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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Faculdade de Direito
Departamento de Direito Privado e Processo Civil
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UFRGS Av. João Pessoa, 80 - Centro - CEP 90040-000
Porto Alegre/RS
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versão 2009

HISTÓRIA DO DIREITO

(Material de Apoio)

Sérgio Severo
svsevero@hotmail.com.br

Porto Alegre, 5 de abril de 2009.


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TEXTO PROVISÓRIO (em revisão)

HISTÓRIA DO DIREITO1

INTRODUÇÃO: DIREITO, JUSTIÇA E ESTADO NA HISTÓRIA

(TOBIAS BARRETO2)

“É mister bater cem vêzes, e cem vêzes repetir: o direito não


é um filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico,
um produto cultural da humanidade. Serpens nisi serpentem
comederit no fit draco, a serpe que não devora a serpe não se
faz dragão; a fôrça que não vence a fôrça não se faz direito; o
direito é a fôrça que matou a própria fôrça”.
imagem: www.projetomemoria.br

1) O que é o Direito? - De onde vem o Direito? De Deus? De um sentido de


preservação existente em todos os animais? Da razão humana? Da vontade do
mais forte? Da captação de costumes arraigados no espírito do povo? Do Estado?
Das manifestações da sociedade? De uma reflexão acerca da justiça que deve
sempre prevalecer? Qual a razão de existência do Direito? Como se manifesta o

1
O presente texto é composto de noções desenvolvidas na disciplina de Introdução ao Estudo do Direito junto à UnB,
História do Direito junto à UFRGS, bem como de adaptação didática e desenvolvimento de matérias tratadas no texto de
nossa autoria: Sérgio Severo, “Modernidade perplexa! (retrospectiva e prospectiva do pensamento jurídico a partir do
paradigma sistêmico, nas noções de Direito e Estado em Hans Kelsen), in Anais do XXIII Congresso Nacional de
Procuradores do Estado, São Luís - MA, pp. 315-345. No presente momento a fonte principal, sobretudo com relação
aos direitos não escritos e antigos é a obra indicada como leitura recomendada para a disciplina: John Gilissen,
Introdução Histórica ao Direito, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed.,1995.
2
Nascido em Campos, em 1839, TOBIAS BARRETO foi para Salvador em 1861, para seguir carreira eclesiástica, à qual
se dedicou por um dia, chegando pela manhã e fugindo à noite. Efetuou estudos preparatórios em Salvador e depois
rumou para Recife, onde prestou os exames e matriculou-se na Faculdade de Direito em 1864. Foi o precursor da Escola
de Recife, que exerceu grande influência sobre o pensamento jurídico no Brasil, tendo uma forte influência germânica.
Para conhecer melhor o pensamento de TOBIAS BARRETO pode-se consultar suas Obras Completas, editadas pelo
Instituto Nacional do Livro, com os seguintes trabalhos: "Ensaios e Estudos de Filosofia e Crítica", 1875; "Brasilien, wie
es ist", 1876; "Ensaio de pré-história da literatura alemã"; "Filosofia e Crítica"; "Estudos Alemães", 1879; "Dias e
Noites", 1881; "Polêmicas", 1901; "Discursos", 1887 e "Menores e Loucos", 1884.

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Direito? Como se relaciona com a noção de justiça? O Direito é anterior ou


posterior ao Estado?

2) Direito e justiça - São várias as perguntas e múltiplas as respostas possíveis


quando se fala em direito e justiça. TOBIAS BARRETO apresenta o Direito como
fruto da história, como produto de uma sociedade que desenvolve um método de
coerção para combater a força desordenada da vingança, o que também se
observa nas palavras de RUDOLF VON JHERING3:

“O direito não é uma pura teoria, mas


uma força viva.
Por isso a justiça sustenta numa das
mãos a balança em que pesa o direito, e
na outra a espada de que se serve para
o defender.
A espada sem a balança é a força brutal; a balança
sem a espada é a impotência do direito.
Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá
ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a
justiça aplica a espada seja igual à habilidade com
que maneja a balança”.
(RUDOLF VON JHERING)
imagem: www.knerg.de

Por outro lado, o surgimento do Direito guarda estreita identidade


com uma ordem religiosa e ética. É incontestável a interpenetração de tais
noções, verificadas na mitologia dos egípcios, fenícios e caldeus, sem deixar de se
manifestar, posteriormente, na própria civilização grega. De tal forma, as
referências ao Direito e à justiça representam um amálgama entre as ordens
jurídica, moral e religiosa, cuja separação é fruto da modernidade4.

3
Rudolf Von Jhering (1818-1892), A luta pelo Direito, trad. de João Vasconcelos, Rio de Janeiro, Forense, p. 01.
4
Luís Fernando Coelho, Introdução Histórica à Filosofia do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 1977, p. 23. LUÍS
FERNANDO COELHO é Doutor e Livre Docente, Professor de Filosofia do Direito, tendo exercido magistério na
UFPR, UFSC, PUC/PR e na UNIPAR – Umuarama, é autor de várias obras, dentre as quais destacam-se: Teoria Crítica

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Sob tal perspectiva, os gregos desenvolveram uma ordem ética de


caráter metafísico para justificar o Direito, representado na figura mítica de Têmis,
a mais antiga revelação de uma divindade ligada ao Direito5.

Um Direito identificado com a noção de justiça, de caráter ético e


divino, é observado em SÓFOCLES1, quando Antígona questiona e desrespeita o
Édito de Creonte negando sepultura a seu irmão Polinices6:

“ CREONTE
- Mesmo assim ousaste transgredir minhas leis?

ANTÍGONA
- Não foi, com certeza, Zeus que as proclamou, nem a Justiça
com trono entre os deuses dos mortos as estabeleceu para os
homens.
imagem: www.dialogos2.org
Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de
superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que és
mortal.
Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre
vivas, nem se sabe quando surgiram.
Por isso, não pretendo, por temor às decisões de algum
homem, expor-me à sentença divina. (...)”.

Sob a perspectiva ética, a concepção grega apresenta as noções de


Direito e justiça amalgamadas como reflexo das divindades, consolidando uma
visão segundo a qual “justiça é tratar igualmente aos iguais e desigualmente aos
desiguais, na medida em que se desigualam”.

do Direito, Lógica Jurídica e Interpretação das Leis, Teoria da Ciência do Direito, Fundações Públicas, Introdução
Histórica à Filosofia do Direito, Saudade do Futuro. Para maiores informações sobre o autor, v.:
http://www.academus.pro.br/professor/luizfernando/meio.htm.
5
Luís Fernando Coelho, Idem, p. 30.
6
Sófocles, Antígona, trauzido por Donaldo Schüler, Porto Alegre, L&PM, 2007, págs. 35-36.

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A cultura ocidental moderna dissociou a religião das noções de


Direito e de Estado7, fazendo com que aquele deixasse de ser um dado de Deus,
assim como o poder do soberano passasse a ser concebido como expressão da
vontade dos cidadãos e não mais um legado divino8.

Porém, a “depuração’” do Direito ocidental nunca se deu de forma


absoluta. Se, de um lado, angariou foros de independência frente à religião e à
filosofia, ainda guarda na sua cadeia genética fortes traços trazidos pela religião,
sobretudo na Idade Média, mas também em esferas do direito contemporâneo,
com exemplos recentes no tocante ao tratamento da utilização de células-tronco
embrionárias para a finalidade de pesquisa, do casamento entre pessoas do
mesmo gênero, do aborto e da eutanásia9.

Já, no tocante à filosofia, há uma esfera nunca superada, nem


mesmo pelos adeptos de um direito puro, os positivistas, pois expressa, dentre

7
Observe-se que tal processo desenvolve-se de forma bastante lenta, sendo mais notado a partir da Revolução Francesa e
do jusracionalismo, a partir do século XVIII. Em Portugal, p. ex., pode ser observada uma intensa força da Igreja na
consolidação do Império, sendo os primeiros reis considerados vassalos lígios do papa, como Afonso I, podendo ser
observados casos em que o Papa intervinha, liberando os súditos da obediência devida, como aconteceu em relação a
Sancho II (sobre o assunto, ver: A. H. De Oliveira Marques, Breve História de Portugal, Lisboa, Presença, 1996, p. 36 e
s.).
8
Sobre direitos não ocidentais com influência religiosa, cumpre salientar que ainda remanescem fortes elementos nos
direitos muçulmano e hindu (v.: René David, Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo, trad. do original
intitulado ‘Les Grands Systèmes du Droit Contemporains, Droit Comparé’ por Herminio A. Carvalho, São Paulo,
Martins Fontes, 1986, p. 407 e s.).
9
As quatro questões vêm sendo objeto de discussões legislativas e judiciais. Seja a questão do casamento homoafetivo,
com exemplos concretos de adoção por ordenamentos jurídicos estrangeiros ou com vivas discussões legislativas, como
ocorre no Brasil e recentemente sucedeu na Espanha. Com referência ao aborto, a sua incorporação à esfera da legalidade
também é objeto de grandes discussões. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal também vem examinando, com vivas
discussões sociais, a permissão de aborto com relação a fetos portadores de anencefalia. Por seu turno, não são menores
os debates relativos à eutanásia, observados nos noticiários e até mesmo em filmes de cinema. Encontra-se em
julgamento no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510, na qual é suscitada a inconstitucionalidade de
dispositivos da Lei 11.105/05 (Lei de Biossegurança) que autorizam a pesquisa com células-tronco embrionárias. Em
razão de um pedido de vista, por parte do Ministro Menezes Direito, a Sessão Plenária de julgamento está suspensa, na
ocasião já tinham votado a favor da constitucionalidade o Relator, Ministro Carlos Britto, e, com pedido de antecipação
de voto, a Presidente do STF, Ministra Ellen Gracie. Na prática, o que se discute é a compatibilidade das pesquisas com
células-tronco embrionárias com o ordenamento constitucional brasileiro.

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várias outras questões, a reflexão sobre a relação entre o Direito e a noção de


justiça.

O Direito se organiza enquanto ordenamento da vida social voltado à


realização da justiça. E a justiça não é uma interferência indevida da filosofia, mas
o próprio fundamento do Direito.

3) Direito e Estado – Sob outro prisma, também as relações entre Direito10 e


Estado11 merecem atenção; muitos consideram que há uma precedência e/ou
dependência de um diante do outro e há, também, quem defenda uma identidade
entre ambos.

A discussão acerca da precedência ganha força no contexto da


história do direito. E nesse ponto há uma questão que sustenta calorosos debates:
qual dos dois veio antes, o Estado ou o Direito? Se este for anterior ao Estado,
então as manifestações do Direito serão anteriores à formação estatal e
independentes de tal noção, na medida em que o Direito existiria sem Estado,

10
O Direito, assim como o Estado, comporta vários significados, como bem demonstram as seguintes passagens: “A
palavra ‘direito’ vem do latim directum, que corresponde à idéia de regra, direção, sem desvio. No Ocidente, apesar de
em alemão ser recht, em italiano diritto, em francês droit, em espanhol derecho, tem o mesmo sentido. Para os romanos
jus era direito, diverso de justitia, no nosso sentido de justiça, ou seja, qualidade do direito.
De modo muito amplo, pode-se dizer que a palavra ‘direito’ tem três sentidos: 1º, regra de conduta obrigatória (direito
objetivo); 2º, sistema de conhecimentos jurídicos (ciência do direito); 3º, faculdade ou poderes que tem ou pode ter uma
pessoa ou seja, o que pode uma pessoa exigir de outra (direito subjetivo)” (GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao
Estudo do Direito, Rio de Janeiro: Forense, 19ª ed., 1996, p. 55). “A palavra direito é usada em muitos sentidos. Há o
direito positivo, posto pelo Estado ou nascido das vontades nos contratos, o direito natural, fruto da ordem divina ou dela
na razão do homem, o direito vigente que, estando em vigor, se acha dotado de força e não foi revogado por outro
posterior, e o direito do futuro, que projeta um ideal jurídico ou político. O direito objetivo indica o ordenamento positivo
colocado diante de nós e o direito subjetivo a faculdade de exigir seu cumprimento” (POLETTI, Ronaldo. Introdução ao
Direito, São Paulo: Saraiva, 3ª ed. ver. e ampl., 1996, pp. 122-123).
11
O Estado, que é uma noção moderna, introduzida no período de Maquiavel, assim como Direito comporta diversos
significados e mesmo, ao longo da história, diferentes designações, como, v.g., res publica e civitas entre os romanos,
que legaram a designação status rei publicae e status rei romanae, como prováveis antecessores da designação Estado.
De tal modo, Estado é aqui considerado como conjunto político, social e jurídico, envolvendo a ordenação da sociedade,
a partir de uma população e um território definidos, estabelecendo um poder soberano no plano interno e externo. Sobre
o Estado, v.: Giorgio Del Vecchio, Teoria do Estado, trad. por António Pinto de Carvalho e pref. por Miguel Reale, São
Paulo, 1967; Alexandre Groppali, Doutrina do Estado, trad. da 8ª. ed. it. por Paulo Edmur de Souza Queiroz, São Paulo,
1953.

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sem uma força externa que o aplique de forma heterônoma12. Por outro lado, se a
precedência for do Estado, o Direito é um mero instrumento de comunicação com
os súditos, não requerendo qualquer qualificação para configurar-se como
aplicável, na medida em que é um mero elemento de expressão do poder
organizado.

Embora acalorados, os debates tendem a estabelecer um círculo


vicioso, na medida em que não há mecanismos que possam afirmar a
antecedência do Estado sobre o direito ou vice-versa.

Segundo HENRI DECUGIS, a noção de Direito como ordenamento da


conduta humana é uma noção insuficiente, na medida em que RUDOLF VON
JHERING já identificara a necessidade da força para que o Direito se faça cumprir.
DECUGIS menciona que essa força não é necessariamente do Estado, na medida
em que, no seu entendimento, o Direito nasceu antes do Estado13.

PAULO NADER questiona:

“Qual a causa fundamental do Direito? Do ponto de vista filosófico teria


surgido em razão da imperfeição humana. Para a Igreja Católica essa
condição seria irreversível, porquanto derivada do pecado original. O
Direito seria, assim, na observação de Felice Battaglia, remedia peccati,
que não sanava o pecado e nem devolvia a perfeição do homem. Para os

12
A heteronomia é um dos elementos que distinguem o Direito da moral, pois, enquanto esta é autônoma, fazendo-se
valer pela ação do grupo, o Direito requer a solução estatal dos conflitos, através de uma figura neutra, que representa o
juízo da sociedade na resolução de disputas e determina as penas eventualmente cabíveis.
13
“On définit généralement le Droit, en disant que c’est l’ensemble des règles qui gouvernent la conduite des hommes
vivant en société. Cette définition est peut-être insuffisante, en ce sens qu’il y manque l’idée essentielle de la contrainte
d’origine collective ou de la crainte religieuse qui forcent chaque membre du groupe à l’observation de ces règles ainsi
rendues obligatoires. ‘Le droit sans force, a dit durement Ihering, est un mot vide de sens.’
Mais cette force sans laquelle le Droit n’existe pas, n’est pas nécessairement celle de l’Etat, comme l’ont cru à tort
Ihering et d’autres juristes du XIXe. Siècle. En fait, le Droit a pris naissance bien avant l’Etat. La force contraignante
qui donne à la règle son caractère juridique peut venir d’une collectivité, comme la famille ou la tribu primitive, à
laquelle on ne peut pas donner le nom d’Etat. Elle peut aussi venir d’un individu plus fort que l’être auquel il impose des
règles de conduite, par exemple, du mari vis-à-vis de sa femme, du père vis-à-vis de ses enfants, ou du maître vis-à-vis de
ses esclaves. Enfin, les prescriptions religieuses rendues impératives par la crainte du châtiment divin ont un caractère
incontestablement juridique” (Henri Decugis, Les Étapes du Droit, des origines a nos jours, Paris, Sirey, 1946, p. 11).

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marxistas a imperfeição poderia ser convertida, pois a sua origem estava


ligada à distinção de classes sociais. Com o desaparecimento dessas,
cessaria a imperfeição humana e a razão de ser do Direito”14.

HANS KELSEN15 identifica ambos, Estado e Direito, mencionando que


o Estado nada mais é do que uma ordem jurídica e que não há, portanto, um
elemento tão marcante quanto a autonomia da ordem jurídica para caracterizar o
Estado. Ninguém mais moderno do que KELSEN16, o jurista do século XX, para nos
apresentar as noções de Direito e de Estado. Vejamos o seu depoimento:

14
Paulo Nader, Filosofia do Direito, Rio de Janeiro, Forense, p. 94.
15
HANS KELSEN (11 de outubro de 1881-19 de abril de 1973) – A biografia mais completa de Hans Kelsen foi escrita
por seu aluno e assitente: Rudolf Aladár Métall, Hans Kelsen, Leben und Werk, 1969. Identificado como o Jurista do
Século XX, nasceu em Praga e, aos três anos de idade, com a família, composta de judeus de classe média, mudou-se
para Viena. Obteve o Doutorado em Direito em 1906. No ano de 1911, KELSEN foi nomeado Professor de Direito
Público e Filosofia do Direito na Universidade de Viena, com o seu primeiro trabalho significativo, Hauptprobleme der
Staatsrechtslehre, uma obra de 700 páginas sobre a teoria do direito público.Nos anos de 1918 e 1919, KELSEN tornou-
se, respectivamente, Professor Associado e Professor Titular de Direito Público e Administrativo na Universidade de
Vienna. A década seguinte estabelece um período de desenvolvimento das atividades docentes, com vários de seus alunos
destacando-se como significativos juristas, dentre eles, ADOLF MERKL, ALFRED VERDROSS, FELIX KAUFMANN,
FRITZ SANDER, ERICH VOEGELIN, ALF ROSS, CHARLES EISENMANN, LUIS LEGAZ Y LACAMBRA e
FRANZ WEYR. Juntos, estes significativos juristas formaram a Escola de Viena (Wiener Schule). Em 1919, torna-se
uma personalidade fundamental na História do seu país, uma vez que lhe foi confiada a tarefa de elaborar um esboço na
nova Constituição austríaca, adotata em 1920 e preservada, em seus princípios fundamentais, ao longo do século. Em
1921, KELSEN é indicado para a Corte Constitucional austríaca, onde exerceu fornte influência, sendo afastado, por
motivos políticos, no ano de 1930. Na ocasião, mudou-se para Colônia, onde ensinou Direito Internacional na
Universidade. Em 1933, com a tomada do poder pelos nazistas, houve uma sensível modificação na Universidade de
Colônia, culminando com a sua remoção. Posteriormente, inicia atividades acadêmicas no Institut Universitaire des
Hautes Etudes International. O início da II Guerra Mundial e sua convicção de que a Suíça se envolveria no conflito,
motivou a decisão de KELSEN de partir, em 1940, para os Estados Unidos, onde lecionou em várias faculdades, mas
principalmente em Berkeley, onde KELSEN finalmente encontrou um ambiente calmo, conduzindo a uma intensa e
profícua atividade, especialmente no ensino do Direito Internacional. Em 1945, tornou-se conselheiro legal das Comissão
de Crimes de Guerra das Nações Unidas, em Washington, com a tarefa de preparar os aspectos jurídicos e técnicos do
Tribunal de Nuremberg. HANS KELSEN morreu em Berkeley, em 19 de abril de 1973, aos 92 anos, deixando
aproximadamente 400 trabalhos, legado de uma imensa vida produtiva. Muitos de seus trabalhos foram traduzidos para
aproximadamente 24 línguas. Em 1971, ao celebrar seus 90 anos de vida, o governo austríaco fundou o Hans Kelsen
Institute, em Viena, onde estão a maioria dos seus escritos originais e é também a entidade mantenedora de seu
importante legado cultural. O Instituto, por exemplo, produziu a primeira edição do General Theory of Norms, em 1979.
A influência de KELSEN continua a ser observada especialmente através da Teoria Pura do Direito, positivismo jurídico
crítico (Direito Constitucional e Direito Internacional), Filosofia do Direito (temas como justiça e direito natural),
Sociologia (causalidade e retribuição), Teoria Política (democracia, socialismo e bolchevismo) e críticas da ideologia.
Remanescendo, KELSEN, como a principal referência do pensamento jurídico. Imagem e dados biográficos podem ser
examinados no site do Hans Kelsen Institut: http://www.univie.ac.at/staatsrecht-kelsen. V. tb.: LADAVAC, Nicoletta
Bersier, “Hans Kelsen (1881 - 1973) Biographical Note and Bibliography”, in European Journal of International Law,
v. 9, nº 2, art. 11, http://www.ejil.org/journal/Vol9/No2/art11.html#TopOfPage.
16
Hans Kelsen, Teoria Pura, São Paulo, Martins Fontes, 2ª ed. bras., 1985, p. 302.

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“(...) Como organização política, o Estado é uma ordem


jurídica. Mas nem toda ordem jurídica é um Estado. Nem a
ordem jurídica pré-estatal da sociedade primitiva, nem a
ordem jurídica internacional supra-estatal (ou interestatal)
representam um Estado. Para ser um Estado, a ordem jurídica
precisa ter o caráter de uma organização no sentido estrito da
palavra, quer dizer, tem de instituir órgãos funcionando
segundo o princípio da divisão do trabalho para criação e
aplicação das normas que a formam; tem de apresentar um
certo grau de centralização. O Estado é uma ordem jurídica
imagem: centralizada”.
www.univie.ac.at
Hans Kelsen – Institut

Convém sublinhar que, para KELSEN, a designação Estado de


Direito17, que ele mesmo reconhece como corrente, conserva um pleonasmo, pois,
no seu entender, Estado é Direito. Ambos se identificam pois o Estado é
vislumbrado como ordem jurídica centralizada, distinguindo o Estado de outras
ordens jurídicas distintas (a das sociedades primitivas e a internacional), onde não
é verificada a centralização18.

KELSEN não vai constatar nas ordens jurídicas pré-estatal (primitiva)


e supra-estatal (internacional) um órgão legislativo central, mas a via
consuetudinária como fonte do Direito, “o que significa que o processo de criação
jurídica geral é descentralizado”; de outra banda, ele também não vislumbra
“tribunais que sejam competentes para aplicar as normas gerais aos casos
concretos”, ficando reservada a autodefesa dos membros da comunidade

17
Sobre o assunto podemos adotar a síntese do constitucionalista da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO: “Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-
estadual cuja atividade é determinada e limitada pelo direito” (Estado de Direito, Cadernos Democráticos, Coleccção
Fundação Mário Soares, Lisboa, Gradiva, 1ª. ed., 1999, p. 11).
18
“Através desta centralização, a ordem jurídica do Estado distingue-se da primitiva ordem pré-estatal e da ordem
supra-estatal (ou interestatal) do Direito internacional geral” (idem, ibidem).

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internacional através de represálias ou guerras, ou seja, é ressalvado o delito


como resposta a um delito, firmando o princípio da guerra justa (bellum justum)19.

Sob tal perspectiva, KELSEN apresenta a seguinte definição:

“Desta forma, o Estado, cujos elementos essenciais são a população, o


território e o poder, define-se como uma ordem jurídica relativamente
centralizada, limitada no seu domínio espacial e temporal de vigência,
soberana ou imediata relativamente ao Direito internacional e que é,
globalmente ou de um modo geral, eficaz”20.

Uma tal concepção de KELSEN é muitas vezes examinada sob o


prisma da discussão acerca da relação de precedência entre Estado e Direito21,
mas a matéria é de labirinto, o que talvez acabe por ofuscar o que foi dito.

Não foi KELSEN quem configurou o modelo moderno, nem a sua


proposição é única22, mas ela é reveladora de uma noção que ou reúne ambos, ou
adjetiva o Estado com o Direito.

JEAN-JACQUES ROUSSEAU23 apresenta algo bastante próximo, ao


dizer que:

19
Hans Kelsen, Teoria Pura, cit., p. 302 e pp. 334 e ss.
20
Hans Kelsen, Teoria Pura, cit., p. 306, grifamos e destacamos.
21
Nos Hauptproblem der Staatsrechtslehre, KELSEN discutiu a questão da precedência confrontando os enfoques
derivados da causalidade e da imputação, para concluir pela concomitância, em face da unicidade, que posteriormente
ganhou o aporte filosófico a partir da construção de HERMANN COHEN (Ethik des reinen Willens) para quem havia um
nexo entre o objeto do conhecimento e a direção do conhecimento (Sobre o assunto: LOSANO, Mario. Teoría Pura del
Derecho, Evolución y Puntos Cruciales, Bogotá, Temis, trad. de Jorge Guerrero R., 1992, pp. 20 e ss). A questão é ainda
examinada, talvez a fórmula que mais expresse uma remanescente preocupação com a matéria seja a autopoiética, ao
expressar a auto-referência como uma resposta para o ‘dilema’: “(...) o direito positivo é um direito auto-produzido, não
apenas no sentido de que é produto do homem, mas sobretudo no sentido de que é produto do próprio direito”. A tese
autopoiética expressa por GUNTER TEUBNER vai ser repetida na sua obra em várias passagens (O Direito como
Sistema Autopoiético, Coimbra, Calouste Gulbenkinan, trad. do original intitulado Recht als Autopoietisches System
(1989) por José Engrácia Antunes, 1993, p. 3, grifamos).
22
A noção de sociedade politicamente organizada pode ser observada em Maquiavel (O Principe, São Paulo, RT, 1996,
pp. 21 e ss.), como também ser observada já em noções gregas e romanas. Mas os elementos e a forma de manifestação
do Estado são uma construção da modernidade, do momento em que surgiram os Estados na configuração pós-feudal.
Ver: DEL VECHIO, Giorgio. Teoria do Estado, trad. por António Pinto de Carvalho, São Paulo, Saraiva, 1957, pp. 22 e
ss.

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“Se, pois, retirarmos do pacto social o que não é de sua


essência, veremos que ele se reduz aos seguintes termos: Cada
um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob
a suprema direção da vontade geral; e recebemos,
coletivamente, cada membro como parte indivisível do todo.
Imediatamente, em vez da pessoa particular de cada
contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e
imagem: www.cola.wright.edu coletivo composto de tantos membros quantos são os votos da
assembléia, o qual recebe, por esse mesmo ato, sua unidade,
seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública,
assim formada pela união de todas as demais, tomava outrora
o nome de Cidade, e hoje o de República ou de corpo político,
o qual é chamado por seus membros de Estado quando
passivo, soberano quando ativo, e Potência quando
comparado aos seus semelhantes. Quanto aos associados eles
recebem coletivamente o nome de povo e se chamam, em
particular, cidadãos, enquanto participantes da autoridade
soberana, e súditos, enquanto submetidos às leis do Estado”.

Assim, já em ROUSSEAU, do contrato nasce o Estado e o Direito, que


vão se expressar em bases populacionais, territoriais e temporais, assumindo a
forma de poder.

Justifica-se, pois, o pleonasmo do Estado com status de Direito, pois


este é a expressão da sua capacidade para o exercício da soberania.

Neste plano, podemos observar uma realidade, se é inviável


estabelecer uma relação de precedência ou mesmo a pertinência
kelseniana, é fundamental observar que o Direito revela o Estado,
exterioriza um modo de produção social, fundando as dimensões e os
limites do exercício do poder, aqui considerado não apenas como espaço
de revelação do poder estatal, mas também como expressão do poder
cidadão, enquanto formador do Direito.

23
ROUSSEAU, Jean-Jacques (1712-1778). O contrato social, trad. do original intitulado Du Contrat Social por Antonio
de Pádua Danesi, São Paulo, Martins Fontes, 1989, pp. 20-21.

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Ora, a realidade de um poder estatal convivendo com um poder


cidadão, enquanto elemento formador do Direito e por ele limitado é demonstrada
pelo espaço de formação social do Direito. Se fosse um mero instrumento do
Estado, o Direito seria expresso tão somente por normas advindas do aparato
estatal (a lei ou a jurisprudência, em especial), porém há espaços de formação do
Direito pelos costumes e mesmo pelos negócios jurídicos, realidades que derivam
do convívio social e da liberdade (autonomia da vontade).

Por outro lado, há influência da sociedade na formação da lei e da


jurisprudência, mas sobretudo na aferição do grau de legitimidade de um sistema
jurídico.

4) Direito: uma palavra no tempo e no espaço – Para que possamos


examinar alguns fenômenos jurídicos, é essencial observar a variedade de
significados que uma única palavra pode assumir, embora boa parte desses
sentidos seja razoavelmente definida na linguagem coloquial, com uma
compreensão natural para todas as pessoas que vivem na sociedade. No entanto,
é importante definir alguns termos como forma de evitar ruídos no diálogo que
podem ganhar proporções inimagináveis, como o caso relatado por um amigo
advogado, que, se dirigindo a uma senhora humilde, pediu que ela pagasse
espontaneamente uma dívida, sob pena de execução, ouvindo a desperada
resposta: “Mas o senhor vai me executar só por uma dívida?!?!”

Portanto, sempre é bom definir a utilização técnica de determinados


termos para evitarmos que uma execução judicial seja confundida com a execução
sumária de uma pessoa (homicídio).

Correntemente, vemos uma primeira categoria (1), representada por


situações em que um cego diz ter direito a entrar num ônibus com seu cão-guia,

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um senhor mais velho exige o seu direito de ter desconto em espetáculos


esportivos ou artísticos, um filho diz ter direito à herança de seu falecido pai etc.
Nestas situações, estamos nos referindo a um direito que um sujeito tem quando
os fatos regulados por uma norma jurídica ocorrem na vida de relação.

Não seria também incomum uma outra acepção (2): imaginemos


que, ao recebermos um estrangeiro e apresentarmos nossos pai e mãe, ouvimos
um questionamento sobre as outras mulheres do nosso pai. “Como assim? Outras
mulheres!?!? No nosso país as pessoas se casam em regime monogâmico”,
diríamos24. A resposta do estrangeiro poderia ser a seguinte: “No nosso direito, os
homens podem se casar, simultaneamente, com mais de uma mulher”. Esta
situação poderia ser vislumbrada em diversas situações, como um americano
dizendo “no nosso direito as pessoas podem dirigir aos 16 anos”25

Qual a diferença entre as duas situações? Em que termos aquela


expressão ‘eu tenho direito’ (1) se difere da referência ao ‘nosso direito’ (2)?

Antes de responder, vamos fazer novas perguntas: Você está em


Coimbra e resolve participar de uma palestra na Faculdade de Direito. Chegando
na Universidade, pergunta onde será a palestra de direito constitucional (3) do
Professor José Joaquim Gomes CANOTILHO26. O ‘direito constitucional’, o ‘direito

24
A realidade contemporânea, em que os relacionamentos matrimoniais não duram a vida inteira, sujeitos à separação e
ao divórcio, há posições que apontam para uma poligamia seqüencial, mas tal reflexão não é relevante para a presente
representação.
25
Com a observação de que, no sistema federativo norte-americano, esse “nosso direito” pode variar de um Estado para
outro, de modo que um indivíduo do Oklahoma poderia ouvir de um californiano a resposta, “no nosso direito é
permitido o casamento entre pessoas do mesmo sexo”.
26
Dentre as suas obras podemos destacar a seguinte: Direito Constitucional, Coimbra, Almedina. O Professor
CANOTILHO é um dos expoentes do direito constitucional e sua biografia é assim apresentada na página da Faculdade
de Direito: “Foi regente de várias disciplinas da Secção de Jurídico-Políticas tendo neste momento a seu cargo Direito
Constitucional nas Licenciaturas em Direito e Administração Pública. Foi defensor oficioso junto de tribunais militares
durante três anos. Foi Vice-Reitor da Universidade de Coimbra e Vice-Presidente do Conselho Directivo da Faculdade de
Direito. Fez a sua preparação para o doutoramento em Freiburg e Heidelberg, na então República Federal da Alemanha.
Exerceu funções de Conselheiro de Estado e é autor de um vasto número de obras entre as quais se destacam
Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Constituição da
República Portuguesa Anotada, Protecção do Ambiente e Direito da Propriedade (Critica de Jurisprudência Ambiental),

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administrativo’, o ‘direito civil’, etc... se enquadrariam nas duas acepções acima


mencionadas?

Agora vejamos mais um sentido: estamos passeando pela Faculdade


de Direito ‘La Sapienza’, em Roma, quando ouvimos de Francesca, uma linda e
orgulhosa jurista italiana, a seguinte sentença: “O Direito (4) surgiu com Gaius!”
Perdendo duplamente o fôlego, perguntamos: “como?”.

Para diminuir nossa perplexidade, ativamos nosso disco rígido e


recebemos o seguinte resumo:

GAIUS – GAIO (130-180)

GAIUS - GAIO (130-180) – Jurista romano, cuja história pessoal é pouco


conhecida, pairando dúvidas inclusive com relação ao seu nome, Gaius pode
ter se chamado Caius, expressando um apelido comum em Roma, acredita-se
que foi nascido entre 110 e 180, começando a publicar seus trabalhos em
130, sob os Imperadores Adriano, Antoninus Pius, Marcus Aurelius e
Comodus, num período de prosperidade do Império Romano.
Gaius é conhecido como o autor das Institutas, que contemplam uma
completa exposição dos elementos do Direito Romano. As Institutas são
fonte: University of Pensilvania Law School
divididas em quatro livros: 1º.) pessoas; 2º.) coisas; 3º.) sucessões e
obrigações; e, 4º.) ações e procedimentos. O trabalho de Gaius influenciou
de forma substancial o Digesto de Justiniano, adquirindo posição de destaque
na sistematização do Direito Romano. Com relação às Institutas, livro do
Digesto voltado ao aprendizado do Direito Romano, a similitude e
reprodução das Institutas de Gaius é ainda mais expressiva e por vezes se
apresenta ipsis literis. Além das Institutas, também são de autoria de Gaius
os seguintes tratados: Editos dos Magistrados, Comentários sobre as Doze
Tábuas, Lex Papia Poppea, dentre outros trabalhos. O reconhecimento de
Gaius somente se deu após a sua morte, momento a partir do qual ele foi
colocado juntamente com Papiniano, Ulpiano, Modestino e Paulo, entre os
cinco juristas cuja opinião deveria ser seguida pelos magistrados na solução
dos casos jurídicos, galgando, assim, a condição de fonte essencial para o
desenvolvimento do Direito Romano.

“Ah, sim Francesca, eu respeito a sua posição, mas há várias outras


posições consideráveis sobre o surgimento do Direito (4)”.

Direitos Humanos, Estrangeiros, Comunidades Emigrantes e Minorias, Peter Häberle: Ein "Príncipe" auf dam Gebiet dês

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Nesta última acepção, certamente estamos falando de Direito com


um significado muito diferente das três anteriores. Então, quais são as diferenças?

Bem, a principal distinção é que, nesta última acepção (4), o Direito


é um fenômeno cultural da humanidade, assim como uma expressão da noção de
justiça. É, pois, um conjunto de ordens normativas que regulam e regularam a
sociedade no tempo e no espaço, sujeitas à avaliação de sua adequação aos
ideais sociais. É comum ser utilizada a letra maiúscula27 para designar o Direito
neste último sentido28.

Por outro lado, quando nos referimos à dicotomia entre a “eu tenho
direito” (1) e “o nosso direito” (2), estamos nos referindo às noções de direito de
um sujeito (direito subjetivo) e à variedade de direitos como objeto ou expressão
do ordenamento jurídico de uma determinada sociedade (direito objetivo).

Já a referência a direito constitucional, direito administrativo, direito


civil, direito penal etc. (3) nada mais é do que uma remissão às subdivisões do
Direito, enquanto objeto de estudo e de normatização.

Porém, temos muitas outras questões para responder, então vamos


observar outros termos essenciais à ciência jurídica.

Dois amigos, torcedores de times rivais, vão a um jogo de futebol,


ficam em torcidas diferentes e, com a emoção dos seus companheiros, torcem e
vêem espetáculos aparentemente distintos. Depois, ao se encontrarem, um deles

Verfassungsrechts.” (https://woc.uc.pt/fduc/person/ppgeral.do?idpessoa=112).
27
Bartolomé Clavero, Introducción histórica del derecho, v. I, cit., p. 10-11.
28
Devemos ter em mente, contudo, que o Dicionário Aurélio não faz tal distinção, não sendo, portanto, um erro a grafia
com letra minúscula.

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diz: “O resultado, depois de não ser marcado aquele pênalti, foi uma injustiça!”
Sorrindo, o outro responde: “Ao contrário; foi feita justiça (1) ao time que jogou
melhor”.

Quando Antígona questiona o Édito de Creonte (v. supra), sob a


alegação de que aquela norma não atendia aos ditames de Zeus e à justiça (2),
um outro sentido é observado. Nesta terceira acepção, encontramos um juízo de
valor (justiça) do funcionamento da Justiça, que, nos nossos tempos, poderia ser
assim representada: “A pena de morte é praticada por países que não têm
respeito pelos direitos humanos, pois é incompatível com a justiça”. Ou, ainda: “A
condenação daquele réu não fez justiça no caso concreto”.

Um grupo de 16 estudantes da Faculdade de Direito aluga uma casa


na Praia de Garopaba para passar o carnaval. Após terem pago o valor pedido,
chegam lá e a casa está ocupada, é quando Marilú, uma das integrantes da
expedição afirma: “Vamos entrar na justiça(3)!”

Sem querer esgotar eventuais hipóteses, poderíamos conjeturar a


seguinte situação: Ivan Ilitch29 vem ao Brasil e, perguntado sobre onde trabalha,
responde: “Na Justiça (4)”. A resposta, dependendo da pessoa, poderia ser: na
Justiça do Trabalho, na Justiça Federal, na Justiça Comum, na Justiça Eleitoral etc.

Nas duas primeiras situações (1 e 2), a palavra justiça representa um


valor que pode ou não ter relevância jurídica (função material), pois a própria
natureza, enquanto fenômeno natural, não está sujeita aos ditames da justiça. O
meteoro, a doença, o tsunami, o furacão, o vulcão e tantas outras tragédias, não

29
Personagem de Leon Tolstói (1828-1910), v.: A morte de Ivan Ilitch, trad. por Vera Karam, Porto Alegre, LP&M,
1997.

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escolhem por deméritos as suas vítimas. Ainda que muitos acreditem que “está
escrito”, a própria “escritura” não é resultado de um juízo de mérito.

Na terceira acepção, Marilú (3) faz referência a um órgão e a uma


atribuição por ele exercida (fator orgânico e funcional). O órgão é o Judiciário, que
representa a função judicial do Estado30, a atribuição é a de aplicar o Direito,
consubstanciada na jurisdição (jurisdictio). É claro que, neste caso, com a
turbulência a que foram submetidos os nossos alegres foliões, uma injustiça
material (1, 2) de grandes proporções abalou o carnaval do grupo.

E o nosso amigo Ivan Ilitch, atormentado com a idéia de que uma


carreira jurídica de sucesso ‘não era a sua vida’, sem no entanto ouvir o clamor
íntimo e mudar os seus rumos, qualquer injustiça em sentido material só à sua
fraqueza pode ser imputável, mas a resposta hipotética que deu ao nosso
compatriota faz referência à Justiça como órgão que expressa a função judicial
(fator referencial).

Poderíamos buscar vários termos jurídicos tormentosos, mas, no


momento, vamos nos concentrar em palavras essenciais, confrontando o seu
significado em português e aquele obervado em outras línguas, a partir do
seguinte quadro:

Português - Port Espanhol - Esp Francês - Fr Italiano It Inglês – Ing Alemão – Al


direito derecho droit diritto right Jura ou Recht
(straight)
lei ley loi legge law Gesetz
justiça justicia justice giustizia justice Gerechtigkeit

30
As funções do Estado seriam, na forma predominantemente admitida, as funções administrativa, legislativa e judicial,
representando, respectivamente, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

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Aparentemente há só uma diferença quando traduzimos de forma


simples os termos jurídicos, mas, então, qual seria o motivo de a nossa Faculdade
de Direito (‘Facultad de Derecho’, ‘Faculté de Droit’) ser chamada de ‘Law School’
para os anglo-saxões e de ‘Juristische Fakultät’ pelos germânicos? Devemos
observar que o termo ‘Juristische’ corresponde à palavra jurídico (port, esp)
‘juridique’ (fr), giuridico (it). Já na língua inglesa, a tradução seria ‘legal’’, que uma
vez vertido para as línguas latinas viriaria legal (port, esp, fr) ou ‘legale’ (it), que
na língua alemã (gesetzlicht, rechtmäβig), em ambas traduções possíveis, tem o
mesmo sentido que é por nós adotado: conforme a lei. Assim, seria no mínimo
esquisito traduzir ‘legal studies’ para ‘estudos legais’ na nossa língua, embora um
de seus significados contemplasse a questão. É inquestionável que a palavra
‘legal’ (ing) requereria uma tradução mais adequada: estudos jurídicos.

As dificuldades aumentariam se nós adotássemos uma tradução


literal com relação a certos termos, como lei, pois ‘law’ equivale a Direito ao passo
que as normas jurídicas que se aproximam das nossas leis são os ‘acts’ e os
‘statutes’.

É conveniente, portanto, determinar os significados que os termos


ligados ao Direito assumiram no tempo e no espaço, buscando na origem latina a
palavra directum, relativa ao verbo dirigere (dirigir, ordenar, endireitar), que
assumiu o sentido de retidão, com uma acepção moral de manutenção de uma
conduta justa ou eqüânime31. Mas fica clara a acepção moral da palavra directum,
fazendo com que a representação de Direito se apresente mais adequada através
da palavra Ivs (Jus)32.

31
PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário Jurídico, v. I, Rio de Janeiro, Forense, 1987, p. 75.
32
No alfabeto latino clássico, além das letras W, Y e Z, não existiam as letras J e U, daí a primeira ser substituída pelo I e
a segunda ter a grafia do V. Portanto, na língua da inscrição INRI (IESVS NAZARENVS REX IVDAEORVM) as
palavras de Júlio César teriam sido: “ALEA IACTA EST” (a sorte está lançada).

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É justamente como uma representação de Direito que as flores do


Lácio incorporaram jus como radical de várias expressões, dentre as quais,
(in)justiça (justitia), (in)justo (justus), jurídico, jurista, judiciário (judiciarius),
judicial (judicium) juiz, jurisprudência (jurisprudentia), jurisdição (jurisdictio), júri
e julgamento (judicium). No entanto, a expressão latina, observada nas línguas
portuguesa, espanhola, italiana e francesa, é também verificada pela incorporação
da raiz latina pelas línguas alemã (Justiz, Jura, Jurist[in], Jury, Justizirrtum33) e
inglesa (Justice, just, juridical, judicial, judge, jurisprudence, jurisdiction,
judgement34).

5) Direito objetivo e direito subjetivo – De acordo com RUDOLF VON


JHERING:

“A palavra direito, como se sabe, emprega-se num duplo sentido: no


sentido objetivo, e no sentido subjetivo.
O direito no sentido objetivo é o conjunto de princípios jurídicos
aplicados pelo Estado à ordem legal da vida.
O direito, no sentido subjetivo, é a transfusão da regra abastrata no
direito concreto da pessoa interessada”35.

Na mesma linha encontramos a posição de LEÓN DUGUIT36:

33
Respectivamente: justiça, Direito, jurista e erro de justiça (ou judicial).
34
Adotadas entre os séculos XIII e XIV, várias palavras com orígem latina estão relacionadas ao Direito, como na lista
acima, significando, respectivamente: justiça (mas também determinados agentes da Justiça, como os Juízes da Suprema
Corte, v.: http://www.supremecourtus.gov), justo, jurídico, judicial, juiz, jurisprudência, jurisdição, julgamento.
35
VON JHERING, Rudolf. A luta pelo direito. Rio de Janeiro: Forense, trad. João de Vasconselos, 5ª ed. bras., 1986.
36
Nascido na França, em Libourne, LEÓN DUGUIT foi Catedrático das Universidades Caen e de Bourdeaux,
destacando-se como um inovador no plano do direito público. Sua obra principal, Traité du Droit Constitucionnel, de 5
volumes, foi publicada em 1911, sendo concebida como uma obra clássica do direito francês. A obra citada é a seguinte:
DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. São Paulo: Ícone, trad. de Márcio Pugliesi, 1996.

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“A palavra ‘direito’, na sua larga acepção, presta-se a designar duas


concepções que, embora se interpenetrando intimamente, consituem campos
diferentes: ‘o direito objetivo’ e o ‘direito subjetivo’
O ‘direito objetivo’ ou a ‘regra de direito’ designa os valores éticos que se
exige dos indivíduos que vivem em sociedade. O respeito a essa ética, em
determinado momento, implica, no âmbito social, a garantia de preservação
do interesse comum, e, em contrapartida, sua violação acaba desencadeando
uma respectiva reação da sociedade visando, de alguma forma, o responsável
por tal violação.
O ‘direito subjetivo’, por sua vez, constitui um poder do indivíduo que
integra a sociedade. Esse poder capacita o indivíduo a obter o
reconhecimento social na esfera do objeto pretendido, desde que seu ato de
vontade possa ser considerado legítimo pelo direito objetivo”.

fonte: ww.u-bordeaux4.fr

Portanto, dois doutrinadores clássicos nos apontam duas categorias:

a) direito objetivo: enquanto conjunto de princípios jurídicos


aplicáveis à vida ou como regra de direito;
b) direito subjetivo: como expressão da aplicação das regras
jurídicas, atribuindo um poder concreto ao sujeito de direito.

Agora fica claro que a menção ao “nosso direito” permite tal ou qual
ato ou negócio na vida entre as pessoas (e.g., casamento poligâmico ou
autorização para dirigir aos 16 anos), representando, inequivocamente, o direito
na sua acepção objetiva.

Por via de conseqüência, quando alguém se refere ao “meu direito”


(e.g., descontos em eventos esportivos e culturais para idosos, diminuição do
valor do bilhete de cinema para estudantes etc.), o que se está tratando é de um
direito do sujeito, justamente do sujeito de direito, logo, de um direito subjetivo.

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Mas alguns esclarecimentos são necessários, pois uma questão


importante é saber que o direito vale em um tempo e espaço determinados, ou
seja, como um Estado pressupõe uma ordem jurídica que expresse a sua
soberania, o âmbito de abrangência das suas regras jurídicas é o espaço
geográfico onde expressa o seu poder, vigência esta que está submetida a um
momento de inserção ou de exclusão do ordenamento jurídico, marcando o
aspecto temporal.

Brincando com as fronteiras da Espanha e da França, determinadas


pelos Pirineus, nas palavras de ENGISH, um bem humorado PASCAL assim teria se
manifestado:

“Quase nada há de justo ou injusto que não mude de natureza com a


mudança de clima. Três graus de altura polar revolucionam toda a
jurisprudência. Um meridiano decide sobre a verdade. Após alguns anos
de posse, alteram-se leis fundamentais. O Direito tem as suas épocas.
Divertida justiça esta que um rio ou uma montanha baliza. Verdade
aquém, erro além Pirinéus’(...)”37.

Assim, ao elemento espacial costumamos agregar a procedência,


mencionando o direito brasileiro, o direito francês, o direito inglês e tantos outros
direitos, objetivos e positivos.

Positivos no sentido apresentado por MARIO LOSANO:

“O que entendo, numa primeira aproximação, por Direitos positivos?


Toda comunidade tem um órgão individual ou colegiado ao qual
reconhece a função de estabelecer normas jurídicas. Nos Estados
modernos, por exemplo, o poder legislativo está atribuído aos
parlamentos. Serão, pois, objeto de estudo as normas jurídicas
estabelecidas (posita diziam os romanos) por estes órgãos, quer dizer, o

37
ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 3ª ed., trad. do original
alemão intitulado Einführung in das Juristische Denken (1964) e prefácio de J. Baptista Machado, 1977.

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Direito tal e qual é hoje, ou como foi no passado, e não como deveria ou
haveria de ter sido (...)”38.

No entanto, devemos cuidar de não atomizar a noção de direito


objetivo, igualando-o à norma singularmente considerada, mas ao todo por ele
representado e é neste momento que a posição de NORBERTO BOBBIO39 serve
para facilitar a nossa compreensão40:

“(...) o Direito não é norma, mas um


conjunto coordenado de normas, sendo
evidente que uma norma jurídica não se
encontra jamais só, mas está ligada a
outras normas com as quais forma um
fonte: www.dirittoestoria.it sistema normativo”.

Então, no plano objetivo, Direito identifica-se com ordenamento


jurídico ou sistema jurídico, mas poderíamos também mencionar outro sentido
válido, que congrega todos esses elementos, pois Direito é uma expressão de
justiça, de uma ordem reguladora das relações humanas com base nos postulados
da justiça41.

38
LOSANO, Mario G.. Los grandes sistemas juridicos. Madrid: Debate, 1ª reimpr., trad. do original intitulado I Grandi
Sistemi Giuridici por Alfonso Ruiz Miguel, 1993, p. 33.
39
Nascido no Piemonte, NORBERTO BOBBIO (1909-2004) centrou suas atividades no estudo da filosofia política e
jurídica, exercendo suas atividades, na área da filosofia do direito, nas Universidades de Camerino (1935-1938), Siena
(1938-1940) e Padova (1940-1948), militou em grupos anti-fascistas vindo, após a guerra, a lecionar em Torino (1972-
1979), vivenciou a resistência ao fascismo, foi membro do partido socialista e pensador de destaque na Itália e no
exterior, quando se torna Professor Emérito daquela Faculdade, mas nunca deixa de aliar às atividades de professor e
filósofo, a sua atividade política, sendo nomeado (1984) Senador vitalício da Itália. A influência do pensamento de
BOBBIO pode ser aquilatada pelo número de suas obras traduzidas para o português, com destaque para: Teoria da
Norma Jurídica, 2005; Dicionário de Política, 2004; A Era dos Direitos, 2004; Estado, Governo, Sociedade, 2004; O
Problema da Guerra e as Vias da Paz, 2003; Locke e o Direito Natural, 2003; Teoria do Ordenamento Jurídico, 2003, O
Filósofo e a Política, 2003; Ensaios Sobre Gramsci e o Conceito de Sociedade Civil, 1999; O Positivismo Jurídico, 1995;
As Ideologias e o Poder em Crise, 1995.
40
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Ed. UnB, trad. do original italiano intitulado Teoria
Dell’Ordinamento Giuridico (1982), por Cláudio de Cicco e Maria Celeste C.J. Santos, p. 21.
41
No mesmo sentido:Bartolomé Clavero, Instituicion historica del derecho, v. I, Madrid, Marcial Pons, 1992.

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Ora, neste último sentido, o Direito, enquanto conjunto sujeito a


valores, é atemporal, não se restringindo tão-pouco a limites geográficos; é um
valor maior, um valor da humanidade.

Mas, quando o Direito é concebido como uma expressão da justiça,


se for injusto, será nulo por falta de legitimidade. Como na advertência de
ANTÍGONA a CREONTE, aquelas leis não eram legítimas, pois não eram justas,
dilema com que defrontaram-se importantes figuras da nossa história, como
HENRY DAVID THOREAU, iniciando as discussões sobre desobediência civil e a
resistência pacífica, ao exclamar42:

“Leis injustas existem: devemos contentar-nos em obedecer a elas ou esforçar-nos


em corrigi-las, obedecer-lhes até triunfarmos ou transgredi-las desde logo?
Num governo como este, os homens geralmente pensam que devem esperar até que a
maioria seja persuadida a alterá-las.
Pensam que, se resistissem ao governo, o remédio seria pior que o mal. Mas é culpa
do próprio governo que o remédio seja efetivamente, pior que o mal. É ele que o
torna pior. Por que ele não está mais apto a antecipar e proporcionar a reforma?
Por que não trata com carinho sua sábia minoria? Por que suplica e resiste antes
de ser ferido? Por que não encoraja seus cidadãos a prontamente apontarem seus
defeitos e a agirem melhor do que ele lhes pede? Por que sempre crucifica Cristo,
fonte:
excomunga Copérnico e Lutero e declara Washington e Franklin rebeldes?
http://www.americaslibrary.gov Pode-se pensar que a deliberada e eficaz negação de sua autoridade tenha sido a
única ofensa jamais levada em conta pelo governo”.

Se a questão de fundo relativa à insurgência de THOREAU era


indireta (o uso que dariam aos impostos o faziam justificar o não pagamento), a

42
Henry David Thoreau (1817-1862), pilar do pensamento anarquista, motivando líderes pacifistas à não-ação (ou
sujeição pacífica) como foi o caso de Gandhi e Martin Luther King, desenvolveu seu ensaio sobre a Desobediência Civil
em função de questionamentos acerca de sua prisão por não pagar impostos, dizia ele que o Estado só se manifestava uma
vez por ano, para cobrar-lhe os impostos, logo a ele pediam que financiasse duas coisas que julgava abomináveis: a) a
Guerra dos EUA com o México, por ser contra as guerras e sobretudo contrário à anexação violenta de territórios
mexicanos; e, b) a escravidão, que ele questionava com veemência (A Desobediência Civil, Porto Alegre, L&PM, 1997,
p. 23-24).

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experiência histórica nos apresenta uma situação bem mais definida, na posição
de GUSTAV RADBRUCH43 com relação ao direito nazista.

As suas palavras44 são reveladoras desse conflito potencial entre a lei


injusta, ainda que formalmente válida, e os preceitos legitimadores, ligados à
justiça, essenciais à determinação da validade substancial de um ordenamento
jurídico:

“Num enfrentamento entre a segurança jurídica e a


justiça, surgido entre uma lei impugnável por seu
conteúdo, mas de caráter positivo, e um direito
justo, mas não cunhado em forma de lei, há um
conflito da justiça consigo mesma, isto é, entre
justiça aparente e justiça real. Este conflito é
refletido soberbamente pelo Evangélio quando, em
uma parte, ordena: ‘Obedece à autoridade que tem
fonte: www.dvu.de poder sobre vós’, e, contudo, noutro lugar
determina: ‘Obedece mais a Deus do que aos
homens’.”

Quando GUSTAV RADBRUCH menciona a necessidade de segurança


jurídica ele está apontando, numa linha distinta de THOUREAU, que a preservação
das leis propicia a concretização do princípio da segurança jurídica, atribuindo
conhecimento, pelos cidadãos, com relação às normas válidas e vigentes. Daí o
caráter extremo da quebra de validade das leis, ainda que formalmente válidas,
sujeitas a um exame da intolerabilidade das regras estabelecidas quando

43
Nascido em Lübeck, GUSTAV RADBRUCH (1878 – 1949), tendo lecionado nas Universidades de Königsberg, Kiel e
Heidelberg, o jurista e filósofo do direito também teve um papel importante na política, como Ministro da Justiça do
governo de Weimar (1921 – 1923). Mesmo sendo inicialmente identificado com o positivismo e com o relativismo
jurídico, com o advento do nazismo ele ultrapassa tais fronteiras, aproximando-se do direito natural, como fonte de
elementos inatos ao Direito e à justiça. É relacionada ao seu questionamento, relativo ao direito e à justiça, a ‘Fórmula de
Radbruch’, na qual questiona a legitimidade de um ordenamento jurídico quando a sua divergência com os preceitos de
justiça atinja um nível intolerável, neste sentido questiona o direito nazista e inaugura uma noção incorporada à noção de
Estado de Direito, consubstanciada no direito de resistência dos cidadão frente a uma ordem injusta e portanto nula, um
direito mas também um dever, pois mesmo o respeito às leis de um ordenamento injusto é vedado aos que exercem o
poder.

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confrontadas com os valores inerentes à justiça. Neste sentido, ele supera um


dilema, consubstanciado na subjetividade da noção de justiça, onde cada um
poderia ter o seu.

Ironicamente, poderíamos pensar, levando ao extremo a


subjetividade da noção de justiça, que: justo para o ladrão ou para o corrupto é
roubar ou locupletar-se, enquanto a justiça dos cidadãos, é justamente não serem
roubados ou vítimas de crimes do colarinho branco, chagas que tanto penalizam o
nosso povo. É claro que o exemplo é extremo, pois a justiça está sujeita aos
parâmetros moral e legal, que afastam o hiperbólico conflito paradoxal, mas,
muitas vezes, os valores confrontados contém nuanças sutis e a segurança
jurídica examinada em confronto com a justiça tem uma outra via de exame, o
controle de constitucionalidade e os direitos humanos.

Se a Constituição preserva os valores essenciais de um Estado de


Direito, indiscutível que ela conserva o senso objetivado de justiça de um povo em
tempo e espaço determinados. Assim, a maioria dos conflitos relativos à lei injusta
se resolvem dentro do sistema, com a retirada da lei inconstitucional do seu
âmbito de validade.

Portanto, a fórmula de resistência é uma prerrogativa não de


agressão, mas de preservação do Direito, especialmente através da defesa da lei
fundamental, que é a Constituição, contra as forças que contra ela podem se
aventurar, o nível intolerável é aquele que confronta as leis estabelecidas com o
Estado de Direito e com os direitos fundamentais.

A rigor, na análise da norma jurídica, três aspectos devem ser


verificados:

44
Süddeutsche Juristenzeitung, 1, 1946, p. 105-108.

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a) A norma é justa ou injusta (?) – como parâmetro de aferição


da adequação da norma de acordo com um juízo de valor (norma
real X norma ideal);
b) A norma é válida ou inválida (?) – consistente na observação
da compatibilidade da norma real com o ordenamento jurídico
vigente, observando se ela é emanada do órgão competente45 e se o
seu conteúdo é compatível com as normas hierarquicamente
superiores46;
c) A norma é eficaz ou ineficaz (?) – muitas vezes o direito válido
não é aplicado, de forma que a sociedade afasta a eficácia da
norma47.

Analisamos, até o momento, as expressões do direito em sua


acepção objetiva, logo, uma outra análise importante é a verificação de que
determinados direitos subjetivos angariaram valores expressivos da própria
humanidade, válidos universalmente e normalmente inseridos nas constituições,
tratam-se dos direitos fundamentais ou direitos do homem, muito bem expostos
nas palavras de NORBERTO BOBBIO:

“Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários


do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e
protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as
condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras
palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se
tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos
fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como

45
Exemplos: um Decreto do Presidente não pode criar um imposto, pois é matéria reservada à lei (v.: art. 150, I, CF), ou
uma Lei municipal que estabelece que beijar nas praças públicas é crime, punido com detenção, pois a matéria penal é de
competência legislativa da União (v.: art. 22, I, CF).
46
Uma lei federal que estabelece a pena de morte (v.: art. 5º, XLVII, a, CF).
47
Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, História do direito português, cit., p. 18-19.

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alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste


ou daquele Estado, mas do mundo”48.

Portanto, o desenvolvimento dos direitos fundamentais é também


um parâmetro para o desenvolvimento do Direito e a sua intrínseca relação com a
justiça.

6) Direito e história - A história e o Direito se aproximam de diversas formas,


devendo-se observar os aspectos em que se apresentam relacionados, enquanto
mecanismos de compreensão recíproca, através de busca do conhecimento
jurídico a partir da experiência histórica, noção que, sob perspectiva inversa,
também se revela importante na medida em que instrumentos jurídicos são
fundamentais para o conhecimento histórico49. Mas, sob uma segunda
perspectiva, a história não é apenas um mecanismo de compreensão jurídica, é
também uma forma de conhecimento da experiência jurídica no tempo, aqui
excluída uma concepção evolucionista50 da sociedade e quaisquer especulações de
filosofia da história51.

Assim, o conhecimento do Direito através das técnicas históricas se


apresenta sob duas perspectivas distintas:

48
Norberto Bobbio. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, trad. do original intitulado L’età dei Diritti por Carlos
Nelson Coutinho, 1992, p. 1.
49
É natural que, ao longo dos tempos, a afirmação de leis escritas, impostas pelo poder político, instituído numa
determinada sociedade, seja um dos elementos principais para a verificação dos costumes de tais povos, sobretudo porque
o Direito é vida, expressão da regulação da vida em sociedade.
50
“Partamos de um modelo histórico evolucionista. Ou seja, de um modelo que conceba a história como uma
acumulação progressiva de conhecimento, de sabedoria, de sensibilidade. Nesta perspectiva, também o direito teria tido
a sua fase juvenil de rudeza. Contudo, o progresso da sabedoria humana ou as descobertas de gerações sucessivas de
grandes juristas teriam empurrado o direito, progressivamente, para o estado em que hoje se encontra; estado que,
nessa perspectiva da história, representaria um apogeu. Nesta história progressiva, o elemento legitimador é o contraste
entre o direito histórico, rude e imperfeito, e o direito dos nossos dias, produto de um imenso trabalho agregativo de
aperfeiçoamento, levado a cabo por uma cadeia de juristas memoráveis” (António Manuel Hespanha, Panorama
Histórico..., cit., p. 19). Sobre o assunto, v.: Jean Carbonnier, Flexible droit, pour une sociologie du droi sans rigueur,
Paris, L.G.D.J., 8e. éd., 1995, p. 10 et seq.
51
Sinteticamente, poderíamos dizer que a filosofia da história analisa o estágio de desenvolvimento da sociedade ao
longo dos tempos. Não desconhecemos a concepção de NORBERTO BOBBIO, que identifica na experiência jurídica um
elemento relevante para aferição do desenvolvimento da sociedade, mais precisamente através da afirmação dos direitos

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a) conhecimento do Direito através da experiência histórica;


b) conhecimento e análise dos direitos no tempo e no espaço.

A situação atual de um sistema jurídico deve ser aliada ao exame de


sua experiência histórica, observando-se as influências que marcaram a sua
formação e a sua expressão ao longo dos tempos, caso contrário as soluções
jurídicas seriam apenas superpostas sem que se tivesse uma concepção integrada
da estrutura de um ordenamento por si próprio considerado52.

Mas não é somente no plano dos diversos direitos positivos que a


história, enquanto experiência, demonstra sua relevância, pois o Direito, enquanto
fenômeno cultural, representa uma inequívoca expressão do estágio social vivido
em um determinado momento histórico.

Em uma relação íntima com a noção acima expressa, os direitos dos


distintos países interagem, exercem e recebem influências, consagrando-se ao
longo dos tempos e além das fronteiras.

Quando observamos esta interação dos ordenamentos jurídicos,


representando um Direito enquanto fenômeno universal, podemos compreender a
relevância que o direito comparado (exame das distintas famílias jurídicas) atribui
à análise histórica53.

humanos. Sobre o assunto, ver: BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, trad. do original
intitulado L’età dei Diritti por Carlos Nelson Coutinho, 1992.
52
Clóvis do Couto e Silva, “O direito civil brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro”, in RT 628:07.
53
Michel Fromont, Grands systèmes de droit étrangers, Paris, Dalloz, 2005, p. 2.

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7) Objeto da História do Direito – O conhecimento do direito sob a


perspectiva histórica se dá através de três objetos54 principais:

a) História das fontes (modo de produção do Direito) – o


Direito requer normas, cuja produção deriva de um conjunto de
fontes, como a lei, o costume, a jurisprudência e a doutrina, cuja
hierarquia, em um dado momento histórico, auxilia na
compreensão dos preceitos jurídicos;
b) História das instituições (modo de expressão do Direito)
– sob a perspectiva das instituições, o ponto central é o exame
das normas jurídicas nos diferentes momentos históricos,
examinando como se delineavam as instituições jurídicas nos
textos e qual a realidade prática verificada, na medida em que
nem sempre há uma identidade plena entre a previsão jurídica e
a realidade prática do Direito; e,
c) História do pensamento jurídico (modo de idealização e
transformação do Direito) – é também importante o exame
do pensamento jurídico ao longo dos tempos e como ele se
relaciona com as fontes e as instituições, pois o pensamento
jurídico se afirma como elemento essencial à configuração das
idéias jurídicas que compõem um determinado ordenamento e
de proposição de suas transformações55.

54
Mário Júlio de Almeida Costa, História do Direito Português, Coimbra, Almedina, 3ª ed., 1999, p. 29-31.
55
Para os propósitos da disciplina de História do Direito, sob o programa da UFRGS, o exame da História do
Pensamento Jurídico é objeto de disciplina própria, o que não exclui, na interação dos elementos essenciais ao exame
histórico, que se faça a remissão às idéias jurídicas que acompanham a transformação histórica do Direito.

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8) História das fontes (modo de produção do Direito) - Uma pergunta é


essencial para a história das fontes jurídicas e ela é muito bem representada nas
palavras de NUNO ESPINOSA GOMES DA SILVA, verbis:

“Ora, como surgem as normas jurídicas? Pode dizer-se que,


fundamentalmente, de dois modos. Ou existe uma vontade (individual
ou colectiva) que, num dado momento, impõe sob ameaça de
coactividade, uma certa conduta aos membros do agregado social;
ou,então, existe uma tradição, formada pelo repetir de uma conduta,
repetir esse uniforme e constante que, pelo seu carácter de
essencialidade à vida civil, acaba por criar no grupo social a consciência
da sua obrigatoriedade. No primeiro caso, surgirá o direito legislativo,
originado na fonte de direito, denominada lei; no segundo, criar-se-á
direito consuetudinário, oriundo da fonte de direito chamada
costume”56.

Assim, na lei, o detentor do poder (monarca ou assembléia), com o


objetivo de determinar o futuro, prevê um conjunto de condutas desejáveis e
indesejáveis57, garantindo-as através de sanções58.

Por seu turno, o costume deriva da prática habitual e consagrada por


uma sociedade ao longo dos tempos, repetição que determina uma “convicção de
obrigatoriedade”59.

A lei é um ato jurídico, pois deriva da vontade, ao passo que o


costume é um fato, cuja obrigatoriedade se dá pela tradição60, revelando um

56
Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, História do direito português, fontes do direito, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2ª ed., 1991, p. 16 et. seq.
57
Idem, ibidem.
58
Embora a tradição jurídica seja formada por sanções coercitivas, em que o poder organizado impõe uma penalização
para uma conduta (p. ex.: “Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos”, CP). No entanto, não deve
ser desconsiderada a possibilidade de sanções premiais, ou seja, de benefícios derivados de uma conduta desejada (p. ex.:
desconto no Imposto de Propriedade de Veículos Automotores - IPVA quando o motorista passa um determinado tempo
sem levar multa).
59
Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, História do direito português, fontes do direito, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2ª ed., 1991, p. 17.
60
Idem, ibidem. O autor faz referência a NORBERTO BOBBIO, que considera que o costume “realiza-se mediante um
processo preterintencional” (La consuetudine comme fatto normativo, Padova, 1942, p. 31).

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processo centralizado ou descentralizado na produção do Direito, que poderíamos


assim representar:

Criação da Norma Jurídica

Lei Costume

Sociedade Sociedade

Direito Direito

A despeito de uma aparente maior legitimidade da criação


costumeira do Direito, deve-se ter cuidado na formação de juízos de valor, pois é
sabido que os regimes costumeiros atribuem menos segurança jurídica e muitas
vezes se identificam com experiências jurídicas subdesenvolvidas, prestando-se à
incerteza com relação às regras, não ficando infensa à influência do detentor do
poder, que acaba por se expressar num momento seguinte ao da formação do
preceito legal, justamente na fase de aplicação da norma, com grande
possibilidade de deturpação.

Por outro lado, deve-se também ter presente que a lei está sujeita a
limites na transformação da sociedade, na maior parte das vezes a sua função é
absorver e aproveitar a publicidade inerente à lei (que só vige após instrumentos
de publicização) para incorporar regras que muitas vezes derivam de costumes
enraizados na própria sociedade. Um desafio absoluto da lei em relação à

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experiência social tende à ineficácia da norma em função da resistência das


pessoas em cumprir tais preceitos61.

Portanto, se buscássemos identificar as fontes predominantes na


atualidade, lei e jurisprudência, não poderíamos vislumbrar quadros tão simples
como o esquema utilizado para fins didáticos, pois há um sistema complexo de
interação entre as fontes do Direito, através da complementaridade da lei e da
jurisprudência, bem como de interação entre o Direito e a sociedade.

Assim, uma perspectiva sociológica do Direito, aferível sob o método


histórico, recomenda que examinemos uma via de mão dupla:

a) ‘o direito na sociedade’ – através das influências que as


normas jurídicas exercem sobre a sociedade;
b) ‘a sociedade no direito’ – avaliando as modificações que a
sociedade impõe ao sistema jurídico62.

Este duplo aspecto é fundamental para a compreensão adequada da


complexidade dos sistemas jurídicos derivados da interação entre as fontes.

9) História das instituições (modo de expressão do Direito) – Através das


fontes, um conjunto de relações sociais é absorvido pelo Direito, determinando-se
o grau de essencialidade para a paz social e assim, divididas explicitamente ou

61
Muitas vezes fazemos referência a uma faceta do jeitinho brasileiro, quando mencionamos as leis que não pegam, mas
MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA bem demonstra que este fenômeno é atemporal e universal: “Uma coisa é o
direito que o legislador estatui para os componentes de um agregado social e coisa diversa pode representar o direito
que de facto se adopta. Hoje em dia, as normas contidas nos diplomas legais coincidem fundamentalmente com os
preceitos jurídicos por que os seus destinatários se regem. Contudo, entre os povos antigos, verifica-se, não raro, um
esforço constante dos legisladores para estabelecer a observância de normas jurídicas inovadoras e mais perfeitas, ao
mesmo tempo que existe grande resistência da população, que continua apegada às instituições tradicionais” (História
do direito português, cit., p.30-31.
62
Sobre o assunto, v.: Norberto Bobbio, A era dos direitos, Rio de Janeiro, Campus, 1992, p. 73.

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não63, formam-se conjuntos de normas definindo crimes ou outros delitos64,


regulando a estrutura e os poderes estatais65, moldando as fórmulas com que as
pessoas, nas suas relações interpessoais, devem se portar, com o estabelecimento
de categorias próprias de atos e negócios jurídicos66, dentre tantas outras esferas
do ordenamento jurídico. Pois é nesse conjunto de normas que identificamos as
instituições jurídicas.

Portanto, as instituições jurídicas representam o conjunto de normas


estabelecidas numa determinada sociedade, compreendendo o tratamento das
várias relações existentes.

10) História do pensamento jurídico (modo de idealização e


transformação do Direito) – A história do pensamento jurídico não deixa de
ser o exame de uma fonte específica do Direito, que é a doutrina, com uma
inegável influência na formação das instituições jurídicas, porém, a percepção de
que há uma relevância específica no acompanhamento das idéias jurídicas é
fundamental para que se possa captar as transformações jurídicas com o
acompanhamento do pensamento prevalente em uma determinada época.

63
Sabe-se que a divisão dos ramos do Direito é um fenômeno recente, portanto, os textos legais antigos não fazem
distinções entre normas referentes à organização e ao exercício do poder estatal, às matérias civis ou públicas. Um
exemplo típico é a relação entre a responsabilidade criminal e civil observada no Corpus Iuris Civilis, onde não havia
uma distinção nítida para verificação de um interesse social derivado da lesão (p. ex.: furto – responsabilidade penal) ou
apenas um interesse de particulares (p. ex., uma pessoa que quebra um bem de outra pessoa – responsabilidade civil).
64
Nem todas as condutas vedadas na esfera penal é constituída por crimes, comportando, ao longo dos tempos,
modalidades menos graves (p. ex.: contravenção).
65
Normalmente prevista, em seus aspectos essenciais, pelo direito constitucional, e no seu detalhamento e aplicação
prática, pelo direito administrativo.
66
Aqui regulam-se as possibilidades contratuais (p. ex., compra e venda, locação, etc.); a responsabilidade civil (dever de
indenizar em função de danos); a formação e proteção da propriedade e a definição dos usos que podem ser dados através
de restrições (p. ex., posse, usucapião, poderes e deveres derivados da propriedade, direitos reais limitados de gozo e
fruição – usufruto, servidão, etc. – ou de garantia – alienação fiduciária, hipoteca, etc. -; a formação e dissolução das
sociedades conjugais (p. ex., casamento, união estável, separação, divórcio), os poderes e deveres frente aos filhos,
legítimos e adotivos; a transmissão dos bens em função da morte (sucessão).

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11) Objetivos da História do Direito – A História do Direito tem, portanto, o


objetivo de facilitar a compreensão do Direito na atualidade, a partir da
observação de sua formação e percurso temporal, ao longo dos séculos.

Justamente por ser um instrumento fundamental à compreensão do


Direito, a perpectiva histórica não se limita às fronteiras de um único país,
devendo-se conhecer a experiência jurídica a partir da sua formação, realidade
que sequer estava circunscrita às fronteiras hoje conhecidas, especialmente
quando reconhecemos a substancial influência do direito romano para a formação
dos sistemas jurídicos atuais, levando em consideração a sua disseminação no
ambiente europeu e a conseqüente implantação de tais modelos nos processos
colonizatórios67.

A necessidade de uma perspectiva global do Direito, especialmente


no seu exame histórico, se revela quando percebemos que os direitos dos diversos
países não foram criados por magia, de forma imediata, por uma simples
afirmação; em verdade, os diversos sistemas jurídicos estão sujeitos a um
processo de instituição e afirmação que perpassa os milênios.

O caráter nacional dos sistemas jurídicos na atualidade, baseado


numa noção moderna de soberania, dentre vários outros atributos observados,
não é uma realidade permanente.

Se observarmos a Baixa Idade Média, teremos um direito fracionado


em função do modo de produção social, revelando-se com várias distinções de um
lugar para outro (elemento territorial) e sujeitando-se a influências significativas,

67
John Gilissen, Introdução Histórica ao Direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 13.

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especialmente da “Igreja e do direito letrado, tal como ele se desenvolveu no


ensino universitário, na base do direito romano”, como adverte GILISSEN68.

A rigor, o amálgama dos direitos nacionais se apresenta com uma


acentuada influência da Revolução Francesa (1789), fenômeno que, sob distintas
matizes, propagou-se por inúmeros países, impondo reformas jurídicas e
institucionais em proporções tão significativas que se pode identificar, no período
compreendido entre o final do século XVIII e o início do século XIX, a
consolidação do modelo moderno de Direito que é ainda hoje predominante no
mundo69.

Se, por um lado, não nos atrai substancialmente a concepção


evolucionista, pois ela expressa, ainda que implicitamente, um juízo de valor por
ser um sinônimo de progresso, não há como deixar de observar que os moldes do
mundo atual foram forjados na fôrma da modernidade. Portanto, as
transformações pelas quais os sistemas jurídicos passaram para alcançar o ponto
atual são inequívocas conseqüências do período revolucionário francês e os
encadeamentos sucessivos.

A História do Direito não tem como objetivo tão somente a


observação da construção do ordenamento jurídico atual, em uma análise estrita
do passado do Direito vigente neste ou naquele país, em um ou em outro de seus
ramos, pois a perspectiva histórica não se restringe à análise temporal das
instituições e dos princípios jurídicos atuais, abrangendo todas as transformações
pelas quais passaram a sociedade e o Direito, mesmo com o exame de
experiências superadas ou abolidas70.

68
Idem, ibidem.
69
Idem, ibidem.
70
No mesmo sentido: Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, Coimbra, Almedina, 3ª ed.
(reimpressão), 1999, p. 24.

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12) Função problematizadora da perspectiva histórica do Direito –


Quando afirmamos que a função da História do Direito não é meramente
descritiva, mas construtiva, estamos agregando uma nova perspectiva a sua
função problematizadora.

ANTÓNIO HESPANHA entende que a História do Direito deve


desenvolver um “saber formativo, mas de uma maneira que é diferente daquela
em que o são a maioria das disciplinas dogmáticas que constituem os cursos
jurídicos”. No seu entendimento, as demais disciplinas “visam criar certezas acerca
do direito vigente”, ao passo que a História do Direito tem por função a
problematização do “pressuposto implícito e acrítico das disciplinas dogmáticas, ou
seja, o de que o direito dos nossos dias é o racional, o necessário, o definitivo”.
Ainda de acordo com o autor lusitano:

“A História do Direito realiza esta missão sublinhando que o direito


existe sempre em sociedade e que, seja qual for o modelo usado para
descrever as suas relações com os contextos sociais (simbólicos,
económicos, etc.), as soluções jurídicas são sempre contingentes em
relação ao um dado envolvimento (ou ambiente). São, neste sentido,
sempre locais”71.

E é neste sentido que ANTÓNIO HESPANHA questiona a função


legitimadora que, por vezes, é atribuída à História do Direito e salienta:

“O direito, em si mesmo, é já um sistema de legitimação, i.e., um


sistema que cria um efeito de obediência consentida naqueles cuja
liberdade vai ser limitada pelas normas. Na verdade, o direito faz parte
de um vasto leque de mecanismos voltados a construir o consenso
acerca da disciplina social. Porém, o próprio direito necessita de ser
legitimado, ou seja, necessita de que se construa um consenso social

71
António Manuel Hespanha, Panorama Histórico..., cit., p. 15.

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sobre o fundamento da sua obrigatoriedade, sobre a necessidade de se


lhe obedecer. Como se sabe, desde Max Weber (1864-1920), a
legitimação dos poderes políticos – ou seja, a resposta à pergunta ‘por
que é que o poder legítimo?’ – pode ser obtida a partir de vários
complexos de crenças (‘estruturas de legitimação’), organizadas em
torno de valores como a tradição, o carisma, a racionalização (Weber,
1956) – ou seja, ‘porque está estabelecido há muito’, ‘porque é inspirado
por Deus’, porque é racional ou eficiente’. No âmbito do mundo
jurídico, alguns destes processos de legitimação – nomeadamente a
legitimação ‘tradicional’ – dependem muito de argumentos de caráter
histórico”72.

De tal modo, não recomendável que a técnica histórica seja um


elemento de imobilização do Direito, até porque, enquanto mecanismo de
regulação da vida social, não pode perder a sintonia com a realidade expressa
pela sociedade.

Neste sentido, NUNO ESPINOSA GOMES DA SILVA apresenta a


importância do estudo da história do direito:

“Assim, a História do Direito vai estudar o como e o porquê da evolução


das regras jurídicas de uma determinada sociedade, o que equivale a
dizer que, em primeira linha, se preocupará com a evolução das fontes
de direito. Ora, essa variabilidade da regra jurídica no tempo, possui,
sempre, por detrás de si, qualquer que seja o modo de produção do
Direito, a acção humana. Daí que, também, o historiador, ao estudar o
porquê da regra jurídica, deva ter presente que na origem desta,
consciente ou inconscientemente, se encontra um querer que, tendo em
vista certa situação, age de determinado modo”73.

13) Pertinência da História do Direito no contexto científico – Uma das


questões que podemos apresentar no presente momento é a seguinte: A História
do Direito é um ramo da ciência jurídica ou da história?

72
António Manuel Hespanha, Panorama Histórico..., cit., p. 16.
73
Nuno J. Espinosa Gomes da Silva. História do direito português. Fontes de Direito. 2. ed. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, p. 25.

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Respondendo à pergunta, encontramos a posição de MÁRIO JÚLIO


DE ALMEIDA COSTA:

“Não vamos aqui deter-nos nestes problemas de teoria historiológica e


de metodologia. Já resulta das rápidas considerações precedentes que,
por muito que se postule a inserção da história do direito na área das
ciências jurídicas, nunca ela pode ser considerada exactamente ao lado
das outras. Sempre haverá que entendê-la como um ramo da história
que se ocupa do direito, embora profundamente influenciado pelas
particularidades do seu objecto e consequentes parâmetros e
orientações da ciência jurídica moderna. Mostra-se, em síntese, uma
disciplina tributária desses dois domínios.
A consideração da história do direito sob um caracterizado ângulo
jurídico salientará a sua utilidade para o jurista dogmático, que se
dedica ao estudo do direito vigente com finalidades práticas. Pelo
contrário, encarando-a mais comprometida no terreno histórico, ou seja,
em última análise, de uma visão global do homem e da sociedade,
melhor se alcança a relacionação das instituições e dos princípios
jurídicos com as outras realidades sociais.
A preferência por uma das referidas concepções de história do direito
depende, evidentemente, de um prévio acerto de posição no plano da
teoria historiológica. Há problemas de filosofia da história a meditar e a
decidir. Mas também não se afigura estranho à questão o facto de a
história do direito poder ser cultivada por estudiosos que tenham uma
formação básica de juristas ou de historiadores. De qualquer modo, as
duas perspectivas – a mais jurídica ou a mais historicista – até certo
ponto se completam”74.

14) Perspectiva histórica - Na interpenetração, a perspectiva histórica com a


jurídica, deve-se ter presente que distintas correntes enfocam o fenômeno
histórico, com distintos matizes: a) narrativo; b) pragmático; e, c) genético. Se a
concepção narrativa da história tem como objetivo uma análise meramente
descritiva dos fatos e agentes pretéritos, sem teorização nem crítica, trata-se de
uma perspectiva incompleta. Por seu turno, o pragmatismo, voltado à busca de
lições históricas que fundamentem as regras da conduta humana, como ‘fatos de
repetição’, também não se apresenta adequada. Daí a perspectiva genética

74
Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, Coimbra, Almedina, 3ª ed. (reimpressão), 1999, p. 24-25.

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prevalecer, uma vez que “visa uma compreensão dos fatos, das idéias e das
instituições do passado na sua sequência ou dependência orgânica, dentro de um
processo causal e teológico”, concebendo-se a história de forma científica, através
de métodos próprios de investigação, análise e crítica75.

O fenômeno jurídico, sob as lentes da história, deve ser observado


não apenas como um relato acrítico, devendo ser questionada a prevalência de
modelos jurídicos nos distintos momentos históricos, examinando os “princípios,
instituições e métodos jurídicos” adotados76.

Para que se possa observar a relevância de tal perspectiva, partamos


para um fato jurídico verificado na história brasileira:

75
Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, Coimbra, Almedina, 3ª ed. (reimpressão), 1999, p. 26-27.
76
Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, Coimbra, Almedina, 3ª ed. (reimpressão), 1999, p. 27.

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Narrativa:
Concepção Crítica:
Tirandentes foi
processado em 1790
- Quais os motivos
e a sua sentença de
da condenação de
enforcamento,
Tiradentes?
esquartejamento e
- Quais os efeitos da
exposição das partes
Inconfidência
do corpo, foi
Mineira?
cumprida em 21 de
- Qual a razão de tais
abril de 1792.
penas e como
Despojos de Tiradentes (Cândido Portinari)
evoluíram as penas?
Perspectiva - Etc.
acrítica:
- Tiradentes foi
condenado à morte
e ao
esquartejamento.

Leitura da Sentença de Tiradentes (Eduardo de Sá)

Numa perspectiva meramente narrativa, diríamos que Tiradentes foi


condenado à morte, enforcado, esquartejado e teve seus despojos expostos
publicamente.

Porém, quando queremos observar de forma crítica tal experiência


histórica, precisamos gerar uma gama de questionamentos, tais como: Quais os
fundamentos da condenação? Quais os motivos da Inconfidência? Como se dava o
sistema de penas no direito vigentes naquela época? Como explicar que
Tiradentes seja o único condenado à morte naquela ocasião?

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Mas, seguindo na trilha crítica, talvez o ponto principal para a


discussão seja o longo período histórico em que penas dessa natureza
prevaleceram na sociedade, as ditas penas de morte agravadas, com
esquartejamento e/ou insepultura, têm relatos históricos e fictícios por milhares de
anos e, em um plano mais grave do que aquele relatado por Sófocles, em
Antígona, era adotado no Brasil, às vésperas do século XIX.

15) Perspectiva jurídica - Sob o prisma jurídico, a História do Direito também


se relaciona com outras esferas da ciência jurídica, contemplando uma visão do
presente, do futuro e do passado, a partir, respectivamente, das perspectivas
técnica, filosófica e histórica77.

O presente é representado pela observação das normas vigentes,


disciplinadoras da ordem social, propiciando uma visão sistêmica sob a perspectiva
técnica ou dogmática78.

Por seu turno, a perspectiva filosófica permite uma visão direcionada


ao futuro. Uma análise prospectiva do Direito, como adverte MÁRIO JÚLIO DE
ALMEIDA COSTA, “ela averigua se as normas jurídicas vigentes encerram ou não
justiça bastante para continuarem a sê-lo e quais os preceitos, porventura
integrados noutros complexos normativos (maxime, a moral), que devem
79
ascender a esta categoria” .

77
Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, Coimbra, Almedina, 3ª ed. (reimpressão), 1999, p. 28.
78
Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, Coimbra, Almedina, 3ª ed. (reimpressão), 1999, p. 28.
79
“Outra é, sem dúvida, a óptica filosófica de análise do direito, que pretende colocar, na órbita do jurídico, os
problemas ou interrogações que constituem o discurso filosófico. Tais são, como não se ignora o problema gnoseológico
ou do conhecimento (qual a natureza e a validade do conhecimento humano?), o problema ontológico ou do ser (em que
consiste a realidade nas suas diferentes estruturas?), o problema axiológico ou do valor (qual o sentido e a hierarquia
dos fins de acção?) e, ainda, embora sem verdadeira especificidade no campo do direito, o problema metafísico ou do
absoluto (qual o sentido último do mundo e da vida?)” (Idem, ibidem).

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A terceira perspectiva é justamente a “dimensão histórica”, onde são


analisadas “as instituições e os princípios jurídicos no seu passado, apurando
como e por que surgiram. Intentando-se, além do mais, investigar os precedentes
e as causas de juridicidade do direito actual”80.

Portanto, após o exame de alguns elementos essenciais à


compreensão do Direito sob a perspectiva histórica, é essencial definir a forma
como a análise será efetivada.

16) Plano de exposição – Para que possamos examinar o direito brasileiro sob
uma perspectiva integrada com a experiência histórica, devemos observar a
História Geral do Direito (I) e, posteriormente, inserir a análise da História do
Direito Brasileiro (II).

Tal perspectiva demonstra, principalmente, que não existe uma


experiência jurídica isolada; logo, as instituições jurídicas brasileiras estão
diretamente relacionadas com a colonização, através da adoção do modelo da
família romano-germânica do Direito, ainda que, no momento da independência,
seguindo uma tendência também verificada nos demais países latino-americanos,
a influência norte-americana, especialmente no plano do direito público e do
direito processual81.

80
Mário Júlio de Almeida Costa, História do direito português, Coimbra, Almedina, 3ª ed. (reimpressão), 1999, p. 28.
81
A observação de MICHEL FROMONT, ao identificar a diversidade de direitos romanistas (Grands
systèmes de droit étrangers. 5. ed. Paris: Dalloz, 2005, p. 7), deve ser observada a partir das peculiaridades
sócio-políticas dos países latino-americanos, pois os processos de independência foram influenciados pela
experiência norte-americana, não apenas por uma ascendência cultural, mas, sobretudo porque, à exceção do
Brasil, as instituições imperiais não poderiam ser reproduzidas nas antigas colônias. O modelo monárquico
absolutista, talvez responsável pela não afirmação de uma estabilidade política representativa dos valores da
revolução francesa no plano constitucional (v. infra, quadro das constituições francesas), não deixa de ser
preservado nos países europeus, como bem constata HANS KELSEN, ao afirmar: “A teoria jurídica da
monarquia constitucional ainda tem atualmente – onde essa forma de Estado tende a passar para o segundo
plano – uma grande influência. Seja conscientemente, onde se pretende organizar a República com base no
modelo da monarquia, com um forte poder presidencial, seja inconscientemente, a doutrina do
constitucionalismo determina em grande medida a teoria do Estado. Como a monarquia constitucional

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No plano geral, enquanto experiência da humanidade, o Direito é


influenciado por fenômenos científicos, políticos, econômicos e sociais, mas a sua
afirmação não é linear, alternando períodos de avanço e de retrocesso até se
apresentar com as feições contemporâneas.

De tal maneira, não há uma referência geográfica rígida, nem, muito


menos, uma divisão temporal cíclica, para que possamos aferir a consolidação das
instituições jurídicas. Em outras palavras, a introdução histórica ao Direito não
deve ser uma superposição de textos jurídicos e eventos pretéritos; ao contrário,
deve propiciar uma avaliação dos pontos centrais da consolidação das famílias
jurídicas.

originou-se da monarquia absoluta, sua doutrina é, conseqüentemente, guiada sob muitos aspectos pelo
desejo de fazer que pareça a menor e mais insignificante possível a diminuição sofrida pelo monarca,
outrora absoluto” (Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 127).

Em revisão, Versão de 5 de abril de 2009. 43

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