Você está na página 1de 22
“VIOLENCIAS INVISIVEIS DIREITOS BASICOS FALTAM ONDE A CRIMINALIDADE-E IMINENTE A VIOLENCIA LETAL QUE SE EXPRESSA NOS ALTOS INDICES DE HOMICIDIO TEM UMA RELAGAO ESTREITA COM A VIOLAGKO DE DIREITOS BASICOS, COMO ACESSO A EDUCACAO, AO SANEAMENTO EA HABITAGAO, A QUE € SUBMETIDA GRANDE PARTE DA POPULAGAO. aa Des ny DL Dey eal) Mais de 40% da populagdo de Fortaleza ~ a quinta maior capital do Brasil - vive em areas de entament res de produgao de inju ede extrema desigualdade Nesses territorios, 0 ac lazer, é infimo ou inexistente. & em mei precarios: ica, de segreg 50 2 direitos b. no que se estabelece uma série de vialéncias i0-e5f como educagao, satide e a esse abal indices de homicidios no Estado. que culminam nos alto 10 a realidade de uma dessa: refeitura de Fortaleza: 0 bairra Arr. O Tribuna do Ceara conheceu de de que integram a lis entament al Moura Brasil. A zona mento Humano (IDH) mais baixos da C © quinto pior do mundo. pital: 0,284, igual ao IDH O bairro carrega um rango histérico de ser érea de concentragao de pobreza. Sua formagao, no final do século XIX, comecou com a chegada de retirantes da seca no sertao cearense, que seguiam os trilhos do trem até a Capital. Sem assisténcia, a regido se estigmatizou pela prostituicao e pelos bares, Hoje, ao mesmo tempo em que sedia o Marina Park Hotel - simbolo do turismo de Fortaleza ~ 0 Moura Brasil também é 0 territério da favela conhecida como Oitdo Preto, considerada a *Cracolandia’ de Fortaleza e ilustrada como “terra de zumbis" por quem jé cruzou sua érea na madrugada Resolver o problema dos indices de mortes violentas passa por sanar a realidade subumana em que vive quase metade da populago, pontuam especialistas. Em setembro de 2017, 0 Cearé superou 0 total de homicidios de todo o ano de 2016. 0 tréfico de drogas é uma das marcas do Oitéo Preto. uma das raizes da explosao dessa violé! ONDE MAIS SE MORRE OS UU SSA See PU sat OBITOS NA FAIXA ETARIA DE 10 A 19 ANOS, EM FORTALEZA, 2015. — i= HoMIciDios —HOMICiDIOS ASSENTAMENTO/BAIRRO 10-19ANOS POP. GERAL SAO CRISTOVAO UANGURUSSU) ac ny FUMACA (PICD 6 16 eT i 10 SAO PEDRO/FAROL NOVO (VICENTE PINZON) 1 4 2 OS OT) t ult} 3 3 E] TANCREDO NEVES UARDIM DAS OLIVEIRAS) 1 COT Vg AOA 11 RIACHO DOCE (PQ. DOIS IRMAOS) 3 9 eats TT) 3 } 6 KM 10 (GENIBAU) 3 NOVA FORTALEZA (CJ. PALMEIRAS) E] Ey] FONTE: SMS/CELULA DE VIGILANCIA EPIDEMIOLOGICA/CIEVS. DADDS DE 2015 Essas mortes ocorrem principalmente nas periferias e, dentro das periferias, elas ocorrem em um perimetro chamado de assentamentos precérios. Os assentamentos precdrios so 0 nivel mais baixo de servico, de qualidade de vida, de presenga do estado, que tem numa cidade. So areas onde nao hé esgoto, onde ndo tem satide, onde a educagio é precaria", pontua o pesquisador do Laboratério de Estudos da Violéncia (LEV-UFC), Ricardo Moura. Segundo estudo do Unicef Fundo das Nagdes Unidas para a Infancia), a principal vitima da violéncia em Fortaleza é jovem, negro ou pardo, pobre e morador da periferia, So pessoas que vivem em familias de baixa renda, em casas sem infraestrutura minima, inseridas em comunidades cujos servicos pUblicos so escassos € até inexistentes, com altos indices de gravidez na adolescénciae de vitimas de agressdes intrafamiliar. ‘A pobreza por si sé néo val explicar a violéncia, mas nessas éreas ha uma auséncia do estado, sobretudo para mediar conflitos: nao ha priorizacao de investigacao de crimes, atencdo as vitimas de violéncia, acompanhamento aos jovens e adolescentes que saem da escola’, destaca 0 coordenador técnico do Comité Cearense pela Prevencao de Homicidios na Adolescéncia, Thiago de Holanda, "O homicidio é 0 ponto de chegada de uma série de martes saciais que foram acontecendo ao longo do caminho. 0 sujeito foi morrendo socialmente, se invisibilizando socialmente, até que seu homicidio se confirmasse", lamenta 0 professor do Departamento de Psicologia da UFC e coordenador do Grupo de Pesquisas e Intervengdes sobre Violéncias e Produgao de Subjetividades (VIESES), Jodo Paulo Barros. Os relatos a seguir contam a historia de moradores do Arraial Moura Brasil, cuja realidade de abandono e precariedade pode ser percebida nos retratos do dia a dia e nas memérias que compartilham. Os sofrimentos expostos em cada historia mostram que os indices de homicidios refletidos em numeros e a estigmatizacdo de reas marginalizadas mascaram onde realmente esta uma das orincinais raizes da violéncia urbana. HA EM FORTALEZA 856 ASSENTAMENTOS PRECARIOS. ONDE RESIDEM 271.535 FAMILIAS 1.084.891 nso: | (ROMO OS ASSENTAMENTOS PRECARIOS OCUPAM APENAS 1 2% i) TERRITORIO MUNICIPAL. NO ENTANTO, MAIS DE 40% 01 POPULAGAO RESIDE NESSES LOCAIS. DENSIDADE POPULACIONAL DE FORTALEZA: 8.277 HAB/KM2 DENSIDADE POPULACIONAL NOS ASSENTAMENTOS PRECARIOS: 26.502 HAB/KM2 0 QUE CONFIGURA 0 ASSENTAMENTO PRECARIO: © GRANDE INCIDENCIA DE CRIMES; fi fi fi Sea HU aa Ny a UEP Lae LU SUELO UPA NEOST CCH Lee TiC UOMO ss U UL US os SU aU RNa ace UL SW eT PUMA UEE LLU u a Cosa Waa fei ae HUM Ma ea ee LUSH SAUCE AEE Ue asa AO TM eO ay UHC CULTURA, ESPORTE E LAZER; SN Ha a aa tae UO UEP HRS OURO EL aas a al eee Sra ete Pea LLCIA UD aaa Ue RUG Se Pema eee MUITOS SOB UM TETO ranarua-a ar do hospital, tr al Moura Brasil. "Ago Nos seus 76 anos, “tudo é muito dificil’, lamenta, Lenice esboca um sorriso nervoso que esconde o choro ao falar sobre como ¢ viver sem gua, sem dinheiro para sanar as dividas, sem perspectivas e quase sem comida, Lenice é um retrato do desamparo. De seus 12 filhos, sete morreram na infancia, vitimas de diarreia, sarampo e outras mortalidades infantis. Também ja perdeu um neto no dia em que campletou o primeiro aniversério. A filha que foi ao hospital naquele dia 25 de agosto, 20s 22 anos, jé soma cinco filhos, todos criados na casa da idosa. Nao se fala no pai. £ comum que as criangas vivam sob custédia de maes, avés e tias na comunidade. Uma semana depois da visita, a filha de Lenice continuava internada, Ap6s muito esforso, conseguiu autorizacdo para fazer a cirurgia de laqueadura antes dos 25 anos - idacle minima por lel para a esterilizago da mulher. A jovem também descobriu que sofre de sifilis - urna doenga sexualmente transmissivel, e que a manterd internada por 15 dias. Lenice nao sabe o que dizer sobre o futuro das criangas. ‘As figuras masculinas so escassas, geralmente so os homens que se envolvem com o tréfico de drogas e com a criminalidade. A assisténcia e a responsabilidade da criagdo dos pequenos ficam para as mulheres, especialmente as mais velhas. No percurso pela rua estreita do Moura Brasil, 2 casa de dona Lenice passa despercebida. A calcada alta coma parede de um rosa desbotado sob a alvenaria antiga da acesso uma porta estreita, com uma janela fechada do lado esquerdo. A casa é baixa, escura e apertada, Praticamente no ha méveis, Na sala, um sofé e uma estante com uma TV e uns pertences baguncados, CO imével é 0 mesmo desde que Lenice “se entende por gente”. Ela mora no Moura Brasil hé 76 anos. O telhado é precéirlo, chelo de buracos; e a madeira que o segura esta podre e com cupins na maior parte. Nao da para dormir quando chove. Os moradores saben que aquele teto pode desabar. No corredor, vé-se um quarto a direita, apertado, com uma cama de casal, um carrinho de bebé, um guarda-roupa e duas redes armadas. Seguindo pelo corredor, ha um cémado aberto, com outro guarda-roupa velho, sem portas, redes desarmadas penduradas e, colada & parede, uma cama onde dorme 0 filho adulto deficiente de Lenice. Na hora de dormir, as criangas se empoleiram: "€ uma rede em cima da outra”, contam Diones, de 8 anos, e Ana Beatriz, de 9 CEST SUA "AS CASAS EM QUE 0S ADOLESCENTES VITIMAS DE HOMICIOIO MORAVAM FORAM DESCRITAS COMO PEQUENAS, APERTADAS E COM COMODOS INSUFICIENTES PARA TODOS 0S MORADORES, SENDO MUITOS DELES ‘UTILIZADOS PARA MAIS DE UMA FUNGAO, COMO A SALA QUE IRA QUARTO E A ‘COZINHA QUE VIRA SALA. TANTO EM FORTALEZA COMO NOS DEMIS ‘MUNICIPIOS ANALISADOS PELA PESQUISA, CONVIVIAM, COM FREQUENCIA, NO MESMO ESPACO, AVGS TOS, PRIMOS, ENTRE OUTROS. EM MAIS DA METADE DDAS FAWILIAS (4,994), DE QUATRO A SEIS PESSOAS RESIDIAM NA CASI. TRIETOAS NTERROMPIAS-HOICIIO NA ADOLESCENGI EM FORTALEZAEEM SES ‘Mucls ooCEARA (NICE, ASSEMBLEA LEILATIVAEGOVERND OO ESTADO) Lenice sustenta a familia com uma renda média de R$ 600 que sobra do salério minimo de pouco mais de R$ 900, apés 0 desconto de empréstimos. Falta 4gua na casa hd meses, resultado de uma divida de mais de RS 3 mil na Companhia de Agua e Esgoto, a Cagece. “Tenho empréstimo para terminar em 2022, sei nem se eu t6 viva daqui pra la’, diz. Sem égua, tudo fica dificil, Nao ha pia na casa eo banheiro ndo tem porta -é feito de uma alvenaria precéria e ha o esqueleto de uma bicicleta pendurada nele, j que banho por Ié € raro. A familia pega 4gua emprestada com vizinhos ou em um chafariz na comunidade. Naquela sexta-feira de agosto, final de més, quase meio-dia, as criangas comiam uma espécie de mugunza salgado de milho. Perguntei o que teria para 0 almoco. A vista nao havia nada, panelas vazias sobre uma mesa e uma panela de pressio no fogao, cozinhando o milho. Dona Lenice disfarcou, disse que faria um frango com arroz e macarro. Aquela fala parecia estar no émbito do desejo. “"Na mercearia, o homem vende até 400 reais por més. O que é 400 reais para 11 pessoas?” questiona-se, como quem tenta ser ouvida e acudida eS TTT (OARRAIAL MOURA BRASIL POSSUI UM LACO TEMPORAL COM OINCIO D0 /ADENSAMENTO DE FORTALEZA, POIS RECEBEU A PRIMEIRA PARCELA DA POPULAGKO EXCLUIDA DOS ESPACDS URBANDS CONSOLIDADOS, SENDO PALCO ‘DALUTA COTIDIANA DOS EXCLUIDGS PELA INSERCAO NA CIDADE DITA FORMAL, DESOE 1877, MILHARES DE RETIRANTES DA SECA INVADIRAM A CAPITAL SITUAGKO QUE SE ABRAVOU PELAS DECADAS SEGUINTES. O TERROR COLETIVO [DAPOPULAGKO RESULTOU EM EXPERIENCIAS SOCIN'S DE ISOLAMENTO DA PPOPULACAO MISERAVEL COM A AGLOMERACKO EM CAMPOS DE ‘CONCENTRACAO POR TODO O CEARA EM 1915. (OARRAIAL MOURA BRASIL, UMA EXTENSAO D0 CAMPO DE CONCENTRACAO DO ‘URUBU- BERCO DE UMA DAS MAIORES FAVELAS D0 PAIS, 0 PIRAMBU ~, FOL ‘MARCADO A FERRO POR MISERIA, FOME, PROSTITUIGAO, CRIMINALIDADE E DDOENGAS. MAIS DE UM SECULO DEPOIS, OESTIGNA, 0 ABANDONO E 0 ‘SOFRIMENTO NAO CHEGARAM AQ FIM. ‘eTURAS "nas ome me oR SSS 2S ARNG MOE AONE FERENCE ‘um oes: ers PECAN CRE CE 2 Maria das Gracas Rodrigues, 63, carrega uma série de violéncias socials. Negra, pobre, gorda, idosa, moradora de favela, dona Graca é a representacao da populagdo que vive 4 margem de direitos, como habitacao estruturada, saneamento bésico, agua de qualidade. € vitima de preconceitos da parcela privilegiada da populacdo e do descaso do poder publico. Como se nao bastasse a dor da propria vida e das vidas que gerou, ela ainda carrega a responsabilidad de dar rumo ao destino de sete netos. CO futuro deles a preocupa. Ela pede que as criangas “nao se envolvam com nada” e“aprendam a cuidar uns dos outros’, diz Maria das Gracas. Conselhos que nao consegulu efetivar em suas préprias filhas e ja so postos em xeque pela nova geracao. Dona Graga vive no Moura Brasil ha 40 anos. Ressalta mudangas no bairro, principalnente em relacdo a novos moradores e & dificuldade “das coisas’ que aumentou. Evita falar sobre violéncia, a prostituigao ou o trafico que estigmatiza a favela, mas diz que “nao tem nada contra ninguém” e que 6 "respeitada por todo mundo". Nao tem agua ha trés anos na casa descontado por empréstimos, mal da para garantir a alimentacao da familia por todo o més. As vezes ela precisa pedir ajud da pensionista. O dinheiro da pensé nta. "Nao deve ter sentimento mais ruim’, diz sobre faltar Moram nove pessoas na casa de cinco 61 isados em alvenaria precaria de tijolos crus. Dona Graca cria sete netos, quatro mulheres de uma filha que no mora com ela; € és meninos de uma fil 6 vez ou outra aparece em casa. modos, alguns deles impro jue se envolveu com drogas e Nenhuma das criangas recebe 0 auxilio federal do Bolsa Familia. A idosa até tentou cada meninos que cria desde que nasceram, mas teve o beneficio negado por causa da pensao. A mae das meninas também perdeu o beneficio, mas Gr strar os nem sabe explicar 0 por qué. Ela também no sabe explicar como, 20s cinco anos de idade, 0 flho-neto mais novo, Ricardo, no tem certido de nascimento. Ele nao sai de perto da avé, mas parece & beira de fazé-la perder a paciéncia a qualquer momento. ‘Tem que aguentar uma criatura dessas direto na cabega da gente sem poder botar pra fora, porque a gente nao pode botar pra fora’, confessa, Ricardo estuda na tinica crech criangas frequentam E do Arraial. 0 praca, mas nao pode ficar tudo porque no dé tudo r e do bairro mediante requisigo do Conselho Tutelar. As outras cola Municipal Moura Brasil, para o} vo praticamente todas as criancas nta Graga. "As ve 1 € precdrio, es acontece de estar um bocado (de crianga) numa mesmo canto, ai brigam, vém chorando (para casay’, reclama SERVIGOS PUBLICOS ESCASSOS Bee ee ALLY ‘SERVIGDS POBLICOS SAO ESCASSOS, INEFICAZES E, MUTAS VEZES, IEXISTENTES, A CIRCULAGAO DE ARMAS E DROGAS E COMUM E 0S CONFLITOS PES a at Arte) Coes a Sed ESTRUTURAL DAS CASAS E BAIXA ESCOLARIDADE DOS RESPONSAVEIS TAMBEM Pena a CUES atid Rae Se eee eee hd Poets eee tar Fortaleza e s6.c ere6tipo de favela, om omedo é de quem é de fora. “Todo mundo aqui tem Para quem passa pela orla di quem vive ali. Para quem mora na favel egridade das criancas) porque as vezes entra recelo ( soa de fora que a gente nao conhece, mas sobre as pessoas que moram aqui nao tenho nada a dizer’, afirma Graga Acasa da familia é cheia de cores e de santos. Para onde se olha, hd uma cortina de tecido florida ou de cores fortes. Logo na sala, dona Graca retine um pequeno altar com imagens de santos catélicos e retratos de filhas e netos. Quem pouco tem tenta criar utilidades para parecer muito. Ha duas outra com uma TV tubo estantes na sala, uma com um som velho e dois aparelhos de DVDs ntigo: de 14 polegadas sem uso, ambas cheias de papéis e brinquedos velhos. O colorido do lado externo nado condiz com 0 que transparece a alma de dona Graga. Ela vive numa anguistia com o futuro que nao consegue expressar para além da palavra “tristeza” “Eu acho que toda mae, toda vé como eu, que crio meus netos, quer sempre o melhor. Eu converso muito com eles, peso pra no se envolverem com nada. Eu no tenho mais alegria, nao tenho lazer, ido tenho nada’, afirma. Algumas vezes, s3o outros moradores que falam por dona Graca. Dias depois da visita da reportagem, a filha mais nova levou uma surra de traficantes no Pirambu por causa de uma divida de R$ 10. Nao a mataram porque a Policia chegou na hora e arrastaram ela para dentro de uma casa, conta a vizinhanga. A neta mais velha se envolveu com a prostituigao no Centro da cidade antes da maioridade. O sentimento de impoténcia tem debilitado dona Graga. “Cada um que se livre de ter um filho na vida como eu tenho ela, porque ¢ triste, é muito dificil’, desabafa, séria Todo dia ela reza, 4s vezes conversa sozinha em voz alta com o santos. E tanta coisa a pedir que Graga nem consegue definir qual a mais urgente. "S6 peco a eles (aos netos) que estudem pra mais tarde eles cuidarem um do outro porque eu jé estou no fim da vida’, diz Graca, sem conseguir conter as lagrimas to representativas da tristeza que ndo consegue significar em muitas palavras. NOMEROS DA VIOLENCIA EM FORTALEZA JANEIRO A AGOSTO DE 2017 (AIS - AREA INTEGRADA DE SEGURANCA) AS CAISDO PORTO, VICENTE PINZON, MUCURIPE, ALDEOTA, VARJOTA, PRAIA DE IRACEMA E MEIRELES CRIMES VIOLENTOS LETAIS INTENCIONAIS: ROUBO A RESIDENCIA, DE CARGA, DE VEICULO E COM RESTRICAO DE LIBERDADE DA viTiMa: > ROUBO A PESSOA, DE DOCUMENTOS E OUTROS ROUBOS: APREENSAO DE COCAINA: APREENSAO DE ARMAS DE FOGO: FURTOS: CRIMES SEXUAIS: MAIS QUE MISERIA Ha uma sub-miséria dentro da miséria superficial que a vista alcanca no Arraial Moura Brasil. Em uma drea em que quase ninguém pisa, esté a favela do Oitdo Preto, de frente a um dos principals hotéis de Fortaleza, o Marina Park. O relato do conselheiro tutelar Francisco Henrique Ferreira Lima, de 45 anos, que nasceu ese criou entre as ruas do Oitdo, é capaz de desenhar o iceberg de violéncias que s6 chega & luz da sociedade privilegiada em forma roubos e homicidios. Antes da construcao do hotel, o Centro de Fortaleza desembocava na Praia Formosa, onde existia 0 ento chamado "Curral das Eguas', a “Cinza” - extensdo mais miseravel do Moura Brasil. A area ficava na descida da antiga Rua Franco Rabelo e foi para onde mandaram as prostitutas do Centro. Morar na Cinza era o equivalente a viver entre marginals, drogados, prostitutas, ladrdes e gatunos. © lugar era conhecido e descrito como o "portal do inferno", e ainda o é para multos que transitam nas ruas do, hoje, Oitéo. “Quando o Curral das Eguas foi destruido, aquele mercado de prostitui¢do subiu, ficou naquele quadrilatero ao redor da Estacao (rea espremida entre a Estacdo Jodo Felipe e a Companhia Cearense de Transportes e a Avenida Leste Oeste). O cidadso ia pra ld passar o fim de semana bebendo, dangando, jogando baralho e com as ‘mulheres da vidal. O crescimento imobilidrio trouxe muita gente do Interior pra Id, 0 comércio girava em torno disso. Com 0 tempo, tudo foi mudando, e hoje o que impera ld é 0 uso e 0 tréfico de drogas. Muito trafico de drogas mesmo", afirma Henrique. A segregacao da prostituigao e da criminalidade, juntam-se também portadores do virus HIV, pessoas expulsas do convivio familiar por causa da opco sexual e por mazelas doentias que adquiriam, "Hoje a realidade ainda essa’, lamenta. Henrique nasceu “no foco”. A mée era prostituta e engravidou de um boémio. Nenhum dos dois assumiu a paternidade. A mae, Margarida (o sobrenome é um mistério), deixou-o na casa de um casal de idosos, com um més de idade, prometendo que voltaria para pegé-lo a noite. Nunca mais voltou. A crianga ficou sob cuidados de um ex-detento da Encetur (antiga cadeia publica de Fortaleza) e de uma mulher que fugiu adolescente de um centro de detengao na Paraiba. Eles foram sua salvacdo, conta Henrique. “Ela (a mae de criago) era estéril, nao podia gerar flhos, e cuidava de muitos meninos. A casa dela parecia um abrigo. As mulheres que iam ‘batalhar (prostituir-se) no podiam levar as criangas com elas, Quando vinham a noite, pegavam as criancas e deixavam um dinheiro pra ela, Eu era ura dessas criancas’, relembra o conselheiro. Henrique vive na comunidade até hoje e é parte importante dos traballhos de resgate de criangas e de jovens do mundo das drogas e da prostituicao. A realidade que ele narra ter visto na infancia mudou em poucos aspectos para o que ele ve ainda hoje. Olhar para trés acaba nao sendo tao dificil quanto o que ele vé hoje. “Na época, a droga que imperava era maconha, os comprimidos (alucinégenos), o pessoal cheirava l0l6, cola de sapateiro; cocaina era coisa de rico, de quem tinha dinheiro, Hoje a droga é o crack", pontua. 0 Cito Preto retratado por Henrique desde a década de 1970 parece um trecho de obras literérias como “0 Cortico* ou “Navalha na Carne”**, “Eu vi de tudo que vocé pode imaginar. Gente morrer de pedrada, de facada, gente morrer 4 mingua, todas as mazelas que vocé vé na sociedade”, conta, A miséria também era um local de refugio. “Muita gente morreu sozinha dentro de um quarto porque era portadora do virus do HIV. Na década de 1980, era uma coisa ainda muito desinformada, sem tratamento, as pessoas iam morar lé sozinhas’, relembra.

Você também pode gostar