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A pés-color lade e o artificio da histéria: quem fala em nome dos passados “indianos”?” Dipesh Chakrabarty E preciso levar o pensamemto até o limite. Louis Althusser I Recentemente 0 projeto pés-colonial de Subaltern Studies” tem sido elogiado porque demonstra, “quiga pela primeira vez desde a colonizagao”, que “os indianos esto demostrando consistentes sinais de re-apropriaglio da capacidade para representar-se a si mesmos [dentro da disciplina da histéria]””. Como umm historiador membro do grupo de Subaltem Studies, penso que a felicitagto contida nessa observagao é gratificante, mas prematura. O propésito deste artigo é problematizar a ideia dos “indiauos” “representando a si mesmos na histéria”, Por hora deixemos de lado os enrolados problemas de identidade inerentes uma agéncia transnacional como a Subaliern Studies, onde os passaportes e 0s compromissos confunde as distingdes de etnicidade de uma maneira que para alguns parece tipicamente pos-modema, Tenho uma proposigao mais perversa para apresentar. Trata-se de que no tocante ao discurso académico da histéria — quer dizer, a “histéria” como um discurso produzido no ambito institucional da universidade -, “Europa” continua sendo o sujeito soberano, tedrico, de todas as histérias, incluindo as que chamamos “indianas”, “chinesas”, “quenianas”, ete. Existe uma peculiar maneira na qual todas estas outras historias tendem a se voltar para uma variagao de uma narragao mestra que poderia se chamar “a historia de Europa”, Neste sentido, a propria historia “indiana” esti em uma posigao de subaltemnidade; s6 podendo articular posigdes de sujeito subalterno em nome desta historia, Enquanto 0 resto deste artigo desenvolvera esta proposigio, permita-me dar algumas variagdes. “Europa” e “India” sao tratados aqui como terms hiperteais, no sentido que se referem a certas figuras da imaginagao cujos referentes geograficos permanecem mais ou menos indeterminados.’ Assim, sendo figmas do imaginirio sto suscetiveis de serem debatidas, mas por hora tratarei como se fossem categorias dadas, materializadas, termos opostos que formam. um bindmio em uma estrutura de dominagiio e subordinagio, Sou consciente de que ao traté-los desta maneira me exponho a acusago de ser nativista, nacionalista, ou o que é pior, um pecado dentre os pecados, nostilgico. Os académicos de tendéncia liberal protestariam imediatamente que qualquer * Tradugio Erahsto Felicio, revisto Gissele Raline Moura, junho de 2008 * Trata-se do Grupo de Estudos Subaltemnos formados a parti de historiadores indianos que langou a série de artigos Estucos Subalternos: escritos sobre histérta e soctedade indiana em 1982. (Nota do Tradutor) 1 Rangjit Guha y Gayatri Chakravorty Spivak, editores. Selected Sublatern Studies. New York, 1988; Ronald Inden, “Orientalist Constructions of India”. Modern Asian Studies . N° 20, mimero 3 (1986): 445 2 Deve a Jean Baudrillard o termo hiperreal (ver seu livro Simulations, New York, 1983), ainda que meu uso seja diferente do seu, ideia de uma “Europa” homogénea, indiscutivelmente se desfaz 4 menor anilise. Isto é certo, porém_ assim como © fendmeno do orientalismo no desaparece sensivelmente porque alguns de nés alcangamos agora uma consciéncia critica do mesmo, da mesma forma certa versa da “Europa”, materializadas e celebrada no mundo fenoménico das relagdes cotidianas de poder como 0 cendrio do nascimento do modemo, continua dominando o discurso da historia, A andlise nto a faz desaparecer. Que a Europa funcione como um referente silencioso no conhecimento historieo & de fato algo Sbvio de uma maneita sumariamente ordinéria, Pelo menos ha dois sintomas cotidianos da subaltemidade das historias nao ocidentais, terceitomundistas. Os historiadores do Terceito Mundo sentem uma necessidade de se referir as obras de histéria europeia: por seu tumo, os historiadores da Europa nao sentem a obrigacio de coresponder. Seja um Edward Thompson, um Le Roy Ladurie, um George Duby, um Carlo Ginzburg, um Lawrence Stone, um Robert Damton ou uma Natalie Davies — para citar sé alguns nomes ao azar de nosso mundo contemporaneo -. os “grandes” e os modelos do oficio do historiador so sempre, pelo menos, culturalmente “europeus”. “Eles” produzem sua obra em uma relativa ignorancia das histérias nao ocidentais e isto nao parece afetar a qualidade de seu trabalho. Este 6 um gesto, entretanto, que “nés” nio podemos coresponder. Nem sequer podemos nos permitir uma igualdade ou simetria de ignorancia neste nivel sem correr o risco de parecer “antiquados” ou “superados”. © problema, poderia acrescentar entre parénteses, nao é exclusivo dos historiadores. Uma mostra despreocupada, mas apesar disso ostensivel desta “desigualdade de ignorancia” nos estudos literdtios, por exemplo, é © seguinte enunciado acerea de Salam Rushdie tomado de um texto recente sobre o pés-modernismo: “ainda que Saleem Sinai [dos Filhos da meia noite)" narra em inglés (...) tanto para eserever historia como para eserever ficgao, seus intertextos acabam duplicados: por um lado provem de lendas, filmes e literatura indiana: por outro do Ocidente — O Tambor de Hojatata, Tristram Shandy, Cem amos de saudade, ete”. E interessante observar como este enunciado faz reluzir apenas as referencias que provem do “Ocidente”. A autora mio tem a obrigagao de estar em posigaio de nomear com alguma autoridade e especificidade as alusdes “indianas” que “duplicam” a intertextualidade de Rushdie. Esta ignorancia, compartilhada e tacita, € parte de um suposto pacto que toma “fécil” ineluir Rushdie nos cursos sobre pos-colonialismo dos departamentos de literatura inglesa. Este problema de ignorancia assimétrica nao é simplesmente questo de “servilismo cultural” (cultural cringe, para falar com meu lado australiano) de nossa parte ou de arrogaucia cultural da parte do historiador europeu. Estes problemas existem, mas podem ser atendidos de maneira relativamente facil. Tampouco pretendo menosprezar, nos minimos detalhes, 0s avangos dos * Filhos da Meia Noite é como Renajit Guha e Saleem Sinai chamaram a geragao do grupo de Estudos Subslternos 2) 5 Linda Hutcheon. The Politics of Postmodernism. Londres, 1989, p. 68. historiadores que mencionei. Nossas notas de rodapé aportam copiosos testemunhos das percepgdes que temos derivado de seu conhecimento e criatividade. O dominio da “Europa” como sujeito de todas as histérias é uma parte de uma condigao teérica muito mais profunda, cuja sombra se produz © conhecimento histérico no Tereeiro Mundo, Esta condigdo se expressa ordinariamente de uma maneira paradoxal, Este paradoxo & 0 que descreverei como 0 segundo sintoma cotidiano de nossa subalternidade, e se refere A natureza mesma dos préprios pronunciamentos da cigneia social. Desde varias geragdes, filésofos e pensadores que tem dado forma 4 natureza da ciéneia social 18m produzido teorias que abarcam 4 toda humanidade. Como bem sabemos, estas declaragdes tém. sido produzidas em uma ignorancia relativa, e em ocasides absoluta, da maior parte da humanidade — ou seja, os que vivem em culturas nfo ocidentais. Isto em si mesmo nao constitui um paradoxo, pois os filésofos europeus mais conscientes de sua propria reflexdo sempre justificam teoricamente esta postura, © paradoxo cotidiano da cigncia social do Terceiro Mundo € que para nés estas teorias nos parecem, apesar de sua ignordncia inerente de “nés”, eminentemente titeis para entender nossas sociedades. Quem permitiu aos modemos sabios europeus desenvolver semelhante clarividéncia a respeito de sociedades que ignoravam empiricamente? Por qué nés, novamente, no podemos corresponder a este gesto? Existe uma resposta a esta pergunta nos escritos de fildsofos que tém lido na historia europeia uma enteléquia da razio universal, considerando tal filosofia como a conscigneia de si mesma da ciéneia social. Somente “Europa”, segundo o argumento, é teoricamente (quer dizer, no nivel das categorias fundamentais que dio forma ao pensamento histérico) conhecivel: todas as demais histérias sao questdes de investigagao empirica que encarna um esqueleto tedrico que substancialmente ¢ “Europa”. Existe uma versio deste argumento na conferéneia de Edmund Husserl dada em Viena em 1935, onde este propunha que a diferenga fundamental entre as “filosofias orientais” (mais especificamente, a indiana e a chinesa) e a “eiéneia greco-europeia” (ou, como acrescentava, “falando em sentido universal: a filosofia”) era a capacidade desta de produzir “pereepgdes te6ricas absolutas”, quer dizer, “theoria” (ciéneia universal), enquanto que aquelas conservavam um carter “pritico-universal” e, segundo ele, “uitico-religioso”. Estas filosefias “pritico-universais” se dirigiam a0 mundo de uma maneira “ingénua” e “direta”, enquanto que o mundo se apresentava ele mesmo ante a ffeoria como wma “temitica”, o que tomava possivel uma praxis “cujo fim é elevar a humanidace mediante a razao cientifico universal™ Uma proposigao epistemologica bastante similar anima o uso que Marx faz de eategorias como “burgués” ¢ “pré-burgués” ou “capital” e “pré-capital”. © prefixo pré significa aqui uma relagiio que é tanto cronolégica como tedrica. O sugimento da sociedade burguesa ou capitalista, 4 Edmund Husserl, The Crisis of European Sciences and Transcendental Philosophy, traduccion de David Carr, Evanston, Ill,1970, pp. 281-85. Ver também Wilhelm Halbfass, Jada and Europe: in Essay in Understanding, New ‘York, 1988, pp. 167-168. diz Marx em Grundrisse” @ em outros lugares, da lugar pela primeira vez 4 uma histéria que pode ser compreendida mediante uma categoria filos6fiea e universal: o “capital”. A historia se toma, pela primeira vez, teoricamente conhecivel. Todas as histarias do passado a partir de entao serio conhecidas (desde ja, teoricamente) desde o observador privilegiado que esta categoria é, quer dizer, em termos de seus diferenciais a respeito dela. As coisas revelam sua esséncia categérica somiente quando aleangam seu pleno desenvolvimento, ou como disse Marx naquele famoso aforismo de Grundrisse: “a anatomia humana contem a chave da anatomiia do simio”*. A eategoria “capital”, como examinei em outro texto, contém dentro dela o sujeito legal do pensamento da Ilustragao®. Nao é de surpreender que Marx dissera, nesse primeiro capitulo tao hegeliano do Capital vol. 1, que © segredo do “capital”, enquanto categoria, “nao pode ser decifiado até que a nogao de igualdade humana tenha adquirido a estabilidade de um preconceito popular”. Seguindo com as palavras de Marx: Inclusive as categorias mais abstratas, pesa sa validade — precisamente por seu cariter abstrato — para todas as épocas, nao obstante sao (..) elas mesmas (..) produto de relagdes historicas. A sociedade burguesa é a organizagdo da produgdo, historicamente falando, mais desenvolvida e mais complexa. AS categorias que expressam stias relagdes, a compreensio de sta estrutura, por isso, também petmitem percepcdes da estrutura e das relagdes de produgao de todas as formagdes sociais desaparecidas, a partir de cujas ruinas € elementos se construit $6, cujos restos ainda parcialmente rebeldes estio presentes dentro dela, cujas metas variagdes tém desenvolvido uma importancia explicita dentro dela, etc. (...) Os indicios de um desenvolvimento superior entre as espécies animais subordinadas (..) podem ser entendidas s depois que ja se conhece o maior desenvolvimento que pode ser alcangado. A economia burguesa proporciona assim a chave para a economia antiga® Onde diz “capital” on “burguesia”, proponho, lei se “Europa”, rg ‘Nem Marx nem Husserl falavam — pelo menos nfo nas palavras citadas anteriormente — em um espirito historicista, Entre parénteses devemos nos recordar também de que a visio de Marx sobre a emancipagao implicava uma viagem mais além do dominio do capital, de fato mais além da nogio de igualdade juridiea que ¢ to sagrada para o liberalismo. A maxima “a cada um é pago * Grundrisse der Krittk der politischen Okonomte foi escrito entre 1857 @ 1861 por Karl Marx como manuscrito preparatério para o que se tomou a Una contribui¢ao para a critica da economia politica e a0 Capital, mas apenas publicado postimamente em 1939 ou 1941. Ver hitpy//www.marsists.org/archive/mars/works’18$7/grundrisse/, acessado em 24 de fevereiro de 2009. (N..) 5S Ver este argumento em Karl Mars. Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy. trad. de Mastin Nicholas, Harmondsworth, 1973, pp. 469-512; e em Marx. Capital: 4 Critique of Political Economy. 3 vols., Mosci. 1971, val. 3, pp. $93-613, 6 Ver Dipesh Chakrabarty. Rethinking Working-Class History: Bengal, 1§90-1940. Princeton, 1989, capitulo 7. Marx, Capital, vol. 1, p. 60 8 Marx, Grundrisse, p. 105. segundo sua habilidade, a cada um segundo sua necessidade” ¢ muito contraria ao principio de “ao trabalho igual, salério igual”, e esta & a razdo pela qual Marx continua sendo ~ pese 0 Muro de Berlim (ou pese as suas ruinas) — um critico relevante e fundamental tanto para o capitalismo como para o liberalismo, e por isso central para qualquer projeto pés-colonial e pos-modemo de eserita da historia, Nao obstante, as declaragdes metodologicas ou epistemolégicas de Marx nem sempre conseguem resistir leituras historicistas, Sempre houve suficiente ambiguidade nestas declaragdes para tomar possivel 0 surgimento de narragbes histéricas “marxistas”. Estas narragdes giram em tomo do tema da “transigao histérica”. A maior parte das histérias do Tereeiro Mundo sao eseritas dentro de problematicas plantadas por esta narrago da transigao, cujos temas dominantes (ainda que e amitide implicitos) so os do desenvolvimento, da modemizagao, do capitalismo. Esta tendéncia pode ser encontrada em nossos proprio trabalho no projeto de Subaltern Studies, Meu livro acerca da historia da classe opersiia teve que lidar com este problema’. O livro Modern India de Sumit Sarkar (um dos colegas de Subaltern Studies), considerado com justiga un dos melhores livros sobre historia da india dirigidos principalmente para as universidades indianas abre com o seguintes emunciadas: Os sessenta anos ¢ pouco que mediam entre a fimdacao do Congresso Nacional Indiano em 1885 ¢ a consumacao da independéncia em agosto de 1947 viveram quica a transformagao mais grandiosa na longa histéria do pais. Um transicao que de mmitas maneiras continua sendo onerosamente incompleta, ¢ € a partir desta ambiguidade central que parece mais apropriado comecar nosso estudo.”” Que categoria de transigio ficou “onerosamente incompleta”? Sarkar alude & possibilidade de que houve varias e nomeia trés: Mnitas das aspiragdes despertadas ao longo da Inta nacional ficaram sem se cumprir — 0 sonho gandhiano do camponés que chega a ser quem deve ser em Ram-rajya [0 reino do lendario ¢ ideal deus-rei Rama]. assim como os ideais da esquerda de fazer a revolucao social. E. como haveria que se revelar reiteradamente a historia da India e do Paquistdo (¢ de Bangladesh) independentes. inclusive os problemas de uma completa transformagdo burguesa ¢ de um afortmado desenvolvimento capitalista nao se resolveram completamente mediante a transac do poder em 1947. (p. 04). Nem o sonhio do camponés de um reino mitico e justo, nem o ideal de esquerda da revolugio socialfista], nem uma “completa transformagao burguesa” — dentro destas trés caréneias, destas encenagdes “onerosamente incompletas”, Sarkar localiza a historia da india moderna, Também com uma referéneia similar as “caréncias” — 0 “fracasso” de uma historia para chegar ao seu encontro com seu destino (digamos, uma vez mais um exemplo do “nativo preguisoso”?) ~ inauguramos nossos projeto de Subaltern Studies E 0 estudo do fracasso histérico da na¢@o para chegar a ser o que deve ser. wn fiacasso devido A insuficiéncia da burguesia assim como da classe trabalhadora 9 Ver Chakrabarty, Rethinking Working-Class History, capitulo 7 em particular. 10 Sumit Sarkas, Modem India, 1885-1947, Delhi, 1985, p. 1. para a conduzir @ uma vitéria decisiva sobre o colouialismo ¢ a uma revolugdo bburguesa-democratica do tipo clissico do século XIX [...] ou [do tipo da] “nova democracia” — 6 o estudo deste fracasso 0 que constitui a problemética central da historiografia da India Colonial. * A tendéncia de ler a historia da india em termos de uma caréncia, uma auséneia ou como algo incompleto que se traduz em uma “insuficiéncia” é ébvia nestas citagdes. Contudo, como trope, s¢ trata de uma antiga tendéncia que se remonta a aurora do regime colonial na india, Os britanicos conquistaram ¢ representaram a diversidade dos passados “indianos” mediante uma narragio homogeneizadora da transigao desde um periodo “medieval” até a “modemidade”. Os termos mudaram com o tempo. Alguma vez se chamou “despético” ao “medieval”, e chamou 0 “moderno” de “o respeito a lei”. Uma variante posterior seria “feudal-capitalista” Quando se formulou pela primeira vez nas histéria coloniais da india, esta narragio da transigao era uma desembaragada celebracao da capacidade do imperialismo para a violéncia e a conquista. Para dar s6 um exemplo entre tantos que nos oferecem, a History of Hindostan de Alexander Dow, publicada pela primeira vez em trés volumes entre 1770 e 1772, era dedicada ao rei ‘como uma candura caracteristica do século XVII, quando nao fazia falta um Michel Foucault para revelar a conexdo entre violéncia e conhecimento: “o éxito das forgas de sua Majestade”, dizia Dow, “abrem as portas do Oriente as investigagoes dos curiosos””. Subtraindo esta conexdo entre a violéneia e a modemidade, Dow acrescenta: a nacdo britanica se converte na conquistadora de Bengala e deveria estender algo de sta jurispridéncia fundamental para assegurar sua conquista (..). A espada é nossa garantia. E uma conquista absoluta, e assim a considera o mundo. (vol. 1, p. cxxxviii. Esta “jurisprudéncia fundamental” era o “respeito 4 lei” que contrastava, na narracao de Dow. com o regime anterior que era “arbitrario” e “despético”. Em uma nota posterior. Dow explicava que 0 “despotismo” nao se referia a um “governo guiado pelo mero capricho ¢ ineonstancia”, pois sabia suficientemente historia para entender que isto nao era correto para a India. O despotismo era posto ao governo constitucional inglés; era um sistema no qual “o poder legislativo, o judicial e 0 executivo (estavam] encarados no principe”. Este era o passado de falta de liberdades. Com 0 estabelecimento do poder britinico, © indiano seria convertido num stidito legal, regido por um governo aberto & pressio da propriedade privada (“o fundamento da prosperidade piiblica”, dizia Dow) ¢ 4 opinito publica, além de ser supervisionado por um poder judicial onde “os servidores da justiga deveriam ser independentes de tudo, menos da lei [pois], sendio o oficial [0 juiz] se converte em um instrumento de opressio nas miios do despotismo” (vol.1, pp. xev, el, exl-exli). 11 Guha y Spivak, Selected Subaltern Studies, p. 43. As palavras citadas sao de Guha, mas creio que representam um sentido de responsabilidade que ¢ compartilhado por todos os membros do grupo de Subaltern Studies 12 Alexander Dow: History of Hindostan, 3 vols. Londres, 1812-1816, dedicatoria, vol. 1. Durante os séculos XIX e XX, geragdes de elites nacionalistas indianas encontraram sua posigdo de sujeito, como nacionalistas, dentro desta narragio da transigao que, em varias ocasides & dependendo da ideologia de cada um, colocou o tapete da “historia indiana” entre os dois postes dos conjuntos homélogos de oposigdes: despotico-constitucional, medieval-modero, feudal-capitalista, Dentro desta narragiio compartilhada pela imaginag%0 imperialista e nacionalista, “indiano” sempre foi uma figura da caréneia, Dito de outro modo, sempre havia lugar neste relato para personagens que encamavam, em nome dos nativos, o tema da “insuficiéneia” ou do “fracasso”. A recomendagao de Dow sobre 0 “respeito lei” para Bengala-India era acompanhada da paradoxal garantia (para os briténico) de que nao havia perigo de que semelhante respeito “inculeara” aos natives “um espitito de liberdade”: Tomar 0s nativos da terra de Bangala livres, ultrapassa o poder do pacto politico J. Sua religido, suas instituigdes, seus costumes, a disposi¢ao mesma de sua ‘mentalidade, os fazem proprios para a obediéncia passiva. Lhes dar propriedades 6 0s umitia aos nossos interesses de modo mais forte e os faria nossos siiditos: ou se a nacdo britinica prefere esta palavra ~ mais nossos escravos. (vol. 1. pp. cxl- exli) Nao é necessirio lembrar que isto seria a pedra fimdamental da ideologia imperial durante muitos anos — stiditos e nfo cidadaos, pois os nativos nunca tiveram capacidade para a cidadania— e com © tempo se converteria em uma variedade da propria teoria liberal. Desde entio os nacionalistas se ressentiam disto. Tanto para Rammohun Roy como para Bankimchandra Chattopadhyay, dois dos intelectuais nacionalistas mais proeminentes da india do século XIX, 0 regime britanico era um periodo necessario de tutela em que os indianos tinham que passar para se prepararem precisamente para o que os britinico Ihes negavam, mas que exaltavam como o fim de toda a historia: cidadania e o Estado-nagao. Anos depois, em 1951. um indiano “desconhecida” que consegui vender sua “escuridao”, escrevia esta dedicatoria para a historia de sua vid: A memoria do . Império Britinico na india 0 qual nos outorgou a condigao de sitditos, ‘mas nos negou a cidadania; ao qual, nao obstante, todos nbs apresentamos 0 desafio Civis Britanicus Sum porque tudo o que era bom e vivia dentro de nés foi feito, modelado e animado pelo proprio regime britinico.* ‘Nas versdes nacionalistas desta narragao, como mostra Partha Chatterjee, os eamponeses ¢ os trabalhadores, as classes subaltemas, eram aqueles que fizeram levar a cruz da “insuficiéneia”, pois, 13 Ver L. T. Hobhouse. Ziberalism, New York, 1964, pp. 2 14 Nirad C. Chaudhuri, The Autobiography of an Uniziown Indian, New York, 1989, dedicatoria segundo esta versio, eram eles que necessitavam ser educados para os tirar de sua ignorancia, provincianismo ou, dependendo de sua preferéneia, de uma falsa conscigneia®, Hoje, inclusive, a palavra de origem anglo-indiana comunalismo [comunalismo] se refere aqueles que presumivelmente nao conseguiram estar & altura dos ideais “seculares” da eidadania. E inegavel que o regime briténico tenha estabelecido as praticas, instituigdes e discursos do individualismo burgués em terras indianas, As primeiras expressGes — quer dizer, antes dos primeiros passos do nacionalismo — deste desejo de ser um “stidito legal” deixam claro que para os indianos dos anos trinta e quarenta do século XTX ser um “individuo modemo” era se converter em. “europeu”. The Liberary Glener, uma revista da Caleuta colonial, publicon © seguinte poema em 18: escrito em inglés por uma estudante bengali de dezoito anos de idade. O poema se inspirava aparentemente na vista das naus que partiam da costa de Bengala “até as gloriosas costas da Inglaterra”. A mifide suspiro como uma triste ave por deixar esta terra, ainda que seja a minha terra; seus artoios vestidos de ervas — alegres flores ¢ céus sem nuvens, ainda assim so mais que belos, pouco encanto tem para mim. Pois tenho sonhiado com climas mais brilhantes e livres onde habita a juventude e a liberdade celestial onde até os mais humildes se tomam felizes ~ onde a vista nilo se ofende ao ver tm homem se inclinat a0 sordido interesse — so climas onde prospera a cincia, 0 génio recebe sua justa honraria: onde o homem vive em toda sta gléria de forma mais verdadeira € 0 rosto da natureza é esquisitamente dace: ara aqueles climas lanco meu impaciente suspiro, deixem-me viver ali, ali me deixem monrer. Com seus ecos de Milton e de radicalismo inglés do século XVII, é claro que esta 6 uma mostra do pasticho" colonial:”. Michael Madhusudan Dutt, 0 jovem autor bengali deste poema, finalmente se deu conta da impossibilidade de ser “europeu” e voltow 4 literatura bengali para se converter em um dos nossos melhores poetas. Contudo, os nacionalistas indianos posteriores abandonaram também o desprezivel desejo de se tomarem “europeus”. A premissa do pensamento nacionalista era precisamente a suposta universalidade do projeto de se converter em individuos, supondo que “direitos individuais” e a “igualdade” abstrata fossem conceitos universais que podiam se fixar em qualquer parte do mundo, e alguém podia ser “indiano” e “cidadao” ao mesmo tempo. Nao demoraremos em analisar algumas das contradigdes deste projeto. ‘Muitos dos rituais piblicos e privados do individualismo modemo comegaram a ser notados 15 Partha Chatterjee Nationalist Thought and the Colonial World: A Derivative Discourse? Londres, 1986. 16 Mudbusudan Rachanabali [em Bengala], Calcuta, 1965, p. 449. Ver também Jogindranath Basu, Michael ‘Madhusudan Datter jibancharit [em Bengala], Caleuta, 1978, p. 86. » Obra literiria ou artistica imitada servilmente de outra, Dicionirio Aurétio (N-T.) 17 Minha compreensio deste poema foi enriquecida com as conversagdes com Marjorie Levinson e David Bennett na India durante o século XIX. E possivel ver isto, por exemplo, no stibito florescimento nesta Epoca dos quatro géneros basicos que ajudaram a expressar o ser modem: a novela, a biografia, a autobiografia ¢ a histéria*. Juntos a estes géneros chegou a industria moderna, a tecnologia, a medicina, um sistema legal quase burgués (ainda que colonial) sustentado por um Estado que 0 nacionalismo haveria de ganhar e fazer seu. A namagao da transigAo que tenho examinado avalizava estas instituigdes e por sua vez estava apontada por elas. Pensar esta narragiio era pensar estas instituigses, onde no pice destas descasava o Estado modemo™, e pensar 0 modemo ou o Estado- nagdo era pensar uma historia cujo sujeito tedrico eta Europa. Gandhi se deu conta disto desde 1909. Ao se referir as demandas dos nacionalistas indianos, de mais feovias, medicina moderna direito burgués, astutamente afirmou em seu livro Hind Swaraj que isto era “fazer inglesa a india” ou, segundo suas palavras, ter “um regime inglés sem os ingleses™, Esta “Europa”, como mostra 0 juvenil e ingenuo poema de Michael Madhusudan Du . desde ja nao era sendo uma obra de fiegaio que 0 colonizader contou aos colonizados no proceso de fabricagio da dominagio colonial”. © nacionalismo de Gandhi deixa sua critica desta “Europa”, em muitos aspectos, em uma posigéio comprometida, mas nao é minha intengao ver seu texto como um fetiche. Entretanto seu gesto me parece itil para desenvolver a problematica de historias escritas fora da metrépole. m1 Agora irei abordar novamente os temas do “fracasso”, “caréncia” e “insuficiéneia” que de forma tao ubiqua caracterizam o sujeito falante da histéria “indiana”. Como nas priticas do campesino insurgente da india colonial, 0 primeiro passo de um esforgo critico deve surgir de um ‘esto de inversao®. Comecemos por onde a narragao da transigfo termina e leiamos “plenitude” e “criatividade” nos lugares onde esta narragaio nos pede para ler “caréneia” e “insuficiéneia” Segundo a fabula de sua constituigie, os indianos de hoje sto todos “cidadaos”. A constituigao adota uma definigao quase classicamente liberal de cidadania. Se o Estado modemo ¢ 0 individuo modemo, o cidadao, no sto mais do que dois lados inseparaveis do mesmo fendmeno, como afirma William Connolly em Political Theory and Modernity, ent&o o fim da historia, para nds indianos, jé esté a nossa vista”. Contudo, este individuo modemo, cuja vida politica e piblica é 18 Nao estou afirmando que todos estes géneros emergiram necessariamente com o individualismo burgués. Ver Natalie Zemon Davis. “Fame and Secrecy: Leon Modens's Life as an Early Modem Autobiography”. History and Theory n° 27 (1988): 103-118; e Davis “Boundaries and Sense of Self in Sixteenth-Ceutury France”. In: Thomas C. Heller et al eds,, Reoonsiructing Tndividualism: Autonome, Individuality, and the Self m Western Thought. Stanford, Calif, 1986, pp. 33-63. Ver também Philippe Lejeune. On autobiography. tad. de Katherine Leary. Minneapolis, 1989, pp. 163-184 19 Vero capitulo sobre Nehru em Chatterjee. Nationalist Thought. 20M. K. Gandhi, Hind Swaraj (1908). in: Collected Works of Mahatma Gandhi. vol. 10, Ahmedabad, 1963, p. 15. 21 Ver o estudo de Gauri Visvanathan, Masks of Conquest: Literary Studtes and British Rule in India. Londres, 1989, pp. 128-141, passim. 22 Ranajit Guha. Elementary Aspects of Peasant Insurgency. in Colontal India. New Delhi, 1983, capitulo 2. 23 William E. Connolly. Political Theory and Modernity, Oxford, 1989. Ver também David Bennett, “Postmodernism vivida na cidadania, também deveria ter um eu “privado” e interior que se expée sem cessar em didrios, cartas, autobiografias, novelas e, at& mesmo, no que dizemos aos nossos psicanalistas. O individuo burgués nao nasce até que descubra os prazeres da vida privada. Mas esta é uma categoria muito especial de “vida privada” — de fato se trata de uma “vida publica” diferenciada, pois esta vida privada burguesa, como nos lembra Jirgen Habermas, esté “sempre orientada A um piiblico [Pubtikimy™ A vida piiblica indiana poderd imitar o papel da ficgao legal burguesa da cidadania — normalmente esta ficgio se encenava como uma farsa na india ~ mas, 0 que existe acerea da vida privada burguesa e da sua histéria? Qualquer wn que tena tratado de escrever historia social “a la francesa” com material indiano se daria conta de quao impossivelmente dificil é esta tarefi’. Nao é ‘que a forma da vida privada burguesa nao tenha chegado com a dominagio europeia. Desde meados do século XIX, existem novelas, diarios, cartas e autobiografias indianas, mas raras vezes plasmam retratos de um sujeito interminavelmente interiorizado, Nossas autobiografias sie notavelmente “piiblicas” (portadores de construgdes da vida piiblica que nao sao necessariamente modemas) quando sio escritas por homens, e contam a historia da familia quando so escritas por mulheres” Em todo caso, as autobiografias de estilo confessional brilham por sua auséncia, © tinico paragrafo, no segundo volume de sua aclamada e premiada autobiografia (na pagina 963), que Nirad Chaudhuri dedica a descrever a experiéneia de sua noite de bodas é um exemplo tao bom como qualquer outro e vale apena cita-lo inteiramente. Devo explicar que se tratava de um matriménio arranjado (celebrado em Bengala em 1932) e Chaudhuri achava que sua esposa nio apreciaria seu recém adquirido, mas proibitivo, passatempo de comprar discos de nrisica classica ocidental. Nossa leitura de Chaudhuri se vé entorpecida em parte por nossa falta de conhecimento da intertextualidade de sua prosa — por exemplo, pode ser que exista uma influéncia de uma recusa puritana em revelar “demais”. Ainda assim, este fragmento continua sendo um eloquente exercicio de construgao de uma meméria, pois aborda o que Chaudhuri “lembra” e “esquece” de “sua experiéncia da primeira noite”. Vela a intimidade com expressdes como “tampouco lembro” ou “nao sei como foi que” (para nao mencionar o muito freudiano “descartega minha consciéneia”) & este velo auto-construido sem dtivida parte do eu que fala Me sentia terrivelmente incomodado ante a perspectiva de conliecer como esposa uma menina que era para mim uma perfeita estranha e quando a trouxeram [..] ¢ a deixaram de pé em frente a mim, nao tinha nada para dizer. $6 vi um sorriso muito and Vision: Ways of Seeing (at) the End of History’ 724 Jurgen Habermas, The Structural Transformation of the Publie Sphere: An Inquiry into a Category of Bourgeois, Society, Cambridge, Mass., 1989, p. 49. 25 Ver Sumit Sarkar, “Social History: Predicament and Possibilities", in Iqbal Khan, ed., Fresh Perspective on India and Pakistan. Essays on Economics, Polities, and Culture, Oxford, 1985, pp. 256-274 26 Por razoes de espago, deixarei esta afinmacao sem fundamentar, ainda que espero ter a oportunidade de examiné-la especialmente em outro lugs, Deveria fechar esta declaragao mencionando que se refere principalmente as autobiografias publicadas entre 1850 e 1910. Uma vez que as mulheres se integra a esfera publica no séeulo XX, de modo que a elaboragao de seu eu adquire dimensdes diferentes, timido em sua cara e timidamente se aproximou e sentou junto a mim na borda da cama, Nao sei como foi que depois disso. nds dois acabamos sobre as almofadas, recostados um ao lado do outro. [Chaudhuri ressalta em uma nota de rodapé: Desde j, totalmente vestidos. Nés os hindus [...] consideramos 0s extremos — totalmente vestidos ¢ totalmente despidos — gestos de modéstia ¢ tudo 0 que fica entre eles como grosseiramente sem pudores. Nenhum homem decente quer que stta esposa seja tima al/umeuse™ } Entao trocamos as primeiras palavras. Ela pegou ‘um dos meus bracos, 0 apalpou e disse: “como esta fiaco. Vou cuidar muito bem de voce”. Nao the agradeci e tampouco lembro, apesar de ter ouvido as palavras e ter sentido que me tocava. O homivel suspense sobre a miisica européia havia despertado de novo em minha cabega ¢ decidi descarregar minha conseiéneia de uma Vez ¢ enfientar 0 sactificio, se fosse necessério, de maneira direta e comecar 0 romance de qualquer maneira que pudesse. Depois de um momento ew Ihe perguntei timidamente: “Ouve miisica enropéia?”. Negava com a cabeca enquanto dizia: “nao”. Nao obstante me arrisquei de novo ¢ desta vez Ihe perguntei: “Ja ouvin mencionarem um homem chamado Beethoven?”. Responden com a cabela querendo dizer “sim”. Isso me tranquilizou, mas nao me satisfez por completo Assim, perguntei mais uma vez: “Podes soletré-lo?”. Entio disse: “B, E. E. T. H. O. VE, N". Me senti animado(...] e teminamos dormindo.” O desejo de ser “modermo” clama em cada oragao dos dois volumes da autobiografia de Chaudhuri, Seu nome lendario ¢ agora simbolo da historia cultural do encontro hindu-britanico. Nao obstante, nas 1500 e poucas paginas que escreveu em inglés sobre sua vida, esta € a tinica passagem em que a narragao da participagaio de Chaudhuri na vida piblica ¢ nos circulos literdrios se interrompe para dar lugar a algo que se aproxima do intimo. Como temos de ler este textos, esta historia de um varao indiano se(fémade que nao tinha igual em seu zelo pela vida piblica do cidadao e que, contudo, raras vezes, se é que o fez, reproduz na escrita a outra cara do cidadio moderno, o ser privado interior que sem cessar trata de chegar um piiblico? O piblico sem o privado? Acaso seria mais um outro exemplo do “incompleto” da transformagao burguesa da india? Estas perguntas foram provocadas pela narragao da transigao que, por sua vez, situa o individuo moderno no fim mesmo da histéria. Nao quero dar 4 autobiografia de Chaudhuri uma representatividade que nao tem. A escrita feminina, como ja disse, é diferente e os académicos apenas comecaram a explorar o mundo da autobiografia na histéria da india. Mas enquanto uma consequéncia do imperialismo europeu na india foi introduzir o Estado modemo e a ideia da nagao com seu diseurso concomitante de “cidadania”, segundo o qual, mediante a ideia dos “direitos do cidadao” (quer dizer, “o respeito 4 lei”), divide a figura do individuo modemo nas partes “piiblica” © “privada” do eu (como o jovem Marx alguma vez assinalou em seu On the Jewish Question), estes temas tem existido — em uma reagao contestatoria, de alianga e mestigagem — com outras narragdes do ewe da comunidade que nao consideram lago entre o Estado e 0 cidadao como 0 apice da construgio do social * Terme origindrio do francés que corresponde a mulher que faz antincios publicos de forma pejorativa ou até usando de seu corpo (N.T). 27 Nirad C. Chaudhuri, Thy Hand, Great Anarch!: India, 1921-1952, Londres, 1987, pp. 350-351 28 Ver Karl Marx, On the Jewish Question, en Early Writings, Harmondsworth, Ingl., 1975, pp. 215-24 Esta afirmagao, também, nao estaré sujeita 4 discusso, mas quero demonstrar que ultrapassa seus limites. E que estas outras construgdes do eu e da comunidade, ainda que sejam documentiveis, nunca terio o privilégio de fornecer as meta-narragdes ou teleologias (supondo que nao pode haver uma narragio sem pelo menos uma teleologia implicita) de nossas histérias. Isto porque, em parte, estas narragdes amitide manifestam por si so uma consciéneia anti-historica; quer dizer, implicam posigdes de sujeito e configuragdes da memsria que desafiam e sufocam 0 sujeito que fala em nome da historia, A “historia” é precisamente o lugar onde a luta continua para se apropriar, em nome do modemo (minha Europa hiperreal), destas outras locatizagdes da memsria. Para ilustrar estas proposigdes, passarei a examinar agora um fragmento desta histéria contestada na qual a vida privada modema e o individuo modemo se mesclaram na india colonial” Iv O que apresentarei em seguida é o esbogo, por assim dizer, de um capitulo da historia da vida doméstica burguesa na Bengala colonial. O material — principalmente textos escritos em bengali entre 1850 1920 para ensinar as mulheres esse tema t&o vitoriano: a “eiéncia doméstica” — se refere 4 classe média hindu de Bengala, a biadralok ou “gente decente”. O regime britinico instituiu na vida indiana a divisto idealistica tricotdmica sobre o qual descansam as estruturas politicas modernas, ou seja, o Estado, a sociedade civil e a familia (burgnesa). Por isto nao é surpresa que as ideias relacionadas com a vida doméstiea, a privacidade e o individualismo burgués chegaram a india através do regime britinico. Entretanto, o que quero destacar aqui com o exemplo da bhadratok, sto certas operagdes culturais por meio das quais os “indianos” desafiaram e modificaram estas ideias recebidas de tal maneira que puseram em diivida dois postulados fundamentais que sustentam a nogio de “modemidade” ~ a familia nuclear baseada no matriménio como sociedade e a construgio secular e histérica do tempo. Como tem mostrado Meredith Borthwick, Ghulam Murshid e outros académicos, a ideia europeia setecentista de “civilizagao” culminou, na india do inicio do século XIX, em uma madura critica imperialista a vida doméstica indiana-hindu, na qual se considerava, entio, inferior o que se tomaram os ideais da vida doméstica burguesa de meados da época vitoriana™, A questo da “condigao das mulheres” na india novecentista era parte desta critica, assim como as ideias de individuo “modemo”, “liberdade”, “igualdade” ¢ “direitos”. Em passagens notiveis por sua 29 Ver um exame mais detalhado do que se segue em meu texto “Colonial Rule and the Domestic Order”, que aparecer ‘em David Amold y David Hardiman, eds., Subaltern Studies, vol. 8. 30 Meredith Borthwick, The Changing Role of Women in Bengal, 1849-1905, Princeton, N. J, 1984; Ghulam Murshid, Reluctant Debutante: Response of Bengali Women to Modemisation, 1849-1905, Rajshahi, 1983. Sobre a histéria da palavra civilizagao, ver Lucien Febvre, “Civilization: Evolution of a Word and a Group of Ideas”, in Peter Burke, ed., A ‘New Kind of History: From the Writings of Febvre, traduecién de K. Folea, Londres, 1973, pp. 219-287. Devo esta referéncia & Peter Sahlins. combinagio de igualitarismo e orientalismo, James Mill em seu The History of British India (1817) juntava a tematica familia e a tematica nag&o com a teleologia da “liberdade”. A condigGo das mulheres é uma das circunstancias mais notaveis nos costumes das nagdes [...]. A histéria das aces incultas representa uniformemente as mulheres em um estado de abjeta escravidao, da qual emergem lentamente na medida que a civilizagao avanga [..]. A medida em que a sociedade se refina com 0 desfiute de suas conguistas [...] a condigdo do sexo débil pouco a pouco methora, até que se associa em condigdes de igualdade com o homem ¢ ocupa o lugar de ausiliar voluntério e itil. Um estado de dependéncia mais estrito e Inumilhante que este est estipulado para o sexo débil, entre os hindus dificilmente pode ser concebido.* Como ¢ bem conhecido, em geral as classes médias da india sentem uma responsabilidade nesta acusagao, Do inicio do século XIX em diante, se desenvolveu em Bengala (¢ em outras regides) um movimento para reformar as “condigdes das mulheres” ¢ para Ihes dar uma educagio formal. Grande parte deste discurso sobre a educagao das mulheres era emaneipacionista na medida ‘que falava a linguagem da “liberdade”, da “igualdade” e do “despertar”, e recebia a forte influéncia dos ideais ruskinianos ¢ da idealizagio da vida doméstica burguesa®. Se alguém vé esta historia como parte da histéria do individuo moderno na India, entéo temos ai o surgimento de uma caracteristica interessante. E que nesta literatura sobre a educagao das mulheres, certos termos, no final das contas, eram mais discutidos acaloradamente do que outros. Por exemplo, havia um grat de consenso sobre a a conveniéucia da “disciplina” e “higiene” doméstica como pritieas que refletiam um estado modemo, mas a palavta liberdade, sendo um outro termo importante da retérica do modemo, apenas funcionava no indicador de tal consenso social, Era uma palavra que era discutida apaixonadamente ¢ nos equivocariamos se acreditassemos que as paixdes refletiam uma simples ¢ aberta batalha entre os sexos, A dita palavra ficou assimilada a necessidade nacionalista de constmir fronteiras culturais que supostamente separavam o “enropeu” do indiano”. A disputa sobre esta palavra, assim, foi central para as estratégias discursivas, segundo as quais se criou uma posigao de sujeito que permitia ao “indiano” falar. E esta posigao de sujeito que quero examinar aqui com mais detalhe © qne a literatura bengali sobre a edncagaio das mulheres encenava era uma batalha entre a construgiio nacionalista de uma norma cultural da familia patriareal, patvilocal, patrilinear e estendida, eo ideal de uma familia patriareal, burguesa e nuclear que estava implicito no diseurso europet-imperialista-universalista sobre as “liberdades” do individualismo, da cidadania e da sociedade civil”, Os temas da “disciplina” e da “ordem” eram criticos na hora de dar forma as 31 James Mill, The History of British India, vol. 1, editado por H. H. Wilson, Londres, 1840, pp. 309-310. 32 Borthwick, Changing Role 33 O texto clissico em que esta suposigdo tem sido trabalhada até se converter em uma filosofia foi Philosophy of Right de Hegel, tradugto de T. M. Knox, Oxford, 1967, pp. 110-122. Ver também Joanna Hodge, “Women and the Hegelian State”, in Ellen Kennedy y Susan Mendus, editores, Women in Western Philosophy, Brighton, Ingl., 1987, pp. 127-158; Simon During, “Rouseau's Heirs: Primitivism, Romance, and Other Relations Between the Modem and the ‘Nonmodemn”; Joan B, Landes, Women and the Public Sphere in the Age of the French Revolution, Ithaca, N. ¥., 1988; fantasias nacionalistas da arte e do poder. A “disciplina” era vista como a chave do poder do Estado colonial (quer dizer, modemo), mas requeria certos procedimentos para redefinir 0 eu, Dizia-se que os britanicos eram poderosos porque eram disciplinados, ordeiros e pontuais em tudo e em cada um dos detalhes de suas vidas, ¢ isto era possivel devido a edueagao de “suas” mulheres, sob as quais aportavam o valor e as virtudes da disciplina, A partir dai a familia “indiana”, uma construgio colonial, ficava mal pontuada nos escritos nacionalistas sobre a vida doméstica modema, Para citar um texto bengali sobre a educagdo das mulheres publieado em 1877: O lar de qualquer europen civilizado & com a morada dos denses. Cada objeto da casa esta limpo, disposto em seu lugar € decorado: nada parece sujo ou fede [..]. como se [a deusa] da ordem [srinkhala, “ordem, disciplina”: srinkhal. “cadeia”] tivesse manifestado para se comprazer a vista [dos homens]. No centro da habitagdo haveré uma mesa com toalha ¢ com um ramo de flores acima, enquanto que a0 seu redor havera [algumas] cadciras acomodadas com esmero [¢] tudo brilhando de tanta limpeza. Mas entre em uma casa de nosso pais e sentir’ como se seu destino tivesse te transportado para 4 para pagar por todos os pecados de sua vida. [Lim monte de] esterco que tortura os sentidos [..] pé voando no ar. cinzas acummtladas por ai, moscas voando por toda parte [..]. tima crianca melequenta urinando no solo ¢ levando a terra timida a boca [...]. Todo o lugar est dominado pelo fedor que parece andar solto por toda parte [...]. Néo ha ordem em nenhum lado, todos os objetos da casa esto tio sujos que sO provocam asco."* Esta divisio do eu do sujeito colonial, o movimento duplo de reconhecimento pelo qual conhece seu “presente” como o lugar da desordem e, nao obstante, por onde também se separa deste espago ao desejar uma disciplina que s6 pode existir em um futuro imaginado mas historico, é uma repetigao, no contexto da discussao da vida doméstica burguesa na india colonial, da narragio da fransigao que temos visto. Em outras palavras, uma construgao historiea da temporalidade (medieval-moderna, separadas pelo tempo) 6 precisamente o eixo sobre o qual 0 sujeito colonial se separa de si mesmo, Falando de outra forma, esta separagaio & a propria historia; a eserita da historia ‘executa tal separagdio sem cessar. © desejo da ordem e da disciplina na esfera doméstica pode ser vista, assim, como un correlato do desejo nacionalista, modernizador, de uma disciplina similar na esfera piblica, ou seja, como um respeito a lei estabelecida pelo Estado, Aprofundar neste ponto ultrapassa os limites deste enisaio, mas a conexto entre disciplina pessoal e a disciplina na vida publica foi revelado no que os nacionalistas escreveram sobre a higiene doméstica e a satide piblica. A conexto & reconhecivelmente modemizadora e € 0 que o indiano modemo compartila com 0 europeu modemo”. Entretanto, 0 que quero ressaltar sao as diferengas entre ambos. E passo agora ao outro importante aspecto do europeu modemo, a retérica da “liberdade” e da “igualdade”. © argumento sobre a “liberdade” — nos textos que vamos tratar — era discutido em tomo da Mary Ryan, Women, in Public: Between Banners ané Ballots, 1825-1880, Baltimore, 1990. 34 Anénimo, Streesiksha, vol. 1, Caleuta, 1877, pp. 28-29. 435 Desenvolvo este argumento de forma mais detalhada em Dipesh Chakrabarty, “Open Space/Publie Place: Garbage, ‘Modernity, and India”, South Asia. questo dos ideais vitorianos do matriménio como sociedade (companionate’), quer dizer, em volta da questio de se a esposa devia ser também uma amiga do esposo ou nao, Nada ameagava mais 0 ideal da familia estendida bengali-indiana (ou a exaltada posigao da sogra nessa estrutura) que esta ideia envolta de nogdes da vida privada burguesa, segundo as quais a esposa também devia ser uma amiga, ou para dizer de outro modo, a mulher devia ser agora um individuo modemo. Devo meneionar aqui que © individuo modemo, que afirma sua individualidade acima dos reclames da familia conjunta ou estendida, quase sempre aparece na literatura bengali do final do século XIX e do inicio do XX como uma figura inquietada por problemas, amitide tema de zombaria e desprezo na mesma narrativa e ensaistica bengali que exaltava as vistudes da disciplina e da racionalidade cientifica na vida pessoal e publica. Esta ironia tinha muitas expressdes. O personagem literério bengali mais conhecido que representa esta censura moral da individualidade moderna ¢ Nimchand Datta na obra teatal Sadhabar ekadashi (1866) de Dinabandhu Mitra. Nimchand, que recebia educagiio inglesa, faz citagdes de Shakespeare, Milton ou Locke na menor oportunidade ¢ usa sua edueagio com arogancia para ignorar seus deveres junto a sua familia estendida, encontra sua indignagao com o mundo no alcool e na huxiria. Esta relagio metonimica entre o amor a educagao “modema” inglesa (que simbolizava o individuo roméntico na Bengala oitocentista) e 0 escorregadio caminho do alcoolismo fica sugerida na obra mediante uma conversagao entre Nimchand e um funcionario bengali da burocracia colonial, um delegado magistrado. O soberbo arrogante de seu dominio do inglés nao tarda em derivar inevitavelmente ao tema das copas (sindnimo, para a cultura da classe média bengali da época, de decadéncia absoluta): Leio inglés, escrevo inglés, echpechifico em inglés, penso em inglés, sonho em inglés — note-se que nao sao criancices — agora me diga, meu bom amigo, o que gostaria de tomar? — Rosé para as damas, Porto para os cavalheitos ¢ Conhaque para os herois.* Uma conexao similar entre o individuo modemo, “livre”, ¢ © egoismo também se fazia presente na literatura sobre educagio feminina. A construgio era descaradamente nacionalista (¢ patriarcal). A liberdade era usada para marcar uma diferenga entre aquele que era “indiana” e o que era “europeu-inglés”, A mulher ultra livre se comportava como uma mensahib (mulher europeia), egoista e desenvergonhada. Como diria Kundamala Devi, uma mulher que esctevia para a revista feminina Bamabodhini patrika, em 1870: “Oh, minhas queridas! Se temos alcangado o verdadeiro conhecimento, entio nao deem lugar em seus coragdes para 0 comportamento da memsahib. Isto nao é proprio de uma ama da casa bengali”. A ideia da “verdadeira modéstia” era utilizada para armar esta imagem da “verdadeira” mulher bengali. Em 1920, Indira Devi dedicaria sua Narir ukti * Termo que designa a qualidade de companheiro. Casamento reslizado entre pessoas que sto amigas (N:T). 36 Dinabandhu racanabali, editado por Kshetra Gupta, Calcuta, 1981, p. 138. 37 Borthwick, Changing Role, p. 105. 38 Examino esta questio com mais profundidade em Chakrabarty, “Colonial Rule”. (Uma mulher fala) — curiosamente se trata de uma defesa do modo de ser da mulher bengali modema contra as eriticas de eseritores (em sua maior parte vinda dos homens) — as geragdes de mulheres bengali ideais, as quais ela escreve: “Impavidas ante a natureza, de placidas palavras, incansdvel em seu espirito de servigo [aos demais}, negligente até em seus proprios prazeres, [enquanto que] se comovia com facilidade pelo softimento dos demais, e capaz de contentarse com muito pouco™, Este modelo da mulher bengali/indiana “modema” ~ suficientemente educada para apreciar as modemas regras do corpo e do Estado, mas suficientemente “modesta” para ser submissa e desprendida — estava ligado aos debates acerca da “liberdade”. A “liberdade” no Ocidente, segundo justificavam varios escritores, significava jathechahachar, fazer © que um queria, o direito a autocomplacéneia. Dizia-se na india, liberdade significava estar livre do ego, a capacidade de servir e obedecer voluntariamente. Note-se como os termos liberdade e escravidio mudam suas colocagées na seguinte citagao: Poder se subordinar aos demais ¢ ao dharma (dever-ordem moral-conduta correta] ] para libertar a alma da eseravidao dos sentidos sto as primeitas tarefas da liberdace humana [...]. E por isto que nas familia indianas os meninos ¢ as meninas se subordinam aos pais. a5 esposas a0s maridos e aos sogros, 0 discipuilo ao guru, 0 estudante ao professor [..]. 0 rei ao dharma J, © povo ao rei, € a dignidade e prestigio [proprios] a da commidade [samaj].” Ha um viés irénico nesta espécie de teoria que deve ser destacado. Fica bastante claro que esta teoria da “liberdade na obedigncia” nao se estendia aos empregados domésticos, que a mitide se mencionava nesta literatura como exemplo dos “verdadeiramente” atados; os nacionalistas pretendiam demonstrar que os observadores (europeus), que comentavam a condigaio atada das mulheres indianas, com frequéncia nao conseguiam apreciar esta distingio erucial (como arguiam alguns nacionalistas) entre a ama de casa e o servigo doméstico, E ébvio que os empregados nao estavam incluidos ainda na india na imaginaga0 nacionalista, Assim rezava 0 discurso bengali acerca da vida doméstica modema em uma época colonial onde o surgimento de uma sociedade civil e de um Estado quase modemo ja tinha introduzido as modemas questdes do “piblico” e do “privado” nas vidas da classe média bengali. As idées recues” burgnesas sobre a vida doméstiea e as conexdes entre o doméstico e o nacional se modificaram aqui de duas maneiras significativas. Uma estratégia, como tenho tentado demonstrar, era contrapor a norma cultural da familia estendida patriarcal aos ideais burgueses patriarcais do matriménio como sociedade, se oper ao novo patriarcado como uma versio redefinida do anterior (ou dos anteriores). Assim se combatia a ideia 39 Indira Devi, Nasir ukti, Caleuta, 1920, dedicatoria. 40 Deenanath Bandyopadhyay, Nanabishayak prabandha, Caleuta, 1887, pp. 30-31. Ver uma genealogia de como se ‘usavam os termos escravidao ¢ liberdade no discurso colonial da India britanica em Gyan Prakash, Bonded Histories: Genealogies of Labor Servitude in Colonial India, Cambridge, 1990. Termo usual no francés que representa uma opinido entre o esterestipo, o cliché e a banalidade. Pode ser erenga ou sabedoria popular (N.T.). da privacidade moderna. A outra estratégia, igualmente significativa, era mobilizar, em nome da familia estendida, as formas e figuragdes da membria coletiva que desafiavam, mesmo que de maneira ambigua, a separacio aparentemente absoluta do tempo “sagrado” e “secular” onde se baseava e se baseia a propria ideia modema (“europeia”) de historia’. A figura da mulher “verdadeiramente educada”, “verdadeiramente modesta” e “verdadeiramente indiana” adquire, nesta discusstio da educagio das mulheres, uma autoridade sagrada ao subordinar a questo da vida domeéstica as ideias religiosas da qualidade auspiciosa da mulher que unia o celestial ao humano em uma conceitualizagaio do tempo que 6 podia ser anti-histérica, Dizia-se que a verdadeiramente modema ama de casa seria to auspiciosa que marcaria o eterno retorne do principio eésmico encamado na deusa Lakshmi, a deusa do bem estar doméstico, em cujas gragas a familia estendida (@ 0 cla, @ até mesmo, com o prolongamento deste sentir, a nage, Bharatlakshmi) vivia e prosperava, Assim lemos em uma panfleto: “As mulheres sao as Lakshimis da comunidade, Se se empenham em se superar na esfera do dharma e do conhecimento [..] havera uma melhoria automatica da [qualidade de] vida social”. Lakshmi, considerada como a esposa do deus hindu Vishnu até 0 ano 400 4.C., durante muito tempo tem sido adorada no hindnismo popular, no panteismo cotidiano das familias hindus, como o modelo da esposa hindu, unida em completa harmonia com seu esposo (@ com sua familia) mediante uma submissto, uma lealdade, uma devogao e uma castidade voluntiria®. Quando a mulher nao era consequente com seus ideais era dito que a familia (estendida) e a linhagem familiar eram destruidas pelo espirito de Alakshmi (nao- Lakshmi), © inverso obscuro e malévolo do prinefpio de Lakshmi, Enquanto a educagaio das mutheres e a ideia da disciplina como tal raras vezes suscitavam oposighes neste discurso sobre 0 individuo modemo na Bengala colonial, era posto um limite no ponto em que a modemidade e a exigéncia de uma vida burguesa ameagavam o poder e o prazer da familia estendida, Nao ha diivida de que o sujeito falante aqui é nacionalista e patriareal, sujeito que emprega as degastadas categorias orientalistas de “Oriente” e “Ocidente™*, Entretanto, 0 que importa para nos slo as duas negagdes sob as quais descansa este momento particular de subjetividade: a negagao, ou a0 menos contestagao, da vida privada burguesa e, com igual importancia, a negagae do tempo historico a0 converter a familia no lugar onde o sagrado e o secular se fundiam em uma representagiio perpétua de um principio que era celestial e divino. De forma nenhuma o espago cultural invocado por este impulso anti-historico era harmonioso 41 Peter Burke, The Renaissance Sense of the Past, Londres, 1970. 42 Bikshuk [Chandrasekhar Sen], Ki holo!, Caleuta, 1876, p. 77. 43 David Kinsley, Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, Berkeley, 1988, pp. 19-31; Manomohan Basu, Hindu acar byabahar, Caleuta, 1873, p. 60; H. D. Bhattacharya, “Minor Religious Sects ea. C, Majumdar, editor, The History and Culture of the Indian People: The Age of Imperial Unity, vol. 2, Bombay, 1981, pp. 469-471; Upendransth Dhal, Goddess Lakshmi: Origin and Development, Delhi, 1978. A expresso ppanteismo cotidiano me foi sugerida por Gayatri Chakravorty Spivak (comunieagdo pessoal) 44 Veja o capitulo dedicado a Bankim em Chatterjee, Nationalist Thought. ‘ou estava livre de conflitos, mesmo quando o pensamento nacionalista se via obrigado a retrata-lo assim. As normas anti-historicas da familia estendida pattiarcal, por exemplo, s6 podiam ter uma existéncia debatida, contestada tanto pela Iuta das mulheres como pelas lutas das classes subalternas. Mas estas lutas n&o necessariamente seguem linhas que nos permitem construir narragdes de emancipagio pondo claramente de um lado os “patriarcais” e do outro os “liberais”. A. historia da individualidade “indiana” modema fica presa em demasiadas contradigdes para prestar semelhante tratamento, ‘Nao disponho aqui de espago para desenvolver este ponto, assim que me conformarei com um exemplo, Este exemplo tomarei da autobiografia de Ramabai Ranade, esposa do famoso reformista social do século XIX que chegou a presidéncia de Bombay, M. G. Renade. A luta de Ramabai Ranade para salvar seu respeito a si mesma em parte era contra a “velha” ordem patriarcal da familia estendida e em favor do “novo” patriarcado do matrimonio em sociedade, com o qual seu esposo de animos reformistas via como a forma de laco conjugal mais civilizada. Na busca deste ideal, Ramabai comegou a compartilhar o compromisso de seu esposo com a vida piblica e amitide tomaria parte (na década de 1880) de reunides e deliberagdes piiblicas de homens e mulheres reformistas. Como ela mesmo disse: “foi nestas reunides que soube o que era uma reuniao e como devia me conduzir em uma delas”™*. Contudo, curiosamente uma das principais fontes de oposigao aos esforgos de Ramabai eram (além dos homens) as demais mulheres de familia. Nao ha divida de que elas, a sogra e as irmas de seu esposo, falavam em nome da antiga familia estendida patriarcal. Mas ¢ muito instrutivo escutar suas vozes (segundo se translucidam no texto de Ramabai), pois também falavam em nome de seu préprio sentido de repeito a si mesmas e s suas proprias formas de luta contra os homens: [Nao deverias ir a essas retnides de verdade [disseram a Ramabai] [..]. Inclusive se os homens querem que faga estas coisas, deverias ignoré-los. Nao tens que dizer nao: mas no final de contas, nao precisa fazé-lo. Se dard por vencidos por puro abortecimento [...]. 14 estas fazendo mais do que as mulheres europeias, inclusive On isto: E cla mesmo [a Ramabai] que gosta desta frivolidade de acudir as reunides. Dada {o senhor Ranade] ndo parece 140 entusiasmado, Na verdade as mulheres no deveriam sentir a proporsao do quanto devem fazer? Se os homens mandam fazer cem coisas, as mulheres deveriam fazer dez a0 todo. E depois. 0s homens nao entendem de coisas praticas! [..] A boa mulher [no passado] nunca era to fiivola J. E por isto que esta enorme familia [...] poderia viver junta de maneira decente |. Mas agora tudo ¢ to diferente! Si Dada sugere uma coisa, esta mulher quer fazer ts. Como podemos viver entdo com um sentido de respeito & més mesmas como podemos agutentar tudo isto? (84-85) Estas vozes, ao combinar os temas contraditérios do uacionalismo, da ideologia do cla patriarcal, das lutas das mulheres contra os homens ¢ ao mesmo tempo oposta & amizade entre 45 Ranade: His Wife's Reminiscences, traduecién de Kusumavati Deshpande, Delhi, 1963, p. 77, maridos e esposa. nos lembram as profundas ambivaléncias que caracterizaram a trajetéria da vida privada modema e da individualidade burguesa na {ndia colonial. Nao obstante, os historiadores, mediante manobras que lembram o velho ardil “dialético” tirado da manga da “negagao da negagaio”, as arrumam para negar uma posigio de sujeito a esta voz de ambivaléneia. A evidéncia do {que se tem chamado “a negagao da vida privada burguesa e do sujeito histérico” é reconhecida, mas 6 subordinada em seus relatos com o propésito, supostamente mais elevado, de fazer com que a historia da india seja vista, a partir de ent&o, como um episédio maior da marcha universal e (desde seu ponto de vista, finalmente) vitoriosa na cidadania, no Estado-nagao e nos temas da emancipagio humana enunciados no curso da Ilustrag3o europeia. E a figura do cidadao que fala através destas historias. E enquanto assim for, minha Europa hipereal continuara regressando também na dominagao das histérias que contamos. “O modemo”, entdo, continuara sendo entendido, como tio acertadamente disse Meaghan Morris ao examinar seu proprio contexto australiano, “como uma historia conhecida, algo que ja tenha sido ocorido em outra parte e que se reproduziré, mecanicamente ou de outra forma, com um contetido local”. Isto s6 nos deixa com a tarefa de reproduzir 0 que Morris chama “o projeto da inoriginalidade positiva”*s Com tudo, a “originalidade” — aceito que nao é 0 termo mais adequado — das linguagens. mediante as quais tem sido levado a cabo as lutas no subcontinente indiano, amitide tem sido dada na esfera do nao-modemno. Nao é preciso analisar a ideologia do patriarcado clinico, por exemplo, para reconhecer que a metifora da familia estendida patriarcal e santificada foi um dos elementos mais importantes na politica cultural do nacionalismo indiano. Na luta contra 0 dominio britanico. amitide foi o uso desta linguagem — em cangdes, poemas e outras formas de mobilizagao nacionalista ~ o que permitiu aos “indianos” fabricar um sentido de comunidade e recuperar para si mesmos uma posigio de sujeito que se dirigisse aos britinicos. Tlustrarei isto com um exemplo tomado da vida de Gandhi, “pai da nagao”, para destacar a importancia politica desta manobra cultural por parte do “indiano”. ‘Meu exemplo se remonta ao ano de 1946, Houve em Caleuta horrorosos distiubios entre hindus e mugulmanos por conta da partilha do pais em india e Paquistao. Gandhi estava na cidade, jejuando em protesto contra © comportamento de seu proprio pove. E ele, enti, como um intelectual indiano lembra da experiéneia Os homens voltavam de seus escritorias pela tarde e falavam da comida preparada pela familia fou seja, pelas mulheres] feita para eles; mas prontamente se fazia evidente que as mullires da casa no haviam comido durante todo 0 dia 46 Meaghan Morris, “Metamorphoses at Sydney Tower", New Formations 11 (verano de 1990), p. 10. [Aparentemente] no tinham tido fome. Se insistisse, a esposa ou a mie confessaria que nao podia entender como podiam comer quando Gandhi estava morrendo pelos crimes praticados pot eles mesmos, Restaurantes ¢ centros de diversdo tinham pouca clientela; alguns deles fecharam voluntariamente por otdem de seus proprietérios [..]. O valor do sentimento tinha sido restabelecido, comegou a se sentir dor [..]. Gandhi. sabia quando comegar o processo de redengao..” Nao ha motivos para tomar esta deserigao de forma literal, mas a natureza da comunidade jimaginada nestas linhas fica clara. Funde, nas palavras de Gaytti Spivak, “o sentimento de comunidade que pertence aos encadeamentos e s organizagdes politicas nacionais” com “esse outro sentimento de comunidade cujo modelo estrutural é a familia [ou 0 cla estendido]™*. A histéria colonial indiana esta cheia de exemplos onde os indianos se arrogaram a posigo de sujeito para eles mesmos, precisamente ao mobilizar, dentro do contexto das instituigdes “modemas” e as vezes em nome do projeto modemizador do nacionalismo, instrumentos da memoria coletiva que exam (do anti-historicos como anti-modemos®, Isto nio significa negar a capacidade dos “indianos” para atuar como sujeitos armados com o que nés das universidades reconheceriamos como “um sentido da histéria” (o que Peter Burke chama “o renascimento do passado”), e sim insistir que ao mesmo tempo haviam também tendéncias contrarias, que em variadas lutas que tiveram lugar na india colonial, as construgdes anti-histéricas do passado amitide proporcionavam formas muito poderosas de meméria coletiva’™ Assim, existe este duplo vinewlo através do qual o sujeito da histéria “indiana” articula a si mesmo. Por um lado, é a0 mesmo tempo o sujeito € o objeto da modernidade, ja que simboliza uma suposta unidade chamada “o povo indiano” que sempre esta dividido em duas — uma elite modemizadora e um campesinato por modernizar. Como tal sujeito dividido, ele fala desde 0 interior de uma meta-namagdo que celebra 0 Estado-nagao; e desta meta-narragao o sujeito te6rico s6 pode ser uma “Europa” hiperreal, uma “Europa” coustruida pelos relatos que tanto o impetialismo como 0 nacionalismo tem contado aos colonizados. © estilo da auto-representagao que 0 “indiano” pode adotar aqui é 0 que Homi Bhabha tem chamado, com justeza, de estilo “mimético”™. A historia indiana, inclusive pelos punhos dos escritores socialistas ou nacionalistas mais dedicados, continua sendo uma imitagdo de um certo sujeito “modemo” da histéria “europeia” tem aspectos da busca por representar uma lamentavel figura de caréneia e fracasso. A narragio da 47 Amiya Chakravarty, citado por Bhikhu Parekh, Gandhi's Political Discourse, Londres, 1988, p. 163. 48 Gayatri Chakravorty Spivak, “Can the Subaltern Speak?”, en Cary Nelson y Lawrence Grossberg, eds., Marxism and the Interpretation of Culture, Urbana, TL, 1988, p. 277. 49 Veace Subaltem Studies, vols. 1-7, Delhi, 1982-1992: y Ashis Nandy, The Intimate Enemy: Loss and Recovery of Self Under Colonialism, Delhi, 1983. 50 Subaltern Studies, vols. 1-7. y Guha, Elementary Aspects. $1 Homi Bhabha, “Of Mimicry and Man: The Ambivalence of Colonial Discourse”, en Annette Michelson et al., eds.. October: The First Decade, 1976-1986 Cambridge, Mass., 1987, pp. 317-326 [em portugués ver BHABHA, Homi K. Da mimica e do homem — a ambivaléneia do Diseurso Colonail. In: O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 1998, p, 129-138 (N.T)]; e também Bhabha, editor, Nation and Narration, Londres, 1990. transigdio continnara sempre sendo “onerosamente incompleta” Por outro lado, as manobras sao levadas a cabo dentro do espago do “mimeético” — e dentro do projeto chamado histéria “indiana” — para representar a “diferenga” e a “originalidade” do “indiano”, e & por esta causa que os discursos se apropriam dos instrumentos anti-histérieos da memiria e das “historias” anti-histéricas das classes subaltemas. Assim, as construgies dos campesinos-trabalhadores de reinos “tmiticos” e de passados e futuros “miticos” encontram um lugar nos textos denominados histéria “indiana” precisamente através de um procedimento que subordina estas narragdes as regras da evidéncia e ao calendario secular, linear, que a escrita da “histéria” deve seguir. Por isto, o sujeito anti-histérico, anti-smodemo, no pode falar como “teoria” dentro dos procedimentos de conhecimento da universidade, inelusive quando estes procedimentos de conhecimento reconhecem e “documentam” sua existéncia, De forma muito parecida & categoria de “subalterno” de Spivak (ou o campesino do antropélogo que s6 pode ter uma existéncia citada em um enunciado mais amplo que s6 pertence ao proprio antropélogo), por este sujeito & deste sujeito s6 pode falar a narragio de transigao que sempre acabara por privilegiar 0 modemo (quer dizer, a “Europa”y Enquanto continnar operando dentro do discurso da “histéria” produzido na sede institucional da universidade, sera impossivel se distanciar do profundo conluio entre a “histéria” e a (as) narragao (naragdes) da cidadania, da vida publica e privada buguesa e do Estado-nagao. A “histéria” como um sistema de conhecimento esta firmemente embutido nas praticas institucionais que invocam 0 Estado-nagao a cada passo — veja por exemplo a organizagiio e a politica do ensino, selegao, promogao e publicagao dos departamentos de histéria, politicas que sobrevivem as ocasionais tentativas, valorosas e heroicas, de historiadores individuais de libertar a “histéria” da meta-narragao do Estado-nagao. Entao é preciso perguntar: Por que a histéria 6 uma matéria obrigatéria da educagao da pessoa modema em todos os paises hoje em dia, incluindo aqueles que deixaram comodamente de fazé-los até o fim do séeulo XVIII? Por que as criangas de todo 0 mudo hoje em dia devem the dar com uma assinatura chamada “histéria”, quando sabemos que esta obrigatoriedade nao é nem natural nem antiga?® Nao é preciso muita imaginago para perceber que a razio disto esta no que © imperialismo europeu e os nacionalismos tereeiromundistas tém feito juntos: a universalizagaio do Estado-nagao como a forma mais conveniente de comunidade politica. Os Estados-nagdes tém capacidade para fazer cumprir seus jogos de verdade, ¢ as universidades, apesar de sua distancia critica, so parte do conjunto de instituigdes ciumplices deste proceso. A “economia” ¢ a “historia” so as formas de conhecimento que corespondem as duas instituigoes 52 Spivak, “Can the Subaltern Speak?” Ver ainda a entrevista de Spivak publicads em Socialist Review 20, mimero 3 Gulio-septiembre de 1990), pp. 81-98. 53 Sobre a estrita conexdo entre as ideologias imperialistas o ensino da histéria na india colonial, ver Rangjit Guha, An Indian Historiography of India: A Nineteenth-Century Agenda and Its Implications, Calcvta, 1988. mais importantes que o surgimento (e mais tarde universalizagao) da ordem burguesa tem dado a0 mundo — 0 modo de produgao capitalista e © Estado-nagao (onde a “historia” fala a figura do cidadao)“. Um historiador critico nao tem maiores opgdes a0 nfo ser negociar este conhecimento. Ela ou ele precisa entender o Estado em seus proprios termos, quer dizer, em termos de suas narragdes auto-justificantes da cidadania e da modemidade, Como estes temas sempre nos farzio voltar as proposigdes universalistas da filosofia politica “moderna” (europea) — inclusive a ciéneia “pritica” da economia, que agora parece “natural” para nossas construgdes dos sistemas mundiais, um historiador esta (feoricamente) enraizada nas nogdes da ética da Europa do séeulo XVID terceiromundista esta condenado a conhecer a “Europa” como o lar original do “modemo”, enquanto que o historiador “europeu” nao compartilha uma categoria comparavel sobre os passados da maior parte da humanidade, Assim a subaltemidade cotidiana das histérias nao-ocidentais, com a qual comecei estas linhas, continua. Contudo, a compreenstio de que todos “nds” fazemos historia “europeia” com nossos arquivos, diferentes e apesar de nao europeus, di Ingar a possibilidade de uma politica e de um projeto de alianga entre as histérias dominantes da metropole e os passadas subalternos periféricos. Chamemos a este projeto de provineializagao® da “Europa”, a “Europa” que © imperialismo moderno e o nacionalismo (terceiromundista), mediante suas agéncias e violéncias conjuntas, tomaram universal. Filosoficamente, este projeto deve arrancar do findamento de uma critica e de uma transcendéncia radical do liberalismo (quer dizer, das construgdes burocraticas da cidadania, do Estado moderno e da vida privada burguesa que a filosofia elissica produz), fundamento compartilhado nos Itimos eseritos de Marx e em certos momentos tanto do pensamento pés- estruturalista como da filosofia feminista. Em particular, © amparo da valiosa declaragao de Carole Pateman — em seu livro The Sexual Contract — me faria afirmar que a concepgao do indi modemo pertence as categorias patriarcais do pensamento™”. vi O projeto de provineializar a “Europa” se refere & uma hist6ria que, contudo, no existe; por tanto, s6 pode falar do tempo do projeto até o futuro, Entretanto, para evitar um entendimento Sem implicar em todo este argumento, existem paralelos aqui entre minha declaragio e 0 que Gyan Prakash y Nicholas Dirks disseram em outro lugar. Ver Gyan Prakash, “Writing Post-Orientalist Histories of the Third World Perspectives from Indian Historiography”, Comparative Studies in Society and History 32, nimero 2 (abril de 1990), pp. 383-408; Nicholas B. Dirks, “History as a Sign of the Modem”, Publie Culture 2, nimero 2 (primavera de 1990), pp. 25-33, 55 Ver Amartya Kumar Sen, Of Ethics and Economies, Oxford, 1987, En A History of Japanese Economic Thought, ‘Tessa Morris-Suzuki faz uma interessante leitura sobre este aspecto, Agradego a Gavan McComack por ele ter cchamado minha atengao para este livro. 56 No original provincializing. Provincializar é um verbo que pode significar “por sob controle ou influéncia de provineia” o “tomar provincial ou provineiano” [Nota da edigdo espanhola), 57 Carole Patemian, The Sexual Contract, Stanford, Calif, 1988, p. 184. equivocado do que se segue. devo dizer explicitamente o que no é, enquanto esbogo o que poderia set. Para comegar. nao se pede uma recusa simplista, indiscriminada da modernidade. dos valores liberais, universais, da ciéneia, da razio, das narragdes onimodas, das explicagoes totais, ete. Fredric Jameson recentemente nos fez recordar que a facil comparagao feita com fiequéncia entre “uma concepgiio filoséfica de totalidade” e “uma pratiea politica do totalitarismo” 6 “fimesta”* O que intervem entre as duas coisas & a historia — lutas contraditérias, plurais e heterogéneas cujos resultados nunca sio prediziveis, nem sequer em retrospectiva, de acordo com esquemas que buscam naturalizar e domesticar esta heterogeneidade. Estas lutas incluem a coergao (tanto em nome como contraria 4 modemidade) — violéncia fisica, institucional e simbélica, apesar de administrada com um idealismo absorto — e € esta violéucia que tem um papel decisive no estabelecimento do significado, na criagao dos regimes de verdade, ao decidir, por assim dizer, quais “universais”, e de quem, ganham. Como intelectuais atuantes na academia, no somos neutros nestas lutas e no podemos pretender nos situar fora dos procedimentos de conhecimento de nossas instituigdes. O projeto de provineializar a “Europa”, por isto, nao pode ser um projeto de “telativismo cultural”. Nao se pode nascer da postura que eré que a razdo-ciéneia-universais que ajudam a definir a Europa como o modemo sto sensivelmente de uma natureza cultural especifica e pertencentes apenas ais culturas europeias. Nao se trata de mostrar que o racionalismo da Ilustragio sempre é imacional em si mesmo, e sim de documentar como ~ mediante quais processos histéricos — sua “razao”, que nem sempre foi evidente para todos. tem sido apresentada de maneira que se vé como “obvia” para além dos terrenos em que se originou, Se um lingua, como se diz, nao é nada mais do que um dialeto respaldado por um exéreito, 0 mesmo poderia se dizer das narragdes da “modemidade” que, atualmente quase de maneira universal, assinalam uma certa “Europa” como 0 habitat primario do moderno. E demonstravel que esta Europa, como o “Ocidente”, é uma entidade imaginaria, mas a demonstrag3o como tal nao diminui seus atratives ou poder. © projeto de provineializar a”Europa” tem que ineluir alguns adicionais: 1) 0 reconhecimento de que a atribuigao por parte da Europa do adjetivo modemo para ela mesma ¢ uma pega da histéria global, que é uma parte integrante do relato do imperialismo europeu; 2) ¢ a compreensio de que esta comparagio de uma certa visio da Europa com a “modemidade” nio & obra exclusiva dos europeus; 0s nacioualismos terceiromundistas , como ideologias modemizadoras par excellence, sio sécios com partes ignais neste processo. Nao pretendo passar superficialmente os momentos anti-imperialistas nas trajetérias destes nacionalismos; s6 ressalto que o projeto de provincializar a “Europa” nao pode ser um 58 Fredric Jameson, “Cognitive Mapping”, in Nelson y Grossberg, Marxism and the Interpretation of Culture, p. 384. projeto nacionalista, autoctonista on atavista. Ao desenvolver o inevitavel enredo da histéria — uma forma disciplinada e institucionalmente regulamentada de meméria coletiva — com as narragdes alobais dos “direitos”, da “cidadania”, do Estado-nagao, das esferas * ” @ “privada”, nao se pode expor a problemitica da “India” ao mesmo tempo que desmantela a “Europa”. A ideia & escrever na historia da modernidade as ambivaléneias, contradigdes, uso da forga e das tragédias das ironias que a acompanham. E inegavel que a retérica e as reivindicagdes de igualdade (burguesa), de direitos dos cidadaos, da auto-determinagio mediante um Estado-nagao soberano, em muitas circunstincia dao poder em suas lutas a grupos sociais marginalizados — este reconhecimento é indispensivel para o projeto de Subaltern Studies. Contudo, o que de fato tem importancia nas historias que implicitamente ou explicitamente celebram © advento do Estado modemo e da ideia da cidadania, ¢ a represso e a violencia que séo feramentas to importantes na vitéria do modemo como o poder de convencimento de suas estratégias retérieas. Nao existe lugar onde esta ironia — os fimdamentos antidemocriticos da “democracia” — seja mais visivel que na historia da medicina modema, da higiene publica e da higiene pessoal, cujos discursos foram centtais na localizagaio do corpo do modemo na interse¢ao do piiblico e do privado (tal como fica definido pelo Estado e sujeito as negociagdes com este). Contudo, o triunfo deste discurso sempre dependeu da mobilizagao, em seu nome, de meios efetivos de coergio fisica. Digo “sempre” porque esta coergao € tanto originéria-fundacional (ou seja, histérica) como pandémica e cotidiana. Da violéncia fundacional, David Amold di um bom exemplo em seu recente ensaio sobre a histria do crcere na india. A eoergao da prisio colonial, como mostra Amold, era parte integrante de algumas das primeiras e pioneiras investigagoes sobre as estatisticas médicas, nutricionistas, e demogrificas da fndia, pois a prisdo foi onde os corpos indianos estavam a disposigao dos investigadores que promoviam a modernizagao™. Da coagao que continua em nome da nagao e da modernidade, tomo um exemplo recente da campanha indiana na erradicagto da variola nos anos setenta. Dois médicos estadunidenses (um deles presumivelmente de origem “indiana”) que participaram no processo descrevem desta maneira suas operagdes em uma aldeia da tribo Ho no estado indiano de Bihar: Na metade da serena noite indiana, um intruso itrompeu através da porta de bambu da humilde choca de adobe. Era um vacinador do governo com ordens de combater a resisténcia 4 vacina contra a variola. Lakshmi Singh se despertou gritando corren como péde para se esconder. Seu esposo saltou da calam, tomou um machado, € botow o intruso para frente da casa. Lé fora havia um esquadtiio de médicos ¢ policiais que imediatamente subjugaram Mohan Singh. Logo quando 0 deitaram no cho, outro vacinador injetou a Vacina contra a variola em seu braco. ‘Mohan Singh, um magro ¢ forte dirigente da tribo Ho, de quarenta anos de idade, retorcent seu brago para tirar a agulha, fazendo com que a picada sangrasse. A quadrilha do governo o sujeitou até que conseguiram injetar suficientemente a vacina [...]. Enquanto dois policiais o repreendiam, o resto da quadrilha submeteu o 59 David Amold, “The Colonial Prison; Power, Knowledge, and Penology in Nineteenth-Century India”, en Amold y Hardiman, Subaltem Studies, vol. 8. Examine alguns deste aspectos em umn atigo em Bangala: Dipesh Chakrabarty. “Sari, samgj 0 rashtra: Oupanibeshlsbharate madhamario jonasangslriti”, Anvstp, 1988, resto da familia e vacinou cada membro, um por um. Lakshmi Singh mordeu com forca a mao de um dos médicos, mas nao adiantou de nada. Nao é possivel ignorar o idealismo que acompanha esta violéncia. O subtitulo do artigo em questo inconscientemente reproduz os instintos tanto militares como de beneficéncia da empresa: “como um exército de samaritanos expulsou a variola da terra” ‘As histéria que tratam de deslocar uma Europa hiperreal do centro até onde toda imaginagao historica gravita atualmente, terao de buscar sem descanso esta conexio entre a violéncia e 0 idealismo que age no coracao do processo onde as narragées da cidadania e da modernidade chegam a encontrar um lar-natural na “historia”. Tenho aqui uma discordaneia fundamental com a postura assumida por Richard Rorty em um debate com Jtirgen Habermas. Rorty critica Habermas por que este esta convieto “que o relato da filosofia modema é uma parte importante do relato das, tentativas das sociedades democraticas de wanquilizar suas cousciéueias”®. A declaragdo de Rorty consequente com a pritica de muitos europefstas que falam das histérias destas “sociedades democriticas” como se estas fossem historias auténomas, completas em si mesmas, como se a autoconstrugao do Ocidente fosse algo que ocorrett somente dentro das fronteiras geogrifieas que se fez para si mesmo. Por assim dizer, Rorty ignora © papel que o “teatro colonial” (tanto externo ‘como intemmo) ~ onde o tema da “liberdade” tal e como definido pela filosofia politica moderma, era invocado constantemente em auxilio as ideias de “civilizagto”, “progresso” e, mais tarde, de “desenvolvimento” — tem no processo de gerar esta “tranquilidade”. A tarefa, como se vé, sera combater estas ideias que legitimam o Estado modemo ¢ sua comitiva de instituigdes, para que retome a filosofia politica — da mesma maneira em que moedas suspeitas regressam a seus donos em um bazar indianos — suas categorias, cujo curso legal mundial jé nao pode se dar por assentado® E por iiltimo — como a “Europa”, depois de tudo, nao pode ser provincializada dentro da sede institucional da universidade, cujos protocolos de conhecimento sempre nos levaram de volta ao terreno onde todos os contomos seguem os de minha Europa hiperreal — 0 projeto de provincializar a Europa deve ser realizado dentro de sua propria impossibilidade. Este projeto contempla uma histéria que encarna esta politica da desesperanga. E deve ficar claro neste ponto que nao pego um relativismo cultural ou histérias atavistas, nativistas. Tampouco se trata de um programa para uma simples recusa da modemidade, o que seria, em muitas situagées, um suicidio politico. Pego uma historia que deliberadamente tome visivel, dentro da mesma estrutura de suas formas narrativas, 60 Lawrence Brilliant e Girja Brilliant, “Death for a Killer Disease”, Quest, mayo-junio de 1978, p. 3. Devo esta 6 Richard Ror "aberies and Lyotard on Postmodeniy in Richard. Bemstin, ety, Habemnas and Modem. ‘Cambridge, Mass., 1986, p. 169. 62 Ver uma leitura interessante e que revisa Hegel neste sentido no debate entre Charles Taylor e Partha Chatterjee em Public Culture 3, nimero 1 (1990). Meu livro Rethinking Working-Class History tenta abr um brecha nesta direcdo. suas proprias estratégias e priticas de repressiio, o papel que tem em conluio com as narragdes de cidadania ao se assimilar aos projetos do Estado modemo, colocando-o acima de todas as demais possibilidades de solidariedade humana. A politica da desesperanga precisara de uma histéria_ que esclarega a seus leitores as raz6es de por que semelhante categoria 6 necessariamente ineludivel. Trata-se de uma historia que tratard o impossivel: olhar até sua propria morte para rastrear aquilo que resiste e escapa ao melhor esforgo humano de tradugao através de sistemas culturais ou outro tipo de sistemas semidticos, para que o mundo possa uma vez mais ser imaginado como profundamente heterogéneo. Isto, como tenho afirmado, & impossivel dentro dos protocolos de conhecimento da historia académica, pois a globalidade do mundo académico nao é independente da globalidade que a categoria europeia do modemno tem eriado. Tentar provineializar esta “Ewopa” € ver o modemo como inevitavelmente contestado, ¢ escrever em cima das namragdes dadas privilegiadas da cidadania outras narragdes das conexSes humanas que se alimentam dos passados e dos futuros sonhados, onde as coletividades nao se definem pelos rituais da cidadania nem pelo pesadelo da “tradigao” que € criada pela “modemidade”. Desde ja, nio existe sedes (infia)estruturais em que tais sonhos podem habitar. Apesar disto, estes sonhos se repetirtio enquanto os temas da cidadania e do Estado-nagao continnam dominando nossas narragdes da transigio histérica, pois estes sonhos sao 0 que o modemno reprime para poder existir

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