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Louvor e crise da

transitoriedade
Sobre A montanha mágica de
homas Mann
Felipe Catalani

Hoje, tais relexões [sobre o progresso]


culminam na consideração sobre se a humanidade
será capaz de evitar a catástrofe.

Progresso, heodor Adorno

com o perdão da Crítica imanente, que, com justiça, exige que se


parta do objeto analisado, gostaria de analisar alguns aspectos do
romance A montanha mágica, de Mann, começando com um co-
mentário sobre (mais precisamente, uma citação de) um outro texto
seu – a saber, um ensaio de 1952 intitulado Louvor à transitoriedade.
A razão disto logo veremos.
homas Mann inicia seu ensaio declarando que o que ele con-
sidera mais importante é a transitoriedade, pois:

ela é a alma do ser, é aquilo que proporciona a


toda vida, valor, dignidade e interesse, pois ela cria
o tempo – e tempo é, pelo menos potencialmen-
te, a dádiva mais alta e a mais útil, aparentada em
sua essência com, idêntica mesmo a todo criativo e
ativo, a toda vivacidade, a todo querer e aspiração,
a todo aperfeiçoamento, a todo progresso para o
mais sublime e o melhor. Onde não há transitorie-
dade, princípio e im, nascimento e morte, não há

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tempo, - e a falta de tempo é o nada estagnado, tão
bom e tão ruim como o desinteressante absoluto.

À primeira vista poder-se-ia dizer que isso são observações de


um heracliteano extemporâneo com pitadas positivistas de ideologia
do progresso. Mas esta relexão sobre o tempo ilumina o (e é tam-
bém iluminada pelo) romance em questão, que, mais de vinte anos
antes da elaboração deste ensaio, reletia sobre uma transitoriedade
agonizante, um tempo em suspenso. Uma questão signiicativa para
nós seria: que tempo é este?
Nosso herói prosaico e ordinário, Hans Castorp, herdeiro e as-
pirante ao trabalho de engenheiro naval, pretende fazer uma visita a
seu primo Joachim Ziemssen no sanatório de doenças pulmonares
de Davos-Platz nos Alpes suíços. A visita, que segundo seu planeja-
mento duraria três semanas, acaba se estendendo por sete anos. A
recomendação de que Castorp não retorne para “as planícies lá em
baixo” e permaneça “lá em cima” parte do médico-diretor, que, nun-
ca tendo conhecido alguém saudável na vida, possui um incrível afã
internador, fazendo lembrar as descrições foucaultianas das grandes
internações do hôpital général de Paris, que no século xviii chegou
a “abrigar” um por cento da população parisiense, entre leprosos,
loucos, criminosos e vagabundos. A diferença entre o hôpital géné-
ral parisiense e o nosso sanatório em Davos-Platz é que, se em um
era internado basicamente o lumpesinato urbano de Paris, excluídos
da dinâmica (e, por conseguinte, do tempo) social do trabalho, da
civilidade, e da saúde mental e física, no outro é a aristocracia e a
alta burguesia europeia, um pouco decadentes, que estão internados,
doentes, e reclusos da transitoriedade de “lá de baixo”. Ali em cima,
o espírito europeu se torna paciente, e a aristocracia convalescente
assume ares românticos, principalmente se levarmos em conta a sim-
bologia da tuberculose na tradição do romantismo.¹ De todo modo,
o tempo-espaço da montanha aparece como totalmente alienado do
tempo-espaço da planície.
Tanto o leitor como a personagem principal possuem uma ex-
periência do tempo que se transforma ao longo do romance, ao lon-
go da aclimatação na montanha mágica. O narrador, em seu “pro-
pósito”, já convida o leitor ao tempo demorado da narração porvir,
que é também, objetivamente, a demora da leitura de um romance

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de setecentas e cinquenta páginas. Se, no início do livro, a narração
toma uma boa centena de páginas para o primeiro dia de Castorp,
o tempo narrativo se dilui na repetição, no hábito, na mesmice que
é o ambiente do romance, de forma que o tempo passa a voar – tão
rápido como se não passasse – de modo a criar formalmente uma
distinção entre o tempo narrado [erzählte Zeit] e o tempo dedicado
à narrativa, ou o tempo-de-narrar [Erzählzeit].² E assim se passam os
meses, as estações, os anos. Esta suspensão do tempo é sentida como
a descrição de hábitos que o nosso herói passa a adotar:

Quando voltaram ao quarto de Hans Castorp, de-


pois do almoço, já se encontrava ali, sobre uma
cadeira, o embrulho dos cobertores; e nesse dia o
jovem serviu-se deles pela primeira vez. Joachim,
que já estava habituado a isso, ensinou-lhe a arte
de agasalhar-se que todos exerciam ali em cima e
os recém-chegados tinham de aprender. Os co-
bertores deviam ser estendidos, um após outro,
sobre a cadeira de repouso, de maneira que um
bom pedaço deles sobrasse no lugar dos pés. A se-
guir, a pessoa estendia-se na cadeira e começava a
envolver-se no cobertor superior, primeiro de um
lado, a todo o comprimento, até às axilas, depois
na parte de baixo, por cima dos pés, o que reque-
ria que a pessoa se soerguesse, se inclinasse para
a frente e apanhasse ambas as camadas da extre-
midade dobrada, e por im do outro lado, sendo
importante ajustar cuidadosamente a ponta dupla
da referida extremidade às bordas da cadeira, a im
de conseguir um máximo de regularidade. (mann,
1957, p. 108)

A narração deste ato ritualizado, e de muitos outros dos primei-


ros dias de Hans Castorp, não será repetida, pois ele será igual ao
longo de todos os outros dias dos sete anos que se seguirão. “Quando
um dia é como todos, todos são como um só.” (p. 111). A variação
no espaço e no tempo não acontece, é o “nada estagnado” e o “desin-
teressante absoluto” do hábito regular que predomina no romance.

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O próprio narrador nos conduz a esta relexão, ao mostrar que “os
anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que
aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo tempo e
voam” (p. 110). A magia da montanha mágica [Zauberberg] é a sus-
pensão dos acontecimentos, a repetição como um feitiço [Zauber].
A montanha é mágica, ou enfeitiçada, de modo que seu tempo seja
circular, um tempo não histórico, mas próximo do tempo mítico,
um tempo imensurável. Em dado momento, Hans Castorp abdica
até mesmo do uso do relógio de pulso. O tempo retilíneo do pro-
gresso, assim como o tempo abstrato e mensurável do trabalho e da
atividade, é o tempo “lá de baixo”, da planície, onde a renda dos “lá
de cima” continua a render, de modo que as remessas de dinheiro são
continuamente enviadas para a montanha. Ora, o condicionamento
deste tempo suspenso e mágico não deixa de ser algo sócio-histórico
e sedimentado na posição de classe das personagens da montanha
mágica; um condicionamento, digamos assim, pouco mágico, e
muito pelo contrário, que não deixa de ser evidenciado pelo narra-
dor. Entre aristocratas russos, um notável burguês italiano, um mag-
nata holandês e até mesmo uma princesa egípcia, não há quem esteja
envolvido no mundo do trabalho, que é o mundo necessariamente
marcado pelo relógio de ponteiro e de ponto.
Não que a estadia em Davos do nosso herói em nada heroico
seja completamente tediosa. Há, por exemplo, uma aventura amo-
rosa, mas que é prescindível para a estrutura do romance – uma
aventura que não conigura nenhum destino signiicante do herói
e que possui uma ligação frouxa com o enredo.³ Ao longo do ro-
mance, não há acontecimentos propriamente ditos (com a exceção
do inal, quando o tempo é acelerado – retomaremos o inal mais
adiante), e sim pequenos episódios narrados por um narrador frio e
irônico. A morte é apresentada com indiferença, e, por vezes, com
uma comicidade forçada, quase intragável, apesar dela mesma ser
um dos temas centrais do romance, assumindo inclusive suas feições
metafísicas em relação à forma física do morrer.⁴ Joachim, um per-
sonagem central e, por que não dizê-lo, querido pelo leitor, morre
sem nenhuma cerimônia:

Às seis da tarde foi tomado por uma mania bizar-


ra: com a mão direita, cujo pulso estava guarneci-

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do de uma pulseira de ouro, esfregou várias vezes a
colcha, à altura dos quadris, e a seguir, ao retirá-la,
ergueu-a e fez um gesto de quem ajunta ou recolhe
alguma coisa.
Às sete horas morreu. (p. 561)

A descrição dos cadáveres que descem a montanha na pista de


bobsleigh também não carece de banalidade, seguido pelo riso de
Castorp. Diversas cenas que envolvem morte ou doença são acom-
panhadas de risos descabidos de algum personagem. O tom irônico
destrói qualquer possibilidade de espírito trágico que a morte po-
deria evocar. Ironicamente ou não, Hans Castorp se rebela, a certa
altura, contra a maneira como parte do Sanatório e as pessoas que ali
habitam (e quem sabe, como ele mesmo e o próprio narrador) lidam
com a morte, pois os óbitos que ali ocorrem são sempre ocultados
como se não acontecessem, de forma que a normalidade da rotina
sem transitoriedade seja preservada. Ainal, a morte é a expressão
maior da transitoriedade da vida, ela mesma um grande aconteci-
mento. O desejo de Castorp de encarar a morte, de moralizar-se, faz
parte das contratendências de sua aclimatação na montanha, que
durante longo período parece não se realizar de modo pleno, e por
outro lado conigura uma trajetória do herói que se sensibiliza e se
espiritualiza, fazendo d’A montanha mágica um romance na tradição
do romance de formação.⁵

Parece-me que o mundo e a vida foram feitos de


sorte que deveríamos andar sempre de preto, com
uma golilha engomada em lugar do colarinho, e
manter uns com os outros relações graves, reserva-
das e formalistas, recordando-nos da morte. Gos-
taria que assim fosse. Acho que isso corresponde à
moral. (p. 306)

A música também o sensibiliza em dado momento. Isto, porém,


acontece diante de um equipamento de última geração da época que
é o toca-discos.⁶ O romantismo que surge é trabalhado por homas
Mann sempre em chave crítica e irônica; ainal a Europa do início do
século xx está à beira de sua desintegração. O horizonte civilizatório

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e humanizador do Progresso perde sentido – e esta carência de sen-
tido dá o sentido do romance. O tempo em suspenso é o tempo do
impasse que antecede a Grande Guerra, o acontecimento que dará
sentido à vida e direção ao tempo, numa dimensão catastróica. Os
discursos apologéticos do Ocidente de Settembrini, o iluminista ita-
liano, eram em vão e não puderam convencer. No inal do livro já se
constata: “O progresso? Meu Deus podia-se compará-lo ao famoso
caso do enfermo que estava sempre a mudar de posição porque es-
perava encontrar algum alívio nisso. Um desejo não confessado, mas
muito difundido, secretamente, o de ver rebentar uma guerra era a
expressão deste estado.” (p. 722)
Nas últimas páginas do livro, a montanha mágica é nomeada
enquanto tal, pela primeira vez, após o enunciado do título, como se
isso fosse a saída do seu encanto para o acontecimento que retoma
o tempo, lembrando o quanto dele passou, e agora acelerado pelo
trovão, “o trovão que fez explodir a montanha mágica e pôs na rua o
nosso sonhador adormecido.” (p. 742). Todos os convalescentes que
estavam ali a esperar a “cura deinitiva” antes de descer se precipitam
e se locomovem no espaço de forma, literalmente, acelerada: “De
cinco mil pés de altura, os seus habitantes precipitavam-se de cabeça
para baixo em direção à planície onde os aguardava a prova, suspen-
sos dos estribos do comboiozinho tomado de assalto, deixando atrás
de si, se assim fosse necessário, as bagagens que atulhavam os cais
da estação.” (p. 745). As últimas quatro páginas são um turbilhão
narrativo, um encadeamento veloz de ações e descrições do campo
de guerra no qual se perde de vista o nosso herói, cujo destino des-
conhecemos – vislumbramos sua imagem ao longe, cantarolando (!)
sem pensamentos, escapando da morte. Mas, ainal, o que importa
não é ele, e sim sua história. E eis que a formação do nosso herói não
poderá salvá-lo, fazendo dela uma formação em vão. O narrador se
despede dele, e lhe deixa sua mensagem cruel:

Certas aventuras da carne e do espírito, que edu-


caram a tua simplicidade permitiram-te vencer no
domínio do espírito aquilo a que não escaparás
certamente no domínio da carne. (p. 749)

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A transitoriedade, justamente o que homas Mann julga o mais
importante, criador de todo o ser, promessa do progresso, aparece
como a tragédia. A resolução da crise da transitoriedade não é re-
solução alguma, pois a retomada do tempo histórico e a saída do
“nada estagnado” não conduz ao “criativo e ativo”, à “vivacidade” e
ao “aperfeiçoamento”, mas à destruição total e à morte. O “elogio/
louvor” (Lob) da transitoriedade é possível no romance como uma
promessa (embora duvidosa e quase kitsch) de que algo surgirá após
a queda na barbárie:

Será que dessa festa da morte, dessa perniciosa fe-


bre que incendeia à nossa volta o Céu desta noite
chuvosa, também o amor surgirá um dia? (p. 749)

referências bibliográficas
adorno, heodor. Progresso. In: Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2.
Trad. Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Ed. Vozes, 1995.
heller, Erich. homas Mann. Der ironische Deutsche. Frankfurt am
Main: Suhrkamp Verlag, 1959.
lukács, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-ilosóico sobre
as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo: Duas Cidades ; Ed. 34, 2000.
______. “Narrar ou descrever? Uma discussão sobre naturalismo e
formalismo”. In: Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão
Popular, 2010.
mann, homas. A Montanha Mágica. Trad. Herbert Caro. Lisboa: Edi-
ção “Livros do Brasil”, 1957.
______. Ensaios. Org: Anatol Rosenfeld. Trad: Natan Zins. São Paulo:
Perspectiva, 1998.
schmidt, Alfred. Adornos Spätwerk: Übergang zum Materialismus als
Rettung des Nichtidentischen. In: Emanzipation als Versöhnung. Org:
Alfred Schmidt. Frankfurt am Main: Neue Kritik Verlag, 2002.
silva rodrigues, Menegaldo Augusto. A representação do tempo no ro-
mance Der Zauberberg de homas Mann. Dissertação de mestrado. São
Paulo: USP, 2009.

notas
1. “homas Mann não poderia ter escolhido um cenário mais apro-
priado para sua grande crítica do espírito europeu que um sanató-

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rio; não só porque o espírito europeu torna-se um paciente, mas
sobretudo porque espírito e doença são aliados tradicionalmente
românticos.” (Tradução livre) Erich Heller. homas Mann. Der
ironische Deutsche. Frankfurt am Main: SuhrkampVerlag, 1959. P.
236.
2. Esta observação sobre a formalização do tempo no romance e os
dois planos temporais foi feita na dissertação de mestrado de Me-
negaldo Augusto da Silva Rodrigues, intitulada “A representação
do tempo no romance Der Zauberberg de homas Mann”. Este, por
sua vez, atribui a análise a Günther Müller e à retomada feita por
Paul Ricoeur em Tempo e Narrativa, e também por Benedito Nu-
nes em O tempo da narrativa. Entretanto, apesar de ilosoicamente
sensível em muitos aspectos, esta linha de análise parece carecer de
um esforço de relexão histórica sobre o condicionamento social
do tempo.
3. Espero não forçar a mão, mas já forçando, ao fazer uma analogia
(um pouco anacrônica) com a análise que Lukács faz da corrida
de cavalos em Naná de Zola: “[...] esta descrição, com todo o seu
virtuosismo, não passa de uma digressão no interior do romance.
Os acontecimentos da corrida são apenas frouxamente ligados ao
enredo e poderiam facilmente ser suprimidos, já que sua ligação
com o todo consiste apenas no fato de que um dos muitos amantes
passageiros de Naná se arruinou em consequência da descoberta da
negociata.” Georg Lukács, “Narrar ou descrever? Uma discussão
sobre naturalismo e formalismo”. In: Marxismo e teoria da literatu-
ra. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
4. “Sterben ist physisch, der Tod metaphysisch.” (Morrer é físico, a
morte, metafísica. (Tradução livre)) Esta passagem encontra-se
num texto de Alfred Schmidt, de temática um pouco distante do
nosso objeto: “Adornos Spätwerk: Übergang zum Materialismus
als Rettung des Nichtidentischen”.
5. Como observa Erich Heller no seu já citado Zauberberg-Gespräch,
diálogo settembriniano sobre A Montanha Mágica, se no Wilhelm
Meisterde de Goethe o herói passa de um gênio a um membro útil
da sociedade, Hans Castorp passa de membro útil da sociedade
a gênio. O professor Jorge de Almeida (que ministrou um curso
sobre crise do romance, que deu origem a este ensaio) interpreta
A Montanha Mágica como um romance de formação negativa, no
qual o herói aparece já formado, pronto para encarar o mundo (do
trabalho), e é deformado ao longo do romance, atingindo com isso
simultaneamente uma outra formação.
6. Ainda o texto de Heller.

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