariga, normalmente depois de se
conhecerem sexualmente, combinam uma apresentação em casa dos pais da
namorada, como forma de formalizar a intenção (perdoem e redundância). O rapaz,
depois de informar a sua intenção aos seus pais, arranja um padrinho, usualmente
mais velho que ele, conhecido por “sebueni”, para se deslocarem à casa dos pais da
noiva, para a chamada cerimónia de apresentação designada “buhdueia”. (tradução)
Para esta cerimónia, que, geralmente, decorre à noite, entre as 19.00 e as 21.00
horas, o rapaz, acompanhado do seu “sebueni”, leva consigo cinco litros de “sura” -
uma bebida alcoólica extraída a partir da seiva do coqueiro, e dinheiro numa
importância equivalente a 50 meticais, ou escudos, no tempo colonial. (tradução)
A menina tem a obrigação de informar aos pais, por via da mãe, a intenção e o
projecto amoroso em edificação. Nessa altura, a apaixonada aproveita anunciar a
presença dos “hóspedes”, para efeitos de apresentação. Caso os pais consintam,
marca-se a data e o noivo aparece.
À chegada, a recepção da encomenda de “sura” pelos parentes da namorada é um
indicador que evidencia o consentimento dos pais face ao pedido da filha.
Desta feita, convidam-se os hóspedes para entrarem e se sentarem, normalmente
dentro de casa, à luz de candeeiro, já que a energia eléctrica pertence ao passado,
com excepção da sede distrital.
A conversa inicia depois do jantar. Aqui, o pai, em representação da família e na
presença da mãe e irmãos da “moça”, pergunta-lhe se conhece ou não o rapaz ora
presente. Ela, regra geral, responde positivamente, pois a chegada do rapaz a casa
dos futuros sogros tem sido de consenso mútuo dos namorados, sendo raras as vezes
que a donzela pode surpreender o namorado com uma recusa.
Como prova de que tudo correu bem e que o rapaz foi aceite, vai-se buscar a “sura”,
coloca-se nos copos e os familiares da rapariga partilham, após um brinde que
começa com o pai a entornar, ao chão, um pouco da bebida para os espíritos. Nesta
ocasião, mesmo que tal lhe seja oferecido, o noivo deve recusar-se a beber, pois, se o

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Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

fizer, será conotado como um bêbado e acusado de falta de respeito pelos mais
velhos, e isto pode chegar a inviabilizar o projecto matrimonial.

Lá por volta das 21 horas, o rapaz, acompanhado de seu “sebueni”, regressa a casa e
vai dar a conhecer aos pais como decorreu a cerimónia. Uma vez consumado o acto, o
rapaz obriga-se, em razão da nova realidade, a melhorar a sua apresentação e reforçar
a sua seriedade.
Se andava desarranjado e indecente, luta muito pela melhoria da sua imagem e
visibilidade. Multiplica os banhos, compra roupa bonita, perfumes e, normalmente, à
noite e quase todos os dias, desloca-se à casa da namorada, pernoitando lá, naquelas
palhotas que os pais constroem para acomodar meninas crescidas, chamadas “tando”.
Vai depois do jantar, das 19 às 21, dependendo da distância, para a jornada nocturna
de namoro. Chegado à zona, onde normalmente o rapaz deve ter um amigo que, a
qualquer momento o pode acomodar e socorrer de alguma coisa, dirige-se ao referido
“tando”, bate à porta, que lhe é aberta, sem nenhuma resistência.
Se, antes da apresentação, o rapaz aparecia às escondidas aos encontros com a sua
namorada, depois daquela todos os obstáculos terão sido removidos, pelo que o
caminho está aberto. E isto, nalguns casos, que não são raros, tem contribuído para a
depreciação do amor e, consequentemente, para o falhanço do projecto matrimonial.
As meninas cujos pais não tenham ainda construído “tandos” e que por isso estejam a
dormir na casa principal onde igualmente pernoitam os pais, namoram ao relento, regra
geral, debaixo de árvores, sendo a cama o tronco do coqueiro inclinado.
As jornadas de namoro são bastante longas e quase cobrem todo o período nocturno
(das 21 as 4,30 horas). Quando o céu começa a clarear, naquela aurora matinal que
anuncia o nascer do sol, o “casal” larga a casota ou o arvoredo de regresso a casa. A
noite seguinte, idem e assim sucessivamente.
Nos casos em que o local de residência do namorado fica perto da casa da futura
esposa, este, nas noites, coabita com a sua namorada, na sua casa. Porém, se por
qualquer motivo, a namorada atrasar a acordar e regressar a procedência, antes de
amanhecer, poderá perder direito a fazê-lo, acabando por permanecer com o namorado
e por esta via, declarar-se casada.
Se isto acontecer, e porque tal irrita os pais da donzela, o namorado já “marido”, envia
os pais para a casa da “esposa” para pedirem perdão pelo erro do filho ao ter retido a
filha antes de terminarem todas as formalidades para a consumação do casamento.
Nesse tempo, os dois parceiros trocam muitos presentes. Enquanto o rapaz compra
capulanas, blusas, atavios, cosméticos, perfumes, peixe, bebidas e outras coisas para
oferecer à noiva, aos futuros sogros e cunhados, ela oferece arroz torrado (“matango”)
ou castanha também torrada, que ela leva pessoalmente à casa do namorado,
transportando a encomenda em cestos de “micomba”, embrulhados em lenços.
Essa encomenda, geralmente, é entregue ao destinatário à tarde. Para o fazer, ela
chega à casa do namorado devidamente aprumada e esta presença reveste-se de
duplo significado. Por um lado, demonstra amor e paixão pelo namorado e, por outro,
confirma e reforça a intenção da menina de contrair matrimónio com o jovem.
Passado algum tempo, e por recomendação dos futuros sogros, o “rapaz“ marca a data
da cerimónia de apresentação dos pais, que se chama “pethe”, o equivalente a troca de
anel, na modernidade. Para esta cerimónia, os pais levam consigo 20 litros de “sura” e
dinheiro no valor variável entre 250 a 500 meticais.
A ida dos pais do namorado à casa da noiva é igualmente informada através dela, com
a necessária antecedência, para evitar surpresas. São recebidos e, como forma de
manifestação de respeito, prepara-se-lhes galinha com arroz, o prato que, na região,

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representa a maior deferência para com um hóspede. Apesar de os hóspedes trazerem


bebidas, os pais da “moça” têm a obrigação de organizar a sua bebida, para atender
aos visitantes.
Só depois de conversarem e tendo tudo decorrido conformemente, a bebida trazida
pelos hóspedes pode ser tomada. Essa cerimónia de apresentação dos pais, à
semelhança do que acontece com o próprio genro, tem lugar igualmente à noite, ou
excepcionalmente à tarde. Nunca é feita no período matinal.
Depois desta cerimónia, realiza-se uma outra, chamada “maingudo”. Esta é a mais
solene e envolvente cerimónia, na qual participam familiares alargados da noiva e do
noivo. Cozinham-se quantidades enormes de arroz, carne de galinha ou de vaca,
dependendo das possibilidades, mas nunca de porco.
Bebe-se, come-se e até se dança. Depois desta cerimónia, a noiva deixa a casa dos
pais e inicia a vida matrimonial vivendo, nos primeiros dias, na casa dos pais do noivo.
Só mais tarde, depois de um ano e alguma coisa, é que podem se apartar dos
progenitores e construir sua própria casa noutro sítio.
Coabitar com os pais nos primeiros dias do casamento é quase obrigatório e tem por
objectivo, primeiro, permitir que a noiva aprenda a viver em ambiente de família, saiba
respeitar os sogros e cunhados e demonstre se sabe cozinhar, trabalhar na machamba
e realizar outros trabalhos domésticos, como varrer, limpar a casa e lavar a roupa, que
é seu dever.
Um dos pressupostos básicos para ser considerada uma boa esposa é saber fazer
machamba e ser muito respeitosa. E o respeito, no caso vertente, tem cara. Nota-se por
receber cordialmente os hóspedes (familiares do marido e da esposa) quando chegam
a casa, cozinhar rapidamente para eles e fazer tudo o que for de melhor, incluindo sorrir
para os agradar.
Se demonstrar ser malcriada ou ter “cambo”, como chamam à malcriadez, a mulher
pode até correr o risco de perder o casamento. Só o facto de perder o respeito aos
sogros e cunhados é motivo bastante para o marido prescindir da mulher. Caso não o
faça, será considerado fraco e que não consegue dominar e colocar a mulher no seu
verdadeiro lugar (submissão).
Em todo o distrito do Chinde, e á semelhança do que acontece na província de Manica,
a virgindade não é imprescindível para que a mulher possa encontrar um homem para
se casar. Porém, isto não significa que ela seja permitida ou que haja infidelidade entre
os cônjuges. A partir da altura em que a mulher é levada em casamento, todos os seus
amigos afastam-se e ela própria recusa-se a retomar antigas amizades.
Por outro lado, mesmo a partir do namoro, à mulher não é permitido encontrar-se com
homens estranhos; mesmo se for para conversar ou tratar de assuntos de outra
natureza. Portanto, há muito ciúme e qualquer violação a essas regras, pode degenerar
em pancadarias e, consequentemente, em divórcio.
Com essas pancadarias, caso haja sido provado o encontro de uma mulher casada com
um homem estranho, os próprios tribunais comunitários compactuam, ou seja, não
punem os agressores, pois isto constitui regra, cuja violação é punida com agressão
física e divorcio.

Victor Machirica, in Maputo, Sexta-Feira, 12 de Dezembro de 2008:Notícias.


(adaptado)

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Síntese

O modelo de análise de cultura permite-nos analisar e interpretar fenómenos


culturais.
O autor deste modelo defende que a cultura deve ser interpretada e explicada com
base no que defendem os seus nativos.
A metodologia eficaz para o uso do modelo de Geertz é a pesquisa de campo
(trabalho etnográfico), para permitir que o pesquisador faça um retrato fiel do
fenómeno estudado, pelo que é importante falar-se com informantes, participar nos
rituais, para poder descrevê-los com propriedade e fazer interpretações a partir dos
dados fornecidos pelos nativos.
Refira-se que ao usar o método de Geertz, é importante levar em linha de conta o
que foi apresentado nas aulas referentes ao relativismo cultural e à emissão de
juízos de valor com rigor científico.

Escola Superior Aberta/A Politécnica – Ensino a Distância 66


Ciências de Educação –Cultura e Educação – Semestre 2

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