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O arauto do grande rei

Joseph Ratzinger

Homilia pronunciada na primeira Missa de um jovem sacerdote em 1955

Era abril de 1207, na Itália repleta de sol. Foi o mês em que São Francisco de Assis tinha
sido deserdado e rejeitado por seu pai. Ele não tinha nada, não era sua nem mesmo a roupa que
usava, e ainda assim possuía algo que ninguém poderia lhe roubar: o amor de Deus, a
quem ele podia agora chamar de “Pai” de uma forma totalmente nova.
E ele sabia que isso era muito mais do que possuir o mundo inteiro. Assim, seu coração se
encheu de alegria e caminhava cantando pela floresta da Úmbria. Mas, de repente, perto de
Gubbio, do meio do mato saltaram dois ladrões para assaltá-lo; então, surpreendidos com a
aparência tão curiosa de Francisco, perguntam-lhe: “Quem é você?”. E ele responde: “Eu sou o
arauto do grande Rei”.

Francisco de Assis não era um sacerdote, ele foi diácono toda a sua vida; mas o que
ele disse naquela ocasião também é uma descrição profunda do que é e deve ser um
sacerdote: é o arauto do grande Rei, Deus, é o locutor e pregador do senhorio de Deus que
deve se estender para os corações dos homens em todo o mundo.
Nem sempre o arauto percorrerá as estradas cantando; às vezes sim, é claro, porque o
bom Deus sempre dá a cada sacerdote novos momentos em que, com assombro e alegria,
reconhece a grande tarefa que Deus lhe concedeu. Mas contra este arauto se levantam sempre
os ladrões, por assim dizer, os quais não gostam deste anúncio: são principalmente os
indiferentes, os que nunca têm tempo para Deus, aqueles que – exatamente no momento em que
Deus lhes chamasse – pensariam que realmente têm outras coisas para fazer, eles têm sempre
muito trabalho para fazer; depois há aqueles que dizem que não é preciso construir igrejas, mas
sim casas, e seria muito bom se depois surgissem ao lado delas cinemas e lugares para todo o
tipo de diversão.
Para estes, o sacerdote deve proclamar constantemente o fato, muitas vezes
desconfortável, de que o homem não vive só de pão, mas antes de tudo da Palavra de Deus. E
que o homem não vive somente de pão, mas de algo mais, eu acho que hoje nós podemos notar
isso muito bem. Cada vez mais, há pessoas que têm tudo o que desejam, dinheiro suficiente para
se vestir e comerem o que quiserem, e mesmo assim, algum dia, dizem: “Não posso mais viver”,
“não aguento mais, não faz sentido essa vida”. E aqui se vê que o homem precisa de algo mais do
que o pão, pois existe nele uma fome mais profunda, a fome de Deus, que só pode ser satisfeita
com a Palavra de Deus.

Acredito que na ocasião desta homilia e da celebração desta primeira Missa, todos
nós podemos refletir um pouco se não estamos também nós, de uma forma ou de outra,
entre aqueles indiferentes que, com a sua crítica, com o seu chegar atrasado ou nem
mesmo chegar, tornam mais difícil ou fazem o sacerdote perder o gosto pelo seu trabalho.
Depois, há aqueles que são hostis, aqueles que por detrás de cada sacerdote veem o
representante do clericalismo, de um poder contra o qual devem defender-se; e não há
necessidade de dizer a vocês os slogans e os pensamentos que estão circulando hoje em dia
sobre isso. Certamente os conheceis tão bem quanto eu; e todos nós – creio – vemos não só o
suor que custa o trabalho de semeadura, mas também quanto esforço requer a colheita do Reino
de Deus, para a qual o Senhor o enviou como um trabalhador em seu campo, sobre o qual,
certamente, também crescem cardos e espinhos, não muito diferente do campo deste mundo.
E, apesar de toda a oposição, o sacerdote deve sempre trazer de volta o anúncio do
senhorio de Deus que deseja se estender em este mundo, porque ele é o arauto do grande
Rei, de Deus, que clama no deserto do tempo; ou, para dizer com os teólogos, de modo
simples e conciso: ele não toma parte apenas na função pastoral de Jesus Cristo, mas
também na sua função magistral; ele não é apenas enviado para administrar os
Sacramentos, mas também para proclamar a Palavra de Deus.
Caros cristãos! O que eu disse nesta homilia são só poucos, pequenos e insignificantes
detalhes da imagem global da existência sacerdotal. Mas, confrontado com a realidade de Deus,
no fundo todo homem é como uma criança que balbucia, e até mesmo o maior homem não pode
dizer mais do que alguns detalhes insignificantes. Em conclusão, gostaria de repetir mais uma vez
a oração que lembrei anteriormente; antes de colocar-se a serviço, na oração eucarística, do
milagre da santa consagração, o novo sacerdote se voltará mais uma vez em direção a vocês,
dizendo: “Orate fratres”: orai irmãos, para que o meu e vosso sacrifício seja agradável a Deus,
nosso Senhor!
Então por favor, não considerem estas palavras como uma frase feita que o Missal traz,
como uma fórmula que o sacerdote deve pronunciar porque é o momento que deve ser dita; em
vez, considerai-a como uma verdadeira oração dirigida a todos vocês. Porque talvez hoje o que o
sacerdote mais precisa é que se reze muito por ele; para ele é infinitamente reconfortante saber
que há pessoas estão cuidando dele diante de Deus, ou seja, que estão rezando por ele. É como
se uma mão boa o mantivesse em uma subida íngreme, de modo a ter esta certeza: “eu posso ir
tranquilo, porque sou sustentado pela bondade daqueles que estão comigo”.

E cada vez que no futuro vocês forem à Missa e escutarem esta fórmula, orate,
fratres(orai irmãos), considerai-a como uma exortação, como uma verdadeira súplica
dirigida a vocês: orai irmãos, para que a oferta da vida deste sacerdote e de todos os sacerdotes
seja agradável a Deus, o Senhor.

Fonte: J. RATZINGER, Opera Omnia, vol. XII: Annunciatori della Parola e Servitori della vostra
gioia“, Libreria editrice Vaticana, pp. 750-752. Tradução: Pe. Anderson Alves.

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