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Valéria Amorim Arantes Professora da Faculdade de Educagéo da Universidade de Séo Paulo, O presente texto pretende promover reflexdes e apontar cami- nhos pedagégicos para a construgdo de relacées interpessoais democraticas no convivio escolar, pautadas no didlogo e na reso- lugdo pacifica de conflitos. Ao mesmo tempo, buscard descrever possiveis condigées para a construgao de valores democraticos que auxiliem na transformagdo das relagées sociais, de forma @ atingirmos a justiga social e 0 aprendizado da participagao cidada nos destinos da sociedade A resolucao de conflitos como ferramenta de constitui- Go psicolégica e social “Nenhum ser humano nasce com impulsos agressivos ou hostis e nenhum se torna agressivo ou hostil sem aprendé-lo”. Ashley Montagu © conflito é uma parte natural de nossas vidas. A maioria das teorias interacionistas em filosofia, psicologia e educagao esta alicercada no pressuposto de que nos constituimos ¢ so- mos constituidos a partir da relagdo direta ou mediada com © outro. Nessa relagdo, nos deparamos com as diferencas e semelhangas que nos obrigam a comparar, descobrir, ressig- CSTE [39 | nificar, compreender, agir, buscar alternativas e refletir sobre nés mesmos e sobre os demais. O conflito torna-se, portanto, a matéria-prima para nossa constituigao psiquica, cognitiva, afetiva, ideolégica e social. A resolugdo satisfatéria de um conflito exige que nos afastemos do nosso préprio ponto de vista para contemplarmos, simulta- neamente, outros pontos de vista diferentes e, muitas vezes, opostos aos nossos. Exige-nos, ainda, a elaboracdo de fuses criativas entre os diferentes pontos de vista. Tal processo impli- ca, necessariamente, operagées de reciprocidade e sintese entre as diferengas. Para tanto, faz-se necessdrio analisar a situagao enfrentada, expor adequadamente o problema e buscar solu- ges que permitam resolvé-lo de maneira satisfatéria para os envolvidos. Tudo isso requer um processo de aprendizagem que nosso sistema educativo parece nao contemplar. Ora, uma formagio que visa 4 construgdo de valores de demo- cracia e de cidadania nao pode ignorar os conflitos pessoais e sociais vividos por seus atores, mas deve, sim, conceder um lu- gar relevante as relacées interpessoais. Concebendo os conflitos interpessoais como um contetido essencial para a formagao psi- col6gica e social dos seres humanos, um caminho proficuo para a construcdo de sociedades ¢ culturas mais democraticas e sen- siveis a ética nas relagdes humanas seria introduzir 0 trabalho sistematizado com conflitos no cotidiano escolar. Vale ressaltar que, apesar de bastante difundida em todo o mundo, a maioria das propostas de resolugdo de conflitos, tal como sinalizou Schinitman (1999), utiliza arbitragens, me- diagées, negociagées e terapias, baseando-se em modelos tra- dicionais que parecem atuar mais sobre objetivos especificos e ga (EA GRE ES prdticos e pautarem-se em pressupostos dicotémicos de ganhar e perder nas resolucées. Em outra diregdo, surgem novos paradigmas em resolugdo de con- flitos que, com base na comunicagdo e em praticas discursivas e simbélicas, promovem didlogos transformativos. Tais propostas rechacam a idéia de que em um conflito sempre hé ganhadores e perdedores e defendem a construcdo de interesses comuns e uma co-participacdo responsdvel. Incrementando o didlogo e a parti pacao coletiva em decisées e acordos participativos, essas propos- tas permitem aumentar a compreensao, o respeito e a construgao de agées coordenadas que considerem as diferengas. Entendemos que uma das formas de se trabalhar a convivéncia democratica pressupde 0 emprego de técnicas de resolugao de conflitos no cotidiano das escolas, principalmente se os confli- tos em questdo apresentarem caracteristicas éticas que solicitem 08 sujeitos considerar ao mesmo tempo os aspectos cognitivos afetivos que caracterizam os raciocinios humanos. Para justificar tais principios, nos pautamos em idéias como as de Moreno et al (1999), quando afirma que: os suicidios, os crimes e agresses ndo tém como causa a ignorancia das matérias curriculares, mas estdo freqlientemente associados a uma incapacidade de resolver os problemas interpessoais e sociais de uma maneira inteligente. A autora nos leva a refletir sobre o fato de que os contetidos curriculares tra- dicionais servem para “passar de ano”, ingressar na universidade, etc., mas nao nos auxiliam a enfrentar os males de nossa socieda- de ou os conflitos de natureza ética que vivenciamos no cotidiano. Se recorrermos & epigrafe utilizada no inicio deste texto, onde Montagu afirma que nenhum ser humano torna-se agressivo CSTE RO [a | ou hostil sem aprendé-lo, temos de admitir que, se vivemos momentos de intensa violéncia, em algum momento da histéria tal violéncia foi, por nés, construida, aprendida. As relagdes e conflitos interpessoais do cotidiano, com os sentimentos, pensa- mentos e emogées que lhes so inerentes, exigem de nés autoco- nhecimento e um processo de aprendizagem para que possamos enfrenté-los adequadamente. Apesar de os conflitos acontecerem continuamente em nossas vidas, nossa sociedade parece vé-los sempre de forma negativa e/ou destrutiva, Diante de um conflito vivido, por exemplo, entre dois irmGos, ou entre duas irmas, a conduta do pai ou da mae, normalmente, contempla a idéia de que o extinguir é a melhor forma de resolvé-lo. Nesse sentido, é comum argumentarem que o melhor é que fagam ‘as pazes’ e voltem a ser amigos/as, como eram antes do inicio da situagdo conflitiva. Em suma, o conflito é visto como algo desnecessario, que viola as normas sociais e que, portanto, deve ser evitado. Em outro sentido, Johnson e Johnson (1999) afirmam qu que determina que os conflitos sejam destrutivos ou construtivos ndo é sua existéncia, mas sim a forma como sdo tratados. Para esses autores, as escolas que desprezam os conflitos os tratam de forma destrutiva e aquelas que os valorizam os tratam de forma construtiva. Assim, os conflitos tratados construtiva- mente podem trazer resultados positivos, melhorando o de- sempenho, 0 raciocinio e a resolugdo de problemas. Estamos de acordo com esses autores e acreditamos que uma escola de qualidade deve transformar os conflitos do cotidiano em instrumentos valiosos na construgao de um espaco auténomo de reflexdo e ago, que permita aos alunos ¢ alunas enfren- tarem, autonomamente, a ampla e variada gama de confli- ga (EA GRE ES tos pessoais ¢ sociais. Sentimo-nos encorajados a investir na reorganizagao curricular da escola, para que seja um lugar onde, de forma transversal, se trabalhem os conflitos vividos no cotidiano. Resumindo, com este tipo de proposta educacional, a escola entende que, da mesma forma que os estudantes aprendem a somar, a conhecer a natureza e a se apropriar da escrita, é fun- damental para suas vidas que conhecam a si mesmos e a seus colegas, ¢ as causas e conseqiiéncias dos conflitos cotidianos. Trabalhando dessa maneira, por meio de situagées que solici- tem a resolugao de conflitos, a educagao atinge o duplo objetivo de preparar alunos e alunas para a vida cotidiana, ao mesmo tempo que ndo fragmenta as dimensdes cognitiva e afetiva no trabalho com as disciplinas curriculares. As assembléias escolares e 0 convivio democratico As assembléias sao 0 momento institucional da palavra e do didlogo. O momento em que o coletivo se retine para refletir, tomar consciéncia de si mesmo e transformar tudo aquilo que os seus membros consideram oportuno. € um momento organi- zado para que alunos e alunas, professores e professoras possam falar das questées que lhes paregam pertinentes para melhorar © trabalho e a convivéncia escolar (Puig et al, 2000). Além de ser um espaco para a elaboragao e re-elaboragao cons- tante das regras que regulam a convivéncia escolar, as assem- bléias propiciam momentos para o didlogo, a negociagao e 0 encaminhamento de solugdes dos conflitos cotidianos. Dessa maneira, contribuem para a construgao de capacidades psico- morais essenciais ao processo de construcao de valores e atitudes éticas. De acordo com Aratijo (2004, p. 21): Cero ee eee ey 0 trabalho com assembléias escolares complementa a perspectiva que acabamos de discutir de novos paradigmas em resolugao de conflitos, pois permite, em sua pratica, partindo do conhecimento psicolégico de si mesmo e das outras pessoas sobre o que é preciso para resolver os conflitos, que se chegue ao conhecimento dos valo- res e principios éticos que devem fundamentar o coletivo da classe. Ao mesmo tempo, evidentemente, permite a construgao psicolégica, social, cultural e moral do préprio sujeito, em um movimento dialéti- co em que o coletivo transforma e constitui cada um de nés que, por nossa vez, transformamos e ajudamos na constituigdo dos espacos e relagées coletivas Diferentemente de outros modelos de resolugao de conflitos, as assembléias nao buscam medié-los no pressuposto de que existe o certo e o errado e que deve haver uma pessoa munida de auto- ridade institucional com responsabilidade para julgar e decidir sobre problemas, estabelecer recompensas e sancées ou mesmo de obrigar as partes envolvidas a chegarem a um consenso. O modelo das assembléias é 0 da democracia participativa, que tenta trazer para o espaco coletivo a reflexdo sobre os fatos co- tidianos, incentivando o protagonismo das pessoas e a co-parti- cipagdo do grupo na busca de encaminhamentos para os temas abordados, respeitando e naturalizando as diferengas inerentes aos valores, crencas e desejos de todos os membros que dela par- ticipam. Com isso, nem sempre o objetivo é o de se obter consenso e acordo, e sim, o de explicitar as diferencas, defender posturas e idéias muitas vezes opostas e, mesmo assim, levar as pessoas a conviverem num mesmo espago coletivo. Em um espaco de assembléia, ao se dialogar sobre um conflito, € garantido a todos os membros que dela participam a igualda- de de direitos de expressar seus pensamentos, desejos e formas CWC eee ees Ee de agdo, ao mesmo tempo em que é garantido a cada um de seus membros o direito a diferenga de pensamentos, desejos e formas de agdo. Pelo didlogo, mediado pelo grupo, na assembléia, as alternativas de solugo ou de enfrentamento de um problema sdo compartilhadas e as diferencas vao sendo explicitadas ¢ tra- balhadas regularmente, durante um longo processo de tempo. Por fim, de acordo com Aratijo (2004), trés tipos de assembléias contribuem para melhorar o convivio dentro da escola: a) as assembléias de classe, que tratam de tematicas envolvendo o espago especifico de cada sala de aula; b) as assembléias de es- cola, cuja responsabilidade é regular e regulamentar as relages interpessoais e a convivéncia no ambito dos espacos coletivos; ©) € as assembléias docentes, que tém como objetivo regular e regulamentar teméticas relacionadas ao convivio entre docen- tes e entre esses e a direcdo, ao projeto politico-pedagégico da instituigdo, a contetidos que envolvam a vida funcional e admi- nistrativa da escola. Quando instituidas na escola, essas trés formas de assembléias se complementam em processos continuos de retroalimentagao que ajudam na construgdo de uma nova realidade educativa. Referéncias: ARAUJO, U. F. Assembléia Escolar: Um caminho para a resolugao de conflitos. $40 Paulo: Moderna, 2004 JOHNSON, D. W. & JOHNSON, R. T. Cémo reducir la violencia en las escuelas. Barcelona: Padés, 1999. MONTAGU, A. La naturaleza de la agresividad humana. Madrid: Alianza, 1978. ‘MORENO, M.; SASTRE, G.; LEAL, A.; BUSQUETS, D. Falemos de sentimen- tos: A afetividade como um tema transversal. Sdo Paulo: Moderna, 1999. PUIG, J. M.; MARTIN, X.; ESCARDIBUL, S; NOVELLA, A. Democracia e participagao escolar: Propostas de atividades. Sao Paulo: Moderna, 2000. SCHNITMAN, D. F. Noves paradigmas em mediagdo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. Ce ere edose

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