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VI ARCADISMO (1756-1825) PRELIMINARES Grandes transformagées em toda a Europa, sobretudo na Franca, agitaram a segunda metade do século XVIII. No campo das ideias, assinala-se como acontecimento de fundamental relevancia a instalagao do pensamento enciclo- pédico de D’Alembert, Diderot e Voltaire, ocorrida em 1751, quando o primei- 0 publicou o Discours Préliminaire del Encyclopédie, dando inicio a um processo que culminou com a Revolugao Francesa (1789). Esta, como € sabido, veio a ser o simbolo acabado duma nova era na historia da Humanidade. O Iuminis- mo francés, baseado no culto das ciéncias, da Razio do progresso, impreg- nou larga audiéncia de intelectuais pelos quatro cantos do mundo. gal, malgrado 0 peso morto duma tradicio ideol6gica fundada em Portu; 4 medieval, conseguit dogmas e principios imutaveis, ndo raro de estrutur acompanhar 0 fluxo dessas mudangas. Primeiro que tudo, grace dado por D. Joao V (que reinou entre 1707 € 1750) a Luts Antonio Verney (Lisboa, 23 de julho de 1713-Roma, 20 de margo de 1792): de ascendéncia francesa, depois de graduado em Teologia pela Universidade de Evora, vai relhantes, levado por objetivos que logo se revelam na anonimamente, em 1746: apoio Italia seguir cursos sem obra pedagogica, em dois volumes, que publica Verdadeiro Método de Estudar. Dividida em 16 cartas, nesta obra Verney propoe 143 OY a reforma geral do ensino superior em Portugal com fundamento nag idea iluministas. Ao programa ali expendido, seguit-se-ia a elaboracao de manuge € compéndios redigidos segundo 0 novo credo, dos quais alguns che am stir, como De Re Logica (1751), De Re Metaphysica (1753), Gramaticg Lating (1758), De Re Physica (1769). Com Verney, entra em crise 0 ensino religigss medieval entio predominante nas escolas portuguesas, Em consequencia, a Universidade transforma-se: a partir de 1759, com, expulsio dos jesutas, a escolaridade aos poucos laiciza-se e abre-se as ideig novas que circulavam alem-Pireneus, rompendo um cerco que durava quase dois séculos, nos quais era marcante a influéncia espanhola. E 0 Marqués de Pombal (1699-1782) quem centraliza o empreendimento ministro de D. José I (que sucede a D. Joao Ve reina até 1777), promove nu- merosas medidas tendentes a colocar Portugal no nivel da cultura europeia, especialmente a francesa, e incrementa a instalacao do ideério iluminista, ain- da que adaptado as suas diretrizes individualistas e ditatoriais, na linha do chamado “déspota esclarecido”. Para colaborar no movimento, em lugar de Verney coloca o pedagogo Anténio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), mas limitando-Ihe a influéncia e a projegao. Com a importa¢ao de professores es- do e intensa atividade 144 © A LITERATURA PORTUGUESA trangeiros, a Universidade conhece uma fase de agita Cientifica e filos6fica, Por outro lado, o terremoto de Lisboa (1755), destruin- do parte consideravel da cidade, permite a Pombal demonstrar capacidade ¢ tino administrativos, que doravante ficardo associados ao seu nome: uma cid de nova, modema, ampla, arrojada para os paclrdes do tempo, a “Lisboa pot balina’, surge dos escombros Com a queda de Pombal, toma a dianteita dos acontecimentos wm gr'P? de homens mais ou menos emudecidos até a data, dentre os quais 0 Duct & Lafoes, que funda, em 1780, a Academia Real das Ciencias, segunda acade? oficial portuguesa (a primeira foi a Academia Real de Historia, fumdada &™ 1720), centrada no proposito de equipararse, j& em seus principios. suas realizagoes, as similares espalhadlas pela Europa. Respira-se um clima de efervescéncia cultural, no qual imenge ae! teraria do Arcadismo, As primeitas manifestacdes antibarrocas vem de lot" Ja na Fenix Renascida comecaram a aparecer notas satiricas contra x*8°™> barrocos (¢ 0 caso da poesia dum Tomas de Noronha e dum Diogo Camsch® Identico sentimento se observa no Serao Politico (1704), de Frei Lucas de 58" erica lie ARCADISMO 145 Catarina; na tradugo que D, Francisco Xavier de Meneses (1673-1743), 4° Conde da Ericeira, publicou, em 1697, da Art Poétique (1674) de Boileau, no Exame Critico (1739), de José Xavier Valadares e Sousa, centrado no elogio da Razio, da verdade e da imitagao da Natureza; e nos escritos de Verney, Pouco a pouco, vai crescendo a onda de neoclassicismo, gracas a renascen- ca das doutrinas literarias ensinadas pelos antigos, notadamente Aristoteles, Horicio e Quintiliano, Para tanto, colabora eficazmente o labor teorizante de Francisco José Freire (Lisboa, 1719-Mafra, 1773), ou Candido Lusitano de pseudonimo, autor de uma Arte Poética (1748), um Diciondrio Poético (1765) e Reflexdes sobre a Lingua Portuguesa (1842), obras em que, a par das ideias da- queles escritores greco-latinos, divulga doutrinas de pensadores modernos, dentre os quais Boileau, Muratori, Castelvetro, Escaligero, Addison e Pope. Até que, em 1756, se funda a Arcadia Lusitana (similar a Arcadia Roma- na, instaurada em Roma, em 1690), por iniciativa de Antonio Dinis da Cruz ¢ Silva, Manuel Nicolau Esteves Negrao e Teotonio Gomes de Carvalho. Ape- sar de numerosos percalcos, dissensdes internas, ataques, afastamento de socios, etc., a Arcadia Lusitana vingou até 1774. Além dos ja referidos, per- tenciam a agremiacao os seguintes letrados: Pedro Anténio Correia Garcao, Domingos dos Reis Quita, Francisco José Freire e Manuel de Figueiredo. Re- giam-se pela doutrina arcadic: estatutos da academia e pelas oragdes que Correia Gargao proferiu em algu- ou neoclassica, expressa em boa parte pelos mas de suas sessdes. Tendo por norte a divisa inutilia truncat, desejam testemunhar o reptidio as “coisas inuteis” que adornavam pesadamente a poesia barroca. E julgando que esta tendéncia estética correspondera ao desequilibrio e a decadéncia dos valores classicos, propoem-se a restaurar a supremacia da autentica poesia classica. Para consegui-lo, empreendem uma viagem no passado mais remo- to, em busca das fontes originarias do Classicismo. Desprezando 0 Barroco, detém-se no século XVI e dele aceitam o pastoralismo e a poesia camoniana, visto coincidirem com o ideal que eles, os arcades, pretendem alcangar. Sal- tando por sobre os séculos medievais, que a seu ver tinham lancado no es- quecimento a literatura classica, chegam a Antiguidade greco-latina, fim da Viagem: na ideal, mitologica Arcadia, regido grega de pastores e poetas viven- do em meio a uma Natureza sempre idilica, localizam os seus anseios de ple- nitude poética. y UGUESA Bt 2 outri 7 E com base no mito da Arcadia que erguem suas do se destry com bas paar *hidra do mau gosto”, que se havia apoderado da poesia barroca, Prox ‘hidra do mau gos nte a dos classicos antigos. Daf que a imitacdo dos ra caracteristica a considerar numa sing ATURA PORTU 146 ALT indy Uta Mode, PSE da volvimento dessa ideia-matriz. elo realizar obra semelha : los greco-latinos seja a primeit ; estetica arcadica, O mais vem por desem 0 dessin da vida simples, sobretudo em face da Natureza, n Permanente dae tudes morais; fuga da cidade para o campo (Jugere urbem), pois a primeira g considerada foco de mal-estar e corrupcao; desprezo do luxo, das riquerss das ambigdes que enftaquecem o homem; elogio da vida serena, placida, Pela superagao estoica dos apetites menores; elogio da velhice como exemplo dea ideal tranquilo da existéncia, da aurea mediocritas; apologia da €spontaneidade primitiva, pré-civilizada; por outro lado, o gozo pleno da Vida, minuto a mi. nuto, na contemplacao da beleza e da Natureza, pressupée epicurismo, que equilibra as tendéncias estoicas do movimento; por fim, a incidental Presenca da Virgem Maria explica-se pelo fato de que os seguidores do Atcadismo assy. miam a condicao de neocléssicos catélicos. Quanto a orientacao literaria propriamente dita, ainda seguem os mode. los antigos (defendem a separacdo dos géneros, a abolicao da rima, 0 empre- go de metros simples, o despojamento do poema, a importancia da mitologia), a0 mesmo tempo que procuram suporte nos tedricos do tempo, Muratori, Luzan entre outros, Boileau a frente. Adotam pseuddnimos pastoris para tor- nar mais verossimil o “fingimento poético” e imaginam-se vivendo num mundo habitado por deuses e ninfas, em meio a uma Natureza e um tempo ficticios, utopicos volvimento das ciéncias, se adicion* industrializagdo, para apenas referir dels To XVII europeu. Constitui uma forma de exe rre-de-marfim”, ideologicamente regressiva, OP © Tluminismo defendia, identica a de outros be semelhantes, no século XVI e na Antiguidade, ® 0 franco progresso urbano por via da i aspectos relevantes do sécul voluntario, uma vida em “to; mens de letras em condigoes fugirem para as “Vilas” nos a tredores das gra i recé-las & julga-las imagem da decade Brandes cidades, por abort ‘cia € devassidao, ARCADISMO -& 147 Para bem compreender esse quadro histérico, convem que tenhamos em conta que o século XVII, talvez mais do que qualquer outro, € sui generis por sua complexidade cultural ¢ estética, marcada pela confluencia de vertentes an- tagdnicas: primeiro, em razio de o Barroco permanecer vigente até a metade dessa centtiria, como evidencia 0 fato de que nao sé as suas coletaneas poéticas mais representativas, a Fénix Renascida e 0 Postilhao de Apolo, foram publicadas respectivamente em 1716-1728 e 1761-1762, mas também a obra de autores barrocos, como Tomas Pinto Brandao, Séror Maria do Céu, Séror Violante do Céu, Frei Antonio das Chagas, ou de um gongorizante como Francisco de Pina e Melo (Rimas, 1727), veio a luz quando a estética barroca parecia tombar no crepusculo. Nao menos expressiva dessa persisténcia é 0 surgimento, no primei- ro quartel setecentista, das principais compilagdes da doutrina bartoca, de Fran- cisco Leitao Ferreira (Nova Arte de Conceitos, 2 vols., 1718, 1721) e de Manuel da Fonseca Borralho (Luzes da Poesia descoberta no Oriente de Apolo, 1724). E ainda muito significativo que algumas das academias barrocas continu- assem atuantes até o terremoto de 1755, como a Academia dos Ocultos, de que ficaram seis cédices com o registro das suas sessdes, um “fabuloso reposi- torio da atividade literaria do século XVIII portugues, porventura uma das mais ricas colecdes que possuimos” (Joao Palma-Ferreira), a Academia dos Anonimos, na qual Francisco Leitao Ferreira expos as “lic6es académicas” reu- nidas na Nova Arte de Conceitos, a Academia Problematica, a Academia dos Aplicados, a Academia dos Escolhidos, alm de outras menos expressly Guimaraes e Santarém. Acrescente-se que a estética iluminista também exerceu influéncia ne ca, 0 em época, nao raro em coexisténcia com a doutrina arcadica ou neocl mesmo ocorrendo com as manifestacdes estéticas vinculadas ao estilo Rococo, declinio. Ou de outras ambivaléncias esteticas resultantes do Barroco em Jugao romantica, constituindo o chamado que anunciavam o advento da revo! Pré-Romantismo. Por fim, assinale-se que as caracte to exclusivamente & poesia: quando se corpo de doutrina literaria da segunda m ande profusio. E certo que se cultiva, risticas da estética areddica dizem tespet- fala em Arcadismo no sentido de um etade do século XVII, esti-se pen- sando tao somente em poetas, € em gr muita prosa (hist6rica, filoséfica, cientifica, pedagogic, etc,), mas fora dos quadros doutrinarios rigorosamente arcadicos. NY Em terreno mais proximo da estrita atividade literatia, observa.se, conty, do, a tentaiva de constr uma fiogto de estrutura novelesca, segungg iluministas, como é 0 caso do Padre Teodoro de Almeida (Lisboa, de janeiro de 1722-18 de abril de 1804), autor do Feliz Independente do Mundy € da Fortuna (3 vols., 1779), longa narrativa moralizante em toro dum piss dio da historia da Polonia passado no século XIII, € que seria largamente lida e difundida até meados do século XIX; e de Recreagdo Filosofica, ou Didlogo so. bre a Filosofia Natural... (10 vols., 1751-1799), Sermées (3 vols., 1787), Lisboa Destruida, poema (1803). Ou de Teresa Margarida da Silva e Orta, nascida em S. Paulo (l71)e falecida em Portugal (1793), para onde se mudou em tenra idade, Irma de Matias Aires, publicou em 1752 uma novela alegorizante, intitulada Maximas de Virtude e Formosura, com que Didfanes, Climeneia e Hemirena, Principes de Te. bas, venceram os mais apertados lances da desgraca..., sob 0 pseudonimo de Do- rothea Engrassia Tavareda Dalmira. Com o titulo mudado para Aventuras de Diofanes, sai em 1777 a segunda edigao, ainda encoberta pelo mesmo anagra- ma. Passados treze anos, republica-se pela terceira vez, ¢ agora se indicava, er- Toneamente, o nome de Alexandre de Gusmao como o seu autor. Dividida em seis livros, e mesclando valores cristaos & mitologia greco-latina, a novela tem 148 © A LITERATURA PORTUGUESA objetivos nitidamente pedagégicos, doutrinais colaborar na formacgao moral € politica do herdeiro ao trono portugués. Tendo por modelo as Aventures de Télémaque (1699), de Fénelon, como alias declara o titulo da segunda edicao, a narrativa oscila entre o Iluminismo emergente e o Barroco agonizante. Maior atencdo merece o teatro, seja Pela traducao e adaptacdo de pecas francesas e classicas, seja pela criagdo de pecas nacionais, mas sem lograr éxi- 10. Esforco digno de nota, embora infecundo, o realizado por Manuel de Fi guciredo (1725-1801) em primeiro plano (Teatro, 13 yols., 1804-1815), seguido por Correia Gargao e Domingos dos Reis Quita, visando a dotar o pal co portugués dum teatro a altura dos novos tempos, POETAS DA ARCADIA LUSITANA Ortodoxamente adeptos do novo credo literatio, e dotados de limitada eS" piracdo lirica, os poetas da Arcadia Lusitana, como de resto ndo poucos aA ARcADISMO. (149 menore! ran nenores que s6 de raro em raro oferecem momentos de fora dela, sao figu maior interesse Antonio Dinis da Cruz e Silva (Lisboa, 4 de julho de 1731-Rio de Janei- 10, 5 de outubro de 1799), cujo pseuddnimo arcadico era Elpino Nonacriense, 1 sido tristemente lembrado por seu papel de juiz durante o inquérito em o da Inconfidencia Mineira. A estada no Brasil deixou marcas em suas Me- tamorfoses, parte das quais compos quando, em 1792, esteve entre nos, € que m publicadas postumamente, com o mais de sua obra: Poesias (6 vols., 1807-1817). A semelhanga de Ovidio, compos doze Metamorfoses, em que, mitificando a natureza brasileira, mistura realidade observada com imaginac4o e lenda. Todavia, o melhor de sua producao reside em O Hissope (1802), poe- gmico sem par em vernaculo, em que faz a satira do espirito feudal, tem torn sO seriar ma herdi-c escolastico e clerical. Pedro Antonio Correia Garcao (Lisboa, 29 de abril de 1724-10 de no- 772), ou Coridon Erimanteu na ‘ArcAdia, mesclando a influéncia quinhentista, a francesa € a inglesa, vale acima de tudo como (reunidas postumamente no volu- vembro de 1 classica com a ejador. Em suas composicoes Jentosas solugdes expressivas, posto que 5 seus Discursos Académicos, excelente vers me Obras Poéticas, 1778), notam-se tal de sabor cléssico. Mais importancia ostentam o nas reunides da Arcadia Lusitana ¢ em que expde suas principals tanto, o primeiro plano € ocupado Teatro Novo, ¢ especialmente a Co- al se inclui a célebre Reguloe proferidos a das doutrinas arcadicas. No en! pelo teatro, para 0 qual escreveu a comédia média de costumes intitulada Assembleia ou Partida, na qui “Cantata de Dido”, inspirada no livro IV da Encida, ¢ duas comédias Sofonisba), que se perderam. Domingos dos Reis Quita (Lisboa, 6 de janeiro de 1728-26 de agosto de 1770), ou Alcino Micénio na Arcadia, constitu’ um caso invulgar € curioso: de origem humilde, barbeiro de profissio, qutodidata, conseguiu chegar a biblio- tecario do Conde de S40 Lourengo e socio da Arcadia Lusitana. A obra poética, publicou-a um pouco antes de morrer, tuberculoso (Obras Poéticas, 2 vols., 1766). Fundamentalmente lirico, elegiaco,® conles : sentimento de jncorrespondido no amor por uma dama lisboeta, Quita filia-se a tradigdo portuguesa, especialmente 2 do bucolismo quinhentista. O melhor de sua produgao esta no drama pastoril Licore, animado pela forga do idilio mintas, pela tens4o interna mantida até © desenlace, e pela ideias acerc sar em poesia um magoado entre a heroina ¢ At 152 © A LITERATURA PORTUGUESA Paulino Cabral vin publicadas suas Poesias em dois volumes, em 1796 e 1 a citcular, numa edigao integral, em 1985, com um ensaig introdutotio de Miguel Tamen. Vazadas quase que totalmente em Sones ¢ orama aberto pelo terremoto de Lisboa, em 1755 1787, que voltaram tendo como fundo o pan refletem um *homem cheio de bonomia, que ndo oculta as suas fraquezas ¢ nao alimenta grandes ambigdes, um homem que s6 visou a citcunstancia, ¢ por isso nao limou o estilo”, ¢ deixam uma “subjugante impressdo de autenti. cidade humana, de confissio ingénua” (Jacinto do Prado Coelho). De onde o5 ssuntos de seus poemas, além de variados, seguirem diversas claves, ora ne. oclassicas, ora barrocas e ora avancadas para 0 tempo. desleixo que punha na elaboracio e sobrevivencia dos seus versos, como se pouco lhe importasse a fama literdria, presente ou futura, evidencia-se num a “realismo burgués” que, na verdade, corresponde a irrup¢ao da prosa no espaco da poesia, Faz lembrar um livro de conta-corrente diaria, um “livro dos desas- sossegos”, pulsante de uma vida intensamente vivida, em que o abade, sem dar- se conta disso, registrasse os trabalhos e os dias, desde os amorosos até os que vinham marcados pela antevisao da morte. Nem faltava, nesse espectro sem li- mite, a inflexdo satirica, nao raro derivando para um humor imprevisto, as vezes a coroar versos de (aparente) gravidade, num claro premtincio da maneira que s¢ tornaria, um século mais tarde, caracteristica do parnasianismo de Jodo Penha “As vezes se nao durmo, o pensamento Deixando 0 corpo sobre a cama quente, Me leva mais ousado, que prudente, Dos Astros a medir 0 movimento. [...] Contemplo os Turbilhoes, ¢ finalmente Me transporto até sobre o Firmamento, [, Descartes lé descubro |,.,] E eis que ver com mais certa Geometria Uma Pulga, € me morde no cachaco; Vou-me arranhar, e adeus Filosofia” Quanto a Joao Xavier de Matos, as suas Rimas foram publicadas em tes ¥° lumes, datados de 1770, 1775 1783; ambos introduzem matizes novos temas velhos, Paulino Cabral transpee em verso a sua desigual existéncia, O° A ARCADISMO. «153 epicurista, ora sentimental, ora sensualista, ora trivial, mas sempre ensombrada por traces de melancolia € tristeza pré-romanticos. Ainda que ep{gono camo- niano, Xavier de Matos cra senhor de um timbre proprio, moldando em poesia uma ardente experiéncia do amor e dos seres humanos, em tons de melancdli- ca confidéncia, na qual ja € pos ivel identificar pressiigios do egocentrismo ro- mantico. Tanto quanto o confrade, deixou-se contagiar, na primeira fase da sua trajetoria, pelos vestigios barrocos reinantes em meados do século XVIII. Nicolau Tolentino (Lisboa, 10 de setembro de 1740-23 de junho de 1811) difere substancialmente dos anteriores. As suas Obras Poéticas (2 vols., 1801), seguidas de um volume de Obras Péstumas (1828), compdem-se de sonetos, odes, memoriais ou epistolas e satiras, mas foi pelas uiltimas que se tornou jus- tamente conhecido e apreciado. Humorista fino, espfrito mordaz sem indigna- ao nem fel, agudissimo e certeiro no retrato de cenas e costumes da época, escreveu satiras de evidente atualidade e poder comunicativo, tal € 0 caso por exemplo, de “A Fungdo”, “O Velho”, “O Bilhar”, “O Passeio Publico”, “Os Amantes”, Cronista da sociedade do tempo, pioneiro do caricaturesco na Lite- ratura Portuguesa, do humor feito de ironia ¢ chalaga, Nicolau Tolentino pro- voca 0 riso com facilidade ainda hoje, ¢ coloca-se ao lado de Bocage no culto da satira, embora dele se diferencie em muitos aspectos. Filinto Elisio, pseudonimo arcadico do Pe. Francisco Manuel do Nasci- mento (Lisboa, 23 de dezembro de 1734-Paris, 25 de fevereiro de 1819), € um tanto quanto retardatario em relacdo ao movimento neoclassico, mas nem por isso menos importante. Chefiou o Grupo da Ribeira das Naus, composto de figuras secundarias, contra a Arcadia Lusitana, teimando em seguir a risca 0 idedrio arcadico, especialmente naquilo em que as doutrinas de Correia Gargao pregavam a volta aos antigos greco-latinos € aos classicos portugueses, Camées e Antonio Ferreira a frente, seguidos de Vieira, Bernardes e outros. Preceptor da futura Marquesa de Alorna e de sua irma, cai na desgraga da In- quisigao e evade-se para Paris, em 1778, onde vive até o fim da vida e publica sua obra poética (Versos de Filinto Elisio, 8 vols., 1797-1802, reeditados e actescidos sob o titulo de Obras Completas de Filinto Elisio, 11. vols., 1817- 1819; postumamente, saiu em Lisboa outra edigao com igual titulo, em 22 vols., 1836-1840). i Versejador de sdlida base classica, propugnava pelo castici gem (cf. “Epfstola — Da Arte Poética Portuguesa”, dirigida a Francisco José Ma- mo da lingua- Y rUGUESA 154 © A LITERATURA PORTUGUT ane aa scr mestre consumado, mas faltavam-lhe o « Brito), de que veio a sei mestre consumado, ™ Ih ia de Brito), d a poeta auténtico. a Mluéneia que evidenciam 0 | éncia qi epistolas, epicédios, sonetos, etc.) muito da amie n ci la paixdo platonica rada experiencia de exilado no estrangelto € da paixdo p i pe Margen : a a anifesta . sade Aloma, tudo contrabalangado pela assimilacio € manifestacdo franca qo. s-romantico pelo tom confessional de al pros Vazou em poemas de vari la forma (odes, epigramas, é ideais ilumtinistas ainda vigentes. Pré eee vida e ei guns poemas, exerceu notavel influéncia em Pp inclusive em Garrett ¢ em poetas brasileitos. JOSE ANASTACIO DA CUNHA Nascido em Lisboa, a 15 de maio de 1744, e I falecido a 12 de Janeiro de 1787, era militar e estudioso da Fisica, da Matematica e de Iinguas estrangei. ras, sobretudo a inglesa. Por suas ideias avancadas, colhidas em leitura de au. lores franceses e ingleses (Voltaire, Rousseau, Hobbes, dentre outros), acabou sendo preso por algum tempo a mando da Inquisicao, Parte de sua poesia foi reunida por Inocéncio Francisco da Silva, em 1839, sob o titulo de Composi- oes Poéticas, a que se juntaram inéditos na edigéo de 1930, preparada por Hernani Cidade. Parece incrivel que um homem dado as ciéncias e as ideias tidas por liber unas ¢ Coerentemente postas em pratica, fosse também um lirico apaixonado ¢ wibrante, Abandonou de vez o alambicamento mitol6gico do Arcadismo € desobedeceu as limitagoes impostas pelo neoclassicismo: sua poesia é de acen- fos novos, dum homem modemo e hicido, Nela confessa experiéncias pes- soais, a da prisdo e a do amor Por Margarida Lopes, ou Marfida, como pediao “Ces! que fogo suil meu peta inflama, Eas faces me incendeia! Roi as entranhas solapada chama Salta de veia em veia ARCADISMO.-® 155 Em giro impetuoso o sangue ardente Eo coragao 0 incéndio estranho sente!” Noutras vezes expde, com nado menor intensidade, duvidas filosofico-reli- giosas. Libertando a poesia do seu aristocratismo postigo, Anastacio da Cunha tornou-se poeta vincadamente pré-romantico, mesmo antes de Bocage, como se pode ver, por exemplo, nos longos poemas em que com mais flagrancia plasmou seu drama interior: “A Noite sem Sono”, “O Abrago”, “Noticia Infaus- ta’, “A Despedida’. MARQUESA DE ALORNA Em posicao semelhante coloca-se a Marquesa de Alorna (Leonor de Almeida de Portugal Lorena e Lencastre; Lisboa, 31 de outubro de 1750-12 de outubro de 1839), nomeada arcadicamente de Alcipe. Relevante pela vida que levou pela atividade sécio- rada de segundo plano. Passou a infancia e a adolescéncia no Convento de Chelas (1758-1777), por motivos de ordem politica: desses anos ficou-lhe vi- gorosa formacao literaria, sobretudo na parte dos classicos; casou-se em 779 com o Conde de Oeynhausen, e seguiu para Viena; conheceu Metastisio, Ma- dame de Staél e outros. E em 1793, enviuvando, voltou a Portugal, mas foi obrigada a exilar-se em Londres (1803-1814); de volta & Patria, entrou a exer- cer ampla influéncia, inclusive sobre Alexandre Herculano: tudo isso fez dela iteraria que exerceu, a sua obra poética tem sido conside- figura quase tinica na Literatura Portuguesa. Publicada em 1844 (Obras Poéticas, 6 vols.), a sua poesia acompanhacthe de perto os transes da existéncia € da variada formagio cultural que recebeu: divide-se entre 0 culto dos classicos, alguns dos quais traduziu (Horicio e Pope), e dos romanticos, 0 que The confere lado classico parece dominar, talvez pordue se Ci va O lado romantico resulta ca magoada experien= carter, sensato e racionalist : cia de reclusa no Convento de Chelas € da influencia alema e inglesa bebida adaptagdes de Gray, nos proprios meios de origem, € Young, Goethe, Wieland, Ossian, Patia e rigor. nitido cariter pré-romantico, O oadunasse melhor com o sett por meio das tradugoes Buerger, € OULTOS, yealizadas com nuuita em- 156 @ ALITERATURA PORTUG! ontato com a cultura anglo-saxonica € dessa . : am, a" refluiclhe nos sonetos, apologos € cantiga lary . S, 40, atenua 0 voo da inquietacdo subja a Cente: Alguma coisa desse c experiéncia de “emparedad onaliz Jogo o comedimento, a Tach “Que quereis que vos diga dalegria, Se vitima da negra desventura sirvo sempre a cruel melancolia?!”. Todavia, é ja roméntico 0 sentimento que, insinuando-se por entre as thas da vigilancia racional, alcanca manifestar-se livremente. A ean ‘Alomna trouxe menos novidades que José Anastacio da Cunha, embora a muito como evidéncia das novas correntes literarias romanticas, e sirva, : isco, de vaso comunicante entre a estética em que se educou e aquela ee conhecendo pela vida fora. iquela que foi BOCAGE O mais renomado poeta do século XVIII portugués foi Manuel Maria de Bar bossa a emulo de Camoes na vida e na obra. Nasceu em Setubal, a 15 ees ni "0 te 1765. Cee, apaixona-se por Gertrudes (que aparece como eae ze a , mas resolve alistar-se na Marinha de Guerra, em oon Frenans a a na nau “Senhora da Vida”, em viagem pat eee Janeiro, onde se regala em festins e amores tropicals. ay ee as omega a correr-lhe bem: € promovido a tenente¢ wom lugar da onde clasica, colo a avenge SY realist cisco ni “ No de equilibrio, preferem 0 caos, ou a ana 80 ears suUbstiHennt VIG Poem um conceito de arte extremamente individualist subst wan 6 . 2, por nia visto MCT "2CTOcésmica que os cssicos tinham da vida e da ate, Por" 6 mica, isto é, centrada no “eu” interior de cada wn senna do Unie © “eu” toma-se o universo em que vivem, ott, a0 MEH: @ Verso: a Tm contempla a st ase ntico conten “hosae welhanga de Narciso, 0 romal cal ou innayiunttion, bese proptio, come se es . : ‘Wesse permanentemente voltado para um espelho EC, 170. A LITERATURA PORTUGUESA espetacule de si proprio. A tal panto que, quando se projeta para forg on consege veras ubjetos out os senimrent0s alhcies € coletivos seni eg, : ; este, engloba tudo quanto en Nig Orel, Sob og do Teal xo ¢ prolongamento do proprio “eu”: sentidas do homem romantica, acabando por identifieat-se Com o myn ¢ sensivel, ¢ por transforma-lo numa espécie de manifestagao Exterior sug homem volta a sentit-se a medida de todas as coisas, mas agora com nova tensidade e novos conti, tazides peas ates € 2s filosofias em yoga Esse egocentrismo taduza existéncia de umm condimento feminine na tude roméntica, revelado pela aceitacdo de expedientes préprios da vida das mulheres (de que é exemplo o “dandismo” de muitos, dentre o5 Quais Garrett, em Portugal) e pelas caracterfsticas seguintes, dele decorrentes. Py culto da Razao, que fazia o apanagio dos classicos, opde-se 0 culto das TazGes do coracao; em lugar do racionalismo, o sentimentalismo, em vez da especu. Jago conceitual, a fantasia. Mas o sentimentalismo implica introversio, ¢ o roménticos voltam-se para si, na sondagem do mundo interior, onde vegetam sentimentos vagos. Mais ainda: os sentimentos, j4 de si contraditorios, levam Instavel, complexo, rebelde, jogado 20 desequilibrio, ao paradoxo, a anarqui: por sentimentos opostos, numa irtefreavel mobilidade, o romantico cultiva atitudes feminoides e adolescentes: 0 Romantismo € uma estética da juventu- de, expressando sentimentos femininamente juvenis, ou vice-versa. Daf que o romantico mergulhe cada vez mais na propria alma, a examinar- Ihe masoquistamente os desvos, com o intento vaidoso de revela-la e confes- sé-la. E, embora confesse tempestades intimas ou fraquezas sentimentais, experimenta um prazer agridoce em fazé-lo, certo da superior dignidade do sofrimento. A confissio de intimidades sentimentais corresponde a descobertt de sensacdes ligadas a fragilidade e ao mistério dos destinos humanos, subme- tidos aos azares e a perpétua mudanga de tudo. Imerso no caos interiot, 0% mantico acaba por sentir melancolia e tristeza que, cultivadas ou brotads durante a introversdo, o conduzem ao tédio, ao “mal do século”. Repetid? ° tédio, sobrevém terrivel angista, logo transformada em insuportavel dese5P™ ro, Para sair dele, o romantico vislumbra duas saidas, apenas diferentes Pecto € no grau, visto serem essencialmente idénticas: a fuga, a deserea? we suicidio, caminho escolhide por nao poucos, ou a fuga para a Naturezs.® tia, terras exéticas, a Historia, f re | ROMANTISMO. -* 171 O suicidio vulgarizou-se apés 0 exemplo dado por Werther, seja na forma direta e violenta, mediante o emprego dum revélver ou outro instrumento se- melhante, seja na forma indireta, uma espécie de morte em camara-lenta. Al- guns optaram pela primeita formula; Gerard de Nerval, Mariano de Larra, Camilo Castelo Branco, Antero. Em Portugal, a onda de suicidio cresceu tanto que os jomnais tiveram de fazer, nos fins do século XIX, uma campanha de si- lencio para impedir que crescesse ainda mais 0 ntimero de tresloucados. A se- gunda formula aderiu a maioria, por motivos facilmente explicaveis pela propria instabilidade pstquica determinada ou revelada pela revolucdo romantica. A vida bomia, impulsionada pelo alcool e enfebrecida por um hedonismo sem limite, o entregar-se & aventura das armas e do amor (como Byton), — s40 formas de suicidio, lento mas inexoravel. Outra explicagdo nao existe para a verdadeira moda romantica de morrer tuberculoso e, como nao bastasse, na flor dos anos, ideal ambicionado por todos. Poucos chegam a idades provectas | endo raros morrem antes dos trinta, precocemente envelhecidos ou gastos nos excessos de toda ordem. O grupo dos ultrarromanticos em Portugal enquadra- se perfeitamente no caso, realizando o grande sonho de todo romantico que se preze: “morter na aurora da existéncia’. Oescapismo romantico na direcao da Natureza corresponde ao anseio de encontrar nela um confidente passivo e fiel, e um consolo nas horas amargas: deixando de ser pano de fundo, como era concebida entre os classicos, a Na- tureza torna-se individualizada, personificada, mas s6 atua como reflexo do “eu, alterando-se de conformidade com as mudangas nele operadas. Se triste © romantico, a Natureza também o €, pois ela constitui fundamentalmente “um estado de alma”, segundo era entendido no ten lagos, rios, montes, o firmamento, prados, etc., 0 romantico descobre outros estivesse pervagando ainda em seu mundo interior: 0 mpo. Na contemplagio dos “mistérios”, como st ongamento do seu ego. universo fisico constitui prol 19 solitaria e profunda, tem éxtases NIo taro Conhece os frutos da meditaga misticos que lhe descortinam a existén intimista, alheio a qualquer comunicagao ex religioso na visdo da Natureza, logo identificada cé simbolico das verdades biblicas e cristis, € sente inex- universal, com a Natureza e os semelhantes. cia do infinito, cultiva o recolhimento terior, redescobre 0 sentimento om o proprio Deus, e por isso recupera o sentido plicavel desejo de comunhao 172 © A LITPRATURA PORTUGUESA Deriva deste tiltime sentimento a ampliacdo dos horizontes a | Projo ge ToMAanticg any | fadado a uma grande miss 0 poy, ay. como imi de dor ¢ injustiga: instaura-se a demofilia, a democracie ® “o arauto das inquictagdes populares”, mago, profeta €stigmatizay Semte. | marca de génio; acredita no ideal como guia do homem e, Pregands © com | 0 deste, visiona o despontar de uma era de luz, sob 9 signo da re Res Igualdade e Fratemnidade. O povo em geral, composto de burgueges ; Se Dlebe ganha a cena como assunto literitio dominante. Plebeus mo romantico vai paulatinamente abrindo, sempre como Seu’: a Patria ¢ 0 estagio seguinte, Liberal em politica, 9 o civilizadora e redentora Preconiza-se uma literatura em toro de problemas socias, inclu, 205 ONATIO esa, CEP CHO clés, 0 seig Natureca€ a0 gosto pessoal: 0 belo-eio,o belo-hortivel, 0 belotagig eS sentes no grotesco, no grand-guignol, na ficcdo “gética”) tem. pela primeira: vez, assento no festim literati. Com isso, as deformidades dumm Quasimodo na impediam fosse o herdi duma narrativa popular, como € Nossa Senhora Paris, de Victor Hugo. proletariado. Cedo alguns roménticos emprestam carater revoluci cialista as suas obras em verso ¢ em prosa, Destrona-se a velha con sica de beleza e ergue-se outta, atenta a diversidade existente Os classicos, sendo absolutistas, acreditavam no Bem, no Belo e no Verde deiro como nocées absolutas ¢ distintas entre si, enquanto os romanticos, sen- do relativistas, s6 entendiam a existéncia do belo relativo, e no qual o bomeo verdadeiro se fundissem ou se disfarcassem: deste modo, o que fosse belo tera de ser necessariamente bom e verdadeiro, e o que fosse verdadeiro teria de set belo e bom. Ao contrario, 0s classicos consideravam-nos entidades abstratase autonomas. Viajar, conhecer terras € povos estranhos, paisagens exéticas, ruinas, 1 tos de velhas civilizagdes, monumentos de povos desaparecidos, — entra ase igualmente uma forma de escapismo, Busca-se 0 pitoresco, a cor local, 0 Pt mitivo autémtico no contato diteto com povos em outros estigios de civiliz G40 e vivendo outras formas de cultura; procura-se ver de perto o “bot selvagem” de que falava Rousseau, recuperar estados de alma talvez subcots Cientes no encontro da vida livre, longe das cidades e das {6rmulas gast'$ i civilidade. Velhos castelos medievais de repente se distinguem como pon? Ao, rui preci atragao, ruinas de monumentos greco-latinos passam a ser visitadas € #P Ad ROMANTISMO-& 173 das pelo que evocam de melancolia e tristeza, na lembranga dum tempo morto para sempre: inclusive aspectos da paisagem nacional, ricos de contetido evo- cativo, sio de stbito descobertos e visitados como em peregrinacao. Dentro da Europa, a Italia e a Espanha sao os paises mais procurados, cer- tamente por manterem vivos tracos dos séculos medievais e cavaleirescos € uma atmosfera poética, que convida ao sonho e ao devaneio, O rio Reno, em cujas margens se incrustavam paisagens e ruinas milendrias, também € apre- ciado. O Oriente, com todo o seu misterioso fascinio acumulado durante sé- culos, atrai muita atengao, seja o Oriente Proximo, seja o Extremo Oriente. E além do gosto pelas ruinas helénicas, os romanticos descobrem 0 encanto das velhas sociedades pré-colombianas, sobretudo na América do Norte Recupera-se, dessa forma, o gosto de viajar, que da origem a uma copiosa literatura durante o Romantismo, a partir de Chateaubriand, com Atala (1801) e René (1802). Na Literatura Portuguesa, as Viagens na Minha Terra (1846), de Garrett, constituem tipico exemplo. O exotismo manter-se-4 vivo ao longo do século XIX, mesmo quando a moda romantica vier a ser ultrapassada pelo cientificismo da geracao realista. Tendo como passo de fundo esse quadro cultural, o romantico descortina uma quarta via de escape da angustia em que vive, gracas as evocacées desperta- das por certos cendrios e por escombros de antigos monumentos. O romantico descobre pela primeira vez 0 tempo como dimensio psicolégica, toma cons- ciéncia da Historia e, por fim, redescobre a Idade Média, em razdo de 0 gosto mérbido de contemplar destrocos 0 conduzir diretamente aos castelos e edifi- cagdes medievais. Dai para superestimar a poesia, as instituigdes, os costumes, a arte e o pensamento medievais, pouco demorou. O anticlassicismo, posto em voga pela literatura romantica, explica ainda que se de: renascenca dos valores medievais, que haviam sido menosprezadlos apos a re- sejasse instaurar a vivescéncia do espirito greco-latino, durante © fulgor humanista. Todavia, o romantico estima a Idade Média sobretudo porque, pela imagi- nacdo, encontra nela tudo quanto julga perdido ou malbaratado pelo racionalis- a, lirismo, inocéncia, misticismo, espiritualismo, sseau contribuiam grandemente para a valo- ntasia e do desejo de encontrar o “paraiso mo classico: ingenuidade, pure: nobreza, etc. Alias, as ideias de Row tizacao duma Idade Média fruto da fai perdido” numa longinqua época de Dard mas € fidalgos. E tao rica € essa quadra hist los, cavaleiros, cruzados, misticos, da- rica na imaginagio do romantico, oN au The permite divist-la de vies angles: oda vida heroico-cavaleiescy 5 sentimentalidade mistica, 0 do matavilhoso inggnuo e fantastico, 9 do arquitetural, o das lendas populares ¢ folcloricas, 0 do despertar do se 174 A LITERATURA PORTUGUESA Pitotescy ‘Dtiments de nacionalidade, ete. Em suma, cultuam uma Idade Média cavaleiresca e crista: Contrapondo aig do Ida. de Media. A alianga entre revolugao romantica e religiao crista data de Chateau. briand (O Génio do Cristianismo, 1802) e dos primeiros romanticos alemaes, Walter Scott afigura-se, com suas novelas, o grande paladino da tevaloracao da Idade Media feudal e cavaleiresca, cujo reflexo em Portugal € Tepresentado es. Pecislmente pela obra historiogrficae literdra de Alexandre Herculano, plo grupo dos “poetas medievalistas”, reunidos em Coimbra por volta de 1838 aos mites pagios do Classicismo, os romanticos pretendem a teabjli, do Cristianismo anterior as hutas da Reforma e Contrarreforma, quer dize, Cnistianismo considerado virtuoso € puro como $6 teria sido praticado na OJORNALISMO ~ Durante a vigencia do ideério romantico em Portugal, desenvolvem-se atividades ou modalidades literarias até entao Postas em se- gundo plano, confinadas em certos ambientes, ou relegadas ao terreno das ati vidades despiciendas. Assim, cultivam-se 0 jornalismo e a orat6ria segundo padrdes novos, a0 mesmo tempo que se opera nitido progresso no ambito da historiografia e do teatro. O romance surge nessa altura, e a poesia apenas al- can¢a razoaveis resultados. Quanto ao jomalismo, representou Papel de primacial importancia no curso da revolucao romantica, e mesmo depois, até os nossos dias, porquante s€ converteu no orgao preferido para colaborar na formacao duma consciéncia social independente dos rigidos quadros administrativos, e na educagto dis massas relativamente a seus deveres e direitos. Veiculo ideal cuma época ast nalada pela democratizacao da cultura e das relagdes sociais, além de comet noticias, alargando os horizontes do leitor burgues, incumbia-se de Ihe ap sentar cotidianamente problemas e sol - : eatt- lugdes que até aquela altura eram rest tos duma classe e duma elite intel lectual. O primeito jornal portugues data de 1641: intitulava-se Gazeta, em que relatam as novas que houve nesta Corte, e que vieram de novembro de 1641, e circulou até setembro de 1647, Cor arios foram aparecendo durante os séculos XVII e XVIII s de varias partes no i FI m intervalos, outros : 1, mas corresponde™ A ee SSEECR ROMANTISMO-% 175 uma época proto-historica do a voveta cars ein com as demas nagerctessaeem ete or nalistica havia ganho a importancia que sibemon on ee i — também as fungdes de jornalistas profissionais, parcial ou ne sinente om de folhetins (em que se publicavam romances e novelas em caj stl ay pa cas, relatos de viagens, ou mesmo artigos de critica literdria, a —— toaesse genero de atividade nos drgaos de imprensa, pois ae entao estes eram jas do estado do mundo”, como apregoava apenas informativos, davam “not a Gazeta de Lisboa, iniciada em 10 de agosto de 1715. Dos varios 6rgaos de imprensa surgidos no curso do Romantismo em Por- 1, destacam-se, literariamente: 0 Panorama (1837-1864), de que Alexan- no foi redator, a Revista Universal Lisbonense (1842-1845), dirigida por Castilho, O Trovador (1844), O Novo Trovador (1851), ambos utilizados como porta-vozes dos ultrarromanticos. ‘Ainda restaria destacar alguns nomes a e simultaneamente homens de letras, como de publicistas de primeira link ‘Antonio Rodrigues Sampaio (1806-1882), panfletario politico, diretor de A io César Machado (1835-1 890), nove- Revolucao de Setembro (1846-1857), Juli lista e colaborador do mesmo orgao, em substituicao a Antonio Pedro Lopes de Mendonca (1826-1865), novelista (Memérias dum Doido, 1846) € introdu- tor da moda do folhetim em Portugal, juntamente con Evaristo Basto (1821- 1865), ea grande e unica yocagao de critico literario do Romantismo portugues (Memorias de Literatura Contemporanea, 1855), € tantos OULTOS. tugal dre Herculai ado o contorno que a cultura val (oman ominante, alarga-se a, a eloquencia crew Discursos Académi- A ORATORIA — A Oratoria, segu! ja do Liberalismo d o advento da moda romanuc: anos, clericais ou acaclemicos (cl. alocucoes de D- _ A partir da revol € procura outros do em consequénc! meios para atuar. Até tes via-se a ambientes palaci cos, de Correia Gargao, as Academia dos Generosos, ete: tra em voga a oratéria politica ¢ reunstancias hist + talento que nel anuel de Melo na 820, en- Francisco Mi Lugdo NO Porto, em 1 ando a niveis jamais super’- avam a eloquéncia, € 20s parlamentar, cheg 6ricas que estimul dos, gracas as ci Jas se envolveram. oradores de superio TS Fc lee 176 © ALITERATURA PORTUGUESA Alem de Gat, que com 0 <8 U8 Palme ast se desinve mais aia, ame como buses de main ray eines, ne un rd erst ESE Costho de Magn 2 1862), Amonio Mana Fontes Percirt de Melo (1819-1887), joua8y, Mendes Leal (1818-1880), também poeta dramaturgo, Luts Aun © Shh ga Sika (1821-1801), amb fiona e historador (Obras Coy ssi}. Jose Gano Vier de Casto (1838-1872), amigo de Cam ome se envolverd na Questdo Coimbra (Discursos Parlamentares, 1896,“ ‘ “ dentre | vanos tribunos entio aparecidos, salientam-se; Antonio Candido Ril 05 Cox (1850-1922), ceramente 0 maor de todos (Ores Fiebre DescurFarlamentaes, 1880-1885; Discuss Conferenis, 1890; nega mi ¢ no Falament, 190, et), € Anon Jost de Almeida (866 gee cujos dots de eloguéncalevaram grandes aiterios ao entusssma (Qu ta Anos de Vida Literaria e Politica, 4 vols., 1933-1934), BUsto Com o Realisino, a parti de 1865, a voga da oratoria nao cesea bin O TEATRO ~O teatro portugues, que entrou em declinio depois de Gi. Cente, — apesar das tentativas de D. Francisco Manuel de Melo e Antonio Jose da Silva, 0 Judeu, sobretudo deste tltimo - reergue-se durante o Romantismo, gracas ao admiravel esforco despendido por Garrett, a tal Ponto que falar do teatro romantico significa quase to somente seguir os passos do seu trabalho em prol da ante cénica e analisar e interpretar a sua dramaturgia. Imaginos, dinamico e capaz de suscitar apoio a sua causa, Garrett nao descansou enquan- to ndo dotasse a cultura portuguesa duma atividade teatral de feigio nacionsle de alto sentido patristico. E Conseguiu-o, nao obstante o seu exemplo morresse 4 mingua de seguidores com talento para criar pecas de semelhante altitude Por iniciativa sua, tomam-se medidas praticas para estabelecer condisies materiais favordveis A empresa que pretende realizar: a 15 de novembro te 1836, cria-se a Inspecgto Geral dos Teatros Espetaculos Nacionais ¢ 0 Co" servatorio Geral de Arte Dramatica; em 1846, inaugura um edificio aptop™ do as representacoes, € que recebeu inicialmente o nome de Teatro N € depois o de Teatro de D. Maria Il, em homenagem a Rainha, que ama 0 plano de Garrett. Nao fosse o bastante, para o novo teatro escreveu pes © carter nacional, uma das quais obra- topeia, 0 Frei Luis de Sousa, lacional, 7 i sa € et prima da dramaturgia portugues A

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