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Patrimonios Sensiveis
Patrimonios Sensiveis
Há que considerar também que estudantes são, também, peças-chave para trazerem
questões do mundo contemporâneo para a sala de aula. Certamente, sendo docente, algum
momento se deparou com isso. Me recordo o quanto o incêndio do Museu Nacional, em 2018,
foi pauta em todas as séries que eu dava aula. No entanto, o museu não é um conteúdo.
Como foi uma demanda dos estudantes, adaptei a questão a cada série: sexto ano, falamos
da importância dos documentos; com o oitavo ano havia o gancho de ali ter sido o palácio
da família real; com o 9º ano discuti museu e memória, pois falávamos sobre memória da
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História: Desafios do e no Tempo Presente” - Campinas – 06 de fevereiro a 16 de abril de 2023 - ONHB-Unicamp
ditadura antes de visitarmos a um museu sobre memoria da ditadura, que no caso era o
Memorial da Resistência (SP).
Adaptar conteúdo ou fazer qualquer inversão, sabemos bem que não é simples e
depende da escola a qual você atua. Essa corda bamba entre alunos, escola e nossas
aspirações enquanto docentes tornam nosso ofício complexo em muitos âmbitos. A proposta
aqui é, portanto, compartilhar questões relativas ao tema dos patrimônios sensíveis para que
possa, de algum modo, inspirar.
Em linhas gerais, uma região sensível do corpo dispara sinais de dor em reação ao
toque nos locais com as terminações nervosas hipersensíveis. Esse toque causa incômodo.
Assim, passados sensíveis seriam os eventos que quando abordados disparam sinais de
desconforto no tecido social. Essa perspectiva de reflexão sobre tais eventos, aqui neste
texto, tem interface com os estudos sobre passados presentes1 e passados não encerrados2.
A partir dos anos 90, museus e monumentos não tentam mais, esconder as gotas de
sangue. Mario Chagas, ao analisar os museus brasileiros, sobretudo no início do século XX,
1
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória. Arquitetura, monumento, mídia. Rio de Janeiro, Aeroplano Editora. 2000.
2ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Trad. Fernando Coelho e Fabrício Coelho.
Rio de Janeiro: FGV, 2016.
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Nos anos de 1970, lugares de passados sensíveis passaram a ser pauta de discussões
na UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura),
levando, por exemplo, ao reconhecimento como patrimônio um dos mais conhecidos campos
de concentração, Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em 1979. A onda preservacionista desse
tipo de patrimônio envolve prisões, manicômios, locais de torturas oficiais e clandestinas em
países que estiveram sob regimes ditatoriais, locais do tráfico de africanos, cemitérios,
leprosários, entre outros que atestem – ou possam vir atestar - a violência e a exclusão de
grupos.
No caso brasileiro temos exemplos de como o debate chegou aqui. Diferentes órgãos
preservacionistas - sejam na ordem estadual, seja federal, ou municipal – tem voltado
atenção para lugares sensíveis para alguns grupos. Cristina Meneguello é uma historiadora
3 CHAGAS, Mario. Há uma gota de sangue em cada museu. Chapecó: Argos, 2015, p.34.
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com seus estudos voltados a essa temática. Um de seus estudos se refere aos leprosários 4.
Os pedidos de tombamento dos asilos-colônia se iniciam nos anos 1990, mas é apenas no
século XXI que há a efetivação da preservação. Podemos citar alguns exemplos no Estado
de São Paulo: Antigo Asilo Colônia Aimorés (atual Instituto Lauro De Souza Lima), em Bauru;
Sanatório Padre Bento, em Guarulhos; Preventório Santa Terezinha, Carapicuíba; Hospital
Pirapitingui, em Itu. A questão dos leprosários – locais de isolamento compulsório de
infectados pela hanseníase - joga luz não somente a entendê-los como espaços que
rememoram a história da saúde pública, mas, sobretudo, está intrínseco os temas de dor e
violência.5
4 Leprosário é o nome popular para os asilos-colônias de internação compulsória para as pessoas contaminadas pela
hanseníase. Segundo Meneguello, o isolamento compulsório dos doentes foi a principal política adotada pelo poder público
contra a lepra, associando-se à consolidação da capacidade do Estado brasileiro agir sobre territórios e populações como
um projeto modernizador. (2018; p.349)
5 DICA ONHB: Em 2016, na edição 08, na fase 03, a questão 33 abordou esse tema.
6 DICA ONHB: Em 2019, na edição 10, na fase 04, a questão 35 abordou o tema.
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Em 1978, ilha de Gorée, no Senegal, foi reconhecido como patrimônio pela UNESCO
por ter sido o maior centro de tráfico de escravos nas costas africanas. Quase quarenta anos
depois, em 2017, o Cais do Valongo9, no Rio de Janeiro, passou a também incorporar essa
lista. A partir da localização oficial, em 2011, o Cais começou a ser estudado por
pesquisadores da área. Assim, a chancela de patrimônio veio a partir do passado traumático
para os milhares de africanos e africanas desembarcados como mercadorias para servir a um
7 O Massacre do Carandiru ocorreu no dia 2 de outubro de 1992. O episódio foi a repressão violenta da Polícia Militar a uma
rebelião. Acredita-se que pelo menos 111 detentos foram assassinados na ação policial. Não houve punições aos
responsáveis pela justiça brasileira.
8 Viviane Borges cita outros exemplos. Ela aponta o nome do presídio e o ano de sua construção: Complexo Penitenciário
Frei Caneca (1850, RJ), o Presídio de Tiradentes (SP, 1930), o Carandiru (1956). Outros tiveram parte de suas edificações
postas abaixo, como o Presídio Central de Porto Alegre (RS, 1940) e Presídio do Ahú (PR, 1903). E de alguns só restam
ruínas, como o da Ilha Anchieta (SP, 1902). Sobre o assunto de espaços prisionais e memória, Márcio Siligman-Silva discute
a obra "Pássaro Livre/Vogel Frei", dos alemães Horst Hoheisel e Andreas Knitz, de 2003, em que os artistas criam uma obra
para discutir o esquecimento do presídio Tiradentes. Para saber mais, acessar:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac0208200301.htm
9 Ver mais em: LIMA, Mônica. História, Patrimônio e Memória Sensível: o Cais do Valongo no Rio de Janeiro. Outros
sistema econômico, que no Brasil, perdurou por mais de três séculos. Márcia Chuva ao
discutir sobre os patrimônios de herança africana no Brasil, costura a patrimonialização do
Cais a uma discussão do que a autora chama por paradigma de direitos10, pois a historiadora
vê o tombamento do Cais, assim como o seu entorno, como o Quilombo da Pedra do Sal e o
Cemitério dos Pretos Novos, não uma busca estritamente genealógica acerca dos
desembarques forçados, mas sim por reparação e justiça.
O que é certo, é que essa forma de interpretar o patrimônio, pela dor, no Brasil, tem
uma marca: a sua diversidade temática, espacial e temporal. Seja a questão de uma história
de longa duração, como a escravidão ou a loucura; ou mesmo histórias recentes do período
republicano, como o massacre do Carandiru ou os lugares prisionais da ditadura civil militar.
A forma como eu opero o movimento de análise dos espaços de dor e violência partem
de duas questões: a criação da ONU (Organização das Nações Unidas) e a noção de crime
contra a humanidade. Em primeiro lugar é necessário compreender o mundo que após a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945) cria uma organização internacional: a ONU. A
organização tem como carta de fundação a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
1948.
Os direitos humanos são compostos por três esferas que interagem entre si, segundo
Lynn Hunt: naturais (inerentes nos seres humanos), iguais (os mesmos para todo mundo) e
10Sobre paradigma de direitos, ver em: CHUVA, Márcia. Entre a herança e a presença: o patrimônio cultural de referência
negra no Rio de Janeiro. ANAIS DO MUSEU PAULISTA. São Paulo, Nova Série, vol. 28, 2020, p. 1-30
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universais (aplicáveis por toda parte). Em linhas gerais, a carta assegura direitos femininos,
discussões de respeito e igualdade racial, sexualidade, liberdade religiosa, imigração, entre
outros. A bandeira de tolerância e denúncia de violências embasam a declaração.
O discurso dos Direitos Humanos e o combate a intolerância deram força, por exemplo,
aos movimentos pelos direitos civis da população negra contra apartheids como nos Estados
Unidos, nos anos de 1960, e na África do Sul, nos anos de 1990. Cabe ainda ressaltar que
nesse contexto também houve as ações de descolonizações nos continentes africano e
asiático, colocando em xeque as dominações das nações europeias. Esse cenário me parece
ser uma forma de compreender o porquê a dor ganha espaço: O discurso de combater
injustiças e violências a grupos étnicos, raciais, sociais.11
No livro A invenção dos direitos humanos, Hunt é importante para pensar sobre a ideia
de “crimes contra a humanidade”. Vejamos.
As fotografias só existem porque houve um lugar para uma atrocidade ocorrer. Assim,
o que se pode entender é o papel dessas discussões sobre humanidade, a partir de formulada
a noção de Direitos Humanos. Esse é o segundo ponto. Lyn discute que essa ideia de crime
contra a humanidade só foi possível justamente por se entender que há uma humanidade,
11 O caso dos Direitos Humanos também é fundamental nos anos de 1980 para ações de ONGs (Organizações Não
Governamentais). ONGS como Anistia Internacional (fundada em 1961), Anti-Slavery International (uma continuação da
Sociedade Antiescravidão), Human Rights Watch (fundada em 1978) e Médicos sem Fronteiras (fundada em 1971). Esses
exemplos dados por Lyn nos ajuda a compreender melhor como o discurso dos direitos humanos vai ganhando espaços a
partir de sua formulação.
12 HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, P.203.
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ou seja, uma ideia universal de sermos todos iguais. Ora, se somos todos iguais, e compomos
uma humanidade, não se justifica qualquer atrocidade, ou privação de direitos, a grupos.
Keila Grinberg ao tratar da escravidão como um passado sensível tem um exemplo elucidante
sobre o tema: “Em 2001, o tráfico atlântico de africanos escravizados para as Américas foi
classificado pela Organização das Nações Unidas como um crime contra a humanidade. A
Conferência de Durban, realizada no mesmo ano, foi central na definição do conceito de
reparação aplicado ao passado escravista.”13 Deborah Neves também tem exemplos nesse
sentido. Ela cita o caso de, a partir de 2012, os países do Mercosul assinarem o “Princípios
Fundamentais para as Políticas Públicas sobre Sítios de Memória”, que objetiva o tratamento
aos lugares que se referem as violações aos direitos humanos na América do Sul durante os
regimes militares.
Assim, um outro ponto importante é não ver a carta de 1948 como um apogeu dos
direitos, mas sim como um início de um processo que vai ganhando força, por exemplo, em
instituições governamentais como ministérios, e até mesmo a base para políticas
educacionais14. Talvez esse ponto seja fundamental para aproximar a patrimonialização dos
lugares da dor e os Direitos Humanos o entendimento, a partir de convenções internacionais,
que qualquer violência fere direitos naturais, como a vida.
13 GRINBERG, Keila. O mundo não é dos espertos: história pública, passados sensíveis, injustiças Históricas. Hist.
Historiogr. v. 12, n. 31, set.-dez., ano 2019, p.153.
14 Vejamos o que Sefner e Pereira dizem sobre esse assunto: Fruto mais visível para o campo escolar desse percurso das
políticas públicas em direitos humanos foram dois atos do Executivo federal fazendo cumprir disposições da legislação: a
promulgação do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (Brasil, 2006) e das Diretrizes Nacionais da Educação
em Direitos Humanos (Brasil, 2013). Mas há uma extensa legislação nos níveis estadual e municipal que indica essa
obrigatoriedade. Em particular, os estados constituíram Comitês Estaduais de Educação em Direitos Humanos (CEEDH) a
partir da instalação dos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos. Essa estrutura alcança todas as unidades da Federação.
(2018; p.17)
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domicílio, nacionalidade, língua, religião, opiniões sobre o mundo, visões políticas, e até
mesmo sonhos, planos, desejos. Ora, essas características nos constituem como indivíduos
e são atestadas na Declaração de 1948. Portanto, não seria apenas sobre a morte e ao luto,
mas também sobre vida e a luta.
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