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PEDRO AUGUSTO GRAVATÁ NICOLI

A CONDIÇÃO JURÍDICA DO
TRABALHADOR IMIGRANTE NO
DIREITO BRASILEIRO

BELO HORIZONTE
FACULDADE DE DIREITO DA UFMG
JULHO DE 2010

 
PEDRO AUGUSTO GRAVATÁ NICOLI

A CONDIÇÃO JURÍDICA DO
TRABALHADOR IMIGRANTE NO
DIREITO BRASILEIRO

Dissertação de Mestrado em Direito


apresentada, sob a orientação da Professora
Doutora GABRIELA NEVES DELGADO, ao
Programa de Pós-Graduação em Direito da
Faculdade de Direito da Universidade Federal
de Minas Gerais.

BELO HORIZONTE
FACULDADE DE DIREITO DA UFMG
JULHO DE 2010

 
A dissertação intitulada A condição jurídica do trabalhador imigrante no Direito brasileiro, de
autoria do mestrando PEDRO AUGUSTO GRAVATÁ NICOLI, foi considerada
________________________ pela banca examinadora, composta pelos seguintes
Professores Doutores:

__________________________________________________
PROFESSORA DOUTORA GABRIELA NEVES DELGADO

__________________________________________________

__________________________________________________

Belo Horizonte, ______ de ____________________ de 2010.

 
Aos meus pais, FERNANDO e LETÍCIA,
com amor e gratidão infinitos.

 
AGRADECIMENTOS

Com a ajuda de muitas mãos este trabalho foi construído. Algumas me


foram estendidas intelectualmente, enquanto outras me afagaram, aplacando minhas
ansiedades e enchendo de significado esta etapa de minha jornada acadêmica. Por
isso, agradecer é não só uma obrigação, mas uma enorme alegria.

À PROFESSORA DOUTORA GABRIELA NEVES DELGADO, orientadora desta


pesquisa, por conduzir os trabalhos com virtudes da maior nobreza, características
de sua personalidade única. Por ter me acolhido, fazendo-se, ao mesmo tempo,
terna e firme, em uma orientação precisa, que reflete a verdade com a qual trata a
vida acadêmica e o Direito do Trabalho.

À PROFESSORA DOUTORA DANIELA MURADAS REIS, a quem devo tudo,


por me reconduzir sempre aos caminhos do Direito do Trabalho, por acreditar em
mim e me agraciar com doses fartas de seu brilhantismo, mantendo presença
sempre decisiva em minha vida. E pela amizade, acima de tudo, que me é tão cara.

Ao PROFESSOR DOUTOR ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA, que conduz com


maestria a cátedra em nossa Faculdade, fazendo-se tradição e vanguarda na luta por
promover a universalização da proteção ao trabalho. Também aos PROFESSORES
DOUTORES MÁRCIO TÚLIO VIANA e ADRIANA GOULART DE SENA pelas
oportunidades de diálogo e trabalho.

Ao PROFESSOR DOUTOR JOSÉ LUIZ BORGES HORTA, sempre tão


fundamental na minha vida, por ter me iniciado nos caminhos da Academia e por
manter renovado voto de confiança e amizade.

 
Aos Professores, funcionários, colegas e alunos da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais, em especial do Programa de Pós-Graduação
em Direito, por me proporcionarem anos de rico debate e momentos intensos.

Aos membros da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito


(AMPD), amigos queridos, por se engajarem por tão digna causa e não se
contentarem com nada menos do que a excelência. Em especial aos amigos
GUSTAVO SILVEIRA SIQUEIRA, PEDRO HENRIQUE CORDEIRO LIMA, JOÃO PAULO
MEDEIROS ARAÚJO, FELIPE BAMBIRRA, NATHÁLIA LIPOVETSKY, JOSÉ DE
MAGALHÃES e NARA PEREIRA CARVALHO.

Aos colegas do Direito do Trabalho, em especial à LILIAN KATIUSCA


MELO NOGUEIRA e SÂMARA ELLER RIOS, pela interlocução, pela amizade e por
tudo o que ainda virá.

Ao DOUTOR GILBERTO JOSÉ VAZ, pelas oportunidades e por dividir


comigo sua experiência de vida e trabalho, acreditando em mim como profissional e
pessoa. Também aos colegas de escritório, em especial à RENATA FARIA SILVA
LIMA, ROBERTO CANÇADO VASCONCELOS NOVAIS, PAULA LEITE, LUCAS DINIZ e
LILIAN MENDONÇA, pelo apoio constante e pela amizade.

Aos meus amigos tão queridos, que me ajudam de todas as formas e fazem
de mim uma pessoa melhor, com meu sincero amor e gratidão, em especial ao
THIAGO, meu irmão para toda vida, PAULA GABRIELA, MARCELO CAETANO,
CRISTIAN, GLÁUCIA e MARIA CLARA.

À minha família, que é a minha vida. Aos meus pais, FERNANDO e


LETÍCIA, a quem dedico este trabalho, por tudo. Aos meus irmãos ÁTILA e DIOGO,
por serem amigos e companheiros, e às minhas cunhadas, ANA PAULA e MARIA

 
CAROLINA, por agregarem tanto à nossa vida e se fazerem verdadeira irmãs. E, em
especial à minha irmã RENATA, alma das mais virtuosas que conheço, a quem
devoto toda a minha admiração e respeito, com amor profundo.

À minha segunda família, os MACIEL RAMOS, em especial à ELIANE, ANA


PAULA e CRISTIANE, por me receberem de coração aberto, me fazendo filho e
irmão, com tanto carinho.

E ao MARCELO, meu maior entusiasta, que me desafia intelectualmente, me


apoia e faz tudo se tornar possível. Por me proporcionar e renovar diariamente a
experiência mais extraordinária de uma vida.

 
RESUMO

A presente pesquisa trata da condição jurídica do trabalhador imigrante no Direito


brasileiro, abordando os principais aspectos referentes ao seu tratamento
justrabalhista. Com base na ideia de universalização da proteção ao trabalho — concebida
nas matrizes filosóficas da dignidade da pessoa humana — postula-se que o
imigrante, em condição de regularidade ou irregularidade migratória, merece
proteção jurídica quanto ao trabalho que prestou. Analisam-se, então, as principais
diretrizes normativas no plano internacional sobre a proteção ao trabalho, sobre a
não discriminação, além da regulação específica da questão migratória. Trata-se,
também, da história da formação dos padrões normativos brasileiros no tema, sob a
influência da própria dinâmica dos fluxos migratórios para o Brasil ao longo do
tempo, além do atual quadro da regulação migratória. Destaque é dado aos
chamados imigrantes indocumentados, concluindo-se pela sua necessária proteção
trabalhista, à luz de toda a regulação internacional e através da aplicação plena da
teoria trabalhista das nulidades aos contratos de emprego por eles celebrados. Ainda
no contexto dos indocumentados, analisa-se a necessidade de combate ao tráfico de
pessoas e de migrantes e ao trabalho em condição análoga à de escravo. Reafirma-
se, assim, a necessária proteção da dignidade do trabalhador, que não pode ser
preterida.

ABSTRACT

This research deals with the legal condition of migrant workers under Brazilian Law,
addressing the main aspects concerning the treatment given to them by Labor Law.
Based upon the idea of universalizing the protection of labor — conceived in the
philosophical framework of the human dignity — it is postulated that immigrants,
either regular or irregular in terms of immigration status, deserve legal protection as
to the work by them performed. Then, the main legal guidelines at the international
level on the protection of labor, nondiscrimination and specific regulation of the
migration issue are analyzed. Additionally, the history of the formation of the
normative standards in Brazilian on that subject is examined, under the influence of
migration flows to Brazil over time, besides the current regulatory framework of
migration. Emphasis is given to the so-called undocumented immigrants, to reach
the conclusion that the labor protection is mandatory, under the light of the
international norms and through the total incidence of the Labor Law theory of
nullities to the employment contracts entered into by them. Still regarding the
undocumented migrants, the need to combat trafficking and smuggling of persons
and migrants is analyzed, and also forced labor. It is reasserted, then, the necessary
protection of the dignity of workers, which cannot be postponed.

 
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 02

CAPÍTULO I
REFLEXÕES FILOSÓFICAS SOBRE A CONDIÇÃO DE IMIGRANTE
E A FORMAÇÃO DAS BASES JURÍDICAS DE PROTEÇÃO
AO TRABALHO POR ELE PRESTADO............................................................... 07

1. A CONDIÇÃO DE IMIGRANTE ...................................................................................... 07


1.1. A distinção entre estrangeiro e imigrante .......................................................... 08
1.2. O trabalhador imigrante ....................................................................................... 12
1.3. A condição de regularidade versus irregularidade da imigração ...................... 15

2. A PROTEÇÃO JURÍDICA DO TRABALHADOR IMIGRANTE COMO


EXERCÍCIO DE ALTERIDADE ....................................................................................... 18
2.1. Aristóteles: justiça como exercício permanente em relação ao outro ........... 19
2.2. Lévinas: ética da alteridade como Filosofia primeira ....................................... 21
2.3. O estrangeiro como “o outro” e a proteção ao trabalhador
imigrante à luz da alteridade ................................................................................ 23

3. O DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DIGNO E A PROTEÇÃO


JURÍDICA AO TRABALHADOR IMIGRANTE .................................................................. 27

CAPÍTULO II
OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA PROTEÇÃO
AO TRABALHADOR IMIGRANTE........................................................................ 34

4. A PROTEÇÃO AO TRABALHADOR IMIGRANTE NO QUADRO DOS


DIREITOS SOCIAIS .......................................................................................................... 34

5. O PRINCÍPIO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO E O UNIVERSO DO TRABALHO.............. 42


5.1. As Convenções 100 e 111 da Organização Internacional do Trabalho ....... 47
5.2. Os Relatórios Globais de 2003 e 2007 da OIT: igualdade no trabalho ........ 50
5.3. O princípio da não discriminação e o trabalhador imigrante ......................... 51

 
6. AS NORMAS INTERNACIONAIS ESPECÍFICAS DE PROTEÇÃO AO IMIGRANTE ..... 53
6.1. Proteção ao imigrante no âmbito da Organização das Nações Unidas........ 57
6.2. Proteção ao trabalhador imigrante no âmbito da Organização
Internacional do Trabalho ................................................................................... 63
6.2.1. A Convenção n. 97 da OIT: não discriminação dos imigrantes em
condição de regularidade ................................................................................... 65
6.2.2. A Convenção n. 143 da OIT: proteção de todos os trabalhadores
migrantes ............................................................................................................. 67
6.3. Instrumentos regionais de proteção ao imigrante ............................................ 71

CAPÍTULO III
A IMIGRAÇÃO DE TRABALHADORES PARA O BRASIL .......................... 73

7. A IMIGRAÇÃO DE TRABALHADORES NO BRASIL: BREVE INCURSÃO


HISTÓRICA ........................................................................................................................ 73
7.1. Primeira fase: a colonização portuguesa e o tráfico de africanos
escravizados............................................................................................................ 76
7.1.1. A ausência de regulação do trabalho na fase de colonização e
exploração de escravos ..................................................................................... 81
7.2. Segunda fase: os fluxos migratórios do século XIX até meados do
século XX ............................................................................................................... 84
7.2.1. A interação entre os fluxos migratórios e a consolidação do Direito
do Trabalho brasileiro ....................................................................................... 93
7.3. Terceira fase: a mudança da vocação migratória brasileira ao final do
século XX e início do século XXI ...................................................................... 95
7.3.1. A mudança do padrão migratório no Brasil no contexto crise do
Direito do Trabalho na contemporaneidade................................................. 98

8. O QUADRO DAS IMIGRAÇÕES NO BRASIL CONTEMPORÂNEO ............................ 101

 
CAPÍTULO IV
A PROTEÇÃO JUSTRABALHISTA DO IMIGRANTE EM
CONDIÇÃO DE LEGALIDADE ............................................................................ 103

9. ASPECTOS SÓCIO-JURÍDICOS DA CONDIÇÃO DE LEGALIDADE


DO TRABALHADOR IMIGRANTE ................................................................................. 103

10. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 COMO MARCO NORMATIVO


DA IMIGRAÇÃO REGULAR NO BRASIL..................................................................... 107

11. O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO DE 1980 .............................................................. 111


11.1. Formas de admissão de trabalhadores estrangeiros no país: os vistos ..... 114
11.2. A questão dos chamados trabalhadores fronteiriços ................................... 119

12. PROJETO DE LEI 5.655/2009: O NOVO ESTATUTO DO ESTRANGEIRO............ 121

13. A POLÊMICA DA “NACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO” NA CLT ....................... 125


13.1. A regra da proporcionalidade de dois terços ................................................ 125
13.2. A regra da “igualdade” salarial e da precedência de dispensa .................... 133

14. A MOVIMENTAÇÃO DE MÃO DE OBRA NO MARCO JURÍDICO DO


MERCOSUL: IMIGRAÇÃO OU LIVRE CIRCULAÇÃO DE MÃO DE OBRA? ......... 135
14.1. Os fluxos migratórios no MERCOSUL e a posição do Brasil .................. 139
14.2. As iniciativas de proteção ao trabalhador imigrante no MERCOSUL..... 142

CAPÍTULO V
O TRATAMENTO JUSTRABALHISTA DO IMIGRANTE
EM CONDIÇÃO DE IRREGULARIDADE NO BRASIL ............................. 149

15. IMIGRAÇÃO EM CONDIÇÃO DE IRREGULARIDADE: APONTAMENTOS


PARA UMA ABORDAGEM BASEADA NA PROTEÇÃO À PESSOA HUMANA
E NA PREVALÊNCIA DO VALOR SOCIAL DO TRABALHO ..................................... 149

16. IMIGRAÇÃO IRREGULAR DE TRABALHADORES PARA O BRASIL ........................ 154


16.1. A condição de irregularidade migratória no Direito brasileiro .................. 155
16.1.1. As sanções do Estatuto do Estrangeiro para os imigrantes em
condição de irregularidade ............................................................................ 157
16.2. Os principais grupos de trabalhadores imigrantes em situação
irregular no Brasil .............................................................................................. 163

 
17. TRÁFICO DE PESSOAS E TRÁFICO DE IMIGRANTES NO CONTEXTO DAS
IMIGRAÇÕES IRREGULARES ...................................................................................... 166

18. O TRABALHO PRESTADO POR IMIGRANTES EM CONDIÇÃO


DE IRREGULARIDADE ................................................................................................ 172
18.1. Nulidades em negócios jurídicos ................................................................... 174
18.2. A teoria das nulidades no Direito Civil .......................................................... 177
18.3. A teoria trabalhista das nulidades ................................................................... 180
18.3.1. Elementos justificadores e conceito da teoria especial das nulidades
no Direito do Trabalho ................................................................................ 184
18.3.2. Os modos de aplicação da teoria trabalhista das nulidades..................... 188
18.3.3. As invalidades do contrato de emprego celebrado por
trabalhador imigrante indocumentado à luz da teoria trabalhista
das nulidades .................................................................................................. 193
18.4. A visão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre
direitos trabalhistas de imigrantes indocumentados ................................... 200

19. TRABALHO DE IMIGRANTES INDOCUMENTADOS EM CONDIÇÃO


ANÁLOGA À DE ESCRAVO ......................................................................................... 203

20. DIREITOS TRABALHISTAS DE IMIGRANTES INDOCUMENTADOS NO BRASIL .. 207

21. OS DESAFIOS INSTITUCIONAIS À EFETIVIDADE DA PROTEÇÃO


TRABALHISTA DO IMIGRANTE EM CONDIÇÃO DE IRREGULARIDADE ............. 210

CONCLUSÃO ................................................................................................................. 214

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 218

ANEXO I (CONVENÇÃO N. 143 DA OIT)................................................................... 235

ANEXO II (CONVENÇÃO DA ONU SOBRE TRABALHADORES MIGRANTES) ..... 243

 
“Quando vim da minha terra, Rígida cerca de arame,
Se é que vim da minha terra Na mais anônima célula,
(não estou morto por lá?), E um chão, um riso, uma voz
a correnteza do rio Ressoam incessantemente
me sussurrou vagamente Em nossas fundas paredes.
que eu havia de quedar Novas coisas, sucedendo-se,
lá donde me despedia. Iludem a nossa fome
Os morros, empalidecidos De primitivo alimento.
No entrecerrar-se da tarde, As descobertas são máscaras
Pareciam me dizer Do mais obscuro real,
Que não se pode voltar, Essa ferida alastrada
Porque tudo é conseqüência Na pele de nossas almas.
De um certo nascer ali. Quando vim da minha terra,
Quando vim, se é que vim Não vim, perdi-me no espaço,
De algum para outro lugar, Na ilusão de ter saído.
O mundo girava, alheio Ai de mim, nunca saí.
À minha baça pessoa, Lá estou eu, enterrado
E no seu giro entrevi Por baixo de falas mansas,
Que não se vai nem se volta Por baixo de negras sombras,
De sitio algum a nenhum. Por baixo de lavras de ouro,
Que carregamos as coisas, Por baixo de gerações,
Moldura da nossa vida, Por baixo, eu sei, de mim mesmo,
Estive vivente enganando, enganoso”.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


A ilusão do migrante

 
 

INTRODUÇÃO

“A minha pátria é onde o vento passa,


A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que fica das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo”.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Pirata

A pesquisa, ora apresentada, versa sobre a condição jurídica do trabalhador


imigrante no Direito brasileiro, abordando os principais temas ligados às relações
empregatícias entabuladas por estrangeiros no país. Na lição de OSIRIS ROCHA,
referir-se à condição jurídica de imigrantes significa tratar do “conjunto dos direitos
que, a esses, sejam reconhecidos em um determinado país”1. Assim, busca-se
compreender, dentro das relações empregatícias, quais serão os direitos trabalhistas
reconhecidos aos imigrantes que ao Brasil se destinem.

As migrações internacionais sempre tiveram papel muito significativo na


história do Brasil, país que, desde os primórdios de sua formação, recebeu aportes
consideráveis de estrangeiros a se fixarem em seu território. Esse movimento deixou
marcas profundas na cultura brasileira, influenciando todos os aspectos da vida em
sociedade. O Direito não fugiu a esta regra, sendo instado a fornecer respostas aos
desafios da chegada de imigrantes, em uma via de mão dupla: ao mesmo tempo
determinando o estatuto jurídico dos estrangeiros e sendo influenciado pela visão de
mundo dos que aqui chegavam.

O elemento trabalho tem função essencial na dinâmica das migrações. Pode-


se identificar em quase todo fluxo de pessoas no plano internacional a marca de
relações que tenham por objeto o trabalho humano. Fronteiras nacionais são
                                                            
1 ROCHA, Osiris. Curso de Direito Internacional Privado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 16.

2
 

 
 

cruzadas quase sempre no intento da busca por melhores condições de vida, o que
é, regra geral, mediado pelo trabalho. Isso porque, afinal, o trabalho é a alavanca de
todas as realizações daquilo que se pode denominar “cultura humana”, como bem
pontua ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA2.

Nesse quadro, a pesquisa propõe um diagnóstico dos desafios jurídicos


trazidos pela movimentação internacional de mão de obra, sob a perspectiva do
Direito do Trabalho brasileiro, inserido no atual momento histórico, em que o ramo
justrabalhista é demandado a propor respostas efetivas a questionamentos de alta
complexidade e concretude.

A recepção de imigrantes no Brasil, aliás, é tema que tem sua relevância em


franco processo de crescimento. O país ainda recebe volumes relativamente tímidos
de imigração (diferentemente do que ocorria há um século), mas o incremento já se
coloca de forma patente. Considerado o destaque brasileiro no contexto sul
americano (e também no MERCOSUL), não é necessário muito esforço para se
perceber que se está diante de uma pauta de enorme potencial, o que é evidenciado
pelos fluxos de migrantes sul americanos que ao Brasil já se destinam.

O questionamento essencial a ser respondido, aqui, é qual deve ser o


tratamento jurídico concedido pela ordem jurídica nacional aos imigrantes, em
termos de regulação e proteção ao trabalho, estejam eles em condição de
regularidade ou de irregularidade migratória. Tal questionamento lega ao estudioso
cenários de grande dificuldade, à luz de cânones, por vezes aparentemente
conflitantes, como a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a soberania estatal.

                                                            
2 SILVA, Antônio Álvares da. Flexibilização das relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 19.

3
 

 
 

A hipótese trabalhada é a de que a pessoa humana e o trabalho prestado


merecem ampla proteção, proteção que, à luz das diretivas da igualdade e da não
discriminação, não pode sucumbir a qualquer obstáculo erigido por regulamentos ou
políticas supostamente implementadas no exercício da “soberania” dos Estados.

A resposta a este questionamento demanda, em primeiro lugar, um olhar


jusfilosófico sobre a condição do imigrante, enquanto ao mesmo tempo detentor do
traço da igualdade humana e da diferença nacional. O exercício de perceber aquele
que será o tratamento justo e ético é o fio condutor da reflexão jurídica que se segue,
guia da qual não se poderá distar.

Dado o passo prévio, há que se conhecer, em profundidade, a atividade de


pactuação de diplomas internacionais de proteção à pessoa humana, em sentido
amplo, e da regulação específica do trabalho e da migração, além de empreender
uma leitura crítica dos dados estatísticos existentes.

Complementa-se a análise com uma avaliação da própria motricidade


interna da dinâmica migratória e de suas raízes formadas no passar do tempo, que
determinaram os padrões da normativa e das políticas nacionais de tratamento aos
imigrantes, em busca de uma compreensão jurídica que se faça social e
historicamente localizada.

Da mesma forma, os referenciais normativos nacionais — desde as


disposições constitucionais, passando-se pela legislação e atividade regulamentadora
dos órgãos responsáveis pela política migratória brasileira — demandam cuidadoso
exame, em busca daqueles que são os nortes, acertos e descompassos na postura
institucional do Brasil diante dos trabalhadores imigrantes que ao país se dirigem.

4
 

 
 

Ao grupo dos chamados imigrantes indocumentados é dada especial


atenção nos estudos migratórios, pelas questões que suscita e pela sua situação de
especial vulnerabilidade. Não raro esses trabalhadores são submetidos a esquemas
de tráfico internacional, trabalho em condição análoga à de escravo e exploração em
condições absolutamente díspares do patamar mínimo de direitos que deve ser
assegurado a qualquer ser humano3. Além disso, há a questão do reconhecimento de
efeitos trabalhistas de contratos de emprego celebrados por esses indivíduos, na
busca da compreensão se devem ou não ser juridicamente reconhecidos.

O trabalho dissertativo ora apresentado desenvolve-se por meio de pesquisa


doutrinária consistente, na busca de referências na literatura acerca do tema das
imigrações e da proteção jurídica ao trabalho, além de pesquisa dos fluxos
migratórios e avaliação dos referenciais normativos aplicáveis aos problemas
tratados. Busca-se, na produção dos organismos internacionais de proteção ao
trabalho, estudos, pareceres e outros documentos sobre o fenômeno da migração de
trabalhadores ao redor do mundo, de forma a serem percebidas as tendências
globais no trato da questão. Utiliza-se, também, a metodologia da história para uma
análise da evolução das migrações e de seus impactos na condição jurídica do
imigrante e no próprio Direito do Trabalho no Brasil.

O estudo da dimensão concreta do objeto de estudo ora introduzido


constitui, outrossim, uma baliza metodológica. Assim, o repertório jurisprudencial
brasileiro e o trabalho de órgãos nacionais e internacionais que se dedicam às
migrações recebem a devida atenção, na busca dos caminhos da efetividade do
objeto estudado.

                                                            
3 Cf. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Voto concorrente. In CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Condición jurídica y derechos de los
migrantes indocumentados. Opinião consultiva OC-18/03. São José da Costa Rica, 17 de setembro
de 2003. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf. Acesso em
14 de abril de 2010.

5
 

 
 

Neste itinerário, emerge a percepção prévia de que a condição jurídica do


trabalhador imigrante, esteja ele em situação de regularidade migratória ou não, deve
estar emparelhada à evolução da proteção dos Direitos Humanos sociais na ordem
internacional. E, nesse diagnóstico, deve-se manter sempre em mente o papel do
Direito do Trabalho enquanto um poderoso e eficaz instrumento de civilização,
que consegue “exatamente estabelecer uma forma de incorporação do ser humano
ao sistema socioeconômico”4.

Nesse sentido, FRANCISCO DAS CHAGAS LIMA FILHO destaca a necessidade


de se reafirmar a própria essência do ramo justrabalhista quando se está diante do
tema dos trabalhadores imigrantes:

“Se o Direito do Trabalho efetivamente é um Direito à medida do


homem, o é também à medida do homem que emigra, forçado
muitas vezes a deixar sua terra natal em virtude de guerras, de
forme, de desastres naturais e tantas outras causas, para buscar fora
de seu país, de sua Pátria, a chance de vida e trabalho, e que espera
legitimamente identidade, renda e segurança para ele próprio e de
sua família”5.

Ou seja, a proteção ao imigrante em sua dignidade, o que só se perfaz por


meio do trabalho, é demanda da sua própria condição humana, que transpõe
barreiras nacionais e que não pode ser preterida.

                                                            
4 DELGADO, Mauricio Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego: entre o paradigma da destruição e

os caminhos de reconstrução. São Paulo: LTr, 2005, p. 143.


5 LIMA FILHO, Francisco das Chagas. Trabalhador migrante fronteiriço: tutela material e

jurisdicional. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região, Campo Grande, 13, p. 17-35, 2008,
p. 34.

6
 

 
 

CAPÍTULO I
REFLEXÕES FILOSÓFICAS SOBRE A CONDIÇÃO DE IMIGRANTE E
A FORMAÇÃO DAS BASES JURÍDICAS DE PROTEÇÃO AO
TRABALHO POR ELE PRESTADO

“Cada indivíduo, ou grupo social, se valoriza pelo


desenvolvimento contínuo de suas potencialidades, na medida
em que se abre a todos os outros, neles reconhecendo o
complemento necessário de si próprio”.

FÁBIO KONDER COMPARATO


Ética

1. A CONDIÇÃO DE IMIGRANTE

Antes que se adentre especificamente no estudo dos fundamentos jurídicos


da proteção ao trabalhador imigrante, necessária se faz uma breve incursão, de
ordem filosófica, nas reflexões sobre a própria condição de imigrante, a balizar os
questionamentos acerca do tratamento a ser concedido pelo Direito — e, em
especial, pelo Direito do Trabalho — a este grupo de indivíduos.

Aliás, as diversas pesquisas científicas produzidas sobre a imigração no


plano internacional muito comumente lançam uma questão inicial: o que é ser
imigrante? Para além de aparentes obviedades, esta é, decerto, uma chave conceitual
para o exame do tema, vez que sua resposta necessariamente abordará as múltiplas
dimensões do status individual do imigrante e do próprio fenômeno da migração
entre países. Foi o que identificou TERESA MALATIAN:

“À pergunta ‘o que é um imigrante?’ corresponde o esforço de retraçar


itinerários a partir de diversas perspectivas possibilitadas pelas
ciências sociais e inúmeras disciplinas que se inter-relacionam:
História, Direito, Demografia, Sociologia, Antropologia, Filosofia.
A todas elas atribui-se a tarefa de pensar o espaço dos

7
 

 
 

deslocamentos, ou seja, o itinerário do imigrante enquanto


realidade física, social, econômica, cultural, política, levantando
problemas e propondo soluções”6.

É oportuno que a análise desta polifacetada matriz que constitui a condição


de imigrante — que será desenvolvida ao longo de todo o estudo ora proposto,
sobretudo na dimensão jurídica — inicie-se com a distinção terminológica entre
estrangeiro e imigrante, a revelar características essenciais e comuns, além de diferenças
substantivas entre as percepções destas duas categorias, o que, efetivamente, será de
grande ajuda nas investigações a serem desenvolvidas.

1.1. A DISTINÇÃO ENTRE ESTRANGEIRO E IMIGRANTE

O conceito de estrangeiro está fortemente vinculado à questão do


pertencimento, e, por consequência, à dimensão negativa no momento da
identificação (momento de perceber aqueles que não fazem parte de determinado
grupo). O estrangeiro é, nesse sentido, o “outro” de certa condição. O critério por
excelência na definição do estrangeiro é a nacionalidade, de modo que será estrangeiro
aquele que não tem a nacionalidade de determinado país, em relação àqueles que a
detêm7.

Tradicionalmente, portanto, a definição de estrangeiro será de ordem


jurídica, e enunciará o estatuto legal a que se sujeitam os detentores de nacionalidade
                                                            
6 MALATIAN, Teresa. Apresentação. In BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu, MALATIAN,

Teresa (orgs.). Políticas migratórias: fronteiras dos direitos humanos no século XXI. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 02.
7 Aponta CRISTIANE MARIA SBALQUEIRO LOPES que a nacionalidade não é necessariamente o

único critério de definição de um estrangeiro, podendo existir “estrangeiros” em função de


características sociais ou culturais, como é o caso dos migrantes internos, exemplificados pelos
nordestinos na cidade de São Paulo. Sobre o tema, consultar: LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro.
O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos. Tese de doutoramento. Sevilha: Universidad
Pablo de Olavide, 2007, p. 06.

8
 

 
 

diversa daquela de um ordenamento jurídico referencial, nomeadamente quando o


indivíduo adentrar o território do país que não é o seu país de origem. Diz ALUÍSIO
DARDEAU DE CARVALHO:

“A aquisição e a perda da condição de estrangeiro depende apenas


de deslocamentos no espaço. Para adquirir a condição de
estrangeiro, realmente, basta que a pessoa se desloque da jurisdição
do Estado a que pertence, isto é, basta que se desloque do Estado
da sua nacionalidade e passe à jurisdição de outro Estado.
Estrangeiro é a pessoa que não é nacional e que não tem a
nacionalidade do Estado em que se encontra”8.

O imigrante, por sua vez, “é o estrangeiro que permanece”9, como bem


sintetizou CRISTIANE MARIA SBALQUEIRO LOPES. Em outras palavras, o imigrante
é aquele que atravessa fronteiras nacionais (o que faz dele estrangeiro), mas com um
intuito de permanência, o que modifica substância de sua condição jurídica, em face
de uma diferenciada inserção na sociedade.

É dizer que todo imigrante traz em si o traço do estrangeiro, com a


especificidade de sê-lo com ânimo de maior definitividade. É auto evidente que, em
face de um estrangeiro em trânsito (como um turista ou um estudante temporário,
por exemplo), o imigrante propriamente dito tem no seu movimento migratório
vocação de maior perenidade, como se verificou na experiência histórica em relação
a grupos de diversos Estados, como os europeus emigrados para o Brasil no século
XX, a serem especificamente tratados no capítulo IV da presente pesquisa.

Note-se que esta diferença entre os deslocamentos de estrangeiros e


imigrantes não é uma simples contingência, mas uma condição que determinará o

                                                            
8 CARVALHO, Aluísio Dardeau de. Situação jurídica do estrangeiro no Brasil. São Paulo: Sugestões

Literárias, 1976, p. 09.


9 LOPES, O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos, cit., p. 06.

9
 

 
 

diagrama de interações com o país que receptor, diagrama este que é muito mais
complexo para com os imigrantes do que com os estrangeiros em geral.

Há que se notar, contudo, que, na vivência social entre os nacionais de


determinado país, também se atribui ao imigrante um traço de provisoriedade na
comparação com os nativos, vez que o aquele estará sempre fadado ao retorno à
origem ou à completa integração (o que, de ambos os modos, significará o fim da
condição de imigrante). Assim, mais perene do que o simples estrangeiro, não será
tão definitivo quanto um nacional na percepção do país receptor. Isto, decerto,
contribui para que se arraigue uma diferença entre imigrantes e nacionais.

Ainda que, como aponta SAYAD10, tal provisoriedade seja meramente


ilusória — a funcionar tão somente como via de justificação no imaginário social do
país receptor para a presença dos imigrantes (ao lado de outras duas ilusões:
presença exclusivamente pelo trabalho e neutralidade política) —, ela efetivamente
contribui para fixar os contornos, aqui de certo modo paradoxais, da definição de
imigrante. Em suma, o imigrante é um estrangeiro que pretende fixação mais
perene, mas percebido pelos nacionais como não definitivo.

De modo que, apesar de as reflexões sobre a condição de estrangeiro se


aplicarem largamente aos estudos sobre a imigração (a ver-se, por exemplo, a
questão da alteridade a ser mais adiante tratada), terão elas de ser compatibilizadas e
complementadas com estas peculiaridades do imigrante.

Socialmente, o imigrante estabelece relações em maior número e mais


profundas com a sociedade receptora. Constroem relações intersubjetivas sólidas,
contratam, casam-se, têm filhos, professam credos, expressam-se culturalmente,
                                                            
10 SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. Trad. Cristina Murachco. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 1998, p. 19-20.

10
 

 
 

participam da realidade das comunidades que os circundam, enfim, vivem todas as


dimensões da vida cotidiana. Como reflexo, no domínio jurídico, elementos como o
exercício de direitos, estabelecimento de relações jurídicas e prestação de trabalho
afetam as normas específicas na disciplina da imigração.

Como consequência de sua especial condição, EZEQUIEL TEXIDÓ e


GLADYS BAER11 ressaltam que o imigrante ocupa uma posição de especial
vulnerabilidade na sociedade receptora, que decorre de um duplo processo social. O
primeiro, de natureza estrutural, deriva da existência de um esquema de poder que,
percebido de forma empírica, denota que em qualquer sociedade nacional alguns
detêm mais poder que outros. O segundo, de matiz cultural, está ligado a elementos
como estereótipos, preconceitos, racismo, xenofobia e discriminação institucional,
que tendem a acentuar e justificar as diferenças entre o poder reconhecido aos
nacionais e aos não nacionais.

As situações que permitem com que tais processos se desenvolvam — dada


a intenção típica do imigrante em estabelecer relações estáveis —, são mais
recorrentes, determinam a localização do imigrante no tecido social e, decerto,
afetam a disciplina jurídica de sua condição.

No campo do Direito, é importante perceber que estes processos de


vulnerabilização do imigrante concorrem para a formação de legislações e políticas
extremamente rigorosas e excludentes que, afiançadas pela percepção do senso
comum, tratam a temática da imigração tão somente como de segurança nacional ou
de política de fronteiras (ou ainda como uma questão criminal), afastando-se da

                                                            
11 TEXIDÓ, Ezequiel, BAER, Gladys. Inserción sociolaboral de los migrantes. In TEXIDÓ,

Ezequiel et al. Migraciones laborales em Sudamérica: el Mercosur ampliado. Genebra: Oficina


Internacional do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho, 2003, p. 107.

11
 

 
 

dimensão humana que ali subjaz. Este é, em verdade, o objeto de da


problematização aqui proposta.

1.2. O TRABALHADOR IMIGRANTE

ARNALDO SÜSSEKIND define trabalhador imigrante como “aquele que se


transfere para um país do qual não é originário, com o ânimo de nele se integrar ou,
pelo menos, nele trabalhar em caráter não eventual”12. Ou seja, liga-se, por
definição, o intuito de permanência típico do imigrante ao fator trabalho.

Entre os múltiplos elementos que se agregam na composição da figura do


imigrante, o trabalho é talvez aquele que mais reflexões suscite. Em primeiro lugar
porque o trabalho é a grande força motriz das imigrações no plano internacional,
como nota ALUÍSIO DARDEAU DE CARVALHO, ao explicar que “o excesso de
população, ocasionando a falta de trabalho, é o fator mais importante dos
movimentos migratórios. Ameaçado pelo fantasma da miséria, busca o homem
outras regiões e outros povos na esperança de melhores dias”13.

O trabalho, portanto, é indissociável do estudo do fenômeno das


imigrações entre os países do globo. Mas não é só nesta dimensão que o trabalho
coloca-se como fator determinante na questão migratória. Também o será no estudo
da própria identificação do imigrante. A definição proposta por SAYAD dá a medida
dessa irmandade:

“Afinal, o que é um imigrante? Um imigrante é essencialmente uma


força de trabalho provisória, temporária, em trânsito. Em virtude
desse princípio, um trabalhador imigrante (sendo que trabalhador e
                                                            
12 SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Internacional do Trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 363.
13 CARVALHO, Situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cit., p. 09.

12
 

 
 

imigrante são, nesse caso, quase um pleonasmo), mesmo se nasce


para a vida (e para a imigração) na imigração, mesmo se é chamado
a trabalhar (como imigrante) durante toda a sua vida no país,
mesmo se está destinado a morrer (na imigração), como imigrante,
continua sendo um trabalhador definido e tratado como
provisório, ou seja, revogável a qualquer momento. A estadia
autorizada ao imigrante está inteiramente sujeita ao trabalho, única
razão de ser que lhe é reconhecida (...). Foi o trabalho que fez
‘nascer’ o imigrante, que o fez existir; é ele, quando termina, que
faz ‘morrer’ o imigrante, que decreta sua negação ou que o empurra
para o não-ser”14.

Significa dizer que o trabalho é, efetivamente, o mais significativo canal de


contato com a sociedade receptora, onde se operarão não só as possíveis
compatibilizações como também os maiores conflitos e perplexidades. Por esta
razão, liga-se organicamente à própria conceituação de migrante.

Manifesta-se especialmente a situação de vulnerabilidade do imigrante,


anteriormente mencionada, quando se está diante do trabalho. É o que ensina
ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, ao pontuar que “os migrantes (...) se
encontram frequentemente em uma situação de grande vulnerabilidade, ante ao
risco de emprego precário (na chamada ‘economia informal’), da exploração do
trabalho, do desemprego em si e da perpetuação na pobreza”15.

                                                            
14 SAYAD, A imigração ou os paradoxos da alteridade, cit., p. 54-55.
15 Cf. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Voto concorrente. In CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Condición jurídica y derechos de los
migrantes indocumentados. Opinião consultiva OC-18/03. São José da Costa Rica, 17 de setembro
de 2003. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf. Acesso em
14 de abril de 2010. No original: “Los migrantes (...) se encuentran frecuentemente en una situación
de gran vulnerabilidad, ante el riesgo del empleo precario (en la llamada ‘economía informal’), de la
explotación laboral, del propio desempleo y la perpetuación en la pobreza (también en el país
receptor)”. Tradução do autor.

13
 

 
 

E, em tempos de desemprego16 generalizado, as relações formalizadas e


protegidas de trabalho têm sua valia social ainda mais acentuada para a maioria
esmagadora das pessoas (a chamada “classe-que-vive-do-trabalho”17, no epíteto de
RICARDO ANTUNES). Isso contribui para recrudescer a interação entre trabalhadores
nacionais e estrangeiros, inclusive institucionalmente, em termos jurídicos.

A disputa em torno da proteção jurídica do trabalho prestado pelos


imigrantes acompanhará, neste contexto, a relevância do trabalho na dinâmica da
imigração. É como apontado por DE LUCAS: “a verdade é que o teste da integração
[do imigrante] é o reconhecimento de direitos: quando os imigrantes têm direitos, se
integram”18. E, vale dizer, a questão da proteção jurídica ao trabalhador imigrante é
pauta na agenda internacional e coloca-se como referencial na questão da integração
do imigrante, em uma percepção mais amplificada do problema migratório,
orientada pelos Direitos Humanos. A temática será retomada e aprofundada ao
longo dos próximos capítulos.

                                                            
16 O quadro do desemprego em massa, na lição de ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA, atinge

especialmente a mão de obra sem qualificação, que, por muitas vezes, é aquela que atravessa
fronteiras nacionais em busca de melhores oportunidades de trabalho. Nesse sentido, pontifica o
autor que “quanto mais rude e desqualificado é o trabalhador, mais difícil se torna a sua
permanência ou, se dispensado, sua volta ao mercado de trabalho”. Consultar: SILVA, Antônio
Álvares da. Flexibilização das relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 37.
17 Atualizando o conceito marxiano de proletariado ou classe trabalhadora, RICARDO ANTUNES fala

de uma “classe-que-vive-do-trabalho” a incluir “a totalidade daqueles que vendem sua força de


trabalho”, incorporando “a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo
assalariado”. Cf. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação
do trabalho. 5. ed. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 101 et seq.
18 DE LUCAS, Javier, PEÑA, Salomé, SOLANES, Ángeles. Inmigrantes: una aproximación jurídica a

sus derechos. Valencia: Germania Serveis Gráfics, 2001, p. 56, apud LOPES, O direito do estrangeiro
numa perspectiva de Direitos Humanos, cit., p. 45. No original: “la verdad es que el test de la integración
[do imigrante] es el reconocimiento de los derechos: cuando los inmigrantes tienen derechos, se
integran”. Tradução do autor.

14
 

 
 

1.3. A CONDIÇÃO DE REGULARIDADE VERSUS IRREGULARIDADE DA


IMIGRAÇÃO

Outro aspecto importante na construção da condição de imigrante e em sua


percepção na sociedade diz respeito à situação jurídica em que se deu o processo
migratório. Os ordenamentos estatais apresentam uma série de requisitos exigidos
para que a imigração se proceda de modo regular (que, no caso brasileiro, serão
tratados no capítulo IV da presente pesquisa). Aquele que obedeça a tais critérios,
terá imigrado em condição de regularidade, sujeitando-se a uma situação jurídica
que, via de regra, praticamente o iguala (ou o aproxima muito) do nacional do país
receptor, do ponto de vista da garantia de direitos e da previsão de obrigações.

Por outro lado, aqueles que desobedecem à regulação migratória do país de


destino — seja adentrando o território nacional de maneira irregular, seja
permanecendo nele com visto inadequado — estarão em situação de irregularidade,
sujeitando-se às sanções aplicadas pelo ordenamento jurídico do país em que se
encontra19.

A utilização de expressões como “imigrante ilegal” e “imigrante


clandestino” para referência a estes que não observam os parâmetros migratórios
reflete esta condição originária de desrespeito à normativa nacional. Reflete também,
de modo bastante direto, uma distorcida percepção do imigrante como criminoso,
como se sua própria existência enquanto imigrante constituísse um delito. Isso
porque, como nota CRISTIANE SBALQUEIRO LOPES “os discursos (política e mídia)
e as práticas atuais (legislação, policialização) induzem a relacionar o imigrante com

                                                            
19 O tema da regularidade x irregularidade será detalhadamente abordado nos capítulos IV e V da

presente pesquisa, sendo aqui adiantado apenas na perspectiva da identidade do imigrante e da


forma como ele é social e simbolicamente percebido.

15
 

 
 

o criminoso”20. Noutras palavras, o que se observa ao redor do globo, sobretudo


nos países em que os fluxos de imigração são fortes, é que tal visão excludente e
criminalizante do imigrante tem dado a tônica do discurso do senso comum e, por
vezes, das instâncias políticas e normativas.

Considerando a proposição de um exame amplo da questão do trabalho


prestado pelo imigrante, dentro das matrizes dos Direitos Humanos, não se poderá
coadunar com a ideia transmitida pela utilização de tais expressões. Além disto, são
fórmulas tecnicamente inadequadas do ponto de vista do Direito, vez que
transmitem a inadmissível noção de “pessoa ilegal”.

A crítica é sustentada pelos estudos internacionais na matéria, conforme


sumariado por MILA PASPALANOVA:

“A principal crítica da expressão ‘ilegal’ (...) é baseada no fato de


que apenas um ato pode ser ilegal, enquanto uma pessoa não pode
ser ‘ilegal’ ou ‘criminosa’. É o ato que se inscreve no âmbito de um
código penal (no caso de infrações criminais) ou administrativo (no
caso de infrações não criminais) de um país, e é respectivamente
punido, ao invés de a pessoa em si”21.

Desta feita, para a referência aos imigrantes que adentram o território


nacional sem a observância dos requisitos jurídicos postos, mais adequadas são as
expressões que destacam a condição da pessoa (i.e., imigrantes em situação irregular,
em situação migratória ilegal, em condição de irregularidade) ou que delimitem mais

                                                            
20 LOPES, O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos, cit., p. 35.
21 PASPALANOVA, Mila. Undocumented vs. illegal migrant: towards terminological coherence.

Migraciones Internacionales, Instituto Tecnológico de Estudios Superiores de Monterrey, Monterrey, v.


4, n. 3, p. 79-90, jan./jun. 2008, p. 82. No original: “The main criticism of ‘illegal’ and ‘alien’ is
based on the fact that only an act can be illegal whereas a person cannot be ‘illegal’ or ‘criminal’. It
is the act that falls under the provisions of the penal (in the case of criminal offences) or
administrative (in the case of non-criminal offences) code of a country and it is respectively
punished, rather than the person per se”. Tradução do autor.

16
 

 
 

especificamente a irregularidade jurídica, mesmo que a associando diretamente à


pessoa (i.e., imigrantes não documentados, indocumentados).

Assim, tanto do ponto de vista técnico quanto do ponto de vista simbólico


(representado pela carga negativa associada às expressões “imigrante ilegal” e
“imigrante clandestino”), um cuidado terminológico se fará providencial.

Há que se ressaltar que a condição de legalidade, além da força jurídica


propriamente dita, também tem um significativo poder simbólico, a catalisar a
aproximação entre nacionais e estrangeiros. E, como visto, a irregularidade acirra a
diferença, justificando o tratamento arquetípico do estrangeiro como forasteiro,
bárbaro ou usurpador.

A questão do tratamento jurídico do trabalhador imigrante em condição de


regularidade e de irregularidade no Brasil contemporâneo será bastante
aprofundada, sendo ao tema dedicados os dois capítulos finais da presente pesquisa.

O que resta claro, desde já, é que para o esboço de qualquer resposta à
pergunta que inaugura o presente capítulo (“o que é um imigrante?”), ao mesmo
tempo em que se que se trabalha numa zona conceitual clara (i.e., o imigrante é um
estrangeiro que permanece no país de destino), desvelam-se as complexidades do
tema. O estudo jurídico do trabalho prestado por imigrante, portanto, receberá
influxos destas intrincadas ligações, o que se refletirá numa regulação por vezes
problemática.

17
 

 
 

2. A PROTEÇÃO JURÍDICA DO TRABALHADOR IMIGRANTE COMO EXERCÍCIO


DE ALTERIDADE

Dentro das bases filosóficas que sustentam os fundamentos jurídicos da


proteção ao trabalho do imigrante, frutuosa se fará uma incursão no tema da justiça,
razão última de toda sorte de proteção concedida pelo Direito. Pertinente será, aqui,
a ideia de justiça sobretudo na sua dimensão de alteridade22, em face da própria
condição de imigrante.

Em verdade, o tema da justiça renova-se no transcorrer dos séculos como


questão de absoluta centralidade na Filosofia e, mais ainda, no Direito. Apresentada
classicamente como uma das finalidades jurídicas precípuas — a ver pelo célebre
brocardo do Direito como “arte do bom e do justo”23 — coloca-se a justiça, de
fato, como chave para a compreensão do fenômeno jurídico em qualquer tempo,
precisamente por constituir uma “ordem das relações humanas”24.

Os complexos dilemas da contemporaneidade — relacionados, sobretudo, à


(in)efetividade do Direito — fazem só reforçar a relevância do debate em torno da
justiça, nomeadamente quanto à sua compreensão enquanto ação concreta, a ser
implementada por meio de instrumentos jurídicos e políticos. A questão das
migrações laborais, nesse contexto, recebe o influxo intenso do debate acerca da
implementação da justiça.

                                                            
22 O termo alteridade é tomado, aqui, e ao longo de todo o presente estudo, em sua ampla acepção

filosófica (como referência genérica “ao outro”), e não no jargão clássico do Direito do Trabalho
(como característica específica do contrato de emprego, no qual, segundo ALICE MONTEIRO DE
BARROS, “o empregado desempenha suas tarefas por conta alheia”). Vide BARROS, Alice
Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 215.
23 Do jurisconsulto CELSO, citado por ULPIANO, em 533 d.C., no Livro I do Digesto de

JUSTINIANO.
24 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo Bossi. 5. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2007, p. 682.

18
 

 
 

Colocam-se em franca evidência, nesse quadro, o caráter relacional e o senso de


prática associados à ideia de justiça. Ressalte-se que a visão da justiça como um
exercício para com outrem, na proposição de pensadores centrais na história do
Ocidente, como se verá adiante, tem natureza verdadeiramente ontológica. De
modo que, no presente estudo — em face do exame da proteção jurídica do
trabalhador imigrante —, coloca-se bastante oportuna a apresentação de algumas
noções do pensamento de ARISTÓTELES, como o grande sistematizador de uma
ideia de justiça prática e com caráter relacional, e de EMMANUEL LÉVINAS, filósofo
contemporâneo a propor uma ética da alteridade como diretriz primeira da própria
Filosofia.

Deve-se alertar que não se pretende propor, aqui, um panorama de História


da Filosofia, nem tampouco um estudo exaustivo sobre os vastos sistemas teóricos
dos pensadores apresentados. O que se apresenta é tão somente a transposição de
algumas reflexões filosóficas ao universo concreto de um específico quadro
conflituoso do Direito, na tentativa de agregar alguma luz às respostas práticas que o
fenômeno migratório demanda e que constituem, em última análise, o objeto desta
pesquisa.

2.1. ARISTÓTELES: JUSTIÇA COMO EXERCÍCIO PERMANENTE EM RELAÇÃO AO


OUTRO

Na recorrentemente apontada contraposição a PLATÃO, seu mestre,


ARISTÓTELES propõe uma Filosofia da praxis, pela qual a estrutura inteligível de algo
está em si mesmo25, pugnando pela imanência da verdade à realidade concreta das
coisas e pelo caráter sempre prático da virtude26.
                                                            
25 Nesse sentido, sustenta MARILENA CHAUI: “Aristóteles afirma que o ser e o saber mais

excelentes são aqueles que são livres, isto é, aqueles que não dependem de outros para existir e que

19
 

 
 

Nesse quadro, apresenta ARISTÓTELES uma célebre concepção de justiça,


basilar na formação do pensamento ético do Ocidente. Propõe dois tipos de justiça,
a saber, a justiça em sentido amplo e em sentido estrito, subdividida, por sua vez,
em justiça distributiva e corretiva.

A justiça em sentido amplo é a própria virtude, a ser implantada pela lei que
promove o bem comum. Na apresentação da justiça lato sensu, em sua Ética a
Nicômaco, ARISTÓTELES já enfatiza o seu caráter relacional e prático:

“Com efeito, a justiça é a virtude completa no mais próprio e pleno


sentido do termo, porque é o exercício atual da virtude completa.
Ela é completa porque a pessoa que a possui pode exercer sua
virtude não só em relação a si mesmo, como também em relação
ao próximo”27.

Vê-se, daí, que já está lançado o traço da alteridade, basilar na proposição


aristotélica de justiça. Sobre o tema, ensina SALGADO:

“A justiça é uma virtude que só se torna possível na dimensão do


outro, enquanto igual ao sujeito que a pratica, vale dizer, na medida
em que seja considerado como ser racional, ou ‘sujeito’. Essa
alteridade da justiça é o que a faz uma virtude perfeita”28.

                                                                                                                                                                              
têm em si mesmos seu próprio fim. (...) São mais excelentes as ações cujo fim se encontra nelas
mesmas e menos excelentes aquelas cujo fim lhe é exterior”. Consultar: CHAUI, Marilena.
Introdução à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. 2. ed. Vol. 1. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002, p. 332.
26 Sobre as virtudes éticas no sistema aristotélico, diz GIOVANNI REALE: “As virtudes éticas

derivam em nós do hábito (...). Realizando atos justos tornamo-nos justos, adquirimos a virtude da
justiça, que, depois, permanece em nós como um habitus”. REALE, Giovanni. História da Filosofia
antiga. Vol. 2. Trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994, p.
413.
27 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005, 1129b,

29.
28 SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na

igualdade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995, p. 38.

20
 

 
 

Já a justiça distributiva — faceta da justiça em sentido estrito — é, segundo


MARCELO MACIEL RAMOS, “aquela que deve ser estabelecida na relação entre o
Estado e o cidadão na distribuição dos bens”29, que se dará por meio da
proporcionalidade. Afirma ARISTÓTELES, aqui, o justo como um meio-termo30. No
mesmo sentido, a justiça corretiva, contratual e legal, deve ser norteada pelo critério
de uma igualdade aritmeticamente estabelecida.

Deve-se ressaltar que o caráter relacional da justiça em ARISTÓTELES está


presente em todas as suas acepções. Nesse sentido, esclarece SALGADO:

“A alteridade é, inquestionavelmente, elemento essencial ao


conceito de justiça em Aristóteles, seja no sentido de justiça
universal (respeito à lei ou prática das virtudes enquanto
relacionadas com o outro), seja no da justiça particular (que manda
observar a igualdade)”31.

De modo que o pensamento aristotélico, fundante na construção das


matrizes éticas (e jurídicas) do ocidente, enuncia filosoficamente que a concreção da
justiça só se pode dar para o outro, em exercício prático e renovado de alteridade.

2.2. LÉVINAS: ÉTICA DA ALTERIDADE COMO FILOSOFIA PRIMEIRA

Mais de dois milênios depois da Filosofia prática e do emparelhamento de


justiça e alteridade em ARISTÓTELES, a obra filosófica de EMMANUEL LÉVINAS —
nascido em 1906, em Kovno, Lituânia, e falecido em 1995, em Paris — tem o seu
centro claramente na questão ética, mergulhado na intersubjetividade e nas
reentrâncias da relação do homem com o seu próximo. Judeu, perseguido pelo
                                                            
29 RAMOS, Marcelo Maciel. Ética grega e cristianismo na cultura jurídica do ocidente. Dissertação de

Mestrado. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2007, p. 186.


30 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, cit., 1131b.
31 SALGADO, A idéia de justiça em Kant, cit., p. 38.

21
 

 
 

czarismo russo e pelo nazismo, LÉVINAS lançou suas reflexões em um contexto de


anti-semitismo na primeira metade do século XX, tempo em que as noções de
identidade e diferença se potencializaram enormemente.

Projetando crítica ao primado da ontologia dentre as disciplinas do


conhecimento, LÉVINAS propõe a ética da alteridade como filosofia primeira. A
desconstrução do “ser”, do “mesmo”, típica da filosofia contemporânea, cede passo,
em LÉVINAS, à presença primeira do “outro”, a preencher a lacuna do “ser”
desconstruído, o que evoca um senso de responsabilidade fundamental a toda sua
construção ética. Afirma o filósofo que “o domínio reservado da alma não se fecha
a partir do íntimo” e, assim, “ninguém pode permanecer em si: a humanidade do
homem, a subjetividade, é uma responsabilidade pelos outros”32.

Assim, a alteridade coloca-se como verdadeiro estatuto ético no


pensamento de LÉVINAS. Nas palavras do autor:

“Descrevo a ética, é o humano, enquanto humano. Penso que a


ética não é uma invenção da raça branca, da humanidade que leu os
autores gregos nas escolas e que seguiu certa evolução. O único
valor absoluto é a possibilidade humana de dar, em relação a si,
prioridade ao outro”33.

Em relação à ética em LÉVINAS, afirma NÉLIO VIEIRA DE MELO que “a


subjetividade do sujeito levinasiano é diretamente comandada pelo outro”, o que
não implica, contudo, “uma subjugação do sujeito, ou a perda de sua liberdade”.
Isso porque “a humanidade da consciência de ser pelo outro não está absolutamente

                                                            
32 LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Trad. Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis:

Vozes, 1993, p. 104-105.


33 LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Stefano Pivatto et.

al. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 149-150.

22
 

 
 

nos seus poderes, mas na sua responsabilidade, na passividade, na acolhida, no


serviço, na obediência, na obrigação e respeito de outrem: é o outro o primeiro”34.

No contexto dessa ímpar construção ética, a concepção de justiça de


LÉVINAS está, também, permeada pela responsabilidade em relação ao outro,
depurando-se nas práticas de alteridade. Diz o filósofo:

“É em nome da responsabilidade por outrem, da misericórdia, da


bondade às quais apela o rosto do outro homem que todo o
discurso da justiça se põe em movimento, sejam quais forem as
limitações e os rigores da dura lex que ele terá trazido à infinita
benevolência com outrem. (...) Justiça a se tornar sempre mais sábia
em nome, em memória da bondade original do homem para com
seu outro”35.

Assim, pode-se compreender que, para LÉVINAS, os direitos do homem


deverão ser, em última análise, direitos de outro homem.

2.3. O ESTRANGEIRO COMO “O OUTRO” E A PROTEÇÃO AO TRABALHADOR


IMIGRANTE À LUZ DA ALTERIDADE

À luz dessas brevíssimas considerações acerca da alteridade no contexto do


pensamento filosófico de ARISTÓTELES e LÉVINAS, pretende-se, ao longo desta
pesquisa, refletir sobre o alcance das proteções normativas estendidas aos
trabalhadores imigrantes.

                                                            
34 MELO, Nélio Vieira de. A ética da alteridade em Emmanuel Lévinas. Porto Alegre: EDIPUCRS,

2003, p. 284.
35 LÉVINAS, Entre nós, cit., p. 294.

23
 

 
 

Como já visto, a identificação do estrangeiro ou imigrante36 inicia-se com


uma percepção negativa, de não pertencimento, baseada no critério objetivo da
nacionalidade. Ser estrangeiro para algum país é não ser nacional dele. Isso implica
que a condição do estrangeiro que migra para um novo país seja, necessariamente,
de “outro” na relação com o nacional da sociedade receptora.

O traço da não identidade, assim, acompanhará o imigrante no seu destino.

O que se pode perceber é que o imigrante — em condição de regularidade


ou irregularidade — manterá junto a si, enquanto perdurar sua situação (de
imigrante), uma forte carga da diferença, que nutrirá sua situação de “outro”,
mesmo que, do ponto de vista jurídico-formal (como no caso dos imigrantes
regulares) lhe seja assegurada a igualdade de tratamento.

“Somente a justiça, entre todas as virtudes, é o ‘bem do outro’, pois, de


fato, ela se relaciona com o próximo, fazendo o que é vantajoso a um outro”37.
Tomando-se o marcado traço da alteridade aristotélica para a conceituação de
justiça, e considerando que a busca do justo é finalidade do direito por excelência, a
proteção jurídica do estrangeiro (como “outro”) tem decantada força axiológica para
firmar-se.

                                                            
36 A reflexão sobre a alteridade atinge tanto aos estrangeiros quanto aos imigrantes. A distinção

entre os dois conceitos, contudo, é bem marcada, como visto neste capítulo. Relembre-se, por
oportuno, a lição de ABDELMALEK SAYAD, que sintetiza: “um estrangeiro, segundo a definição do
termo, é estrangeiro, claro, até as fronteiras; continua sendo estrangeiro enquanto puder
permanecer no país. Um imigrante é estrangeiro, claro, até as fronteiras, mas apenas até as
fronteiras. Depois que passou a fronteira deixa de ser um estrangeiro comum para tornar-se um
imigrante. Se ‘estrangeiro’ é a definição jurídica de um estatuto, ‘imigrante’ é antes de tudo uma
condição social”. Consultar: SAYAD, A imigração ou os paradoxos da alteridade, cit., p. 243.
37 ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, cit., 1130a.

24
 

 
 

Assim, reconhecer a condição de “outro”, assimilando-a para estender ao


imigrante a proteção do Direito, para além das questões formais propriamente ditas,
esboça-se como um imperativo de justiça.

A prática da alteridade, contudo, não é um exercício simples, como bem


destacou CRISTOPH WULF:

“O problema da alteridade compreende três níveis:


O primeiro nível refere-se aos julgamentos de valor: como é que eu
julgo os membros de uma cultura estrangeira? Eu os acho atraentes
ou repulsivos?
O segundo nível diz respeito à aproximação com o outro. Entra
em jogo aqui minha atitude de comunicação: eu procuro o outro,
eu o desejo próximo a mim, eu me identifico com ele, eu o assimilo
ou deixo-me subjugar por ele na euforia pelo estrangeiro?
Existe um terceiro nível: aqui eu conheço o outro ou o ignoro, eu
não entro em contato direto com ele.
É natural que esses três níveis do aprendizado intercultural se
entrelacem e que reconheçamos neles diferentes inflexões.
Entretanto, o objetivo é a aceitação da exterioridade do outro, o
que exige uma dose de auto-superação que torna possível o
reconhecimento do outro extremo”38.

O tratamento jurídico concreto dado ao estrangeiro, para aproximar-se da


justiça, deve atravessar e superar cada um desses ditos níveis, com vistas a atingir a
aceitação, acolhida e responsabilidade pelo outro, dando vazão àquilo que LÉVINAS
chamou “humanismo do outro homem”39.

Contudo, tal norte geral da alteridade, no campo do Direito, não afastará


uma série de reflexões que são suscitadas a partir da complexa interface de valores
juridicamente tutelados, plasmado em um sistema de princípios que, em situações
concretas, demandarão intrincados exercícios de harmonização. Mesmo porque, na
                                                            
38 WULF, Cristoph. O outro: perspectivas da educação intercultural. Trad. Marcos Demoro. In

MENDES, Candido (org.). Representação e complexidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.


39 Cf. a obra: LÉVINAS, Humanismo do outro homem, cit.

25
 

 
 

própria composição do “bem comum”, objetivo máximo da justiça em sentido


amplo enunciada por ARISTÓTELES, interagem uma série de interesses, que, por
vezes, se contrapõem.

Alguns questionamentos são basilares. Bem comum de quem? O traço de


identidade será fundamental para que se situe a questão. Bem dos nacionais, parte de
uma comunidade definida, identificada por determinados topoi? Bem do homem, na
generalidade da identidade humana? Seriam mutuamente excludentes na análise da
condição dos imigrantes? Em que circunstâncias?

Nesse panorama, coloca-se a emblemática situação do trabalho prestado


por imigrantes indocumentados, que desafia a soberania de um Estado na disciplina
normativa da imigração, descurando de valores caros à ordem jurídica. A ilegalidade
original cometida por um imigrante que adentra um território sem a devida
permissão deverá afetar de alguma forma as relações de emprego estabelecidas por
este indivíduo em sua estadia?

Como se verá em maior detalhe adiante, pode-se, por exemplo, sustentar


uma aplicação restritiva da proteção trabalhista, por força da própria ilicitude do
objeto do contrato de emprego firmado40. Nesse caso, um suposto bem comum da
sociedade implicaria na rejeição ao “outro” em situação de clandestinidade.

Ao mesmo tempo, dá-se que a universalização da proteção ao trabalho, em


sua materialidade, não parece poder sucumbir a obstáculos de ordem formal,
sobretudo em face de trabalho humano efetivamente realizado.

                                                            
40 O tema da nulidade dos contratos de emprego celebrados por imigrantes em condição de

irregularidade será detalhadamente analisado no capítulo V da presente obra.

26
 

 
 

Tal posição ressona na própria vocação protetora do Direito do Trabalho,


que tem em sua gênese a preocupação da retificação efetiva de um desequilíbrio no
plano dos fatos41. Aqui, em reconhecimento à identidade humana e ao valor social
do trabalho, protege-se o suposto “outro”, estendendo a ele as garantias
justrabalhistas, conduzindo-o a uma situação de igualdade com os nacionais.

Assim, a proteção justrabalhista do imigrante passaria pelo reconhecimento


da condição de “outro” do imigrante, chamando para o Direito do Trabalho
nacional a responsabilidade tutelar (ao menos sobre o trabalho já prestado), por
meio de um verdadeiro exercício de alteridade, que dá à justiça a sua necessária
concreção.

3. O DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DIGNO E A PROTEÇÃO JURÍDICA


AO TRABALHADOR IMIGRANTE

Alicerçada no conteúdo ético do trabalho e no seu papel de identificação do


indivíduo trabalhador, GABRIELA NEVES DELGADO postula a existência de um
direito fundamental ao trabalho digno, conceito que se densifica na proteção jurídico-
normativa, na regulação do trabalho humano42. Trata-se, efetivamente, de poderoso
instrumento teórico para o tratamento dos desafios concretos do Direito do
Trabalho — tal qual o proposto na presente pesquisa —, a fornecer respostas
alinhadas aos fundamentos e sentidos próprios deste ramo do Direito.
                                                            
41 Nesse sentido, o apontamento de LUIZ OTÁVIO LINHARES RENAULT: “O Direito do Trabalho

não se convence do argumento corriqueiro (...) de que todo homem é livre e igual, capaz em
direitos e obrigações, por isso apto a celebrar e cumprir o contrato que desejar com as cláusulas que
bem entender (...). Para se ter uma serena compreensão, lúcida e honesta, não se pode desprezar a
certeza de que a parte mais fraca se torna uma presa muito fácil para a parte mais forte”. Consultar:
RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Que é isto – O Direito do Trabalho? In PIMENTA, José
Roberto Freire et al. Direito do Trabalho: evolução, crise, perspectivas. São Paulo: LTr, 2004.
42 A reflexão está contida essencialmente na obra Direito fundamental ao trabalho digno. Cf.

DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006.

27
 

 
 

Para GABRIELA NEVES DELGADO, “o trabalho deve ser compreendido em


sua significação ética, ou seja, em qualquer época e cultura o homem deve afirmar e
consolidar, (...) considerada qualquer hipótese e circunstância, sua condição de ser
humano”43. Esta função humanizadora do trabalho, aliás, é também percebida por
ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA, ao afirmar que:

“Embora predomine hoje a natureza econômica do trabalho, pois é


dele que vive a grande maioria das pessoas, o fim ético não pode
ser esquecido, porque é por ele que se impede a ‘coisificação’ do
homem que trabalha, evitando sua identificação puramente
materialista como fator da produção”44.

Da finalidade ética, pela qual o trabalho deve ser um vetor de afirmação da


condição humana, decorre o papel fundamental do trabalho na construção da
identidade do indivíduo trabalhador. Diz GABRIELA NEVES DELGADO que “o
homem deve ter assegurado, por meio do trabalho digno, sua consciência de
liberdade, para que possa construir-se e realizar-se em sua identidade como sujeito-
trabalhador”45.

Portanto, por meio do trabalho, prestado em condições de dignidade, o


homem se afirma enquanto indivíduo e se sociabiliza de forma integral. Em outras
palavras, vive e realiza a sua essência humana.

A questão reflexiva transfere-se, então, para a caracterização do que seria


esta condição de dignidade da prestação de trabalho, tomada a dignidade enquanto

                                                            
43 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 236.
44 SILVA, Flexibilização das relações de trabalho, cit., p. 19.
45 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 23.

28
 

 
 

valor “essencial para o trabalho humano sob qualquer uma de suas formas e em
qualquer processo histórico”46.

Entende a autora que o trabalho, enquanto parte natural da existência


humana, pertence ao domínio do ser47. Naturalmente, o homem tem o ímpeto e a
necessidade de transformar o meio que o circunda para suprir as suas necessidades e
também criar.

A partir da formação de uma consciência da liberdade, ainda no mundo do


ser, “o trabalho pode revelar em si o valor da dignidade”48, colocando-se como
verdadeiro suporte de valor. Isto ocorre, vale ressaltar, antes mesmo da incidência de
regulação jurídica. Diz a autora:

“Se o trabalho for penoso, insalubre ou perigoso, o valor


apreendido é negativo; caso o trabalho seja realizado em condições
dignas, possibilitando que o trabalhador se reconheça na sua
condição humana por meio de sua identidade social, tem-se um
valor positivo. Perceba-se: o suporte é o mesmo, o trabalho; o que
varia é a sua qualificação”49.

Assim, “quase toda atividade de trabalho humano pode ser potencialmente


capaz de dignificá-lo”50, dependendo, para tanto, das condições em que é prestado.

A transposição ao reino do dever-ser dá-se quando a consciência e


oficialidade no que toca à relevância da garantia de padrões de dignidade no trabalho
se desenvolvem, dando origem a uma regulação jurídica do fenômeno, plasmada

                                                            
46 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 242.
47 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 26.
48 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 26.
49 DELGADO, Gabriela Neves. O trabalho digno enquanto suporte de valor, Âmbito Jurídico, Rio

Grande, n. 40, 2007. Disponível em www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link= revista_


artigos_leitura&artigo_id=1770. Acesso em 22 de fevereiro de 2009.
50 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 27.

29
 

 
 

historicamente no Direito do Trabalho. Consolida-se, aí, no entender da autora, “a


forma mais eficiente de viabilização do trabalho digno”51.

A experiência histórica formadora da contemporaneidade leva a autora a


concluir, então, que, nos dias de hoje, “a idéia do trabalho, considerada sua
‘conotação ética’, somente pode ser viabilizada por meio de sua proteção jurídica,
revelando-se como um direito universal e fundamental do ser humano”52. E
arremata, afirmando que:

“O trabalho não violará o homem enquanto fim em si mesmo,


desde que prestado em condições dignas. O valor da dignidade deve ser
o sustentáculo de qualquer trabalho humano.
Por esta razão é que se impõe a necessidade de que, pelo menos, os
direitos alçados à qualidade de indisponibilidade absoluta (e que
sejam relacionados à prestação de serviços) estejam assegurados a
todo e qualquer trabalhador”53.

Ou seja, em última análise, no mundo contemporâneo, a condição de


dignidade é dada justamente pela regulação jurídica, repositório dos referenciais
axiológicos historicamente maturados no conteúdo dos direitos de indisponibilidade
absoluta.

E para lançar ainda mais concretude à reflexão que propõe, a professora


mineira entende ser “necessário estabelecer, expressamente, quais são, no caso
brasileiro, os direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta capazes de assegurar
ao trabalhador o patamar civilizatório mínimo do direito fundamental ao trabalho
digno”54.

                                                            
51 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 26.
52 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 71.
53 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 207.
54 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 214.

30
 

 
 

Propõe, então, serem basicamente três eixos jurídicos a consolidarem o


grupo dos direitos trabalhistas indisponíveis, garantidores da dignidade na prestação
de trabalho, a saber: os tratados e convenções internacionais ratificados; as normas
constitucionais afetas ao trabalho; e a legislação infraconstitucional “que estabelece
preceitos indisponíveis relativos à saúde e à segurança no trabalho, à identificação
profissional, à proteção contra acidentes do trabalho, entre outros”55, 56.

Ressalta a autora que tais direitos devem ser deferidos de maneira irrestrita,
firmando “expectativa de regulamentação de toda e qualquer relação de trabalho que
se demonstre digna, por meio da universalização da proteção direcionada pelo
Direito do Trabalho”57. As únicas exclusões aceitáveis, ainda segundo GABRIELA
NEVES DELGADO, são aquelas referidas “às relações de trabalho que não sejam
capazes de dignificar o homem”58, como, por exemplo, o trabalho escravo.

Ganha solidez, portanto, na reflexão da autora, a diretriz universalizante dos


direitos fundamentais da pessoa humana no âmbito do trabalho, que devem ser
garantidos pela ordem jurídica a todo e qualquer trabalho prestado em condições de
potencial dignidade, de maneira absolutamente indisponível.

As situações de exclusão que prenuncia GABRIELA NEVES DELGADO


dizem respeito às prestações humanas que não podem realizar em si uma função
ética, por não concorrerem para a afirmação da condição humana,
autoconhecimento e sociabilização integral, além de ferirem outros valores caros à
ordem jurídica. Nesses casos, como, por exemplo, na prática de ilícitos penais, mais

                                                            
55 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 214-215.
56 A proposição dos eixos de direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta encontra-se na obra

de MAURICIO GODINHO DELGADO. Cf. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do


Trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 1321.
57 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 216.
58 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 216.

31
 

 
 

do que justificada está a não proteção do dispêndio de energia humana pelo Direito
do Trabalho.

Há que se ressaltar, também, a função desagregadora do trabalho prestado


em situação de indignidade. É o que ressalta GABRIELA NEVES DELGADO ao
afirmar que “ao mesmo tempo em que o trabalho auxilia na construção da
identidade social do homem, pode também destruir a sua existência, caso não
existam condições mínimas para o seu exercício em condições de dignidade”59.

A análise da condição jurídica do trabalhador imigrante à luz do direito


fundamental ao trabalho digno revela um grande norte jusfilosófico no sentido de se
conceder ampla e progressiva proteção. Ou seja, ao imigrante deve ser dada a
chance de se realizar individualmente, socializando-se de forma plena na sociedade
anfitriã, o que passará, necessariamente, pelo trabalho juridicamente regulado. A
diferenciação pela nacionalidade ou situação migratória não justificaria a retirada da
proteção jurídica e a exposição do trabalho prestado à indignidade.

Não se pode postular, assim, que a condição de irregularidade migratória


implique na supressão ou no afastamento do direito fundamental ao trabalho digno.
Esta supressão seria incompatível com a estrutura da teorização de GABRIELA
NEVES DELGADO, dado que o trabalho prestado pelo imigrante não documentado
é, em si, potencialmente dignificante60, mesmo que a energia física e mental daquele
trabalhador seja despendida em uma situação maculada do ponto de vista formal
(sem o visto adequado, por exemplo). A própria autora expressou este
entendimento ao afirmar que “considerado o direito como instrumento de justiça
                                                            
59 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 23.
60 Excluem-se, obviamente, situações em que os imigrantes praticam ilícitos penais no país receptor,

como forma de “trabalho” ou são sujeitos a trabalho em condição análoga à de escravo, temas a
serem tratados no capítulo V. Nessas hipóteses, contudo, não é a situação migratória que elimina o
traço dignificante do trabalho, mas as próprias finalidades a que se dirige ou as condições em que
este é prestado.

32
 

 
 

social, ao se constatar a relação de emprego do imigrante indocumentado, é dever


garantir-lhe todos os direitos trabalhistas”61.

Feitas estas reflexões acerca das bases jusfilosóficas sobre as quais se erige a
proteção ao trabalhador imigrante, a compreensão das normas que formam o
substrato jurídico propriamente dito dessa proteção se fará de maneira mais
orientada, sem nunca perder de vista o grande panorama no qual se inserem os
diplomas e regulamentos.

                                                            
61 DELGADO, Gabriela Neves, NUNES, Raquel Portugal. Subterrâneos da imigração. Estado de

Minas, Belo Horizonte, 19 de setembro de 2008. Caderno opinião, p. 11.

33
 

 
 

CAPÍTULO II
OS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA PROTEÇÃO AO TRABALHADOR
IMIGRANTE

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e


em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns
para com os outros em espírito de fraternidade”.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS


Declaração Universal dos Direitos Humanos

4. A PROTEÇÃO AO TRABALHADOR IMIGRANTE NO QUADRO DOS DIREITOS


SOCIAIS

Como visto no capítulo precedente, o trabalho ocupa posição de destaque


na dinâmica da imigração e na identificação social do indivíduo imigrante, e, por esta
razão, a condição jurídica do imigrante terá significativa parte de si formada pela
disciplina justrabalhista a que ele se aplica. Assim, situar previamente as questões
afetas à imigração laboral no quadro dos fundamentos historicamente maturados da
proteção ao trabalho se revela providência verdadeiramente obrigatória, por seu
potencial de elucidação, a orientar e formatar as conclusões específicas a serem
posteriormente alcançadas.

A proteção jurídica ao trabalho humano, nos termos hoje conhecidos, foi


construída a partir das lutas sociais dos séculos XVIII, XIX e XX, e consolidada na
matriz dos chamados direitos sociais, dimensão dos direitos fundamentais da pessoa
humana62. Sobre os direitos sociais, veja-se a definição proposta por JOSÉ AFONSO
DA SILVA:

                                                            
62 Noticie-se a controvérsia terminológica em relação às expressões “direitos fundamentais”,

“direitos humanos” e afins, quanto à extensão de seu alcance e significado. Cf., nesse sentido,
SIMM, Zeno. Os direitos fundamentais na relação de trabalho. Revista LTr, São Paulo, v. 69, n. 11,
p. 1287-1303, 2005. De toda sorte, no presente trabalho, serão empregadas as expressões de

34
 

 
 

“Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do


homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado
direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais,
que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos,
direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais
desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de
igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos
individuais na medida em que criam condições materiais mais
propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez,
proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da
liberdade”63.

Assim, como entende GUILHERME PEÑA DE MORAES, direitos sociais são


direitos essenciais “para a realização da vida em todas as suas potencialidades, sem
as quais o seu titular não poderia alcançar e fruir dos bens que necessita”64.

Não é difícil perceber que o trabalho é elemento fundamental a possibilitar


o desenvolvimento do indivíduo em todas as suas potencialidades, para que possa
ele alcançar condições materiais e fruir dos bens que necessita. Por meio do
trabalho, diz ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA, o homem “atua sobre o mundo
exterior, transformando-o em sua forma e conteúdo para a satisfação de suas
necessidades e desejos”65. Para tanto, “coloca suas forças espirituais e físicas para
atingir um fim útil e sério”66.

                                                                                                                                                                              
maneira sinônima, no escólio de DALMO DALLARI, para quem “a expressão ‘direitos humanos’ é
uma forma abreviada de mencionar os direitos fundamentais da pessoa humana”. Sobre tais
direitos, DALLARI ensina que “são considerados fundamentais porque sem eles a pessoa humana
não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar plenamente da vida”.
DALLARI, Dalmo. Direitos humanos: noção e significado. Disponível em
http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/oquee/oquedh.htm. Acesso em 22 de fevereiro de 2009.
63 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001,

p. 289-290.
64 MORAES, Guilherme Peña de. Direito Constitucional: teoria dos direitos fundamentais. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 63.


65 SILVA, Antônio Álvares da. Flexibilização das relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 18.
66 SILVA, Flexibilização das relações de trabalho, cit., p. 18.

35
 

 
 

Colocando-se o trabalho como o veículo essencial para a satisfação das


necessidades físicas e psíquicas do homem, a proteção jurídica aos trabalhadores
tornou-se central na formulação normativa e na luta pela efetivação dos chamados
direitos sociais, acolhendo diretamente os reclamos do princípio da igualdade. Em
verdade, o Direito do Trabalho afirmou-se como ramo jurídico por excelência dos
direitos sociais. Isso porque a assimetria típica entre os pólos das relações de
trabalho no sistema capitalista, que se manifestava ao tempo da consolidação do
ramo justrabalhista de maneira muito proeminente, conclamava por retificações
jurídicas positivas e concretas (típicas, como visto, dos direitos sociais), de modo a
promover padrões mínimos de igualdade.

Neste panorama, desde as primeiras linhas normativas de proteção ao


trabalho até a discussão atual sobre a extensão e futuro do ramo justrabalhista, o que
se viu foi o desenvolvimento, no plano internacional e nas ordens jurídicas
nacionais, de uma marcha de robustecimento da proteção ao trabalho. Firmaram-se,
neste caminho, direitos atinentes às relações empregatícias que viabilizam a função
ética do trabalho e encampam os valores ínsitos ao homem, de franca tendência
universal.

Sobre esta marcha, e a consolidação do Direito do Trabalho no século XX,


diz JORGE LUIZ SOUTO MAIOR:

“A integração de normas trabalhistas às Constituições, a criação de


um órgão internacional voltado às relações de trabalho (a OIT) e o
reconhecimento mundial da importância de se minimizarem os
efeitos perversos da exploração do capital sobre o trabalho
humano (...) fornecem vasto campo para a criação de um novo
direito, um direito que teria como função tornar a preocupação
com a justiça social mais que um compromisso moral, com
limitação dos interesses econômicos; e um dever do Estado. (...)
Um direito promotor da justiça social, sendo que esta, a justiça
social, tanto pode ser vista do ponto de vista ético (ou filosófico),

36
 

 
 

que reflete a preocupação de preservar a integridade física e moral


do trabalhador; quanto do ponto de vista econômico, que se traduz
como a busca de uma necessária distribuição eqüitativa da riqueza
produzida”67.

Percebe MAURICIO GODINHO DELGADO a relevância da transformação


socializadora que se processou no caminho da proteção jurídica ao trabalho,
pontuando que:

“O conceito de direitos fundamentais somente adquiriu relevância


e consistência (...) com o advento da inovadora incorporação em
sua matriz dos vastos segmentos socioeconômicos destituídos de
riqueza que, pela primeira vez na história, passaram a ser sujeitos
de importantes prerrogativas e vantagens jurídicas no plano da vida
em sociedade. Este fato decisivo e inédito somente iria ocorrer a
partir da segunda metade do século XIX (...). Não por coincidência
ele se confunde com o advento do Direito do Trabalho”68.

Desta forma, no paradigma do Estado Democrático de Direito, em que


estão consolidadas as bases do Direito do Trabalho69 (decerto como herança
estruturada no paradigma do Estado Social), para assegurar uma vida plena, que
congregue a possibilidade de atendimento às necessidades existenciais mínimas, a
formação de uma identidade individual, o exercício da cidadania, a distribuição de
renda e a realização ética, a ordem jurídica defere ao indivíduo trabalhador proteção
no que toca ao dispêndio de sua energia física e mental no trabalho.

                                                            
67 SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. A Fúria. Revista LTr, São Paulo, v. 66, n. 11, p. 1287-1309, 2002, p.

1289.
68 DELGADO, Mauricio Godinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. In SILVA,

Alessandro da, SOUTO MAIOR, Jorge Luiz, FELIPPE, Kenarik Boujikian, SEMER, Marcelo
(orgs.). Direitos humanos: essência do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p. 67-68.
69 Não se ignora, aqui, o momento de crise e transição pelo qual vem passando o Direito do

Trabalho desde a década de 1970 em todo o mundo. O que se está a afirmar é que no Estado
Democrático de Direito, as bases axiológicas da proteção ao trabalho estão decantadas e formou-se
um robusto conjunto normativo a encampá-la, tanto no plano internacional quanto nas ordens
constitucionais.

37
 

 
 

É nesta esteira que JOAQUIM CARLOS SALGADO afirma ser o trabalho “o


centro convergente dos direitos sociais”70.

Esclareça-se, aqui, que os direitos sociais (que por vezes são evocados
também pela alcunha amplificada de direitos econômicos, sociais e culturais) não
contemplam tão somente os direitos afetos ao trabalho. Divergem os autores
quanto à extensão desta categoria de direitos71, incluindo, por vezes, direitos
atinentes à educação, saúde, lazer, desporto, turismo, entre outros. Reconhecem,
contudo, de forma unânime, a centralidade dos direitos trabalhistas, verdadeira
condição para a integralidade de uma existência digna.

Os direitos trabalhistas, enquanto dimensão dos chamados direitos


fundamentais, trazem consigo as características próprias de seu gênero, lembradas
na clássica lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA: são históricos, inalienáveis,
imprescritíveis e irrenunciáveis72.

Neste giro, merece destaque o fato de que as normas de proteção ao


trabalho têm a marca da inalienabilidade, reflexo de sua própria natureza jurídica e dos
valores por elas incorporados. Oportuna, aqui, a reflexão de GABRIELA NEVES
DELGADO, ressaltando a indisponibilidade absoluta que decorre desta inalienabilidade
dos direitos atinentes ao trabalho:

“A indisponibilidade absoluta dos direitos fundamentais pode ser


melhor compreendida quando se tem como referência seu caráter
axiológico, ou seja, manifestam valores inerentes à pessoa humana
                                                            
70 SALGADO, Joaquim Carlos. Os direitos fundamentais. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo

Horizonte, UFMG, n. 82, p. 15-69, jan. 1996, p. 18.


71 A catalogar de forma detalhada a divergência na doutrina quanto à extensão do conceito de

direitos sociais vide HORTA, José Luiz Borges. Filosofia dos direitos fundamentais. In
BROCHADO, Mariá, HORTA, José Luiz Borges. Estudos jusfilosóficos: homenagem a Joaquim
Carlos Salgado. (no prelo).
72 SILVA, Curso de Direito Constitucional positivo, cit., p. 185.

38
 

 
 

(...), todos eles considerados indispensáveis à formação integral do


homem enquanto cidadão”73.

Diz, ainda, a autora, que “no momento em que os direitos fundamentais


ingressam no ordenamento jurídico, eles devem ser compreendidos enquanto
direitos de indisponibilidade absoluta, já que são direitos inatos à pessoa humana”74.
Ou seja, o momento de juridicização alinha-se aos reclamos do substrato axiológico
sobre o qual se aperfeiçoa.

Portanto, é sobre valores inerentes que se erige a proteção jurídica ao


trabalho humano. Para FÁBIO KONDER COMPARATO, o fundamento dos Direitos
Humanos, aqui incluída a proteção ao trabalho, “não é outro senão o próprio
homem, considerado em sua dignidade substancial de pessoa, cujas especificações
individuais e grupais são sempre secundárias”75.

Deste indissociável conteúdo axiológico dos direitos fundamentais decorre


a vocação universalizante de proteção jurídica ao trabalho, consolidada em
conquistas históricas que devem ser acumuladas de forma progressiva e ampliativa
nas normas jurídicas. É o que leciona DANIELA MURADAS:

“A experiência histórica é assumida como progresso da realização


de valores que, elevados ao plano da consciência, reclamam a
progressiva tutela jurídica.
E assim os homens trazem em seus flancos a missão universal de
realizar os valores que lhes são caros em cada quadrante histórico e
ainda progredir na proteção jurídica aos valores que figuram como
conquista histórica definitiva”76.
                                                            
73 DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006, p. 56.
74 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 210.
75 COMPARATO, Fábio Konder. Fundamentos dos Direitos Humanos. Revista Jurídica Consulex,

São Paulo, ano IV, v. I, n. 48, p. 52-61, 2001, p. 54.


76 MURADAS, Daniela. Contributo ao Direito Internacional do Trabalho: a reserva implícita ao retrocesso

sócio-jurídico do trabalhador nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho. Tese de


doutoramento. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais,
2007, p. 84.

39
 

 
 

Também nesta linha caminha ZENO SIMM, ao afirmar que “os direitos
fundamentais do trabalhador devem ter a idéia de universalidade, no sentido de serem
atribuídos com características de generalidade a todos os trabalhadores”77.

Nesse contexto é que o Direito Internacional do Trabalho emerge como


plataforma essencial de proteção ao trabalhador, dando corpo aos direitos sociais ao
enunciar normas que, na lição de GABRIELA NEVES DELGADO “refletem um
patamar civilizatório universal de direitos compartilhados pelos Estados”78, a serem
globalmente aplicados.

A essência deste ramo jurídico transparece na lição de ARNALDO


SÜSSEKIND, que, ao enumerar as finalidades e objeto do Direito Internacional do
Trabalho, destaca as funções de “universalizar os princípios de justiça social” e
“incrementar a cooperação internacional visando à melhoria das condições de vida
do trabalhador e à harmonia entre o desenvolvimento técnico-econômico e o
progresso social”79.

Alerte-se não pretender a presente pesquisa, por seus limites e proposições


últimas, exaurir a discussão filosófica sobre a questão da universalidade dos Direitos
Humanos. Uma vez que, ao final das reflexões aqui propostas, as conclusões se
basearão em marcos normativos internacionais de ampla aceitação na ordem global,
as ponderações até aqui feitas parecem suficientes. Isso porque, como assevera
LINDGREN ALVES, “valores universalmente compartilhados hoje se afirmam com

                                                            
77 SIMM, Os direitos fundamentais na relação de trabalho, Revista LTr, cit., p. 1303.
78 DELGADO, Gabriela Neves. Princípios internacionais do Direito do Trabalho e do Direito

Previdenciário. Revista LTr, São Paulo, a. 74, t. I, n. 03, p. 337-342, mar. 2010, p. 339.
79 SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Internacional do Trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 17.

40
 

 
 

legitimidade na agenda internacional”80, e tal constatação é bastante proeminente na


regulação internacional do trabalho.

Nesse viés, como alertou NORBERTO BOBBIO, existe uma percepção


corrente de que:

“Há alguns [direitos] que valem em qualquer situação e para todos


os homens indistintamente: são os direitos acerca dos quais há a
exigência de não serem limitados nem diante de casos excepcionais,
nem com relação a esta ou àquela categoria, mesmo restrita, de
membros do gênero humano”81.

Resta induvidoso, então, o entendimento de que as grandes linhas da


disciplina jurídica trabalhista estão revestidas desta unanimidade típica do cerne dos
direitos fundamentais, vez que são verdadeiras “prerrogativas (...) estruturantes da
existência, afirmação e projeção da pessoa humana e de sua vida em sociedade”82, na
feliz definição de MAURICIO GODINHO DELGADO.

Em face deste caminhar histórico e dos fundamentos essenciais das normas


jurídicas é que se pode propor um direcionamento de universalização da proteção ao
trabalho, a despeito da contracorrente de desestruturação e da crise experimentada
pelo Direito do Trabalho na contemporaneidade, com regência puramente
econômica, por meio do discurso da chamada flexibilização da normativa trabalhista
ou de outros meios de precarização da proteção ao trabalho.

Pinçados estes elementos essenciais da proteção trabalhista enquanto


projeção de direitos fundamentais da pessoa humana, aqui se podem esboçar linhas
                                                            
80 ALVES, José Augusto Lindgren. Cidadania, direitos humanos e globalização. Revista da Associação

dos Magistrados Brasileiros, Brasília, ano 3, n. 7, p. 92-110, 2. sem. 1999, p. 106.


81 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,

1992, p. 20.
82 DELGADO, Mauricio Godinho. Direitos fundamentais na relação de trabalho. In SILVA,

SOUTO MAIOR, FELIPPE, SEMER, (orgs.), Direitos humanos, cit., p. 67.

41
 

 
 

estruturantes para a compreensão genuinamente jurídica da situação do imigrante e


do trabalho por ele prestado.

A base axiológica dos direitos fundamentais, conforme alinhavou FÁBIO


KONDER COMPARATO83, secundariza especificações individuais em benefício da
própria condição humana, de inarredável caráter universal. Assim, independe a
proteção ao trabalho humano de características individuais como a nacionalidade ou
mesmo a regularidade migratória.

Em outras palavras, a proteção jurídica do trabalho do imigrante decorrerá


de sua própria condição humana, que, na moldura dos direitos fundamentais, por
suas características essenciais historicamente solidificadas, se sobrepõe à sua situação
de estrangeiro e imigrante.

5. O PRINCÍPIO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO E O UNIVERSO DO TRABALHO

Para os imigrantes — grupo de indivíduos cuja identidade se constrói a


partir de uma diferença em relação aos nacionais — a análise da disciplina jurídica
da discriminação, por óbvio, não poderia ser dispensada.

Como visto ao longo do primeiro capítulo, padecem os imigrantes de


grande vulnerabilidade social, o que decorre de fatores como preconceito e
xenofobia, estando, deste modo, sujeitos à discriminação em todas as esferas da vida
cotidiana. Tais formas de discriminação se manifestam, decerto, no campo do
trabalho, vez que se trata da matriz por excelência das interações entre o migrante e
a sociedade receptora.

                                                            
83 COMPARATO, Fundamentos dos Direitos Humanos, Revista Jurídica Consulex, cit., p. 54.

42
 

 
 

Lembre-se, aqui, que em sentido lato, discriminar significa discernir,


diferençar, distinguir, separar, especificar, tratar de modo preferencial, e não traz
necessariamente consigo um sentido negativo84.

Interessa à reflexão jurídica — e, assim, à reflexão quanto à condição do


imigrante — saber quando a discriminação, por estar em desacordo com
imperativos jurídicos, é vedada.

Aponta MAURICIO GODINHO DELGADO que a discriminação é


juridicamente proibida quando pautada em “critério injustamente qualificante”85, ou
seja, quando promove diferenciações que não se justifiquem por motivo relevante
para o Direito.

Para o objeto do estudo ora proposto, restará questionar se a condição de


imigrante (sobretudo quando a imigração é irregular) constituirá justo motivo para a
admissão jurídica de normas, políticas ou práticas discriminatórias, que diferenciem
o tratamento concedido a nacionais e imigrantes, especialmente no que diz respeito
à proteção ao trabalho prestado.

É empiricamente constatável que a condição migratória pode constituir


uma das “diferenças que acarretam inquietação, insegurança, medo”86,
potencialmente causando a “discriminação, a rejeição, a repressão, a hostilidade”87

                                                            
84 O dicionário da língua portuguesa CALDAS AULETE apresenta para o verbete discriminar a

seguinte definição: “diferençar, distinguir, separar, dividir, retalhar. Discernir”. CALDAS AULETE.
Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa. 5. ed. V. II. Rio de Janeiro: Delta, 1986, p. 600.
85 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 774.
86 SCHMIDT, Martha Halfeld Furtado de Mendonça. Proteção contra discriminação por motivo de

orientação sexual. In VIANA, Márcio Túlio, RENAULT, Luiz Otávio Linhares (coords.). O que há
de novo em Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997, p. 369.
87 SCHMIDT, Proteção contra discriminação por motivo de orientação sexual. In VIANA,

RENAULT, O que há de novo em Direito do Trabalho, cit., p. 369. A autora, em seu texto, trata da

43
 

 
 

nas relações de trabalho, no esquema descrito por MARTHA HALFELD FURTADO DE


MENDONÇA SCHMIDT. Resta equacionar a resposta jurídica a tal situação.

Na esfera justrabalhista, vale lembrar, vigora o chamado princípio da não


discriminação, que decorre da matriz da vedação à discriminação injustificada e, na
lição de AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ, “leva a excluir todas aquelas diferenciações que
põem um trabalhador numa situação de inferioridade ou mais desfavorável que o
conjunto, e sem razão válida nem legítima”88.

Nas relações empregatícias, a discriminação geralmente manifesta-se em


três momentos distintos: na admissão do trabalhador; no curso do contrato de
emprego e em sua dissolução. Além disto, pode ser direta ou indireta (quanto a esta
última, na relação de trabalho, requisitos de admissão como peso, altura, idade, ou
através de conceitos imensuráveis, como capacidade de liderança e agressividade).

Em relação ao trabalho prestado por imigrantes, a discriminação poderá se


manifestar, no campo do Direito, por meio de requisitos de política migratória (a
aceitação, por exemplo, de imigrantes com qualificação profissional específica),
reservas de mercado (percentuais de postos de trabalho destinados a nacionais em
detrimento de estrangeiros) e pela não concessão de todas as garantias jurídicas ao
trabalho executado, sobretudo na situação de irregularidade migratória.

Além disto, na realidade das relações trabalhistas, podem os imigrantes


sofrer com sujeição a condições de trabalho inferiores àquelas garantidas aos
nacionais (inclusive trabalho em condição análoga à de escravo), perseguições ou

                                                                                                                                                                              
discriminação por motivo de orientação sexual. O esquema geral das causas de discriminação,
contudo, aplica-se à situação dos imigrantes.
88 PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. 3. ed. Trad. Wagner Giglio. São

Paulo: LTr, 2000, p. 445.

44
 

 
 

ameaças em decorrência de sua condição e diversas outras formas quotidianas de


discriminação pela nacionalidade ou origem étnica.

Para ALICE MONTEIRO DE BARROS, as causas da discriminação são,


basicamente, antipatia ou preconceito, ignorância, temor, intolerância e a
institucionalização por meio de políticas estatais89.

No caso dos imigrantes, as manifestações de discriminação recebem


influxos de todas estas matrizes e, como se verá ao longo do texto, podem tornar-se,
inclusive, institucionalizadas por meio de regulações discriminatórias e por práticas
estatais de intolerância à imigração, que, decerto, têm de ser avaliadas em sua
consistência jurídica em face da disciplina internacional e constitucional da igualdade
e vedação de práticas discriminatórias. O reflexo na regulação trabalhista poderá
caminhar nesta mesma direção, sobretudo com restrições a proteções normativas
típicas do Direito do Trabalho.

No caso brasileiro, importante lembrar que a igualdade (corolário da não


discriminação90) constitui princípio fundamental da República, a direcionar o trato
com todo e qualquer tema sujeito à regulação jurídica no país. Pela sua abrangência,
cite-se, aqui, a letra do art. 3º da Constituição da República:

“Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República


Federativa do Brasil:
(...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

                                                            
89 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 1066-1067.
90 Sobre a relação entre igualdade e não discriminação, explica LUIZ DE PINHO PEDREIRA DA

SILVA: “Em sua face positiva, o princípio da igualdade é constituído (...) por normas que criam aos
destinatários deveres de agir em certos moldes. No princípio da não discriminação se especifica o
da igualdade. Ele é o aspecto negativo do princípio da igualdade”. SILVA, Luiz de Pinho Pedreira
da. Principiologia do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997, p. 136.

45
 

 
 

Diversos também são os instrumentos normativos internacionais que


consagram o princípio da não discriminação. Emblemática é a Declaração Universal
dos Direitos do Homem, de 1948, que em seu art. VII estabelece que “todos são
iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei” e
que “todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação” e “contra
qualquer incitamento a tal discriminação”91.

Interessante notar que a Declaração Universal dos Direitos do Homem


estabelece diretiva específica quanto à não discriminação no Direito do Trabalho e
Seguridade Social (art. XXIII).

Aliás, a não discriminação, em suas mais diversas formas, é tema de sensível


prioridade na agenda internacional específica de proteção ao trabalho, o que está
denotado pela inclusão das Convenções 100 e 111 da OIT na Declaração sobre os
Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de 1998, que cria obrigações
internacionais aos Estados membros da Organização Internacional do Trabalho
independentemente da ratificação das respectivas Convenções92.

                                                            
91 Não adentrará o presente estudo na antiga discussão acerca da força normativa da Declaração

Universal dos Direitos do Homem de 1948. A referência a este documento é feita como forma de
evidenciar a abrangência do princípio da não discriminação no plano internacional, o que é
reforçado por diversos outros tratados (Convenções 100 e 111 da OIT, por exemplo) e pelas
Constituições ao redor do mundo. A título de registro, perfilha-se, no presente estudo, da opinião
de FÁBIO KONDER COMPARATO e ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, que, dentre
muitos outros autores, entendem pela força jurídica dos conteúdos axiológicos plasmados da
Declaração de 1948. Vide, nesse sentido, COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos
Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 210, e CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto.
Reflexões sobre o valor jurídico das Declarações Universal e Americana de Direitos Humanos de
1948 por ocasião de seu quadragésimo aniversário. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 99, p.
9-18, 1988, p. 12.
92 Sobre o contexto da edição da Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no

Trabalho de 1998, disserta MARTHA HALFELD FURTADO DE MENDONÇA SCHMIDT:


“Preocupação com os direitos fundamentais no mundo inteiro. Esse foi o principal motor que
moveu a OIT, em 1998, a eleger certas convenções como fundamentais, declarando que todos os
seus Estados-Membros deveriam respeitá-las e aplicá-las de boa-fé, independentemente de ratificação”.
Cf. SCHMIDT, Martha Halfeld Furtado de Mendonça. Breves anotações sobre as Convenções
fundamentais da OIT. In LAGE, Émerson José Alves, LOPES, Mônica Sette. O Direito do Trabalho e

46
 

 
 

A análise destas Convenções auxiliará na compreensão do sistema de


referenciais dentro do qual se deve construir a matriz jurídica da questão da
migração, especialmente quanto a seus reflexos no domínio justrabalhista.

5.1. AS CONVENÇÕES 100 E 111 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO


TRABALHO

A despeito de não se dedicarem especificamente à questão da imigração


internacional ou mesmo da discriminação contra migrantes nas relações de trabalho,
as Convenções 100 e 111 da OIT são balizas de grande importância na formatação
de uma ideia geral sobre o tratamento da discriminação no universo do trabalho.
Por esta razão, a análise de seus conteúdos, a despeito de dar-se com sensível grau
de generalidade (ou mesmo referir-se a outras situações, como a discriminação por
gênero), certamente auxiliará nos diagnósticos jurídicos próprios da questão
migratória a serem aqui propostos.

Dito isso, a Convenção 100 da OIT, de 06 de junho de 1951, entrou em


vigor na ordem internacional em 23 de maio de 1953 e foi ratificada pelo Brasil em
1957. Trata da igualdade de remuneração de homens e mulheres trabalhadores por
trabalho de igual valor. Em outras palavras, é a Convenção fundamental a vedar a
discriminação remuneratória na relação de trabalho baseada no gênero.

Nesta Convenção, cria-se um compromisso dos Estados-Membros de


aplicação do princípio da não discriminação por gênero em matéria de remuneração,
por meio de leis ou regulamentos nacionais, mecanismos legalmente estabelecidos
                                                                                                                                                                              
o Direito Internacional: questões relevantes, homenagem ao professor Osiris Rocha. São Paulo: LTr,
2005, p. 94.

47
 

 
 

ou reconhecidos para a determinação dos salários, acordos e convenções coletivas,


ou pela combinação dos diferentes meios (art. 2º da Convenção).

No Brasil, ressalte-se a diretiva da Consolidação das Leis do Trabalho:

“Art. 461 - Sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor,


prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade,
corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade
ou idade.
§1º Trabalho de igual valor, para fins deste Capítulo, será o que for
feito com igual produtividade e com a mesma perfeição técnica,
entre pessoas cuja diferença de tempo de serviço não for superior a
dois anos”.

Assim, a reboque da questão do gênero — que em meados do século XX


passava por um momento de maturação de instrumentos jurídicos de equalização
em todos os campos93 — firmaram-se diretivas essenciais de não discriminação no
emprego, que posteriormente foram dilatadas para abranger outras situações fáticas,
como a discriminação por nacionalidade e idade no art. 461 da CLT.

Nesta tendência ampliativa do repúdio à discriminação, a Convenção 111


da OIT, de junho de 1958 (ratificada pelo Brasil em 1965), estabeleceu parâmetros
mais abertos, tratando de forma genérica da discriminação em matéria de emprego e
ocupação. Busca fundamento na Declaração da Filadélfia, ao estabelecer que “todos
os seres humanos, sem distinção de raça, credo ou sexo, têm o direito de buscar
tanto o seu bem-estar material quanto seu desenvolvimento espiritual, em condições
de liberdade e dignidade, de segurança econômica e de igualdade de oportunidades”.
A Convenção se fundamenta, também, na Declaração Universal dos Direitos do
Homem, ao estabelecer que práticas discriminatórias constituem violação de
Direitos Humanos.

                                                            
93 Cf. PIMENTEL, Silvia. Evolução dos direitos da mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.

48
 

 
 

Note-se que, no texto da Convenção, a adoção das expressões “emprego e


ocupação” visa conceder às estipulações do documento abrangência máxima,
alcançando toda e qualquer modalidade de prestação de trabalho, o que, por mais
uma vez, denota a relevância do valor jurídico acolhido no texto normativo. A
Convenção abarca também o acesso à formação profissional (art. 1º, 3), o que lhe
acentua uma visão global do universo do trabalho.

Na Convenção 111, discriminação juridicamente proibida é “toda distinção,


exclusão ou preferência, feita com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política,
ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito anular ou impedir a
igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego ou na ocupação” (art. 1º,
1, “a” da Convenção).

Há, ainda, uma abertura adicional do conceito, ao estabelecer-se que


“qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou
impedir a igualdade de oportunidades ou tratamento no emprego ou na ocupação”
será vedada, conforme art. 1º, 1, “b” da Convenção.

Por outro lado, como forma de dar precisão à ideia do que é e do que não é
discriminação vedada pela Convenção, o art. 1º, 2, estabelece que “toda distinção,
exclusão ou preferência com base em qualificações exigidas para um determinado
trabalho, não deverão ser consideradas como discriminação”.

Veja-se que a “ascendência nacional”, nos literais termos da Convenção,


não constitui motivo justo a afiançar práticas discriminatórias, o que, em linhas
gerais, impõe vedação de tratamento diferenciado do imigrante no domínio das
relações trabalhistas, que deverá ser protegido da mesma forma como é o nacional,

49
 

 
 

observados sempre os padrões mínimos de proteção do próprio Direito


Internacional do Trabalho.

A exemplo da Convenção 100, a Convenção 111 estabelece um


compromisso dos Estados de formularem e aplicarem políticas nacionais
antidiscriminatórias em matéria de emprego, implementando a Convenção por meio
de: cooperação entre empregados e empregadores; promulgação de leis e promoção
de programas; revogação de disposições legais e proibição de práticas
administrativas contrárias; aplicação nos empregos públicos; aplicação nas atividades
de orientação profissional, formação e colocação; e indicação do desenvolvimento
nos relatórios anuais (art. 3º da Convenção).

5.2. OS RELATÓRIOS GLOBAIS DE 2003 E 2007 DA OIT: IGUALDADE NO


TRABALHO

Dois Relatórios Globais da Organização Internacional do Trabalho,


previstos na Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no
Trabalho, de 1998, foram produzidos nos anos de 200394 e 200795, dedicados à
questão da igualdade no trabalho e da efetividade, no plano dos Estados membros,
da diretiva antidiscriminatória estabelecida nas Convenções da Organização.

                                                            
94 O Relatório Global de 2003, intitulado “Time for equality at work” (em tradução livre, “tempo de

igualdade no trabalho”), está disponível em http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---


dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/wcms_publ_9221128717_en.pdf. Acesso
em 16 de julho de 2009.
95 O Relatório Global de 2007, intitulado “Equality at work: tackling the challenges” (em tradução livre,

“igualdade no trabalho: enfrentando os desafios”), está disponível em http://www.ilo.org/wcmsp5


/groups/public/---dgreports/---dcomm/---webdev/documents/publication/wcms_082607.pdf.
Acesso em 16 de julho de 2009.

50
 

 
 

Ambos os Relatórios apontam a necessidade de uma melhor aplicação da


legislação antidiscriminatória no âmbito nacional, revelando as diversas mazelas das
diferenciações de tratamento por causas não justificáveis no mercado de trabalho.

Ao criticarem aspectos como a curta duração dos programas nacionais, os


Relatórios revelam a preocupação com a ampliação de efetividade das iniciativas de
promoção de igualdade, que é objetivo transversal dos programas de “trabalho
decente”96 da OIT. Sugerem a complementação das medidas tradicionais de política
antidiscriminatória, com mecanismos de aplicação especializados e eficazes, políticas
diretas no mercado de trabalho e intermediação de mão de obra para grupos de
reconhecida vulnerabilidade, como é o caso dos migrantes.

Em relação ao cumprimento das legislações nacionais em matéria de


discriminação, os Relatórios apontam um problema que atinge diretamente os
imigrantes, os tornando alvos recorrentes de práticas discriminatórias, a saber, a
vulnerabilidade de determinados grupos e os consequentes problemas de acesso às
vias institucionais, como o Poder Judiciário.

5.3. O PRINCÍPIO DA NÃO DISCRIMINAÇÃO E O TRABALHADOR IMIGRANTE

A discriminação contra os trabalhadores imigrantes é uma realidade em


diversos países do mundo e se processa, como visto, das mais variadas formas. Por
vezes, conta até com o reconhecimento institucional dos Estados, em políticas e
                                                            
96 Sobre a expressão “trabalho decente”, adotada nas traduções para o Brasil dos documentos da

OIT, disserta SILMARA CIMBALISTA: “A denominação trabalho decente é a tradução literal do


inglês ‘decent work’. Independentemente do significado da palavra, o termo ‘decente’, nesse contexto,
sugere o sentido de dignidade do trabalho, mais do que qualquer outra conotação. A exemplo disso,
com exceção de outros países de língua oficial portuguesa, a expressão trabalho decente foi
chamada, em Portugal, de trabalho digno, que parece estar em maior sintonia e coerência com os
objetivos que se pretende atingir”. CIMBALISTA, Silmara. Trabalho decente: uma agenda
brasileira. Boletim Análise Conjuntural, Curitiba, v. 29, n. 11-12, p. 15-17, nov./dez. 2007, p. 17.

51
 

 
 

regramentos que adotam o critério da nacionalidade para diferenciações


juridicamente injustificáveis.

Colocada a questão à luz da normativa internacional que encampa o


princípio da não discriminação, consolida-se, contudo, robusto fundamento jurídico
para o combate da exposição de imigrantes a situações discriminatórias, mesmo
quando plasmadas em regulamentos oficiais e ocultadas sob outras justificativas.

Esta é, aliás, a forma de fazer operar, na realidade fática, o princípio da


igualdade, vez que, como anotado por DANIELA MURADAS:

“O princípio da igualdade jurídica atua em duas dimensões


diferenciadas. A primeira, de caráter formal, importa em igualdade
perante a ordem jurídica. Já na segunda, a igualdade atua no plano
material como reconhecimento da igual dignidade da pessoa
humana. Nesta dimensão atua como matriz da cultura jurídica
democrática e instiga a generalização concreta de direitos”97.

A não discriminação, aliás, deve ser colocada como verdadeiro paradigma


de uma análise global da questão do trânsito internacional de pessoas, a orientar
toda e qualquer regulação, política ou prática na matéria. É, além disso, o valor a dar
a tônica do tratamento jurídico das questões suscitadas pelo fenômeno migratório.

A conclusiva lição de ARNALDO SÜSSEKIND demonstra a centralidade da


diretriz não discriminatória no trato dos imigrantes, ao pontuar o autor que “a
igualdade de oportunidades e de tratamento entre o nacional e o estrangeiro, nos
campos do Direito do Trabalho e da Seguridade Social, constitui o princípio
fundamental da proteção jurídica ao trabalhador imigrante”98.

                                                            
97 MURADAS, Contributo ao Direito Internacional do Trabalho, cit., p. 208.
98 SÜSSEKIND, Direito Internacional do Trabalho, cit., p. 363.

52
 

 
 

Presumir a igualdade perante a ordem jurídica e efetivá-la no plano


concreto, por meio da garantia de direitos e proteção ao trabalho prestado pelo
imigrante é a única forma de assegurar-lhe uma existência condizente com a sua
essencialidade de pessoa humana, que ultrapassa a sua contingente condição de
migrante. É o que percebe ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, ao expressar
sua convicção de que todas as práticas em matéria migratória têm de “ter presentes a
universalidade e unidade do gênero humano”99.

Até porque, como bem afirmou HERRERA FLORES, há que se reconhecer


que “todos somos estrangeiros, que todos somos migrantes, que aprendemos pelo
contato e inter-relação mais que pela autarquia ou rechaço social da diferença”100.

6. AS NORMAS INTERNACIONAIS ESPECÍFICAS DE PROTEÇÃO AO IMIGRANTE

Para além das diretrizes gerais de proteção à dignidade da pessoa humana


(como aquelas constantes nas normas que vedam a discriminação, anteriormente
analisadas), existe, no plano internacional, uma densa malha normativa dedicada
designadamente à proteção ao imigrante, sobretudo em face do trabalho por ele
prestado.

Aliás, como registra NICOLAS VALTICOS, os primeiros tratados


internacionais do trabalho surgiram justamente por conta da proteção dos
trabalhadores em trânsito ao redor dos países do globo. Com efeito, assevera o

                                                            
99 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Voto concorrente. In CORTE INTERAMERICANA

DE DIREITOS HUMANOS. Condición jurídica y derechos de los migrantes indocumentados.


Opinião consultiva OC-18/03. São José da Costa Rica, 17 de setembro de 2003. Disponível em
http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf. Acesso em 14 de abril de 2010.
100 HERRERA FLORES, J. El proceso cultural: materiales para la creatividad humana. Sevilha:

Aconcagua Libros, 2005, p. 26, apud LOPES, O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos
Humanos, cit., p. 10.

53
 

 
 

autor que “a proteção dos trabalhadores estrangeiros foi mesmo considerada à


origem como o objetivo essencial, senão exclusivo, do direito internacional
operário”101.

A formação deste robusto edifício normativo decorreu, ao longo dos anos,


do próprio volume dos fluxos migratórios, a demandar respostas do Direito às
situações impostas pela crescente circulação internacional de mão de obra. Além
disto, a heterogeneidade das legislações nacionais a respeito da questão migratória
(por vezes largamente influenciadas por fatores como intolerância e xenofobia), fez
emergir a necessidade de fixação de balizas normativas mínimas para o trato do
trabalhador imigrante, dentro de padrões jurídicos que patrocinassem uma existência
digna.

Alguns dos principais desenvolvimentos da normativa internacional em


matéria de migração nos últimos anos foram apontados no recentemente divulgado
Relatório Global da ONU sobre migrações, que funciona como termômetro das
tendências regulatórias em escala global:

“A cooperação internacional em material de migração internacional


tem crescido nos últimos anos. Desde 1990, o número de acordos
bilaterais cresceu marcadamente. Apesar de a maioria dos
processos de integração econômica regional não ter conduzido a
acordos efetivos de liberdade de trânsito, eles continuam a
providenciar uma base para cooperação futura nesta área. Em
adição, processos consultivos foram instalados na maioria das
regiões do mundo e estão se provando efetivos em fomentar o
diálogo e cooperação. Em nível global, instrumentos chave
internacionais tratando da migração irregular foram adotados e
amplamente ratificados”102.
                                                            
101 VALTICOS, Nicolas. Droit International du Travail. Paris: Dalloz, 1970, p. 133. No original: “La

protection des travailleurs étrangers a même été considérée à l’origine comme le but essentiel, sinon
exclusif, du droit international ouvrier”. Tradução do autor.
102 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Departamento de Assuntos Econômicos e

Sociais. International migration report 2006: a global assessment. Nova Iorque, 2009. Disponível em

54
 

 
 

Assim, pode-se verificar um avanço nas normas internacionais que se


dedicam ao tratamento da imigração entre os países do globo, deixando a questão de
ser tratada somente como de foro exclusivo estatal para se tornar uma preocupação
de repercussão global.

O exame das convergências globais na matéria, contudo, por vezes


contrasta visivelmente com as rígidas (e recorrentemente abusivas) legislações
nacionais dos países tipicamente receptores de migrantes (como os países da União
Européia e os Estados Unidos), que endurecem suas políticas e normas a respeito da
imigração.

Insistem alguns Estados em compreenderem a regulação migratória quase


que como de “competência nacional exclusiva”, recolocando antigas barreiras que já
foram superadas em matéria de regulação e jurisdição em Direitos Humanos, como
notado por ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE:

“Compreendeu-se, pouco a pouco, que a proteção de direitos


básicos da pessoa humana não se esgota, como não poderia
esgotar-se, na atuação do Estado, na pretensa e indemonstrável
‘competência nacional exclusiva’. Esta última (...) afigura-se como
um reflexo, manifestação ou particularização da própria noção de
soberania inteiramente inadequada ao plano das relações
internacionais, (...) de coordenação e cooperação, em que todos os
Estados são, ademais de independentes, juridicamente iguais. Nos
dias de hoje, na há como sustentar que a proteção aos direitos
                                                                                                                                                                              
http://www.un.org/esa/population/publications/2006_MigrationRep/report.htm. Acesso em 28
de junho de 2009. No original: “In summary, international cooperation on international migration
has been growing in recent years. Since 1990, the number of bilateral agreements has increased
markedly. Although most processes of regional economic integration have not led to effective
agreements on freedom of movement, they continue to provide a basis for further cooperation in
this area. In addition, consultative processes have been established in most world regions and are
proving effective in fostering dialogue and cooperation. At the global level, key international
instruments to address irregular migration were adopted and have been widely ratified”. Tradução
do autor.

55
 

 
 

humanos recairia sob o chamado ‘domínio reservado do Estado’,


como pretendiam certos círculos há cerca de três ou quatro
décadas atrás”103.

Assim, a despeito da postura retrógrada que ainda caracteriza certos


Estados, essencial será a análise dos resultados normativos dos foros de discussão e
regulação internacional em matéria de migração, gestados no contexto da sólida
estrutura dos Direitos Humanos que hoje está consolidada em numerosos tratados e
convenções.

Despiciendo salientar que, como referenciais amplos, a regulação


internacional dos Direitos Humanos aplica-se integralmente ao caso dos imigrantes.
O imigrante, como pessoa humana, merecerá proteção em todas as dimensões de
sua existência.

Dado o específico objeto do estudo proposto, entretanto, proceder-se-á


uma sistematização apenas daquelas normas que tratem direta e especificamente da
questão da imigração, abordando a condição própria de imigrante, especialmente da
figura do trabalhador imigrante.

Isso também porque, como assinalou CANÇADO TRINDADE:

“Tem-se reconhecido o caráter complementar de procedimentos


não apenas sob tratados e instrumentos ‘gerais’ de direitos
humanos, mas também sob tratados e instrumentos ‘especializados’
voltados a aspectos específicos da proteção de direitos
humanos”104.

                                                            
103 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos:

fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 04.


104 CANÇADO TRINDADE, A proteção internacional dos direitos humanos, cit., p. 25.

56
 

 
 

Assim sendo, compreendidos no contexto da ampla proteção aos direitos


da pessoa humana no plano internacional, em uma relação de sinergia e
coordenação com os marcos gerais que consolidam este sistema, os instrumentos de
salvaguarda de direitos dos imigrantes merecem análise para revelarem seus
conteúdos normativos e inspirações axiológicas, além dos desafios concretos e as
respostas até o presente apresentadas.

6.1. PROTEÇÃO AO IMIGRANTE NO ÂMBITO DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES


UNIDAS

No âmbito da Organização das Nações Unidas, o debate em torno do tema


da migração internacional rendeu alguns importantes instrumentos normativos. Para
o objeto proposto no presente estudo, fundamental a análise da Convenção
Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros
das suas Famílias105.

A Convenção foi adotada pela Assembléia Geral da ONU (Resolução


45/158), em 18 de dezembro de 1990, e entrou em vigor na ordem internacional
mais de dez anos depois, em 1º de julho de 2003, quando, enfim, contabilizou o
número mínimo de ratificações.

Conforme ressaltado em estudo da própria ONU, a Convenção:

“abriu um novo capítulo na história da ação desenvolvida para


estabelecer os direitos dos trabalhadores migrantes e garantir a
proteção e o respeito destes direitos. Trata-se de um Tratado
internacional de caráter global, inspirado em acordos juridicamente
                                                            
105 O texto integral da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os

Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias encontra-se no anexo II da presente
pesquisa.

57
 

 
 

vinculativos, em estudos sobre direitos humanos elaborados no


quadro das Nações Unidas, em conclusões e recomendações
adotadas em reuniões de peritos e nos debates e nas resoluções
adotadas pelos órgãos das Nações Unidas, ao longo das duas
últimas décadas, sobre a questão dos trabalhadores migrantes”106.

Efetivamente, trata-se de instrumento normativo de notável avanço na


promoção de direitos para trabalhadores migrantes, sobretudo no que diz respeito
àqueles em condição de irregularidade migratória, assegurando-lhes padrão de
dignidade em suas relações de trabalho e, consequentemente, em sua existência.

A força motriz desta especial e direta atenção aos trabalhadores migrantes


em condição de irregularidade está descrita no preâmbulo da Convenção, ao
estabelecer as premissas que motivam a regulação estabelecida no diploma:

“Considerando que os problemas humanos decorrentes das


migrações são ainda mais graves no caso da migração irregular e
convictos, por esse motivo, de que se deve encorajar a adoção de
medidas adequadas a fim de prevenir e eliminar os movimentos
clandestinos e o tráfico de trabalhadores migrantes, assegurando ao
mesmo tempo a proteção dos direitos humanos fundamentais
destes trabalhadores;
Considerando que os trabalhadores indocumentados ou em
situação irregular são, freqüentemente, empregados em condições
de trabalho menos favoráveis que outros trabalhadores e que certos
empregadores são, assim, levados a procurar tal mão de obra a fim
de beneficiar da concorrência desleal”.

Sob estas importantes justificativas, colhidas na realidade dos fluxos de


migração internacional da atualidade, a Convenção estabelece normas muito claras
                                                            
106 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Escritório do Alto Comissariado da ONU Para

Direitos Humanos. Fact sheet n. 24: the rights of migrant workers. Genebra, 2005. Disponível em
http://www.ohchr.org/Documents/Publications/FactSheet24rev.1en.pdf. Acesso em 06 de julho
de 2009. No original: “The Convention opens a new chapter in the history of determining the
rights of migrant workers and ensuring that those rights are protected and respected. It
incorporates the results of over 30 years of discussion, including United Nations human rights
studies, conclusions and recommendations of meetings of experts, and debates and resolutions in
the United Nations on migrant workers”. Tradução do autor.

58
 

 
 

no que diz respeito à necessidade de proteção do imigrante indocumentado, o que


representa grande avanço em termos de regulação internacional, com reflexo
simbólico na forma de percepção social e jurídica das migrações.

Vale ressaltar que a Convenção de 1990 foi estruturada na esteira de outros


instrumentos internacionais na matéria, como prenunciado no preâmbulo do
diploma. Os princípios gerais alinham-se aos conteúdos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

Além disto, inspira-se a Convenção na normativa internacional de vedação


da discriminação e em outros instrumentos da Organização Internacional do
Trabalho, nomeadamente a Convenção relativa aos Trabalhadores Migrantes (n. 97)
e a Convenção relativa às Migrações em Condições Abusivas e à Promoção da
Igualdade de Oportunidades e de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes (n. 143),
a serem mais adiante analisadas.

Alguns pontos da Convenção da ONU merecem destaque. Em primeiro


lugar, a tipificação contida no art. 2º do tratado, que estabelece ser trabalhador
migrante “a pessoa que vai exercer, exerce ou exerceu uma atividade remunerada
num Estado de que não é nacional”, além de especificar outras expressões a
designarem categorias específicas de trabalhadores migrantes107, numa tipologia clara
e abrangente, alicerçada na condição fática a que estão sujeitos estes trabalhadores.
                                                            
107 A completa tipologia do art. 2º da Convenção de 1990: “a) A expressão ‘trabalhador fronteiriço’

designa o trabalhador migrante que conserva a sua residência habitual num Estado vizinho a que
regressa, em princípio, todos os dias ou, pelo menos, uma vez por semana; b) A expressão
‘trabalhador sazonal’ designa o trabalhador migrante cuja atividade, pela sua natureza, depende de
condições sazonais e só se realiza durante parte do ano; c) A expressão ‘marítimo’, que abrange os
pescadores, designa o trabalhador migrante empregado a bordo de um navio matriculado num
Estado de que não é nacional; d) A expressão ‘trabalhador numa estrutura marítima’ designa o
trabalhador migrante empregado numa estrutura marítima que se encontra sob a jurisdição de um
Estado de que não é nacional; e) A expressão ‘trabalhador itinerante’ designa o trabalhador

59
 

 
 

Em sua segunda parte, o tratado crava a diretiva não discriminatória que


orienta a sua visão normativa sobre o tema dos trabalhadores migrantes,
estabelecendo um compromisso dos Estados de:

“respeitar e a garantir os direitos previstos na presente Convenção


a todos os trabalhadores migrantes e membros da sua família que
se encontrem no seu território e sujeitos à sua jurisdição, sem
distinção alguma, independentemente de qualquer consideração de
raça, cor, sexo, língua, religião ou convicção, opinião política ou
outra, origem nacional, étnica ou social, nacionalidade, idade,
posição econômica, patrimônio, estado civil, nascimento ou de
qualquer outra situação”.

Já na terceira e quarta partes, a Convenção estabelece uma vasta plêiade de


diretos a serem respeitados pelos Estados, que passam por todas as dimensões da
existência humana na condição de estrangeiro, tais como direito à vida, à liberdade, à
expressão, à intimidade, à igualdade processual, aos princípios de Direito Penal, à
educação, entre outros, sempre especificando e dando substância aos diversos
elementos que se alinham para patrocinar uma vida digna.

                                                                                                                                                                              
migrante que, tendo a sua residência habitual num Estado, tem de viajar para outros Estados por
períodos curtos, devido à natureza da sua ocupação; f) A expressão ‘trabalhador vinculado a um
projeto’ designa o trabalhador migrante admitido num Estado de emprego por tempo definido para
trabalhar unicamente num projeto concreto conduzido pelo seu empregador nesse Estado; g) A
expressão ‘trabalhador com emprego específico’ designa o trabalhador migrante: (i) Que tenha sido
enviado pelo seu empregador, por um período limitado e definido, a um Estado de emprego para aí
realizar uma tarefa ou função específica; ou (ii) Que realize, por um período limitado e definido, um
trabalho que exige competências profissionais, comerciais, técnicas ou altamente especializadas de
outra natureza; ou (iii) Que, a pedido do seu empregador no Estado de emprego, realize, por um
período limitado e definido, um trabalho de natureza transitória ou de curta duração; e que deva
deixar o Estado de emprego ao expirar o período autorizado de residência, ou mais cedo, se deixa
de realizar a tarefa ou função específica ou o trabalho inicial; h) A expressão ‘trabalhador
independente’ designa o trabalhador migrante que exerce uma atividade remunerada não submetida
a um contrato de trabalho e que ganha a sua vida através desta atividade, trabalhando normalmente
só ou com membros da sua família, assim como o trabalhador considerado independente pela
legislação aplicável do Estado de emprego ou por acordos bilaterais ou multilaterais”.

60
 

 
 

Especificamente quanto à proteção ao trabalho, a Convenção estabelece a


igualdade entre trabalhadores nacionais e imigrantes, estipulando que aos migrantes
seja concedido “tratamento não menos favorável que aquele que é concedido aos
nacionais do Estado de emprego em matéria de retribuição” (art. 25).

Especificamente quanto ao trabalhador migrante indocumentado, estipula,


em seu art. 25, 3:

“Os Estados Partes adotam todas as medidas adequadas a garantir


que os trabalhadores migrantes não sejam privados dos direitos
derivados da aplicação deste princípio, em razão da irregularidade
da sua situação em matéria de permanência ou de emprego. De um
modo particular, os empregadores não ficam exonerados do
cumprimento de obrigações legais ou contratuais, nem as suas
obrigações serão de modo algum limitadas por força de tal
irregularidade”.

A Convenção estabelece, ainda, outras diretrizes trabalhistas para os


imigrantes, como liberdade de escolha de atividade e igualdade remuneratória com
os nacionais.

Pelo avanço de suas estipulações, a Convenção Internacional sobre a


Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das
suas Famílias da ONU não tem um expressivo número de ratificações108,
especialmente entre os países receptores de imigrantes, nos quais a Convenção teria
impactos mais profundos. Em verdade, o caráter protetivo da Convenção não se

                                                            
108 Até julho de 2009, quarenta países haviam ratificado a Convenção Internacional sobre a

Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias da
ONU: Albânia, Algéria, Argentina, Azerbaijão, Belize, Bolívia, Bósnia Herzegovina, Burkina Faso,
Cabo Verde, Chile, Colômbia, Equador, Egito, El Salvador, Gana, Guatemala, Guiné, Honduras,
Jamaica, Quirguistão, Lesoto, Líbia, Mali, Mauritânia, México, Marrocos, Nicarágua, Nigéria,
Paraguai, Peru, Filipinas, Ruanda, Senegal, Seychelles, Síria, Tadjiquistão, Timor Leste, Turquia,
Uganda, Uruguai. Informação disponível em http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=
TREATY&mtdsg_no=IV-13&chapter=4&lang=en. Acesso em 14 de julho de 2009.

61
 

 
 

alinha à ortodoxia das políticas migratórias dos países que recebem grandes
contingentes de imigrantes, o que explica os baixos níveis de adesão109.

De toda sorte, trata-se de norma internacional da maior relevância, ao


estabelecer um norte regulatório global e reafirmar as diretivas essenciais no trato
dos imigrantes, construídas dentro das raias da proteção à dignidade da pessoa
humana. E o contraste com as regulações e práticas nacionais faz apenas enfatizar
que a implementação da ratio essendi da Convenção encontrará desafios, e que, tendo
em vista a sua forma de maturação e os valores encampados, o descompasso ainda
existente denuncia a necessidade da alteração das legislações nacionais.

Por todos estes fatores, faz-se acertada a conclusão de ROSITA MILESI:

“A convenção traduz o novo paradigma dos direitos humanos,


uma vez que considera o migrante como sujeito de direito,
independentemente de estar em situação regular ou não, de sua
nacionalidade, sexo, cor, etnia ou condição econômica. Traduz
ainda, os valores éticos da cidadania universal, por reconhecer e
afirmar que os migrantes, antes de serem deste ou daquele país, são
pela sua condição de pessoa humana, titulares de direitos e do
respeito a sua dignidade humana”110.

Apesar de ainda não ratificada pelo Brasil, a Convenção ocupa as pautas de


discussão sobre as migrações internacionais do país, figurando como bandeira
tradicional dos movimentos de proteção e assistência aos imigrantes.

                                                            
109 Neste sentido, PÉCOUD e GUCHTENEIRE apontam o fator político como determinante na não

adesão à Convenção da ONU. Cf. PÉCOUD, Antoine, GUCHTENEIRE, Paul de. Migration,
human rights and the United Nations: an investigation into the low ratification record of the UN
migrant workers convention. Genebra: UN Global Comission on International Migration, 2004.
110 MILESI, Rosita. Por uma nova lei de migração: a perspectiva dos Direitos Humanos. Instituto

Migrações e Direitos Humanos. Disponível em http://www.migrante.org.br/por_uma_nova_lei_


migracao.doc. Acesso em 06 de julho de 2009.

62
 

 
 

O Conselho Nacional de Imigração do Ministério do Trabalho e Emprego


aprovou em sua reunião de 03.12.2008, uma recomendação ao Ministério das
Relações Exteriores para que “promova a adesão do Brasil à Convenção
Internacional da proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e
membros de suas famílias, no âmbito da organização das Nações Unidas, com vistas
à sua ratificação”111.

6.2. PROTEÇÃO AO TRABALHADOR IMIGRANTE NO ÂMBITO DA ORGANIZAÇÃO


INTERNACIONAL DO TRABALHO

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), no intento de dar


concreção à sua finalidade essencial — qual seja, universalizar a proteção ao
trabalho, delimitando padrões mínimos aplicáveis aos Estados membros, à luz do
chamado princípio da universalidade — ocupa posição de vanguarda também no
temário da imigração. Além de seus princípios e declarações de caráter geral (que se
dirigem a todo e qualquer trabalhador, inclusive o imigrante, como é o caso das
Convenções anti-discriminatórias já vistas no presente estudo), ocupou-se a OIT de
conceder atenção especial à proteção jurídica do trabalhador imigrante.

Esta atuação específica de proteção ao trabalhador imigrante está em linha


com os próprios fundamentos do Direito Internacional do Trabalho, em sua
principiologia essencial. Destaque-se, por exemplo, um dos princípios mais caros a
este ramo jurídico, constante na Declaração da Filadélfia de 1944 (que trata dos
objetivos da OIT), a estabelecer: “a penúria, seja onde for, constitui um perigo para
a prosperidade geral”.

                                                            
111 MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Conselho Nacional de Imigração. Ata da

reunião do dia 03.12.2008. Brasília, 2008. Disponível em http://www.mte.gov.br/cni/


Ata_03_12_08.pdf. Acesso em 06 de julho de 2009.

63
 

 
 

De tal princípio, apontado por GABRIELA NEVES DELGADO, decorre a


conclusão de que “a pobreza extrema e a exclusão social violam a dignidade da
pessoa humana. Uma das alternativas para diminuir as desigualdades sociais se dá
pela efetivação e generalização do Direito do Trabalho”112.

Norteada por estas inclinações, através de algumas Convenções essenciais, a


OIT especificou as bases do tratamento jurídico dos trabalhadores imigrantes no
plano internacional, estabelecendo uma tendência na regulação global da matéria
que se alinha à tutela progressiva e ampliativa dos Direitos Humanos. A justificativa
destes instrumentos normativos encontra-se descrita pela própria OIT em um
estudo de sua autoria:

“Trabalhadores migrantes homens e mulheres contribuem para o


desenvolvimento nos seus países de origem e destino. Nos países
de origem isto se dá por meio do alívio de pressões nos mercados
de trabalho, bem como por meio de remessas, habilidades
adquiridas durante a migração e investimento por comunidades
expatriadas. Nos países de destino, eles contribuem com o
desenvolvimento atendendo a demanda por trabalhadores
necessários às atividades econômicas, aumentando a demanda por
bens e serviços e contribuindo com suas habilidades
empreendedoras. Maximizar-se estas contribuições de
trabalhadores migrantes somente será possível se eles estiverem em
posição de desenvolverem seus potenciais, o que está intimamente
relacionado com o exercício de certos direitos trabalhistas.
Contribuição ao desenvolvimento não pode ser dissociada da
proteção aos trabalhadores migrantes, como está claro nas
provisões das duas Convenções Internacionais do Trabalho
especificamente dedicadas aos trabalhadores migrantes”113.
                                                            
112 DELGADO, Princípios internacionais do Direito do Trabalho e do Direito Previdenciário,

Revista LTr, cit., p. 340.


113 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Programa de Migração
Internacional da Repartição Internacional do Trabalho. Rights, labour migration and developement: the
ILO approach. International migration programme. International Labour Office. Genebra, 2007.
Disponível em http://www.ilo.org/public/english/protection/migrant/download/mig_brief

64
 

 
 

A despeito de a visão da OIT ainda contrastar em muito com diversos


regulamentos internos encontrados nos Estados do mundo114 (como ocorre em
relação à Convenção da ONU anteriormente vista), fato é que estas duas
Convenções — a saber, Convenções n. 97 e 143115 — contribuem para a
solidificação de uma diretiva global amadurecida, que se pretende efetiva por meio
de diversos mecanismos jurídicos internacionais, além de funcionarem como um
espelho crítico de legislações nacionais descompassadas com a marcha da proteção
dos Direitos Humanos no trabalho.

6.2.1. A CONVENÇÃO N. 97 DA OIT: NÃO DISCRIMINAÇÃO DOS IMIGRANTES


EM CONDIÇÃO DE REGULARIDADE

A Convenção n. 97, de 1949, é uma revisão da Convenção sobre os


Trabalhadores Migrantes de 1939, tendo entrado em vigor na ordem jurídica
internacional em janeiro de 1952, consolidando os esforços originários de
sistematização de uma disciplina para os trabalhadores imigrantes.

                                                                                                                                                                              
_rights.pdf. Acesso em 21 de julho de 2009. No original: “Men and women migrant workers
contribute to development in both countries from which they come and those in which they work.
In countries of origin they contribute to development by alleviating pressures on labour markets, by
sending remittances home, by acquiring increased skills, and by making investments. In countries of
destination, they contribute to development by meeting the demand for workers, by increasing the
demand for goods and services, and by contributing their entrepreneurial skills. These contributions
by migrant workers can only be maximized if they are in a position to develop their potential. This
is closely related to the exercise of labour rights. Development contributions cannot be dissociated
from the protection of migrant workers, as is clear in the two ILO Conventions specifically
dedicated to migrant workers”. Tradução do autor.
114 A regulação migratória brasileira é uma das que ainda contrasta com a pactuação internacional, e

será detalhadamente examinada no capítulo IV desta pesquisa.


115 Além das Convenções n. 97 e 143, existem outras a tratarem de temas específicos, como a

Convenção n. 19, de 1925, que trata da igualdade entre nacionais e estrangeiros em matéria de
indenização por acidentes no trabalho e a Convenção n. 118, de 1962, que trata da igualdade entre
os nacionais e não nacionais em matéria de previdência social.

65
 

 
 

Prevê a Convenção diversos direitos básicos do imigrante em sua acolhida,


como saúde e o direito de não ser arbitrariamente expulso, além de especificamente
tratar do princípio da não discriminação em relação aos imigrantes em condição de
regularidade migratória, garantindo-lhes um tratamento não inferiorizado em relação
aos nacionais quanto às leis trabalhistas (art. 6º da Convenção).

A Convenção n. 97 deu significativo passo em direção à proteção do


imigrante, vez que normatizou expressamente a igualdade de tratamento do
estrangeiro que adentra regularmente outro país para trabalhar. Apesar de não
enfrentar a questão do imigrante em condição de irregularidade (que, na atualidade,
constitui a maior chaga da questão migratória), erigiu as diretrizes fundamentais do
tratamento do trabalhador imigrante, que, mais tarde, geraram outros diplomas
internacionais (como a Convenção da ONU de 1990, anteriormente estudada), além
de recomendações, políticas e debates.

Quanto ao seu grau de aceitação internacional, pode-se dizer que a


Convenção n. 97 ainda enfrenta dificuldades que resultam em um número
relativamente baixo de ratificações. São apenas quarenta e nove116, em sua maioria
de países que não recebem grandes contingentes de migrantes (com exceções
remarcáveis, como a França, o Reino Unido, a Itália e a Alemanha, por exemplo). O
Brasil ratificou a Convenção n. 97 em 1965.

O que se percebe, mais uma vez, é que os Estados relutam em obrigar-se


pelos conteúdos normativos do diploma em face de uma abordagem repressiva e até
discriminatória que, tradicionalmente, suas legislações nacionais encampam. Além
disso, insistem em tratar a questão migratória apenas como de segurança nacional,
relegando a questão da proteção da pessoa humana a uma condição meramente
                                                            
116 Em julho de 2009, conforme informação no sítio da OIT. Cf. http://www.ilo.org/ilolex/

english/newratframeE.htm. Acesso em 13 de julho de 2009.

66
 

 
 

acessória. Enfim, a discrepância com a diagramação das relações internacionais e


com as normas de caráter global existentes é evidente.

6.2.2. A CONVENÇÃO N. 143 DA OIT: PROTEÇÃO DE TODOS OS


TRABALHADORES MIGRANTES

No caminhar da normatização do trabalho de imigrantes no âmbito da


OIT, sistematizado inicialmente pela Convenção n. 97, chega-se à Convenção n. 143
da Organização. Datada de 1975, a Convenção n. 143 entrou em vigor na ordem
internacional em 1978 e trata das migrações em condições abusivas e promoção da
igualdade de oportunidades e de tratamento dos trabalhadores migrantes117.

Por meio da Convenção n. 143, conforme menciona RODRIGO DE


LACERDA CARELLI, “busca a Organização Internacional do Trabalho a devida e
igual proteção, pelo menos quanto a direitos fundamentais, a todos os trabalhadores
do mundo”118, sejam eles migrantes em condição de regularidade ou irregularidade
migratória.

Neste desígnio, estabelece já o art. 1° da Convenção 143 da OIT que “os


membros para os quais a presente Convenção esteja em vigor deverão
comprometer-se a respeitar os direitos fundamentais do homem de todos os
trabalhadores migrantes”.

                                                            
117 A íntegra do texto da Convenção n. 143 da OIT encontra-se no anexo I da presente pesquisa.
118 CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Trabalho do estrangeiro no Brasil. Boletim do CEDES – Centro de

Estudos Direito e Sociedade. Março de 2007. Disponível em http://cedes.iuperj.br/PDF/


cidadaniatrabalho/trabalho%20do%20estrangeiro%20no%20Brasil.pdf. Acesso em 17 de julho de
2009.

67
 

 
 

Assim, do artigo inaugural da Convenção n. 143 já se depreende aquele que


é o seu grande diferencial: a inclusão dos imigrantes em condição de irregularidade
no amplo grupo de trabalhadores a serem protegidos. E, mais adiante, no art. 9° do
diploma, tal diretiva fica ainda mais clara:

“O trabalhador migrante, nos casos em que a legislação não tenha


sido respeitada e nos quais a sua situação não possa ser
regularizada, deverá beneficiar pessoalmente, assim como a sua
família, de tratamento igual no que diz respeito aos direitos
decorrentes de empregos anteriores em relação à remuneração, à
segurança social e a outras vantagens”.

Nota-se, aqui, que o tratamento da imigração irregular passa a ser tomado


muito mais como uma questão de proteção aos direitos da pessoa humana do que
como uma pauta puramente de segurança nacional. Frise-se, entratanto, que a
Convenção não perde a dimensão do controle migratório, por exemplo, ao
estabelecer que os Estados devem tomar medidas “a fim de suprimir as migrações
clandestinas e o emprego ilegal de migrantes” (art. 3º, “a” da Convenção). A
perspectiva baseada em direitos, contudo, dá a tônica do instrumento e revela uma
postura bastante clara no sentido de proteger o trabalho prestado pela pessoa do
imigrante.

Sintetizando a proteção arquitetada pela Convenção, registram PATRICK


TARAN e EDUARDO GERONIMI:

“o trabalhador migrante tem direitos a remuneração pelo trabalho


realizado, incluindo quaisquer indenizações pagas ao término do
contrato, e todos os benefícios de férias não utilizados devem ser
pagos de acordo com a prática nacional, a despeito de o status ser
[de imigrante] legal ou não”119.
                                                            
119 TARAN, Patrick A., GERONIMI, Eduardo. Globalization, labour and migration: protection is

paramount. Genebra: Organização Internacional do Trabalho, 2003, p. 14. No original: “Therefore,


the migrant worker has rights to remuneration for work performed, including any normally paid
indemnities upon termination of contract, and whatever unused annual vacation benefits may be

68
 

 
 

Em outras palavras, a Convenção entende a proteção trabalhista como um


direito irrenunciável da pessoa humana, que não restará prejudicado em face da
condição de irregularidade migratória. Esta diretiva — a ser mais detalhadamente
discutida adiante, no capítulo V desta pesquisa — é resultado de um processo
internacional de assentamento das bases da proteção ao imigrante.

A exemplo da Convenção n. 97, a Convenção n. 143 enfrenta problemas


acentuados de aceitação entre os países do globo, diante da prioridade máxima que
propõe na salvaguarda de Direitos Humanos no trabalho prestado por imigrante
não documentado. São apenas vinte e três120 ratificações até o presente momento,
quase a integralidade delas por países não receptores de grandes contingentes de
imigrantes121.

A Convenção ainda não foi ratificada pelo Brasil, não sendo, assim, um
instrumento formalmente cogente na ordem jurídica nacional.

Interessante registrar que, no mês de setembro de 2008, a Comissão


Tripartite de Relações Internacionais do Ministério do Trabalho e Emprego
aprovou — contando com a convergência da representação governamental, dos
trabalhadores e dos empregadores — o encaminhamento da Convenção para

                                                                                                                                                                              
payable according to national practice, regardless of whether status was legal or not”. Tradução do
autor.
120 Em julho de 2009, conforme informação no sítio da OIT. Cf. http://www.ilo.org/ilolex/english

/newratframeE.htm. Acesso em 13 de julho de 2009.


121 A exceção dentre os países que ratificaram a Convenção n. 143 é a Itália, que recebe um volume

considerável de imigrantes. Contudo, apesar de ter ratificado o instrumento, a Itália passa por um
momento de verdadeira contradição na disciplina migratória, ao recrudescer suas normas internas,
chegando a debater criminalmente a questão da imigração irregular.

69
 

 
 

ratificação pelo Congresso Nacional122, empunhando a reivindicação de diversos


movimentos que ao longo dos anos conclamavam pela ratificação da Convenção
(como a Pastoral do Migrante, por exemplo) e denotando uma intenção sólida do
Brasil em adotar o diploma123.

Pode-se afirmar que as Convenções 97 e 143 da OIT, juntamente com a


Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores
Migrantes e dos Membros das suas Famílias da ONU, formam o sustentáculo da
proteção internacional ao trabalhador imigrante. Nas palavras de PATRICK TARAN e
EDUARDO GERONIMI:

“Estas três Convenções em conjunto providenciam uma definição


compreensiva e baseada em valores e a base legal para a política
nacional sobre trabalhadores migrantes estrangeiros e membros de
suas famílias. Elas servem, assim, como ferramentas a encorajar os
Estados a estabelecerem ou aperfeiçoarem as legislações nacionais
em harmonia com os padrões internacionais. Elas não são simples
instrumentos de direitos humanos. Várias provisões em cada uma
delas somam à uma agenda compreensiva de política nacional e de
consultas e cooperação entre os Estados em formulação de
políticas de migração trabalhista, troca de informações,
informações a migrantes, retorno ordenado e reintegração, etc.”124.

                                                            
122 Vide notícia no sítio do Ministério do Trabalho e Emprego: http://www.mte.gov.br/

sgcnoticia.asp?IdConteudoNoticia=3732&PalavraChave=imigracao,%20cnig,%20oit. Acesso em 18
de julho de 2009.
123 A própria Organização Internacional do Trabalho já apontou o Brasil como um dos possíveis

países a ratificarem a Convenção n. 143. Cf. http://www.migrantsrights.org/ILO_report


101199.htm. Acesso em 18 de julho de 2009.
124 TARAN, GERONIMI, Globalization, labour and migration, cit., p. 15. No original: “These three

Conventions together provide a comprehensive “values-based” definition and legal basis for
national policy and practice regarding non-national migrant workers and their family members.
They thus serve as tools to encourage States to establish or improve national legislation in harmony
with international standards. They are not simply human rights instruments. Numerous provisions
in each add up to a comprehensive agenda for national policy and for consultation and cooperation
among States on labour migration policy formulation, exchange of information, providing
information to migrants, orderly return and reintegration, etc.”. Tradução do autor.

70
 

 
 

Esta visão juridicamente orientada é a adotada pelo presente estudo, que


compartilha da ideia de que a regulação internacional da matéria consolida
direcionamentos que merecem imediata implementação, com a extirpação de
normas nacionais que se choquem com o ideal de um tratamento humanizado à
questão migratória.

6.3. INSTRUMENTOS REGIONAIS DE PROTEÇÃO AO IMIGRANTE

Além das convenções gerais de Direitos Humanos e daqueles instrumentos


globais que se dedicam à questão específica dos direitos dos trabalhadores
imigrantes, há que se registrar a intensa atividade de pactuação de diplomas
multilaterais, bilaterais, regionais e locais sobre a ordenação e controle da dinâmica
dos fluxos migratórios, bem como sobre a proteção aos direitos dos migrantes no
plano internacional.

Uma vez que o movimento migratório, na maioria dos casos, envolve


deslocamentos localizáveis no espaço geográfico, afetando países e regiões
específicas no binômio do envio e recepção de migrantes, os instrumentos regionais
e locais de proteção ao trabalhador em trânsito se colocam como ferramentas
importantes na ampliação da efetividade das disposições normativas e no controle
de sua aplicação. Aliás, como lecionam HEYNS e VILJOEN, citados por DANIELA
MURADAS:

“os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos (...)


podem refletir com maior autenticidade as peculiaridades e os
valores históricos de povos de uma determinada região, resultando
em uma aceitação mais espontânea e, devido à aproximação
geográfica dos Estados envolvidos, os sistemas regionais têm a
potencialidade de exercer fortes pressões em face de Estados
vizinhos, em casos de violações. (...) Um efetivo sistema regional

71
 

 
 

pode conseqüentemente complementar o sistema global em


diversas formas”125.

Assim, além dos principais tratados e convenções na matéria, existe um sem


número de compromissos, acordos, declarações e congêneres na matéria. Na
América do Sul, por exemplo, os instrumentos do MERCOSUL merecem destaque,
e serão especificamente examinados no contexto da análise da movimentação
regular de mão de obra no bloco, a ser feito no item 14 do capítulo IV. Some-se à
reflexão, também, a proteção regional por meio de manifestações de órgãos
internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que se
pronunciou, em paradigmática Opinião Consultiva (OC-18/03, de 17 de setembro
de 2003126), pela proteção trabalhista plena de imigrantes indocumentados.

                                                            
125 HEYNS, Christof, VILJOEN, Frans. An overview of human rights protection in Africa. South

African Journal on Human Rights, Joanesburgo, vol. 15, parte 3, 1999, p. 423, apud MURADAS,
Contributo ao Direito Internacional do Trabalho, cit., p. 243.
126 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Condición jurídica y derechos de

los migrantes indocumentados. Opinião consultiva OC-18/03. São José da Costa Rica, 17 de
setembro de 2003. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf.
Acesso em 14 de abril de 2010. A decisão será examinada em detalhe no item 18.4 do capítulo IV.

72
 

 
 

CAPÍTULO III
A IMIGRAÇÃO DE TRABALHADORES PARA O BRASIL

“Venha,
venha ser feliz, ah venha
largue seu senhor e venha
venha que o amor só nasce aqui
venha que essa terra é nossa
e o trabalho é bom, sinherê!
Tenha paz no coração, sorria enfim
venha que essa terra é santa
e melhor não há, sinherê!”

EDU LOBO e GIANFRANCESCO GUARNIERI


Sinherê (Venha ser feliz)

7. A IMIGRAÇÃO DE TRABALHADORES NO BRASIL: BREVE INCURSÃO


HISTÓRICA

A formação dos quadros populacionais brasileiros, na atualidade, revela que


as migrações internacionais foram — e ainda são — essenciais no país. Não exagera
CRISTIANE MARIA SBALQUEIRO LOPES ao afirmar que “a história do Brasil pode ser
contada a partir das migrações”127. Ao longo dos últimos cinco séculos, fluxos de
origem variada, movidos por razões diversas, se interceptaram no Brasil e formaram
aqui uma população que nos dias de hoje é reconhecidamente miscigenada.

A reboque destes principais ciclos migratórios, ocorridos desde as primeiras


incursões portuguesas no Brasil, formaram-se os lugares comuns a identificarem
uma cultura brasileira, com todas as suas complexidades e, por vezes, perplexidades
no que se refere ao trato dos próprios imigrantes. Aspectos contraditórios — como

                                                            
127 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos.

Tese de doutoramento. Sevilha: Universidad Pablo de Olavide, 2007, p. 212.

73
 

 
 

preconceito e tolerância, xenofobia e inclusão — se combinaram de maneira


diferenciada ao longo de décadas, para determinar os estatutos sociais e jurídicos
dos diversos grupos de migrantes estrangeiros que para o Brasil se destinaram no
decorrer do tempo.

A condição jurídica propriamente dita do trabalhador imigrante, aliás, como


objeto da pesquisa proposta, merecerá especial atenção, de modo a revelar o que se
passou com as normas jurídicas e políticas públicas afetas à questão migratória e ao
trabalho prestado pelos estrangeiros no caminhar do tempo, as causas determinantes
de posturas jurídicas e suas repercussões para os grupos migratórios.

Da mesma forma merecerá destaque o caminhar evolutivo do Direito do


Trabalho brasileiro, pano de fundo obrigatório dos estudos migratórios, dada a
influência dos imigrantes na luta operária e, consequentemente, na formação e
consolidação da própria normativa trabalhista brasileira.

Tudo isso, certamente, contribuirá para a compreensão do panorama


normativo da atualidade, especialmente no que concerne à questão do tratamento
concedido aos estrangeiros que trabalham no território brasileiro e, sobretudo,
quando presente (ainda que de forma desvirtuada) a relação de emprego.

O enfoque dado pela ordem jurídica brasileira à questão migratória variou


sensivelmente ao longo do tempo, com posturas institucionais que passaram por
períodos de abertura e estímulo, refletindo-se numa posição de equiparação de
direitos e políticas de inclusão, a tempos de seletividade por critérios de ordem
econômica, política e étnica, e até mesmo por lapsos de grande resistência e
fechamento, com resultados normativos bastante severos. Tal oscilação se refletiu

74
 

 
 

no grau de restrições para o exercício de determinadas atividades por estrangeiros,


como ensina JOSÉ LUIZ FERREIRA PRUNES128.

De modo a sistematizar-se o estudo destes fluxos principais,


compreendendo-os nas composições étnicas, nas razões de emigração129 e nas
implicações para a formação da população brasileira, além dos reflexos jurídico-
políticos de tudo isso, será aqui proposta uma divisão em três grandes fases
históricas, embasadas em características de volumes e tipos de aportes
populacionais.

Dentro de cada uma destas grandes fases, também será proposto um cotejo
com a situação do Direito do Trabalho no país e sua interação, em cada etapa de sua
evolução, com o tema dos imigrantes, dado o foco da presente pesquisa na condição
justrabalhista destes indivíduos.

Apesar de divisões desta natureza inevitavelmente simplificarem os


complexos acontecimentos classificados, têm a vantagem didática de fornecer uma
visão panorâmica da migração130, o que será de valor para os fins aqui propostos.

                                                            
128 PRUNES, José Luiz Ferreira. Contratos de trabalho de estrangeiros no Brasil e de brasileiros no exterior.

São Paulo: LTr, 2000, p. 219.


129 Como alerta ABDELMALEK SAYAD, a compreensão das causas da emigração é essencial para o

estudo amplo da chamada questão migratória, sendo reducionismo muito recorrente estudá-la
apenas sob a ótica do país receptor. Cf. SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da
alteridade. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998, p. 14-
15. Frise-se que o presente estudo alinha-se a tal direcionamento, ciente, contudo, da sua estratégia
epistemológica de diagnosticar a situação jurídica (com o correspondente grau de generalidade) do
imigrante no Brasil, o que impedirá um maior aprofundamento no estudo das raízes políticas,
econômicas e sociais da emigração para o Brasil.
130 Despiciendo ressaltar, aqui, que não se pretende esgotar o tema da história da imigração no

Brasil, que conta com uma profusão de particularidades, seja em relação a grupos de imigrantes,
formas de interação ou razões de emigração. A notícia será dada, no presente trabalho, em grandes
linhas, sempre no intento de compreender reflexos jurídicos de escala, avaliando as repercussões
gerais do tratamento do imigrante no tempo. Para uma visão mais detalhada da historiografia da
imigração cf. CASTRO, Mary Garcia (org.). Migrações internacionais: contribuições para políticas.
Brasília: CNPD, 2001.

75
 

 
 

Serão utilizados como referenciais para a compartimentalização adiante proposta os


estudos de BORIS FAUSTO131 e LENÁ MEDEIROS DE MENEZES132, que se dedicaram
à historiografia panorâmica desses movimentos de imigração. Note-se, contudo, que
a divisão final proposta, tal como apresentada, não se encontra em nenhum desses
autores, servindo seus escritos como referencial para a análise feita.

7.1. PRIMEIRA FASE: A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E O TRÁFICO DE


AFRICANOS ESCRAVIZADOS

A primeira fase histórica dos movimentos populacionais direcionados ao


Brasil com a regularidade de fluxos ocorreu no contexto do denominado “período
colonial”. Até aquele momento histórico a América portuguesa vivia o chamado
“período pré-colonial”, no qual a atividade econômica básica era a extração de pau-
brasil, mediante exploração da mão de obra nativa, e não existia uma povoação
expressiva no território, tampouco fluxos constantes ou substantivos de imigração.
O Brasil era, essencialmente, campo de extração madeireira, estoque nas feitorias
litorâneas e plataforma de exportação133.

A partir de 1530, inicia-se o “período colonial”, com a expedição de


MARTIM AFONSO DE SOUZA que, na lição de BORIS FAUSTO, “tinha por objetivo
patrulhar a costa, estabelecer uma colônia e explorar a terra, tendo em vista a
necessidade de sua efetiva ocupação”134.

                                                            
131 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,

2008.
132 MENEZES, Lená Medeiros de. Movimentos e políticas migratórias em perspectiva histórica: um

balanço do século XX. In CASTRO, Mary Garcia (org.). Migrações internacionais: contribuições para
políticas. Brasília: CNPD, 2001.
133 FAUSTO, História do Brasil, cit., p. 42.
134 FAUSTO, História do Brasil, cit., p. 43.

76
 

 
 

Daí em diante diversos elementos políticos, econômicos e sociais se


agruparam para definir o início de uma efetiva colonização no país, com os aportes
populacionais correspondentes. Destes fatores destaca-se a difusão da cultura da
cana-de-açúcar, que exigia volumes expressivos de mão de obra para o trabalho no
campo e atraía os interesses econômicos das elites lusitanas.

Nesta primeira fase do povoamento brasileiro, dois grupos populacionais


principais alimentaram o crescimento demográfico do país, cada um deles de origem
e razões de movimentação enormemente diferenciadas: os colonizadores
portugueses e os africanos trazidos forçosamente sob a condição de escravos.

Antes, contudo, que se passe ao exame dos dois grupos, é necessário que se
faça um alerta. Nesta primeira fase de povoamento do território brasileiro, não
parece adequado afirmar-se que existiam fluxos de imigrantes propriamente ditos,
vez que os indivíduos que se destinavam ao Brasil, pelas peculiaridades de sua
condição, não se identificam, tecnicamente, com imigrantes.

Com efeito, os colonizadores que vinham para o Brasil tinham o intuito de


explorar uma nova terra, impondo-se sobre uma cultura local que era vista como
inferior e não civilizada. Era parte do projeto colonizador implantar os modos de
vida da metrópole no território colonizado, o que é decorrência da própria relação
entre colônia e metrópole. Não corresponde, nesse sentido, à questão da
identificação do imigrante a que se fez referência no início deste trabalho.

Mesmo porque o Brasil, naquela época, não gozava de independência em


relação a Portugal, o que dava ao país um status de prolongamento da própria coroa
lusitana. Os portugueses que para a colônia se deslocavam, a despeito de
atravessarem o Atlântico, não extrapolavam o domínio do poderio de seu país natal
em terras brasileiras, o que reforça a não identificação destes como imigrantes.

77
 

 
 

Da mesma forma, os africanos escravizados passaram por um processo de


expatriação forçada, além da sujeição pessoal nas relações de trabalho travadas em
território brasileiro (característica a ser mais adiante estudada), o que lhes conferiu
uma condição social muito própria, que difere substantivamente da identidade
migrante.

Assim, pertinente é a crítica à identificação deste fluxo de indivíduos


escravizados como fluxo migratório, sintetizada por CARLOS VAINER:

“Colocar no tráfico de escravos o momento fundador das


migrações laborais modernas é desconhecer que o que especifica o
período histórico anunciado pela modernidade é justamente a
emergência do trabalhador livre. É a liberdade individual que funda
a condição específica do trabalhador — e, poder-se-ia dizer de
modo mais geral, do homem moderno. (...) Sejamos claros: o
escravo é um escravo, e não um trabalhador, e muito menos um
trabalhador migrante. E não é um migrante porque lhe falta a
condição mesma da mobilidade, condição que é própria ao
trabalhador moderno e que funda a própria categoria migrante (...).
Isto desautoriza qualquer tentativa de pensar o tráfico de escravos
como uma migração laboral”135.

Donde não parecer acurado tomar-se estes fluxos populacionais de


colonizadores e escravos por fluxos migratórios propriamente ditos. Contudo, como
são os primeiros movimentos expressivos de estrangeiros ao território brasileiro,
que determinaram a formação da cultura brasileira e influenciaram largamente o
desenrolar dos padrões sociais e jurídicos do tratamento à imigração no país, a
reflexão faz-se proveitosa e necessária para a pesquisa proposta.

                                                            
135 VAINER, Carlos B. As novas categorias de uma sociologia dos deslocamentos compulsórios e

das restrições migratórias. In CASTRO, Mary Garcia (org.). Migrações internacionais: contribuições
para políticas. Brasília: CNPD, 2001, p. 178-179.

78
 

 
 

Feita esta ressalva, noticie-se a colonização portuguesa no Brasil, que


perpassou a história do país de maneira muito relevante. Segundo RENATO PINTO
VENANCIO, podem ser verificadas quatro fases na história da vinda de portugueses
para o Brasil: de imigração restrita (1500 – 1700), de transição (1701 – 1850), de
massa (1851 – 1930) e de declínio (1960 – 1991)136. Em cada uma destas fases,
verifica-se a existência de um perfil diferenciado de migrante e de volumes
migratórios também heterogêneos.

Obedecendo a lógica analítica da presente pesquisa, examine-se o


desenrolar das duas primeiras fases (tratadas aqui no mesmo grupo), que iniciaram o
processo de formação da população brasileira, vez que são estas as fases atinentes à
colonização. As duas fases finais propostas por RENATO PINTO VENANCIO (fases
de imigração propriamente dita, designadas pelo autor de fase de “imigração de
massa” e de “declínio”) serão vistas à luz dos fluxos globais que se firmaram nas
décadas em que se desenvolveram, sem a particularidade étnica que identifica este
primeiro momento da colonização.

A primeira fase (de “imigração restrita”) é marcada por tímido volume


migratório, que se constituía, essencialmente, de indivíduos agraciados com a
distribuição das sesmarias, que, via de regra, eram fazendeiros ou empresários em
Portugal que buscavam enriquecimento no “novo mundo” para, posteriormente,
retornarem à metrópole.

                                                            
136 VENANCIO, Renato Pinto. Presença portuguesa: de colonizadores a imigrantes. In VAINFA,

Ronaldo (org.). Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro: IBGE, 2000, p. 61-77.

79
 

 
 

A colonização, desta maneira, era tipicamente de exploração, sendo que


cerca de cem mil portugueses aportaram no Brasil ao longo destes dois primeiros
séculos137.

Na segunda fase, “de transição”, segundo RENATO PINTO VENANCIO,


inicia-se a imigração de portugueses de origem social mais pobre, como pequenos
proprietários rurais da região do Minho138, expandido a vocação inicial de
exploração e implantando um ímpeto de maior definitividade nos deslocamentos.

Por razões evidentes, anteriormente comentadas, o estatuto jurídico dos


portugueses que vieram para o Brasil não apresenta nenhuma peculiaridade
relevante no que concerne ao tema da imigração.

A relação entre a colônia e a metrópole e o fato de o Brasil, até então, ser


um território ultramarino sob o domínio da coroa portuguesa determinava a
sujeição do país aos desígnios da ordenação jurídica de Portugal. Por esta razão, os
portugueses no Brasil não eram propriamente estrangeiros ou imigrantes, vez que
permaneciam em terras portuguesas.

Quanto à presença africana nesta primeira fase de formação da população


brasileira (de 1530 a 1822), mais de três milhões139 de negros escravizados advindos
de diversas regiões do continente africano foram trazidos ao Brasil, como mão de
obra nos ciclos de produção atravessados pela economia da América portuguesa. É
óbvio que o estatuto jurídico a que era submetido um indivíduo escravizado difere

                                                            
137 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), disponíveis em

http://www.ibge.gov.br/brasil500/portugueses.html. Acesso em 20 de agosto de 2009.


138 Nesta segunda fase, pouco mais de seiscentos mil portugueses migraram para o Brasil, conforme

dados do IBGE. Cf. http://www.ibge.gov.br/brasil500/portugueses.html. Acesso em 20 de agosto


de 2009.
139 Dados do IBGE, disponíveis em http://www.ibge.gov.br/brasil500/negros.html. Acesso em 20

de agosto de 2009.

80
 

 
 

em suas premissas mais elementares daquele de um trabalhador livre, efetivamente


sujeito de direitos.

BORIS FAUSTO teoriza sobre as causas para utilização da mão de obra


escravizada, revelando razão ligada à migração de trabalhadores:

“Por que se apelou para uma relação de trabalho odiosa a nossos


olhos, que parecia semimorta, exatamente na época da chamada
pomposamente de aurora dos tempos modernos? Uma resposta
sintética consiste em dizer que nem havia grande oferta de
trabalhadores em condições de emigrar como semi-dependentes ou
assalariados, nem o trabalho assalariado era conveniente para os
fins da colonização”140.

O capítulo brutal e triste do tráfico de africanos escravizados para o Brasil,


para o estudo da questão do tratamento do trabalho dos imigrantes, serve como
referência da formação de uma truculência originária como padrão. Não há,
contudo, como se fazer uma transposição direta, vez que a condição de um
trabalhador livre e de um escravizado revela diferenças jurídicas que lhes afastam
sensivelmente141.

7.1.1. A AUSÊNCIA DE REGULAÇÃO DO TRABALHO NA FASE DE COLONIZAÇÃO


E EXPLORAÇÃO DE ESCRAVOS

Alerte-se, preliminarmente, não pretender a presente pesquisa promover


uma reconstrução histórica sistemática das origens do Direito do Trabalho no Brasil
                                                            
140 FAUSTO, História do Brasil, cit., p. 48.
141 Há que se alertar, contudo, para o fato de que até os dias de hoje imigrantes são sujeitos a

trabalho em condição análoga à de escravo, tema que será analisado no último capítulo da presente
pesquisa. Do ponto de vista jurídico, contudo, a diferença continua substantiva: a escravidão, antes
juridicamente admitida, tornou-se banida dos ordenamentos contemporâneos e a luta pela
eliminação das formas de exploração do trabalho que se aproximem da escravidão é plataforma já
mais do que consolidada nos foros de proteção internacional ao trabalho.

81
 

 
 

(o que extrapolaria o objeto proposto), limitando-se, tão somente, a apontamentos


sobre a normatização trabalhista naquilo que toca diretamente aos temas afetos à
condição dos trabalhadores migrantes no país.

Feito esse alerta, diga-se que nesta primeira grande fase do povoamento do
Brasil — que, para fins da análise aqui proposta, estendeu-se de 1530 a 1822 — a
ideia de regulação das relações de trabalho estava ainda em um momento bastante
embrionário, dada a prevalência absoluta de formas não livres de exploração do
trabalho. No entender de MAURICIO GODINHO DELGADO:

“Em um país de formação colonial, de economia essencialmente


agrícola, com um sistema econômico construído em torno da
relação escravista de trabalho — como o Brasil até fins do século
XIX —, não cabe pesquisar a existência desse novo ramo jurídico
[o Direito do Trabalho] enquanto não consolidadas as premissas
básicas para a afirmação socioeconômica da categoria básica do
ramo justrabalhista, a relação de emprego”142.

Esclareça-se a razão da inexistência de leis trabalhistas. A relação escravista


é baseada em absoluta sujeição pessoal, que difere substantivamente da subordinação
jurídica que caracteriza a relação jurídico-empregatícia. No trabalho escravo o
indivíduo explorado não tem a condição de pessoa, mas de coisa, como salienta
AMAURI MASCARO NASCIMENTO143. Não pode, portanto, ser sujeito de direitos
diante da ordem jurídica, pelo que o trabalho prestado não é protegido pelo Direito.
É esta a essência de sujeição pessoal, entendida como um estado de submissão absoluta
do escravo em relação ao seu senhor.

Como visto, por conta do predomínio das relações escravistas neste


período histórico, não houve a sistematização do Direito do Trabalho, já que seu
                                                            
142 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 105.
143 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1997,

p. 321.

82
 

 
 

pressuposto essencial é a presença da liberdade do obreiro, mesmo que ele seja


subordinado juridicamente. Quanto à noção de subordinação jurídica, trata-se de
conceito “essencial para o Direito do Trabalho, pois é decisivo para a afirmação da
existência da relação de emprego. Nesse sentido, ele representa a ‘chave de acesso’
aos direitos e garantias trabalhistas”, conforme nota LORENA VASCONCELOS
PORTO144.

Diferente da sujeição pessoal característica da relação escravista, a


subordinação jurídica, indispensável à configuração da relação de emprego, revela-se
quando “a pessoa natural, por ato de sua livre vontade, assume a obrigação de
trabalhar para outro sujeito de direito, que a remunera”145, na lição de JOSÉ
MARTINS CATHARINO. O trabalho é executado sob a direção e ordens do tomador,
mas sem a redução do obreiro à condição de coisa, vez que, na própria relação, ele
se faz titular de direitos146.

A subordinação jurídica só se fez viável no Brasil após a abolição da


escravatura, o que só ocorreu no momento histórico a ser analisado a seguir. Por
esta razão, na primeira fase de fluxos de estrangeiros para o Brasil — vez que as
relações de trabalho, via de regra, não eram juridicamente livres —, não se pode
falar de uma regulação de proteção ao trabalho humano, bem como de um ramo
justrabalhista especializado.

                                                            
144 PORTO, Lorena Vasconcelos. A parassubordinação: aparência x essência. Revista Magister de

Direito Trabalhista e Previdenciário, Porto Alegre, v. 27, p. 21-51, 2008, p. 21.


145 CATHARINO, José Martins. Compêndio de Direito do Trabalho. 2. ed. V. 1. São Paulo: Saraiva,

1981, p. 205.
146 Muito se teoriza sob o elemento fático-jurídico da subordinação, seja quanto ao seu conteúdo,

natureza, extensão e preponderância na definição da relação empregatícia. Uma vez que este não é
o objeto imediato da presente pesquisa, o apontamento se faz de maneira limitada, apenas no
contraponto à exposição do trabalho dos africanos escravizados no Brasil. Para lições detalhadas
sobre o tema da subordinação e sua releitura na contemporaneidade cf. PORTO, Lorena
Vasconcelos. A subordinação no contrato de trabalho. São Paulo: LTr, 2009.

83
 

 
 

7.2. SEGUNDA FASE: OS FLUXOS MIGRATÓRIOS DO SÉCULO XIX ATÉ MEADOS


DO SÉCULO XX

Nos séculos XIX e XX — sobretudo a partir da segunda metade do século


XIX — o Brasil passou a ser destino de grandes contingentes de imigrantes, em
decorrência da conjunção de uma série de fatores nos planos interno e internacional
que determinaram o deslocamento, principalmente de europeus, para novos
espaços.

Neste período construíram-se, então, os padrões e abordagens da questão


migratória que, em grande medida, o país adota até o presente, com seus avanços,
retrocessos e contradições.

Este movimento de europeus para o Brasil encontra suas causas nos dois
pólos do fluxo: nos países de origem e no país de destino. As causas do êxodo do
“velho mundo” são sintetizadas por SORAYA MOURA:

“O século XIX, movido pelos novos processos de produção


industrial ou pelas crises agrícolas que se abatiam sobre algumas
regiões da Europa, criou uma gigantesca máquina a impulsionar
para fora os excluídos da industrialização. (...) Na Europa daquele
século, difundira-se rapidamente a idéia de que o continente era
superpovoado, principalmente por pobres. Quanto maior fosse a
quantidade deles embarcada para fora, melhor para todos,
acreditava-se. Melhor para quem partia, melhor para quem ficava.
Assim, evidencia-se que a emigração era provocada sobretudo por
razões econômicas. Era a pobreza, o que encaminhava a maioria
para os portos de onde saíam os navios para uma nova vida”147.

                                                            
147 MOURA, Soraya. Memorial do imigrante: a imigração no estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa

Oficial, 2008, p. 21.

84
 

 
 

Então, movidos por contingências econômicas, italianos, espanhóis,


portugueses, alemães, entre outros, dirigiram-se a diversos países da América, dentre
eles o Brasil. O país, por sua vez, agregava fatores de atração aos imigrantes,
completando o “ciclo virtuoso” do intenso movimento populacional que perpassou
muitas décadas.

Após a independência, em 1822, a marcha da vedação jurídica às práticas


associadas à escravidão (como por meio da Lei Eusébio Queiroz, de 1850, que
proibiu o tráfico negreiro), até a completa abolição, em 1888, fez com que a
dinâmica de exploração do trabalho no país fosse profundamente alterada. As
relações de sujeição total do escravo, outrora hegemônicas, cederam passo às
relações livres e juridicamente subordinadas de trabalho.

Assim, como aponta LUIZ PAULO TELES FERREIRA BARRETO, a


necessidade de força de trabalho livre nesta nova diagramação de relações
impulsionou o intenso fluxo das migrações que se seguiria:

“Com o fim da escravidão, tornou-se imperiosa a vinda de


imigrantes para suprir a necessidade de mão-de-obra para as
pequenas propriedades, que objetivavam o desenvolvimento e a
segurança do sul do país, bem como para a lavoura cafeeira de
exportação. Nesse contexto, chegaram italianos, alemães e
japoneses”148.

A chegada dos estrangeiros encontrava contexto no fim das relações de


escravidão, em tempos de desenvolvimento de novos setores da economia. A
cultura de café, as primeiras iniciativas de industrialização do país, o comércio e a
abertura de estradas faziam parte do cenário da época. Tudo isto fez com que a
ainda tímida imigração para o Brasil até então desse um salto assustador, retratado

                                                            
148 BARRETO, Luiz Paulo Teles Ferreira. Considerações sobre a imigração no Brasil

Contemporâneo. In CASTRO, Migrações internacionais, cit., p. 64.

85
 

 
 

por PEDRO CALMON, ao relembrar que “até 1850 recebera o Brasil uns 19 mil
imigrantes. Entre 1855 e 1862, a média da entrada deles fora de 15 mil por ano”149.

Há que se comentar, aqui, que a questão da necessidade de mão de obra


neste momento histórico lega aos estudiosos uma recorrente pergunta, que revela
outras razões por detrás da primeira resposta. A perplexidade reside no fato de que,
com a abolição da escravatura, existiria, em princípio, um grande contingente de
trabalhadores que, outrora escravizados, foram alçados à condição de liberdade e
poderiam ocupar os postos de trabalho criados pela expansão das atividades
econômicas do país.

O que se esconde na simplificação proposta prima facie é a influência direta


de um ideário racista difundido na virada do século XIX para o século XX. A mão
de obra livre que se formou com o fim da escravatura, despiciendo lembrar, era
oriunda da África. E, à época, vigorava este arraigado racismo ligado às práticas
escravagistas e à distorcida noção de inferioridade dos indivíduos de pele negra.

Assim, no dizer de LUCELINDA SCHRAMM CORRÊA, o processo que ocorria


no Brasil tinha como “idéia subjacente a ocupação do território por uma população
livre e branca, o que permitiria o paulatino ‘branqueamento’ da população”150.

Obviamente, não se pretende pleitear que a abolição da escravatura e o


desenvolvimento econômico não sejam causas diretas para o aporte de imigrantes
no Brasil. Chama-se atenção, tão somente, para um elemento ideológico de grande
influência na forma como se desdobraram os fatos.
                                                            
149 CALMON, Pedro. História da civilização brasileira. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal,

2002, p. 229. O historiador PEDRO CALMON, em seus números, não considera colonos e escravos
como imigrantes, à luz do alerta feito no ponto anterior.
150 CORRÊA, Lucelinda Schramm. As políticas públicas de imigração européia não-portuguesa para

o Brasil: de Pombal à República. Revista Geo-paisagem, v. 08, 2005. Disponível em


http://www.feth.ggf.br/Migra%C3%A7%C3%A3o.htm. Acesso em 26.07.2009.

86
 

 
 

Além disto, havia o tema da ocupação territorial, dadas as dimensões físicas


do país e o parco povoamento que existia até então, concentrado em áreas próximas
ao litoral e pontos específicos no interior do país151.

A união destes três fatores — a necessidade de mão de obra livre após a


abolição da escravatura, o desenvolvimento de novos setores da economia nacional
e a necessidade de povoamento do interior do país — determinou o início desta fase
de substantiva recepção de imigrantes no Brasil.

O período que se sucede a estes primeiros fluxos migratórios de maior


monta no final do século XIX é, efetivamente, de avanços e retrocessos no
tratamento institucional da questão migratória, ao sabor das transformações das
conjunturas políticas e econômicas do país.

LENÁ MEDEIROS DE MENEZES indica duas fases antagonizadas quanto à


questão migratória já no início do século XX:

“1. A fase da Grande Imigração, que corresponde à época áurea do


Imperialismo e se estende das últimas décadas do oitocentos à
Primeira Guerra Mundial, responsável pelo estancamento dos
antigos fluxos;
2. O período entre guerras, quando, acompanhando a tendência
mundial, o Brasil conheceu uma escalada crescente do
nacionalismo e acompanhou, de forma geral, as políticas restritivas
que se impuseram”152.
                                                            
151 Cf. MENEZES, Movimentos e políticas migratórias em perspectiva histórica. In CASTRO,

Migrações internacionais, cit., p. 124.


152 MENEZES, Movimentos e políticas migratórias em perspectiva histórica. In CASTRO, Migrações

internacionais, cit., p. 125. A autora dá notícia de duas outras fases: “3. O período de alinhamentos
que caracterizou o sistema internacional bipolar, cuja expressão máxima foi a Guerra Fria, quando
fluxos imigratórios alcançaram o Brasil como parte de uma política ampla tecida no âmbito dos
organismos internacionais, e as primeiras levas de brasileiros deixaram o país em direção ao
Primeiro Mundo; 4. A era do Neoliberalismo e da Globalização, quando aumenta a circulação de
executivos e técnicos das multinacionais e a tendência dos deslocamentos regionais de

87
 

 
 

Enxerga a autora grandes mudanças na política migratória brasileira na


passagem de uma fase à outra, a refletirem níveis de abertura ou resistência às ondas
migratórias internacionais. Esses influxos, por certo, informaram a construção da
corrente disciplina da recepção de imigrantes no Brasil, em seus instrumentos
jurídicos e ações políticas.

Na fase da “grande imigração”, a simpatia institucional e os estímulos à


imigração eram patentes, a despeito da precariedade da recepção e da inserção dos
imigrantes no Brasil, sem mencionar as recorrentes situações de superexploração do
trabalho e as práticas análogas à escravidão, como a servidão por dívida. Discorre
LENÁ MEDEIROS DE MENEZES sobre esta fase:

“A era da Grande Imigração correspondeu à emigração de massa


de trabalhadores europeus, em resposta às dificuldades enfrentadas
no Velho Mundo por conta dos avanços do capitalismo, bem
como das propostas de modernização formuladas no quadro
ideológico do evolucionismo. Esse momento foi responsável pelo
transbordamento de milhões de pessoas da Europa para o mundo,
em números que alcançaram cifras de milhões e milhões a
procurarem novas condições de existência, pobres e ingênuas o
suficiente para dependerem de políticas de subvenção e se
deixarem levar por propagandas enganosas”153.

No transcorrer do século XX, após os intensos aportes nos seus primeiros


anos, algumas mudanças começaram a ocorrer, refletindo-se nos padrões de
tratamento dos imigrantes. O Brasil estava em franco processo de urbanização e
industrialização, e a influência das ideologias européias de cunho anárquico e
socialista se fazia claramente presente, trazidas pelos recém chegados imigrantes, o

                                                                                                                                                                              
trabalhadores econômicos passa a ganhar visibilidade no país”. Estas serão tratadas no ponto 7.3
deste capítulo.
153 MENEZES, Movimentos e políticas migratórias em perspectiva histórica. In CASTRO, Migrações

internacionais, cit., p. 125.

88
 

 
 

que catalisou a segunda fase proposta por LENÁ MEDEIROS DE MENEZES, de


restrição às imigrações.

Trata-se de etapa fundamental para a compreensão dos instrumentos


normativos atualmente vigentes para o trato dos imigrantes, sobretudo no que diz
respeito à questão trabalhista. Aliás, o próprio surgimento de um Direito do
Trabalho no país encontra suas raízes neste momento histórico.

Isso porque em um novo palco urbano, avolumava-se um grupo de


indivíduos a sustentar a estrutura produtiva do capitalismo industrial, através da
alienação de sua força de trabalho. Operários imigrantes, trabalhadores urbanos
empregados nas fábricas, eram cada vez mais numerosos, sujeitos às mais precárias
condições de trabalho e de vida.

A delicada relação capital industrial versus trabalho operário lançava os sinais


de sua inflamabilidade. Ainda de modo fragmentado, formavam-se, ali, sob a
influência direta dos imigrantes, primeiros pilares da resistência operária nacional,
naquilo que ROBERTO BARRETTO PRADO chamou de uma “certa efervescência
reivindicatória por parte dos operários”154.

Assim, as ideias do “velho mundo” se propagaram pelos movimentos do


operariado nacional, por conta deste expressivo número de trabalhadores europeus
(sobretudo italianos) empregados na indústria brasileira no período. O anarquismo
de BAKUNIN, KROPOTKIN e PROUDHON orientou, então, o desenvolvimento da
luta proletária no Brasil em urbanização. É o que nota, mais uma vez, ROBERTO
BARRETTO PRADO:

                                                            
154 PRADO, Roberto Barretto. Evolução histórica do Direito do Trabalho no Brasil. In MAGANO,

Octavio Bueno (coord.). Curso de Direito do Trabalho: em homenagem a Mozart Victor Russomano.
São Paulo: Saraiva, 1985, p. 13.

89
 

 
 

“Os trabalhadores estrangeiros que exerciam suas atividades nas


indústrias, já em grande número, traziam dos países de origem
outra mentalidade, insubmissa e reivindicatória, de acordo com o
movimento popular que ganhava amplitude na Europa”155.

Formou-se, no período, uma imprensa operária ativa, que foi fator


fundamental para a difusão das ideias que agregavam os trabalhadores urbanos, em
grande medida orquestrados por imigrantes europeus. E, apesar dos inúmeros
percalços, é certo que ali se esboçava uma cultura operária que viria a cimentar o
associativismo e a solidariedade de classe, que marcariam o futuro do sindicalismo
brasileiro.

Nesse sentido, o registro de EDGARD CARONE, dando a dimensão da


influência dos imigrantes nestes primeiros passos da resistência operária no Brasil:

“A partir de sua origem, principalmente após 1890, a ação do


operário brasileiro reflete boa parte da complexidade ideológica e
organizatória de seu congênere europeu. (...) Formas de
organização e teoria, tudo, tudo, nos vem como herança de
fora”156.

A resposta repressiva do Estado naquele contexto era, em todas as suas


dimensões, igualmente marcante. Na referência de MARIA HELENA SOUZA PATTO:

“O uso permanente, sem-cerimônia, ilegal e impune do aparato


policial para estancar o protesto dos espoliados, tirar de circulação
a força-de-trabalho desnecessária e restabelecer a ordem social nos
moldes requeridos pelo interesse da classe dominante foi traço
profundo da vida social brasileira nesse período”157.

                                                            
155 PRADO, Evolução história do Direito do Trabalho no Brasil. In MAGANO, Curso de Direito do

Trabalho, cit., p. 14.


156 CARONE, Edgard. Movimento operário no Brasil: 1877-1944. São Paulo: Difel, 1979, p. 5.
157 PATTO, Maria Helena Souza. Estado, ciência e política na Primeira República: a desqualificação

dos pobres. Revista Estudos Avançados, São Paulo, n. 13(35), p. 167-198, 1999, p. 177.

90
 

 
 

Além da violência policial, o tratamento jurídico dado à questão do


associativismo operário tendia à criminalização da ação reivindicatória, de modo que
os brados anarquistas se voltavam fortemente contra a lei. Nesse sentido, elucidativo
é o trecho de uma carta da Federação Operária de São Paulo, publicada no
periódico “Avanti!”158, em maio de 1907:

“Cumprir a lei é assaltar a sede de uma associação operária,


confiscar papéis e documentos, prender e espancar operários,
pacificamente reunidos, fechar o local da Federação Operária (...).
Cumprir a lei é prender operários por ‘crimes’ como o de pretender
dirigir-se a localidades onde há greves, como se tem dado com
alguns companheiros!
Cumprir a lei é impedir o livre e público exercício do direito de
reunião, ou pela violência direta ou pela pressão exercida sobre os
proprietários de salões”159.

A repressão, por óbvio, ultrapassou o domínio da luta operária e afetou a


questão migratória propriamente dita. A simpatia e a abertura do governo brasileiro
para com a entrada de imigrantes transformaram-se em restrições robustas, e a
expulsão de imigrantes considerados subversivos tornou-se expediente cada vez
mais comum. Era como uma tentativa de se extirpar a influência destas ideologias
em sua origem, dificultando o acesso daqueles que as traziam da Europa. É o que
registra BORIS FAUSTO, ao mencionar que a repressão “se abateu principalmente
sobre os dirigentes operários estrangeiros que tinham papel importante como
organizadores”160, lembrando que “muitos deles foram expulsos do país”161.

                                                            
158 O periódico socialista “Avanti!” era um dos muitos jornais operários editados por trabalhadores

imigrantes. Redigido em italiano, circulou de 1900 a 1909. Cf. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci,
KOSSOY, Boris (orgs.). A imprensa confiscada pelo DEOPS: 1924-1954. São Paulo: Imprensa Oficial,
2003, p. 32.
159 Federação Operária do Estado de São Paulo, aos Trabalhadores, Avanti!, 24.05.1907, in

PINHEIRO, Sérgio Paulo, HALL, Michael M. A classe operária no Brasil: documentos (1889 a 1930).
v. I. São Paulo: Alfa-Omega, 1979, p. 65.
160 FAUSTO, História do Brasil, cit., p. 302.
161 FAUSTO, História do Brasil, cit., p. 302.

91
 

 
 

Essas políticas restritivas continuaram até o governo de GETÚLIO VARGAS,


quando, aliás, encontraram seu momento de maior virulência. Limitou-se
radicalmente a entrada de estrangeiros162 sem qualificação profissional, também sob
a regência da depressão econômica da época no mundo pós-1929, que se refletia em
desemprego na indústria. Tal condição, aliás, justificou a imposição para as empresas
de manter em seus quadros altos percentuais de operários brasileiros natos, de
modo a criar uma reserva de mercado para os brasileiros natos163.

O pós-Segunda Guerra Mundial e os regimes totalitários europeus ainda


sustentaram novos fluxos de imigração européia para o Brasil em meados do século
XX, com perfis diferenciados da primeira onda do início do século (que era,
essencialmente, de lavradores e operários sem qualificação profissional). A política
migratória restritiva impunha a necessidade de qualificação profissional, e os
imigrantes da década de 50 eram, via de regra, trabalhadores com um grau maior de
instrução.

Perdurava, ainda, a influência da ideologia racista da qual se falou


anteriormente, que fechava o ciclo para os novos aportes migratórios europeus,
agora de mão de obra qualificada. É como sintetiza LUCIANA FACCHINETTI, ao
destacar que “a necessidade de mão-de-obra qualificada e a ‘melhoria da raça’ foram
as principais bases para se trazer — mais uma vez — o imigrante europeu para o
Brasil”164. E foi esta a última grande onda de imigrações para o Brasil, que, como se
verá, passou a ter suas inclinações, quanto às questões migratórias, completamente
alteradas.

                                                            
162 O fluxo migratório de exceção, aqui, é o dos japoneses, dado que “foi entre 1931 e 1940 que eles

entraram no país em maior número”. Cf. FAUSTO, História do Brasil, cit., p. 276.
163 O tema será especificamente examinado no item 13.1 da presente pesquisa.
164 FACCHINETTI, Luciana. A imigração italiana no segundo pós-guerra e a indústria brasileira nos anos 50.

Dissertação de mestrado. Campinas: UNICAMP, 2003, p. 57.

92
 

 
 

7.2.1. A INTERAÇÃO ENTRE OS FLUXOS MIGRATÓRIOS E A CONSOLIDAÇÃO DO


DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO

Como noticiado anteriormente, a partir meados do século XIX, os fluxos


migratórios de europeus para o Brasil se iniciaram e, paulatinamente, se
intensificaram, catalisando alterações profundas na organização e regulação das
relações de trabalho no país. E, considerando o longo espaço de quase dois séculos
que compreende o período em análise (da independência, em 1822, até o final do
século XX), o Direito do Trabalho brasileiro experimentou suas primeiras
manifestações e conheceu todo seu processo de institucionalização e expansão165.

A influência inicial dos imigrantes na formação do Direito do Trabalho


brasileiro é aquela registrada no ponto anterior, pelo papel dos estrangeiros nos
movimentos reivindicatórios ocorridos no final do século XIX e nas primeiras
décadas do século XX. Reconhecendo tal conexão, MAURICIO GODINHO
DELGADO registra o gérmen da experiência sindical brasileira na época:

“As primeiras associações de trabalhadores livres mas assalariados,


mesmo que não se intitulando sindicatos, surgiram nas décadas
finais do século XIX, ampliando-se a experiência associativa ao
longo do início do século XX. (...) Na formação e desenvolvimento
dessas entidades coletivas teve importância crucial a presença da
imigração européia, que trouxe idéias e concepções plasmadas nas
lutas operárias do velho continente”166.

Sob a influência de imigrantes na luta operária, viu-se o chamado período


das “manifestações incipientes ou esparsas do Direito do Trabalho”, na expressão
                                                            
165 Mais uma vez diga-se não ser o objeto do presente estudo um exame sistemático da formação e

consolidação do ramo justrabalhista no país ao longo desses quase dois séculos. O corte
epistemológico da pesquisa demanda uma análise do intercruzamento da questão migratória e da
regulação trabalhista, o que será feito por meio de apontamentos específicos.
166 DELGADO, Mauricio Godinho. Direito Coletivo do Trabalho. LTr: São Paulo, 2001, p. 93-4.

93
 

 
 

de MAURICIO GODINHO DELGADO. O período, que vai de 1888 a 1930, é marcado


“pelo surgimento assistemático e disperso de alguns diplomas ou normas
justrabalhistas”167, afetos a questões específicas, como a criação de sindicatos,
aposentadoria, férias e trabalho de menores.

Após 1930, inicia-se a fase de institucionalização e robustecimento do


Direito do Trabalho brasileiro. Nos primeiros anos do período viu-se a
multiplicação de normas trabalhistas em um curto espaço de tempo. Como
salientado por EVARISTO DE MORAES FILHO:

“Criou-se a toque de caixa, por necessidade, toda uma nova


estrutura legal e administrativa para as coisas do trabalho:
sindicalização, reforma de caixa, nacionalização do trabalho,
duração de trabalho, Comissões Mistas de Conciliação, Juntas de
Conciliação e Julgamento, carteira profissional, convenção coletiva,
trabalho de mulheres e de menores, férias, reforma do Conselho
Nacional do Trabalho, Delegacia do Trabalho Marítimo, e os dos
Primeiros Institutos de Previdência, etc”168.

Note-se que o autor destaca, como uma das medidas deste período de
intensa regulação trabalhista, a questão da nacionalização do trabalho. Em 1930, foi
expedido o Decreto 19.482, que limitou a entrada, no território nacional, de
passageiros estrangeiros de terceira classe, dispôs sobre a localização e amparo de
trabalhadores nacionais, e estabeleceu a famosa “regra dos dois terços”, que
reservava esta proporção de postos de trabalho para brasileiros nas empresas169.

O que se pode perceber, portanto, é uma combinação das políticas de


regulação trabalhista à repressão de ideologias revolucionárias trazidas pelos

                                                            
167 DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 107.
168 MORAES FILHO, Evaristo de, MORAES, Antonio Carlos Flores de. Introdução ao Direito do

Trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr, 2003, p. 99.


169 O tema da proporcionalidade será retomado (e criticado à luz da Constituição de 1988) no item

13.1 do capítulo 4, ficando, aqui, o registro da medida que afeta diretamente a questão migratória.

94
 

 
 

estrangeiros e que conduziam o movimento operário nacional. Leciona MAURICIO


GODINHO DELGADO que, nesta fase, o trato da questão social se dava da seguinte
maneira:

“De um lado, através de rigorosa repressão sobre quaisquer


manifestações autonomistas do movimento operário; de outro
lado, através de minuciosa legislação, inaugurando um novo e
abrangente modelo de organização do sistema justrabalhista,
estreitamente controlado pelo Estado”170.

Nesse quadro, o mesmo autor enxerga as destacadas medidas de


nacionalização do trabalho como verdadeiras “ações voltadas a sufocar
manifestações políticas operárias autonomistas (...) [com] uma contínua e
perseverante repressão estatal sobre as lideranças e organizações autonomistas
obreiras”171.

Em resumo, durante quase todo o século XX este foi o modelo que


norteou a regulação trabalhista: farta legislação estatal — que teve seu ápice na
Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943 — e limitações à liberdade e autonomia
do movimento operário, o que se operacionalizou também por meio de
endurecimento em matéria de migrações.

7.3. TERCEIRA FASE: A MUDANÇA DA VOCAÇÃO MIGRATÓRIA BRASILEIRA AO


FINAL DO SÉCULO XX E INÍCIO DO SÉCULO XXI

Após os substantivos aportes populacionais ocorridos, o final do século XX


foi palco para uma radical mudança na vocação migratória do Brasil, que passou da
condição de um país tipicamente de imigração — ou seja, recepção de imigrantes —
                                                            
170 DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 110.
171 DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 112.

95
 

 
 

para um país essencialmente de emigração. É dizer, o Brasil passou a promover


exportação da força de trabalho, em movimentos que denunciam os problemas da
justiça social no país e os dramas do novo modelo de organização do mundo do
trabalho.

No registro de VALÉRIA CRISTINA SCUDELER:

“No final deste século ocorreu uma inflexão interessante na


história das migrações entre Brasil e nações desenvolvidas.
Passamos de grandes receptores de mão de obra dos países centrais
na virada do século XIX até as primeiras décadas do século XX
para ‘exportadores’ (ainda que em níveis comparativos bastante
modestos) de uma parte da nossa população, a qual parece
acreditar ter melhores possibilidades de trabalho e remuneração em
países mais desenvolvidos, notadamente nos EUA”172.

A ida de brasileiros para outros países do exterior, em busca de melhores


condições de vida e trabalho, que não tinha expressividade até então, passa a ditar o
ritmo e as direções migratórias envolvendo o Brasil. É o que registra LENÁ
MEDEIROS DE MENEZES:

“Nunca mais (...) o país viria a se caracterizar como país de


imigração, definindo-se, ao contrário, como país de emigração
quando a crise do petróleo pôs fim ao ‘milagre brasileiro’.
Processos de emigração espontânea adensaram colônias de
brasileiros localizadas em cidades como Nova York, Boston, Paris,
Londres, e cumpre ressaltar que, nesses deslocamentos, alguns
processos de bastidores, como o da prostituição e do tráfico de
mulheres, também se impuseram”173.

Esta mudança no perfil do país quanto à migração é explicada pela mesma


sorte de fatores que, no passado, sustentaram a imigração massiva. As causas
                                                            
172 SCUDELER, Valéria Cristina. Valadarenses nos EUA. Revista ComCiência, UNICAMP,

Campinas, v. 16, p. 17, 2000, p. 17.


173 MENEZES, Movimentos e políticas migratórias em perspectiva histórica. In CASTRO, Migrações

internacionais, cit., p. 133.

96
 

 
 

econômicas preponderam, sendo que, desta vez, as mazelas da pobreza e da


distribuição de renda no Brasil passaram a alimentar o deslocamento de brasileiros
para o exterior, em busca de trabalho nos chamados países do “primeiro mundo”,
sobretudo nos Estados Unidos.

A despeito de um desencontro de dados oficiais (visto que grande parte das


emigrações se dá de maneira ilegal), algumas pesquisas afirmar que existam
atualmente cerca quatro milhões de brasileiros vivendo no exterior174, o que ilustra a
dimensão da mudança.

Uma vez que o presente estudo se dedica ao tema da condição do imigrante


face ao Direito do Trabalho nacional, a questão da emigração de brasileiros e a
condição deles no exterior não será aqui aprofundada, ficando o registro crítico
desta mudança substantiva operada, que gera reflexos da maior relevância e
denuncia os graves problemas sociais do Brasil.

Importante registrar, aqui, que a despeito desta passagem em termos de


predominância da emigração, convive-se, atualmente, com fluxos crescentes de
imigração para o Brasil, constituídos de grupos étnicos muito diferentes daqueles
que o país recebera nos últimos séculos. No contexto dos ditos países em
desenvolvimento, a situação de liderança e de relativa estabilidade econômica e
política funciona como um atrativo à imigração de países mais pobres, sobretudo da
própria América Latina, além de africanos e orientais para o Brasil.

Ou seja, a despeito de ser classificado atualmente como um país tipicamente


de emigração, o Brasil já se firma como destino de alguns fluxos expressivos de
                                                            
174 O número é da PEC 272/2000, transformada na Emenda Constitucional 54 de 2007, que alterou

o art. 12, I, “c” da Constituição de 1988, para garantir o registro nos consulados de brasileiros
nascidos no estrangeiro. Informação disponível em http://www.camara.gov.br/Sileg/Prop_
Detalhe.asp?id=14641. Acesso em 05 de janeiro de 2009.

97
 

 
 

imigrantes, sobretudo imigrantes em condição de irregularidade, que abandonam


seus países de origem, com condições econômicas inferiores à do Brasil, na busca de
melhores oportunidades. E, vale pontuar, estes fluxos cresceram sensivelmente nas
últimas décadas, o que justifica a retomada do tema da condição jurídica dos
imigrantes no Brasil e o equacionamento dos novos desafios que se apresentam
neste quadro. Estes aspectos serão aprofundados nos capítulos IV e V do presente
trabalho.

7.3.1. A MUDANÇA DO PADRÃO MIGRATÓRIO NO BRASIL NO CONTEXTO


CRISE DO DIREITO DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE

As duas últimas décadas do século XX e o início do século XXI


constituíram cenário para profundas transformações no universo do trabalho, nas
quais encontrou contexto a mudança da posição do Brasil na questão dos fluxos
internacionais de mão de obra. Igualmente grandes foram os reflexos na legislação
trabalhista, levando o Direito do Trabalho àquilo que se pode classificar como um
momento de transição e crise.

Antes, contudo, que se fale da crise propriamente dita, é necessário destacar


que a Constituição de 1988 deu importante passo no sentido da constitucionalização
da proteção ao trabalho, com normas trabalhistas bastante detalhadas175, reflexo do
caminhar das lutas ao longo do século XX pela ampliação da proteção ao trabalho,
das quais fizeram parte os imigrantes que no Brasil fixaram raízes.

                                                            
175 Os excessos da regulamentação trabalhista na Constituição são criticados pela doutrina

justrabalhista, no sentido de que normas constitucionais deveriam manter-se afetas às questões


fundamentais, em grandes linhas. Nesse sentido NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Os direitos
sociais nas Constituições brasileiras. In PELLEGRINA, Maria Aparecida, SILVA, Jane Granzoto
Torres da (coords.). Constitucionalismo social: estudos em homenagem ao ministro Marco Aurélio
Mendes de Faria Mello. São Paulo: LTr, 2003, p. 42.

98
 

 
 

Ocorre que, como percebe MAURICIO GODINHO DELGADO, a abertura


democrática brasileira sob a égide da nova Constituição, após longas décadas de
autoritarismo, coincidiu justamente com um momento desarticulação do Direito do
Trabalho, o que torna essa fase especialmente dramática176.

Este momento crítico do ramo justrabalhista decorre de uma série enorme


de fatores, das mais variadas naturezas177. Pode-se dizer que uma das principais
mudanças a sintetizar toda a cadeia de elementos que afetou a realidade do trabalho
e sua repercussão jurídica, foi uma alteração do modelo de produção, no panorama
da própria mudança do paradigma de Estado. Nesse sentido, a lição de GABRIELA
NEVES DELGADO:

“A crise estrutural do Estado Social de Direito e a posterior


decolada do Estado Poiético trouxeram consigo acentuada redução
do papel do Estado como órgão regulador das questões sociais. Ao
mesmo tempo em que se firmava, mais uma vez na história
contemporânea de produção, o primado do mercado,
reestruturava-se o Estado Liberal de Direito, desta vez sob nova
diretriz: a do neoliberalismo. As empresas, em sintonia com o novo
modelo de Estado, também passaram a adotar fórmulas redutoras,
sempre com vista ao aumento de seus lucros. Estruturou-se, assim,
o padrão toyotista, mediante a legitimação de um novo conceito de
empresa, designado de empresa-magra ou enxuta”178.

Como consequência deste novo modus operandi do Estado e da empresa, a


relação empregatícia clássica sofreu forte impacto, e as formas precárias de
contratação se multiplicaram. ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA, nesse quadro, enuncia
o fenômeno da “deslaborização” do Direito do Trabalho, apontando uma quebra
no núcleo da relação empregatícia e uma expansibilidade em modelos contratuais
                                                            
176 DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 115.
177 Tais fatores são detalhadamente tratados por RICARDO ANTUNES, que aponta elementos

econômicos, financeiros, de trabalho, da mudança no modelo produtivo, das mudanças na estrutura


do Estado, etc. Cf. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação
do trabalho. 5. ed. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 30 et seq.
178 DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006, p. 178.

99
 

 
 

mais precários que atendem à demanda “pouco ortodoxa do mercado”179. Em


raciocínio complementar, DANIELA MURADAS visualiza que o emprego torna-se
“custo não mais tolerado pelo empresariado, [que] passa a ser desestimulado pelo
Estado”180.

A desregulamentação e a flexibilização de direitos trabalhistas emergem,


então, como desafios, direcionando-se “em sentido inverso à construção do Direito
do Trabalho”181, na percepção de GABRIELA NEVES DELGADO. O resultado de
todo este movimento é o crescimento maciço do desemprego182 e da precariedade
nas relações de trabalho.

É importante destacar, contudo, que não houve uma ruptura completa nas
bases do Direito do Trabalho, lembrando que a própria Constituição de 1988 e os
diplomas infraconstitucionais vigentes ressaltam a importância do ramo
justrabalhista como instrumento de justiça social e distribuição de renda na
sociedade contemporânea.

De todo modo, é nesse intrincado contexto que o Brasil contemporâneo


passou de receptor de imigração em massa para “exportador” de mão de obra
pouco qualificada. Excluídos pelo novo esquema implantado — que tem efeitos
especialmente perversos em economias ditas “em desenvolvimento” —, os
brasileiros deixam o país em busca de melhores oportunidades em países nos quais

                                                            
179 SILVA, Antônio Álvares da. Flexibilização das relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p. 40-41.
180 MURADAS, Daniela. Crise do Estado Social e negociação coletiva. In PIMENTA, José Roberto

Freire et al. Direito do Trabalho: evolução, crise, perspectivas. São Paulo: LTr, 2004, p. 198.
181 DELGADO, Gabriela Neves. O mundo do trabalho na transição entre os séculos XX e XXI. In

PIMENTA et al. Direito do Trabalho, cit., p. 146.


182 ANTÔNIO ÁLVARES DA SILVA já fala em um “Direito do Desemprego”, a ser visto como ramo

do Direito do Trabalho a tratar das múltiplas situações jurídicas ligadas ao desemprego,


consolidando medidas para amenizar seus impactos. Cf. SILVA, Flexibilização das relações de trabalho,
cit., p.43.

100
 

 
 

o modelo do Estado do Bem Estar Social ainda lega melhores condições de vida e
trabalho, fugindo das desalentadoras perspectivas locais.

Há, em contraponto, os já destacados fluxos crescentes de imigração em


condição de irregularidade para o Brasil, o que revela a precariedade da realidade do
trabalho na América Latina como um todo. No contexto do continente, o Brasil
tem condição econômica privilegiada, o que o coloca como destino potencial de
imigrantes que, em seus países de origem, sofrem com problemas ainda mais graves.

8. O QUADRO DAS IMIGRAÇÕES NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Como visto, a despeito de o Brasil tender, atualmente, a ser classificado


como um país de envio de emigrantes, existe um número expressivo de imigrantes
que se destinam ao território brasileiro, com um amplo potencial de crescimento de
fluxos. Tais grupos obedecem a uma lógica registrada por MYRON WEIMER, de que
a tendência migratória da atualidade seria da regionalização dos deslocamentos183.

Significa dizer que para o Brasil passaram a vir, sobretudo, latino-


americanos, ao contrário dos grandes aportes de imigrantes europeus ocorridos até
meados do século XX. O que se verifica, atualmente, é um crescente número de
trabalhadores não qualificados de nacionalidade boliviana, peruana, argentina,
paraguaia, venezuelana, entre outras, em busca de melhores oportunidades nas
grandes cidades brasileiras, sobretudo na capital paulista.

                                                            
183 WEIMER, Myron. The global migration crisis: challenge to States and to Human Rights.

Massachusetts: Harper Collins College Publishers, 1995, p. 49.

101
 

 
 

Por outro lado, existe um pequeno grupo de trabalhadores qualificados que


migram para o Brasil de maneira lícita. Esta ambiguidade é registrada por NEIDE
LOPES PATARRA:

“Esses dados estão permitindo trabalhar com a hipótese da


configuração de um mercado dual de imigrantes: com os pobres
não documentados — oriundos principalmente de países sul-
americanos — e, em menor número, imigrantes documentados,
mão-de-obra qualificada, empresários e pessoal de ciência e
tecnologia — de origem européia e americana”184.

Tenha-se claro, aqui, que a política migratória brasileira é herdeira de um


legado complexo no que toca à questão do imigrante. Ao longo do tempo
sucederam-se políticas de incentivo e abertura com posturas de repressão, restrição
e seletividade, donde resultar uma normativa em diversos pontos criticável, que
trata, por vezes, a imigração, na expressão de SIDNEY DA SILVA, como “assunto de
polícia”185, muito mais do que sob uma perspectiva de Direitos Humanos.

O temário do referencial normativo dos imigrantes no Brasil atual, com


especial destaque para o famigerado Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80), será
retomado no próximo capítulo, com uma análise detalhada das condicionantes para
processos de imigração regulares do ponto de vista do Direito e, sobretudo, os
reflexos na questão trabalhista. Já os desafios relativos à proteção trabalhista dos
imigrantes em condição de irregularidade, como dito, serão tratados no capítulo
final.

                                                            
184 PATARRA, Neide Lopes. Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo: volumes,

fluxos, significados e políticas. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 19, n. 3, p. 23-33,
jul./set. 2005, p. 28.
185 SILVA, Sidney A. da. Imigrantes hispano-americanos em São Paulo: perfil e problemática. In

BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu, MALATIAN, Teresa (orgs.). Políticas migratórias: fronteiras
dos direitos humanos no século XXI. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 298.

102
 

 
 

CAPÍTULO IV
A PROTEÇÃO JUSTRABALHISTA DO IMIGRANTE EM CONDIÇÃO
DE LEGALIDADE
“La inmigración de cualquier color y sabor es una
inyección de vida, energía y cultura y los países
deberían recibirla como una bendición”.

MARIO VARGAS LLOSA


Los inmigrantes, El País

9. ASPECTOS SÓCIO-JURÍDICOS DA CONDIÇÃO DE LEGALIDADE DO


TRABALHADOR IMIGRANTE

A questão do acesso regular de estrangeiros a qualquer país é, regra geral,


tormentosa. O entendimento tradicional da questão é o apontado por IAN
BROWNLIE, ao afirmar que “um Estado pode decidir não admitir estrangeiros ou
pode impor condições a sua entrada”186. Trata-se da orientação consolidada,
também, em clássica decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, do
ano de 1892, no caso Nishimura Ekiu vs. United States, em que se asseverou:

“É uma máxima aceita no Direito Internacional que cada nação


soberana tem o poder, inerente à soberania e essencial à auto-
preservação, de proibir a entrada de estrangeiros em seus domínios
ou de admiti-los apenas em certos casos e sob certas condições que
entender adequadas prescrever”187.

                                                            
186 BROWNLIE, Ian. Principles of International Law. Oxford: Clarendon Press, 1973, p. 505, apud

DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado: parte geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p.
180.
187 SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS. Nishimura Ekiu vs. United States. 1892.

Disponível em http://supreme.justia.com/us/142/651/case.html. Acesso em 25 de abril de 2010.


No original: “It is an accepted maxim of international law that every sovereign nation has the
power, as inherent in sovereignty and essential to self-preservation, to forbid the entrance of
foreigners within its dominions or to admit them only in such cases and upon such conditions as it
may see fit to prescribe”. Tradução do autor.

103
 

 
 

Ao mesmo tempo, no curso do século XX, instrumentos internacionais de


proteção aos imigrantes modificaram sensivelmente a tônica central da questão de
circulação de pessoas ao redor do globo, dando aos direitos dos imigrantes uma
maior centralidade. Desenhou-se, assim, um esboço de um projeto de inclinações
mais cosmopolitas de mundo, em que os indivíduos pudessem, de maneira cada vez
mais livre e protegida, circular pelas nações do globo.

Está-se, aqui, sob o influxo do direito de ir e vir, igualmente contemplado


em diversos instrumentos normativos no plano internacional e nas constituições
(inclusive a brasileira, nos termos do art. 5º, XV da Constituição de 1988). Ocorre
que este também não é um direito ilimitado, vez que se sujeita a restrições ditadas
por outros valores jurídicos, como a segurança e a ordem pública188.

Nesse contexto — em que valores jurídicos como a soberania, a liberdade


de locomoção e a proteção à pessoa humana interagem, por vezes, de forma
conflituosa — alguns temas recorrentes de intensa controvérsia permeiam a
disciplina da imigração internacional, sobretudo quando o cruzamento de fronteiras
se faz com intenção de definitiva permanência, orientado pelo trabalho.
Contrastando com os compromissos internacionais vigentes, a maior parte dos
países envolvidos como receptores nas grandes dinâmicas de migração (sobretudo
os países desenvolvidos, como os países da Europa e os Estados Unidos) mantém
posturas institucionais bastante refratárias. Alinhados aos entendimentos
tradicionais, tratam a imigração como temática afeta exclusivamente à segurança
                                                            
188 Nesse sentido, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa

Rica), ratificada pelo Brasil em 1992 (Decreto n. 678), estabelece em seu artigo 22: “Direito de
circulação e de residência. 1. Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado
tem o direito de nele livremente circular e de nele residir, em conformidade com as disposições
legais. 2. Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio
país. 3. O exercício dos direitos supracitados não pode ser restringido, senão em virtude de lei, na
medida indispensável, em uma sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para
proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os
direitos e liberdades das demais pessoas”.

104
 

 
 

nacional e ao exercício da soberania, ainda em um sentido que se pode classificar


por essencialmente autoritário.

A imigração é, nesse viés, tomada como mera “questão de polícia” nos


planos internos, tratada, por diversas vezes, como tema criminal quando se dá em
condição de irregularidade, em claro descompasso com a normativa supranacional
de proteção ao imigrante. É o que indica LUIZ FLÁVIO GOMES, ao anotar,
utilizando-se do exemplo dos países da Europa, que “há algum tempo denuncia-se
que a política criminal européia vem elegendo o imigrante como o inimigo número
um e preferencial do Direito Penal”189.

Assim, para entrarem como migrantes em condição de legalidade nestes


países de melhores condições econômicas, e não serem tratados como criminosos,
os estrangeiros têm de atender a uma série extensa de requisitos. Geralmente, tais
requisitos excluem indivíduos sem qualificação profissional e de baixa escolaridade,
admitindo como imigrantes regulares apenas aqueles que, de um modo bastante
utilitarista, contribuam para o mercado de trabalho interno e não constituam um
“peso” para o país.

Para o seleto grupo dos estrangeiros que conseguem reunir as condições


estabelecidas pelas ordens jurídicas nacionais para a imigração regular, a proteção ao
trabalho prestado, em atendimento ao ditame da não discriminação, é, via de regra,
garantida em padrões de equivalência àquela estendida aos nacionais.

A grande questão atinente à imigração regular, portanto, é compreender, do


ponto de vista jurídico, como se formaram, o que significam e como devem ser

                                                            
189 GOMES, Luiz Flávio. Ser imigrante ilegal é crime? Revista Eletrônica do Conselho Federal da OAB,

Brasília, jul./ago. 2008, n. 3. Disponível em www.oab.org.br/oabeditora/revista/0810.html. Acesso


em 13 de março de 2010.

105
 

 
 

encarados estes requisitos que os países exigem dos trabalhadores estrangeiros para
migrarem em situação de legalidade.

O Brasil atual não foge a este panorama. A abertura de outros tempos —


quando a imigração maciça atendia aos interesses nacionais de povoação — cedeu
lugar a uma postura jurídica fechada em relação aos requisitos para a entrada regular
de estrangeiros, ao ponto de afiançar o entendimento de NEIDE LOPES PATARRA,
de que o Brasil pode ser tido “como um dos países mais restritivos quanto à
imigração de estrangeiros”190 na atualidade, especialmente no contexto latino-
americano.

O principal subproduto desta ortodoxia em matéria migratória é


amplamente conhecido: a imigração irregular, que hoje pode ser verificada em sua
face mais cruel (vez que associada a práticas degradantes de exploração do trabalho
humano) em grandes cidades, como São Paulo. A questão está diretamente ligada
aos aspectos jurídicos da imigração juridicamente regular e aos requisitos
estabelecidos para que os fluxos se processem desta maneira.

Reflexo dos seletivos pré-requisitos da legislação brasileira — a serem


adiante analisados — os imigrantes em condição legal no Brasil são, essencialmente,
trabalhadores com alta qualificação profissional, técnicos, empresários, investidores,
etc., que vêem no Brasil chances de sucesso específicas. Estes indivíduos não
encontram grandes dificuldades de interação e inserção social, dado que transitam
em seus meios de socialização e perante as autoridades respectivas sem os temores
das consequências da irregularidade migratória.

                                                            
190 PATARRA, Neide Lopes. Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo: volumes,

fluxos, significados e políticas. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 19, n. 3, p. 23-33,
jul./set. 2005, p. 29.

106
 

 
 

Além disto, do ponto de vista da inserção laboral, os imigrantes regulares


necessariamente contam com ocupação determinada (até como condição para
obtenção de seus vistos), o que lhes garante uma condição trabalhista livre de
sobressaltos.

10. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 COMO MARCO NORMATIVO DA


IMIGRAÇÃO REGULAR NO BRASIL

A avaliação da normativa brasileira atinente à questão migratória e,


consequentemente, ao tema dos direitos trabalhistas de imigrantes em condição de
regularidade, deve ser iniciada a partir do exame dos dispositivos constitucionais que
tratam dos estrangeiros.

A despeito da diferença conceitual entre estrangeiro e imigrante (vide item


1.1 do capítulo I da presente pesquisa), o tratamento jurídico do imigrante
internacional no Brasil será informado pelas grandes linhas da disciplina atinente aos
estrangeiros, numa perspectiva mais ampla.

Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 dedica alguns


direcionamentos aos estrangeiros, sempre à luz do disposto nos arts. 3º, IV e 5º, no
sentido de proteção do princípio da igualdade e vedação de práticas discriminatórias
baseadas em ascendência étnica191. Aliás, prevê expressamente a Constituição, em
seu art. 5º, que os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança

                                                            
191 Sobre o princípio da igualdade e a vedação às práticas discriminatórias vide o item 5 do capítulo

I do presente trabalho.

107
 

 
 

e à propriedade sejam assegurados de igual maneira aos brasileiros e estrangeiros


residentes no país192.

Este será o vetor jurídico-axiológico por excelência a direcionar a leitura das


demais disposições constitucionais e infraconstitucionais que disciplinam os mais
diversos aspectos da entrada e vida de estrangeiros no Brasil. Cumpre-se, então, um
dos papéis essenciais dos princípios jurídicos, como bem pontua CELSO ANTONIO
BANDEIRA DE MELLO, ao asseverar que “princípio (...) é, por definição,
mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição que se
irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério
para sua exata compreensão e inteligência”193.

Tal abordagem constitucional que eleva o princípio da igualdade à condição


de orientador da leitura da disciplina aplicável ao estrangeiro, também em matéria de
trabalho prestado, é, induvidosamente, consistente com o caminhar da ampliação
dos direitos da pessoa humana no plano internacional ao longo de século XX.

Assim, o que se tem atualmente, no Brasil, é que o princípio da igualdade


deve efetivamente funcionar como baliza de construção, interpretação e aplicação
de normas, além de orientar a implementação de políticas também em relação aos
estrangeiros no território nacional.
                                                            
192 Noticie-se, aqui, a dúvida suscitada pela redação do caput do art. 5º da Constituição, que estende

iguais direitos aos “estrangeiros residentes”, o que levaria a interpretação de que os não residentes,
transitoriamente no território nacional, não mereceriam a proteção da ordem jurídica nacional. A
doutrina constitucionalista pacificou-se no sentido da ampliação hermenêutica do artigo e de sua
interpretação temperada face ao disposto no art. 3º, IV da própria Constituição. Nesse sentido,
leciona ALEXANDRE DE MORAES que “a expressão residentes no Brasil deve ser interpretada no
sentido de que a Carta Federal só pode assegurar a validade e o gozo dos direitos fundamentais
dentro do território brasileiro, não excluindo, pois, o estrangeiro em trânsito pelo território
nacional”. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 63. No
mesmo sentido, cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Sobre a tutela jurisdicional ao estrangeiro.
Revista de Processo, RT, São Paulo, n. 107, p. 248-251, jul./set. 2002.
193 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 7. ed. São Paulo: Malheiros,

1995, p. 537-538.

108
 

 
 

O princípio da igualdade de tratamento de estrangeiros, contudo, comporta


algumas situações de exceção, por conta de situações estratégicas, previstas em
algumas disposições da própria Constituição. Não pode o estrangeiro se alistar
como eleitor e votar (art. 14, §2º); há restrições de acesso a cargos públicos (art. 37,
I) e vedação de acesso a determinados cargos, que, por sua natureza decisiva nos
destinos políticos do país, são reservados a brasileiros (art. 12, §3º). Certamente,
dada a força do padrão principiológico geral, tais situações são absolutamente
excepcionais e devem, portanto, ser encaradas de maneira restritiva.

Todavia, a normativa infraconstitucional nem sempre se mantém fiel a esta


orientação. A Lei 6.815 de 1980, conhecida pela alcunha Estatuto do Estrangeiro, que
consolida as normas aplicáveis aos estrangeiros no país, é anterior à Constituição de
1988, e, como se verá, organiza-se de forma bastante díspar em relação à atual
configuração constitucional. Pode-se apontar a existência de uma verdadeira
incompatibilidade de valores. É o que percebe MARGHERITA BONASSI, ao afirmar
que:

“A atual Lei do Estrangeiro no Brasil revela uma dicotomia


existente entre princípios afirmados pela Constituição de 1988,
que consagrou a dignidade da pessoa humana e seus direitos
fundamentais, mas negados no proceder cotidiano, faltando uma
solidariedade entre a teoria e a prática”194.

Tudo isso determina, no entender de CRISTIANE MARIA SBALQUEIRO


LOPES, que “a aplicação destes diplomas demandará, sempre, interpretação conforme a
Constituição, principalmente daqueles dispositivos que limitarem direitos além do que

                                                            
194 BONASSI, Margherita. Canta, América sem fronteiras! Imigrantes latino-americanos no Brasil. São Paulo:

Loyola, 2000, p. 202.

109
 

 
 

autoriza a Constituição”195. Assim se poderão harmonizar eventuais descompassos


entre o que determinam as leis de imigração e a Constituição Federal de 1988, que,
na ordem jurídica brasileira, são bastante comuns.

Um exemplo emblemático desta situação é previsto no art. 106, VII, do


Estatuto do Estrangeiro, que veda ao estrangeiro “participar da administração ou
representação de sindicato ou associação profissional, bem como de entidade
fiscalizadora do exercício de profissão regulamentada”. Em um quadro de
prevalência do princípio da igualdade, acertada é a conclusão de MIGUEL
FLORESTANO, de que “a norma legal que limita a participação do estrangeiro na vida
associativa nacional e na questão sindical é inconstitucional”196.

Aliás, quanto à matéria trabalhista como um todo, no contexto da


Constituição de 1988, vale o que assevera JOSÉ AFONSO DA SILVA, pontuando,
quanto ao estrangeiro aqui residente, que “cabem-lhe os direitos sociais,
especialmente os trabalhistas”197. Tal entendimento é corroborado pelos estudiosos
do Direito Internacional Privado, como indicam JACOB DOLINGER198 e OSIRIS
ROCHA199.

Assim, por não estabelecer expressa exceção ao princípio da igualdade, a


Constituição Federal de 1988 claramente veda práticas discriminatórias que resultem

                                                            
195 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos.

Tese de doutoramento. Sevilha: Universidad Pablo de Olavide, 2007, p. 373.


196 FLORESTANO, Miguel. Da deportação. In FREITAS, Vladimir Passos de (org.). Comentários ao

Estatuto do Estrangeiro e opção de nacionalidade. Campinas: Millennium, 2006, p. 206.


197 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001,

p. 195.
198 DOLINGER, Direito Internacional Privado, cit., p. 202.
199 O autor indica equiparação de direitos civis, não mencionando expressamente direitos

trabalhistas. Ao mesmo tempo, sugere uma equiparação do conjunto de direitos assegurados pela
ordem jurídica a nacionais e estrangeiros, o que incluiria os direitos referentes ao trabalho. Cf.
ROCHA, Osiris. Curso de Direito Internacional Privado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 16 et seq.

110
 

 
 

em menor proteção ao trabalho prestado por imigrantes regularmente admitidos no


território brasileiro, em consonância com as normas internacionais pertinentes.

11. O ESTATUTO DO ESTRANGEIRO DE 1980

Como indicado, a regulação infraconstitucional da admissão de estrangeiros


no Brasil foi consolidada pela Lei n. 6.815, de 19 de agosto de 1980, que dispõe de
maneira detalhada sobre os parâmetros a que se sujeitam os não nacionais para
entrada, permanência e trabalho no país.

O estudo do contexto da edição desta lei se faz essencial para a


compreensão das inclinações e intenções do diploma em sua origem, auxiliando a
manejar as categorias da lei de maneira consentânea com a Constituição Federal de
1988 e com as normas internacionais às quais se submete o Brasil.

Sobre o panorama em que foi concebido o diploma, é necessário relembrar


que no final da década de 1970 e início dos anos 80 o Brasil já não era mais o
destino de grandes contingentes de migrantes europeus, como fora no início e
meados do século XX. É dizer, não havia nenhum programa ostensivo de atração de
migrantes para o país. Ao mesmo tempo, a imigração clandestina começou a se
revelar como um problema, por conta do contexto das instabilidades sul-
americanas, como reporta FLÁVIA DE ÁVILA:

“No caso brasileiro, embora o interesse dos imigrantes não


estivesse sendo fomentado por ações governamentais, as fronteiras
brasileiras eram constantemente cruzadas por imigrantes ilegais e
por refugiados políticos, principalmente os provenientes de países

111
 

 
 

sul-americanos, que escapavam de condições políticas ou


econômicas adversas em seus Estados de origem”200.

A tentativa de impor limites a estes indesejáveis fluxos de imigração


irregular nos anos 80 resultou, assim, em uma lei de caráter restritivo, no contexto
de uma ditadura militar que operava conceitos como o de “segurança nacional” de
maneira extremamente autoritária, razão pela qual o Estatuto do Estrangeiro, “desde
o início de sua vigência vem sendo alvo de críticas no país”201, no apontamento de
NEIDE LOPES PATARRA.

Nesse sentido, a Lei já demonstra sua inspiração autoritária nos conceitos


lançados em seus três primeiros artigos, que estabelecem:

“Art. 1º. Em tempo de paz, qualquer estrangeiro poderá, satisfeitas


as condições desta Lei, entrar e permanecer no Brasil e dele sair,
resguardados os interesses nacionais.
Art. 2º. Na aplicação desta Lei atender-se-á precipuamente à
segurança nacional, à organização institucional, aos interesses
políticos, sócio-econômicos e culturais do Brasil, bem assim à
defesa do trabalhador nacional.
Art. 3º. A concessão do visto, a sua prorrogação ou transformação
ficarão sempre condicionadas aos interesses nacionais”.

E toda a disciplina que se segue em relação à admissão de migrantes abraça


a mesma lógica, numa visão utilitarista e de segurança de fronteiras, apartada do viés
dos Direitos Humanos. Tal direção poderá ser confirmada mais adiante na questão
da categorização de vistos, na disciplina do trabalho prestado e nas próprias sanções
estipuladas pela Lei 6.815/80.

                                                            
200 ÁVILA, Flávia de. Entrada de trabalhadores estrangeiros no Brasil: evolução legislativa e políticas

subjacentes nos séculos XIX e XX. Dissertação de mestrado. Florianópolis: Universidade Federal
de Santa Catarina, 2003, p. 356-357.
201 PATARRA, Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo, Revista São Paulo em

Perspectiva, cit., p. 31.

112
 

 
 

Veja-se, também, que o Estatuto do Estrangeiro criou o chamado Conselho


Nacional de Imigração (CNI ou CNIg), órgão ligado ao Ministério do Trabalho e
Emprego, que, pela redação original do art. 128, passou a estar incumbido de
coordenar e fiscalizar as atividades de imigração. A atuação do CNIg, ao longo das
últimas décadas, também foi fundamental para a demarcação do modus operandi pelo
qual as autoridades brasileiras lidam com a recepção de imigrantes. Na síntese de
NEIDE LOPES PATARRA:

“O CNI [...] orienta a política imigratória que, neste momento,


privilegia a imigração sob o ponto de vista da assimilação da
tecnologia, investimento de capital estrangeiro, reunião familiar,
atividades de assistência, trabalho especializado e desenvolvimento
científico, acadêmico e cultural”202.

Por todas estas razões, alguns grupos ativistas chegam a postular uma nova
lei de migrações que incorpore os desenvolvimentos internacionais da questão,
albergando, na síntese de ROSITA MILESI, alguns princípios básicos: (i) tutela e
promoção dos Direitos Humanos; (ii) valorização da presença dos imigrantes no
Brasil; (iii) superação de enfoques economicistas ou seletivos; (iv) criação de espaços
de diálogo e de interlocução, no respeito às liberdades fundamentais; (v) proteção
em situações humanitárias; (vi) proteção ao trabalhador, inclusive quanto ao direito
de sindicalização e, finalmente; (vi) combate à xenofobia e a todo crime contra os
imigrantes por sua condição203.

                                                            
202 PATARRA, Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo, Revista São Paulo em

Perspectiva, cit., p. 31. Mencione-se, contudo, recente proposta de mudança na orientação do CNIg,
que sinaliza no sentido de que passará a tratar o tema das imigrações em uma perspectiva de
Direitos Humanos, através de uma nova Política Nacional de Imigração e Proteção ao Trabalhador
Migrante, conforme aprovada na IV reunião ordinária do Conselho, em fevereiro de 2010. A
proposta, atualmente, está sob consulta pública na internet, nos termos da Portaria n. 1.324 do
MTE, de junho de 2010. Cf. http://www.mte.gov.br/politicamigrante. Acesso em 22 de junho de
2010.
203 MILESI, Rosita. Por uma nova lei de migração: a perspectiva dos Direitos Humanos. Instituto

Migrações e Direitos Humanos. Disponível em http://www.migrante.org.br/por_uma_nova_lei_


migracao.doc. Acesso em 06 de julho de 2009.

113
 

 
 

Quanto ao tema, noticiam EDUARDO LUIZ GONÇALVES RIOS-NETO e


ERNESTO AMARAL que a “nova Lei do Estrangeiro ainda não teve sua redação
concluída e aprovada no Congresso Nacional. Os últimos rascunhos da lei apontam
para importantes avanços na defesa dos direitos humanos no que tange ao
estrangeiro residente no país”204.

Voltar-se-á ao tema mais adiante, com uma análise do Projeto de Lei


5.655/2009, do Novo Estatuto do Estrangeiro, e de suas diferenças essenciais em
relação à vigente Lei 6.815/80.

Diga-se, desde já, que uma norma que atendesse aos princípios básicos
acima citados não desconsideraria o controle migratório e o exercício da soberania
estatal e estaria, decerto, mais alinhada ao caminhar de uma tutela progressiva dos
direitos da pessoa humana, superando o enfoque tradicional da questão.
Atualmente, contudo, a disciplina continua sendo a da Lei n. 6.815/80, a ser vista
adiante em alguns de seus aspectos essenciais aos temas analisados no presente
estudo.

11.1. FORMAS DE ADMISSÃO DE TRABALHADORES ESTRANGEIROS NO PAÍS: OS


VISTOS

A entrada e a permanência de estrangeiros no território brasileiro devem


obedecer a requisitos estabelecidos pela ordem jurídica, que, uma vez atendidos,
possibilitam a emissão do visto pertinente.

                                                            
204 RIOS-NETO, Eduardo Luiz Gonçalves, AMARAL, Ernesto. A gestão migratória e o paradoxo da

grandeza. Disponível em www.portalconsular.mre.gov.br/.../gestaomigratoriaparadoxograndeza.doc.


Acesso em 03 de abril de 2010.

114
 

 
 

Visto, na definição de LUCIANA DA COSTA AGUIAR ALVES HENRIQUE, é


“o ato administrativo que franqueia ao estrangeiro a entrada em território nacional,
o qual deve ser consignado em seu passaporte ou documento correspondente”205.

A ordem jurídica brasileira, por meio do Estatuto do Estrangeiro, prevê sete


tipos diferentes de vistos, que variam em função das condições e objetivos da
entrada do estrangeiro no país. Listados no art. 4º da Lei 6.815/80, são eles: visto
diplomático, visto oficial, visto de cortesia, visto de turista, visto de trânsito, visto
temporário e visto permanente.

Interessam à reflexão trabalhista aqui proposta os dois últimos tipos de


visto da Lei 6.815/80, o temporário (art. 4º, III) e o permanente (art. 4º, IV). Por
esse motivo, não serão detalhadas as demais modalidades.

Em relação aos vistos temporários, cumpre analisar especificamente o visto


detalhado no art. 13, V, do Estatuto, que trata do visto temporário concedido a
estrangeiro “na condição de cientista, professor, técnico ou profissional de outra
categoria, sob regime de contrato ou a serviço do Governo brasileiro”, chamado
comumente de visto temporário de trabalho206.

O visto temporário de trabalho sujeita-se à regulamentação específica do


Conselho Nacional de Imigração (CNIg) do Ministério do Trabalho e Emprego, por
meio da concessão de autorizações de trabalho. A disciplina regulamentar é dada,
essencialmente, por duas resoluções normativas do CNIg: a Resolução 74/2007, que

                                                            
205 HENRIQUE, Luciana da Costa Aguiar Alves. Título I – Da aplicação. In FREITAS, Comentários

ao Estatuto do Estrangeiro e opção de nacionalidade, cit., p. 3.


206 Há outros vistos temporários que envolvem o trabalho, como o visto de artista ou desportista

(art. 13, III da Lei 6.815/80) e o de jornalista (art. 13, VI, da Lei 6.815/80). O visto temporário de
trabalho do art. 13, V do Estatuto do Estrangeiro, contudo, é aquele pelo qual o trabalho, de
maneira genérica, constitui a própria finalidade da presença do estrangeiro no país, pelo que as
reflexões aqui empreendidas se manterão focadas nesta categoria.

115
 

 
 

trata dos procedimentos gerais para obtenção de autorização de trabalho, e a


Resolução 80/2008, que detalha a comprovação de qualificação e experiência
profissional.

A Resolução 74/2007, em resumo, exige para a emissão de visto: a


comprovação da regularidade do empregador que demanda mão de obra; a
responsabilidade da empresa pela repatriação do estrangeiro; o cumprimento do
dever de prestar informações sobre a execução dos serviços e a apresentação de
contrato de emprego por prazo determinado ou indeterminado celebrado entre as
partes. Além disso, o art. 3º da Resolução requer, para a concessão da autorização,
que a remuneração a ser paga não seja inferior à percebida pelo estrangeiro no país
de origem nem àquela que brasileiros recebem para desempenhar igual função na
empresa chamante.

A Resolução 80/2008, por sua vez, sintetiza a orientação de prestigiar a


imigração de trabalhadores qualificados e experientes, que marca a atuação brasileira
no tema da imigração regular de trabalho. Estabelece o art. 2º da referida Resolução:

“Art. 2º Na apreciação do pedido será examinada a compatibilidade


entre a qualificação e a experiência profissional do estrangeiro e a
atividade que virá exercer no país.
Parágrafo único. A comprovação da qualificação e experiência
profissional deverá ser feita pela entidade requerente por meio de
diplomas, certificados ou declarações das entidades nas quais o
estrangeiro tenha desempenhado atividades, demonstrando o
atendimento de um dos seguintes requisitos:
I – escolaridade mínima de nove anos e experiência de dois anos
em ocupação que não exija nível superior; ou
II – experiência de um ano no exercício de profissão de nível
superior, contando esse prazo da conclusão do curso de graduação
que o habilitou a esse exercício; ou
III – conclusão de curso de pós-graduação, com no mínimo 360
horas, ou de mestrado ou grau superior compatível com a atividade
que irá desempenhar; ou

116
 

 
 

IV – experiência de três anos no exercício de profissão, cuja


atividade artística ou cultural independa de formação escolar”.

Note-se que as exigências são destacadamente elevadas: alta escolaridade e


considerável experiência profissional. Como dito, isto determina que o grupo dos
chamados imigrantes regulares seja, essencialmente, de trabalhadores altamente
qualificados.

O resultado deste conjunto de elementos se reflete nas tímidas estatísticas


da chamada imigração regular e em seu violento contraste com a imigração em
condição de irregularidade. É isto que reporta NEIDE LOPES PATARRA:

“Informações recentes sobre pedidos de concessão de vistos


específicos do Ministério do Trabalho e Emprego no Brasil
revelam que, entre 1993 e 1996, foram concedidas 45.827
autorizações; entre 1997 e 1999 foram concedidas 49.888; e, entre
janeiro e junho de 2000, foram concedidas 9.496 autorizações — a
maior parte das quais a estrangeiros de países europeus (mais de
30%) seguidas de autorizações a pessoas oriundas dos Estados
Unidos e Canadá, em torno de 20% (...). Esses dados estão
permitindo trabalhar com a hipótese da configuração de um
mercado dual de imigrantes: com os pobres não documentados —
oriundos principalmente de países sul-americanos — e, em menor
número, imigrantes documentados, mão-de-obra qualificada,
empresários e pessoal de ciência e tecnologia — de origem
européia e americana”207.

Atente-se, aqui, à exceção estabelecida pelo art. 3º da própria Resolução


Normativa 80/2008, que exclui os trabalhadores oriundos de países sul americanos
dos rigorosos requisitos da própria resolução para a obtenção de autorização de
trabalho. A disposição parece atentar para a realidade dos fluxos de migração no
contexto da América do Sul, além de alinhar-se aos intentos de integração do

                                                            
207 PATARRA, Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo, Revista São Paulo em

Perspectiva, cit., p. 29.

117
 

 
 

MERCOSUL e prenunciar uma possível transição prática quanto às prioridades na


matéria208.

Em relação ao visto permanente, a Lei 6.815/80, em seus arts. 16 a 18, tem


disposições gerais ainda mais rigorosas, estabelecendo que o visto poderá ser
concedido a estrangeiro que pretenda se fixar de maneira definitiva no país, sempre
observado que a “imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão de obra
especializada aos vários setores da economia nacional, visando à Política Nacional
de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da
produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores
específicos” (parágrafo único do art. 16 da Lei 6.815/80).

Prevê, outrossim, o art. 17 do Estatuto que para obter visto permanente, o


estrangeiro terá que atender às “exigências de caráter especial previstas nas normas
de seleção de imigrantes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Imigração”. Essas
ditas “exigências especiais” estão consolidadas em diversas resoluções normativas
específicas para funções variadas como investidores (Resoluções 18/1998 e
60/2004), executivos (Resolução 62/2004 e 74/2007) e professores ou
pesquisadores de alto nível (Resolução 45/200). Registre-se que todas as resoluções
repetem requisitos de elevada exigência, seja de qualificação profissional, de
experiência ou de disponibilidade financeira.

                                                            
208 Tal inclinação se confirma em entrevista do Presidente do Conselho Nacional de Imigração,

PAULO SÉRGIO DE ALMEIDA, ao afirmar, em comentário ao art. 3º da Resolução Normativa


80/2008, que “a idéia é facilitar a obtenção de visto de trabalho para que essas pessoas não entrem
de forma irregular no Brasil e não sejam exploradas e submetidas a trabalho escravo”. Disponível
em http://www.jusbrasil.com.br/noticias/144410/publicada-no-diario-oficial-resolucao-normativa-
do-conselho-nacional-de-imigracao. Acesso em 06 de fevereiro de 2010. Esta mudança também é
referendada pela nova proposta de uma Política Nacional de Imigração e Proteção ao Trabalhador Migrante
do CNIg. Cf. http://www.mte.gov.br/politicamigrante. Acesso em 22 de junho de 2010.

118
 

 
 

11.2. A QUESTÃO DOS CHAMADOS TRABALHADORES FRONTEIRIÇOS

Ainda na esfera da possibilidade de prestação de trabalho por estrangeiros


no Brasil, há que se fazer referência aos chamados “trabalhadores fronteiriços”,
expressamente tratados pela Lei 6.815/80.

Na lição de CRISTIANE MARIA SBALQUEIRO LOPES, “aos fronteiriços é


atribuído um regime especial porque vivem em uma região de jurisdições divididas,
ou sobrepostas: uma zona de transição entre duas realidades nacionais”209. Ou seja,
são aqueles que residem em um país e trabalham noutro contíguo à cidade de
residência.

Diante da situação patentemente híbrida do fronteiriço — que, pela


contiguidade geográfica, transita entre dois países como parte de seu cotidiano — o
art. 21 do Estatuto do Estrangeiro trata deste grupo de maneira mais simplificada do
que os demais estrangeiros que pretendam trabalhar no Brasil, nos seguintes termos:

“Art. 21. Ao natural de país limítrofe, domiciliado em cidade


contígua ao território nacional, respeitados os interesses da
segurança nacional, poder-se-á permitir a entrada nos municípios
fronteiriços a seu respectivo país, desde que apresente prova de
identidade.
§1º Ao estrangeiro, referido neste artigo, que pretenda exercer
atividade remunerada ou freqüentar estabelecimento de ensino
naqueles municípios, será fornecido documento especial que o
identifique e caracterize a sua condição, e, ainda, Carteira de
Trabalho e Previdência Social, quando for o caso”.

Ou seja, a legislação brasileira permite que estrangeiros que residam na


fronteira do país adentrem no território nacional para fins de trabalho (sempre,
também, em cidades fronteiriças), prevendo procedimento simplificado e a proteção

                                                            
209 LOPES, O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos, cit., p. 350.

119
 

 
 

trabalhista expressa, com a emissão de Carteira de Trabalho e Previdência Social


(CTPS). Não existe, nesse caso, a necessidade do processo burocrático de visto para
o trabalho.

Há que se salientar, aqui, que esta condição especial do trabalhador


fronteiriço, nos atuais termos da legislação vigente se aplica somente ao trabalho
prestado nos municípios de fronteira imediata. No entender de JOSÉ LUIZ
FERREIRA PRUNES, “não se trata de uma disposição com permissivo geral”210, mas
que abrange somente os municípios efetivamente fronteiriços.

Neste aspecto, a legislação brasileira caminha pareada com a normativa


internacional, vez que estabelece procedimento simplificado e ampla garantia de
direitos. A Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, da ONU (1990)211
define trabalhador fronteiriço como aquele “migrante que conserva a sua residência
habitual num Estado vizinho a que regressa, em princípio, todos os dias ou, pelo
menos, uma vez por semana” (art. 2º, 2, “a”), estendendo a eles proteção jurídica
plena. O mesmo consta da Declaração Sociolaboral do MERCOSUL, de 1998, que
reafirma o compromisso de garantir aos migrantes fronteiriços ampla salvaguarda de
direitos.

Assim sendo, o entendimento de CRISTIANE MARIA SBALQUEIRO LOPES,


ao afirmar que “a melhor solução será a de considerar como local a mão-de-obra

                                                            
210 PRUNES, José Luiz Ferreira. Contratos de trabalho de estrangeiros no Brasil e de brasileiros no exterior.

São Paulo: LTr, 2000, p. 159.


211 A Convenção, que se coloca como o norte de uma visão baseada em direitos humanos para as

migrações no plano internacional, foi detalhadamente analisada no capítulo II do presente trabalho,


e ainda não conta com a ratificação do Brasil. Seu texto está contido no anexo II desta pesquisa.

120
 

 
 

fronteiriça”212, parece ser o mais adequado do ponto de vista da proteção


justrabalhista.

12. PROJETO DE LEI 5.655/2009: O NOVO ESTATUTO DO ESTRANGEIRO

Por suas características de extrema seletividade e a tímida preocupação com


a proteção dos direitos dos estrangeiros no território nacional, como já salientado, a
Lei 6.815/80 tem sido duramente criticada pelos que trabalham com a questão
migratória no país. Organizações como a Pastoral do Migrante e o Instituto de Migrações e
Direitos Humanos213 há alguns anos empunham a bandeira por um referencial
normativo mais democrático e voltado à proteção dos imigrantes, ao invés do
habitual tratamento repressivo da questão, do qual é herdeiro o Estatuto do
Estrangeiro em vigor. É o que relata MÁRCIA MARIA DE OLIVEIRA:

“Passados mais de 25 anos [da entrada em vigor do Estatuto do


Estrangeiro], o governo brasileiro, depois de muitas pressões das
                                                            
212 LOPES, O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos, cit., p. 350.
213 Ambas as organizações estão ligadas à Igreja Católica, inspiradas na Congregação Scalabriniana,

que, até os dias de hoje, é a matriz das entidades que mais diretamente atuam na questão migratória
no Brasil. Sobre a Congregação dos Scalabrinianos e seu histórico na proteção dos migrantes, vide
lição de ROSITA MILESI, MARGHERITA BONASSI e MARIA LUIZA SHIMANO: “A Doutrina Social da
Igreja, que tem na Rerum Novarum, de 1891, seu documento particularmente significativo, reflete a
preocupação da Igreja Católica com os graves problemas sociais da época. É neste quadro histórico
que a questão migratória, enquanto preocupação pastoral, emerge na Igreja ao lado da questão
social, com estreita e recíproca vinculação. Surgem, como expressões concretas, para a ação pastoral
junto aos migrantes, as Congregações dos Missionários e Missionárias de S. Carlos Borromeo
(Scalabrinianos/as), fundadas respectivamente em 1887 e 1895, por João Batista Scalabrini, então
bispo de Piacenza, Itália. Scalabrini percebeu a vastidão e as características de continuidade do
fenômeno e previu que a migração viria a ser elemento constitutivo das sociedades futuras. Operou
para a integração do fenômeno nas realidades sociais, econômicas e culturais da época, a fim de
abrir o diálogo com todos sobre a questão migratória, mesmo aqueles pertencentes a filosofias ou
religiões diferentes. Tinha como centro o valor de cada pessoa, de cada povo e cultura, condenava
as migrações forçadas, as leis migratórias restritivas e as explorações descaradas dos aliciadores, que
ontem, como hoje, lucram com os dramas dos migrantes e refugiados”. BONASSI, Margherita,
MILESI, Rosita, SHIMANO, Maria Luiza. Entidades confessionais que atuam com estrangeiros no
Brasil e com brasileiros no exterior. In CASTRO, Mary Garcia (org.). Migrações internacionais:
contribuições para políticas. Brasília: CNPD, 2001, p. 564.

121
 

 
 

organizações sociais ligadas aos migrantes, iniciou o processo de


reformulação da antiquada legislação indicando a elaboração de
uma lei que responda aos desafios da migração internacional, no
respeito aos direitos humanos, ao direito humanitário, à dignidade
inalienável de cada ser humano”214.

O que se pretende, neste panorama, é uma regulação mais alinhada com a


própria diretriz constitucional brasileira, que privilegie a dignidade da pessoa
humana e repudie qualquer forma de discriminação, de maneira consentânea
também com o caminhar da discussão nos grandes foros internacionais, como a
ONU e a OIT. Como resultado, almeja-se um estatuto que ultrapasse as abordagens
economicistas ou seletivas, o que, no entender de ROSITA MILESI consolidaria:

“Uma Lei de Migrações preocupada com os direitos humanos e a


dignidade dos imigrantes (...) chamada a superar um enfoque que
possa representar priorização da dimensão econômica ou de
categorias de pessoas — migração seletiva —, sobretudo quando
isso pode prejudicar, senão discriminar, os imigrantes ‘não
altamente qualificados ou investidores’, isto é, os pobres e com
níveis de instrução mais modestos, aqueles que, como muitos
brasileiros e brasileiras, saem do próprio país em busca de
condições para construir sua vida na simplicidade de um trabalho
humilde, mas lícito e digno”215.

Deste debate gestado ao longo dos últimos anos, construiu-se um projeto


para uma nova lei relacionada à questão migratória, que encampa alguns avanços
importantes na matéria. Após consulta pública no sítio virtual do Ministério da
Justiça, o Projeto de Lei foi, em julho de 2009, encaminhado pela Presidência da
República ao Congresso Nacional, passando a tramitar sob o n. 5.655/2009216.

                                                            
214 OLIVEIRA, Márcia Maria de. A mobilidade humana na tríplice fronteira: Peru, Brasil e

Colômbia. Revista Estudos Avançados, São Paulo, 20 (57), p.183-196, 2006, p. 184.
215 MILESI, Rosita. Algumas reflexões, em termos de princípios, sobre o anteprojeto de Lei de Estrangeiros.

Disponível em www.migrante.org.br/reflexoes_anteprojeto_lei_de_estrangeiros.doc. Acesso em 22


de março de 2010.
216 Projeto de Lei n. 5655/2009 disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?

id=443102.

122
 

 
 

O próprio ofício de encaminhamento do Projeto de Lei do Ministério da


Justiça para a Presidência, assinado pelo então Ministro de Estado da Justiça TARSO
GENRO, revela as feições do novo diploma proposto e de sua vocação diferenciada
em comparação à Lei 6.815/80:

“Quando da promulgação da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de


1980, atual Estatuto do Estrangeiro, alterada pela Lei nº 6.964, de 9
de dezembro de 1981, o foco era precipuamente a segurança
nacional. Essa realidade nos dias atuais encontra-se em
descompasso com o fenômeno da globalização, que tem
revolucionado os movimentos migratórios. Impõe-se, assim, que a
migração seja tratada como um direito do homem, ao se considerar
que a regularização migratória seja o caminho mais viável para a
inserção do imigrante na sociedade”217.

Ao longo dos artigos propostos no Projeto de Lei, mudanças sensíveis em


matéria migratória são lançadas, das quais algumas guardam especial pertinência
com a pesquisa aqui desenvolvida. Por exemplo, o art. 3º do Projeto de Lei é
emblemático quanto ao novo perfil da regulação infraconstitucional migratória,
estatuindo que:

“Art. 3º. A política nacional de migração contemplará a adoção de


medidas para regular os fluxos migratórios de forma a proteger os
direitos humanos dos migrantes, especialmente em razão de
práticas abusivas advindas de situação migratória irregular”.

Ou seja, ainda que continue na defesa dos chamados interesses nacionais e


do mercado interno de trabalho (o que é expressamente consignado nos arts. 2º e 4º
do Projeto), assume-se a partir do disposto no citado art. 3º uma postura mais
aberta, verossímil e democrática no trato com os fluxos migratórios. E isso se reflete
em algumas outras disposições essenciais, como no art. 5º do Projeto, que assegura,
                                                            
217 GENRO, Tarso. Ofício EM 00070-MJ do Ministério da Justiça. 10 de abril de 2008. Disponível

em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/674695.pdf. Acesso em 15 de janeiro de 2010.

123
 

 
 

expressamente, direitos e garantias fundamentais aos estrangeiros, com destaque


para “direitos trabalhistas e de sindicalização”, nos termos de seu inciso VIII.

Tal diretiva fica ainda mais evidente no louvável parágrafo único inserido
no art. 5º do Projeto, que define um posicionamento muito claro em relação aos
direitos dos imigrantes em condição de irregularidade, assegurando-lhes acesso à
educação, à saúde e aos direitos trabalhistas, além de outras medidas de proteção às
vítimas de tráfico de pessoas (notadamente no art. 42 do Projeto). O tema será
retomado e desenvolvido no capítulo seguinte, ficando, desde já, a referência do
avanço proposto pelo Projeto de Lei examinado.

O Projeto propõe, ainda, a transformação do Conselho Nacional de


Imigração em Conselho Nacional de Migração, mantido nos quadros estruturais do
Ministério do Trabalho e Emprego, agora com um foco mais ampliado, passando a
tratar também dos brasileiros no exterior, em um papel mais ativo na formulação e
implementação de uma política migratória nacional218.

Aliás, quanto à atuação do Conselho Nacional de Imigração, é imperioso


mencionar a nova proposta de Política Nacional de Imigração e Proteção ao Trabalhador
Migrante, aprovada na IV reunião ordinária do Conselho, em fevereiro de 2010. A
proposta que, atualmente, está sob consulta pública, nos termos da Portaria n. 1.324
do MTE, de junho de 2010, implementa uma nova orientação para o CNIg. Através
de novos princípios e diretrizes, a proposta abraça uma perspectiva baseada na
proteção aos imigrantes, garantindo igualdade de tratamento e direitos essenciais à

                                                            
218 O Projeto de Lei propõe alterações, também, em outros aspectos da admissão de estrangeiros no

país, que, por não estarem diretamente ligados aos temas estudados na presente pesquisa, não serão
aqui tratados. Como já salientado, o texto do Projeto de Lei n. 5655/2009 está disponível em
http://www.camara.gov.br/sileg/ Prop_Detalhe.asp?id=443102. Noticie-se, por fim, que o Projeto
de Lei 5.655/2009 encontra-se, atualmente, em análise nas Comissões do Congresso Nacional,
tramitando em regime de prioridade.

124
 

 
 

pessoa humana, como a proteção trabalhista, independentemente da condição


migratória, se regular ou irregular219.

13. A POLÊMICA DA “NACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO” NA CLT

O tema que, talvez, ainda gere mais polêmica quanto à condição trabalhista
do imigrante em status de regularidade jurídica, no contexto das relações de emprego
por ele entabuladas, é o da chamada “nacionalização do trabalho”, ou seja, as
medidas engendradas pela ordem jurídica para a suposta proteção do mercado de
trabalho para os próprios brasileiros em detrimento de trabalhadores imigrantes. A
dúvida, aqui, gira essencialmente em torno da constitucionalidade dos artigos 352 e
seguintes da CLT e se estas disposições podem ser tidas como compatíveis com o
desenvolvimento normativo no plano internacional na matéria.

13.1. A REGRA DA PROPORCIONALIDADE DE DOIS TERÇOS

A Consolidação das Leis do Trabalho, em sua redação original, regulou a


matéria, imbuída no espírito de proteção de mercado de trabalho nacional,
estabelecendo uma proporcionalidade numérica de empregados brasileiros e
estrangeiros, diretivas formais de contratação de estrangeiros e regras de isonomia
salarial. O contexto histórico de elaboração destas regras foi referido no item 11 da
presente pesquisa, valendo lembrar que existia uma tentativa governamental
reiterada de sufocar manifestações operárias que, em sua origem, eram largamente
influenciadas por imigrantes europeus.

                                                            
219 A proposta da nova Política Nacional de Imigração e Proteção ao Trabalhador Migrante está disponível

em http://www.mte.gov.br/politicamigrante/imigracao_proposta.pdf. Acesso em 22 de junho de


2010.

125
 

 
 

Assim, dentro do Capítulo II, intitulado “Da Nacionalização do


Trabalho”, inserido no Título III da CLT, que disciplina das normas especiais de
tutela do trabalho, estabelecem os arts. 352 e 354 da CLT:

“Art. 352. As empresas, individuais ou coletivas, que explorem


serviços públicos dados em concessão, ou que exerçam atividades
industriais ou comerciais, são obrigadas a manter, no quadro do seu
pessoal, quando composto de 3 (três) ou mais empregados, uma
proporção de brasileiros não inferior à estabelecida no presente
Capítulo.
(...)
Art. 354. A proporcionalidade será de 2/3 (dois terços) de
empregados brasileiros, podendo, entretanto, ser fixada
proporcionalidade inferior, em atenção às circunstâncias especiais
de cada atividade, mediante ato do Poder Executivo, e depois de
devidamente apurada pelo Departamento Nacional do Trabalho e
pelo Serviço de Estatística de Previdência e Trabalho a insuficiência
do número de brasileiros na atividade de que se tratar”.

A proporcionalidade é obrigatória não só em relação à totalidade do quadro


de empregados como em relação à correspondente folha de salário, e também em
relação a cada estabelecimento (parágrafo único do art. 354 da CLT). Estão
excluídos da regra da proporcionalidade os seguintes casos: a) estrangeiros que
residam no país há mais de dez anos, desde que tenham cônjuge ou filho brasileiro
(art. 353 da CLT); b) portugueses (art. 353 da CLT) e c) empregados que exerçam
funções técnicas especializadas, desde que, a juízo do Ministério do Trabalho, haja
falta de trabalhadores nacionais (art. 357 da CLT).

Há que se ressaltar, ainda, o caráter penal dado ao descumprimento das


normas de nacionalização do trabalho, a denotar a relevância dada ao tema em sua
acepção original. O art. 204 do Código Penal tipifica, no título dedicado aos crimes
contra a organização do trabalho, a figura da frustração de lei sobre a nacionalização
do trabalho, sendo a conduta típica “frustrar, mediante fraude ou violência,

126
 

 
 

obrigação legal relativa à nacionalização do trabalho” com pena de “detenção, de


um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência”.

Tais disposições foram concebidas em alinhamento com o perfil brasileiro


no tratamento das migrações internacionais no período, vez que, como visto no
capítulo anterior, os ideais anarquistas e socialistas trazidos pelos imigrantes
europeus geraram insatisfação institucional e o recrudescimento da política
migratória brasileira em meados do século XX. A disciplina, tal qual estipulada pela
redação original da Consolidação, atravessou as décadas sem maiores
questionamentos, vez que também se mantiveram consentâneas à política migratória
adotada nos governos subsequentes, nomeadamente durante a ditadura militar.

Além disso, a própria noção de proteção ao mercado nacional de trabalho e


as práticas de limitação migratória como medidas de combate ao desemprego
inspiraram a prevalência do entendimento conforme lançado pela CLT. É o que
revela a opinião de MOZART VICTOR RUSSOMANO:

“Sob pena de pormos em risco a segurança econômica de milhares


e milhares de obreiros nascidos no Brasil e que aqui lutam no
trabalho, especialmente aqueles menos dotados, que são os que de
maior amparo necessitam, nós não podemos abrir nossas
fronteiras, a fim de que venham, livremente, trabalhadores de
outros países para os postos de nossas indústrias e
estabelecimentos comerciais”220.

A guinada interpretativa das disposições celetistas veio com a Constituição


de 1988, mormente em face da igualdade constitucionalmente assegurada e da
expressa vedação da distinção entre brasileiros e estrangeiros contida no art. 5º do
diploma. Já foi aqui ressaltado que as situações de diferenciação entre brasileiros e

                                                            
220 RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 16. ed. Rio de

Janeiro: Forense, 1994, p. 318.

127
 

 
 

estrangeiros são excepcionais, listadas na própria Constituição, devendo ser tomadas


de maneira estrita221.

Diante desta nova diretiva, firmou-se a dúvida acerca da compatibilidade da


disposição celetista que prevê medida expressa de proteção do trabalhador
brasileiro, por meio de clara diferenciação do estrangeiro, com a normativa
constitucional. A mais aquilatada doutrina divergiu a este respeito.

De um lado, autores como VALENTIN CARRION, entendem pela


inconstitucionalidade dos dispositivos da CLT, asseverando “ser inconstitucional
qualquer discriminação de lei contra o estrangeiro residente no país”222. Nesta
mesma linha, conclui SÉRGIO PINTO MARTINS que:

“Os artigos da CLT relativos à nacionalização do trabalho (352 a


371) deveriam ser revogados expressamente, pois não pode existir
distinção entre nacionais e estrangeiros (art. 5.º, caput, da
Constituição), salvo quando a própria Norma Maior assim
dispor”223.

Também MAURICIO GODINHO DELGADO assevera que “em face desse


novo quadro constitucional tem-se considerado que as diferenciações celetistas
oriundas do início da década de 1930 (...) na não podem subsistir no Direito
brasileiro”224.

De outro lado, há autores que sustentaram a constitucionalidade da


proporcionalidade estabelecida pela CLT, enfatizando, como fizeram ORLANDO
GOMES e ELSON GOTTSCHALK, tratar-se “de regra que objetiva exclusivamente a
                                                            
221 Vide item 10 do presente capítulo.
222 CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 34. ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 251.
223 MARTINS, Sergio Pinto. Reforma trabalhista. Carta Forense, São Paulo, v. 53, p. 4-4, janeiro de

2008, p. 4.
224 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 786.

128
 

 
 

proteção do trabalhador nacional”225 e não a discriminação de estrangeiros, o que


garantiria uma compatibilidade plena com a Constituição de 1988. Na mesma
direção afirma o já citado MOZART VICTOR RUSSOMANO que “as medidas de
‘nacionalização do trabalho’ não são tomadas contra o estrangeiro e, sim, a favor do
operário nacional” 226.

Agregue-se, aqui, a posição de CRISTIANE MARIA SBALQUEIRO LOPES, que


enxerga os dispositivos da CLT como recepcionados pela Constituição de 1988,
lecionando:

“Obviamente, uma vez inserido no meio nacional, deverá o


estrangeiro submeter-se à legislação brasileira e, também, fazer jus
ao sistema de proteção legal trabalhista brasileiro. Mas, o acesso, e
principalmente o primeiro acesso do estrangeiro ao mercado de
trabalho brasileiro pode, sim, ser controlado. E nesse caso não se
trata simplesmente de instituir medida discriminatória em face do
estrangeiro. Trata-se de proteger o mercado de trabalho brasileiro,
como um todo, de oscilações e distorções, em sua maioria
provocadas por empresários interessados em esquivar-se de
cumprir as regras trabalhistas, tributárias e de proteção social
brasileira, em autêntica postura de concorrência desleal criminosa.
Nessa perspectiva, a proporcionalidade dos 2/3 é mais do que
razoável. Senão, vejamos: a população estrangeira residente no
Brasil não chega a 1% da população total. A CLT permite que as
empresas mantenham em seus quadros até 33,33% de estrangeiros
(1/3). Logo, as empresas têm uma margem de discricionariedade,
na contratação de estrangeiros, de 30 vezes o percentual geral de
estrangeiros disponíveis para o trabalho”227.

A autora ainda entende que a regra da proporcionalidade combateria o


aliciamento de mão de obra e a formação de “ilhas” de trabalho de estrangeiros em
determinadas empresas, pelo que a disposição celetista dos arts. 352 e seguintes seria

                                                            
225 GOMES, Orlando, GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense,

1991, p. 487.
226 RUSSOMANO, Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho, cit., p. 321.
227 LOPES, O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos, cit., p. 487.

129
 

 
 

“um valioso instrumento para lutar contra uma forma específica de precarização das
relações de trabalho: a substituição da mão-de-obra nacional pela estrangeira”228.

Neste colocado dissenso, há que se atentar ao fato de que a diretriz da


Constituição de 1988 no sentido de vedar práticas discriminatórias é resultado de
um processo de amadurecimento da proteção à pessoa humana. A questão
migratória como um todo tem, nesse contexto, uma nova análise que prioriza o
humano em face de autoritarismos e abordagens pautadas exclusivamente na
“segurança nacional”, o que é referendado pelos grandes diplomas internacionais a
disciplinar a questão229.

E não há como negar-se que a norma constitucional de vedação a práticas


discriminatórias e de privação de direitos aos estrangeiros é muito clara, referendada
pela diretriz anti-discriminatória geral do art. 3º, IV da Constituição Federal de 1988.

Diante da robustez e clareza da disciplina constitucional e de seu caminho


de maturação no plano internacional, práticas que visem proteger o mercado interno
por meio da criação de vantagens aos nacionais em detrimento dos estrangeiros não
parecem consentâneas ao tratamento da questão migratória como de Direitos
Humanos.

O argumento de que a regra da proporcionalidade não seria prática de


discriminação, mas sim de proteção ao mercado nacional e aos cidadãos brasileiros
padece de uma evidente fragilidade, que o torna quase que um argumento
semântico. A proteção ao mercado nacional, nesse caso, se faz em detrimento do
estrangeiro, por meio de vedação genérica de ocupação de postos de trabalho,
                                                            
228 LOPES, O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos, cit., p. 489.
229 Cite-se, por exemplo, a Convenção da ONU Sobre a Proteção dos Direitos de Todos os

Trabalhadores Migrantes e dos Membros de Suas Famílias de 1990 e a Convenção 143 da OIT.
Ambos os diplomas encontram-se anexos à presente pesquisa (anexos I e II).

130
 

 
 

vedação esta que não está prevista na Constituição Federal de 1988 e que não
encontra nenhuma justificativa estratégica ou funcional (como nos arts. 12, §3º e 14,
§2º da própria Constituição230). A discriminação, assim, parece incontornável.

Há também que destacar as disposições da Convenção 111 da Organização


Internacional do Trabalho, que trata da discriminação em matéria de emprego e
profissão, de 1958, referida no capítulo II da presente pesquisa.

A Convenção 111, ratificada pelo Brasil em 1968 (Decreto n. 62.150), é


listada pela própria OIT como uma de suas Convenções fundamentais, nos termos
da Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de
1998. Estabelece em seu art. 1º o conceito de discriminação como:

“Toda a distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor,


sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem
social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de
oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou
profissão”.

Ou seja, está expressamente listado na Convenção que distinção com base


em ascendência nacional que altere igualdade de oportunidades constitui
discriminação ilegal, que deve ser combatida. Ora, não parece haver dúvida que o
que promovem os arts. 352 e seguintes da CLT é justamente uma distinção com
base em ascendência nacional para fins de diferenciação no mercado de trabalho,
com reserva de postos, pelo que a disposição é incompatível com a Convenção 111
da OIT.

                                                            
230 Estabelecem os dispositivos referenciados da Constituição de 1988 situações reservadas aos

nacionais por seu papel estratégico e político: “Art. 12, § 3º - São privativos de brasileiro nato os
cargos: I - de Presidente e Vice-Presidente da República; II - de Presidente da Câmara dos
Deputados; III - de Presidente do Senado Federal; IV - de Ministro do Supremo Tribunal Federal;
V - da carreira diplomática; VI - de oficial das Forças Armadas.; VII - de Ministro de Estado da
Defesa”, “Art. 14, § 2º - Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros”.

131
 

 
 

Assim, entende LUCIANA DA COSTA AGUIAR ALVES HENRIQUE:

“A ratificação da norma internacional que proíbe a diferença de


tratamento entre nacionais e estrangeiros em assuntos atinentes ao
trabalho (acesso e manutenção) teve o condão de revogar todas as
normas internas que, de alguma forma, não se harmonizassem com
os novos princípios, dentre as quais aquelas constantes na CLT que
determinam a observância da proporcionalidade de dois terços”231.

Já o fato de, no Brasil, o número de imigrantes ser atualmente (e ainda)


relativamente tímido não afasta esta incompatibilidade, que se apresenta de maneira
ontológica. Este argumento referendaria a adoção de normas da mesma natureza em
países com alta taxa de imigração, o que resultaria em situações de discriminação
evidente. O fato de, no plano da prática, a discriminação ainda não existir no Brasil
não afasta a incompatibilidade jurídica subjacente.

É dizer que o domínio dos fatos não deve, neste caso, autorizar aquelas que
são distorções do plano das normas, sob o argumento de que as situações ilícitas
dificilmente ocorrerão factualmente. Ora, o passar dos anos pode determinar um
cenário de intensificação de fluxos migratórios para algumas regiões do Brasil,
fazendo com que a regra dos dois terços redunde em discriminações concretas.

Quanto às práticas empresariais que visem, por meio da contratação de mão


de obra estrangeira, solapar os padrões nacionais de proteção ao trabalhador, a
ordem jurídica apresenta uma série de princípios e regras que, em cada situação
concreta vislumbrada, são capazes de combater as ilegalidades percebidas.

Desse modo, a conclusão pela inconstitucionalidade dos arts. 352 e


seguintes da CLT é incontornável.

                                                            
231 HENRIQUE, Título I – Da aplicação, In FREITAS, Comentários ao Estatuto do Estrangeiro e opção

de nacionalidade, cit., p. 43.

132
 

 
 

13.2. A REGRA DA “IGUALDADE” SALARIAL E DA PRECEDÊNCIA DE DISPENSA

Na mesma linha da discussão acerca da regra da proporcionalidade de dois


terços, há que se referenciar, aqui, o art. 358 da CLT, que estabelece uma proteção
salarial específica para os brasileiros em face dos estrangeiros e uma ordem de
precedência para dispensas de brasileiros e estrangeiros que executem igual função:

“Art. 358 - Nenhuma empresa, ainda que não sujeita à


proporcionalidade, poderá pagar a brasileiro que exerça função
análoga, a juízo do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, à
que é exercida por estrangeiro a seu serviço, salário inferior ao
deste (...):
Parágrafo único - Nos casos de falta ou cessação de serviço, a
dispensa do empregado estrangeiro deve preceder à de brasileiro
que exerça função análoga”.

Quanto ao art. 358, desenha-se semelhante dissenso àquele do item


anterior, sumarizado por ANDRÉA PRESAS ROCHA:

“Entendem alguns que o art. 358, da CLT, não foi recepcionado


pela Constituição Federal, em face do disposto no caput do seu art.
5º (...). Alegam que as únicas restrições que vigoram em relação aos
estrangeiros são aquelas previstas na própria Constituição,
constantes dos art. 37, I, 176, §1º, e 178, II, sendo que toda e
qualquer distinção desbordante dos limites constitucionais, a
exemplo dos art. 352, 354 e 358, da CLT, estão revogadas (não
recepcionadas). Nesse sentido, Sergio Pinto Martins, Valentin
Carrion e Maurício Godinho Delgado.
Por outro lado, há aqueles que defendem a constitucionalidade do
cânone em questão argumentando que o escopo da norma do art.
358 reside no intuito de proteger o empregado nacional, e não de
discriminar o estrangeiro, ou seja, a norma em exame não traz

133
 

 
 

prejuízo ao direito do estrangeiro, mas apenas aumenta o direito do


empregado brasileiro”232.

Quanto ao tema da igualdade salarial, note-se que o art. 358 determina


somente que um brasileiro não pode receber menos do que um estrangeiro em
mesma função, mas não estabelece o inverso.

Há que se relembrar, aqui, que a diretriz de vedação a práticas


discriminatórias em matéria salarial é dada pelo princípio constitucional da igualdade
(particularizado pela isonomia salarial) e, em específico, pelo art. 461 da CLT, que
tem requisitos mais detalhados (o trabalho deve ser prestado ao mesmo
empregador, na mesma localidade, com igual produtividade e com a mesma
perfeição técnica). O art. 358, mais lacônico em sua redação (fala-se, somente, em
função análoga), é injustificadamente mais benéfico ao brasileiro em detrimento do
estrangeiro.

Quanto ao parágrafo único do art. 358, que estabelece que a dispensa de


estrangeiro, em caso de falta ou cessação do serviço, deve preceder a do brasileiro, é
dispositivo evidentemente discriminatório, vez que ao estrangeiro se concede um
tratamento diferenciado e menos protetivo, demonstrando uma descabida
“preferência” do ordenamento pela proteção aos brasileiros em matéria de emprego
e ocupação.

Todos esses aspectos fazem com que o entendimento da não recepção pela
Constituição Federal de 1988 dos dispositivos da CLT que tratam da nacionalização
do trabalho (arts. 352 e seguintes) se coloque como o mais adequado, ressaltada,
também, a incompatibilidade de tais dispositivos celetistas com a normativa
internacional de combate à discriminação e de proteção aos migrantes.
                                                            
232 ROCHA, Andréa Presas. Igualdade Salarial e Regras de Proteção ao Salário. Revista LTr, São

Paulo, v. 72, p. 413-421, 2008, p. 415.

134
 

 
 

14. A MOVIMENTAÇÃO DE MÃO DE OBRA NO MARCO JURÍDICO DO


MERCOSUL: IMIGRAÇÃO OU LIVRE CIRCULAÇÃO DE MÃO DE OBRA?

Ainda no tema das migrações em condição de regularidade no Brasil, há


que se fazer, aqui, uma referência aos instrumentos do MERCOSUL, espaço de
integração formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai (além da Venezuela,
que tem sua entrada em discussão nos países membros, e de países associados como
Bolívia, Chile, Peru e Equador).

O bloco, inspirado pelo ideal da livre circulação de pessoas, convive com


problemas reais e atuais de migração interna. Tomando-se o MERCOSUL em seu
sentido ampliado (a abarcar também os países associados), a circulação de migrantes
desponta como um tema relevante e problemático, com uma conjunção de fatores
que passam pelo ideal de integração humana, o atual estágio jurídico da questão
migratória, fluxos de imigração não documentada, tráfico de pessoas e migrantes,
diferenças da regulação trabalhista, etc.

Retomando-se algumas noções essenciais de integração de Estados no


plano internacional, ver-se-á que o MERCOSUL, originalmente, se pretende um
mercado comum. Quanto a esta categoria de integração internacional, LUIZ OLAVO
BAPTISTA indica uma grande dificuldade na definição do que seria um mercado
comum, evidenciando as singularidades de cada espaço em seus ritmos e objetivos
próprios, ao asseverar:

“A doutrina, quando define a expressão Mercado Comum, oferece


uma descrição vaga e teórica, ou se refere a algum modelo, o mais
freqüente sendo o que resultou dos Tratados de Roma e hoje se
converteu na União Européia. Por isso, há quem se iluda e pense

135
 

 
 

que Mercado Comum é apenas o europeu, esquecendo poder a


expressão ter o significado que em cada local e época lhe é
atribuído”233.

A despeito disso, ainda há a preponderância da definição básica inspirada


nos caminhos da União Europeia, definindo-se mercado comum como um “bloco
econômico de comércio formado por um conjunto de países onde há livre
circulação de bens, serviços, capital e trabalho”234. Trata-se de medida de integração
profunda, que tradicionalmente resulta em grande aproximação dos países
membros, não só no plano econômico, mas também no plano social e político.

Veja-se que o Tratado de Assunção, de 1991, estabelece, ainda que de


modo não direto, a intenção de implantar a livre circulação de trabalhadores como
decorrência da criação do mercado comum, nos termos de seu art. 1º:

“Artigo 1º - Os Estados Partes decidem constituir um Mercado


Comum, que deverá estar estabelecido a 31 de dezembro de 1994,
e que se denominará ‘Mercado Comum do Sul’ (MERCOSUL).
Este Mercado Comum implica:
A livre circulação de bens serviços e fatores produtivos entre os
países, através, entre outros, da eliminação dos direitos
alfandegários restrições não tarifárias à circulação de mercado de
qualquer outra medida de efeito equivalente”.

Sob a alcunha “fatores produtivos” do art. 1º do Tratado de Assunção


entende-se estar certamente abarcado o trabalho livre e assalariado, essencial para a
organização de atividades de produção, o que suplanta qualquer dúvida da intenção
do documento de implantar mecanismos de livre circulação de trabalhadores, em
linha também com o próprio conceito de mercado comum. Nesse sentido, comenta
ARMANDO ALVARES GARCIA JÚNIOR ser “evidente que a criação de um mercado

                                                            
233 BAPTISTA, Luiz Olavo. O Mercosul após o Protocolo de Ouro Preto. Revista Estudos Avançados,

Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 10 (27), p. 178-199, 1996, p. 180.


234 DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. V. 3. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 255.

136
 

 
 

comum traz ínsita a idéia de livre circulação de pessoas, de modo que a livre
circulação de trabalhadores, de um país para o outro, também deve estar
assegurada”235.

O tema da livre circulação de trabalhadores é, sem dúvida, um dos mais


controversos desde a criação do grupo, pelas razões noticiadas por MARCÍLIO
RIBEIRO DE SANT’ANA, ex-coordenador nacional do Subgrupo de Trabalho nº 10
(SGT 10) do MERCOSUL, voltado para assuntos trabalhistas, de emprego e de
seguridade social:

“Em realidade, além das vicissitudes do projeto de formação do


mercado comum, vários e complexos desafios envolvem o
exercício da livre circulação. Os problemas dizem respeito
principalmente ao ritmo de abertura das fronteiras, às normas
reguladoras da mobilidade sociolaboral, ao reconhecimento das
competências profissionais, à harmonização dos procedimentos
dos serviços de imigração, aspectos insuficientemente
desenvolvidos no MERCOSUL. Há, sobretudo, fortes temores
quanto aos impactos da livre circulação sobre os mercados de
trabalho, o nível e a qualidade do emprego, os serviços básicos e a
seguridade social”236.

Estes entraves práticos, contudo, não eliminam a relevância da integração


humana para a formação, enfim, de um mercado comum. Por definição, a circulação
no interior de um bloco desta natureza deve ser livre e, portanto, se difere de fluxos
migratórios comuns, entre países que não contam com esse laço, por meio de
mecanismos jurídicos de facilitação de trânsito, residência e trabalho. Nesse sentido,
aponta FLÁVIA DE ÁVILA uma diferença essencial entre migração e livre circulação:

                                                            
235 GARCIA JÚNIOR, Armando Álvares. O Direito do Trabalho no MERCOSUL. São Paulo: LTr,

1997, p. 32.
236 SANT’ANA, Marcílio Ribeiro de. A livre circulação de trabalhadores no MERCOSUL. Revista

ComCiência, UNICAMP, Campinas. Disponível em http://www.comciencia.br/reportagens/


migracoes/migr08.htm. Acesso em 28 de novembro de 2009.

137
 

 
 

“Migração baseia-se na noção de fronteiras fechadas, assim como


no poder que o Estado tem de controlar o ingresso de estrangeiros
em seu território ou nessas fronteiras, e livre circulação se refere à
abertura de fronteiras e à possibilidade de os cidadãos se
deslocarem livremente nos territórios dos países que sejam
membros de acordos de integração”237.

De toda sorte, não se pode negar a existência de uma correlação entre as


duas figuras — migração e livre circulação de mão de obra —, sobretudo no
contexto de processos de integração peculiares como o do MERCOSUL, que, em
seu atual estágio e da forma como vem sendo conduzido, ainda não implantou este
panorama de total abertura para fins de circulação de pessoas.

Impende notar que este processo de integração do MERCOSUL tem (e


terá, na medida dos avanços promovidos) reflexos essenciais na realidade migratória
regional, por duas razões que são apontadas por EZEQUIEL TEXIDÓ e GLADYS
BAER:

“Por um lado, a integração econômica influenciará os padrões de


mobilidade dos trabalhadores entre os países membros. Por outro,
o marco jurídico regional prevê a criação de um espaço social
harmonizado em que o movimento de trabalhadores dos países
parceiros está previsto no direito à livre circulação”238.

Contudo, vale sempre relembrar que o MERCOSUL, atualmente, ainda não


passa de uma união aduaneira em estágio de maturação, com limitações robustas à
circulação de pessoas, dentro do seu cronograma de implantação. Chega-se,
inclusive, a questionar a viabilidade do bloco como mercado comum, conforme
                                                            
237 ÁVILA, Entrada de trabalhadores estrangeiros no Brasil, cit., p. 85.
238 TEXIDÓ, Ezequiel, BAER, Gladys. Inserción sociolaboral de los migrantes. In TEXIDÓ,

Ezequiel et al. Migraciones laborales em Sudamérica: el Mercosur ampliado. Genebra: Oficina


Internacional do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho, 2003, p. 2. No original: “Por
una parte, la integración económica influirá sobre lós patrones de movilidad de los trabajadores
entre los países miembros. Por otra, el marco jurídico regional prevé la constitución de un espacio
social armonizado en el que el movimiento de los trabajadores de los países asociados es
contemplado dentro del derecho a la libre circulación”. Tradução do autor.

138
 

 
 

noticia ANTONIO RULLI JUNIOR, ao afirmar que “os mais pessimistas entendem o
Mercosul como espaço de cooperação e os mais otimistas como espaço de
integração”239.

Assim, de uma forma ou de outra, para o estudo da circulação de


trabalhadores no MERCOSUL há que se perceber tanto a dimensão da livre
circulação (enquanto proposição ideal daqueles que entendem o MERCOSUL como
zona de integração, em suas iniciativas parciais de concretização) quanto o tema da
proteção aos imigrantes em sentido estrito (enquanto realidade circundante, o que
atende aos que veem o bloco somente como zona de cooperação).

14.1. OS FLUXOS MIGRATÓRIOS NO MERCOSUL E A POSIÇÃO DO BRASIL

Note-se, aqui, que o MERCOSUL é um espaço com um amplo potencial


de crescimento de fluxos migratórios, o que vem ocorrendo antes mesmo (e a
despeito) da implantação da livre circulação de maneira plena. Os fluxos internos do
MERCOSUL (e do Cone Sul em sentido amplo) obedecem à regra das migrações
por busca de melhores oportunidades de trabalho e de vida, como apontado por
EZEQUIEL TEXIDÓ e GLADYS BAER:

“As migrações entre estes países são produzidas principalmente


por desequilíbrios econômicos e laborais, o que indica que os
trabalhadores migrantes deixam seus lugares de origem em busca
de melhores perspectivas de emprego e qualidade de vida e chegam
a mercados de trabalho que recrutam esse tipo de força de
trabalho”240.
                                                            
239 RULLI JUNIOR, Antonio. A viabilidade do MERCOSUL e espaços de integração. In LAGE,

Émerson José Alves, LOPES, Mônica Sette. O Direito do Trabalho e o Direito Internacional: questões
relevantes, homenagem ao professor Osiris Rocha. São Paulo: LTr, 2005, p. 150.
240 TEXIDÓ, BAER. Inserción sociolaboral de los migrantes. In TEXIDÓ et al, Migraciones laborales

em Sudamérica, cit., p. 1. No original: “Las migraciones entre estos países se producen esencialmente
por desequilibrios económico-laborales, lo que indica que los trabajadores migrantes salen de sus

139
 

 
 

Para a avaliação da posição brasileira nesse processo, o apontamento de


NEIDE LOPES PATARRA e ROSANA BAENINGER revela que “no caso dos
movimentos migratórios dos países do Mercosul para o Brasil, pôde-se constatar a
importância crescente dos movimentos intrabloco”241. O país passou a receber
aportes de imigração (por muitas vezes irregular) de países do MERCOSUL e de
outros países da América do Sul, vários deles associados ao bloco. O que se verifica,
atualmente, é um crescente número de trabalhadores não qualificados de
nacionalidade boliviana, peruana, argentina, paraguaia, venezuelana, entre outras, em
busca de melhores oportunidades nas grandes cidades brasileiras, sobretudo na
capital paulista242. Pouco a pouco, portanto, a preocupação do país com os fluxos de
imigração vai recuperando a importância de outrora, quando o Brasil recebia
contingentes mais expressivos de estrangeiros em seu território.

É importante salientar que o Brasil, por conta de ser um dos países melhor
estruturados do ponto de vista econômico no contexto do bloco, coloca-se como
um potencial receptor de imigrantes dos demais países do MERCOSUL e
associados. Não há, em contrapartida, o mesmo volume nos fluxos de brasileiros
para os demais países do bloco.

                                                                                                                                                                              
lugares de origen en la búsqueda de mejores perspectivas laborales y de calidad de vida y arriban a
mercados de empleo que reclutan este tipo de fuerza laboral”. Tradução do autor.
241 PATARRA, Neide Lopes, BAENINGER, Rosana. Mobilidade espacial da população no

Mercosul: metrópoles e fronteiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS, São Paulo, v. 21, n.
60, p. 83-102, 2006, p. 98.
242 Tal constatação pode ser confirmada, por exemplo, através dos dados do último programa de

anistia para estrangeiros do Governo Federal, do ano de 2009, pelo qual cerca de 43 mil
estrangeiros regularizaram sua situação migratória. Os bolivianos são maioria absoluta (17 mil),
seguidos de chineses (5,5 mil), peruanos (4,5 mil), paraguaios (4,1 mil) e coreanos (1,1 mil). Dados
do Ministério da Justiça, disponíveis em http://portal.mj.gov.br/estrangeiros/data/Pages/
MJA5F550A5ITEMIDBA915BD3AC384F681A1AC4AF88BE2D0PTBRIE.htm. Acesso em 02 de
abril de 2010.

140
 

 
 

Reagindo a tal condição, tem o Brasil se posicionado de maneira refratária


quanto à implantação da livre circulação, provavelmente movido pelo temor de
aumento expressivo dos fluxos migratórios, o que poderia interferir na dinâmica do
mercado de trabalho interno e, eventualmente, aumentar o desemprego. No
entender de JAQUELINE LISBÔA GRUPPELLI, diante das diferenças no interior do
bloco, “ainda há uma repulsa por parte dos governantes para suprimir por completo
as fronteiras interiores e, desta forma, possibilitar um intercâmbio integrado entre os
povos”243.

Nesse contexto, o Brasil mantém sua política tradicional quanto à questão


migratória, marcadamente seletiva e rigorosa. O efeito colateral, contudo, é o
crescimento dos volumes de imigrantes sul-americanos não documentados no país,
a serem especificamente tratados no próximo capítulo.

De toda sorte, alguns instrumentos específicos consolidam o marco


regulatório do MERCOSUL na questão migratória, a afetar aquilo que se pode
compreender como um migrante em condição regular no Brasil. Por esta razão,
justifica-se a análise dos instrumentos normativos gerados na matéria, com vistas a
compreender em que direção se encaminha o bloco e se (e quando) a livre
circulação de mão de obra poderá se tornar uma realidade.

                                                            
243 GRUPPELLI, Jaqueline Lisbôa. A migração laboral no MERCOSUL a partir da análise dos acordos

sobre residência: entre ousadia e timidez. Dissertação de mestrado. Santa Maria: Universidade Federal
de Santa Maria, 2008, p. 31.

141
 

 
 

14.2. AS INICIATIVAS DE PROTEÇÃO AO TRABALHADOR IMIGRANTE NO


MERCOSUL

Como visto, existe ainda uma grande distância prática entre o texto do
Tratado de Assunção, de 1991, e a realidade da integração do MERCOSUL em
termos de circulação de pessoas. Não há como negar que as fronteiras nacionais
para fins de trânsito de nativos do bloco ainda estão fixas e firmes, e a questão
migratória é, em grande medida, orientada pelas políticas e práticas de cada um dos
Estados membros. Existem, contudo, relevantes instrumentos normativos e avanços
práticos no MERCOSUL que se inclinam no sentido de facilitar a circulação e
residência de nacionais do bloco e a proteção aos migrantes, retomando a proposta
de livre circulação originalmente idealizada.

Uma remissão história no processo de sedimentação do MERCOSUL —


que, sabidamente, tem suas raízes muito mais voltadas para uma integração
econômica do que social — talvez desvele o porquê do relativo desprestígio do
tema da livre circulação. Após o Protocolo de Ouro Preto, de 1996, os países
membros, diante da dificuldade de implantação dos passos originalmente previstos
de profunda integração (inclusive em termos de movimentação de trabalhadores),
pactuaram focar-se na consolidação de uma união aduaneira, o que implicou numa
nova abordagem para o capítulo referente à circulação de pessoas. Os planos de um
espaço de livre circulação perderam muita força. Assim percebe MARCÍLIO RIBEIRO
DE SANT’ANA:

“A principal conseqüência dessas medidas [do Protocolo de Ouro


Preto] no campo das migrações é o deslocamento do foco de
interesse da livre circulação para o diagnóstico dos fenômenos
migratórios, a produção de estatísticas e a elaboração de normas, o

142
 

 
 

que alguns estudiosos interpretam como perda de importância do


tema migratório na agenda do MERCOSUL”244.

Assim sendo, nos últimos quinze anos a questão da livre circulação em seu
sentido mais completo cedeu passo a iniciativas e instrumentos visando ampliar a
proteção aos migrantes, com algumas medidas de facilitação de entradas e saídas,
além de instrumentos extremamente relevantes de proteção a residentes. A despeito
de não existir ainda um quadro de livre circulação — e até mesmo por esta razão —
a garantia de padrões de proteção aos trabalhadores que transitam entre os países do
MERCOSUL faz-se essencial.

Entre esses marcos regulatórios, em primeiro lugar está aquele que é o


instrumento norteador de proteção ao trabalho no MERCOSUL, a chamada
Declaração Sociolaboral do MERCOSUL de 1998 (conhecida também por “Carta
Social do MERCOSUL”), que, em seu art. 4º, estabelece importante diretiva em
relação à questão da migração de trabalhadores no bloco:

“1. Todo trabalhador migrante, independentemente de sua


nacionalidade, tem direito à ajuda, informação, proteção e
igualdade de direitos e condições de trabalho reconhecidos aos
nacionais do país em que estiver exercendo suas atividades, em
conformidade com a legislação profissional de cada país.
2. Os Estados Partes comprometem-se a adotar medidas tendentes
ao estabelecimento de normas e procedimentos comuns relativos à
circulação dos trabalhadores nas zonas de fronteira e a levar a cabo
as ações necessárias para melhorar as oportunidades de emprego e
as condições de trabalho e de vida destes trabalhadores”.

Há, ainda, o Acordo Multilateral de Seguridade Social do MERCOSUL,


subscrito em Montevidéu, em 14 de dezembro de 1997245. O Acordo tem como

                                                            
244 SANT’ANA, A livre circulação de trabalhadores no MERCOSUL, cit., disponível em

http://www.comciencia.br/reportagens/ migracoes/migr08.htm. Acesso em 28 de novembro de


2009.

143
 

 
 

objetivo garantir que os direitos à seguridade social sejam reconhecidos aos


trabalhadores que prestem ou tenham prestado serviços em quaisquer dos Estados
Partes do MERCOSUL, sendo-lhes reconhecidos os mesmos direitos que os
nacionais de tais Estados Partes.

Destacam-se, ainda, na regulação das migrações no MERCOSUL, a


Declaração de Santiago Sobre Princípios Migratórios de 2004; os Acordos n. 11/02,
12/02, 13/02 e 14/02 do Conselho do Mercado Comum do MERCOSUL; a
Declaração de Assunção Sobre o Tráfico de Pessoas e Tráfico Ilícito de Migrantes
de 2001; a Declaração de Assunção de 2006; a Declaração de Caracas de 2007 e a
Declaração de Lima de 2006, além do Compromisso de Montevidéu sobre
Migrações e Desenvolvimento dos chefes de Estado e de Governo da comunidade
Ibero-Americana de 2006246.

Todos esses instrumentos foram lançados no sentido de facilitar fluxos


migratórios, promover regularização de fluxos de imigração indocumentada, ampliar
a salvaguarda de direitos e eliminar formas de tráfico e exploração de migrantes.

Mencione-se, por fim, o Acordo sobre Residência para Nacionais dos


Estados Partes do MERCOSUL, promulgado no Brasil pelos Decretos n. 6.964 e
6.975 de 2009, instrumento normativo de extrema importância que promoverá uma
série de avanços no sentido de simplificar a circulação de pessoas e a fixação de
residência no contexto do bloco. Trata-se de diploma paradigmático para a
circulação de pessoas no bloco, que revela suas inspirações já nos dispositivos
inaugurais:
                                                                                                                                                                              
245 O Acordo Multilateral de Seguridade Social do MERCOSUL foi aprovado no Brasil em 2001

(Decreto Legislativo n. 451/2001) e entrou em vigor em 2005 (promulgação pelo Decreto n.


5.722/2006).
246 Grande parte destes acordos, compromissos e declarações está disponibilizada no sítio do

Ministério do Trabalho e Emprego, no seguinte endereço: http://www.mte.gov.br/trab_estrang/


declaracoes.asp. Acesso de 05 de maio de 2009.

144
 

 
 

“Reafirmando o desejo dos Estados Partes do MERCOSUL e dos


Países Associados de fortalecer e aprofundar o processo de
integração, assim como os fraternais vínculos existentes entre eles;
Tendo presente que a implementação de uma política de livre
circulação de pessoas na Região é essencial para a consecução
desses objetivos;
Visando a solucionar a situação migratória dos nacionais dos
Estados Partes e Países Associados na região, a fim de fortalecer os
laços que unem a comunidade regional;
Convencidos da importância de combater o tráfico de pessoas para
fins exploração de mão-de-obra e aquelas situações que impliquem
degradação da dignidade humana, buscando soluções conjuntas e
conciliadoras aos graves problemas que assolam os Estados Partes,
os Países Associados e a comunidade como um todo, consoante
compromisso firmado no Plano Geral de Cooperação e
Coordenação de Segurança Regional;
Reconhecendo o compromisso dos Estados Partes de harmonizar
suas legislações para lograr o fortalecimento do processo de
integração, tal qual disposto no artigo 1º do Tratado de Assunção”.

À luz dessas constatações e princípios, o Acordo garante que “os nacionais


de um Estado Parte que desejem residir no território de outro Estado Parte poderão
obter residência legal neste último”, nos termos do art. 2º, mediante comprovação
de nacionalidade e observância de requisitos mínimos estabelecidos no próprio
acordo. Os requisitos se circunscrevem à apresentação de documentos pessoais e
ausência de antecedentes criminais (art. 4º), sendo prevista autorização para
residência temporária a ser eventualmente transformada em permanente. Garante,
ainda, liberdade de circulação e de trabalho (art. 8º), além de uma série de direitos de
matriz igualitária aos imigrantes e suas famílias (art. 9º).

O impacto do Acordo de Residência, frise-se, é enorme. Na comparação


com a legislação brasileira interna, fica patente o seu caráter de simplificação, que
apresenta requisitos bem menos economicistas e rigorosos do que o Estatuto do

145
 

 
 

Estrangeiro (Lei 6.815/80), e se encaminha no sentido de proteger o migrante e


facilitar a circulação intrabloco.

Interessante, também, notar que o Acordo encampa a diretiva da vedação


ao retrocesso sócio-jurídico do trabalhador imigrante em seu art. 11, que estabelece
que o “Acordo será aplicado sem prejuízo de normas ou dispositivos internos de
cada Estado Parte que sejam mais favoráveis aos imigrantes”. Assim, “acolhe como
missão universal o progresso na proteção da pessoa humana”247, na síntese de
DANIELA MURADAS sobre o tema da vedação ao retrocesso em matéria de Direito
Internacional do Trabalho, evitando o solapamento de padrões de proteção e a
prática do dumping social.

Por estas razões, justifica-se a ênfase dada por CRISTIANE MARIA


SBALQUEIRO LOPES ao afirmar que, do ponto de vista de normatividade, “o acordo
de Residência resolve definitivamente a questão migratória entre cidadãos do
Mercosul, instituindo verdadeiro regime de igualdade jurídica que poderá solucionar
muitas das questões migratórias atuais”248.

Ocorre que, como percebido na realidade dos fluxos migratórios, a


irregularidade ainda perdura, o que conduz à necessidade de ações políticas no
sentido de implementar os dispositivos do Acordo e trazê-lo à plena efetividade.

Em outras palavras, tais manifestações colocam-se, ainda, em um plano de


intenções (a despeito da promulgação do Acordo no Brasil) que dista da realidade
dos fluxos migratórios no MERCOSUL, formados, em grande medida, por

                                                            
247 MURADAS, Daniela. Contributo ao Direito Internacional do Trabalho: a reserva implícita ao

retrocesso sócio-jurídico do trabalhador nas Convenções da Organização Internacional do


Trabalho. Tese de doutoramento. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais, 2007, p. 365.
248 LOPES, O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos, cit., p. 436.

146
 

 
 

trabalhadores não qualificados que se deslocam, na maioria das vezes, em condição


de irregularidade, especialmente no que diz respeito ao Brasil.

De todo modo, a despeito das vicissitudes da efetivação concreta dos


direcionamentos pactuados, esses arranjos normativos têm grande potencial na
apreensão e equacionamento das especificidades de determinadas correntes de
migração, complementados, neste mister, por instrumentos bilaterais, como é o caso
do fluxo Bolívia-Brasil, tratado em acordo de regularização migratória datado de
2005.

Todos estes acordos, compromissos e declarações reafirmam as intenções


no contexto do MERCOSUL de respeito aos direitos dos imigrantes e da
consolidação de padrões humanizados da regulação jurídica da circulação de
pessoas, em linha com as grandes matrizes do tratamento da migração laboral no
plano internacional. Assim, parece adequada a conclusão de JOÃO DE LIMA
TEIXEIRA FILHO, corroborando a importância da regulação migratória no
MERCOSUL:

“É fundamental regular a circulação de mão-de-obra entre os


países envolvidos, e que será acentuada com o estabelecimento do
mercado comum. Exigirá um esforço de harmonização das
respectivas legislações trabalhistas, um trabalho de consciência
social destinado a impedir que surjam manifestações xenófobas,
acusando os nacionais de cada um dos países do Mercosul de
ocuparem postos de trabalho que deveriam ser destinados aos
nativos de cada país”249.

Nesse mesmo sentido, NEIDE LOPES PATARRA e ROSANA BAENINGER:

“Enfatiza-se, assim, a necessidade de se avançar na legalização da


‘cidadania comunitária’ no Mercosul a fim de minimizar o
                                                            
249 TEIXEIRA FILHO, João de Lima. O Mercosul e as relações de trabalho. Revista do Tribunal

Regional do Trabalho da 12ª Região, Florianópolis, n. 02, p. 56-73, jan./jun. 1994, p. 70.

147
 

 
 

problema da ilegalidade das migrações internacionais, ampliando a


perspectiva da ‘livre circulação de trabalhadores’ em espaços cada
vez mais livres pela circulação de capitais, bens e serviços”250.

É dizer, a criação de instrumentos jurídicos e políticos para tornar efetiva a


proteção ao trabalhador em trânsito no MERCOSUL é providência necessária por
duas razões básicas. Em primeiro lugar, como forma de combater os problemas
gerados pelos fluxos de imigração irregular e proteger os migrantes indocumentados
vítimas de tráfico internacional e que trabalhem em condição análoga à de escravo.
E, em segundo lugar, como forma de se aproximar de um mercado comum genuíno
e humanizado, que garanta às populações melhores condições de vida e trabalho,
para implementar a finalidade social do bloco.

                                                            
250 PATARRA, BAENINGER, Mobilidade espacial da população no Mercosul, Revista Brasileira de

Ciências Sociais, cit., p 99.

148
 

 
 

CAPÍTULO V
O TRATAMENTO JUSTRABALHISTA DO IMIGRANTE EM
CONDIÇÃO DE IRREGULARIDADE NO BRASIL
“Me dicen el clandestino
Por no llevar papel
Pa’ una ciudad del norte
Yo me fui a trabajar (...)
Soy una raya en el mar
Fantasma en la ciudad
Mi vida va prohibida
Dice la autoridad”.

MANU CHAO
Clandestino

15. IMIGRAÇÃO EM CONDIÇÃO DE IRREGULARIDADE: APONTAMENTOS PARA


UMA ABORDAGEM BASEADA NA PROTEÇÃO À PESSOA HUMANA E NA
PREVALÊNCIA DO VALOR SOCIAL DO TRABALHO

A imigração em condição de irregularidade, como já se pôde perceber ao


longo do desenvolvimento dos capítulos anteriores, é, induvidosamente, o tema
mais problemático do estudo das migrações internacionais na contemporaneidade.
Isso porque se está em um terreno de recorrentes e graves afrontas à dignidade da
pessoa humana, sobretudo no que toca ao trabalho e aos desafios relacionados à
proteção justrabalhista dos chamados imigrantes não documentados.

ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE percebe o problema em sua


dimensão amplificada, no contexto da propagandeada “globalização”, apresentando
aguçada crítica:

“Em tempos da chamada ‘globalização’ (o neologismo dissimulado


e falso está na moda hoje em dia), as fronteiras se abriram para o
capital, bens e serviços, mas, infelizmente, se fecharam para os
seres humanos. O neologismo, que sugere a existência de um

149
 

 
 

processo que abrange todos e do qual todos participariam, na


verdade, esconde a fragmentação do mundo contemporâneo, e a
exclusão e marginalização social de segmentos cada vez maiores da
população. O progresso material de alguns se fez acompanhar pelas
formas contemporâneas (e clandestinas) de exploração do trabalho
de muitos (a exploração dos imigrantes em situação irregular,
prostituição forçada, tráfico infantil, trabalho forçado e escravo),
em meio ao aumento da pobreza e da exclusão e marginalização
social”251.

Há, além disso, situações de interação problemática entre migrantes


irregulares e sociedades receptoras, sob a influência de fatores de complicação como
racismo e xenofobia. Nesse sentido, ressalta TERESA SALES:

“As migrações ilegais ou clandestinas têm sido foco de atenção dos


organismos de foro internacional sobretudo a partir dos anos 70,
quando as migrações clandestinas se manifestam com mais vigor,
gerando movimentos de intolerância e discriminação contra os
imigrantes e suas famílias”252.

A Organização Internacional do Trabalho confirma a relevância da matéria


e a necessidade de uma abordagem humana para a questão, colocando-a em suas
pautas de discussão prioritárias. Prefaciando um detalhado relatório de práticas e

                                                            
251 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Voto concorrente. In CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Condición jurídica y derechos de los
migrantes indocumentados. Opinião consultiva OC-18/03. São José da Costa Rica, 17 de setembro
de 2003. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf. Acesso em
14 de abril de 2010. No original: “En tiempos de la así-llamada ‘globalización’ (el neologismo
disimulado y falso que está de moda en nuestros días), las fronteras se han abierto a los capitales,
bienes y servicios, pero se han tristemente cerrado a los seres humanos. El neologismo que sugiere
la existencia de un proceso que abarcaría a todos y del cual todos participarían, en realidad oculta la
fragmentación del mundo contemporáneo, y la exclusión y marginación sociales de segmentos cada
vez mayores de la población. El progreso material de algunos se ha hecho acompañar por las
formas contemporáneas (y clandestinas) de explotación laboral de muchos (la explotación de los
migrantes indocumentados, la prostitución forzada, el tráfico de niños, el trabajo forzado y esclavo),
en medio al aumento comprobado de la pobreza y la exclusión y marginación sociales”. Tradução
do autor.
252 SALES, Teresa. Brasil migrante, Brasil clandestino. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo,

8(1), p. 107-115, jan./mar. 1994, p. 112.

150
 

 
 

princípios cuja adoção no trato das migrações é recomendada, o Diretor Geral da


OIT, JUAN SOMAVIA, indica a dimensão da problemática:

“Muitos trabalhadores migrantes, especialmente trabalhadores


menos qualificados, experimentam graves abusos e exploração. (...)
Em face dos obstáculos cada vez maiores que se levantam para
cruzar fronteiras, o crescimento da imigração irregular e o tráfico
de seres humanos constituem os grandes desafios para a proteção
dos direitos humanos e trabalhistas”253.

Perceba-se que, diante deste grave quadro, a OIT enfatiza, no citado


relatório, a necessidade daquilo que denomina um “rights-based approach to labour
migration”, ou seja, uma abordagem baseada em direitos para a imigração laboral,
como alternativa à via da repressão exclusiva. Necessário esclarecer que não se
pleiteia a inexistência de fiscalização e controle, mas que se dê preferência ao
desenvolvimento de políticas que prestigiem a dimensão humana envolvida nas
migrações irregulares.

Compreender os movimentos migratórios ditos clandestinos em suas causas


de origem e reflexos para os Estados envolvidos e para as pessoas, de modo a
consolidar e implementar este “rights-based approach” é tarefa de extrema
complexidade. Leituras simplificadoras tendem a ressaltar, de maneira muitas vezes
distorcida, aspectos isolados como a soberania estatal, postulando que, uma vez que
cada país tem a prerrogativa de selecionar os imigrantes que quer receber, aqueles
que descumprem as normas devem ser privados de qualquer proteção.
                                                            
253 SOMAVIA, Juan. Preface. In ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO.

Repartição Internacional do Trabalho. ILO’s multilateral framework on labour migration: non-binding


principles and guidelines for a rights-based approach. Genebra, 2006, p. V. Disponível em
http://www.ilo.org/public/english/protection/migrant/download /multilat_fwk_en.pdf. Acesso
em 27 de abril de 2010. No original: “Many migrant workers, especially low skilled workers,
experience serious abuse and exploitation. Women, increasingly migrating on their own and now
accounting for almost half of all international migrants, face specific protection problems. In the
face of rising barriers to cross border labour mobility, the growth of irregular migration, and
trafficking and smuggling of human beings constitute major challenges to protection of human and
labour rights”. Tradução do autor.

151
 

 
 

Para esta análise baseada em direitos é necessário, contudo, entender-se a


questão em todas as suas facetas, compreendendo, entre outros aspectos, o dilema
da pobreza em diversos países do mundo, fator que contribui para a intensificação
dos fluxos migratórios irregulares. É nesse panorama que CARLOS B. VAINER
aponta a crueldade sistemática que permeia as migrações irregulares e seu tradicional
tratamento pelos Estados:

“No mundo no qual parece se aproximar a realização plena da


utopia neoliberal, muitos milhões são os deslocados compulsórios,
os reassentados, os refugiados e repatriados e deportados, os
expulsos e clandestinos. Proibidos de ficar, confinados, interditados
de entrar, obrigados a sair, eles nos dizem da natureza perversa da
liberdade operada sob a hegemonia da globalização
contemporânea: o mundo desterritorializado e sem fronteiras de
uns é o mesmo mundo territorializado e guetificado de outros”254.

Todo esse alarmante cenário é agravado por legislações nacionais


extremamente repressivas, que alimentam a intolerância e a condição marginal dos
imigrantes irregulares, tornando ainda mais problemática a interação com a
sociedade receptora255.

                                                            
254 VAINER, Carlos B. As novas categorias de uma sociologia dos deslocamentos compulsórios e

das restrições migratórias. In CASTRO, Mary Garcia (org.). Migrações internacionais: contribuições
para políticas. Brasília: CNPD, 2001, p. 182-183.
255 O debate quanto à sanção que deve ser aplicada ao imigrante irregular tem grande repercussão

nos países do capitalismo central, sobretudo na Europa e Estados Unidos. Como já pontuado,
existem dissensos, inclusive, quanto à criminalização da condição de imigrante irregular, dada a
magnitude dos fluxos migratórios destes países. A Itália discute, atualmente, o delito de “ser
imigrante ilegal”, com uma iniciativa do Governo BERLUSCONI de criação deste tipo penal. A
respeito disso, veja-se a conclusão de STEFANO RODOTÀ, catedrático de Direito Civil na
Universidade de Roma La Sapienza, publicada no periódico espanhol El País: “Se convierte en
delito una simple condición personal, el hecho de ser extranjero, en contraste con lo que establece
la Constitución en materia de igualdad”. Cf. RODOTÁ, Stefano. Italia y los ‘empresarios’ del
miedo. Jornal El País. Disponível em http://www.elpais.com/articulo/opinion /Italia/empresarios
/miedo/elpepiopi/20080524elpepiopi_13/Tes. Acesso em 14 de janeiro de 2009.

152
 

 
 

Veja-se o exemplo recente e emblemático da legislação do estado norte


americano do Arizona, que criminalizou a condição de imigrante indocumentado,
prevendo, também, prerrogativas policiais de extrema truculência. Promulgada em
abril de 2010, a Lei Estadual 1.070 foi considerada autoritária e discriminatória,
gerando reações no plano internacional, como o repúdio expresso da UNASUL
(União das Nações Sul-Americanas)256. O Governo brasileiro também se manifestou
de forma contrária, publicando nota por meio do Ministério das Relações
Exteriores257.

A dimensão quantitativa das imigrações irregulares faz a discussão ganhar


ainda mais razão de ser. Diversos e volumosos fluxos de imigração irregular se
renovam diariamente ao redor mundo, de maneira sistemática, especialmente
destinados aos países desenvolvidos (como a imigração africana para a Europa e a
latina para os Estados Unidos). O Brasil também se insere neste cenário, como se
verá adiante, o que referenda a necessidade da reflexão local.

                                                            
256 Cf. http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/05/100504_marcia_arizona_rc.shtml.
Acesso em 05.05.2010.
257 Trecho da nota n. 278 do Itamaraty, de 03.05.2010: “O governo brasileiro recebeu com grande

preocupação a notícia de que o Estado norte-americano do Arizona aprovou, em 22 de abril,


legislação que criminaliza a imigração irregular. O governo brasileiro tem-se pronunciado firme e
reiteradamente, em negociações bilaterais e nos foros internacionais, contra a associação indevida
entre migração irregular e criminalidade. No caso da nova lei do Arizona, o poder discricionário
conferido aos agentes policiais para verificação da situação migratória e prisão de estrangeiros virá
ao sacrifício dos direitos humanos dos migrantes. O governo brasileiro considera que conceder o
mesmo tratamento a indocumentados e criminosos subverte noções elementares de humanidade e
justiça. Julga que o caminho a seguir não é o da criminalização, mas o da regularização migratória,
de que é exemplo a aprovação da Lei brasileira nº 11.961, de julho de 2009, que promoveu ampla
regularização da situação migratória dos estrangeiros no Brasil. O governo brasileiro se une às
manifestações contrárias à lei anti-imigratória do Arizona. Espera que tal legislação seja revista, de
modo a evitar a violação de direitos de milhões de estrangeiros que vivem e trabalham
pacificamente nos Estados Unidos, como os brasileiros que se encontram naquele país”.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Nota à imprensa 278. Brasília, 2010. Disponível
em http://www.mre.gov.br/portugues/imprensa/nota_detalhe3.asp?ID_RELEASE=8183. Acesso
em 10.05.2010.

153
 

 
 

Saliente-se que a força motriz, por excelência, destes deslocamentos de


migrantes é o trabalho. A tentativa de viabilizar melhores condições materiais por
meio do trabalho é o que, via de regra, move um migrante. Almejando uma vida
melhor, submete-se à condição de clandestinidade no sempre arriscado cruzamento
irregular de fronteiras para trabalhar, recebendo, por conta disso, tratamento muitas
vezes equiparado ao de criminosos, como no exemplo do estado do Arizona
apontado anteriormente. Como resultado, ficam os questionamentos quanto à
proteção do trabalho, a serem tratados, aqui, à luz do Direito do Trabalho brasileiro
e das normas internacionais aplicáveis à ordem jurídica interna brasileira.

16. IMIGRAÇÃO IRREGULAR DE TRABALHADORES PARA O BRASIL

O Brasil insere-se nos fluxos internacionais de imigração irregular de duas


maneiras. A primeira delas pelo envio de emigrantes irregulares, em linha com a sua
nova vocação migratória do país, para países como os Estados Unidos, Japão e
países europeus. O envio de emigrantes, nesse caso, é alimentado pelas
desigualdades sociais e pela problemática do desemprego do país, sendo os fluxos
formados, essencialmente, por mão de obra pouco qualificada em busca de
melhores condições de vida e trabalho no exterior258.

A segunda maneira pela qual se pode estudar a questão da migração


irregular no Brasil é quando o país é receptor da entrada de imigrantes irregulares,
vindos essencialmente da América do Sul, Ásia e África, em seu território. É sobre

                                                            
258 Sobre, por exemplo, a imigração irregular de brasileiros para os Estados Unidos, aponta NEIDE

PATARRA ser o país “destino de um expressivo volume de brasileiros, em sua maioria jovens e
pertencentes à classe média, que entram clandestinamente e se ocupam em trabalhos não
qualificados que, ao contrário do que aconteceria em seus países de origem, propiciam-lhes um
orçamento maior e a possibilidade de formar uma certa poupança”. Cf. PATARRA, Neide Lopes.
Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo: volumes, fluxos, significados e
políticas. Revista São Paulo em Perspectiva, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005, p. 27.

154
 

 
 

esse grupo de imigrantes não documentados que se lançam os questionamentos a


serem aqui explorados, sobretudo na dimensão do trabalho prestado e da proteção
justrabalhista a eles assegurada.

16.1. A CONDIÇÃO DE IRREGULARIDADE MIGRATÓRIA NO DIREITO


BRASILEIRO

A definição mais ampla de migração irregular, tomada em relação ao país de


origem e destino, bem como aos bens jurídicos envolvidos, é a sintetizada por
EDUARDO GERONIMI:

“As migrações irregulares podem ser definidas como todo


movimento internacional que tem lugar fora do marco
regulamentar dos países de envio, recebimento, de ambos (...) ou
de trânsito. Por definição, a migração irregular é o resultado de
uma legislação promulgada para controlar os fluxos migratórios
(...), e é uma violação — ou delito, no sistema penal das legislações
nacionais — contra a soberania do Estado”259.

Na perspectiva do direito interno, um imigrante pode ser considerado em


condição de irregularidade migratória no Brasil quando não obedece aos requisitos
da legislação aplicável (nomeadamente a Lei n. 6.815/80, o Estatuto do Estrangeiro)
em relação à entrada, permanência e/ou atividades desempenhadas no território nacional.
Como visto no capítulo anterior, a ordem jurídica pátria estabelece uma série
extensa de condições para que a imigração se dê em perfeita consonância com o que
exige o país, visando atender, nos termos do art. 1º do Estatuto, “à segurança
                                                            
259 GERONIMI, Eduardo. Aspectos jurídicos del tráfico y la trata de trabajadores migrantes.

Programa de Migraciones Internacionales. Genebra: Organização Internacional do Trabalho, 2002, p. 4.


No original: Las migraciones irregulares pueden definirse como todo movimiento internacional que
tiene lugar fuera del marco regulatorio de los países de envío, de recepción, de ambos (...), o de
tránsito. Por definición, la migración irregular es el resultado de la legislación promulgada para
controlar los flujos migratorios (...), y es una infracción — o delito, según el sistema penal de las
legislaciones nacionales — contra la soberanía del Estado”. Tradução do autor.

155
 

 
 

nacional, à organização institucional, aos interesses políticos, sócio-econômicos e


culturais do Brasil, bem assim à defesa do trabalhador nacional”.

Quanto à entrada, estará em condição de irregularidade migratória aquele


estrangeiro que não portar o visto adequado ao adentrar o território nacional260. A
este primeiro grupo o Estatuto do Estrangeiro denomina imigrante “clandestino”261
(cf. art. 125, I do Estatuto). Em relação à permanência, a irregularidade se verificará
quando o imigrante não portar visto algum ou, uma vez vencido o prazo de seu
visto, permanecer no país. A estes a Lei denomina “irregulares” (art. 125, XII). Por
fim, também se considera irregular aquele que exerce atividade incompatível com o
tipo de autorização que lhe garante seu visto, como, por exemplo, o portador de
visto de turista que executa atividade remunerada. São os chamados “impedidos”,
conforme texto da Lei 6.815/80 (vide, por exemplo, art. 125, VII).

Há que se destacar, também, o que dispõe o art. 38 do Estatuto do


Estrangeiro, a afetar diretamente o destino dos imigrantes em condição de
irregularidade. Estabelece o dispositivo ser “vedada a legalização da estada de
clandestino e de irregular, e a transformação em permanente, dos vistos de trânsito,
de turista, temporário (artigo 13, itens I a IV e VI) e de cortesia”. Percebe-se muito
claramente que tal disposição alinha-se ao perfil exclusivamente repressivo do
Estatuto no trato das imigrações irregulares.

Diga-se, aqui, que a possibilidade de regularização de imigrantes é medida


que pode auxiliar diretamente na inserção social de grupos significativos de pessoas,
                                                            
260 Existem hipóteses de dispensa de visto, como o caso da dispensa de visto de turista com base

em reciprocidade, prevista no art. 10 da Lei 6.815/80.


261 A inadequação técnica da expressão imigrante clandestino (ou imigrante ilegal), por traduzir a

esdrúxula noção de “pessoal ilegal”, além de seu peso ideológico, foi tratada no item 1.2 do capítulo
I da presente pesquisa. Dá-se, aqui, preferência a expressões mais acuradas, como imigrante em
condição de irregularidade, imigrante não documentado e outras expressões que explicitam a
irregularidade restrita à condição migratória. De todo modo, a redação da Lei 6.815/80, tal como
está hoje, mantém a infeliz expressão “imigrante clandestino”.

156
 

 
 

devolvendo-lhes uma condição jurídica essencial para viabilizar uma existência


digna, por meio, por exemplo, da proteção plena das relações trabalhistas
estabelecidas. Tanto é assim que o governo brasileiro lançou, ao longo das últimas
décadas, programas de anistia que beneficiaram os imigrantes em condição de
irregularidade262, em direcionamento diferente daquele plasmado no art. 38 do
Estatuto do Estrangeiro, possibilitando a obtenção de autorizações de residência
provisória, que podem ser transformadas em permanentes.

16.1.1. AS SANÇÕES DO ESTATUTO DO ESTRANGEIRO PARA OS IMIGRANTES EM


CONDIÇÃO DE IRREGULARIDADE

São essencialmente três as medidas sancionadoras de expatriação


compulsória previstas na ordem jurídica brasileira: a deportação, a expulsão e a
extradição. Interessa à presente pesquisa especialmente a figura da deportação, vez
que “tanto a extradição como a expulsão pressupõem a prática de delito
criminal”263, como sintetizado por MIGUEL FLORESTANO.

O mesmo autor completa, asseverando que “para que se verifique a


primeira [extradição] o delito deve ocorrer no território estrangeiro e, para a segunda
[expulsão], a prática do crime tem de ocorrer em solo nacional”264. Ou seja, a

                                                            
262 Desde o início da década de 1980 foram quatro os programas de anistia, o último de 2009 (Lei

11.961/2009), que beneficiou mais de 40 mil estrangeiros em condição de irregularidade. O último


programa de anistia previu cento e oitenta dias para o requerimento de residência provisória, pelo
que suas disposições não admitem mais novas regularizações e, portanto, não são uma alternativa
permanente ao art. 38 do Estatuto do Estrangeiro.
263 FLORESTANO, Miguel. Da deportação. In FREITAS, Vladimir Passos de (org.). Comentários ao

Estatuto do Estrangeiro e opção de nacionalidade. Campinas: Millennium, 2006, p. 140.


264 FLORESTANO, Da deportação, In FREITAS, Comentários ao Estatuto do Estrangeiro e opção de

nacionalidade, cit., p. 140.

157
 

 
 

expulsão e a extradição são figuras não correlacionadas com uma condição de


irregularidade migratória em si, que é o objeto aqui em pauta265.

Já a deportação é definida no próprio Estatuto do Estrangeiro, como


medida que consiste na saída compulsória do estrangeiro (art. 58), nos casos de
entrada ou de estada irregular, sem retirada voluntária (art. 57). Deporta-se, também,
o trabalhador fronteiriço que passe a residir irregularmente no país (art. 21, §2º), o
estrangeiro que tente burlar a inspeção de entrada (art. 24) ou que desempenhe
atividade vedada para o tipo de visto que porta (art. 98 e seguintes).

De modo que o trabalhador imigrante em condição de irregularidade tem


como sanção máxima prevista na ordem jurídica brasileira a deportação. Toma-se a
expressão “condição de irregularidade”, aqui, de maneira ampla e genérica, a abarcar
irregularidade de entrada (“clandestinos”, na expressão da lei), estada irregular
(“irregulares”) e trabalho irregularmente executado (“impedidos”). Àqueles ditos
“clandestinos” e aos “impedidos” a deportação é imediata (art. 125, I e VIII do
Estatuto do Estrangeiro). Já aos chamados “irregulares” a ordem jurídica garante
um prazo para a saída voluntária, cominando a pena da deportação no caso de
descumprimento, além de multa proporcional aos dias de estada irregular (art. 125,
II do Estatuto).

Percebe-se, aqui, que a legislação brasileira ainda encampa uma postura de


tratamento à imigração irregular como questão de mera repressão a infratores,
mediante a imposição da penalidade de deportação, sem prever auxílio a possíveis
vítimas, não expressando maiores preocupações com as proteções que garantam a
condição de dignidade desses indivíduos que, por muitas vezes, por exemplo, são
                                                            
265 Um imigrante em condição de irregularidade pode, naturalmente, cometer ilícito penal no país,

sem qualquer correlação com o seu status migratório. Nesses casos, contudo, o crime cometido não
diz respeito à condição jurídica de imigrante indocumentado, pelo que não se relaciona com o
objeto aqui proposto.

158
 

 
 

alvos de esquemas de tráfico de pessoas. Parece pertinente, assim, a queixa de


ROSITA MILESI sobre a pena de deportação na legislação brasileira:

“Uma legislação que apresenta tais características e, sobretudo, o


extremo rigor com que esta é aplicada, merece ser revista não
apenas em aspectos ou disposições isoladas. Comporta que se
repense a convivência da sociedade como um espaço de horizontes
universais, onde vivem seres humanos portadores de valores, de
contributos, de riquezas e de dignidade que ultrapassam as
fronteiras da nacionalidade e dos limites geográficos de um país”266.

Não se pretende, por óbvio, que não existam sanções migratórias. A crítica
que se faz, todavia, é ao tratamento exclusivamente repressor, aliado aos já
analisados requisitos para a obtenção de vistos. Não há dúvida que o ato de
desobedecer a ordem jurídica e adentrar um país sem a devida autorização é grave.
É violada a soberania nacional, em conduta atentatória à própria autonomia do
Estado em estabelecer normas de controle migratório. A sanção, desta maneira,
existe como resposta à violação e em favor da tentativa de recomposição da ordem
estabelecida. É a realidade coercitiva do Direito, reconhecida por EDGAR DE
GODÓI DA MATA MACHADO, em clássica lição:

“Negar a presença concreta da coerção na ordem jurídica seria


assumir atitude simplesmente utópica. A coerção é fruto das
condições existenciais do homem. (...) Sempre existirão na
sociedade aqueles protervi et ad vicia proni, cujas ameaças devem ser
coibidas pela força e pelo medo”267.

Quanto às sanções que afetem possíveis direitos trabalhistas, o Estatuto do


Estrangeiro é omisso (em verdadeiro silêncio eloquente), não prevendo as
consequências da irregularidade migratória para contratos de emprego

                                                            
266 MILESI, Rosita. O Estatuto do Estrangeiro e as medidas compulsórias de deportação, expulsão

e extradição. Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios. Maio de 2004. Disponível em


http://www.csem.org.br/?page_id=115. Acesso de 10 de fevereiro de 2010.
267 MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Direito e coerção. São Paulo: Unimarco, 1999, p. 244.

159
 

 
 

eventualmente celebrados pelo imigrante. Frise-se, assim, que as sanções que a legislação
migratória prevê são adstritas à questão da condição da própria imigração, não se impondo a
privação de direitos trabalhistas como forma de punição à irregularidade migratória, ou mesmo
como política de inibição.

Em tese, seria possível conceber-se a negativa da proteção trabalhista como


forma de sancionar indivíduo em condição de irregularidade, pela ilegalidade de sua
conduta ao adentrar no país. Da mesma forma, poder-se-ia reconhecer a penalização
por esta via como tentativa de coibir a prática da imigração ilegal, vez que o
imigrante deixa de gozar dos direitos trabalhistas que lhe seriam concedidos em
situação de regularidade. Tal posição, contudo, há de ser criticada em razão da
pertinência sistêmica da sanção pretendida, considerando, sobretudo, as linhas
estruturantes de proteção cunhadas pelo Direito do Trabalho.

Quanto às diretrizes fundamentais do Direito do Trabalho, não são


necessárias delongas, bastando rememorar a prevalência, no ordenamento jurídico
brasileiro, de princípios como o do valor social do trabalho (art. 1º, IV da
Constituição de 1988), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição
de 1988) e da igualdade (art. 3º, IV e art. 5º, caput da Constituição de 1988). Tais
postulados devem orientar o tratamento jurídico do trabalho em si, exercido no
território nacional, a despeito de irregularidades formais.

Por isso também é válida a crítica quanto à negativa de efeitos trabalhistas


próprios ao contrato de emprego eventualmente celebrado por imigrante não
documentado. A disciplina jurídica do trabalho efetivamente prestado distingue-se
daquela destinada à entrada e permanência de estrangeiros no país. Irregularidades
que atinjam a condição do imigrante serão sancionadas com as categorias
normativas da legislação aplicável (no caso, a Lei n. 6.815/80, Estatuto do
Estrangeiro).

160
 

 
 

Ou seja, a ausência de proteção justrabalhista ao trabalhador imigrante


indocumentado, como forma de sanção à sua condição subjetiva de irregularidade,
não parece condizente com os preceitos do ordenamento jurídico brasileiro e com o
caminhar de maturação dos marcos de proteção ao trabalho humano na perspectiva
dos Direitos Humanos e do Direito Internacional do Trabalho. Por isso, negar ao
trabalhador os direitos trabalhistas decorrentes da relação de emprego firmada
(mesmo que não de forma expressa e regular) como forma de sancionar um ilícito
da ordem do Direito Internacional, não parece razoável.

Isso não significa, repita-se, uma negativa à função repressiva do Direito


devido à violação de seus postulados. Tampouco há um sentido de condescendência
ou intento enaltecedor da imigração irregular. Por óbvio, o equilíbrio e a pertinência
das sanções são fundamentais para que se alcancem padrões justos e humanizados
de tratamento a indivíduos em alguma condição de vulnerabilidade.

No entanto, é fundamental tomar a questão em sua dimensão humana,


analisando-a de forma diuturna e não alarmista, sempre nos parâmetros jurídicos
que a devem formatar.

Ainda no aspecto trabalhista, resgate-se a notícia de que o Projeto de Lei


5.655/2009, do Novo Estatuto do Estatuto do Estrangeiro, a tramitar no Congresso
Nacional, inclui, em seu art. 5º, parágrafo único, a seguinte disposição:

“Parágrafo único. São estendidos aos estrangeiros,


independentemente de sua situação migratória, observado o
disposto no art. 5º, caput, da Constituição:
I - o acesso à educação e à saúde;
II - os benefícios decorrentes do cumprimento das obrigações
legais e contratuais concernentes à relação de trabalho, a
cargo do empregador; e

161
 

 
 

III - as medidas de proteção às vítimas e às testemunhas do tráfico


de pessoas e do tráfico de migrantes”268.

Assim, percebe-se que a proposta da nova Lei acolhe a diretiva da


promoção de Direitos Humanos também aos imigrantes em condição de
irregularidade, não lhes privando de padrões mínimos de proteção como forma de
punição por um ilícito migratório. Por outro lado, mantém as punições para a
prática de irregularidades no plano das migrações, como a deportação.

Na mesma linha estabelece a nova proposta de Política Nacional de Imigração e


Proteção ao Trabalhador Migrante, aprovada na IV reunião ordinária do Conselho, em
fevereiro de 2010. A proposta que, atualmente, está sob consulta pública, tem por
princípio que “todo migrante e sua família, independentemente de sua condição
migratória, tem direito ao acesso (...), sob responsabilidade do empregador, aos
benefícios decorrentes do cumprimento das obrigações legais e contratuais
concernentes à relação de trabalho”269.

Note-se, também, que a aplicação de uma sanção trabalhista por conta de


um ilícito migratório redundaria, ainda, em um esdrúxulo enriquecimento sem causa
por parte do empregador, que se veria premiado com a isenção da responsabilidade
pelo pagamento das verbas trabalhistas a que estaria obrigado, caso restasse
configurada uma relação de emprego. Nessa perspectiva, uma possível função
inibidora da prática da imigração ilegal poderia transmutar-se em incentivo à
contratações irregulares e práticas trabalhistas espúrias.

                                                            
268 O Projeto de Lei 5.655/2009 está disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/

674695.pdf. Acesso em 05 de abril de 2010.


269 Cf. http://www.mte.gov.br/politicamigrante/imigracao_proposta.pdf. Acesso em 23 de julho

de 2010.

162
 

 
 

Perceba-se, ainda, que o trabalho prestado por um imigrante — mesmo que


irregularmente — gera riquezas para o país, contribuindo para a criação e circulação
de bens. Não parece razoável que um Estado pretenda ignorar tal situação e punir o
imigrante com a privação de direitos trabalhistas reconhecidos aos nacionais e aos
imigrantes regulares, sob pena de o próprio Estado passar a locupletar-se
ilicitamente do trabalho prestado.

Assim, do ponto de vista das sanções, o caminho do equilíbrio entre


controle e fiscalização de fronteiras, acessos e estadas com a garantia de um patamar
mínimo de direitos atinentes à dignidade humana se revela como a inclinação das
reformas legislativas e políticas da matéria no Brasil. Diante dos desenvolvimentos
normativos constitucionais e internacionais, esta parece ser uma saída que apazigua
o exercício da soberania nacional com o valor social do trabalho e a proteção
universal da pessoa humana.

16.2. OS PRINCIPAIS GRUPOS DE TRABALHADORES IMIGRANTES EM SITUAÇÃO


IRREGULAR NO BRASIL

Uma fotografia estatística precisa dos grupos de imigrantes que se


encontram irregularmente no Brasil é algo de obtenção quase impossível, dada a
própria situação de clandestinidade em que o processo migratório se desenvolve. Na
percepção de GABRIELA NEVES DELGADO e RAQUEL PORTUGAL NUNES há uma
situação de “invisibilidade pública”270 do imigrante não documentado, que, pelo
temor da deportação, perde sua capacidade de fazer-se socialmente visto. Isso,
obviamente, dificulta o mapeamento exato destes grupos em suas dimensões,

                                                            
270 DELGADO, Gabriela Neves, NUNES, Raquel Portugal. Subterrâneos da imigração. Estado de

Minas, Belo Horizonte, 19 de setembro de 2008. Caderno opinião, p. 11.

163
 

 
 

localização e condições de vida, além de alimentar disparidades entre estudos e


projeções de diversas instituições.

Algumas iniciativas, contudo, como as mencionadas anistias do Governo


Federal para imigrantes em situação irregular (a última de 2009), permitem uma
visão da composição dos principais grupos de imigrantes no Brasil atual. Como dito,
cerca de 43 mil estrangeiros regularizaram sua situação migratória com a anistia de
2009. Os bolivianos são maioria absoluta (17 mil), seguidos de chineses (5,5 mil),
peruanos (4,5 mil), paraguaios (4,1 mil) e coreanos (1,1 mil)271.

Enquanto reveladores da composição étnica dos fluxos migratórios


irregulares, os dados da anistia parecem não demonstrar a real dimensão dos
volumes destes imigrantes, vez que apenas uma parcela dos ditos imigrantes
indocumentados busca regularização. Quanto a este contingente total, não se tem
notícia de dado estatístico confiável, dado que os estudos fiam-se em comunidades e
regiões específicas, como é o caso das comunidades de imigrantes irregulares latino-
americanos em São Paulo.

Como mencionado no capítulo anterior, a imigração de latino-americanos é


movida pela proximidade geográfica, pelo destaque do Brasil na conjuntura
socioeconômica regional e pelas próprias redes sociais272 que se formam após a
chegada dos primeiros grupos no país. Neste contexto, ganham especial destaque os
bolivianos na cidade de São Paulo, que hoje constituem a maior comunidade de

                                                            
271 Dados do Ministério da Justiça, disponíveis em http://portal.mj.gov.br/estrangeiros/data/Pages

/MJA5F550A5ITEMIDBA915BD3AC384F681A1AC4AF88BE2D0PTBRIE.htm. Acesso em 20
de dezembro de 2009.
272 Sobre a influência das redes sociais nos processos migratórios internacionais, veja-se estudo de

WILSON FUSCO sobre a ida de emigrantes de Governador Valadares – MG para os Estados


Unidos, em que o autor conclui pela relevância das redes familiares, por exemplo, na decisão de
migrar. FUSCO, Wilson. Redes sociais na migração internacional: o caso de Governador Valadares.
Textos Nepo, Núcleo de Estudos de População/UNICAMP, Campinas, v. 40, p. 1-96, 2002.

164
 

 
 

imigrantes irregulares do país, exposta, por vezes, a situações de extrema gravidade


do ponto de vista das condições de vida e exploração de trabalho a que se sujeita.

Para que se tenha uma dimensão numérica da situação, dados do Relatório


Final de Comissão Parlamentar de Inquérito instaurada na Câmara Municipal de São
Paulo, no ano de 2005 (CPI 0024/2005), para apurar a exploração de trabalho em
condição análoga à de escravo nas empresas da capital paulista, apresentam as
seguintes estatísticas quando aos bolivianos:

“Existem apenas estimativas sobre o número de bolivianos em São


Paulo, e sobre quantos deles estariam trabalhando em condições
indignas em oficinas de costura. O Consulado fala em 50 mil
indocumentados; a Pastoral do Migrante, em 70 ou 80 mil; o
Ministério Público Federal estima que haja 200 mil bolivianos em
São Paulo, entre regulares e irregulares. O Sindicato das Costureiras
destaca que, em 1998, havia 140 mil costureiros devidamente
registrados trabalhando na cidade; em 2005, esse número caiu para
70 mil”273.

Seja qual for o dado prevalente, o fato é que a presença de bolivianos na


cidade é expressiva e merecedora de atenção. O tema das graves condições a que
são submetidos esses bolivianos no trabalho prestado na indústria têxtil paulistana
será retomado adiante, sob o viés da análise do trabalho em condição análoga à de
escravo.

                                                            
273 CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Relatório Final da CPI 0024/2005. São Paulo, 2005.

Disponível em http://www.camara.sp.gov.br/cpi_TrabalhoEscravo/001.htm. Acesso de 12 de


agosto de 2009.

165
 

 
 

17. TRÁFICO DE PESSOAS E TRÁFICO DE IMIGRANTES NO CONTEXTO DAS


IMIGRAÇÕES IRREGULARES

O vocábulo “imigração”, dentro de sua neutralidade, pode ocultar práticas


extremamente nocivas e contrárias ao Direito, como, por exemplo, as figuras do
tráfico de pessoas e do tráfico de migrantes.

Imigrantes em condição de irregularidade, não raro, são expostos a


esquemas que os submetem a situações verdadeiramente desumanas no contexto da
entrada ilegal em algum país. Passa-se, então, do ato voluntário de migrar para
situações repudiáveis de facilitação de movimentação irregular de pessoas, além da
cooptação enganosa de mão de obra, a ser sujeita a uma superexploração de
trabalho, com agravantes recorrentes como a exploração sexual.

Em virtude dessa condição muitas vezes associada ao fenômeno da


imigração em condição de irregularidade — situação esta que ocorre também no
Brasil —, há que se obrigatoriamente abordar o tema do tráfico de pessoas e de
migrantes. Trata-se, em verdade, de um interessante prisma para o estudo das
chamadas imigrações irregulares para fins de trabalho, em um enfoque que revela
aspectos e conexões que podem restar ocultadas no estudo isolado dos fluxos
migratórios.

De forma resumida, são essencialmente duas figuras a serem aqui avaliadas,


por vezes confundidas em relação ao seu conteúdo: a do tráfico de pessoas
(trafficking em inglês e trata em espanhol) e a do tráfico de imigrantes (smuggling em
inglês e tráfico em espanhol, também chamado contrabando de pessoas ou
migrantes). Ambas as figuras podem ocorrer no contexto das chamadas imigrações
em condição de irregularidade, alterando-lhes profundamente a substância e
respostas do Direito.

166
 

 
 

O conceito de tráfico de pessoas é objeto de intensa controvérsia doutrinária,


como informado por BÁRBARA PINCOWSCA CARDOSO CAMPOS, ao mencionar que
“até pouco tempo, o único consenso entre aqueles que discutiam o tráfico de
pessoas era de que não havia consenso sobre a sua definição”274. Isso porque o tema
se emaranhava com outras múltiplas questões, como migrações internacionais e
figuras penais, como cárcere privado, exploração sexual e práticas análogas à
escravidão, além de uma dificuldade quanto à precisão técnica da expressão.

Para evitar maiores delongas nesta discussão (o que se afastaria do objeto


da presente pesquisa) apresenta-se, então, aquela que é uma definição de tráfico de
pessoas aceita de maneira mais ampla nos foros de discussão do tema, proposta pelo
Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em
Especial Mulheres e Crianças, adotado em Nova York em 15 de novembro de 2000.
Prescreve o art. 3º do Protocolo:

“A expressão ‘tráfico de pessoas’ significa o recrutamento, o


transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de
pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas
de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade
ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de
pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma
pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A
exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de
outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou
serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a
servidão ou a remoção de órgãos”275.

                                                            
274 CAMPOS, Bárbara Pincowsca Cardoso. O tráfico de pessoas à luz da normativa internacional de

proteção dos Direitos Humanos. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Fortaleza, ano 7, v.
7, n. 7, p. 37-50, 2006/2007, p. 37.
275 O Protocolo foi promulgado no Brasil pelo Decreto 5.017/2004.

167
 

 
 

Vê-se, daí, que a definição legal de tráfico de pessoas está associada a


manifestações viciadas de vontade por parte da vítima do tráfico, seja por meio de
coação, uso da força, situação de vulnerabilidade, etc., para fins de exploração de
trabalho em condições extremas (ou ainda exploração sexual ou remoção de
órgãos). De modo que, para alguns, como DENISE PASELLO VALENTE NOVAIS, não
se trata sequer de uma situação de imigração propriamente dita, vez que o ato
volitivo necessário à imigração é completamente suprimido276. Por tudo, trata-se de
uma figura de extrema gravidade, implicando em severa violação aos Direitos
Humanos.

Já o conceito específico de tráfico de migrantes (ou contrabando de pessoas ou


migrantes) é dado pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra
o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Combate ao Tráfico de Migrantes
por Via Terrestre, Marítima e Aérea, que estabelece, em seu art. 3º, ser o tráfico de
migrantes “a promoção, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, um
benefício financeiro ou outro benefício material, da entrada ilegal de uma pessoa
num Estado Parte do qual essa pessoa não seja nacional ou residente permanente”.

Aqui, o conceito mantém-se conexo ao da imigração, vez que é por vontade


da vítima do tráfico de migrantes que a entrada irregular em um país é promovida
pelo sujeito ativo do tráfico. Trata-se, assim, de uma violação menos grave do que a
promovida pelo tráfico de pessoas, atingindo somente a legislação migratória, que
ocorre na maioria dos casos de imigração irregular, considerando que os imigrantes
não documentados quase sempre contam com a ajuda de um atravessador.

A diferença básica das duas figuras — tráfico de pessoas e tráfico de


migrantes — é a questão do consentimento. No tráfico de migrantes (ou
                                                            
276 NOVAIS, Denise Pasello Valente. Tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho. Tese de

doutoramento. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008, p. 72.

168
 

 
 

contrabando), “há, essencialmente, o consentimento da vítima, que pactua com o


intermediário o transporte até o destino pretendido”277, como leciona DENISE
PASELLO VALENTE NOVAIS. A mesma autora, sintetizando as similitudes e
diferenças entre as duas figuras — tráfico de migrantes e tráfico de pessoas —
apresenta o seguinte resumo esquemático278:

Perceba-se, pelos conceitos apresentados, que nem todo imigrante


indocumentado é sujeito a esquemas de tráfico, seja de pessoas ou migrantes. No
caso do tráfico de pessoas, evidentemente mais grave, o imigrante passa de
protagonista de um descumprimento de legislação migratória a vítima do tráfico
internacional, merecendo, em tal condição, toda a proteção jurídica cabível do país
de destino.

De toda sorte, ambos os Protocolos internacionais referentes ao tráfico de


pessoas e de migrantes prevêem medidas de proteção às vítimas de tráfico e a não

                                                            
277 NOVAIS, Tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho, cit., p. 46.
278 NOVAIS, Tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho, cit., p. 70.

169
 

 
 

criminalização da entrada irregular destes indivíduos nos países para os quais se


destina o tráfico279.

A notícia quanto à questão do tráfico de pessoas ou tráfico de migrantes é


dada, aqui, como complemento necessário ao estudo das migrações irregulares
propriamente ditas (que, para alguns, pode ser considerada gênero, que pode ser
materializado pelas espécies tráfico de pessoas e tráfico de migrantes280), vez que no
plano fático, todas essas situações podem se intercruzar.

Tendo em vista a imigração irregular para fins de trabalho propriamente


dita, podem-se verificar situação tanto de tráfico de pessoas quanto de tráfico de
imigrantes. Caso o trabalhador seja, de alguma maneira, coagido a entrar
irregularmente em outro país — o que pode ocorrer com enganos induzidos com
base na condição de vulnerabilidade socioeconômica do trabalhador — e no seu
local de destino trabalhe em condição análoga à de escravo, se estará diante da figura
do tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho. Já no caso de um
trabalhador que busca o auxílio de terceiros, de maneira livre e mediante
recompensa, para adentrar irregularmente em um país e nele trabalhar, trata-se de
situação de tráfico de migrante.

No Brasil, ocorrem as duas situações, como indicam PAULO ILLES et al., ao


tratarem das comunidades bolivianas na cidade de São Paulo, apontando que

                                                            
279 Assim estabelecem, por exemplo, os arts. 5 e 16 do Protocolo referente ao tráfico de migrantes

(no Brasil, Decreto 5.016/2004) e os arts. 6, 7 e 8 do Protocolo referente ao tráfico de pessoas (no
Brasil, Decreto 5.017/2004).
280 Nesse sentido, EDUARDO GERONIMI: “Cuando esta falta de correlación entre los derechos de

salir de un país y de ingresar a otro se produce en un marco en el que coexisten fuertes presiones
emigratorias, importantes factores de atracción en otros Estados y donde las oportunidades para el
ingreso legal a los mismos son muy limitadas, restringidas o aun imposibles, los flujos migratorios
se canalizarán hacia la migración irregular: el migrante intentará un ingreso clandestino, ya sea por
sus propios medios o haciendo recurso a los mecanismos de tráfico o de trata de personas”.
GERONIMI, Aspectos jurídicos del tráfico y la trata de trabajadores migrantes, cit., p. 1.

170
 

 
 

“existem situações nas quais as pessoas buscam alguém para facilitar sua travessia ao
Brasil (tráfico de migrantes) ou são persuadidas a migrar com base em falsas
propostas feitas por aliciadores (tráfico de pessoas)”281.

Há que se mencionar, ainda, avanços notáveis promovidos pelo Projeto de


Lei de um novo Estatuto do Estrangeiro na matéria. Em primeiro lugar, o Projeto
de Lei 5.655/2009, que tramita no Congresso Nacional, se posiciona de maneira
sensível aos reclamos de proteção das vítimas de tráfico — que, como visto, passam
da condição de sujeito ativo de irregularidade para vítima de tráfico —, concedendo-
lhes permissão para residência e isenção de sanções como, por exemplo, a
deportação, nos termos do art. 42 do Projeto:

“Art. 42. O Ministério da Justiça poderá conceder residência


temporária ao estrangeiro, vítima de tráfico de pessoas,
independentemente de sua situação migratória.
(...)
§ 5º A vítima do tráfico de pessoas, em situação migratória
irregular, não será responsabilizada pelas infrações administrativas
previstas nesta Lei, nem será deportada ou repatriada”282.

Além disso, o Projeto veicula a proposta de tipificação penal do crime de


promoção, intermediação ou facilitação da entrada irregular de estrangeiros, figura
ligada ao chamado tráfico de migrantes, propondo, nesse sentido, a inclusão do art.
149-A ao Código Penal Brasileiro, com a seguinte redação:

“Art. 149-A. Promover, intermediar ou facilitar a entrada irregular


de estrangeiro ou viabilizar sua estada no território nacional, com a
finalidade de auferir, direta ou indiretamente, vantagem indevida.
Pena: reclusão de dois a cinco anos, e multa”.

                                                            
281 ILLES, Paulo, TIMÓTEO, Gabrielle Louise Soares, FIORUCCI, Elaine da Silva. Tráfico de

pessoas para fins de exploração do trabalho na cidade de São Paulo. Cadernos Pagu (UNICAMP),
Campinas, n. 31, p. 199-217, jul./dez. 2008, p. 210.
282 Projeto de Lei n. 5655/2009 disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?

id=443102.

171
 

 
 

Nota-se, por tudo, que a existência de situações de tráfico de pessoas e


migrantes referenda a mudança da tônica do discurso exclusivamente repressor das
imigrações irregulares, fazendo com que os trabalhadores estrangeiros não
documentados deixem de ser vistos pelo Direito como meros violadores da
normativa migratória, mas como vítimas de uma cruel indústria que os ilude e se
aproveita de sua condição de vulnerabilidade.

18. O TRABALHO PRESTADO POR IMIGRANTES EM CONDIÇÃO DE


IRREGULARIDADE

Feitas essas breves considerações sobre a forma como se desenvolveram os


fluxos migratórios irregulares envolvendo trabalhadores estrangeiros que se
destinam ao Brasil, chega-se, então, ao tema do trabalho por eles prestado. Uma vez
em território nacional, esses indivíduos estabelecem relações jurídicas que têm por
objeto a prestação de trabalho, entabulando, não raro, relações empregatícias.

Note-se que os imigrantes não documentados podem estabelecer no Brasil


diversas relações centradas na prestação de trabalho humano, que não as
empregatícias. Uma vez, entretanto, que o presente estudo se dedica à compreensão
da condição dos imigrantes diante do Direito do Trabalho pátrio — que,
sabidamente, se constrói em torno da relação empregatícia —, esse será o foco da
reflexão, a questionar sempre a proteção justrabalhista dos imigrantes empregados.

Há que se ter sempre presente, contudo, a lição de MARTHA HALFELD


FURTADO DE MENDONÇA SCHMIDT, que ressalta “o caráter de vanguarda do
Direito Internacional do Trabalho, que dispõe sobre obrigações que visam a

172
 

 
 

proteção não somente do empregado, mas do trabalhador em geral”283, o que


valeria, por exemplo, para os instrumentos internacionais referentes à não
discriminação.

Trata-se de uma sinalização crítica no sentido da ampliação da proteção


trabalhista para outras relações, em linha com as preocupações repetidas nos
estudos e debates no âmbito do Direito do Trabalho. Discute-se, sabidamente, o
presente e o futuro das relações de emprego no Brasil e no mundo, face às
transformações dos modelos produtivos vigentes e à acidez do capitalismo do
tempo presente. Isso porque a densa malha de proteção à relação de emprego,
sobretudo nas últimas décadas do século XX, enfrentou problemas graves de
efetividade e alcance social. É o que registra MARCIO POCHMANN:

“Ao se reconhecer que o emprego assalariado formal representa o


que de melhor o capitalismo brasileiro tem constituído para sua
classe trabalhadora, pois vem acompanhado de um conjunto de
normas de proteção social e trabalhista, conclui-se que sua redução
absoluta e relativa nos anos 90 vem acompanhada do aumento de
vagas assalariadas sem registro e de ocupações não-assalariadas,
implicando aumento considerável da precarização das condições e
relações de trabalho”284.

Pleiteia-se, nesse quadro, que as proteções trabalhistas atinjam outras


relações de trabalho que não somente as de emprego (ou mesmo que se alargue a
visão do que é a relação de emprego, para abarcar outras modalidades de contrato

                                                            
283 SCHMIDT, Martha Halfeld Furtado de Mendonça. Breves anotações sobre as Convenções

fundamentais da OIT. In LAGE, Émerson José Alves, LOPES, Mônica Sette. O Direito do Trabalho e
o Direito Internacional: questões relevantes, homenagem ao professor Osiris Rocha. São Paulo: LTr,
2005, p. 112.
284 POCHMANN, Marcio. O emprego na globalização: a nova divisão internacional do trabalho e os

caminhos que o Brasil escolheu. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 98.

173
 

 
 

de trabalho em seu bojo) como forma de universalizar a proteção à pessoa


humana285.

A despeito dessa tendência, como dito, o Direito do Trabalho brasileiro


ainda é vinculado organicamente à relação de emprego. Desse modo, resta
compreender se a condição de irregularidade migratória afetará de algum modo os
direitos resultantes das relações de emprego das quais são partes esses indivíduos.
Para tanto, há que se questionar se os efeitos dos contratos de emprego serão, de
alguma forma, afetados, avaliando a situação sob o prisma da teoria das nulidades,
em perspectiva ampla, e mais adiante sob o enfoque da teoria especial que
desenvolveu o Direito do Trabalho para disciplinar a nulidade de seus contratos em
situações específicas.

18.1. NULIDADES EM NEGÓCIOS JURÍDICOS

A multiplicidade dos fatos e condicionantes que circundam a celebração de


contratos enleva o estudo da teoria das nulidades a um grau de notável distinção.
Isso porque os elementos de existência e validade jurídica dos acordos são
desafiados a todo tempo por uma infinita variedade de condições que o Direito
entende não admissíveis. E, face a uma violação (como, em princípio, a condição de
irregularidade migratória), a questão central da aplicação da teoria das nulidades será
sempre a dos efeitos gerados pelo negócio jurídico viciado.

                                                            
285 A ideia da ampliação da incidência de regulação trabalhista para outras relações de trabalho que

não somente a relação de emprego é tratada por GABRIELA NEVES DELGADO, que defende uma
“regulamentação de toda e qualquer relação de trabalho que se demonstre digna, por meio da
universalização da proteção direcionada pelo Direito do Trabalho”. Cf. DELGADO, Gabriela
Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006, p. 216. Trata-se de tema de extrema
complexidade, que transborda o objeto da pesquisa aqui proposta, ficando, tão somente, o alerta de
uma realidade já percebida.

174
 

 
 

À semelhança da importância, a dificuldade da teorização sobre as nulidades


dos contratos é enorme. Dada a falta de exatidão nas definições centrais do tema —
como, por exemplo, a aferição do que é absoluto e do que é relativo — o dissenso é
companhia constante do estudioso. A aridez decorre, também, de diferentes
matrizes de categorização e talvez, até mesmo, de um certo preciosismo conceitual
dos autores em relação aos seus pressupostos teóricos286.

Também no Direito do Trabalho a teoria das nulidades tem lugar


destacado, diante da relevância social dos contratos de emprego, além da complexa
dinâmica do universo das relações de emprego na sociedade. Sobreleva-se, ainda
mais, tal relevância do reconhecimento e tutela jurídica de eventuais vícios, se
visualizados os contratos de emprego no contexto da lógica capitalista de produção
e considerada, a todo tempo, não só a assimetria típica destas relações, mas o
influxo da necessidade premente de uma das partes contratantes — o empregado.
Isso porque, no mundo do trabalho, as nulidades são recorrentemente derivadas da
própria condição de hipossuficiência do trabalhador e da voracidade do capital.

Assim, as características mais elementares das relações empregatícias


também revelam que o Direito do Trabalho requererá uma matriz teórica própria
em relação às nulidades. A maturação de uma teoria justrabalhista das nulidades
assume (ou deve assumir) as tensões da realidade do trabalho no sistema econômico
e social de seu tempo, desde a compreensão do conflito capital versus trabalho

                                                            
286 Nesse sentido, o registro de VALLE FERREIRA: “São por demais conhecidos os embaraços que

se apresentam a um estudo mais sério das nulidades, e parece bem certo que tais dificuldades se
agravam em conseqüência da opinião divergente dos autores. Êstes, em seus estudos, além de
variarem na linguagem e na inteligência dos textos que examinam, quase sempre se prendem a fatos
de outros tempos, ou a circunstâncias de outros lugares. Assim, por exemplo, não podiam afirmar o
mesmo pensamento, nem chegar a idênticas conclusões, autores que comentassem a invalidade dos
atos jurídicos à vista dos textos romanos, à margem dos códigos francês e alemão, ou afinal da nova
lei civil italiana”. FERREIRA, Valle. Subsídios para o estudo das nulidades. Revista da Faculdade de
Direito da UFMG, Belo Horizonte, ano XIV, n. 3 (nova fase), p. 29-38, out. 1963, p. 29.

175
 

 
 

subjacente, até o enquadramento em um sistema axiológico e jurídico muito


peculiar.

O Direito do Trabalho desafia, portanto, a clássica versão civilista sobre a


teoria das nulidades com um problema fundamental: qual bem deve a ordem
jurídica tutelar prioritariamente no reconhecimento de uma nulidade e na prescrição
da correspondente sanção? E esta é uma pergunta que se coloca de maneira
implacável na situação do trabalho prestado em regime empregatício por imigrante
indocumentado.

A não observância de preceitos legais na celebração de negócios jurídicos


merecerá, decerto, sanção, decorrente do reconhecimento da invalidade do ato. Mas,
como alerta VALLE FERREIRA, tal conclusão pode ser abrandada por uma questão
de oportunidade e de utilidade prática, a compreender os interesses humanos em
conflito e a importância das normas contrariadas287. É justamente o que fará o
Direito do Trabalho em sua especialização no campo das nulidades.

Com efeito, no estudo da condição do trabalhador imigrante irregular, o


tema das nulidades é, verdadeiramente, o centro duro da discussão jurídica acerca
dos efeitos trabalhistas decorrentes das relações jurídicas entabuladas por esses
indivíduos. Daí ser fundamental a compreensão crítica da teoria clássica das
nulidades, de raiz civilista, e uma visita cuidadosa às bases de uma categorização
própria do Direito do Trabalho na matéria, para, enfim, sustentar as respostas
quanto ao tratamento a ser dispensado aos trabalhadores imigrantes
indocumentados.

                                                            
287 FERREIRA, Subsídios para o estudo das nulidades, Revista da Faculdade de Direito da UFMG, cit.,

p. 30.

176
 

 
 

18.2. A TEORIA DAS NULIDADES NO DIREITO CIVIL

Para existirem validamente e gerarem todos os seus efeitos de forma


consentânea com o Direto, conforme as clássicas lições do Direito Civil e o art. 104
do Código Civil brasileiro, os negócios jurídicos têm de contar com agente capaz,
objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa
em lei. Viciado algum destes elementos, responde o Direito com um sistema lógico-
normativo de nulidades. Na lição de AROLDO PLÍNIO GONÇALVES, “através da
nulidade o direito intenta, justamente, restabelecer o status quo ante, diante da
irregularidade do ato perante a norma, reparando sua violação”288.

Interessa para esta pesquisa, mais do que uma sistematização da teoria


civilista das invalidades do negócio jurídico (que implicaria incursões, inclusive, nos
planos da existência e da eficácia), a análise de traços específicos das nulidades no
campo do Direito Civil, sobretudo em relação ao reconhecimento ou não de efeitos
decorrentes de negócios jurídicos maculados com variados tipos de vício. Isto com
vistas a promover um cotejo crítico com a teoria trabalhista das nulidades e verificar
como se fará sua aplicação quanto ao trabalho prestado por imigrantes
indocumentados.

Os negócios viciados, em relação à sua validade (ou seja, à perfeição de seus


elementos constitutivos), são comumente classificados como negócios nulos (ou
absolutamente nulos) ou negócios anuláveis (ou relativamente nulos). A respeito dos
negócios nulos, ensina ORLANDO GOMES:

“Nulidade é a sanção por meio da qual a lei previne de eficácia o


contrato que se celebra contra preceito perfeito — leges perfectae —
e, notadamente, os que disciplinam os pressupostos e requisitos do
negócio jurídico. O ordenamento jurídico recusa proteção ao

                                                            
288 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Nulidades no processo. Rio de Janeiro: Aide, 1993, p. 13.

177
 

 
 

contrato cujos elementos não correspondem aos que a lei exige


para valer. (...) A nulidade é imediata, absoluta, insanável e
perpétua”289.

Ao pontuar em sua lição a absoluta recusa de proteção por parte do


ordenamento jurídico aos negócios jurídicos absolutamente nulos, ORLANDO
GOMES anuncia que os efeitos destes acordos serão, por certo, juridicamente
repudiados. Nesse sentido, completa ROBERTO DE RUGGIERO:

“A nulidade do ato é a mais grave imperfeição, não lhe permitindo


que produza qualquer dos seus efeitos próprios; o negócio jurídico
é, pelo ordenamento, considerado como se não se tivesse feito e se
alguns efeitos dele resultaram, estes não são efeitos do negócio,
como tal, mas conseqüência dos fatos aos quais foi dada existência
ao concluir o ato nulo”290.

Já a nulidade relativa, ou anulabilidade do negócio jurídico, decorre de


vícios menos graves e, por esta razão, diz ORLANDO GOMES que esta modalidade
de nulidade é “diferida, relativa, sanável e provisória; admite confirmação e se
purifica com o decurso do tempo”291. Vale esclarecer, todavia, que “a anulabilidade
também priva o contrato de seus efeitos, se requerer a invalidação a pessoa a favor
de quem a lei a determinou. O contrato anulável produz efeitos até ser anulado”292.

A causa geradora de uma ou outra categoria de invalidade, via de regra, se


encontra no texto da lei, donde se pode concluir, pela inexistência de uma distinção
conceitual absoluta. O que se tem normalmente é que um negócio, para ser
considerado nulo, viola normas de ordem pública, e para ser tomado como anulável,
contraria norma ditada para proteger a contraparte. Vê-se, então, que a distinção é
muito mais de intensidade do que de essência, o que a torna extremamente tormentosa.
                                                            
289 GOMES, Orlando. Contratos. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 191.
290 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. V. 1. Trad. Paolo Capitanio. Campinas:

Bookseller, 1999, p. 390.


291 GOMES, Contratos, cit., p. 191.
292 GOMES, Contratos, cit., p. 191.

178
 

 
 

Em relação à geração ou não de efeitos dos negócios inválidos, firma-se


também vívida dificuldade. Na distinção clássica, contratos nulos não gerariam
efeitos próprios (ou seja, a nulidade tem efeitos retroativos, efeitos ex tunc) enquanto
contratos anuláveis deixam de gerar efeitos a partir do reconhecimento da causa da
invalidade relativa (isto é, apenas para o futuro, efeitos ex nunc). É o que parece
entender, por exemplo, FRANCISCO AMARAL, ao afirmar que “o negócio jurídico
nulo não produz efeitos próprios” e “o negócio jurídico anulável produz os efeitos
visados até ser anulado”293.

A crítica de TAÍSA MARIA MACENA DE LIMA em relação a tal análise, por


outro lado, é incisiva:

“O [ato] nulo não produz efeitos. Nada mais impreciso, pois ato —
cujo vício de que padece enseja a sanção da nulidade — produz
efeitos. E poderá produzir para todo o sempre, se não houver um
pronunciamento judicial da nulidade. Não é demais salientar que o
Direito não é mera abstração; ao contrário, é antes de tudo
experiência, vivência, fato. Não há, portanto, nulidade de pleno
direito”294.

A existência de efeitos concretos no plano dos fatos acaba, assim, a


desautorizar, por excessivamente formal, a proposição teórica de que negócios nulos
não produziriam efeitos, e que isso os distinguiria dos negócios anuláveis. CÉSAR
FIUZA, por exemplo, analisando a questão da existência de nulidades chamadas de
“pleno direito”, empreende leitura crítica e sistemática da origem romana da teoria
das nulidades e conclui que os atos defeituosos são, em qualquer caso, sempre
anuláveis295.
                                                            
293 AMARAL, Francisco. Direito Civil. 5. ed. São Paulo: Renovar, 2003, p. 542-543.
294 LIMA, Taísa Maria Macena de. Os planos do mundo jurídico e a teoria das nulidades. Revista do

Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, 30 (60), p. 209-219, jul./dez. 1999, p. 217.
295 FIUZA, César. Ensaio crítico acerca da teoria das nulidades. Revista da Faculdade de Direito da

UFPR, Curitiba, v. 32, p. 37-54, 1999, p. 52.

179
 

 
 

Os críticos das formulações clássicas da nulidade concordam que, em


ambos os casos, o que se almeja no Direito Civil é a recuperação do cenário
anterior, com as recomposições devidas e a extirpação dos efeitos reais verificados.
É o que diz, mais uma vez, CÉSAR FIUZA:

“De fato, uma vez anulado o ato, procurar-se-á, sempre que


possível, restabelecer o status quo ante, ou seja, a situação anterior a
ele. (...) O que se almeja, em quaisquer circunstâncias, é a
invalidação do ato e de todos os seus efeitos, desde o momento em
que se o realizou. O que ocorre, porém, é que alguns efeitos não
podem ser anulados, seja por força de lógica, seja por força de
conveniência social, ou pelos dois motivos”296.

O que se pode verificar, no âmbito das relações civis, é que se devem anular
todos os efeitos possíveis, e aqueles que não podem sê-lo têm natureza excepcional.
Precisamente por conta do fato de que, em se tratando relações empregatícias, a
regra geral ser a da impossibilidade de anulação de efeitos pretéritos, é que emerge
uma teoria própria das nulidades trabalhistas.

18.3. A TEORIA TRABALHISTA DAS NULIDADES

A aplicação da teoria civilista das nulidades às relações tuteladas pelo


Direito do Trabalho revelou-se como sendo de grande perversidade. A tentativa de
extirpar todos os efeitos de um negócio jurídico eivado de vício resulta em ataque
direto ao polo hipossuficiente da naturalmente desbalanceada relação empregatícia
(o empregado), suscitando, ainda, conflitos com outros princípios da disciplina
trabalhista.

                                                            
296 FIUZA, Ensaio crítico acerca da teoria das nulidades, Revista da Faculdade de Direito da UFPR, cit.,

p. 53.

180
 

 
 

É dizer, a teoria civilista das nulidades mostrou-se, quando em operação nas


relações de emprego, contrária às premissas da proteção justrabalhista, conforme
aponta JOSÉ AUGUSTO RODRIGUES PINTO:

“O Direito do Trabalho repousa, filosoficamente, sobre o princípio


da proteção do hipossuficiente econômico. Logo, as conseqüências
fulminantes da nulidade absoluta, segundo a concepção civilista,
inclinam-se a romper esse princípio, pois atingirão com muito
maior severidade e probabilidade o interesse do protegido, que é o
empregado”297.

Isso porque, ao negar-se a existência de efeitos decorrentes de um contrato


de emprego viciado em seus elementos de validade, esgarça-se a rede normativa que
deveria proteger o trabalho humano efetivamente prestado sob a égide do contrato.
E mesmo que, reconhecendo-se uma nulidade, sejam feitas restituições que
supostamente reconstituiriam o status quo, como quer o Direito Civil, o fato é que
não se poderia “devolver” ao empregado o trabalho efetivamente prestado.

Lembre-se, ainda, que a forma da contraprestação ao trabalho em regime de


emprego é dada pelas normas do Direito do Trabalho, que implicam em efeitos nem
sempre traduzíveis em prestações pecuniárias passíveis de restituições simples.
Nesse sentido, existem também obrigações específicas, como a da anotação na
Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), que é efeito próprio do contrato
de emprego não sujeito a conversão em pecúnia para restituições posteriores. Daí a
necessidade da formação de uma teoria trabalhista das nulidades.

A notícia dada por ORLANDO GOMES e ELSON GOTTSCHALK, em um


passado não muito distante, é elucidativa daquelas que foram as primeiras linhas de

                                                            
297 PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito Individual do Trabalho. São Paulo: LTr, 2000, p.

188.

181
 

 
 

uma teoria específica face à dureza da regra civilista quando transposta às relações
de emprego:

“Ora, a intensidade da sanção deve variar segundo o fim visado


pela lei. Admitindo o caráter da nulidade como sanção civil, o que
se deve considerar fundamentalmente para determinar a
intensidade da punição é o fim visado pela lei. Afere-se essa
intensidade pela análise dos efeitos jurídicos do ato. Se esses efeitos
são nocivos a toda uma coletividade, e, por isso, a lei que proíbe o
ato é de ordem pública, então, deve-se-lhe recusar eficácia,
totalmente. Caso contrário, não.
Essas considerações (...) encerram o conteúdo de uma tese, uma
simples tentativa de sistematização da teoria das nulidades em
Direito do Trabalho, visto como excesso de rigor na aplicação da
sanção civil é tão prejudicial quanto a sua escassez”298.

A “tentativa de sistematização” de que falam ORLANDO GOMES e ELSON


GOTTSCHALK consolidou-se à luz da multiplicidade dos casos de nulidade nas
complexas relações de emprego nas últimas décadas, o que vem alimentando até
hoje o processo de apuração dos mecanismos de aplicação de uma teoria trabalhista
das nulidades. A própria configuração social da contemporaneidade, sob a regência
preponderante dos interesses econômicos299, engrossa a demanda por uma visão
sempre crítica sobre as nulidades, dado que os empregados, cada vez mais, são
empurrados para as margens da legalidade. E, uma vez expostos a tal condição,
ficam especialmente vulneráveis a situações que podem macular os negócios que
celebram.

                                                            
298 GOMES, Orlando, GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense,

1991, p. 139.
299 É o que alerta JOAQUIM CARLOS SALGADO, conceituando o que denomina Estado poiético: “O

elemento central e essencial do Estado de Direito é postergado, pois o jurídico, o político e o social
são submetidos ao econômico. O Estado poiético não tem em mira a ‘produção social’. Entra em
conflito com a finalidade ética do Estado de Direito, abandonando sua tarefa de realizar os direitos
sociais (saúde, educação, trabalho), violando os direitos adquiridos, implantando a insegurança
jurídica pela manipulação sofística dos conceitos jurídicos através mesmo de juristas com ideologia
política serviente, exercendo o poder em nome de uma facção econômico-financeira”. SALGADO,
Joaquim Carlos. Estado ético e Estado poiético. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas
Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 03-34, abr./jun. 1998, p. 30.

182
 

 
 

A questão da invalidade do contrato de emprego celebrado por imigrante


em condição de irregularidade é uma destas hipóteses a requerer reflexão sobre
incidência da teoria trabalhista das nulidades. A entrada de um estrangeiro no
território nacional em desacordo com as normas aplicáveis implicará na nulidade do
contrato de emprego por ele celebrado? Caso positiva a resposta, deve-se aplicar a
teoria trabalhista das nulidades de forma plena?

Antes, contudo, que se analise mais a fundo em que consiste a teoria


trabalhista das nulidades e as formas de sua aplicação, há que se salientar aquele que
é, tradicionalmente, apontado como um passo prévio à verificação de aplicabilidade
desta teoria especial: a existência da relação de emprego. Nos dizeres de MAURICIO
GODINHO DELGADO:

“A análise dos elementos componentes do contrato empregatício


(em especial de seus elementos essenciais — também chamados
elementos jurídico-formais do contrato) deve fazer-se apenas em
seqüência à análise dos elementos denunciadores da existência da
própria relação de emprego. (...)
Do ponto de vista comparativo, pode-se afirmar que a pesquisa
sobre os elementos fático-jurídicos da relação empregatícia permite
responder à pergunta sobre a existência ou não da relação de
emprego no caso concreto, ao passo que a pesquisa sobre os
elementos jurídico-formais do respectivo contrato empregatício
permite responder à pergunta sobre a validade (ou não) e extensão
de efeitos jurídicos daquela relação configurada entre as partes”300.

Ou seja, do universo das relações que têm por objeto a prestação de


trabalho humano, em princípio, somente estão sujeitas a uma teoria especial das
nulidades as relações de emprego. Isso vale também para os contratos celebrados
por estrangeiros em condição de irregularidade migratória. Assim, prima facie, apenas

                                                            
300 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 6. ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 499.

183
 

 
 

às relações empregatícias por eles entabuladas é que se pode pretender a aplicabilidade


(ou não) da teoria trabalhista das nulidades.

Repita-se, contudo, a reflexão feita no item 18 deste capítulo, no qual se


reporta a necessidade de expedientes de ampliação da proteção ao trabalho, a
abarcar outras relações que não só a empregatícia. A aplicação da teoria trabalhista
das nulidades para as relações de trabalho em sentido amplo faria parte desse
movimento de proteção universal ao trabalho humano. Trata-se, contudo, de uma
centelha lançada para discussão posterior, que excede os limites da presente
pesquisa.

18.3.1. ELEMENTOS JUSTIFICADORES E CONCEITO DA TEORIA ESPECIAL DAS


NULIDADES NO DIREITO DO TRABALHO

A teoria especial das nulidades do contrato de emprego se justifica com


esteio em alguns aspectos essenciais, ligados à própria natureza da relação jurídica
básica de que trata e aos princípios que formam a normativa justrabalhista.

Em primeiro lugar, com recorrência absoluta entre os autores, coloca-se a


questão da impossibilidade de recomposição do status quo, que seria passo
fundamental para a operacionalização da regra civilista no reconhecimento de
invalidades contratuais. A energia humana (física ou mental) despendida por meio
do trabalho é irrecuperável, donde se conclui que o trabalhador não poderá retornar
àquela situação que antecedeu a celebração do contrato viciado.

Oportuna, aqui, a lição de MARIO DE LA CUEVA:

184
 

 
 

“Se se quer fazer a nulidade produzir os seus efeitos normais, as


coisas teriam que se reverter ao estado em que estavam antes da
formação da relação de emprego e à data em que foi iniciada a
prestação de serviços, ou seja, haveria que se devolver ao
trabalhador a sua energia de trabalho, pois, fazer o contrário, seria
fazer a nulidade produzir efeitos retroativos unilaterais, o que não é
aceitável; e, como a devolução dessa energia de trabalho não é
possível, é evidente que não há outro caminho senão fazê-la
somente produzir efeitos para o futuro”301.

Tal conclusão de que é impossível restituir a energia gasta e que a nulidade,


então, só produziria efeitos para o futuro, para alguns autores, como ALICE
MONTEIRO DE BARROS302, torna irrelevante a distinção entre atos nulos e anuláveis
no Direito do Trabalho. Uma vez que este efeito próprio do contrato de emprego
(i.e., a prestação do trabalho) é inevitavelmente concretizado, despicienda seria a
diferenciação do Direito Civil303.

Outro elemento que justifica a especialização trabalhista no campo das


nulidades contratuais é o próprio princípio da vedação ao enriquecimento sem
causa, norte por excelência da disciplina dos atos jurídicos, corolário da própria
noção de justiça. O tomador que explora o trabalho prestado pelo empregado, caso

                                                            
301 DE LA CUEVA, Mario. Derecho Mexicano del Trabajo. Mexico: Porrúa, 1969, t. 1, p. 512. No

original: “Si se quiere hacer producir a la nulidad sus efectos normales, habría que retrotraer las
cosas al estado que tenían antes de la formación de la relación de trabajo y de la fecha en que se
inició la prestación de servicios, o sea, habría que devolver al trabajador su energía de trabajo, pues,
procediendo de otra manera, se hace producir a la nulidad efectos retroactivos unilaterales, lo que
no es admisible; y como la dévolución de esa energía de trabajo no es posible, es evidente que no
queda otro camino que hacerle únicamente producir efectos para el futuro”. Tradução do autor.
302 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007, p. 508.
303 MAURICIO GODINHO DELGADO entende que a diferenciação proposta no Direito Civil poderia

sim ter utilidade no Direito do Trabalho. Leciona: “Nulidade relativa (anulabilidade) ocorre quando
são feridas, no contrato de emprego, normas de proteção ao trabalho concernentes a interesses
estritamente individuais, privatísticos. Caso típico é o da alteração do critério ajustado de
pagamento de salário, em prejuízo ao empregado. Nulidade absoluta ocorre quando são feridas, no
contrato, normas de proteção ao trabalho concernentes a interesses que se sobrepõem aos
meramente individuais, envolvendo uma tutela de interesse público concomitantemente ao
privatístico referenciado. Caso típico de nulidade absoluta é o concernente à assinatura de CTPS”.
DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 514.

185
 

 
 

reconhecida a nulidade do contrato e negados seus efeitos com total retroação,


restaria beneficiado com os frutos econômicos do trabalho feito sem a contrapartida
das proteções justrabalhistas.

Por fim, há que se destacar a essência axiológica da teoria trabalhista das


nulidades, fotografada na refinada percepção de MAURICIO GODINHO DELGADO,
ao apontar como uma das bases de tal construção:

“A convicção de existir uma prevalência incontestável conferida


pela ordem jurídica em seu conjunto (inclusive a Constituição da
República) ao valor-trabalho e aos direitos trabalhistas. Ora, tal
prevalência induz à construção de um critério de salvaguarda desse
valor e dos direitos que lhes são decorrentes quando em confronto
com outros valores e normas que a mesma ordem jurídica também
elege como relevantes. Esse critério de salvaguarda determina a
repercussão de efeitos justrabalhistas ao trabalho efetivamente
cumprido (embora negando tais repercussões a partir do instante
em que a nulidade é reconhecida)”304.

Este parece ser, enfim, o critério efetivamente determinante da necessária


formação de uma teoria trabalhista das nulidades, dado que os outros critérios
admitem a possibilidade da aplicação, em princípio, da teoria civilista por meio de
restituições pecuniárias de caráter meramente indenizatório. O que se propõe a
resolver a situação da materialidade das recomposições do status quo, contudo, é
necessariamente precarizador, por não alcançar todos os efeitos próprios do
contrato de emprego, que são orientados pelos valores e princípios da disciplina
justrabalhista.

Isso significa dizer que, como já salientado, além das restituições


pecuniárias propriamente ditas, o empregado terá também direito ao

                                                            
304 DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 510.

186
 

 
 

reconhecimento de sua relação de emprego com todas as garantias que lhe são
correspondentes (assinatura da CTPS, recolhimentos previdenciários, entre outros).

Calcada nesses elementos, a teoria trabalhista das nulidades, conforme


escólio de MAURICIO GODINHO DELGADO, preceitua que:

“Verificada a nulidade comprometedora do conjunto do contrato,


este, apenas a partir de então, é que deverá ser suprimido do
mundo sócio jurídico (...). O contrato tido como nulo ensejará
todos os efeitos jurídicos até o instante de decretação da
nulidade”305.

Firma-se, então, na contracorrente da teoria civilista das nulidades, um


princípio básico de irretroação do reconhecimento de qualquer nulidade do contrato
de emprego. ORLANDO GOMES e ELSON GOTTSCHALK detalham, em conclusão, o
porquê deste princípio:

“O princípio, segundo o qual o que é nulo nenhum efeito produz,


não pode ser aplicado ao contrato de trabalho. É impossível aceitá-
lo em face da natureza da prestação devida pelo empregado.
Consistindo em força-trabalho, que implica em dispêndio de
energia física e intelectual, é, por isso mesmo, insuscetível de
restituição. (...) Deve-se admitir, em toda extensão, o princípio
segundo o qual trabalho feito é salário ganho. Pouco importa que a
prestação do serviço tenha por fundamento uma convenção nula.
Em Direito do Trabalho, a regra geral há de ser a irretroatividade
das nulidades. O contrato nulo produz efeitos até a data em que for
decretada a nulidade”306.

É dizer, a dinâmica própria da relação empregatícia e o objeto do contrato


pactuado demandaram a formação desse instrumental teórico específico, que será
aplicado a depender do vício existente em cada situação fática.

                                                            
305 DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 510.
306 GOMES, GOTTSCHALK, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 136-137.

187
 

 
 

18.3.2. OS MODOS DE APLICAÇÃO DA TEORIA TRABALHISTA DAS NULIDADES

Precisamente por implicar no reconhecimento da existência de efeitos


jurídicos de um negócio viciado, a teoria trabalhista das nulidades merece manejo
cuidadoso, que leve em consideração o dever de harmonizar os diversos bens e
interesses tutelados pela ordem jurídica, por vezes em choque. Até porque o
princípio prevalente do valor social do trabalho não é uma fórmula absolutamente
elástica e deve ser bem compreendido em seu sentido, que, como alerta GABRIELA
NEVES DELGADO, “revelar-se-á tanto pelo sujeito trabalhador, como pelo
momento histórico vivenciado”307.

Significa dizer que o trabalho será avaliado tanto pela construção ética que
patrocina ao indivíduo trabalhador quanto pela modificação e reflexos que promove
na sociedade. De modo que a aplicação da teoria trabalhista das nulidades, que
incorpora uma diretriz de proteção e positiva valoração jurídica, deve estar reservada
a casos em que a nulidade verificada não comprometa a própria consistência ética
do trabalho realizado. Esta consistência ética estará afastada, por exemplo, nos casos
em que a atividade realizada é um ilícito penal, o que inviabiliza, em princípio, a
consecução de uma finalidade virtuosa e socialmente edificante.

Para que se compreendam, então, os modos possíveis de aplicação da teoria


trabalhista das nulidades, há que se analisar como as nulidades afetam cada um dos
elementos jurídico-formais do contrato de emprego, compreendendo as gradações à
luz da gravidade dos vícios verificados.

Em primeiro lugar, aplica-se plenamente a teoria trabalhista das nulidades nos


casos em que as nulidades afetem a capacidade laborativa das partes e a forma do
                                                            
307 DELGADO, Direito fundamental ao trabalho digno, cit., p. 111.

188
 

 
 

contrato. Nestas situações, facilmente se reconhece que a aplicação da teoria civilista


das nulidades geraria inadmissível prejuízo ao trabalhador. O defeito do negócio
jurídico tem cunho particular, sem graves repercussões de ordem pública que
pudessem justificar a extirpação, in totum, dos efeitos pretéritos da relação jurídica
viciada.

O exemplo clássico na doutrina quanto à aplicação plena da teoria


trabalhista das nulidades por vício de capacidade é a do trabalho prestado por
menor de dezesseis anos, que, por vedação constitucional (art. 7º, XXXIII da
Constituição Federal de 1988) é incapaz para o trabalho (salvo maiores de quatorze
anos, na condição de aprendiz). Para esta situação, “cabe o reconhecimento de todos
os efeitos justrabalhistas do contrato irregularmente celebrado”308, como registra
MAURICIO GODINHO DELGADO.

Quanto à forma do contrato de emprego (que, via de regra, não é solene),


vale o mesmo raciocínio. Aos contratos de emprego que, por expressa disposição
legal, tenham como elemento jurídico-formal a modalidade escrita (como é o caso
do atleta profissional empregado, conforme art. 3º da Lei 6.354/76), aplica-se a
teoria trabalhista das nulidades na hipótese de não observância da forma legal,
reconhecendo-se todos os efeitos do contrato309.

Em relação ao objeto do contrato de emprego é que a discussão sobre a


teoria das nulidades realmente se acirra, vez que é na natureza do trabalho
efetivamente prestado que reside o maior dano potencial aos bens e valores que
devem ser tutelados pelo Direito. É essencialmente quanto ao objeto, portanto, que
se questionará a aplicabilidade plena, restrita ou a inaplicabilidade da teoria trabalhista
das nulidades.
                                                            
308 DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 511.
309 Cf. DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 511.

189
 

 
 

A doutrina trabalhista, neste tema, construiu uma distinção que elucida a


gravidade da nulidade ocorrida, orientando, assim, a incidência de tal ou qual
referencial normativo no trato da invalidade do negócio. Trata-se da separação, já
clássica, entre trabalho proibido e “trabalho”310 ilícito.

Trabalho proibido é aquele cuja irregularidade decorre do desrespeito a


condições especiais de trabalho, vinculadas à pessoa do trabalhador. A lei determina
que, ausentes tais condições, o trabalho será proibido. O objeto em si (atividade
realizada) não se reveste de ilicitude, constituindo atividade regular, permitida pelo
Direito.

Seria o caso, por exemplo, do trabalho noturno realizado por um


adolescente de dezesseis anos de idade. À luz da Constituição Federal de 1988, em
seu art. 7º, XXXIII, é proibido o trabalho noturno para menores de dezoito anos.
Perceba-se, pelo exemplo, que o trabalho em si não é ilícito. No entanto, a condição
etária do sujeito trabalhador torna irregular a prestação dos serviços. Detectado o
vício de objeto (trabalho proibido), aplica-se plenamente a teoria trabalhista das
nulidades, estando proibido o adolescente, a partir da verificação do vício, de
permanecer trabalhando à noite.

Já o chamado “trabalho” ilícito ocorre naquelas situações em que a própria


atividade desempenhada constitui um ato ilícito, tipificado pelo Direito Penal.
Nesses casos, a atividade desempenhada, por não patrocinar o desenvolvimento
ético do indivíduo e não agregar em termos sociais, é integralmente repudiada, não
merecendo a especialidade tuitiva da teoria trabalhista das nulidades.
                                                            
310 As aspas justificam-se pelo legítimo questionamento se as atividades criminosas podem

realmente ser tomadas como trabalho, na acepção que atualmente se dá ao conceito em nossa
matriz cultural. Assim entende MAURICIO GODINHO DELGADO. Vide DELGADO, Curso de
Direito do Trabalho, cit., p. 513.

190
 

 
 

Existem, no domínio da discussão sobre o contrato de emprego com objeto


ilícito, dissensos quanto àquilo que deverá ser efetivamente considerado “trabalho”
ilícito, ensejando a aplicação da teoria civilista de nulidades. Doutrina e
jurisprudência convergem quanto àquelas situações em que a atividade diretamente
desempenhada pelo indivíduo constitui um ilícito penal, caso em que não se cogita a
aplicação da teoria especial do Direito do Trabalho311.

Contudo, nas chamadas atividades conexas — naquelas em que o trabalho


realizado não se vincula diretamente à implementação da infração penal ou naquelas
em que o trabalhador desconhece o fim ilícito das atividades que desempenha —, há
uma tendência que se desenha no sentido de prestigiar-se a proteção ao trabalho por
meio da aplicação da teoria trabalhista das nulidades312.

Um exemplo bastante representativo da controvérsia que se desenha nessas


hipóteses nebulosas de associação ao “trabalho” ilícito é dado por ALICE
MONTEIRO DE BARROS, que discorre sobre atividades não criminosas exercidas em
casas de prostituição, pontuando:

“A atividade exercida pela meretriz em um prostíbulo é ilícita, por


ser contrária aos bons costumes, logo não produz qualquer efeito.
Se, contudo, a função executado no prostíbulo ou em outro local
                                                            
311 Existem trabalhos recentes — em número muito reduzido, frise-se — que apresentam crítica à

inaplicabilidade da teoria trabalhista das nulidades para as hipóteses de “trabalho” ilícito, em


algumas situações. Leciona LUCIANA CAPLAN: “Ao contrário do contrato que conta com objeto
proibido, tal como o prestado pelo menor, e que, portanto, gera alguns efeitos, com a prevalência
da tutela dos interesses do trabalhador, a doutrina entende que o contrato com objeto ilícito não
produz efeito algum. É curiosa a responsabilidade atribuída ao trabalhador pela ilicitude do objeto
do contrato, no âmbito de interpretação do direito do trabalho, de cunho eminentemente
protecionista”. CAPLAN, Luciana. O olimpo jurídico trabalhista e a negativa concreta da dignidade da pessoa
humana dos trabalhadores: o trabalho ilícito visto a partir de uma nova perspectiva. Disponível em
http://www.amatra13.org.br/ arquivos_anexos/artigo_1.doc. Acesso em 27.05.2010.
312 Nesse sentido, vide CECATO, Maria Aurea Baroni, MAIA, Marcela de Almeida. Considerações

acerca da aplicação teoria das nulidades contratuais no direito do trabalho. Revista Prima Facie, João
Pessoa, v. 3, n. 5, p. 39-52, 2004.

191
 

 
 

do mesmo gênero for lícita, a idoneidade do objeto estará presente


e, se aliada aos pressupostos fáticos do art. 3º da CLT, a relação de
emprego configurar-se-á, não obstante a ilicitude da atividade do
empregador”313.

De modo que nos casos em que o objeto do contrato de emprego é


proibido (irregular), ou se vinculado indiretamente a ilícito penal, atrai-se a aplicação
da teoria trabalhista das nulidades, por acato ao princípio do valor social do
trabalho.

A inaplicabilidade completa da teoria trabalhista das nulidades dá-se quando


o ataque ao interesse público é direto e flagrante, o que, como visto, se verifica
sobretudo nos casos em que o indivíduo despende energias físicas ou mentais para a
prática de atividades ilícitas propriamente ditas. Não se aplica, aqui, o princípio do
valor social do trabalho, dado que a atividade não é compatível com o sentido
axiológico que se dá ao trabalho, plasmado nas normas justrabalhistas.

A aplicação restrita da teoria trabalhista das nulidades é uma construção


destinada a tratar algumas situações específicas em que o sopesamento dos bens
jurídicos envolvidos é de extrema dificuldade. É o caso da contratação irregular de
trabalhadores pela Administração Pública. De um lado, o interesse público e os
princípios do Direito Administrativo e, de outro, o valor social do trabalho e a
necessidade de se proteger juridicamente um trabalho efetivamente prestado.

O entendimento jurisprudencial nesta situação é dado pela Súmula 363 do


Tribunal Superior do Trabalho, que, aplicando de forma restrita a teoria das
nulidades, assegura aos trabalhadores irregularmente contratados pela
Administração apenas o “direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em
                                                            
313 BARROS, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 223. A autora conclui seu raciocínio analisando a

condição de uma dançarina em casa de prostituição, reafirmando a licitude do objeto para


reconhecer a aplicabilidade da teoria trabalhista da nulidade.

192
 

 
 

relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário


mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”. Isso sob a justificativa do
óbice à contratação pelo requisito constitucional da prévia aprovação em concurso
público (art. 37, II e §2º da Constituição Federal de 1988).

Trata-se, contudo, de posição que vem sendo criticada por parte da


doutrina, que conclama pela aplicabilidade plena da teoria trabalhista das nulidades e
reconhecimento dos efeitos do contrato celebrado para a proteção ao trabalhador
(ressalvada a proibição quanto à assinatura da CTPS)314. Diante das inclinações
fundamentais da teoria trabalhista das nulidades (e do próprio Direito do Trabalho)
esta se coloca como uma crítica bastante pertinente.

18.3.3. AS INVALIDADES DO CONTRATO DE EMPREGO CELEBRADO POR


TRABALHADOR IMIGRANTE INDOCUMENTADO À LUZ DA TEORIA
TRABALHISTA DAS NULIDADES

O contrato de emprego celebrado por imigrante que adentra o território


brasileiro sem obedecer aos requisitos aplicáveis na legislação migratória (ou seja,
sem portar o visto adequado, que lhe permita o trabalho) está sujeito a todas as
espécies de nulidades brevemente analisadas anteriormente, em qualquer de seus
elementos jurídico-formais. Há o vício, todavia, que se vincula à própria condição de
                                                            
314 Diverge a doutrina, ainda, quanto à questão das verbas rescisórias, na notícia de MAURICIO

GODINHO DELGADO. Uma primeira corrente fala que a aplicação plena da teoria trabalhista das
nulidades resultaria na obrigação estatal de pagamento das verbas rescisórias típicas da dispensa
imotivada, vez que a norma constitucional do concurso público estaria dirigida para o Estado. A
segunda posição, perfilada pelo autor, é no sentido de “aplicar-se a teoria justrabalhista das
nulidades quanto ao período de efetiva prestação de serviços, tendo-se, porém, como anulado o
pacto em virtude da inobservância à formalidade essencial do concurso”, garantindo-se todos os
efeitos trabalhistas mas “negando-se (...) o direito a verbas rescisórias próprias à dispensa injusta
(aviso prévio, 40% sobre FGTS e seguro desemprego), dado que o pacto terá (ou teria) sido
anulado de ofício (extinção por nulidade e não por dispensa injusta)”. DELGADO, Curso de Direito
do Trabalho, cit., p. 512.

193
 

 
 

imigrante não documentado do empregado e às atividades que são tipicamente


exercidas por esses indivíduos. Desenha-se, aqui, uma verdadeira situação jurídica
limítrofe, em que o ordenamento é instado a dar respostas que definirão todo o
tratamento a ser dispensado a essa situação específica.

Neste contexto, a análise da teoria das nulidades é alçada à condição de


verdadeira premissa de proteção trabalhista ao imigrante indocumentado, donde
advém sua centralidade na discussão proposta na presente pesquisa. A questão
basilar é: qual das vertentes teóricas das nulidades adotar?

Compreender profundamente a teoria trabalhista das nulidades e seu


contraponto no Direito Civil afiançará, assim, as respostas quanto ao dever de
proteção (ou não) do trabalho prestado por imigrante em condição de
irregularidade, dando-lhes substância jurídica e sustentabilidade.

Dito isso, o contrato de emprego celebrado por imigrante não


documentado está sujeito, regra geral, a um vício quanto ao seu objeto.

Isso porque, para que possa trabalhar regularmente no Brasil, o estrangeiro


tem de se submeter aos requisitos da Lei 6.815 de 1980. Como já salientado no
capítulo anterior, o imigrante não pode entabular contrato de emprego se não portar
o visto adequado. Caso não tenha este visto, maculado estará o objeto do contrato
de emprego celebrado pelo imigrante.

Trata-se de condição especial atinente à pessoa do imigrante que o proíbe


de trabalhar sem o visto adequado. O ponto, aqui, é perquirir se se trata de trabalho
irregular (ou proibido) ou de “trabalho” ilícito, o que determinará o influxo das normas
trabalhistas ou civilistas.

194
 

 
 

Note-se, então, à luz dos conceitos anteriormente delineados, que o


trabalho usualmente prestado pelo imigrante indocumentado é irregular, e não
ilícito315. A situação do migratória não contamina o objeto do contrato de emprego
com ilicitude penal, mas tão somente com irregularidade formal. Vale ressaltar que,
regra geral, tal grupo de indivíduos realiza tipicamente atividades que são em si
lícitas, como o trabalho na indústria da confecção executado pelos bolivianos
indocumentados na cidade de São Paulo.

Por esta razão, conclui MAURICIO GODINHO DELGADO que a condição de


irregularidade migratória afeta o contrato de emprego em seu objeto, tornando-o
irregular (e não ilícito), o que atrai a incidência da teoria trabalhista das nulidades316.
Assim também entende GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO, pontuando que
“circunstâncias extrínsecas ao próprio trabalho têm o condão de torná-lo proibido
(v.g., (...) a sua condição de imigrante ilegal)”317. Para o autor, “nesses casos, até que
a nulidade seja declarada, o pacto laboral deve surtir todos os efeitos legais,
exatamente porque é impossível restituir-se ao trabalhador o status quo ante”318.

Assim também se posiciona FRANCISCO DAS CHAGAS LIMA FILHO, que,


com detalhada justificativa, denota a formação de um entendimento doutrinário
bastante sólido no sentido do reconhecimento de todos os direitos trabalhistas
decorrentes de relações de emprego celebradas por imigrantes indocumentados.
Nesse sentido, afirma:

                                                            
315 Obviamente que se o imigrante em condição de irregularidade desempenhar atividade ilícita,

estará ele sujeito à teoria civilista das nulidades e às demais sanções aplicáveis, inclusive penais.
Nesse caso, contudo, a prática de ilícito penal não se imbrica com a condição de irregularidade
migratória.
316 DELGADO, Curso de Direito do Trabalho, cit., p. 503.
317 FELICIANO, Guilherme Guimarães. Efeitos positivos dos contratos nulos de emprego público:

distinguir o joio do trigo. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, v. 29, p.
109-116, 2006, p. 114.
318 FELICIANO, Efeitos positivos dos contratos nulos de emprego público, Revista do Tribunal

Regional do Trabalho da 15ª Região, cit., p. 114.

195
 

 
 

“Aplica-se, nessa hipótese, o princípio da conversão legal, ou seja,


as cláusulas contratuais que ferirem normas de ordem pública são
automaticamente substituídas pelas normas e pelos princípios de
proteção ao trabalho humano, desde que, é claro, o trabalho seja
lícito e o prestador esteja de boa-fé. (...) Assim, o trabalhador
imigrante, mesmo em situação irregular fará jus aos direitos
correspondentes a sua condição de trabalhador como parte de uma
relação de trabalho, ainda quando contratado à margem da
exigência legal da autorização ou permiso. É claro que esses direitos
não se referem apenas ao passado — prestações já executadas —
mas também aos possíveis direitos derivados da extinção do
contrato ou relação de trabalho por iniciativa do empresário, na
forma disciplinada pela legislação laboral nacional, sob pena de
grave ofensa não apenas aos princípios tutelares que informam o
Direito Laboral, mas também e principalmente, ao princípio da não
discriminação e do respeito à dignidade humana, ambos albergados
no Texto Maior e pelos documentos internacionais dos quais o
Brasil é signatário (...). Que se puna o explorador da mão-de-obra
estrangeira de forma irregular, mas jamais isso poderá privar o
trabalhador de seus legítimos direitos”319.

A avaliação de JEAN-CLAUDE JAVILLIER confirma a mesma linha de ação


no Direito do Trabalho francês. A despeito de não mencionar expressamente a
aplicação de uma trabalhista das nulidades, concluiu o autor que, no caso da
contratação de imigrantes em condição de irregularidade, o contrato de emprego,
“devido ao seu caráter sucessivo, (...) não é retroativamente anulado”320, o que,
como visto, constitui a proposição básica da teoria especial no Direito brasileiro.

Referenda a aplicação da teoria trabalhista das nulidades o princípio da


primazia da realidade sobre a forma (ou contrato-realidade, na expressão alcunhada

                                                            
319 LIMA FILHO, Francisco das Chagas. Trabalhador migrante fronteiriço: tutela material e

jurisdicional. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região, Campo Grande, 13, p. 17-35, 2008,
p. 27-8.
320 JAVILLIER, Jean-Claude. Manual de Direito do Trabalho. Trad. Rita Asdine Bozaciyan. São Paulo:

LTr, 1988, p. 90.

196
 

 
 

por MARIO DE LA CUEVA321), uma vez que a ausência da autorização para o


trabalho do imigrante é requisito formal que não pode privar de efeitos o contrato
de emprego celebrado.

Nesse sentido caminha a decisão mais relevante de que se tem notícia no


Brasil até o presente na matéria, do Tribunal Superior do Trabalho, que reconheceu
efeitos a um contrato de emprego celebrado com um imigrante indocumentado com
base nas linhas teóricas do contrato-realidade:

“RECURSO DE REVISTA – EMPREGADO ESTRANGEIRO


IRREGULAR NO BRASIL – INEXISTÊNCIA DO
DOCUMENTO DE IDENTIDADE DE QUE TRATAM OS
ARTS. 359 DA CLT E 21, § 1º, DA LEI Nº 6.815/1980 –
NULIDADE DA CONTRATAÇÃO – INEXISTÊNCIA – ART.
3º DO PROTOCOLO DE COOPERAÇÃO E ASSISTÊNCIA
JURISDICIONAL EM MATÉRIA CIVIL, COMERCIAL,
TRABALHISTA E ADMINISTRATIVA DO MERCOSUL,
INCORPORADO AO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO NOS TERMOS DO DECRETO Nº 2.067/1996
Trata-se a presente controvérsia de se saber se há ou não nulidade
da contratação de estrangeiro decorrente do fato de não ser ele
portador de documento de identidade previsto pelos arts. 359 da
CLT e 21, § 1º, da Lei nº 6.815/1980. Com efeito, são
fundamentos da República Federativa do Brasil, dentre outros, a
dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da
livre iniciativa (art. 1º, III e IV, da Constituição Federal de 1988),
bem como consta dentre seus objetivos fundamentais promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV), sendo ainda
mais contundente a enunciação do princípio constitucional da
isonomia, que se refere expressamente aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País (art. 5º, caput) e igualdade em
direitos e obrigações, salvo expressa disposição em lei (incisos I e II
                                                            
321 Diz o autor mexicano: “se ha denominado el contrato de trabajo como ‘contrato realidad’, pues

existe no en el acuerdo abstracto de voluntades sino en la realidad de la prestación del servicio y


porque es el hecho mismo del trabajo y no en el acuerdo abstracto de voluntades sino en la realidad
de la prestación del servicio y porque es el hecho mismo del trabajo mismo del trabajo y no el
acuerdo de voluntades lo que demuestra su existência”. DE LA CUEVA, Derecho Mexicano del
Trabajo, cit., p. 459.

197
 

 
 

daquele mesmo artigo). Feitas essas considerações, e tendo-se em


vista que seria absolutamente inconcebível que um contrato de
trabalho envolvendo trabalhador brasileiro pudesse vir a ser
judicialmente declarado nulo por causa da mera inexistência de um
documento de identidade, é inequívoca a conclusão de que assiste
razão ao reclamante. (...) Ainda como reforço de argumentação,
tem-se que a eventual manutenção do v. acórdão do Regional
implicaria uma dupla injustiça, primeiro com os trabalhadores
estrangeiros em situação irregular no País que, não obstante
tenham colocado sua força de trabalho à disposição do
empregador, ver-se-ão privados da devida remuneração em razão
de informalidade de cuja ciência prévia o empregador estava
obrigado pelo art. 359 da CLT; e, segundo, com os próprios
trabalhadores brasileiros, que poderiam vir a ser preteridos pela
mão-de-obra de estrangeiros irregulares em razão do custo menor
desses últimos, como tragicamente sói acontecer nas economias
dos países do Hemisfério Norte”322.

Trata-se, decerto, de decisão de inegável arrojo político e de uma sensível


visão jurídica da condição do imigrante irregular, que prestigia os fatos em
detrimento da forma, recuperando concretamente aquela que é uma das vocações
mais caras ao Direito do Trabalho.

Outras decisões de Tribunais Regionais acompanham este entendimento,


aplicando a teoria trabalhista das nulidades:

“PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – VÍNCULO EMPREGATÍCIO


– ESTRANGEIRO IRREGULAR – PROTEÇÃO AO
TRABALHO – NULIDADE.
A interpretação sistemática dos artigos 5º da CF c/c com o art. 359
da CLT, à luz dos princípios da igualdade, da dignidade humana, da
realidade dos fatos e da hipossuficiência do trabalhador, impõe a
conclusão de que o contrato de trabalho celebrado por estrangeiro
irregular, contanto que não fira legislação específica aplicável, não é
nulo, mas anulável, com efeitos ex nunc, reputando-se-o válido e

                                                            
322 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 750.094/2001. Originário da 24ª

Região, 6ª Turma, Relator Ministro HORÁCIO SENNA PIRES. Publicado em 29.09.2006.

198
 

 
 

submetido a todos os direitos e obrigações previstos na lei


trabalhista, enquanto subsistir”323.

“RELAÇÃO DE EMPREGO. ESTRANGEIRO. SEM VISTO


DE TRABALHO E CTPS.
O trabalho de estrangeiro irregular no país, sem possuir a CTPS,
quando muito seria proibido, mas não ilícito. Portanto, não há
impedimento para que seja reconhecido o vínculo empregatício e
todas as vantagens trabalhistas em razão da impossibilidade de
restituição ao status quo ante”324.

“VÍNCULO EMPREGATÍCIO. ESTRANGEIRO EM


SITUAÇÃO IRREGULAR. RECONHECIMENTO.
POSSIBILIDADE.
Presentes os requisitos dos artigo 2º e 3º, da CLT, e não se
destinando o trabalho a fins ilícitos, é possível o reconhecimento
da existência da relação de emprego com empregado estrangeiro
em situação irregular”325.

Existem, contudo, algumas poucas decisões em contrário, no sentido do


reconhecimento de nulidade absoluta, a gerar suposta inexistência de vínculo e
afastar a teoria trabalhista das nulidades, nos seguintes termos:

“VÍNCULO EMPREGATÍCIO. ESTRANGEIRO EM


SITUAÇÃO IRREGULAR. INEXISTÊNCIA.
Ao estrangeiro que se encontra na situação tipificada no art. 98 da
Lei nº 6.815/80 é vedado o exercício de atividade remunerada.
Assim, diante da vedação legal, a contratação de estrangeiro com
visto de turista é nula de pleno direito, não havendo possibilidade
do reconhecimento do vínculo de emprego chancelado pela
Consolidação das Leis do Trabalho”326.

                                                            
323 SÃO PAULO. Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Decisão 059148/2007 PATR,

Relator Desembargador NILDEMAR DA SILVA RAMOS. Publicado em 23.11.2007.


324 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Recurso Ordinário

00213-1999-731-04-00-9, Relator Desembargador MANUEL CID JARDON. Publicado em


23.10.2002.
325 SÃO PAULO. Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Recurso Ordinário, Decisão

030245/2006 PATR, Relator Desembargador RICARDO REGIS LARAIA. Publicado em 23.06.2006.


326 SANTA CATARINA, Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região. Acórdão 9762/2005,

Relatora Juíza LIGIA M. TEIXEIRA GOUVÊA. Publicado em 11.08.2005.

199
 

 
 

Há que se esclarecer que ainda existem poucas decisões judiciais no Brasil a


respeito de contratos de emprego celebrados por imigrantes em condição de
irregularidade. Isso porque esses indivíduos têm um justificado receio de acessarem
as vias institucionais do Estado, como a Justiça do Trabalho, para reclamarem
direitos seus, temendo a deportação. Dentro das poucas decisões existentes,
contudo, pode-se verificar uma tendência muito clara no sentido do reconhecimento
de efeitos trabalhistas e da aplicação da teoria trabalhista das nulidades para os
contratos de emprego dos imigrantes indocumentados.

Da análise de todos os elementos que se reúnem para compor a situação


fático-jurídica do trabalho de imigrantes irregulares, a conclusão que se pode
alcançar é a de que não lhes pode faltar a proteção trabalhista, dada a
preponderância da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho. Por
esta razão, caso se entenda nula a contratação do imigrante irregular, a teoria
trabalhista das nulidades, que preserva os efeitos próprios do contrato de emprego,
é aquela aplicável, de maneira plena.

18.4. A VISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS SOBRE


DIREITOS TRABALHISTAS DE IMIGRANTES INDOCUMENTADOS

Ainda sobre a questão da garantia de direitos trabalhistas a imigrantes não


documentados há que se mencionar o importante posicionamento da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Esclareça-se, preliminarmente, que a Corte é
uma instituição criada pelo Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, que, no
exercício de suas competências consultiva e contenciosa, aplica e interpreta os
instrumentos do chamado sistema interamericano de proteção aos Direitos
Humanos, além de outros diplomas que tratem destes direitos.

200
 

 
 

Compõem o sistema interamericano de Direitos Humanos quatro


instrumentos básicos, a saber: a Carta da OEA, de 1948, a Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, de 1969 (conhecida, também, como Pacto de São José da Costa
Rica) e o Protocolo Adicional à Convenção Americana em Matéria de Direitos
Econômicos Sociais e Culturais, de 1988.

Sobre a instituição, e suas competências, disserta VALERIO DE OLIVEIRA


MAZZUOLI:

“A Corte detém uma competência consultiva (relativa à


interpretação das disposições da Convenção, bem como das
disposições de tratados concernentes à proteção dos direitos
humanos nos Estados Americanos) e uma competência
contenciosa, de caráter jurisdicional, própria para o julgamento de
casos concretos, quando se alega que algum dos Estados-partes na
Convenção Americana violou algum de seus preceitos. (...) Ao
ratificarem a Convenção Americana, os Estados-partes já aceitam
automaticamente a competência consultiva da Corte, mas em
relação à competência contenciosa, esta é facultativa e poderá ser
aceita posteriormente”327.

O Brasil ratificou a Convenção Americana (promulgada por meio do


Decreto 678/92) e está sujeito à competência da Corte. E foi no exercício de sua
competência consultiva que a Corte emitiu a Opinião Consultiva OC-18/03,
mediante consulta formulada pelo México em 2002 sobre a:

“privação do gozo e exercício de certos direitos trabalhistas [aos


trabalhadores migrantes] e sua compatibilidade com a obrigação
dos Estados americanos de garantir os princípios de igualdade
jurídica, de não discriminação e de proteção igualitária e efetiva da

                                                            
327 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2007, p. 732.

201
 

 
 

lei, consagrados em instrumentos internacionais de proteção dos


direitos humanos”328.

O México sustentou sua consulta com base em diversas normas do sistema


interamericano e outros diplomas329, solicitando à Corte seu posicionamento
interpretativo acerca do tratamento igualitário de imigrantes indocumentados em
matéria trabalhista. A Corte, então, emitiu detalhada Opinião Consultiva —
manejando o conceito de igualdade e não discriminação, além da universalização da
proteção ao trabalho — para concluir que:

“A qualidade migratória de uma pessoa não pode constituir uma


justificação para privá-la do gozo e exercício de seus direitos
humanos, entre eles os de caráter laboral. O migrante, ao assumir
uma relação de trabalho, adquire direitos por ser trabalhador, que
devem ser reconhecidos e garantidos, independentemente de sua
situação regular ou irregular no Estado de emprego. Estes direitos
são consequência da relação laboral” 330.

                                                            
328 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Condición jurídica y derechos de

los migrantes indocumentados. Opinião consultiva OC-18/03. São José da Costa Rica, 17 de
setembro de 2003. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf.
Acesso em 14 de abril de 2010. No original: “privación del goce y ejercicio de ciertos derechos
laborales [a los trabajadores migrantes] y su compatibilidad con la obligación de los Estados
americanos de garantizar los principios de igualdad jurídica, no discriminación y protección
igualitaria y efectiva de la ley consagrados en instrumentos internacionales de protección a los
derechos humanos”. Tradução do autor.
329 Requereu o México a interpretação dos seguintes dispositivos: arts. 3.1 e 17 da Carta da OEA, a

art. II (direito de igualdade ante a lei) da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem,
arts. 1.1 (obrigação de respeitar os direitos), 2 (dever de adotar disposições de direito interno) e 24
(igualdade) da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, arts. 1, 2.1 e 7 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, e arts. 2.1, 2.2, 5.2 e 26 do Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos.
330 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Condición jurídica y derechos de

los migrantes indocumentados. Opinião consultiva OC-18/03. São José da Costa Rica, 17 de
setembro de 2003. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf.
Acesso em 14 de abril de 2010. No original: “la calidad migratoria de una persona no puede
constituir una justificación para privarla del goce y ejercicio de sus derechos humanos, entre ellos
los de carácter laboral. El migrante, al asumir una relación de trabajo, adquiere derechos por ser
trabajador, que deben ser reconocidos y garantizados, independientemente de su situación regular o
irregular en el Estado de empleo. Estos derechos son consecuencia de la relación laboral”.
Tradução do autor.

202
 

 
 

A Corte, sobretudo no voto de ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO


TRINDADE, destaca que o princípio da igualdade e não discriminação deve ser
tomado como jus cogens, gerando obrigações para os Estados e possível
responsabilização internacional por inobservância.

Assim, o pronunciamento da Corte também deve servir de norte jurídico


para o tratamento do tema no Brasil, em linha com a densa malha normativa
internacional, os direcionamentos da Constituição de 1988 e a aplicação adequada
da normativa justrabalhista nacional.

19. TRABALHO DE IMIGRANTES INDOCUMENTADOS EM CONDIÇÃO ANÁLOGA


À DE ESCRAVO

O trabalho em condição análoga à de escravo é uma das maiores chagas que


tem de enfrentar o ramo justrabalhista na atualidade. E esta é uma realidade que,
não raro, se encontra com as migrações em condição de irregularidade,
consolidando um quadro de extrema gravidade. A despeito de o tema do trabalho
escravo não ser ontologicamente associado à questão das migrações, a realidade dos
fatos, infelizmente, impõe esta breve notícia aqui inserida.

A conceituação de trabalho em condição análoga à de escravo não é


pacífica, sendo que os autores divergem quanto à associação deste ilícito à privação
da liberdade ou à sujeição a condições degradantes de trabalho331. JOSÉ CLÁUDIO
MONTEIRO DE BRITO FILHO relata esta heterogeneidade, pontuando, contudo, que
é possível identificar uma convergência na doutrina pela “repulsa a essas formas
                                                            
331 O conceito da OIT, por exemplo, é de trabalho forçado ou obrigatório, enfatizando o vício da

liberdade, conforme previsto no art. 2º, 1 da Convenção 29 da Organização, que define trabalho
forçado como “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o
qual não se tenha oferecido espontaneamente”.

203
 

 
 

humilhantes de tratar o ser humano, sujeitando-o a trabalho em condições que


deveriam ser negadas a toda a humanidade”332.

Para evitar maiores delongas nesta discussão, o que se afastaria do objeto da


presente pesquisa, diga-se que na ordem jurídica brasileira, a definição de trabalho
em condição análoga à de escravo é dada pelo art. 149 do Código Penal (com
redação pela Lei n. 10.803/2003). Como notam GABRIELA NEVES DELGADO et al,
o dispositivo tem uma redação aberta, abarcando tanto o trabalho forçado
propriamente dito quanto o trabalho com jornada exaustiva ou condição
degradante333.

Por sua condição de especial vulnerabilidade, o grupo dos trabalhadores


migrantes não documentados está sujeito a ser vítima de exploração de trabalho
nestas nefastas condições. No Brasil, os numerosos bolivianos indocumentados na
cidade de São Paulo comprovam esta triste constatação334. RENATO CYMBALISTA e
IARA ROLNIK XAVIER relatam as condições de trabalho a que se sujeitam esses
indivíduos:

“As condições são sempre precárias: mais de oito horas de trabalho


por dia de segunda a sábado e poucas horas de descanso. As
oficinas normalmente operam cheias, com pouca luz, pouca
ventilação, em casas que também servem de moradia para as
famílias trabalhadoras. Muitos são pagos por peça produzida, sem
que haja qualquer contrato estabelecido, e o preço das peças
                                                            
332 BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho com redução à condição análoga à de

escravo: análise a partir do trabalho decente e de seu fundamento, a dignidade da pessoa humana. In
VELLOSO, Gabriel, FAVA, Marcos Neves (orgs.). Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de
superar a negação. São Paulo: LTr, 2006, p. 132.
333 DELGADO, Gabriela Neves, NOGUEIRA, Lílian Katiusca Melo, RIOS, Sâmara Eller.

Trabalho escravo: instrumentos jurídico-institucionais para a erradicação no Brasil contemporâneo.


Revista Magister de Direito Trabalhista e Previdenciário, Porto Alegre, v. 21, p. 53-73, 2007, p. 62.
334 Para uma descrição detalhada do processo de entrada, inserção social e exploração de trabalho

dos migrantes indocumentados bolivianos em São Paulo cf. AZEVEDO, Flávio Antonio Gomes
de. A presença de trabalho forçado urbano na cidade de São Paulo: Brasil/Bolívia. Dissertação de mestrado.
São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005.

204
 

 
 

costuma ser extremamente baixo (0,15 a 0,30 centavos). Muitos


imigrantes sonham em ser donos das oficinas e para isso acabam
em dívidas e com muito trabalho sem remuneração”335.

Ou seja, os imigrantes indocumentados são submetidos à condição de


privação de liberdade (por meio, por exemplo, da servidão por dívida) e a condições
degradantes de trabalho. Não há dúvida, portanto, que recorrentemente trabalham
em condição análoga à de escravo, situação que é viabilizada também pelo temor
que tais indivíduos têm de serem descobertos e deportados.

As frequentes denúncias de prática de exploração de trabalho em condição


análoga à de escravo ensejaram a instauração, no ano de 2005, de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito na Câmara Municipal de São Paulo (CPI 0024/2005), cujo
relatório, já anteriormente citado, concluiu pela existência de trabalho escravo
urbano em São Paulo, e propôs uma série de medidas jurídicas e políticas de
combate a esta realidade336.

Há que se rememorar, aqui, que são diversos os instrumentos normativos


no Brasil que vedam e punem a prática de exploração de trabalho em condição
análoga à de escravo. Desde a Constituição de 1988 (art. 5º, III, XIII, XLVII),
passando por convenções internacionais (Convenções 29 e 105 da OIT) e pela
legislação penal (art. 149 do Código Penal), a ordem jurídica brasileira repudia, com
destacada veemência, a exploração de trabalho em condição análoga à de escravo.
Pontua MARTHA HALFELD FURTADO DE MENDONÇA SCHMIDT que “no Brasil, o
trabalho forçado, cuja existência foi longamente negada pelas autoridades

                                                            
335 CYMBALISTA, Renato, XAVIER, Iara Rolnik. A comunidade boliviana em São Paulo:

definindo padrões de territorialidade. Cadernos Metrópole. São Paulo, EDUC, n. 17, p. 119-133, 1º
semestre de 2007, p. 124-5.
336 O Relatório Final da CPI 0024/2005 da Câmara Municipal de São Paulo está disponível em

http://www.camara.sp.gov.br/cpi_TrabalhoEscravo/001.htm. Acesso de 12 de agosto de 2009.

205
 

 
 

competentes, tem hoje vasta regulamentação, resultado, sobretudo, da


conscientização que se vem operando na população a partir dos últimos anos”337.

A despeito das disposições normativas e de iniciativas das autoridades


(sobretudo do Ministério Público do Trabalho338) no sentido de eliminar o trabalho
urbano em condição análoga à de escravo, notícias recentes339 retratam ainda a
permanência desta situação envolvendo bolivianos na capital paulistana. Reforça-se,
então, a necessidade de iniciativas de combate à exploração e incentivo à proteção
das vítimas, o que, inevitavelmente, afeta a própria dinâmica do trato institucional
com a migração indocumentada, a demandar uma abordagem pautada na proteção à
pessoa humana.

Quanto à relação entre o trabalho em condição análoga à de escravo e as


nulidades contratuais que decorrem da situação, resta concluir que se o imigrante
indocumentado é reduzido a tal situação, será aplicada a teoria trabalhista das
nulidades a seu favor, já que, apesar de a escravidão contemporânea ser crime, há
claro vício de consentimento e ausência de liberdade do empregado. O contrato de
emprego, portanto, terá todos os seus efeitos reconhecidos em favor do empregado.

                                                            
337 SCHMIDT, Breves anotações sobre as Convenções fundamentais da OIT. In LAGE, LOPES. O

Direito do Trabalho e o Direito Internacional, cit., p. 101.


338 Sobre a atuação do Ministério Público do Trabalho, por meio de termos de ajuste de conduta e

ações civis públicas para o combate ao trabalho em condição análoga à de escravo cf. DELGADO,
NOGUEIRA, RIOS, Trabalho escravo, Revista Magister de Direito Trabalhista e Previdenciário, cit., 2007.
339 Vide notícia do Jornal Folha de São Paulo de 04 de novembro de 2009: “Polícia de SP encontra

bolivianos em condição de escravidão em confecção”. Disponível em


http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u647549.shtml. Acesso em 06 de novembro
de 2009.

206
 

 
 

20. DIREITOS TRABALHISTAS DE IMIGRANTES INDOCUMENTADOS NO BRASIL

A controvérsia em relação à proteção trabalhista dos imigrantes não


documentados é bem retratada por GABRIELA NEVES DELGADO e RAQUEL
PORTUGAL NUNES340, como um dilema entre o princípio da soberania estatal (a
justificar uma postura repressiva) e o valor social do trabalho (que demandaria
proteção), concluindo as autoras pela necessária prevalência da dignidade da pessoa
humana.

Sobre a noção de exercício da soberania e sua necessária limitação pela


inarredável proteção à pessoa humana, é elucidativa a conclusão de BÁRBARA
PINCOWSCA CARDOSO CAMPOS:

“Se, por um lado, é legítimo aos Estados estabelecer suas políticas


migratórias, por outro, há limites ao exercício dessa soberania. Os
Estados podem adotar certas medidas de controle, desde que não
limitem certos direitos. Pode, pois, haver certas restrições à entrada
de estrangeiros, desde que tais restrições se amparem em fins
legítimos e não violem certos direitos fundamentais, tais como o
direito à não discriminação e à igualdade perante a lei”341.

Aplicam-se, ao caso, as reflexões de MARTHA HALFELD FURTADO DE


MENDONÇA SCHMIDT, que entende que “em tempos de neo-liberalismo e de crise,
necessária se faz, de alguma forma, uma política de proteção ao emprego,
especialmente quanto aos injustamente marginalizados, a fim de se evitar uma
excessiva deterioração da estrutura social”342.

                                                            
340 DELGADO, Gabriela Neves, NUNES, Raquel Portugal. Subterrâneos da imigração. Estado de

Minas, Belo Horizonte, 19 de setembro de 2008. Caderno opinião, p. 11.


341 CAMPOS, O tráfico de pessoas à luz da normativa internacional de proteção dos Direitos

Humanos, Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, cit., p. 46.


342 SCHMIDT, Martha Halfeld Furtado de Mendonça. Proteção contra discriminação por motivo

de orientação sexual. In VIANA, Márcio Túlio, RENAULT, Luiz Otávio Linhares (coords.). O que
há de novo em Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997, p. 369. A autora, originalmente, trata de

207
 

 
 

Assim, por todas as razões apresentadas ao longo desta pesquisa, reforça-


se o entendimento no sentido da ampla proteção jurídica ao trabalhador imigrante
em condição de irregularidade, gestada na perspectiva dos Direitos Humanos. Em
linha com os diplomas internacionais (Convenção 143 da OIT e Convenção de
ONU de 1990) e com a aplicação da teoria trabalhista das nulidades, conclui-se que
o imigrante em condição de irregularidade que pactue relação de emprego deve ser
protegido com todas as garantias justrabalhistas estendidas aos empregados
nacionais343.

Aqui, a Convenção 143 da OIT, analisada no capítulo II da presente


pesquisa, cujo texto consta do anexo II da presente pesquisa, coloca-se como uma
via de equilíbrio entre o controle migratório e a proteção inafastável ao trabalho
prestado, como nota RODRIGO DE LACERDA CARELLI:

“Desta forma é como trata a questão a Organização Internacional


do Trabalho, por meio da sua Convenção nº. 143, de 1975, ainda
não ratificada pelo Brasil (mas em franco processo de introdução
no ordenamento jurídico brasileiro). Tomando como princípio o
controle (ou, se se desejar, a ‘repressão’) a movimentos migratórios
com conseqüências sociais negativas, não olvida da necessidade de
igual proteção em termos de direitos e garantias ao trabalhador
migrante”344.

                                                                                                                                                                              
medidas de proteção ao emprego em situações de discriminação por motivo de orientação sexual.
As conclusões, contudo, podem ser transpostas à situação dos imigrantes.
343 O Brasil sinaliza que se alinhará a esta diretiva, seja por meio do novo Estatuto do Estrangeiro

em trâmite no Congresso Nacional (Projeto de Lei 5.655/2009, especialmente seu art. 5º) e também
da nova Política Nacional de Imigração e Proteção ao Trabalhador Migrante, do Ministério do Trabalho e
Emprego, conforme aprovada na IV reunião ordinária do Conselho Nacional de Imigração em
fevereiro de 2010, que, atualmente, está sob consulta pública, nos termos da Portaria n. 1.324 do
MTE, de junho de 2010.
344 CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Trabalho do estrangeiro no Brasil. Boletim do CEDES – Centro de

Estudos Direito e Sociedade. Março de 2007. Disponível em http://cedes.iuperj.br/PDF/


cidadaniatrabalho/trabalho%20do%20estrangeiro%20no%20Brasil.pdf. Acesso em 17 de julho de
2009.

208
 

 
 

Assim, tomando-se todo esse repertório normativo internacional e nacional,


em uma interpretação sistêmica, a conclusão de CRISTIANE MARIA SBALQUEIRO
LOPES é precisa:

“Diante desse conjunto normativo, só se pode concluir que os


direitos humanos garantidos pela Constituição de 1988 valem
inclusive para estrangeiros não residentes ou residentes ilegais. Só
cabe a ressalva quanto ao motivo ensejador da situação concreta
que afasta o residente irregular da regularidade administrativa. A
admissibilidade da restrição a direitos decorre de que o exercício
das liberdades não é independente de eventual atendimento a
requisitos legais. Assim, por exemplo, o fato do imigrante estar
trabalhando informalmente pode privá-lo do direito ao emprego
específico caso não seja promovida a sua regularização, mas não
pode privá-lo dos direitos decorrentes do trabalho que tenha sido
exercido, inclusive de sua tutela jurisdicional, devidamente
previstos dentre os direitos e garantias fundamentais no seio da
Constituição Federal”345.

Concluir-se em outra direção seria um franco atentado ao arcabouço


principiológico de proteção à pessoa humana, baluarte do Direito do Trabalho.
Contrariada estaria, nesta hipótese, a noção de trabalho como valor fonte, na leitura de
DANIELA MURADAS sobre o trabalho em seu “caráter de constante axiológica
universal, reclamando a concorrência na proteção no plano nacional e internacional,
com vistas ao progresso sócio-jurídico do trabalhador”346.

                                                            
345 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos.

Tese de doutoramento. Sevilha: Universidad Pablo de Olavide, 2007, p. 382.


346 MURADAS, Daniela. Contributo ao Direito Internacional do Trabalho: a reserva implícita ao

retrocesso sócio-jurídico do trabalhador nas Convenções da Organização Internacional do


Trabalho. Tese de doutoramento. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais, 2007, p. 8.

209
 

 
 

21. OS DESAFIOS INSTITUCIONAIS À EFETIVIDADE DA PROTEÇÃO


TRABALHISTA DO IMIGRANTE EM CONDIÇÃO DE IRREGULARIDADE

Sob a premissa de que o trabalho prestado por imigrante em condição de


irregularidade no contexto de relação empregatícia não deve ser privado de proteção
por conta da condição migratória fica o enorme desafio de promover a efetivação
dessas linhas normativas.

Esta, aliás é uma questão comum a todo o arcabouço do Direito do


Trabalho no plano internacional, conforme apontado por GABRIELA NEVES
DELGADO:

“Obviamente que além do reconhecimento da importância social


dos princípios de direitos humanos dos trabalhadores é preciso
também concretizá-los, viabilizando sua afirmação ética, enquanto
elemento indispensável para a constituição, crescimento e
realização do sujeito-trabalhador”347.

Nessa mesma direção, e agora especificamente sobre a questão migratória,


conclui NEIDE LOPES PATARRA:

“O desafio consiste em transformar os compromissos assumidos


internacionalmente em programas e práticas sociais condizentes
com a articulação proposta — síntese das contradições, conflitos e
antagonismos intensificados neste início de século”348.

Este é um desafio gigantesco, em todas as suas dimensões: do tratamento


institucional dos migrantes indocumentados, das possibilidades de regularização de
migrantes, do acesso à justiça e da efetivação dos direitos trabalhistas e de
                                                            
347 DELGADO, Gabriela Neves. Princípios internacionais do Direito do Trabalho e do Direito

Previdenciário. Revista LTr, São Paulo, a. 74, t. I, n. 03, p. 337-342, mar. 2010, p. 342.
348 PATARRA, Neide Lopes. Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo: volumes,

fluxos, significados e políticas. Revista São Paulo em Perspectiva, v. 19, n. 3, p. 23-33, jul./set. 2005, p.
31.

210
 

 
 

seguridade social349. Para tornar o direcionamento jurídico de proteção uma


realidade no plano dos fatos, muito há para ser feito.

No campo do tratamento institucional dos imigrantes não documentados


pelas autoridades brasileiras, a regra ainda é um enorme temor da visibilidade por
parte dos grupos irregulares, que, receosos diante da postura repressiva das
autoridades brasileiras e cientes da impossibilidade prática de regularização da
condição migratória, escondem-se. Tal invisibilidade os torna ainda mais
vulneráveis, em um verdadeiro círculo vicioso que dificulta muito eventuais
iniciativas de proteção. É o que sintetiza DENISE PASELLO VALENTE NOVAIS:

“Pode-se pensar que, por estarem em um grande centro urbano,


bastaria a esses trabalhadores abrirem as portas das oficinas e
procurarem ajuda, denunciarem as explorações aos órgãos
públicos, buscarem a Justiça. Mas não é essa a realidade. Esses
trabalhadores, em sua maioria em condição ilegal no país, contam
contra si com uma rede intrincada de aspectos que os impede de
lutar por sua dignidade: o medo de serem deportados, a miséria de
seu país de origem, a necessidade de sobrevivência, o resguardo de
sua integridade física”350.
                                                            
349 Quanto à seguridade social, as mesmas reflexões quanto à necessidade de proteção constam dos

esforços no plano internacionais sobre a matéria, conforme relatado por URSULA KULKE, em
estudo para a International Social Security Association: “Proporcionar proteção de seguridade social aos
trabalhadores migrantes se tornou um dos mais importantes desafios sociais enfrentados pela
comunidade internacional. Como a migração de trabalho tem crescido ao longo dos anos, afetando
um número crescente de países e os trabalhadores, há uma necessidade urgente para o reforço das
medidas existentes e de adoção de novas, em nível internacional, regional e nacional”. E, no
entendimento da OIT, relatado pela mesma autora, os “trabalhadores migrantes irregulares terão os
mesmos direitos que os trabalhadores migrantes regulares em matéria de direitos de seguridade
social decorrentes de um emprego anterior”. Os desafios, portanto, são igualmente de garantir
eficácia das disposições normativas pactuadas. No original: “Providing social security protection to
migrant workers has become one of the most important social challenges facing the international
community. As labour migration has grown over the years, affecting an increasing number of
countries and workers, there is an urgent need for the reinforcement of existing measures and the
adoption of new ones, at the international, regional and national levels” e “irregular migrant
workers shall have the same rights as regular migrant workers concerning social security rights
arising out of past employment”. Tradução do autor. KULKE, Ursula. The role of social security in
protecting migrant workers: the ILO approach. Nova Deli: International Social Security Association,
2006, p. 10 e 04.
350 NOVAIS, Tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho, cit., p. 12.

211
 

 
 

Assim, de modo a concretizar as normas de proteção já destacadas, é


necessário que se implementem programas multidisciplinares de proteção e
facilitação de acesso à justiça. Quanto à questão jurisdicional, aliás, tem-se a
competência da Justiça do Trabalho brasileira para processar e julgar demandas que
tenham por objeto contratos de emprego celebrados por imigrantes
indocumentados para prestação de trabalho no Brasil, por força de uma série de
dispositivos internacionais, constitucionais e legais351, além do princípio da lex loci
executionis.

A Organização Internacional do Trabalho consolida como conceber e


implementar políticas na questão migratória dentro de uma abordagem que se baseie
em Direitos Humanos, apontando medidas como: necessidade de políticas
migratórias coerentes e justas, com estruturas gestoras capacitadas; base legal
adequada ao caminhar internacional; implementação das Convenções fundamentais
da OIT também para matéria migratória (envolvendo liberdade de associação, não
discriminação, proibição de trabalho forçado); abordagens nacionais que melhorem

                                                            
351 FRANCISCO DAS CHAGAS LIMA FILHO enfatiza a relevância da garantia de inafastabilidade do

Poder Judiciário (art. 5º, XXXV da Constituição de 1988) e consolida os instrumentos com base
nos quais se sustenta um direito do estrangeiro de acesso à justiça no Brasil, nos seguintes termos:
“Entre esses documentos internacionais, podem ser citados, a guisa de exemplo, a Declaração
Universal dos Direitos do Homem de 1948 (ONU), o Pacto dos Direitos Civis e Políticos firmado
em 1966 (ONU) e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José), adotada
em 1948 e em vigor desde 16.11.1988, incorporados ao ordenamento jurídico por força não apenas
da ratificação e posterior aprovação pelo Congresso Nacional, mas também em face dos expressos
termos do art. 5º, §§ 1º e 2º, da Carta de 1988. Todos esses documentos internacionais firmados
pelo Brasil garantem o acesso aos órgãos da jurisdição, não apenas aos nacionais, mas também
pelos estrangeiros que aqui se encontrarem. Por conseguinte, não se pode negar ao estrangeiro que
aqui se encontre a garantia do acesso à jurisdição, à justiça, em razão da sua condição de não-
nacional, origem, raça ou outra discrime, até mesmo em face do que estabelecido de forma expressa
pelos arts. 1º, inciso III, 3º, inciso IV e 4º, inciso II, da Carta da República”. LIMA FILHO,
Trabalhador migrante fronteiriço, Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região, cit., p. 29.
Mencione-se, também a ampliação da competência da Justiça do Trabalho promovida pela Emenda
Consitucional n. 45/2004, que modificou o art. 114 da Constituição de 1988, referendando, para a
situação aqui estudada, a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar as ações
oriundas de relações de trabalho em sentido amplo.

212
 

 
 

o bem estar e inclusão social dos migrantes; simplificação burocrática; sindicalização


de migrantes; medidas de combate a tráfico de pessoas e migrantes; políticas para
maximizar a contribuição dos migrantes para o desenvolvimento e implementação
de cooperação internacional em matéria migratória352.

Obviamente estas não são medidas de simples adoção. Envolvem


modificações profundas na forma como cada país trata o tema da imigração,
especialmente da imigração irregular. De toda forma, apenas com políticas amplas e
efetivas se poderá reverter o alarmante quadro de exploração de trabalho de
imigrantes irregulares (por vezes em condição análoga à de escravo), numa linha de
tratamento mais equilibrada, que dê concreção à inafastável proteção à pessoa
humana.

                                                            
352 Estas medidas sugeridas pela OIT constam da Ata da Nonagésima Segunda Sessão da

Conferência Internacional do Trabalho, realizada em Genebra no ano de 2004. Disponível em


http://www.ilo.org/public/english/standards/relm/ilc/ilc92/pdf/pr-22.pdf. Acesso de 10 de abril
de 2010.

213
 

 
 

CONCLUSÃO

“Em definitivo, apenas a firme determinação de reconstrução


da comunidade internacional sobre a base da solidariedade
humana poderá levar à superação de todos estes traumas”.

ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE


OC-18/03 da CIDH

As reflexões jurídicas sobre a questão migratória na atualidade demandam a


construção de uma plataforma de tratamento baseada na proteção dos direitos
fundamentais da pessoa humana, em todas as suas dimensões, sob o pano de fundo
da solidariedade. O trabalho prestado por imigrantes, nesse contexto, é merecedor
de regulação jurídica consistente, em padrões consentâneos com os avanços
promovidos pelo Direito Internacional do Trabalho.

Recebem-se, aqui, influxos de duas matrizes, ambas direcionadas nesse


mesmo sentido. Em primeiro lugar, a proteção à pessoa do imigrante, que não pode
ser discriminada por motivo de ascendência étnica, devendo ser tomada pelo Direito
em sua condição humana essencial. De outro lado, o caminhar da progressiva
proteção ao trabalho, que deve ser regulado e guarnecido de direitos para o obreiro
como elemento essencial para uma vida digna.

A própria noção de justiça como um exercício continuado da virtude para o


outro — considerada a dimensão da aparente diferença do imigrante que,
inevitavelmente, torna-se “o outro” — faz indispensável a observância a estes
padrões axiológicos historicamente maturados, sob pena de um inadmissível desvio
das próprias finalidades do Direito.

A regulação da matéria no plano internacional é reflexo dessa diretiva,


sendo que, nas últimas décadas, foram celebrados diversos instrumentos normativos

214
 

 
 

e compromissos de alcance global, regional e local que reafirmam o princípio da não


discriminação e encampam o caminhar da proteção do imigrante, também por meio
da salvaguarda de direitos trabalhistas. Despertou-se, aqui, aquilo que ANTÔNIO
AUGUSTO CANÇADO TRINDADE denominou “consciência jurídica universal”, que
determina a “prevalência da dignidade da pessoa humana em quaisquer
circunstâncias”353.

Não há, contudo, como se negar os descompassos das legislações nacionais


em relação ao tema, vez que muitos dos países ditos desenvolvidos insistem em
priorizar a dimensão da segurança nacional, tratando a imigração como questão
exclusivamente policial. Tal situação, entretanto, só faz reforçar a necessidade de
planos concretos de ação no sentido de tornar os compromissos internacionais
realidade, como forma de implementar diretivas éticas que não admitem
postergação.

A imigração em condição de irregularidade, nesse quadro, é assunto de


primeira grandeza na agenda internacional, vez que milhares e milhares de seres
humanos submetem-se diariamente aos riscos de cruzamentos irregulares de
fronteiras nacionais na esperança de uma vida melhor (intenção que dificilmente se
pode condenar).

Vindos de países pobres, pode-se afirmar que imigrantes indocumentados,


não raro, são “refugiados por motivos de subsistência”354, na impactante e precisa
                                                            
353 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Voto concorrente. In CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Condición jurídica y derechos de los
migrantes indocumentados. Opinião consultiva OC-18/03. São José da Costa Rica, 17 de setembro
de 2003. Disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_esp.pdf. Acesso em
14 de abril de 2010. No original: “en razón precisamente del despertar de la conciencia jurídica
universal para la necesidad de prevalencia de la dignidad de la persona humana en cualesquiera
circunstancias”. Tradução do autor.
354 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. O direito do estrangeiro numa perspectiva de Direitos Humanos.

Tese de doutoramento. Sevilha: Universidad Pablo de Olavide, 2007, p. 35.

215
 

 
 

metáfora de CRISTIANE MARIA SBALQUEIRO LOPES. Ou seja, fogem de condições


de extrema pobreza e falta de perspectivas em seus países de origem para buscarem
nova vida em países mais desenvolvidos, que, por sua vez, respondem de maneira
geralmente recrudescida.

Assim, em relação aos imigrantes indocumentados as questões tendem a ser


extremamente tormentosas, reunindo elementos de destacada sensibilidade. De toda
sorte, há que se ter em mente que a condição de pessoa humana não admite ser
preterida em face da condição de irregularidade migratória. Distanciar-se de
avaliação dos imigrantes indocumentados como criminosos e aproximar-se da
percepção deles como vítimas de uma cruel indústria da pobreza, que envolve
esquemas odiosos de tráfico de pessoas e exploração de trabalho forçado, é
providência essencial para a análise do tema da forma aqui proposta.

O Brasil tem posição muito peculiar nesta dinâmica. Legatário de uma


história de participação ativa de imigrantes na formação da cultura nacional, o país
vive hoje um momento de mudanças na sua vocação migratória. Hoje, envia mais
migrantes do que recebe, reflexo do panorama social interno. A despeito disso, o
fluxo de imigrantes em condição de irregularidade oriundos, sobretudo, da América
do Sul, cresce consideravelmente nas grandes cidades brasileiras, a ver-se pela
situação dos bolivianos na capital paulista. E enunciar-se, desde já, o aumento desses
fluxos nas próximas décadas não parece previsão infundada.

Assim, a questão migratória decerto recuperará sua relevância na agenda


jurídica nacional, sendo imperioso o alinhamento da regulação e políticas de
migração nacionais às grandes linhas da disciplina internacional na matéria. Tal
providência se concretiza de variadas formas, como, por exemplo, pela promulgação
de um novo Estatuto do Estrangeiro, da aprovação de uma nova política migratória

216
 

 
 

para o país, além da ratificação das convenções internacionais mais relevantes na


matéria (como a Convenção da ONU de 1990 e a Convenção n. 143 da OIT)355.

Desta forma, o Brasil consolidará uma postura humana e equilibrada no


tratamento do tema migratório, o que deve ser aliado à participação em programas
internacionais de combate ao tráfico internacional de pessoas e migrantes, além de
iniciativas multidisciplinares de eliminação de toda e qualquer forma de trabalho em
condição análoga à de escravo.

Trata-se, também, de uma opção estratégica para o país. Somente


posicionando-se em favor da proteção humana dos migrantes documentados ou
indocumentados poderá o Brasil exigir igual tratamento aos muitos de seus
nacionais que se encontram irregularmente em outros países, vítimas das próprias
mazelas do desenvolvimento social brasileiro.

Quanto ao trabalho prestado por imigrantes, muitos são os caminhos para


uma mesma conclusão, que encampa a “finalidade primordial, historicamente
determinante do direito do trabalho: a proteção dos assalariados contra todas as
formas de exploração que possam sofrer”356, na lição de JEAN-CLAUDE JAVILLIER.
Seja por meio da diretiva anti discriminatória, da aplicação da teoria trabalhista das
nulidades, da universalização à proteção ao trabalho, de um direito fundamental ao
trabalho digno, do caminhar dos diplomas internacionais, enfim, a resposta essencial
será a de que o trabalho prestado por imigrante, esteja ele em condição de regularidade migratória
ou não, merecerá ampla tutela, como única maneira de se viabilizar sua existência digna.

                                                            
355 Cf., nesse sentido, SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Internacional do Trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr,

2000, p. 363.
356 JAVILLIER, Jean-Claude. Manual de Direito do Trabalho. Trad. Rita Asdine Bozaciyan. São Paulo:

LTr, 1988, p. 30.

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ANEXO I
CONVENÇÃO N. 143 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
MIGRAÇÕES EM CONDIÇÕES ABUSIVAS E PROMOÇÃO DA IGUALDADE DE
OPORTUNIDADES E DE TRATAMENTO DOS TRABALHADORES MIGRANTES

A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho,


Convocada para Genebra pelo Conselho de Administração do Secretariado
Internacional do Trabalho e realizada a 4 de Junho de 1975, na sua sexagésima
sessão;
Considerando que o preâmbulo da Constituição da Organização Internacional do
Trabalho confere a esta a tarefa de defender os “interesses dos trabalhadores
empregados no estrangeiro”;
Considerando que a Declaração de Filadélfia, para além de outros princípios em que
assenta a Organização Internacional do Trabalho, reafirma que “o trabalho não é
uma mercadoria” e que “a pobreza, onde quer que exista, constitui uma ameaça à
prosperidade colectiva” e reconhece a obrigação solene da Organização de apoiar a
realização de programas capazes de levar, nomeadamente, ao pleno emprego,
especialmente graças a “meios adequados à facilitação das transferências de
trabalhadores, incluindo as migrações de mão-de-obra “(…)”;
Considerando o Programa Mundial do Emprego da OIT, bem como a convenção e
a recomendação sobre política do emprego, 1964 e reafirmando a necessidade de
evitar o aumento excessivo e não controlado ou não assistido dos movimentos
migratórios, em virtude das suas consequências negativas do ponto de vista social e
humano;
Considerando, por outro lado, que os Governos de inúmeros países, no sentido de
vencer o subdesenvolvimento e o desemprego estrutural e crónico, insistem sempre
mais na oportunidade de encorajar as transferências de capitais e de tecnologias do
que nas migrações dos trabalhadores, em função das necessidades e solicitações
desses países e no interesse recíproco dos países de origem e dos países de emprego;
Considerando igualmente o direito de todo o indivíduo poder abandonar qualquer
país, incluindo o seu, e de entrar no seu próprio país, direito esse consignado na
Declaração Universal dos Direitos do Homem e no Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos;
Lembrando as disposições contidas na convenção e na recomendação sobre os
trabalhadores migrantes (revistas), 1949; na recomendação sobre os trabalhadores
migrantes (países insuficientemente desenvolvidos), 1955; na convenção e na
recomendação sobre a política de emprego, 1964; na convenção e na recomendação
sobre o serviço de emprego, 1948; na convenção sobre as agências de emprego
remuneradas (revista), 1949; que abordam assuntos tais como a regulamentação do
recrutamento, da introdução e da colocação dos trabalhadores migrantes, o
fornecimento de informações exactas sobre as migrações, as condições mínimas de
que deveriam desfrutar os migrantes durante a viagem e à chegada, a adopção de

235
 

 
 

uma política activa de emprego, bem como a colaboração internacional nestes


campos;
Considerando que a emigração de trabalhadores devida às condições do mercado de
emprego deveria ser efectuada sob a responsabilidade dos organismos oficiais de
emprego, segundo os acordos multilaterais e bilaterais pertinentes, nomeadamente
os que permitem a livre circulação dos trabalhadores;
Considerando que, em virtude da existência de tráficos ilícitos ou clandestinos de
mão-de-obra, seria conveniente tomar novas medidas dirigidas, em especial, contra
tais abusos;
Lembrando que a convenção sobre os trabalhadores migrantes (revista), 1949, pede
que todos os membros que a tenham ratificado apliquem aos emigrantes que se
encontram legalmente nos limites do seu território um tratamento que não seja
menos favorável do que o aplicado aos seus nacionais no que diz respeito a vários
pontos nela enumerados, desde que esses pontos sejam regulamentados pela
legislação ou dependam das autoridades administrativas;
Lembrando que a definição do termo “discriminação” na convenção sobre a
discriminação (emprego e profissão), 1958, não inclui obrigatoriamente as distinções
baseadas na nacionalidade;
Considerando que seria desejável adoptar novas normas, inclusive no campo da
segurança social, para promover a igualdade de oportunidades e de tratamento dos
trabalhadores migrantes e, no que diz respeito aos pontos regulamentados pela
legislação ou que dependam das autoridades administrativas, garantir um tratamento
que seja, pelo menos, igual ao dos nacionais;
Observando que as iniciativas relacionadas com os diversos problemas que dizem
respeito aos trabalhadores migrantes só poderão atingir plenamente os seus
objectivos se existir uma cooperação íntima com as Nações Unidas e as instituições
especializadas;
Observando que, aquando da elaboração das presentes normas, foram tomados em
consideração os trabalhos das Nações Unidas e das instituições especializadas e que,
a fim de evitar trabalhos supérfluos e de assegurar uma coordenação apropriada,
deverá ser efectivada uma cooperação continua com vista a promover e assegurar a
aplicação de tais normas;
Tendo decidido adoptar diversas propostas relativas aos trabalhadores migrantes,
questão que constitui o quinto ponto da ordem do dia desta sessão;
Após ter decidido que estas propostas deveriam tomar a forma de uma convenção
que completasse a convenção sobre os trabalhadores migrantes (revista), 1949, e a
convenção sobre a discriminação (emprego e profissão), 1958, adopta hoje, dia 24
de Junho de 1975, a Convenção seguinte, denominada Convenção sobre os
Trabalhadores Migrantes (disposições complementares), 1975.

PARTE I
Migrações em condições abusivas

236
 

 
 

Artigo 1º
Os membros para os quais a presente Convenção esteja em vigor deverão
comprometer-se a respeitar os direitos fundamentais do homem de todos os
trabalhadores migrantes.

Artigo 2º
Os membros para os quais a presente Convenção esteja em vigor deverão
comprometer-se a determinar, sistematicamente, se existem migrantes ilegalmente
empregados no seu território e se existem, do ou para o seu território, ou ainda em
trânsito, migrações com fim de emprego nas quais os migrantes sejam submetidos,
durante a sua deslocação, à sua chegada ou durante a sua estada e período de
emprego, a condições contrárias aos instrumentos ou acordos internacionais
aplicáveis, multilaterais ou bilaterais, ou ainda às legislações nacionais.
As organizações representativas dos empregadores e dos trabalhadores deverão ser
plenamente consultadas e ter a possibilidade de fornecer as suas próprias
informações sobre este assunto.

Artigo 3º
Todo o Estado Membro deverá tomar as medidas necessárias e apropriadas, quer da
sua própria competência, quer as que exijam a colaboração de outros Estados
Membros:
a) A fim de suprimir as migrações clandestinas e o emprego ilegal de migrantes;
b) Contra os organizadores de movimentos ilícitos ou clandestinos de migrantes
com fins de emprego, provenientes do seu território ou que a ele se destinam, assim
como os que se efectuam em trânsito por esse mesmo território, bem como contra
aqueles que empregam trabalhadores que tenham imigrado em condições ilegais; a
fim de prevenir e eliminar os abusos citados no artigo 2º da presente Convenção.

Artigo 4º
Os Estados Membros deverão, nomeadamente, adoptar, a nível nacional e
internacional, todas as medidas necessárias para estabelecer contactos e trocas
sistemáticas de informações com os outros Estados sobre este assunto, consultando
igualmente as organizações representativas de empregadores e de trabalhadores.

Artigo 5º
As medidas previstas nos artigos 3º e 4º deverão ter por objectivo processar os
autores de tráfico de mão-de-obra, qualquer que seja o país a partir do qual estes
exerçam as suas actividades.

Artigo 6º
No âmbito das várias legislações nacionais, deverão ser tomadas disposições para
uma detecção eficaz de emprego ilegal de trabalhadores migrantes e para a definição
e aplicação de sanções administrativas, civis e penais, incluindo penas de prisão, no

237
 

 
 

que diz respeito a emprego ilegal de trabalhadores migrantes e à organização de


migrações com fins de emprego que impliquem os abusos definidos no artigo 2.· da
presente Convenção e ainda a assistência prestada conscientemente a tais migrações
com ou sem fins lucrativos.
O empregador processado em virtude da aplicação das disposições tomadas no
presente artigo deverá ter o direito de fazer prova da sua boa fé.

Artigo 7º
As organizações representativas de empregadores e de trabalhadores deverão ser
consultadas no que diz respeito à legislação e às outras medidas previstas pela
presente Convenção com vista a prevenir ou eliminar os abusos acima referidos e
dever-lhes-á ser reconhecida a possibilidade de tomar iniciativas para esse efeito.

Artigo 8º
Desde que tenha residido legalmente no país com fim de emprego, o trabalhador
migrante não poderá ser considerado em situação ilegal ou irregular pela simples
perda do seu emprego, a qual, por si só, não deverá acarretar a revogação da sua
autorização de residência ou, eventualmente, da sua autorização de trabalho.
Por conseguinte, deverá beneficiar de tratamento igual ao dos nacionais,
especialmente no que diz respeito às garantias relativas à segurança de emprego, à
reclassificação, aos trabalhos de recurso e à readaptação.

Artigo 9º
Sem prejuízo das medidas destinadas a controlar os movimentos migratórios com
fins de emprego garantindo que os trabalhadores migrantes entram no território
nacional e aí são empregados em conformidade com a legislação aplicável, o
trabalhador migrante, nos casos em que a legislação não tenha sido respeitada e nos
quais a sua situação não possa ser regularizada, deverá beneficiar pessoalmente,
assim como a sua família, de tratamento igual no que diz respeito aos direitos
decorrentes de empregos anteriores em relação à remuneração, à segurança social e
a outras vantagens.
Em caso de contestação dos direitos previstos no parágrafo anterior, o trabalhador
deverá ter a possibilidade de fazer valer os seus direitos perante um organismo
competente, quer pessoalmente, quer através dos seus representantes.
Em caso de expulsão do trabalhador ou da sua família, estes não deverão custeá-la.
Nenhuma disposição da presente Convenção impedirá os Estados Membros de
conceder às pessoas que residem ou trabalham ilegalmente no país o direito de nele
permanecerem e serem legalmente empregadas.

PARTE II
Igualdade de oportunidades e de tratamento

Artigo 10º

238
 

 
 

Os membros para os quais a presente Convenção esteja em vigor comprometem-se


a formular e a aplicar uma política nacional que se proponha promover e garantir,
por métodos adaptados às circunstâncias e aos costumes nacionais, a igualdade de
oportunidades e de tratamento em matéria de emprego e de profissão, de segurança
social, de direitos sindicais e culturais e de liberdades individuais e colectivas para
aqueles que se encontram legalmente nos seus territórios na qualidade de emigrantes
ou de familiares destes.

Artigo 11º
Para fins de aplicação do disposto nesta parte II da Convenção, o termo
“trabalhador migrante” designa uma pessoa que emigra ou emigrou de um país para
outro com o fim de ocupar um emprego não por conta própria; compreende todo e
qualquer indivíduo regularmente admitido como trabalhador migrante.
A presente parte II não se aplicará:
a) Aos trabalhadores fronteiriços;
b) Aos artistas e aos indivíduos que exerçam uma profissão liberal que tenham
entrado no país por período curto;
c) Aos trabalhadores do mar;
d) Aos indivíduos vindos especialmente com fins de formação ou de educação;
e) Aos indivíduos empregados por organizações ou empresas que laborem no
território de um país e que tenham sido admitidos temporariamente nesse país, a
pedido do seu empregador, a fim de cumprir funções ou executar tarefas específicas
durante um período limitado e determinado e que devem abandonar o país logo que
sejam dadas por terminadas tais funções ou tarefas.

Artigo 12º
Todo o Estado Membro, através de métodos adaptados às circunstâncias e aos
costumes nacionais:
a) Deverá esforçar-se por obter a colaboração das organizações de empregadores e
de trabalhadores, assim como de outros organismos adequados, a fim de
impulsionar a aceitação e a aplicação da política prevista no artigo 10º da presente
Convenção;
b) Deverá promulgar as leis e encorajar programas de educação capazes de assegurar
a aceitação e a aplicação mencionadas;
c) Deverá tomar medidas, encorajar programas de educação e desenvolver outras
actividades com o objectivo de proporcionar aos trabalhadores migrantes o
conhecimento mais completo possível da política adoptada, dos seus direitos e
obrigações, assim como das iniciativas que se destinam a prestar-lhes uma
assistência efectiva com vista a assegurar a sua protecção e a permitir o exercício dos
seus direitos;
d) Deverá revogar todas as disposições legislativas e modificar todas as disposições
ou práticas administrativas incompatíveis com a política enunciada;

239
 

 
 

e) Consultando as organizações representativas de empregadores e de trabalhadores,


deverá elaborar e aplicar uma política social conforme às condições e costumes
nacionais a fim de que os trabalhadores migrantes e suas famílias possam beneficiar
das mesmas vantagens que os nacionais, tendo em conta as necessidades especiais
que possam ter até que a sua adaptação à sociedade do país de emprego seja uma
realidade, sem, no entanto, lesar o princípio da igualdade de oportunidades e de
tratamento;
f) Deverá tomar todas as medidas ao seu alcance no sentido de ajudar e encorajar os
esforços dos trabalhadores migrantes e suas famílias tendentes a preservar as suas
identidades nacionais e étnicas, assim como os laços culturais com os países de
origem e, inclusivamente, dar às crianças a possibilidade de beneficiar de um ensino
da sua língua materna;
g) Deverá garantir a igualdade de tratamento em matéria de condições de trabalho
entre todos os trabalhadores migrantes que exerçam a mesma actividade, sejam
quais forem as condições específicas dos respectivos empregos.

Artigo 13º
Todo o Estado Membro poderá tomar as medidas necessárias, dentro da sua
competência, e colaborar com outros Estados Membros no sentido de facilitar o
reagrupamento familiar de todos os trabalhadores migrantes que residam legalmente
no seu território.
O disposto no presente artigo refere-se ao cônjuge do trabalhador migrante, assim
como, quando a seu cargo, seus filhos, seu pai e sua mãe.

Artigo 14º
Todo o Estado Membro:
a) Poderá subordinar a livre escolha de emprego, assegurando, no entanto, o direito
à mobilidade geográfica, à condição de que o trabalhador migrante tenha residido
legalmente no país, com fins de emprego, durante um período prescrito que não
deverá ultrapassar dois anos ou, caso a legislação exija um contrato de duração
determinada inferior a dois anos, que o primeiro contrato de trabalho tenha
caducado;
b) Após consulta oportuna às organizações representativas de empregadores e de
trabalhadores, poderá regulamentar as condições de reconhecimento das
qualificações profissionais, incluindo certificados e diplomas obtidos no estrangeiro;
c) Poderá restringir o acesso a certas categorias limitadas de emprego e de funções
quando tal for necessário ao interesse do Estado.

PARTE III
Disposições finais

Artigo 15º

240
 

 
 

A presente Convenção não impedirá os Estados Membros de firmar acordos


multilaterais ou bilaterais que visem solucionar os problemas resultantes da sua
aplicação.

Artigo 16º
Todo o Estado Membro que ratifique a presente Convenção poderá excluir da sua
aplicação a parte I ou a parte II da Convenção por meio de uma declaração anexa à
sua ratificação.
Todo o Estado Membro que tenha feito tal declaração poderá, em qualquer altura,
anulá-la por meio de declaração ulterior.
Todo o Estado Membro para o qual vigore uma declaração nos termos do parágrafo
I do presente artigo deverá indicar, nos seus relatórios sobre a aplicação da presente
Convenção, o estado da sua legislação e da sua prática face às disposições da parte
excluída da sua aceitação, precisando em que medida deu seguimento ou se propõe
dá-lo a essas disposições, assim como as razões pelas quais ainda as não incluiu na
sua aceitação da Convenção.

Artigo 18º
A presente Convenção vinculará unicamente os Estados Membros da Organização
Internacional do Trabalho cuja ratificação tenha sido registada pelo director-geral.
A presente Convenção entrará em vigor doze meses após o registo das ratificações
de dois Estados Membros pelo director-geral.
Seguidamente, esta Convenção entrará em vigor para cada Estado Membro doze
meses após a data em que a sua ratificação tiver sido registada.

Artigo 19º
Todo o Estado Membro que tenha ratificado a presente Convenção poderá
denunciá-la, após um período de dez anos a partir da data de entrada em vigor
inicial da Convenção, por meio de uma comunicação ao director-geral do
Secretariado Internacional do Trabalho e por ele registada.
Todo o Estado Membro que tenha ratificado a presente Convenção e que, no prazo
de um ano após o termo do período de dez anos mencionado no parágrafo
precedente, não tenha utilizado a faculdade de denúncia prevista no presente artigo
ficará vinculado por novo período de dez anos e, posteriormente, poderá denunciar
a presente Convenção no termo de cada período de dez anos, nas condições
previstas no presente artigo.

Artigo 20º
O director-geral do Secretariado Internacional do Trabalho notificará todos os
Estados Membros da Organização Internacional do Trabalho do registo de todas as
notificações e denúncias que lhe sejam comunicadas pelos Estados Membros da
Organização.

241
 

 
 

Ao notificar os Estados Membros da Organização do registo da segunda ratificação


que lhe seja comunicada, o director-geral chamará a atenção dos Estados Membros
da Organização para a data de entrada em vigor da presente Convenção.

Artigo 21º
O director-geral do Secretariado Internacional do Trabalho comunicará ao
Secretário-Geral das Nações Unidas, a fim de que sejam registadas, de acordo com o
artigo 102.· da Carta das Nações Unidas, informações completas sobre todas as
ratificações e denúncias que registar segundo o disposto nos artigos precedentes.

Artigo 22º
Sempre que o julgue necessário, o Conselho de Administração do Secretariado
Internacional do Trabalho apresentará à Conferência Geral um relatório sobre a
aplicação da presente Convenção e avaliará da oportunidade de inscrever na ordem
do dia da Conferência a questão da sua revisão total ou parcial.

Artigo 23º
No caso de a Conferência adoptar nova convenção que implique revisão total ou
parcial da presente Convenção, e salvo disposição em contrário da nova convenção:
a) A ratificação da nova convenção de revisão por um dos Estados Membros
implicará ipso jure, e não obstante o disposto no artigo 19º supra, denúncia imediata
da presente Convenção, sob reserva de que a nova convenção de revisão tenha
entrado em vigor;
b) A partir da data de entrada em vigor da nova convenção de revisão, a presente
Convenção deixaria de estar aberta à ratificação dos Estados Membros.
A presente Convenção continuaria todavia em vigor na sua forma e conteúdo para
os Estados Membros que a tivessem ratificado e que não ratificassem a convenção
de revisão.

Artigo 24º
Fazem igualmente fé as versões francesa e inglesa da presente Convenção.

242
 

 
 

ANEXO II
CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DE TODOS
OS TRABALHADORES MIGRANTES E DOS MEMBROS DAS SUAS FAMÍLIAS

Adotada pela Resolução 45/158, de 18 de Dezembro de 1990, da Assembléia-Geral

Preâmbulo
Parte I Âmbito e definições
Parte II Não discriminação em matéria de direitos
Parte III Direitos Humanos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros
das suas Famílias
Parte IV Outros direitos dos Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas
Famílias que se encontram documentados ou em situação regular
Parte V Disposições aplicáveis a categorias especiais de Trabalhadores Migrantes e
aos Membros das suas Famílias
Parte VI Promoção de condições saudáveis, eqüitativas, dignas e justas em matéria
de migração internacional de trabalhadores e das suas famílias
Parte VII Aplicação da Convenção
Parte VIII Disposições gerais
Parte IX Disposições finais

Preâmbulo

Os Estados Partes na presente Convenção,

Tendo em conta os princípios enunciados nos instrumentos básicos das Nações


Unidas relativos aos direitos humanos, em especial a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, o Pato Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e
Culturais, o Pato Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres e a Convenção sobre os Direitos da Criança;
Tendo igualmente em conta as normas e princípios estabelecidos nos instrumentos
pertinentes elaborados no âmbito da Organização Internacional do Trabalho, em
particular a Convenção relativa aos Trabalhadores Migrantes (n.º 97), a Convenção
relativa às Migrações em Condições Abusivas e à Promoção da Igualdade de
Oportunidades e de Tratamento dos Trabalhadores Migrantes (n.º 143), a
Recomendação relativa à Migração para o Emprego (n.º 86), a Recomendação
relativa aos Trabalhadores Migrantes (n.º 151), a Convenção sobre Trabalho
Forçado ou Obrigatório (n.º 29) e a Convenção sobre a Abolição do Trabalho
Forçado (n.º 105);

243
 

 
 

Reafirmando a importância dos princípios enunciados na Convenção relativa à Luta


contra a Discriminação no Campo do Ensino, da Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura;
Recordando a Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis,
Desumanos ou Degradantes, a Declaração do Quarto Congresso das Nações Unidas
para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes, o Código de Conduta
para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, e as Convenções sobre a
Escravatura;
Recordando que um dos objetivos da Organização Internacional do Trabalho,
estabelecido na sua Constituição, é a proteção dos interesses dos trabalhadores
empregados em países estrangeiros, e tendo presente a perícia e a experiência desta
Organização em assuntos relacionados com os trabalhadores migrantes e os
membros das suas famílias;
Reconhecendo a importância do trabalho realizado sobre os trabalhadores migrantes
e os membros das suas famílias por vários órgãos das Nações Unidas, em particular
a Comissão dos Direitos Humanos, a Comissão para o Desenvolvimento Social,
bem como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura e a
Organização Mundial de Saúde, e outras organizações internacionais;
Reconhecendo, igualmente, os progressos realizados por alguns Estados, nos planos
regional ou bilateral, no sentido da proteção dos direitos dos trabalhadores
migrantes e dos membros das suas famílias, bem como a importância e a utilidade
dos acordos bilaterais e multilaterais celebrados neste domínio;
Conscientes da importância e da extensão do fenômeno da migração, que envolve
milhares de pessoas e afeta um grande número de Estados na comunidade
internacional;
Conscientes do efeito das migrações de trabalhadores nos Estados e nas populações
interessadas, e desejando estabelecer normas que possam contribuir para a
harmonização das condutas dos Estados através da aceitação de princípios
fundamentais relativos ao tratamento dos trabalhadores migrantes e dos membros
das suas famílias;
Considerando a situação de vulnerabilidade em que freqüentemente se encontram
os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias devido, nomeadamente,
ao seu afastamento do Estado de origem e a eventuais dificuldades resultantes da
sua presença no Estado de emprego;
Convencidos de que os direitos dos trabalhadores migrantes e dos membros das
suas famílias não têm sido suficientemente reconhecidos em todo o mundo,
devendo, por este motivo, beneficiar de uma proteção internacional adequada;
Tomando em consideração o fato de que, em muitos casos, as migrações são a causa
de graves problemas para os membros das famílias dos trabalhadores migrantes bem
como para os próprios trabalhadores, especialmente por causa da dispersão da
família;

244
 

 
 

Considerando que os problemas humanos decorrentes das migrações são ainda mais
graves no caso da migração irregular e convictos, por esse motivo, de que se deve
encorajar a adoção de medidas adequadas a fim de prevenir e eliminar os
movimentos clandestinos e o tráfico de trabalhadores migrantes, assegurando ao
mesmo tempo a proteção dos direitos humanos fundamentais destes trabalhadores;
Considerando que os trabalhadores indocumentados ou em situação irregular são,
freqüentemente, empregados em condições de trabalho menos favoráveis que
outros trabalhadores e que certos empregadores são, assim, levados a procurar tal
mão de obra a fim de beneficiar da concorrência desleal;
Considerando, igualmente, que o emprego de trabalhadores migrantes em situação
irregular será desencorajado se os direitos humanos fundamentais de todos os
trabalhadores migrantes forem mais amplamente reconhecidos e que, além disso, a
concessão de certos direitos adicionais aos trabalhadores migrantes e membros das
suas famílias em situação regular encorajará todos os migrantes e empregadores a
respeitar e a aplicar as leis e os procedimentos estabelecidos pelos Estados
interessados;
Convictos, por esse motivo, da necessidade de realizar a proteção internacional dos
direitos de todos os trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias,
reafirmando e estabelecendo normas básicas no quadro de uma convenção
abrangente suscetível de ser universalmente aplicada;
Acordam no seguinte:

Parte I
Âmbito e definições

Artigo 1º
1. Salvo disposição em contrário constante do seu próprio texto, a presente
Convenção aplica-se a todos os trabalhadores migrantes e aos membros das suas
famílias sem qualquer distinção, fundada nomeadamente no sexo, raça, cor, língua,
religião ou convicção, opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou social,
nacionalidade, idade, posição econômica, patrimônio, estado civil, nascimento ou
outra situação.
2. A presente Convenção aplica-se a todo o processo migratório dos trabalhadores
migrantes e dos membros das suas famílias, o qual compreende a preparação da
migração, a partida, o trânsito e a duração total da estada, a atividade 20 remunerada
no Estado de emprego, bem como o regresso ao Estado de origem ou ao Estado de
residência habitual.

Artigo 2º
Para efeitos da presente Convenção:
1. A expressão “trabalhador migrante” designa a pessoa que vai exercer, exerce ou
exerceu uma atividade remunerada num Estado de que não é nacional.

245
 

 
 

2. a) A expressão “trabalhador fronteiriço” designa o trabalhador migrante que


conserva a sua residência habitual num Estado vizinho a que regressa, em princípio,
todos os dias ou, pelo menos, uma vez por semana;
b) A expressão “trabalhador sazonal” designa o trabalhador migrante cuja atividade,
pela sua natureza, depende de condições sazonais e só se realiza durante parte do
ano;
c) A expressão “marítimo”, que abrange os pescadores, designa o trabalhador
migrante empregado a bordo de um navio matriculado num Estado de que não é
nacional;
d) A expressão “trabalhador numa estrutura marítima” designa o trabalhador
migrante empregado numa estrutura marítima que se encontra sob a jurisdição de
um Estado de que não é nacional;
e) A expressão “trabalhador itinerante” designa o trabalhador migrante que, tendo a
sua residência habitual num Estado, tem de viajar para outros Estados por períodos
curtos, devido à natureza da sua ocupação;
f) A expressão “trabalhador vinculado a um projeto” designa o trabalhador migrante
admitido num Estado de emprego por tempo definido para trabalhar unicamente
num projeto concreto conduzido pelo seu empregador nesse Estado;
g) A expressão “trabalhador com emprego específico” designa o trabalhador
migrante:
(i) Que tenha sido enviado pelo seu empregador, por um período limitado e
definido, a um Estado de emprego para aí realizar uma tarefa ou função específica;
ou
(ii) Que realize, por um período limitado e definido, um trabalho que exige
competências profissionais, comerciais, técnicas ou altamente especializadas de
outra natureza; ou
(iii) Que, a pedido do seu empregador no Estado de emprego, realize, por um
período limitado e definido, um trabalho de natureza transitória ou de curta
duração; e que deva deixar o Estado de emprego ao expirar o período autorizado de
residência, ou mais cedo, se deixa de realizar a tarefa ou função específica ou o
trabalho inicial;
h) A expressão “trabalhador independente” designa o trabalhador migrante que
exerce uma atividade remunerada não submetida a um contrato de trabalho e que
ganha a sua vida através desta atividade, trabalhando normalmente só ou com
membros da sua família, assim como o trabalhador considerado independente pela
legislação aplicável do Estado de emprego ou por acordos bilaterais ou multilaterais.

Artigo 3º
A presente Convenção não se aplica:
a) Às pessoas enviadas ou empregadas por organizações e organismos
internacionais, nem às pessoas enviadas ou empregadas por um Estado fora do seu
território para desempenharem funções oficiais, cuja admissão e estatuto são

246
 

 
 

regulados pelo direito internacional geral ou por acordos internacionais ou


convenções internacionais específicas;
b) Às pessoas enviadas ou empregadas por um Estado ou por conta desse Estado
fora do seu território que participam em programas de desenvolvimento e noutros
programas de cooperação, cuja admissão e estatuto são regulados por acordo
celebrado com o Estado de emprego e que, nos termos deste acordo, não são
consideradas trabalhadores migrantes;
c) Às pessoas que se instalam num Estado diferente do seu Estado de origem na
qualidade de investidores;
d) Aos refugiados e apátridas, salvo disposição em contrário da legislação nacional
pertinente do Estado Parte interessado ou de instrumentos internacionais em vigor
para esse Estado;
e) Aos estudantes e estagiários;
f) Aos marítimos e aos trabalhadores de estruturas marítimas que não tenham sido
autorizados a residir ou a exercer uma atividade remunerada no Estado de emprego.

Artigo 4º
Para efeitos da presente Convenção, a expressão “membros da família” designa a
pessoa casada com o trabalhador migrante ou que com ele mantém uma relação que,
em virtude da legislação aplicável, produz efeitos equivalentes aos do casamento,
bem como os filhos a seu cargo e outras pessoas a seu cargo, reconhecidas como
familiares pela legislação aplicável ou por acordos bilaterais ou multilaterais
aplicáveis entre os Estados interessados.

Artigo 5º
Para efeitos da presente Convenção, os trabalhadores migrantes e os membros das
suas famílias:
a) São considerados documentados ou em situação regular se forem autorizados a
entrar, permanecer e exercer uma atividade remunerada no Estado de emprego, ao
abrigo da legislação desse Estado e das convenções internacionais de que esse
Estado seja Parte;
b) São considerados indocumentados ou em situação irregular se não preenchem as
condições enunciadas na alínea a) do presente artigo.

Artigo 6º
Para os efeitos da presente Convenção:
a) A expressão “Estado de origem” designa o Estado de que a pessoa interessada é
nacional;
b) A expressão “Estado de emprego” designa o Estado onde o trabalhador migrante
vai exercer, exerce ou exerceu uma atividade remunerada, consoante o caso;
c) A expressão “Estado de trânsito” designa qualquer Estado por cujo território a
pessoa interessada deva transitar a fim de se dirigir para o Estado de emprego ou do
Estado de emprego para o Estado de origem ou de residência habitual.

247
 

 
 

Parte II
Não discriminação em matéria de direitos

Artigo 7º
Os Estados Partes comprometem-se, em conformidade com os instrumentos
internacionais relativos aos direitos humanos, a respeitar e a garantir os direitos
previstos na presente Convenção a todos os trabalhadores migrantes e membros da
sua família que se encontrem no seu território e sujeitos à sua jurisdição, sem
distinção alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo,
língua, religião ou convição, opinião política ou outra, origem nacional, étnica ou
social, nacionalidade, idade, posição econômica, patrimônio, estado civil,
nascimento ou de qualquer outra situação.

Parte III
Direitos humanos de todos os trabalhadores migrantes e dos membros das suas
famílias

Artigo 8º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias podem sair
livremente de qualquer Estado, incluindo o seu Estado de origem. Este direito só
pode ser objeto de restrições que, sendo previstas na lei, constituam disposições
necessárias para proteger a segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou moral
públicas, ou os direitos e liberdades de outrem, e se mostrem compatíveis com os
outros direitos reconhecidos na presente parte da Convenção.
2. Os trabalhadores migrantes e os membros da sua família têm o direito a regressar
em qualquer momento ao seu Estado de origem e aí permanecer.

Artigo 9º
O direito à vida dos trabalhadores migrantes e dos membros da sua família é
protegido por lei.

Artigo 10º
Nenhum trabalhador migrante ou membro da sua família pode ser submetido a
tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Artigo 11º
1. Nenhum trabalhador migrante ou membro da sua família será mantido em
escravatura ou servidão.
2. Nenhum trabalhador migrante ou membro da sua família pode ser constrangido a
realizar um trabalho forçado ou obrigatório.
3. O nº 2 do presente artigo não será interpretado no sentido de proibir, nos
Estados onde certos crimes podem ser punidos com pena de prisão acompanhada

248
 

 
 

de trabalho forçado, o cumprimento de uma pena de trabalhos forçados imposta


por um tribunal competente.
4. Para efeitos do presente artigo, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” não
abrange:
a) qualquer trabalho ou serviço, não previsto no nº 3 do presente artigo, exigido
normalmente a uma pessoa que, em virtude de uma decisão judicial ordinária, se
encontra detida ou tenha sido colocada em liberdade condicional posteriormente;
b) qualquer serviço exigido no caso de crise ou de calamidade que ameacem a vida
ou o bem-estar da comunidade;
c) qualquer trabalho ou serviço que forme parte das obrigações cívicas normais,
desde que exigível também a cidadãos do Estado interessado.

Artigo 12º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros da sua família têm direito à liberdade
de pensamento, de consciência e de religião. Este direito abrange a liberdade de
professar ou de adotar uma religião ou crença da sua escolha, bem como a liberdade
de manifestar a sua religião ou crença, individual ou coletivamente, em público e em
privado, pelo culto, celebração de ritos, práticas e o ensino.
2. Os trabalhadores migrantes e os membros da sua família não serão submetidos a
coação que prejudique a sua liberdade de professar e adotar uma religião ou crença
da sua escolha.
3. A liberdade de manifestar a sua religião ou crença só pode ser objeto de restrições
previstas na lei e que se mostrem necessárias à proteção da segurança nacional, da
ordem pública, da saúde ou da moral públicas, e das liberdades e direitos
fundamentais de outrem.
4. Os Estados Partes na presente Convenção comprometem-se a respeitar a
liberdade dos pais, quando pelo menos um deles é trabalhador migrante, e, sendo
caso disso, dos representantes legais, de assegurar a educação religiosa e moral dos
seus filhos de acordo com as suas convicções.

Artigo 13º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm o direito de
exprimir as suas convicções sem interferência.
2. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm direito à
liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de procurar, receber e
expandir informações e idéias de toda a espécie, sem consideração de fronteiras, sob
a forma oral, escrita, impressa ou artística ou por qualquer outro meio à sua escolha.
3. O exercício do direito previsto no nº 2 do presente artigo implica deveres e
responsabilidades especiais. Por esta razão, pode ser objeto de restrições, desde que
estejam previstas na lei e se afigurem necessárias:
a) Ao respeito dos direitos e da reputação de outrem;
b) À salvaguarda da segurança nacional dos Estados interessados, da
ordem pública, da saúde ou da moral públicas;

249
 

 
 

c) A prevenir a incitação à guerra;


d) A prevenir a apologia do ódio nacional, racial e religioso, que constitua uma
incitação à discriminação, à hostilidade ou à violência.

Artigo 14º
Nenhum trabalhador migrante ou membro da sua família será sujeito a intromissões
arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio, na sua
correspondência ou outras comunicações, nem a ofensas ilegais à sua honra e
reputação. Os trabalhadores migrantes e membros da sua família têm direito à
proteção da lei contra tais intromissões ou ofensas.

Artigo 15º
Nenhum trabalhador migrante ou membro da sua família será arbitrariamente
privado dos bens de que seja o único titular ou que possua conjuntamente com
outrem. A expropriação total ou parcial dos bens de um trabalhador migrante ou
membro da sua família só pode ser efetuada nos termos da legislação vigente no
Estado de emprego mediante o pagamento de uma indenização justa e adequada.

Artigo 16º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm direito à
liberdade e à segurança da sua pessoa.
2. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm direito à proteção
efetiva do Estado contra a violência, os maus tratos físicos, as ameaças e a
intimidação, por parte de funcionários públicos ou privados, grupos ou instituições.
3. A verificação pelos funcionários responsáveis pela aplicação da lei da identidade
dos trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias deve ser conduzida de
acordo com o procedimento estabelecido na lei.
4. Nenhum trabalhador migrante ou membro da sua família será sujeito, individual
ou coletivamente, a detenção ou prisão arbitrária; nem será privado da sua liberdade,
salvo por motivos e em conformidade com os procedimentos estabelecidos por lei.
5. O trabalhador migrante ou membro da sua família que seja detido deve ser
informado, no momento da detenção, se possível numa língua que compreenda, dos
motivos desta e prontamente notificado, numa língua que compreenda, das
acusações contra si formuladas.
6. O trabalhador migrante ou membro da sua família que seja detido ou preso pela
prática de uma infração penal deve ser presente, sem demora, a um juiz ou outra
entidade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgado
em prazo razoável ou de aguardar julgamento em liberdade. A prisão preventiva da
pessoa que tenha de ser julgada não deve ser a regra geral, mas a sua libertação pode
ser subordinada a garantias que assegurem a sua comparência na audiência ou em
qualquer ato processual e, se for o caso, para execução de sentença.
7. No caso de sujeição de um trabalhador migrante ou membro da sua família a
detenção ou prisão preventiva, ou a qualquer outra forma de detenção:

250
 

 
 

a) As autoridades diplomáticas ou consulares do seu Estado de origem ou de um


Estado que represente os interesses desse Estado são informadas sem demora, se o
interessado assim o solicitar, da sua detenção ou prisão e dos fundamentos dessa
medida;
b) A pessoa interessada tem direito a comunicar com as referidas autoridades. As
comunicações dirigidas pelo interessado às referidas autoridades devem ser
transmitidas sem demora, e o interessado tem também direito a receber, sem
demora, as comunicações enviadas pelas referidas autoridades;
c) A pessoa interessada deve ser informada sem demora deste direito, e dos direitos
emergentes de tratados eventualmente celebrados nesta matéria entre os Estados
interessados, de trocar correspondência e de reunir-se com representantes das
referidas autoridades e de tomar providências com vista à sua representação legal.
8. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias que sejam privados
da sua liberdade mediante detenção ou prisão têm o direito de interpor recurso
perante um tribunal, para que este decida sem demora sobre a legalidade da sua
detenção e ordene a sua libertação no caso de aquela ser ilegal. Quando participem
nas audiências, devem beneficiar da assistência, se necessário gratuita, de um
intérprete, se não compreenderem ou não falarem suficientemente bem a língua
utilizada pelo tribunal.
9. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias que tiverem sofrido
detenção ou prisão preventiva ilegal têm o direito de requerer uma indenização
adequada.

Artigo 17º
1. Os trabalhadores migrantes e membros das suas famílias privados da sua
liberdade devem ser tratados com humanidade e com respeito da dignidade inerente
à pessoa humana e à sua identidade cultural.
2. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias sob acusação são
separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e submetidos a
um regime distinto, adequado à sua condição de pessoas não condenadas. Se forem
menores, são separados dos adultos, devendo o seu processo ser decidido com a
maior celeridade.
3. Qualquer trabalhador migrante ou membro da sua família que se encontre detido
num Estado de trânsito, ou num Estado de emprego, por violação das disposições
relativas à migração deve, na medida do possível, ser separado das pessoas detidas
ou presas preventivamente.
4. Durante todo o período de prisão em execução de sentença proferida por um
tribunal, o tratamento do trabalhador migrante ou membro da sua família terá por
finalidade, essencialmente, a sua reinserção e recuperação social. Delinqüentes
jovens serão separados dos adultos e submetidos a um regime adequado à sua idade
e ao seu estatuto legal.

251
 

 
 

5. Durante a detenção ou prisão, os trabalhadores migrantes e os membros das suas


famílias gozam dos mesmos direitos de que beneficiam os cidadãos nacionais de
receber visitas dos seus familiares.
6. No caso de um trabalhador migrante ser privado da sua liberdade, as autoridades
competentes do Estado da detenção devem ter em conta os problemas que podem
colocar-se aos membros da sua família, em particular os cônjuges e filhos menores.
7. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias sujeitos a qualquer
forma de detenção ou prisão, em virtude da legislação do Estado de emprego ou do
Estado de trânsito, gozam dos mesmos direitos que os cidadãos nacionais desse
Estado que se encontrem na mesma situação.
8. Se um trabalhador migrante ou membro da sua família for detido com o fim de
verificar se houve infração às disposições relacionadas com a migração não terá de
suportar quaisquer encargos daí decorrentes.

Artigo 18º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros da sua família têm os mesmos direitos,
perante os tribunais, que os nacionais do Estado interessado. Têm direito a que a
sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal competente,
independente e imparcial, instituído por lei, que decidirá dos seus direitos e
obrigações de caráter civil ou das razões de qualquer acusação em matéria penal
contra si formulada.
2. O trabalhador migrante ou membro da sua família suspeito ou acusado da prática
de um crime presume-se inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente
estabelecida.
3. O trabalhador migrante ou membro da sua família acusado de ter infringido a lei
penal tem, no mínimo, direito às garantias seguintes:
a) A ser informado prontamente, numa língua que compreenda e
pormenorizadamente, da natureza e dos motivos das acusações formuladas contra
si;
b) A dispor do tempo e dos meios necessários à preparação da sua defesa e a
comunicar com o advogado da sua escolha;
c) A ser julgado num prazo razoável;
d) A estar presente no julgamento e a defender-se a si próprio ou por intermédio de
um defensor da sua escolha; se não tiver patrocínio jurídico, a ser informado deste
direito; e a pedir a designação de um defensor oficioso, sempre que os interesses da
justiça exijam a assistência do defensor, sem encargos, se não tiver meios suficientes
para os suportar;
e) A interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter a
comparência e o interrogatório das testemunhas de defesa em condições de
igualdade;
f) A beneficiar da assistência gratuita de um intérprete se não compreender ou falar
a língua utilizada pelo tribunal;
g) A não ser obrigado a testemunhar ou a confessar-se culpado.

252
 

 
 

4. No caso de menores, o processo tomará em conta a sua idade e a necessidade de


facilitar a sua reintegração social.
5. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias condenados pela
prática de um crime têm o direito de recorrer dessa decisão para um tribunal
superior, nos termos da lei.
6. Quando uma condenação penal definitiva é ulteriormente anulada ou quando é
concedido o indulto, porque um fato novo ou recentemente revelado prova que se
produziu um erro judiciário, o trabalhador migrante ou membro da sua família que
cumpriu uma pena em virtude dessa condenação será indenizado, em conformidade
com a lei, a menos que se prove que a não revelação em tempo útil de fato
desconhecido lhe é imputável no todo ou em parte.
7. Nenhum trabalhador migrante ou membro da sua família pode ser perseguido ou
punido pela prática de uma infração pela qual já tenha sido absolvido ou condenado,
em conformidade com a lei e o processo penal do Estado interessado.

Artigo 19º
1. Nenhum trabalhador migrante ou membro da sua família pode ser sentenciado
criminalmente por ação ou omissão que no momento da sua prática não seja
considerada criminosa segundo a lei interna ou o direito internacional. Será aplicada
retroativamente a lei penal que preveja a imposição de uma pena mais favorável ao
argüido.
2. Na determinação da medida da pena, o tribunal atenderá a considerações de
natureza humanitária relativas ao estatuto de trabalhador migrante, nomeadamente o
direito de residência ou de trabalho reconhecido ao trabalhador migrante ou
membro da sua família.

Artigo 20º
1. Nenhum trabalhador migrante será detido pela única razão de não poder cumprir
uma obrigação contratual.
2. Nenhum trabalhador migrante ou um membro da sua família pode ser privado da
sua autorização de residência ou de trabalho, nem expulso, pela única razão de não
ter cumprido uma obrigação decorrente de um contrato de trabalho, salvo se a
execução dessa obrigação constituir uma condição de tais autorizações.

Artigo 21º
Ninguém, exceto os funcionários públicos devidamente autorizados por lei para este
efeito, tem o direito de apreender, destruir ou tentar destruir documentos de
identidade, documentos de autorização de entrada, permanência, residência ou de
estabelecimento no território nacional, ou documentos relativos à autorização de
trabalho. Se for autorizada a apreensão e perda desses documentos, será emitido um
recibo pormenorizado. Em caso algum é permitido destruir o passaporte ou
documento equivalente de um trabalhador migrante ou de um membro da sua
família.

253
 

 
 

Artigo 22º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros da sua família não podem ser objeto de
medidas de expulsão coletiva. Cada caso de expulsão será examinado e decidido
individualmente.
2. Os trabalhadores migrantes e os membros da sua família só podem ser expulsos
do território de um Estado Parte em cumprimento de uma decisão tomada por uma
autoridade competente em conformidade com a lei.
3. A decisão deve ser comunicada aos interessados numa língua que compreendam.
A seu pedido, se não for obrigatório, a decisão será comunicada por escrito e, salvo
em circunstâncias excepcionais, devidamente fundamentada. Os interessados serão
informados deste direito antes de a decisão ser tomada ou, o mais tardar, no
momento em que for tomada.
4. Salvo nos casos de uma decisão definitiva emanada de uma autoridade judicial, o
interessado tem o direito de fazer valer as razões que militam contra a sua expulsão
e de recorrer da decisão perante a autoridade competente, salvo imperativos de
segurança nacional. Enquanto o seu recurso é apreciado, tem o direito de procurar
obter a suspensão da referida decisão.
5. Se uma decisão de expulsão já executada for subseqüentemente anulada, a pessoa
interessada tem direito a obter uma indenização de acordo com a lei, não podendo a
decisão anterior ser invocada para impedi-lo de regressar ao Estado em causa.
6. No caso de expulsão, a pessoa interessada deve ter a possibilidade razoável, antes
ou depois da partida, de obter o pagamento de todos os salários ou prestações que
lhe sejam devidos, e de cumprir eventuais obrigações não executadas.
7. Sem prejuízo da execução de uma decisão de expulsão, o trabalhador migrante ou
membro da sua família objeto desta decisão pode solicitar a admissão num Estado
diferente do seu Estado de origem.
8. No caso de expulsão, as despesas ocasionadas por esta medida não serão
suportadas pelo trabalhador migrante ou membro da sua família. O interessado
pode, no entanto, ser obrigado a custear as despesas da viagem.
9. A expulsão do Estado de emprego, em si, não prejudica os direitos adquiridos, em
conformidade com a lei desse Estado, pelo trabalhador migrante ou membro da sua
família, nomeadamente o direito de receber os salários e outras prestações que lhe
sejam devidos.

Artigo 23º
Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm o direito de
recorrer à proteção e à assistência das autoridades diplomáticas e consulares do seu
Estado de origem ou de um Estado que represente os interesses daquele Estado em
caso de violação dos direitos reconhecidos na presente Convenção. Especialmente
no caso de expulsão, o interessado será informado deste direito, sem demora,
devendo as autoridades do Estado que procede à expulsão facilitar o exercício do
mesmo.

254
 

 
 

Artigo 24º
Os trabalhadores migrantes e os membros da sua família têm direito ao
reconhecimento da sua personalidade jurídica, em todos os lugares.

Artigo 25º
1. Os trabalhadores migrantes devem beneficiar de um tratamento não menos
favorável que aquele que é concedido aos nacionais do Estado de emprego em
matéria de retribuição e:
a) Outras condições de trabalho, como trabalho suplementar, horário de trabalho,
descanso semanal, férias remuneradas, segurança, saúde, cessação da relação de
trabalho e quaisquer outras condições de trabalho que, de acordo com o direito e a
prática nacionais, se incluam na regulamentação das condições de trabalho;
b) Outras condições de emprego, como a idade mínima para admissão ao emprego,
as restrições ao trabalho doméstico e outras questões que, de acordo com o direito e
a prática nacionais, sejam consideradas condições de emprego.
2. Nenhuma derrogação é admitida ao princípio da igualdade de tratamento referido
no nº 1 do presente artigo nos contratos de trabalho privados.
3. Os Estados Partes adotam todas as medidas adequadas a garantir que os
trabalhadores migrantes não sejam privados dos direitos derivados da aplicação
deste princípio, em razão da irregularidade da sua situação em matéria de
permanência ou de emprego. De um modo particular, os empregadores não ficam
exonerados do cumprimento de obrigações legais ou contratuais, nem as suas
obrigações serão de modo algum limitadas por força de tal irregularidade.

Artigo 26º
1. Os Estados Partes reconhecem a todos os trabalhadores migrantes e aos
membros das suas famílias o direito:
a) A participar em reuniões e atividades de sindicatos e outras associações
estabelecidos de acordo com a lei para proteger os seus interesses econômicos,
sociais, culturais e outros, com sujeição, apenas, às regras da organização
interessada.
b) A inscrever-se livremente nos referidos sindicatos ou associações, com sujeição,
apenas, às regras da organização interessada.
c) A procurar o auxílio e a assistência dos referidos sindicatos e associações;
2. O exercício de tais direitos só pode ser objeto das restrições previstas na lei e que
se mostrem necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança
nacional, da ordem pública, ou para proteger os direitos e liberdades de outrem.

Artigo 27º
1. Em matéria de segurança social, os trabalhadores migrantes e os membros das
suas famílias beneficiam, no Estado de emprego, de um tratamento igual ao que é
concedido aos nacionais desse Estado, sem prejuízo das condições impostas pela

255
 

 
 

legislação nacional e pelos tratados bilaterais e multilaterais aplicáveis. As


autoridades competentes do Estado de origem e do Estado de emprego podem, em
qualquer momento, tomar as disposições necessárias para determinar as
modalidades de aplicação desta norma.
2. Se a legislação aplicável privar de uma prestação os trabalhadores migrantes e os
membros das suas famílias, deverá o Estado de emprego ponderar a possibilidade de
reembolsar o montante das contribuições efetuadas pelos interessados relativamente
a essa prestação, na base do tratamento concedido aos nacionais que se encontrem
em circunstâncias idênticas.

Artigo 28º
Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm o direito de receber
os cuidados médicos urgentes que sejam necessários para preservar a sua vida ou
para evitar danos irreparáveis à sua saúde, em pé de igualdade com os nacionais do
Estado em questão. Tais cuidados médicos urgentes não podem ser-lhes recusados
por motivo de irregularidade em matéria de permanência ou de emprego.

Artigo 29º
O filho de um trabalhador migrante tem o direito a um nome, ao registro do
nascimento e a uma nacionalidade.

Artigo 30º
O filho de um trabalhador migrante tem o direito fundamental de acesso à educação
em condições de igualdade de tratamento com os nacionais do Estado interessado.
Não pode ser negado ou limitado o acesso a estabelecimentos públicos de ensino
pré-escolar ou escolar por motivo de situação irregular em matéria de permanência
ou emprego de um dos pais ou com fundamento na permanência irregular da
criança no Estado de emprego.

Artigo 31º
1. Os Estados Partes asseguram o respeito da identidade cultural dos trabalhadores
migrantes e dos membros das suas famílias e não os impedem de manter os laços
culturais com o seu Estado de origem.
2. Os Estados Partes podem adotar as medidas adequadas para apoiar e encorajar
esforços neste domínio.

Artigo 32º
Cessando a sua permanência no Estado de emprego, os trabalhadores migrantes e
os membros das suas famílias têm o direito de transferir os seus ganhos e as suas
poupanças e, nos termos da legislação aplicável dos Estados interessados, os seus
bens e pertences.

Artigo 33º

256
 

 
 

1. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm o direito de


serem informados pelo Estado de origem, Estado de emprego ou Estado de
trânsito, conforme o caso, relativamente:
a) Aos direitos que lhes são reconhecidos pela presente Convenção;
b) Às condições de admissão, direitos e obrigações em virtude do direito e da prática
do Estado interessado e outras questões que lhes permitam cumprir as formalidades
administrativas ou de outra natureza exigidas por esse Estado.
2. Os Estados Partes adotam todas as medidas que considerem adequadas para
divulgar a referida informação ou garantir que seja fornecida pelos empregadores,
sindicatos ou outros organismos ou instituições apropriadas. Para este efeito,
cooperam com outros Estados interessados, se tal se mostrar necessário.
3. A informação adequada será facultada gratuitamente aos trabalhadores migrantes
e aos membros das suas famílias que o solicitem, na medida do possível numa língua
que compreendam.

Artigo 34º
Nenhuma das disposições da Parte III da presente Convenção isenta os
trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias do dever de cumprir as leis
e os regulamentos dos Estados de trânsito e do Estado de emprego e de respeitar a
identidade cultural dos habitantes desses Estados.

Artigo 35º
Nenhuma das disposições da parte III da presente Convenção deve ser interpretada
como implicando a regularização da situação dos trabalhadores migrantes ou dos
membros das suas famílias que se encontram indocumentados ou em situação
irregular, ou um qualquer direito a ver regularizada a sua situação, nem como
afetando as medidas destinadas a assegurar condições satisfatórias e eqüitativas para
a migração internacional, previstas na parte VI da presente Convenção.

Parte IV:
Outros direitos dos trabalhadores migrantes e dos membros das suas
famílias que se encontram documentados ou em situação regular

Artigo 36º
Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias que se encontram
documentados ou em situação regular no Estado de emprego gozam dos direitos
enunciados nesta parte da presente Convenção, para além dos direitos previstos na
parte III.

Artigo 37º
Antes da sua partida ou, o mais tardar, no momento da sua admissão no Estado de
emprego, os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm o direito
de ser plenamente informados pelo Estado de origem ou pelo Estado de emprego,

257
 

 
 

conforme o caso, de todas as condições exigidas para a sua admissão, especialmente


as que respeitam à sua permanência e às atividades remuneradas que podem exercer,
bem como dos requisitos que devem satisfazer no Estado de emprego e das
autoridade a que devem dirigir-se para solicitar a modificação dessas condições.

Artigo 38º
1. Os Estados de emprego devem diligenciar no sentido de autorizarem os
trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias a ausentar-se
temporariamente, sem que tal afete a sua autorização de permanência ou de
trabalho, conforme o caso. Ao fazê-lo, os Estados de emprego têm em conta as
obrigações e as necessidades especiais dos trabalhadores migrantes e dos membros
das suas famílias, nomeadamente no seu Estado de origem.
2. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm o direito de ser
plenamente informados das condições em que tais ausências temporárias são
autorizadas.

Artigo 39º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas fremirias têm o direito de
circular livremente no território do Estado de emprego e de aí escolher livremente a
sua residência.
2. Os direitos referidos no nº 1 do presente artigo não podem ser sujeitos a
restrições, com exceção das previstas na lei e que sejam necessárias para proteger a
segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou moral públicas, ou os direitos e
liberdades de outrem e se mostrem compatíveis com os outros direitos
reconhecidos na presente Convenção.

Artigo 40º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm o direito de
constituir associações e sindicatos no Estado de emprego para a promoção e a
proteção dos seus interesses econômicos, sociais, culturais e de outra natureza.
2. O exercício deste direito só pode ser objeto de restrições previstas na lei e que se
mostrem necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança
nacional, da ordem pública, ou para proteger os direitos e liberdades de outrem.

Artigo 41º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias têm o direito de
participar nos assuntos públicos do seu Estado de origem, de votar e de candidatar-
se em eleições organizadas por esse Estado, de acordo com a legislação vigente.
2. Os Estados interessados devem facilitar, se necessário e em conformidade com a
sua legislação, o exercício destes direitos.

Artigo 42º

258
 

 
 

1. Os Estados Partes ponderam a possibilidade de estabelecer procedimentos ou


instituições que permitam ter em conta, tanto no Estado de origem quanto no
Estado de emprego, as necessidades, aspirações e obrigações específicas dos
trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias e, sendo esse o caso, a
possibilidade de os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias terem
nessas instituições os seus representantes livremente escolhidos.
2. Os Estados de emprego facilitam, de harmonia com a sua legislação nacional, a
consulta ou a participação dos trabalhadores migrantes e dos membros das suas
famílias nas decisões relativas à vida e à administração das comunidades locais.
3. Os trabalhadores migrantes podem gozar de direitos políticos no Estado de
emprego se este Estado, no exercício da sua soberania, lhes atribuir esses direitos.

Artigo 43º
1. Os trabalhadores migrantes beneficiam de tratamento igual ao que é concedido
aos nacionais do Estado de emprego em matéria de:
a) Acesso a instituições e serviços educativos, sem prejuízo das condições de
admissão e outras disposições previstas pelas referidas instituições e serviços;
b) Acesso aos serviços de orientação profissional e de colocação;
c) Acesso às facilidades e instituições de formação e aperfeiçoamento profissional;
d) Acesso à habitação, incluindo os programas de habitação social, e proteção contra
a exploração em matéria de arrendamento;
e) Acesso aos serviços sociais e de saúde, desde que se verifiquem os requisitos do
direito de beneficiar dos diversos programas;
f) Acesso às cooperativas e às empresas em autogestão, sem implicar uma
modificação do seu estatuto de migrantes e sem prejuízo das regras e regulamentos
das entidades interessadas;
g) Acesso e participação na vida cultural.
2. Os Estados Partes esforçam-se por criar as condições necessárias para garantir a
igualdade efetiva de tratamento dos trabalhadores migrantes de forma a permitir o
gozo dos direitos previstos no nº 1 deste artigo, sempre que as condições fixadas
pelo Estado de emprego relativas à autorização de permanência satisfaçam as
disposições pertinentes.
3. Os Estados de emprego não devem impedir que os empregadores de
trabalhadores migrantes lhes disponibilizem habitação ou serviços culturais ou
sociais. Sem prejuízo do disposto no artigo 70º da presente Convenção, um Estado
de emprego pode subordinar o estabelecimento dos referidos serviços às condições
geralmente aplicadas no seu território nesse domínio.

Artigo 44º
1. Reconhecendo que a família, elemento natural e fundamental da sociedade, deve
receber a proteção da sociedade e do Estado, os Estados Partes adotam as medidas
adequadas a assegurar a proteção da família dos trabalhadores migrantes.

259
 

 
 

2. Os Estados Partes adotam todas as medidas que julguem adequadas e nas


respectiva esferas de competência para facilitar a reunificação dos trabalhadores
migrantes com os cônjuges, ou com as pessoas cuja relação com o trabalhador
migrante produza efeitos equivalentes ao casamento, segundo a legislação aplicável,
bem como com os filhos menores, dependentes, não casados.
3. Os Estados de emprego, por motivos de natureza humanitária, ponderam a
possibilidade de conceder tratamento igual, nas condições previstas no nº 2 do
presente artigo, aos restantes membros da família dos trabalhadores migrantes.

Artigo 45º
1. Os membros das famílias dos trabalhadores migrantes beneficiam no Estado de
emprego, em pé de igualdade com os nacionais desse Estado, de:
a) Acesso a instituições e serviços educativos, sem prejuízo das condições de
admissão e outras normas fixadas pelas instituições e serviços em causa;
b) Acesso a instituições e serviços de orientação e formação profissional, desde que
se verifiquem os requisitos de participação;
c) Acesso aos serviços sociais e de saúde, desde que se encontrem satisfeitas as
condições previstas para o benefício dos diversos programas;
d) Acesso e participação na vida cultural.
2. Os Estados de emprego devem prosseguir uma política, se for caso disso em
colaboração com os Estados de origem, que vise facilitar a integração dos filhos dos
trabalhadores migrantes no sistema local de escolarização, nomeadamente no que
respeita ao ensino da língua local.
3. Os Estados de emprego devem esforçar-se por facilitar aos filhos dos
trabalhadores migrantes o ensino da sua língua materna e o acesso à cultura de
origem e, neste domínio, os Estados de origem devem colaborar sempre que tal se
mostre necessário.
4. Os Estados de emprego podem assegurar sistemas especiais de ensino na língua
materna dos filhos dos trabalhadores migrantes, se necessário em colaboração com
os Estados de origem.

Artigo 46º
Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias beneficiam, de
harmonia com a legislação aplicável dos Estados interessados, os acordos
internacionais pertinentes e as obrigações dos referidos Estados decorrentes da sua
participação em uniões aduaneiras, de isenção de direitos e taxas de importação e
exportação quanto aos bens de uso pessoal ou doméstico, bem como aos bens de
equipamento necessário ao exercício da atividade remunerada que justifica a
admissão no Estado de emprego:
a) No momento da partida do Estado de origem ou do Estado da residência
habitual;
b) No momento da admissão inicial no Estado de emprego;
c) No momento da partida definitiva do Estado de emprego;

260
 

 
 

d) No momento do regresso definitivo ao Estado de origem ou ao Estado da


residência habitual.

Artigo 47º
1. Os trabalhadores migrantes têm o direito de transferir os seus ganhos e
economias, em particular as quantias necessárias ao sustento das suas famílias, do
Estado de emprego para o seu Estado de origem ou outro Estado. A transferência
será efetuada segundo os procedimentos estabelecidos pela legislação aplicável do
Estado interessado e de harmonia com os acordos internacionais aplicáveis.
2. Os Estados interessados adotam as medidas adequadas a facilitar tais
transferências.

Artigo 48º
1. Em matéria de rendimentos do trabalho auferidos no Estado de emprego, e sem
prejuízo dos acordos sobre dupla tributação aplicáveis, os trabalhadores migrantes e
os membros das suas famílias:
a) Não ficam sujeitos a impostos, contribuições ou encargos de qualquer natureza
mais elevados ou mais onerosos que os exigidos aos nacionais que se encontrem em
situação idêntica;
b) Beneficiam de reduções ou isenções de impostos de qualquer natureza, bem
como de desagravamento fiscal, incluindo deduções por encargos de família.
2. Os Estados Partes procuram adotar medidas adequadas a fim de evitar a dupla
tributação dos rendimentos e das economias dos trabalhadores migrantes e dos
membros das suas famílias.

Artigo 49º
1. Quando a legislação nacional exija autorizações de residência e de trabalho
distintas, o Estado de emprego emite, em benefício dos trabalhadores migrantes,
uma autorização de residência de duração pelo menos igual à da autorização de
trabalho.
2. Os trabalhadores migrantes que, no Estado de emprego, são autorizados a
escolher livremente a sua atividade remunerada não são considerados em situação
irregular e não perdem a sua autorização de residência pelo mero fato de ter cessado
a sua atividade remunerada antes de terminada a autorização de trabalho ou outra
autorização.
3. Para permitir que os trabalhadores migrantes mencionados no nº 2 do presente
artigo disponham de tempo suficiente para encontrar outra atividade remunerada, a
autorização de residência não deve ser retirada, pelo menos durante o período em
que têm direito ao subsídio de desemprego.

Artigo 50º
1. Em caso de falecimento do trabalhador migrante ou de dissolução do casamento,
o Estado de emprego considera favoravelmente a possibilidade de conceder aos

261
 

 
 

membros da família desse trabalhador, que residam nesse Estado ao abrigo do


princípio do reagrupamento familiar, autorização para permanecerem no seu
território, devendo tomar em conta o tempo de residência dos mesmos nesse
Estado.
2. Os membros da família a quem não for concedida tal autorização devem dispor,
antes da sua partida, de um prazo razoável que lhes permita resolver os seus
problemas no Estado de emprego.
3. Nenhuma das disposições dos nºs 1 e 2 do presente artigo deve ser interpretada
como prejudicando os direitos à permanência e ao trabalho que, de outro modo, são
atribuídos aos referidos membros da família pela legislação do Estado de emprego
ou pelos tratados bilaterais ou multilaterais aplicáveis a esse Estado.

Artigo 51º
Os trabalhadores migrantes que, no Estado de emprego, não estão autorizados a
escolher livremente a sua atividade remunerada não são considerados em situação
irregular, nem perdem a sua autorização de residência, pelo simples fato de a sua
atividade remunerada ter cessado antes do termo da sua autorização de trabalho,
salvo nos casos em que a autorização de residência dependa expressamente da
atividade remunerada específica para o exercício da qual foram admitidos no Estado
de emprego. Estes trabalhadores migrantes têm o direito de procurar outro
emprego, de participar em programas de interesse público e de freqüentar cursos de
formação durante o período restante da sua autorização de trabalho, sem prejuízo
das condições e restrições constantes desta autorização.

Artigo 52º
1. Os trabalhadores migrantes têm, no Estado de emprego, o direito de escolher
livremente a sua atividade remunerada, subordinado às restrições ou condições a
seguir especificadas.
2. Em relação a qualquer trabalhador migrante, o Estado de emprego pode:
a) Restringir o acesso a categorias limitadas de empregos, funções, serviços ou
atividades, quando o exija o interesse do Estado e esteja previsto na legislação
nacional;
b) Restringir a livre escolha da atividade remunerada em conformidade com a sua
legislação relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais adquiridas fora
do seu território. Todavia, os Estados Partes interessados devem diligenciar no
sentido de assegurar o reconhecimento de tais qualificações.
3. No caso dos trabalhadores migrantes portadores de uma autorização de trabalho
por tempo determinado, o Estado de emprego pode igualmente:
a) Subordinar o exercício do direito de livre escolha da atividade remunerada à
condição de o trabalhador migrante ter residido legalmente no território desse
Estado a fim de aí exercer uma atividade remunerada durante o período previsto na
legislação nacional e que não deve ser superior a dois anos;

262
 

 
 

b) Limitar o acesso do trabalhador migrante a uma atividade remunerada, em


aplicação de uma política de concessão de prioridade aos seus nacionais ou às
pessoas equiparadas para este efeito em virtude da legislação nacional ou de acordos
bilaterais ou multilaterais. Tal limitação deixa de ser aplicável a um trabalhador
migrante que tenha residido legalmente no território do Estado de emprego a fim de
aí exercer uma atividade durante o período previsto na legislação nacional e que não
deve ser superior a cinco anos.
4. Os Estados de emprego determinam as condições em que os trabalhadores
migrantes, admitidos no seu território para aí ocuparem um emprego, podem ser
autorizados a exercer uma atividade por conta própria. Deve ser tomado em conta o
período durante o qual os trabalhadores tenham permanecido legalmente no Estado
de emprego.

Artigo 53º
1. Os membros da família de um trabalhador migrante que beneficiem de uma
autorização de residência ou de admissão por tempo ilimitado ou automaticamente
renovável são autorizados a escolher livremente uma atividade remunerada nas
condições aplicáveis ao referido trabalhador migrante, nos termos do disposto no
artigo 52º da presente Convenção.
2. No caso dos membros da família de um trabalhador migrante que não sejam
autorizados a escolher livremente uma atividade remunerada, os Estados Partes
ponderam a possibilidade de lhes conceder autorização para exercer uma atividade
remunerada, com prioridade em relação aos outros trabalhadores que solicitem a
admissão no Estado de emprego, sem prejuízo dos acordos bilaterais e multilaterais
aplicáveis.

Artigo 54º
1. Sem prejuízo das condições estabelecidas na sua autorização de residência ou de
trabalho e dos direitos previstos nos artigos 25º e 27º da presente Convenção, os
trabalhadores migrantes beneficiam de igualdade de tratamento em relação aos
nacionais do Estado de emprego, no que respeita a:
a) Proteção contra o despedimento;
b) Prestações de desemprego;
c) Acesso a programas de interesse público destinados a combater o desemprego;
d) Acesso a emprego alternativo no caso de perda do emprego ou de cessação de
outra atividade remunerada, sem prejuízo do disposto no artigo 52º da presente
Convenção.
2. No caso de um trabalhador migrante invocar a violação das condições do seu
contrato de trabalho pelo seu empregador, terá o direito de submeter o seu caso às
autoridades competentes do Estado de emprego, nos termos do disposto no nº 1 do
artigo 18 da presente Convenção.

Artigo 55º

263
 

 
 

Os trabalhadores migrantes a quem tenha sido concedida autorização para


exercerem uma atividade remunerada, sujeita às condições previstas nessa
autorização, beneficiam de igualdade de tratamento com os nacionais do Estado de
emprego no exercício daquela atividade remunerada.

Artigo 56º
1. Os trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias a que se refere esta
parte da presente Convenção não podem ser expulsos de um Estado de emprego,
exceto por razões definidas na legislação nacional desse Estado, e sem prejuízo das
garantias previstas na parte III.
2. A expulsão não será acionada com o objetivo de privar os trabalhadores
migrantes ou os membros da sua família dos direitos emergentes da autorização de
residência e da autorização de trabalho.
3. Na consideração da expulsão de um trabalhador migrante ou de um membro da
sua família, devem ser tomadas em conta razões de natureza humanitária e o tempo
de residência da pessoa interessada, até esse momento, no Estado de emprego.

Parte V
Disposições aplicáveis a categorias especiais de trabalhadores migrantes e membros
das suas famílias

Artigo 57º
As categorias especiais de trabalhadores migrantes indicadas nesta parte da presente
Convenção e os membros das suas famílias, que se encontrem documentados ou em
situação regular, gozam dos direitos enunciados na parte III e, sem prejuízo das
modificações a seguir indicadas, dos direitos enunciados na parte IV.

Artigo 58º
1. Os trabalhadores fronteiriços, tal como são definidos na alínea a) do nº 2 do
artigo 2º da presente Convenção, beneficiam dos direitos previstos na parte IV que
lhes sejam aplicáveis por força da sua presença e do seu trabalho no território do
Estado de emprego, considerando que não têm a sua residência habitual nesse
Estado.
2. Os Estados de emprego consideram favoravelmente a possibilidade de atribuir
aos trabalhadores fronteiriços o direito de escolher livremente uma atividade
remunerada após o decurso de um determinado período de tempo. A concessão
deste direito não afeta o seu estatuto de trabalhadores fronteiriços.

Artigo 59º
1. Os trabalhadores sazonais, tal como são definidos na alínea b) do nº 2 do artigo 2
da presente Convenção, beneficiam dos direitos previstos na parte IV que lhes
sejam aplicáveis por força da sua presença e do seu trabalho no território do Estado
de emprego e que se mostrem compatíveis com o seu estatuto de trabalhadores

264
 

 
 

sazonais, considerando que só estão presentes nesse Estado durante uma parte do
ano.
2. O Estado de emprego deve ponderar, sem prejuízo do disposto no nº 1 do
presente artigo, a possibilidade de conceder, aos trabalhadores migrantes que
tenham estado empregados no seu território durante um período significativo, a
oportunidade de realizarem outras atividades remuneradas e dar-lhes prioridade em
relação a outros trabalhadores que pretendam ser admitidos nesse Estado, sem
prejuízo dos acordos bilaterais e multilaterais aplicáveis.

Artigo 60º
Os trabalhadores itinerantes, tal como são definidos na alínea e) do nº 2 do artigo 2º
da presente Convenção, beneficiam dos direitos previstos na parte IV que possam
ser-lhes concedidos por força da sua presença e do seu trabalho no território do
Estado de emprego e que se mostrem compatíveis com o seu estatuto de
trabalhadores itinerantes nesse Estado.

Artigo 61º
1. Os trabalhadores vinculados a um projeto, tal como são definidos na alínea f) do
nº 2 do artigo 2º da presente Convenção, e os membros das suas famílias beneficiam
dos direitos previstos na parte IV, com excepção das disposições do artigo 43º, nº 1,
alíneas b) e c), do artigo 43º, n 1, alínea d), no que respeita a programas de habitação
social, do artigo 45º, nº 1, alínea b), e dos artigos 52º a 55º.
2. Se um trabalhador vinculado a um projeto invocar a violação dos termos do seu
contrato de trabalho pelo seu empregador, terá o direito de submeter o seu caso às
autoridades competentes do Estado a cuja jurisdição está sujeito esse empregador,
nos termos previstos no nº 1 do artigo 18º da presente Convenção.
3. Sem prejuízo dos acordos bilaterais ou multilaterais aplicáveis, os Estados Partes
interessados diligenciam no sentido de garantir que os trabalhadores vinculados a
projetos se encontrem devidamente protegidos pelos regimes de segurança social
dos Estados de origem ou de residência durante todo o tempo de participação no
projeto. Os Estados Partes interessados adotam as medidas necessárias para evitar a
denegação de direitos ou a duplicação de contribuições neste domínio.
4. Sem prejuízo do disposto no artigo 47º da presente Convenção e dos acordos
bilaterais ou multilaterais pertinentes, os Estados Partes interessados autorizam o
pagamento das remunerações dos trabalhadores vinculados a um projeto no seu
Estado de origem ou de residência habitual.

Artigo 62º
1. Os trabalhadores com um emprego específico, tal como são definidos na alínea g)
do nº 2 do artigo 2º da presente Convenção, beneficiam de todos os direitos
previstos na parte IV, com exceção do disposto no artigo 43º, nº 1, alíneas b) e c),
no artigo 43º, nº 1, alínea d), no que respeita a programas de habitação social, no
artigo 52º, e no artigo 54º, nº 1, alínea d).

265
 

 
 

2. Os membros das famílias dos trabalhadores com um emprego específico


beneficiam dos direitos relativos aos membros das famílias dos trabalhadores
migrantes enunciados na parte IV da presente Convenção, com exceção do disposto
no artigo 53º.

Artigo 63
1. Os trabalhadores independentes, tal como são definidos na alínea h) do nº 2, do
artigo 2º da presente Convenção, beneficiam de todos os direitos previstos na parte
IV, com exceção dos direitos exclusivamente aplicáveis aos trabalhadores
assalariados.
2. Sem prejuízo dos artigos 52º e 79º da presente Convenção, a cessação da
atividade econômica dos trabalhadores independentes não implica, por si só, a
revogação da autorização que lhes seja concedida, bem como aos membros das suas
famílias, para poderem permanecer e exercer uma atividade remunerada no Estado
de emprego, salvo se a autorização de residência depender expressamente da
atividade remunerada específica para o exercício da qual tenham sido admitidos.

Parte VI
Promoção de condições saudáveis, eqüitativas, dignas e justas em matéria de
migração internacional de trabalhadores migrantes e de membros das suas famílias

Artigo 64º
1. Sem prejuízo do disposto no artigo 79º da presente Convenção, os Estados Partes
interessados consultam-se e cooperam, se tal se mostrar necessário, a fim de
promover condições saudáveis, eqüitativas e dignas no que se refere às migrações
internacionais dos trabalhadores e dos membros das suas famílias.
2. A este respeito, devem ser tomadas devidamente em conta não só as necessidades
e recursos de mão-de-obra ativa, mas também as necessidades de natureza social,
econômica, cultural e outra dos trabalhadores migrantes e dos membros das suas
famílias, bem como as conseqüências das migrações para as comunidades
envolvidas.

Artigo 65º
1. Os Estados Partes mantêm serviços apropriados para tratamento das questões
relativas à migração internacional dos trabalhadores e dos membros das suas
famílias. Compete-lhes, nomeadamente:
a) Formular e executar políticas relativas a essas migrações;
b) Assegurar o intercâmbio de informações, proceder a consultas e cooperar com as
autoridades competentes dos outros Estados envolvidos em tais migrações;
c) Fornecer informações adequadas, especialmente aos empregadores, aos
trabalhadores e às respectivas organizações, acerca das políticas, legislação e
regulamentos relativos às migrações e ao emprego, acerca de acordos no domínio
das migrações celebrados com outros Estados e outras questões pertinentes;

266
 

 
 

d) Fornecer informação e prestar assistência adequada aos trabalhadores migrantes e


aos membros das suas famílias no que se refere às autorizações, formalidades e
providências necessárias para a partida, viagem, chegada, estada, atividades
remuneradas, saída e regresso, bem como às condições de trabalho e de vida no
Estado de emprego e, ainda, disposições legais e regulamentares vigentes em matéria
aduaneira, cambial, fiscal e outras.
2. Os Estados Partes facilitam, na medida em que tal se mostre necessário, a
disponibilização de serviços consulares adequados e outros serviços necessários para
satisfazer as necessidades de natureza social, cultural e outra dos trabalhadores
migrantes e dos membros das suas famílias.

Artigo 66º
1. Sem prejuízo do disposto no nº 2 do presente artigo, só são autorizados a efetuar
operações de recrutamento de trabalhadores para ocuparem um emprego noutro
Estado:
a) Os serviços ou organismos oficiais do Estado em que tais operações se realizem;
b) Os serviços ou organismos oficiais do Estado de emprego na base de um acordo
entre os Estados interessados;
c) Os organismos instituídos no âmbito de um acordo bilateral ou multilateral.
2. Sob reserva da autorização, aprovação e fiscalização por parte dos órgãos oficiais
dos Estados Partes, instituídos de harmonia com a legislação e a prática dos
referidos Estados, podem igualmente ser autorizados a efetuar tais operações
gabinetes, potenciais empregadores ou pessoas agindo em seu nome.

Artigo 67º
1. Os Estados Partes interessados cooperam, se tal se mostrar necessário, com vista
à adoção de medidas relativas à boa organização do regresso ao Estado de origem
dos trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias, quando decidam
regressar, quando expire a sua autorização de residência ou de trabalho, ou quando
se encontrem em situação irregular no Estado de emprego.
2. Relativamente aos trabalhadores migrantes e aos membros das suas famílias em
situação regular, os Estados Partes interessados cooperam, se tal se mostrar
necessário, segundo as modalidades por estes acordadas, com vista a promover as
condições econômicas adequadas à sua reinstalação e a facilitar a sua reintegração
social e cultural duradoura no Estado de origem.

Artigo 68º
1. Os Estados Partes, incluindo os Estados de trânsito, cooperam a fim de prevenir
e eliminar os movimentos e o trabalho ilegais ou clandestinos de trabalhadores
migrantes em situação irregular. Na prossecução deste objetivo, os Estados
interessados tomam, nos limites da sua competência, as providências a seguir
indicadas:

267
 

 
 

a) Medidas apropriadas contra a difusão de informação enganadora respeitante à


emigração e à imigração;
b) Medidas destinadas a detectar e a eliminar os movimentos ilegais ou clandestinos
de trabalhadores migrantes e de membros das suas famílias e a impor sanções
eficazes às pessoas, grupos ou entidades que organizem, realizem ou participem na
organização ou direção de tais movimentos;
c) Medidas destinadas a impor sanções eficazes às pessoas, grupos ou entidades que
recorram à violência, à ameaça ou à intimidação contra os trabalhadores migrantes
ou os membros das suas famílias que se encontrem em situação irregular.
2. Os Estados de emprego adotam todas as medidas adequadas e eficazes para
eliminar o emprego, no seu território, de trabalhadores migrantes em situação
irregular, impondo nomeadamente, se for caso disso, sanções aos seus
empregadores. Tais medidas não prejudicam os direitos que assistem aos
trabalhadores migrantes relativamente ao seu empregador, emergentes da sua
situação laboral.

Artigo 69º
1. Os Estados Partes, em cujo território se encontrem trabalhadores migrantes e
membros das suas famílias em situação irregular, tomam as medidas adequadas para
evitar que essa situação se prolongue.
2. Sempre que os Estados Partes interessados considerem a possibilidade de
regularizar a situação dessas pessoas, de harmonia com a legislação nacional e os
acordos bilaterais ou multilaterais aplicáveis, devem ter devidamente em conta as
circunstâncias da sua entrada, a duração da sua estada no Estado de emprego, bem
como outras considerações relevantes, em particular as que se relacionem com a sua
situação familiar.

Artigo 70º
Os Estados Partes adotam medidas não menos favoráveis do que as aplicadas aos
seus nacionais para garantir que as condições de vida e de trabalho dos
trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias em situação regular sejam
conformes às normas de saúde, de segurança e de higiene e aos princípios inerentes
à dignidade humana.

Artigo 71º
1. Os Estados Partes facilitam, se necessário, o repatriamento para o Estado de
origem dos restos mortais dos trabalhadores migrantes ou dos membros das suas
famílias.
2. No que respeita à indenização pelo falecimento de um trabalhador migrante ou de
um membro da sua família, os Estados Partes prestam assistência, se tal se mostrar
conveniente, às pessoas interessadas com vista a assegurar a pronta resolução desta
questão. Tal resolução terá por base a legislação nacional aplicável em conformidade

268
 

 
 

com as disposições da presente Convenção e com os acordos bilaterais ou


multilaterais relevantes neste domínio.

Parte VII
Aplicação da Convenção

Artigo 72º
1. a) Com o fim de examinar a aplicação da presente Convenção, é instituído um
Comitê para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos
Membros das suas Famílias (a seguir designado “o Comitê”);
b) O Comitê é composto de dez peritos no momento da entrada em vigor da
presente Convenção e, após a entrada em vigor desta para o quadragésimo primeiro
Estado Parte, de catorze peritos de alta autoridade moral, imparcialidade e de
reconhecida competência no domínio abrangido pela presente Convenção.
2. a) Os membros do Comitê são eleitos por escrutínio secreto pelos Estados Partes,
de entre uma lista de candidatos designados pelos Estados Partes, tendo em
consideração a necessidade de assegurar uma repartição geográfica eqüitativa, no
que respeita quer aos Estados de origem quer aos Estados de emprego, e uma
representação dos principais sistemas jurídicos. Cada Estado Parte pode designar
um perito de entre os seus nacionais;
b) Os membros do Comitê são eleitos e exercem as suas funções a título pessoal.
3. A primeira eleição tem lugar nos seis meses seguintes à data da entrada em vigor
da presente Convenção e, depois disso, todos os dois anos. Pelo menos quatro
meses antes da data de cada eleição, o Secretário-Geral da Organização das Nações
Unidas convida, por escrito, os Estados Partes a proporem os seus candidatos num
prazo de dois meses. O Secretário-Geral elabora, em seguida, a lista alfabética dos
candidatos assim apresentados, indicando por que Estados foram designados, e
comunica-a aos Estados Partes na presente Convenção, pelo menos um mês antes
da data de cada eleição, acompanhada do curriculum vitae dos interessados.
4. As eleições dos membros do Comitê realizam-se quando das reuniões dos
Estados Partes convocadas pelo Secretário-Geral para a sede da Organização das
Nações Unidas. Nestas reuniões, em que o quorum é constituído por dois terços
dos Estados Partes, são eleitos para o Comitê os candidatos que obtiverem o maior
número de votos e a maioria absoluta dos votos dos representantes dos Estados
Partes presentes e votantes.
5. a) Os membros do Comitê são eleitos por um período de quatro anos. O
mandato de cinco dos membros eleitos na primeira eleição termina ao fim de dois
anos. O presidente da reunião tira à sorte, imediatamente após a primeira eleição, os
nomes destes cinco elementos.
b) A eleição dos quatro membros suplementares do Comitê realiza-se de harmonia
com o disposto nos nºs 2, 3 e 4 do presente artigo, após a entrada em vigor da
Convenção para o quadragésimo primeiro Estado Parte. O mandato de dois dos
membros suplementares eleitos nesta ocasião termina ao fim de dois anos. O

269
 

 
 

presidente da reunião dos Estados Partes tira à sorte os nomes destes dois
elementos.
c) Os membros do Comitê são reelegíveis em caso de recandidatura.
6. Em caso de morte ou de demissão de um membro do Comitê ou se, por qualquer
outra razão, um membro declarar que não pode continuar a exercer funções no seio
do Comitê, o Estado Parte que havia proposto a sua candidatura designa um outro
perito, de entre os seus nacionais, para preencher a vaga até ao termo do mandato,
sujeito à aprovação do Comitê.
7. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas põe à disposição do
Comitê o pessoal e as instalações necessárias para o desempenho das suas funções.
8. Os membros do Comitê recebem emolumentos provenientes dos recursos
financeiros da Organização das Nações Unidas, segundo as condições e
modalidades fixadas pela Assembléia Geral.
9. Os membros do Comitê gozam das facilidades, privilégios e imunidades de que
beneficiam os peritos em missão junto da Organização das Nações Unidas,
previstos nas seções pertinentes da Convenção sobre Privilégios e Imunidades das
Nações Unidas.

Artigo 73º
1. Os Estados Partes comprometem-se a apresentar ao Comitê, através do
Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, relatórios sobre as medidas
legislativas, judiciais, administrativas e de outra natureza que hajam adotado para dar
aplicação às disposições da presente Convenção:
a) No ano subseqüente à data da entrada em vigor da presente Convenção para o
Estado Parte interessado;
b) Em seguida, de cinco em cinco anos e sempre que o Comitê o solicitar.
2. Os relatórios apresentados em aplicação do presente artigo devem também
indicar os fatores e as dificuldades, se a elas houver lugar, que afetem a aplicação
efetiva das disposições da presente Convenção e conter informações sobre as
características dos movimentos migratórios respeitantes ao Estado interessado.
3. O Comitê estabelece as diretrizes aplicáveis ao conteúdo dos relatórios.
4. Os Estados Partes asseguram aos seus relatórios uma larga difusão nos seus
próprios países.

Artigo 74º
1. O Comitê examina os relatórios apresentados por cada Estado Parte e transmite
ao Estado Parte interessado os comentários que julgar apropriados. Este Estado
Parte pode submeter ao Comitê observações sobre qualquer comentário feito pelo
Comitê ao abrigo do disposto no presente artigo. O Comitê pode solicitar aos
Estados Partes informações complementares.
2. Antes da abertura de cada sessão ordinária do Comitê, o Secretário-Geral da
Organização das Nações Unidas transmite, atempadamente, ao Diretor-Geral do
Secretariado Internacional do Trabalho cópia dos relatórios apresentados pelos

270
 

 
 

Estados Partes interessados e informações úteis à apreciação desses relatórios, de


modo a possibilitar ao Secretariado prestar assistência ao Comitê, através da
disponibilização de conhecimentos especializados nas matérias abordadas na
presente Convenção que se inscrevam no mandato da Organização Internacional do
Trabalho. O Comitê deve ter em conta, nas suas deliberações, todos os comentários
e documentos que o Secretariado lhe possa facultar.
3. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas pode, de igual modo,
ouvido o Comitê, transmitir a outras agências especializadas, bem como a
organizações intergovernamentais, cópia de partes destes relatórios que se inscrevam
no âmbito dos respectivos mandatos.
4. O Comitê pode convidar as agências especializadas e outros órgãos das Nações
Unidas, bem como organizações intergovernamentais e outros organismos
interessados, a submeter por escrito, para apreciação pelo Comitê, informações
sobre a aplicação da presente Convenção nas áreas relativas aos seus domínios de
atividade.
5. O Secretariado Internacional do Trabalho é convidado pelo Comitê a designar os
seus representantes a fim de participarem, na qualidade de consultores, nas reuniões
do Comitê.
6. O Comitê pode convidar outras agências especializadas e órgãos da Organização
das Nações Unidas, bem como organizações intergovernamentais, a fazerem-se
representar nas suas reuniões quando for apreciada a aplicação de disposições da
presente Convenção que se inscrevam no seu mandato.
7. O Comitê submete um relatório anual à Assembléia Geral das Nações Unidas
sobre a aplicação da presente Convenção, contendo as suas observações e
recomendações, fundadas, nomeadamente, na apreciação dos relatórios e nas
observações apresentadas pelos Estados.
8. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas transmite os relatórios
anuais do Comitê aos Estados Partes na presente Convenção, ao Conselho
Econômico e Social, à Comissão dos Direitos do Homem da Organização das
Nações Unidas, ao Diretor-Geral do Secretariado Internacional do Trabalho e a
outras organizações relevantes neste domínio.

Artigo 75º
1. O Comitê adota o seu Regulamento interno.
2. O Comitê elege o seu secretariado por um período de dois anos.
3. O Comitê reúne em regra anualmente.
4. As reuniões do Comitê têm habitualmente lugar na sede da Organização das
Nações Unidas.

Artigo 76º
1. Qualquer Estado Parte na presente Convenção pode, em virtude do presente
artigo, declarar, em qualquer momento, que reconhece a competência do Comitê
para receber e apreciar comunicações de um Estado Parte, invocando o não

271
 

 
 

cumprimento por outro Estado das obrigações decorrentes da presente Convenção.


As comunicações apresentadas ao abrigo do disposto neste artigo só podem ser
recebidas e apreciadas se forem provenientes de um Estado que tenha feito uma
declaração, reconhecendo a competência do Comitê, no que lhe diz respeito. O
Comitê não recebe as comunicações apresentadas por um Estado que não tenha
feito tal declaração. Às comunicações recebidas nos termos do presente artigo é
aplicável o seguinte procedimento:
a) Se um Estado Parte na presente Convenção considerar que outro Estado Parte
não cumpre as obrigações impostas pela presente Convenção pode, por
comunicação escrita, chamar a atenção desse Estado para tal incumprimento. O
Estado Parte pode, também, levar esta questão ao conhecimento do Comitê. Num
prazo de três meses a contar da recepção da comunicação, o Estado destinatário
dirige, por escrito, ao Estado que fez a comunicação uma explicação ou outras
declarações destinadas a esclarecer o assunto e que devem incluir, na máxima
medida possível e pertinente, indicação sobre as regras processuais e os meios de
recurso já utilizados, pendentes ou disponíveis;
b) Se, no prazo de seis meses a contar da data da recepção da comunicação inicial
pelo Estado destinatário, a questão não tiver sido resolvida a contento de ambos os
Estados Partes interessados, qualquer um destes tem o direito de a submeter à
apreciação do Comitê, dirigindo uma notificação ao Comitê bem como ao outro
Estado interessado;
c) O Comitê só examinará a questão depois de verificar que todos as vias de recurso
internas disponíveis foram esgotadas, em conformidade com os princípios
geralmente reconhecidos do Direito internacional. Tal não se aplicará quando o
Comitê entender que os procedimentos de recurso ultrapassam os prazos razoáveis;
d) Sob reserva das disposições da alínea c) do presente número, o Comitê coloca-se
à disposição dos Estados Partes interessados a fim de obter a solução amigável do
litígio, fundada no respeito das obrigações enunciadas na presente Convenção;
e) O Comitê reúne à porta fechada para examinar as comunicações recebidas nos
termos do presente artigo;
f) O Comitê pode pedir aos Estados interessados, referidos na alínea b) do presente
número, as informações que julgar pertinentes relativamente a qualquer questão
submetida nos termos da alínea b) do presente número;
g) Os Estados Partes interessados, referidos na alínea b) do presente número, têm o
direito de fazer-se representar quando da apreciação da questão pelo Comitê e de
apresentar alegações orais e/ou escritas;
h) O Comitê apresenta um relatório, no prazo de doze meses a contar da recepção
da notificação prevista na alínea b) do presente número, nos seguintes termos:
(i) Se for alcançada uma solução nos termos da alínea d) do presente número, o
Comitê limita o seu relatório a uma exposição breve dos fatos e da solução
alcançada;
(ii) Se não for alcançada uma solução nos termos da alínea d) do presente número, o
Comitê expõe, no seu relatório, os fatos relevantes relativos ao objeto do diferendo

272
 

 
 

entre os Estados Partes interessados. O texto das alegações escritas e o auto das
alegações orais apresentadas pelos Estados Partes interessados são anexados ao
relatório. O Comitê pode também comunicar apenas aos Estados Partes
interessados as opiniões que julgar pertinentes. O relatório é comunicado aos
Estados Partes interessados.
2. As disposições do presente artigo entrarão em vigor quando dez Estados Partes
na presente Convenção tiverem feito a declaração prevista no nº 1 deste artigo.
A declaração é depositada pelo Estado Parte junto do Secretário-Geral da
Organização das Nações Unidas, que transmitirá uma cópia aos outros Estados
Partes.
A declaração pode ser retirada em qualquer momento por notificação dirigida ao
Secretário-Geral. A retirada não prejudica a apreciação de qualquer questão que já
tenha sido transmitida nos termos do presente artigo; nenhuma outra comunicação
de um Estado Parte será recebida ao abrigo do presente artigo depois que o
Secretário-Geral tiver recebido a notificação da retirada da declaração, a menos que
o Estado Parte interessado haja formulado uma nova declaração.

Artigo 77º
1. Qualquer Estado Parte na presente Convenção pode, em qualquer momento,
declarar, nos termos do presente artigo, que reconhece a competência do Comitê
para receber e examinar comunicações apresentadas por pessoas sujeitas à sua
jurisdição ou em seu nome, invocando a violação por esse Estado Parte dos seus
direitos individuais, estabelecidos pela presente Convenção. O Comitê não recebe
nenhuma comunicação relativa a um Estado Parte que não tiver feito essa
declaração.
2. O Comitê declara inadmissível uma comunicação apresentada nos termos do
presente artigo que seja anônima ou julgada abusiva ou incompatível com as
disposições da presente Convenção.
3. O Comitê não examina nenhuma comunicação submetida por uma pessoa nos
termos do presente artigo, sem se certificar de que:
a) a mesma questão não foi já submetida a outra instância internacional de inquérito
ou de decisão;
b) o interessado esgotou os recursos internos disponíveis; tal não se aplica se, na
opinião do Comitê, os procedimentos de recurso ultrapassam os prazos razoáveis
ou se é pouco provável que as vias de recurso satisfaçam efetivamente o interessado.
4. Sob reserva das disposições do nº 2 do presente artigo, o Comitê dá
conhecimento das comunicações apresentadas nos termos deste artigo ao Estado
Parte na presente Convenção que tiver feito uma declaração nos termos do nº 1 e
tiver, alegadamente, violado uma disposição da Convenção. No prazo de seis meses,
o referido Estado submete por escrito ao Comitê explicações ou declarações
clarificando o assunto e indicando, se for caso disso, as medidas que haja tomado
para ultrapassar a situação.

273
 

 
 

5. O Comitê examina as comunicações recebidas nos termos do presente artigo,


tendo em conta toda a informação fornecida pelo interessado ou em seu nome e
pelo Estado posto em causa.
6. O Comitê reúne à porta fechada quando examina as comunicações recebidas nos
termos do presente artigo.
7. O Comitê transmite as suas conclusões ao Estado Parte em causa e ao
interessado.
8. As disposições do presente artigo entrarão em vigor quando dez Estados Partes
na presente Convenção tiverem feito a declaração prevista no nº 1 do presente
artigo. Tal declaração será depositada pelo Estado Parte junto do Secretário-Geral
da Organização das Nações Unidas, que transmitirá cópia aos outros Estados
Partes. A declaração pode ser retirada em qualquer momento por notificação
dirigida ao Secretário-Geral. A retirada não obsta à apreciação de uma questão
objeto de uma comunicação já apresentada nos termos do presente artigo.
Nenhuma comunicação apresentada por um indivíduo, ou em seu nome, nos
termos do presente artigo, será recebida depois da recepção pelo Secretário-Geral da
notificação da retirada da declaração, a menos que o Estado Parte haja formulado
uma nova declaração.

Artigo 78º
As disposições do artigo 76º da presente Convenção aplicam-se sem prejuízo de
qualquer processo de resolução de litígios ou de queixas no domínio coberto pela
presente Convenção, previsto nos instrumentos constitutivos e convenções da
Organização das Nações Unidas e das agências especializadas, e não impedem os
Estados Partes de recorrerem a qualquer outro processo de resolução de litígios ao
abrigo de acordos internacionais a que se encontrem vinculados.

Parte VIII
Disposições gerais

Artigo 79º
Nenhuma disposição da presente Convenção afeta o direito de cada Estado Parte de
estabelecer os critérios de admissão de trabalhadores migrantes e de membros das
suas famílias. No que se refere às outras questões relativas ao estatuto jurídico e ao
tratamento dos trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias, os
Estados Partes ficam vinculados pelas limitações impostas pela presente Convenção.

Artigo 80º
Nenhuma disposição da presente Convenção deve ser interpretada como afetando
as disposições da Carta das Nações Unidas e dos atos constitutivos das agências
especializadas que definem as responsabilidades respectivas dos diversos órgãos da
Organização das Nações Unidas e das agências especializadas no que respeita às
questões abordadas na presente Convenção.

274
 

 
 

Artigo 81º
1. Nenhuma disposição da presente Convenção afeta as disposições mais favoráveis
à realização dos direitos ou ao exercício das liberdades dos trabalhadores migrantes
e dos membros das suas famílias que possam figurar:
a) Na legislação ou na prática de um Estado Parte; ou
b) Em qualquer tratado bilateral ou multilateral em vigor para esse Estado.
2. Nenhuma disposição da presente Convenção deve ser interpretada como
implicando para um Estado, grupo ou pessoa, o direito a dedicar-se a uma atividade
ou a realizar um ato que afete os direitos ou as liberdades enunciados na presente
Convenção.

Artigo 82º
Os direitos dos trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias previstos
na presente Convenção não podem ser objeto de renúncia. Não é permitido exercer
qualquer forma de pressão sobre os trabalhadores migrantes e os membros das suas
famílias para que renunciem a estes direitos ou se abstenham de os exercer. Não é
possível a derrogação por contrato dos direitos reconhecidos na presente
Convenção. Os Estados Partes tomam as medidas adequadas para garantir que estes
princípios são respeitados.

Artigo 83º
Cada Estado Parte na presente Convenção compromete-se:
a) A garantir que toda a pessoa cujos direitos e liberdades reconhecidos na presente
Convenção tenham sido violados disponha de um recurso efetivo, ainda que a
violação haja sido cometida por pessoas no exercício de funções oficiais;
b) A garantir que, ao exercer tal recurso, o interessado possa ver a sua queixa
apreciada e decidida por uma autoridade judiciária, administrativa ou legislativa
competente, ou por qualquer outra autoridade competente prevista no sistema
jurídico do Estado, e a desenvolver as possibilidades de recurso judicial;
c) A garantir que as autoridades competentes dêem seguimento ao recurso quando
este for considerado fundado.

Artigo 84º
Cada Estado Parte compromete-se a adotar todas as medidas legislativas e outras
que se afigurem necessárias à aplicação das disposições da presente Convenção.

Parte IX
Disposições finais

Artigo 85º
O Secretário-Geral das Nações Unidas é designado como depositário da presente
Convenção.

275
 

 
 

Artigo 86º
1. A presente Convenção está aberta à assinatura de todos os Estados. Está sujeita a
ratificação.
2. A presente Convenção está aberta à adesão de todos os Estados.
3. Os instrumentos de ratificação ou de adesão serão depositados junto do
Secretário-Geral das Nações Unidas.

Artigo 87º
1. A presente Convenção entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao
termo de um período de três meses após a data do depósito do vigésimo
instrumento de ratificação ou de adesão.
2. Para cada um dos Estados que ratificarem a presente Convenção ou a ela
aderirem após a sua entrada em vigor, a Convenção entrará em vigor no primeiro
dia do mês seguinte a um período de três meses após a data do depósito, por parte
desse Estado, do seu instrumento de ratificação ou de adesão.

Artigo 88º
Um Estado que ratifique a presente Convenção ou a ela adira não pode excluir a
aplicação de qualquer uma das suas partes ou, sem prejuízo do artigo 3º, excluir da
sua aplicação uma categoria qualquer de trabalhadores migrantes.

Artigo 89º
1. Qualquer Estado Parte pode denunciar a presente Convenção, após o decurso de
um período de cinco anos a contar da data da entrada em vigor da Convenção para
esse Estado, por via de notificação escrita dirigida ao Secretário-Geral da
Organização das Nações Unidas.
2. A denúncia produz efeito no primeiro dia do mês seguinte ao termo de um
período de doze meses após a data da recepção da notificação pelo Secretário-Geral.
3. A denúncia não pode ter como efeito desvincular o Estado Parte das obrigações
que para si decorrem da presente Convenção relativamente a ação ou omissão
praticada anteriormente à data em que a denúncia produz efeito, nem impede, de
modo algum, que uma questão submetida ao Comitê anteriormente à data em que a
denúncia produz efeito seja apreciada.
4. Após a data em que a denúncia produz efeito para um Estado Parte, o Comitê
não aprecia mais nenhuma questão nova respeitante a esse Estado.

Artigo 90º
1. Após o decurso de um período de cinco anos a contar da data da entrada em
vigor da presente Convenção, qualquer Estado pode, em qualquer momento,
propor a revisão da Convenção por via de notificação dirigida ao Secretário-Geral
da Organização das Nações Unidas. O Secretário-Geral transmite, em seguida, a
proposta de revisão aos Estados Partes, solicitando que lhe seja comunicado se são

276
 

 
 

favoráveis à convocação de uma conferência de Estados Partes para apreciação e


votação da proposta. Se, nos quatro meses subseqüentes a essa comunicação, pelo
menos um terço dos Estados Partes se declarar a favor da realização da referida
conferência, o Secretário-Geral convoca-la-á sob os auspícios da Organização das
Nações Unidas. As emendas adotadas pela maioria dos Estados Partes presentes e
votantes na conferência são submetidas à Assembléia Geral para aprovação.
2. As emendas entram em vigor quando aprovadas pela Assembléia Geral das
Nações Unidas e aceites por uma maioria de dois terços dos Estados Partes, de
harmonia com as respectivas normas constitucionais.
3. Quando uma emenda entrar em vigor, terá força vinculativa para os Estados que
a hajam aceite, ficando os outros Estados Partes ligados pelas disposições da
presente Convenção e por todas as emendas anteriores que tenham aceite.

Artigo 91º
1. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas recebe e comunica a todos
os Estados o texto das reservas que forem feitas pelos Estados no momento da
assinatura, da ratificação ou da adesão.
2. Não é autorizada nenhuma reserva incompatível com o objeto e com o fim da
presente Convenção.
3. As reservas podem ser retiradas em qualquer momento por via de notificação
dirigida ao Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, o qual informará
todos os Estados. A notificação produz efeito na data da sua recepção pelo
Secretário-Geral.

Artigo 92º
1. Em caso de diferendo entre dois ou mais Estados relativamente à interpretação
ou aplicação da presente Convenção, que não for resolvido por negociação, será o
mesmo submetido a arbitragem a pedido de um dos Estados interessados. Se, no
prazo de seis meses a contar da data do pedido de arbitragem, as Partes não
chegarem a acordo sobre a organização da arbitragem, o diferendo pode ser
submetido ao Tribunal Internacional de Justiça, em conformidade com o Estatuto
do Tribunal, por iniciativa de qualquer das Partes.
2. Qualquer Estado Parte pode, no momento da assinatura ou do depósito do
instrumento de ratificação ou de adesão da presente Convenção, declarar que não se
considera vinculado pelas disposições do nº 1 do presente artigo. Os outros Estados
Partes não ficam vinculados pelas referidas disposições em relação ao Estado Parte
que tiver formulado tal declaração.
3. Qualquer Estado Parte que tiver formulado uma declaração nos termos do nº 2
anterior pode, em qualquer momento, retirá-la mediante notificação dirigida ao
Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas.

Artigo 93º

277
 

 
 

1. A presente Convenção, cujos textos em árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e


russo fazem igualmente fé, será depositada junto do Secretário-Geral da
Organização das Nações Unidas.
2. O Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas transmitirá cópia
autenticada da presente Convenção a todos os Estados.

Em fé do que os plenipotenciários abaixo assinados, devidamente habilitados pelos


seus governos respectivos, assinaram a Convenção.

278
 

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