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BBC News, Brasil

Como nasceu a Cracolândia, bairro dos


barões do café que virou problema
'sem solução' de São Paulo
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxxdgnwrer4o

CRÉDITO: REUTERS
'Guerra às drogas e desumanização das pessoas que vivem ali criou uma
carta branca para operações (policiais). Mas essas ações ocorreram
diversas vezes e não resolveram o problema', diz pesquisador e urbanista

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• Author,Felipe Souza
• Role,Da BBC News Brasil em São Paulo
• Twitter,@felipe_dess
• 18 agosto 2023

Um ambiente caótico com centenas de pessoas aglomeradas 24 horas


por dia.

Algumas empurram carrinhos de supermercado cheios de roupas e


objetos pessoais, enquanto outras caminham sem direção e com olhar
perdido. Elas são atraídas pela mesma coisa: o crack.
A área itinerante apelidada de Cracolândia, no Centro de São Paulo,
dominou as páginas de jornais brasileiros e estrangeiros nas últimas
décadas.

O número de pessoas que se concentra ali varia bastante até mesmo em


um único dia.

Em alguns momentos, podem ser algumas dezenas de pessoas, em


outros, centenas, que chegam a ocupar dois ou três quarteirões inteiros.

A Cracolândia é considerada por alguns especialistas como um dos


problemas urbanos de saúde, segurança pública e social mais difíceis de
solucionar no Brasil.

Mas como a Cracolândia chegou ao ponto em que está hoje?

A BBC News Brasil conversou com especialistas, moradores e ex-usuários


para entender como a Cracolândia nasceu e por que ela nunca foi
desmantelada.

O fluxo, como é chamada a maior concentração de usuários, já mudou


incontáveis vezes de lugar.

A presença dele é motivo para desvalorização imobiliária, queda nas


vendas do comércio nas redondezas e insegurança por conta do medo
que os moradores têm de serem roubados.

Recentemente, o governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas


(Republicanos), chegou a anunciar que migraria essa concentração de
usuários para o bairro do Bom Retiro, mas logo recuou.

Glória, uma moradora local que pediu para não ter seu nome verdadeiro
revelado, diz ter comprado um apartamento na região por conta da
quantidade de serviços que havia no abastado bairro de Campos Elíseos
na década de 1980.

"Aqui era considerada uma região nobre. Com estação de trem,


comércios nos arredores, uma sala de teatro, o Liceu Sagrado Coração
de Jesus. Eu morava na [avenida] Nove de Julho, mas queria comprar
um apartamento novo. Era tudo muito lindo, então compramos um aqui
perto. Eu achei o bairro interessante porque era perto da rodoviária
também. E, na época, não tinha crack", conta ela.
CRÉDITO: REUTERS
Primeiros usuários de crack se instalaram na região conhecida como
Cracolândia, no centro de SP, no início da década de 1990

Da Boca do Luxo à Boca do Lixo

O bairro de Campos Elíseos já nasceu como uma região nobre da capital


paulista. Com a intenção de abrigar os barões do café, foi a primeira
área planejada da cidade.

Os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil contam que o local foi
escolhido pela burguesia para erguer seus casarões porque era
privilegiado em diversos aspectos, principalmente pela proximidade com
a estação da Luz, que levava ao interior e à então capital do país, o Rio
de Janeiro.

Também era um local estratégico para que os barões tivessem próximos


de onde partiam as locomotivas carregadas com o café negociado por
eles.

Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da


Universidade de São Paulo (USP), afirma que essa estrutura foi decisiva
para que a elite paulistana se instalasse ali.

“No final dos anos 1800, as estações ferroviárias da região eram usadas
pela elite como meio de transporte. Mas isso mudou com a instalação da
rodoviária, que trouxe um movimento de ônibus e migrantes recém-
chegados, além da instalação de pensões de curta duração. Isso foi
tensionando com o uso dos palacetes, que foram deixando de ser
habitados”, conta.
Em 1961, o bairro inaugurou a rodoviária da Luz, a primeira da cidade. O
local se tornou instantaneamente o principal ponto de chegada à
metrópole, e isso foi um divisor de águas para a região.

CRÉDITO: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO


Rodoviária da Luz transformou bairro do Campos Elíseos tanto após sua
inauguração quanto depois de ser desativada

A chegada em massa de migrantes vindos de outras regiões do país


atraiu o comércio popular para os arredores da Luz.

Com um aumento exponencial do número de pessoas que passaram a


circular pelo bairro, a região se tornou movimentada, popular e poluída
por conta do grande fluxo de veículos, afirmam os especialistas à BBC
News Brasil.

Dezenas de lojas foram inauguradas na região para atender às


demandas dos viajantes, e a Luz se tornou um dos principais polos de
trabalho da cidade.

Aos poucos, as famílias mais ricas começaram a se mudar para as


avenidas Paulista e Faria Lima, além dos bairros de Moema, Jardim
Europa, Jardim Paulista e Higienópolis.

Mas esse cenário mudou completamente em 1982, quando o então


prefeito Paulo Maluf inaugurou a rodoviária do Tietê, a maior da América
Latina e a segunda maior do mundo - atrás apenas do terminal de Nova
York.
Meses depois, o terminal da Luz foi desativado, e isso causou um efeito
dominó na região.

Da noite para o dia, ocorreu um esvaziamento repentino dos hotéis e


comércios, explica o pesquisador e urbanista Aluízio Marino, pós-
doutorando pela USP.

A área abandonada foi ocupada rapidamente por pessoas em situação


de rua.

“As pessoas começaram a dormir na marquise da rodoviária. Mas, no


começo, eram poucos e não incomodava. Anos depois, fechavam a
rua”, afirma Glória, a moradora que vive há mais de três décadas na
região.

Rolnik lembra que o Shopping Fashion Center Luz foi inaugurado no lugar
da rodoviária, mas a Prefeitura o desocupou para construir um teatro de
ópera e dança em uma tentativa de atrair a classe média de volta para
o bairro.

CRÉDITO: REUTERS
Fechamento da rodoviária da Luz causou efeito dominó de abandono
no bairro de Campos Elíseos, antes ocupado pelos barões paulistas do
café

“Desde os anos 1980, o governo não reconhece a existência de um bairro


popular na região e tenta atrair a classe média. Essas tentativas são feitas
sem levar em conta as necessidades de quem vive ali, em
precariedade”, diz Rolnik.
"A Prefeitura mandou fechar o shopping, mas ficou abandonado. E
lugares abandonados atraem pessoas abandonadas. Hoje, há uma
guerra contra as pessoas abandonadas para tentar transformar aquele
lugar no que ele não é".

Ela ainda cita que outros equipamentos culturais, como a Sala São Paulo,
a Pinacoteca e o Museu da Língua Portuguesa foram inaugurados na
região ainda nessa tentativa de atrair a classe média. Mas essa estratégia
também fracassou.

CRÉDITO: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO


Croqui mostra projeto da rodoviária da Luz, desativada em 1982

A cola e o crack

A região esvaziada, com quartos de hotéis e pousadas com preços


promocionais para tentar manter a ocupação, se tornou um conhecido
ponto de prostituição e consumo de drogas. Na época, era conhecida
como Boca do Lixo.

Para entender a origem do nome, é necessário saber que, nas décadas


de 1920 e 1930, se instalaram na região empresas cinematográficas,
como Paramount, Fox e MGM.

A partir do final da década de 1960, a indústria do cinema independente


ganhou destaque no bairro.
O pesquisador Aluízio Marino afirma que a região passou a ter uma
relevância também para o samba.

“Nesse momento, iniciou-se um processo de abandono do território pelas


elites. Saiu da Boca do Luxo para a Boca do Lixo. Mas a classe popular
nunca abandonou a região”, afirma o professor.

"O crack foi o acesso à cocaína para as pessoas que não tinham
dinheiro."

Naquele momento, Glória entendeu que o sonho dela tinha se tornado


um pesadelo.

Trinta anos depois de se mudar para a região, ela evita sair de casa por
medo de ser roubada. E conta que o glamour de décadas atrás deu
lugar ao desespero.

“Para você ter uma ideia, a Paróquia Sagrado Coração de Jesus, do


Liceu, fazia muitos casamentos. Tinha fila de até dois anos. Era lindo ver
as noivas e as pessoas felizes. Mas, com o tempo, os próprios flanelinhas
que pediam para olhar os carros passaram a quebrar os vidros e fazer
furtos. As pessoas saíam, viam tudo destruído e aquilo acabava com o
dia delas. Então, as pessoas não querem mais se casar lá”, afirma.

Em 2022, o Colégio Salesiano, ligado à paróquia, anunciou que fecharia


as portas por conta da insegurança na região e baixa procura por novas
matrículas.

Para evitar o encerramento das atividades, a Prefeitura de São Paulo fez


uma parceria com o colégio e manteve o ensino para 500 crianças do
ensino infantil e fundamental público.
A chegada da pedra

CRÉDITO: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO


Rodoviária da Luz foi a primeira de São Paulo, mas foi desativada assim
que o então prefeito Paulo Maluf inaugurou o terminal de ônibus do Tietê

A possibilidade de se hospedar por um preço baixo, ser um ponto de


prostituição e ainda a grande oferta de drogas em uma área
abandonada atraiu traficantes e usuários de diversas regiões, até mesmo
de outros Estados, para a Boca do Lixo.

Pessoas que viviam nas praças Roosevelt e da Sé, também localizadas


no Centro, por exemplo, migraram para a região onde hoje fica a
Cracolândia.

Edivaldo Godoy, de 65 anos, conta que foi um deles. Na época, diz ele à
BBC News Brasil, era morador de rua e foi um dos primeiros a experimentar
o crack e viver nas ruas da Cracolândia, no início da década de 1990.
“Ali sempre foi uma boca de fumo. Tinha muita cola, maconha e
cocaína. Eu costumava cheirar cola, mas, quando o crack chegou, a
estrutura para o tráfico já estava pronta”, afirma.
Ele conta que a droga tem um efeito "devastador" por conta de seu
potencial de dependência e que logo se popularizou na região.

Ele descreve o que sentiu nas primeiras experiências.

“O efeito é muito rápido, forte e gostoso. Aquilo mexe com qualquer um


porque ele acaba muito rápido. E ficar sem aquela sensação é
devastador.”
Depois de idas e vindas no sistema penitenciário, ele deixou de usar
drogas, virou pastor e hoje lidera o projeto SOS Carentes, que acolhe
usuários, principalmente da Cracolândia, e egressos do sistema
penitenciário.

Ele conta que, assim que o crack chegou a São Paulo, algumas pessoas
do crime discordavam de que a droga deveria ser vendida por conta de
sua potência. Todos os que discordavam foram mortos, diz Edivaldo.

“Foram morrendo os caras que eram contrários. Mataram um deles e


colocaram o corpo em um carrinho de lixo”, lembra ele.

Na época, a droga mais consumida era a cola de sapateiro, por ser


barata, de fácil acesso e ser um potente alucinógeno. Mas, assim que o
crack apareceu, se tornou a bola da vez.

A primeira apreensão da droga ocorreu em 1990, no bairro de São


Mateus, no extremo leste da capital.

O pastor explica ainda que a dinâmica do uso de crack foi determinante


para essa constante concentração de usuários a céu aberto.

“O cara que fuma maconha ou usa cocaína vai até a biqueira, compra
e volta para casa. Já quem usa crack precisa daquilo toda hora. Acaba
uma pedra e o cara quer outra. Então, ele não se distancia da boca, fica
sempre ali por perto sempre juntando dinheiro para comprar mais", conta
ele.

Edivaldo diz que foi preso diversas vezes. Ele conta que chegou a ficar
preso no Carandiru e foi um dos sobreviventes do massacre que deixou
111 mortos em outubro de 1992.

Ele diz que só saiu com vida porque se fingiu de morto em meio a corpos
ensanguentados.
Desocupa, derruba e espalha

Aluízio Marino afirma que a primeira grande operação tolerância zero na


Cracolândia ocorreu durante a gestão do então prefeito Celso Pitta,
aliado de Paulo Maluf, em 1997.
"Na época, surgiu a ideia de delimitar o território para estigmatizá-lo e
justificar as operações policiais", afirma.

"A guerra às drogas e a desumanização das pessoas que vivem ali criou
uma carta branca para as operações. Mas essas ações ocorreram
diversas vezes e não resolveram o problema.”

Em 2005, o arquiteto conta que o poder público passou a inaugurar uma


série de espaços públicos para tentar atrair mais abastados de volta para
a região.
“A Cracolândia só mudou de lugar", afirma Marino.

"As construtoras querem derrubar tudo e erguer de novo, mas ali é uma
região em que há muitos processos de herança mal concluídos, muitas
dívidas em imóveis e patrimônio histórico. Tudo ali é tombado, e isso é
uma pedra no sapato do mercado imobiliário. Dificulta muito o lado
deles.”
Para Marino, o governo deveria testar novas estratégias para tentar
desocupar a Cracolândia.

Uma delas é dar moradia e emprego para todos os usuários. No ponto


de vista dele, a tentativa mais próxima de ao menos amenizar o
problema da região foi a implantação do programa De Braços Abertos,
da gestão de Fernando Haddad (PT) na Prefeitura.

De maneira resumida, o programa oferecia moradia e um salário de R$


15 por dia para que os usuários fizessem a limpeza das ruas da região.

O programa foi criticado na época por moradores e comerciantes da


região que avaliavam que o projeto não conseguiria resolver o problema
e poderia até agravá-lo ao supostamente facilitar a permanência dos
usuários na região.

Em 2014, um dos idealizadores do projeto também apresentou críticas a


ele. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o psiquiatra Dartiu Xavier
da Silveira apontou que faltavam equipes médicas e treinamento.

Em novembro do mesmo ano, no entanto, Dartiu retornou ao De Braços


Abertos com um plano para capacitar agentes de saúde, médicos,
psicólogos e policiais que atuavam no programa.
“O Braços Abertos era um projeto piloto para tentar algo na linha da
redução de danos, com critérios de atendimento. Mas a gestão mudou
(para o prefeito João Doria), chamou o programa de Bolsa Crack e o
encerrou. Um absurdo, que causou um desmonte”, afirmou Aluízio
Marino.

Nas últimas semanas, a Cracolândia viveu uma escalada de violência.


Foram registrados constantes confrontos entre policiais militares, guardas
civis e os usuários. A maior parte foi filmado por moradores da região.
No início da noite de terça-feira (15/7), o porteiro João da Silva Sousa, de
54 anos, foi morto durante uma tentativa de assalto no largo General
Osório, na região da Cracolândia.

Ele foi golpeado por uma "arma branca cortante" usada por um homem
que tentou roubar a mochila dele.

João chegou a ser levado ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos.
Na mesma noite, as polícias civil e militar fizeram uma ação em conjunta
com a Guarda Municipal na Cracolândia. O resultado foram três pessoas
detidas por tráfico de drogas e a prisão de uma mulher procurada pela
Justiça.

A Secretaria da Segurança Pública informou em nota enviada à


reportagem que "a operação também incluiu investigações visando à
identificação das cerca de 800 pessoas na região, com o propósito de
melhor compreender o perfil dos usuários para aprimorar os serviços de
saúde e assistência social. Além disso, buscou-se identificar
desaparecidos e indivíduos que estivessem descumprindo penas ou
medidas alternativas na área, a fim de informar o Poder Judiciário".
A morte ocorreu no mesmo dia em que usuários de drogas entraram em
confronto com lojistas da região.

Comerciantes, principalmente da rua Santa Ifigênia, conhecida pelo


comércio de eletrônicos, frequentemente usam paus e pedras para
expulsar os usuários da região.
Os lojistas acusam os usuários de cometerem furtos e roubos contra
comércios e pedestres, o que leva insegurança para a área e atrapalha
as vendas. Vídeos publicados no YouTube mostram multidões se
enfrentando nas ruas da Santa Ifigênia.

Procurada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública informou


"que, ao longo deste ano, tem intensificado seus esforços na
Cracolândia, buscando aprimorar a qualidade de vida dos moradores,
comerciantes e pessoas que passam pelo local. Como resultado dessas
iniciativas, os índices de roubo e furto têm diminuído em comparação ao
mesmo período de 2022. Entre os dias 31 de julho e 6 de agosto, os
registros de tais crimes nos bairros de Campos Elíseos e Santa Cecília
caíram em 24%, apontando para uma tendência de redução sustentada
por 18 semanas consecutivas".

A pasta disse ainda que "essa queda nas estatísticas criminais reflete a
atuação da polícia tanto na área central como nos arredores da região
frequentada pelos usuários de drogas. Ainda, neste ano foram
apreendidos 512,78% entorpecentes a mais do que no ano passado.
Adicionalmente, o policiamento ostensivo foi intensificado com um
acréscimo de 120 policiais nas ruas diariamente".

Já a Prefeitura de São Paulo disse à BBC News Brasil que vem ampliando
e melhorando a oferta de serviços de tratamento e assistência à
população em situação de rua que faz uso de álcool e outras drogas.
"Hoje, já são mais de 450 beneficiários que deixaram a Cracolândia e
foram inseridos no mercado de trabalho. O monitoramento e
aprimoramento desta política é constante", disse a Prefeitura em nota.

Para o urbanista Aluízio Marinho, da USP, a melhor maneira de lidar com


o problema é de forma humanizada e oferecer estrutura para que ela
tenha atendimento médico, moradia e emprego.

“É preciso tratar o problema sem cair no debate moral”.

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