Recolhidos os corações ao santuário do Amor, se lhes
avoluma o sentimento sublime, fluxo do Divino Pai posto em cada um, para que, levados nesse caudal sublimado, se transformem em elementos válidos humanitários. Quantas vezes estamos fazendo brotar de nós próprios esse precioso néctar, terapêutica universal, generalizada a todas as raças da crosta, solução santa dos flagelos que assolam a humanidade. Aqui fica mais um facto verídico, como comprovativo, que vincula e avisa o que foi dito: Há séculos atrás, numa manhã fria e húmida, um certo cidadão que ia transitando nas ruas de cidade bastante movimentada, nos arredores de Paris, deparou com um velhinho sem vista, que estendia a mão à caridade. Encostado a um umbral onde procurava resguardar-se da neblina matinal, repetia uma lenga-lenga compassada e frágil: - «Queiram ajudar o ceguinho, meus senhores…!» O transeunte parou a pouca distância, observando-o minuciosamente. Instantes decorridos, a sua voz crua, desagradável, pronunciou: - «Que fazes aqui tão cedo, em manhã tão desagradável…? O frio húmido entranha-se nos ossos…» Dito isto, esfregou vigorosamente as mãos uma na outra e estremeceu com forte arrepio. Ainda adiantou: «Já sei, queres condoer os corações para te darem esmola.» O velhinho, a princípio não percebeu, tal a confusão que àquela hora movimentada existia naquele bairro. Porém, parou de fazer o apelo textual e então certificou-se de que era para si que aquela voz se dirigia, pois que a frase foi repetida agora mais de perto. O pobre cego articulou humildemente: - «Senhor, não o vejo, mas pelo que me diz, a manhã está fria e húmida. Isso me espanta, sabe, eu não a sinto assim. Para mim é cálida, repleta de vida e calor. Acha-me louco certamente, mas eu explico: Passo as minhas noites no vão desta entrada. Para mim a luz não existe, as trevas toldaram os meus olhos ainda na mocidade e já me habituei. Apenas uma diferença: Pressinto a aproximação da noite com o silêncio que me cerca, é aí que a frieza da solidão me tolhe os movimentos e eu gelo transido. A esta hora não…, sou feliz.! Quando amanhece, o meu coração aquece e alegra-se ouvindo os passos e as vozes dos que passam. Para mim, são a minha família querida. Não os vejo, mas sinto-os…! O meu coração vibra no mesmo entusiasmo e vigor, na mesma vida com eles. É assim, amigo…!» Estupefacto, o homem permaneceu por longo tempo ali parado, meditando na grande lição que acabava de receber. Tudo lhe percorreu a mente adormecida, como uma fita cinematográfica: a vida de infância no melhor colégio, onde os maiores professores o tinham ensinado, o solar enorme onde nada lhe faltava, inclusive o carinho e afecto dos seus extremosos pais. A nada dera valor. A ninguém ligava senão muito na superfície. Continuava parado, ressuscitando lentamente…parada com ele a vida que nunca sentira em profundeza, a pontos de a amar, tal como o velhinho amava devotadamente a sua, apesar de triste e fria como aquela manhã nevoenta. Francisco de Assis – Psicografia de Nélinha