Você está na página 1de 140

I

Uma cadeira de História da Igreja, inserida num curso de Teologia, é pretexto


suficiente para que de imediato coloquemos a pergunta: que relação existe entre a
História da Igreja e a Teologia? O historiador eclesiástico poderá limitar-se a ser mero
historiador, ou terá também que ser teólogo? Por outras palavras: um homem sem fé
um, historiador “puro”, será capaz de elaborar uma história da Igreja?

O estudo que vamos fazer limita-se no tempo: é a história antiga a que queremos
conhecer. Daí que uma segunda interrogação possa surgir: que séculos iremos abranger?
Como dividir a história?

Esta Igreja que queremos encontrar nos seus primeiros passos foi instituída por
Alguém, em determinadas condições sócio-religiosas numa determinada região. Nasce
aqui a nossa terceira curiosidade: como se vivia na Palestina no período imediatamente
precedente ao nascimento de Jesus? Que ambiente social e religioso se respirava?

Analisar a relação História da Igreja – Teologia: delimitar as épocas da história;


radiografar a Palestina no tempo mais próximo ao aparecimento de Jesus... eis as três
primeiras considerações que em jeito de introdução vamos tecer.

a) Relação História da Igreja – Teologia


Segundo Gioseppe Alberigo, a História da Igreja não tem nada a ver com a
Teologia. O objecto da História da Igreja é a Igreja ou são as igrejas cristãs nas suas
manifestações de vida, de pensamento, de organização. Dito inversamente, o objecto da
História da Igreja não é o plano salvífico de Deus e nem sequer aquilo que segundo a fé
se pode considerar presente na vida eclesial como antecipação do Reino de Deus.
Nas fontes, a história procura o conteúdo fenoménico, não o providencial.
Portanto, a história da Igreja não se pode qualificar como disciplina teológica, na
medida em que a Teologia implica tomar como ponto de partida o dado revelado ou a
revelação enquanto tal.
Além disso, a história da Igreja trabalha aplicando o método histórico, isto é, um
método essencialmente positivo e empírico de análise crítica das fontes que
testemunham o passado. Na teologia, pelo contrário, nem tudo é empírico...
2

Convém, conclui este autor, não dar à história um fim e uns estatutos ambíguos.
Convém não reduzir a realidade natural e histórica ao mistério de salvação ou vice-
versa.1
Um pouco na mesma linha mas numa posição já mais moderada coloca-se Roger
Aubert. Este, na introdução à Nuova Storia della Chiesa, defende a distinção de planos e
métodos entre história e teologia. Reconhece, porém, que a teologia tem que contribuir
com alguns conceitos teológicos para que seja possível fazer-se uma história da Igreja.
Eis, esquematicamente, o pensamento de Aubert: “A história da Igreja [...], como
qualquer trabalho histórico, procura reconstruir com métodos rigorosamente científicos,
o mais objectivos possível , o passado da sociedade eclesiástica, a sua evolução através
dos séculos e as traços particulares que a caracterizaram em cada época, tal como se
podem descobrir através das pegadas que este passado deixou nos documentos escritos,
nos monumentos arqueológicos e noutras fontes passadas pelo crivo da crítica histórica
elaborada por gerações de eruditos”.
“Se é assim, que espaço pode ser deixado para as considerações teológicas [...]?
Um espaço não desprezível se se pensa que não é quase possível estudar e sobretudo
expôr o passado de uma instituição, qualquer que ela seja, sem possuirmos noções
relativamente claras sobre a sua natureza e sobre a importância respectiva dos diversos
aspectos que apresenta. Quando se trata de uma instituição de natureza religiosa como a
Igreja, noções do género provêm em grande parte da teologia, o que equivale a dizer
que cada concepção da história da Igreja, quer se queira quer não, implica
necessariamente certas opções teológicas”. Por exemplo, é a teologia quem deve
explicar o que se entende por Igreja, por Povo de Deus, e por Esposa de Cristo...2
Segundo Hubert Jedin, a História da Igreja tem por objecto o crescimento, no
espaço e no tempo, da Igreja fundada por Cristo. Para se fazer essa história é
indispensável a Teologia, pois que é esta (teologia) que fornece à história os seguintes
elementos:
-- a origem divina da Igreja;
-- a forma (hierárquica e sacramental) como a Igreja está ordenada;
-- a assistência do Espírito Santo;

1
Cf. ALBERIGO, G., Nuove Frontiere della Storia della Chiesa, in JEDIN, H., Introduzione alla Storia
della Chiesa, Brescia, 1979, 14-19.
2
AUBERT, Roger, in Nuova Storia della Chiesa I, ed. Marietti, 7-8.
3

-- a orientação da Igreja para a perfeição escatológica.


Explicitando: Cristo quis que a Igreja fosse uma comunidade de homens (Povo de
Deus), chefiada por homens (colégio apostólico, episcopado, primado papal). Mas não
abandonou a Igreja a si própria. Concedeu-lhe o Espírito Santo que a preserva do erro, a
santifica e lhe conserva a santidade. Mais ainda: quer o princípio quer o fim da história
da Igreja repousam sobre um dado teológico: a Igreja começou com a descida do
Espírito Santo, e termina com o retorno do Senhor. Em conclusão: é impossível fazer-se
uma história da Igreja sem o concurso da Teologia.3

Segundo José Orlandis, o historiador eclesiástico terá que julgar os factos à luz da
fé para lhes poder tirar o sentido pleno. Tem que ter em conta que a Igreja de Cristo é
uma realidade divino-humana, um “mistério” e que o mais importante da sua vida não
constitui “notícia”, escapando inclusive à capacidade de observação da empírica.
Um historiador não crente que observe a vida da Igreja com uma visão puramente
natural, poderá sem dúvida fazer estudos valiosos, sobre muitas parcelas da sua história.
Poderá, por exemplo, investigar as relações entre a Igreja e os Estados ou a prática
religiosa num determinado período do passado; poderá fazer a história de uma diocese
ou de um domínio monástico, a de um sindicato cristão ou a de um partido confessional
“católico”. Mas não poderá escrever uma autêntica história da Igreja, porque será
incapaz de apreender a sua dimensão mais profunda.4

b) Problemas de datação
Não foi ainda encontrado um critério de divisão da história universalmente aceite
ou totalmente convincente. Esta afirmação vale para a história civil; e vale igualmente
(talvez sobretudo) para a história eclesiástica, pois que:
-- é difícil “encaixotar” no tempo o plano divino de salvação;
-- a Igreja Católica, como dizia Pio XII na sua alocução ao X congresso Histórico
Internacional em 5 de Setembro de 1955, não se identifica com nenhuma cultura. E se já
as mudanças de cultura são difíceis de datar, pior ainda as mudanças internas que o
Espírito, com a colaboração dos homens, vai operando na Igreja.
Apesar de tudo, não têm faltado tentativas de divisão da história. Assim, por

3
Cf. JEDIN, H., Introduzione alla Storia della Chiesa, Brescia 1979, 35-39.
4

exemplo:
Bihlmeyer-Tuechle dividem a história em:
-- Idade Antiga
-- Idade Média
-- Época das reformas
-- Época Moderna
(nós englobamos estas duas na Idade moderna)

Para alguns autores a Idade Média começa a inícios do século V, com as invasões
bárbaras e consequente alteração do quadro político e social da Europa;

Para outros (inclua-se o nosso José Orlandis), a Idade Antiga prolonga-se até fins
do século VII, início do VIII, sendo a período que vai de 400 a 700 considerado como
período de transição, durante o qual a “ordem antiga” vai ruindo e a Idade Média se vai
delineando.

Da nossa parte, concordamos com estes últimos, pelo que o nosso estudo da
história antiga abrangerá os séculos I a VIII.

c) Situação da Palestina
Três grandes potências ou núcleos dividem entre si a Palestina no tempo pré-
cristão e ainda durante a vida de Cristo: império romano, cultura helenista, e judaísmo.
Detenhamo-nos brevemente sobre cada uma destas forças:

c1) O Império romano


Durante mais de meio século antes do nascimento de Jesus os judeus viveram sob
o domínio romano, um domínio que eles de forma alguma aceitavam, porque os feria
nos seus sentimentos nacionais e religiosos (os romanos eram politeístas, os judeus
monoteístas).
Herodes, o Grande, foi o homem “colocado” pelos romanos em terras da
Palestina. Para se implantar lá, teve que afogar primeiro o ódio que por ele nutria o povo

4
Cf. ORLANDIS, J., Historia de la Iglesia, I – La Iglesia Antigua y Medieval, Madrid 1977, 19-20.
5

judaico, o qual, sob o príncipe asmoneu Antígono, lhe ofereceu viva resistência. Mas
com a ajuda de Roma, Herodes o grande conseguiu conquistar Jerusalém no ano 37 a.c.
exterminando a dinastia dos asmoneus, defensora da liberdade religiosa judaica.
À morte de Herodes (4 a.c.), o seu domínio foi dividido pelos filhos (Arquelau,
Herodes Antipas e Filipe), não sem que o povo judaico tivesse mostrado de novo o seu
descontentamento.
Como Arquelau não oferecia segurança aos seus correligionários romanos,
Augusto nomeou para a sua região (que abrangia a parte principal do território da Judeia
com Samaria e Idumeia) dois procuradores (um deles era Pôncio Pilatos), os quais
tinham sede oficial em Cesareia. A estes foi confiado o encargo de velarem pela
segurança militar e pela tranquilidade política.
Ao carácter sanguinário de Herodes o Grande e à antipatia judaica em relação aos
romanos se deve a fuga de muitos judeus para fora da Palestina. Este factor, como
veremos, ajudará à propagação do cristianismo.

c2) Cultura helenística


Em muitas cidades da Palestina, a população helenística e pagã era tão ou mais
numerosa que a hebraica. Esta coexistência helenístico-judaica nem sempre foi
pacifica. Os helénicos possuiam as cidades da que veio a chamar-se “Decápole”, bem
como algumas na costa. A Decápole era a associação das dez cidades que Pompeu
deixara livres, ligadas à Província da Síria; elas tiveram de se associar para se
defenderem...
Curiosamente Jesus nunca pregou nas cidades sob domínio helénico. E esta
reserva, sem dúvida intencional, mostra que Jesus, até à sua morte, se limita a pregar
aos judeus, dando cumprimento ao que Ele próprio ordenara aos Apóstolos: “ Não sigais
pelo caminho dos gentios, não entreis em cidades de samaritanos” (Mt 10, 5). Só depois
da ressurreição é que lhes dirá: “Ide, pois, ensinai todos os povos, baptizando-os em
nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 19).

c3) O Povo Judaico


Aos olhos dos seus vizinhos, o povo judaico caracterizava-se sobretudo pelas suas
particulares crenças religiosas, crenças que ele conservava com valentia e até com
6

teimosia. Essa particular crença do povo judaico assenta em três grandes pilares:

O seu monoteísmo: o povo tinha consciência de ter sido conduzido pelo Deus
verdadeiro em todas as fases da sua história, pelo Deus que tantas vezes se tinha
revelado como o único Senhor. Os homens piedosos centram a sua vida neste Deus que
governa e guia, dado o pacto, a aliança que o mesmo Senhor com ele concluira. O
israelita rejeita qualquer espécie de idolatria, enquanto na sua oração com frequência
repete: “Escuta, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt 6, 4).

O seu messianismo: a fé num Deus único nutre-se numa esperança, na esperança


que venha o Salvador, o Redentor, o Messias prometido. Esse Messias devia sair do
meio do povo, erigiria em Israel o Reino de Deus, levantaria Israel acima de todos os
povos e seria Rei.
Claro que o messianismo judaico por vezes se desvirtuava, assumindo o carácter
prevalentemente político e estritamente nacional; entre outras coisas, competiria ao
Messias libertar Israel do jugo estrangeiro, particularmente do romano; competiria ao
Messias reconstruir a potência e grandeza temporal de Israel.
Se tivermos em conta este tipo de messianismo, mais facilmente
compreenderemos a expressão “escândalo da cruz”...

O seu apego à lei: a lei ocupava um lugar decisivo no mundo religioso do


judaísmo daquele tempo. Observar a lei é a tarefa que o homem piedoso se propõe na
sua diária vida religiosa. E quando não cumpre a lei, mesmo que a infracção tenha
acontecido por ignorância, sente-se obrigado a expiar a sua falta.
É a Sagrada Escritura quem oferece a todo o judeu a lei que ele deve cumprir. Por
isso o conhecimento das Escrituras é essencial. E para se conseguir esse conhecimento,
as Escrituras são explicadas no templo e nas Sinagogas.
Como a lei não dava soluções claras para todas as situações da vida, a sua
interpretação acabou por originar partidos ou tendências diversas dentro do próprio
judaísmo. Entre esses partidos sobressaem o dos fariseus e o dos saduceus.

Os fariseus: procuravam a sua salvação no estudo incansável e na observância


7

escrupulosa da lei, separando-se de tudo quanto não era hebraico (o nome “fariseu”
significa exactamente “separado”).
Para cada situação da vida eles fixavam a atitude que a lei ordenava (tremenda
casuística...). Faziam uma minuciosa interpretação da lei, interpretação consignada na
Mishna e no Talmud. Para a interpretação da lei servem-se muito da tradição oral, do
parecer dos anteriores mestres.
Acreditam na existência dos anjos e na ressurreição dos corpos e preocupam-se
particularmente com a observância do sábado e a pureza legal. Quem não observava o
Sábado (caso de Jesus, que ao sábado cura o paralítico na piscina de Betsaida...) não
pode ser enviado por Deus...; e quem não cumpre a pureza legal (caso dos discípulos
que comem sem terem lavado as mãos – cf. Mc 7,2) é digno de reprovação.
Consideram-se os representantes do judaísmo correcto e quando conseguem
cumprir rigorosamente a lei conseguem também perder a virtude da humildade (cf. o
fariseu e o publicano que rezam no Templo...).
Os mais sábios de entre os fariseus eram conhecidos sob a designação de
“Doutores da Lei”.

Os saduceus: têm uma orientação racionalista e epicurista. Pertenciam à


aristocracia sacerdotal e laica. Caracterizavam-se pela importância enorme que
concediam à lei escrita, em detrimento da oral. Não acreditavam na ressurreição nem
nos anjos.
Sobre eles recaem as responsabilidades das primeiras perseguições contra os
Apóstolos (cf. Act 4,1). Tinham bastante poder a nível social, mas a sua influência
religiosa era muito menos significativa que a dos fariseus, com os quais por vezes
discutiam (cf. Act 23,7).

Além dos dois grupos que mencionamos existiam ainda, dentro do povo judaico,
outros dois: o dos essénios, os quais – contrariamente ao que sucede com os anteriores
(fariseus e saduceus) – não vem mencionados no Evangelho, e o dos judeus da diáspora.

Os essénios: a fidelidade à lei, o seu inteiro e límpido cumprimento levaram-nos a


abandonarem a cação pública e a fecharem-se no isolamento. Eram radicais. E os que
8

não seguissem a lei tal como eles a entendiam, eram considerados, irremediavelmente,
ímpios. Quanto ao ímpio, esse não é digno de compaixão, antes deve ser perseguido
com ódio implacável e contra ele se invoca a ira e maldição de Deus.
Viviam em colónias isoladas, quase todas situadas na costa ocidental do Mar
Morto. Uma dessas colónias, o grupo de Qumrán, assumiu o carácter semelhante ao de
uma ordem religiosa, de tipo monacal, onde o aspirante só era admitido como membro
com plenos direitos depois de um tempo de prova. Refeições e conferências comuns
mantinham unidos os membros, hierarquicamente ordenados. A estrita irmandade de
Qumrán observava o celibato, embora nas proximidades da fundação vivessem sequazes
casados.
Judeus da diáspora: desde há muito tempo que o povo judeu não habitava apenas
na Palestina. A partir do séc. VIII a.c., em ondas sucessivas, provocadas por
deportações forçadas ou emigração voluntária, o judaísmo espalhara-se, tendo como
seus principais centros Antioquia, Roma e Alexandria (cf. Filon). Onde o número lhes
permitia, os judeus da diáspora organizavam-se em comunidades, cujo centro era a
Sinagoga.
O vínculo que unia os judeus da diáspora era a sua fé. E este factor era o principal
impeditivo a que eles fossem absorvidos pelo paganismo circundante. É evidente,
porém, que os ambientes onde se inseriam acabaram por influir sobre eles. Como
qualquer emigrante, depois de algum tempo, os judeus abandonaram a sua língua
materna e adoptaram a língua universal da Koiné, ou grego comum (nesta língua foram
traduzidos alguns livros do Antigo Testamento – cf. versão dos Setenta). E acabaram
também por sofrer o influxo cultural do helenismo (cf. Filon de Alexandria).
A diáspora judia é factor justificativo do sucesso da primeira evangelização cristã.
A elaboração dos Setenta, a propagação do monoteísmo, a existência de Sinagogas
(pontos de partida da evangelização cristã) são alguns dos motivos que facilitaram uma
rápida difusão da doutrina e pessoa de Jesus e do plano salvador do Pai.

Ver DANIEL-ROPS I, 30-32.


Síntese de quanto dito em ERBA-GUIDUCCI, 29-31.
9

CAPÍTULO I – AS ORIGENS DA IGREJA

Ninguém duvida que o fundador da Igreja foi Cristo. Foi também Ele quem elegeu
os Apóstolos, e colocou Pedro como primeira pedra da Igreja. Aos 33 anos de idade
Cristo morre, e os discípulos vivem uma fase de dispersão e apreensão.
Mas três dias depois da morte Cristo ressuscita e aparece aos Apóstolos. Depois, à
vista deles, eleva-se aos céus (Act 1, 9), no monte Olivete. Os discípulos regressam a
Jerusalém, e vão-se reunindo no Cenáculo com algumas mulheres, com a mãe de Jesus,
com parentes de Jesus.
Entretanto era necessário escolher um substituto para aquele que tinha atraiçoado
Jesus: Judas. Cento e vinte pessoas participam nessa escolha, sendo o eleito Matias. A
eleição dá-se por iniciativa de Pedro, é escolhida uma testemunha ocular da ressurreição
de Jesus e, em última análise, é Deus quem o escolhe (todos rezam para que Deus
manifeste a Sua vontade). A comunidade participa e colabora na eleição.
No dia de Pentecostes (= festa hebraica das colheitas, dedicada ao agradecimento
a Deus pelo colhido e à oferta das primícias), a Igreja nascente, fortalecida pelo
Espírito, conhece notável incremento. Muitas pessoas tinham vindo à Cidade Santa para
a festa (cf. Act 2, 9). Pedro dirige-lhes a palavra e proclama coma verdadeiro Messias o
Jesus de Nazaré crucificado e ressuscitado. Como fruto da sermão de Pedro, três mil
Judeus aderem a Cristo, e recebem o baptismo.
Um novo incremento da Igreja dá-se quando Pedro cura no Templo um coxo de
nascença. Nessa altura o número dos crentes eleva-se a cinco mil (cf. Act 3, 1-9).

Organização da Igreja de Jerusalém


Tal como Cristo tinha establecido, o chefe é Pedro, “acolitado” pelos outros onze
Apóstolos.
Com a aumento do número de fiéis e consequente necessidade de os Apóstolos
estarem livres para a pregação e ao mesmo tempo com o aparecimento da queixa dos
helenistas de que os Apóstolos não cuidavam das suas viúvas, aparecem os diáconos,
em número de sete.
Entre os diáconos contam-se Estevão e Filipe, e a todos eles se confiava a
administração dos bens temporais da Igreja, a ajuda à evangelização apostólica, e a
10

assistência social.
Além dos Apóstolos e diáconos aparecem também os presbíteros ou anciãos. Não
sabemos bem qual a sua origem. Sabemos apenas que se sentavam nas assembleias ao
lado dos Apóstolos e que as decisões do Concílio de Jerusalém foram tomadas quer em
nome dos Apóstolos quer em nome dos presbíteros. Sabemos igualmente que fora de
Jerusalém eles estavam à frente das Igrejas locais.

Liturgia e vida dos primeiros cristãos


Os primeiros cristãos continuavam a participar na vida religiosa do seu povo. Isto
significa que os seus filhos são circuncidados, que as prescrições relativas à pureza legal
são observadas, que o repouso sabático é praticado. Em particular significa também que
os cristãos de Jerusalém participam nas orações que se realizam todos os dias no
Templo.
Mas os cristãos têm consciência de formar uma comunidade particular. Os Actos
indicam-nos já com o nome de . Esta palavra designou em primeiro lugar a
Igreja de Jerusalém, mas depois usou-se também para designar as diversas igrejas que se
constituiam sob o modelo de Jerusalém.
Além disso, os cristãos têm ou vivem também uma vida própria e reúnem-se em
casas privadas. Assim sucede no Cenáculo e assim ia sucedendo sobretudo “nas salas
superiores” (mais vastas e não reservadas à habitação). As reuniões dão-se com
frequência. Os Actos falam até de reuniões quotidianas (cf. 2, 46) que compreendiam a
fracção do pão, a instrução e orações de louvor. Algumas destas reuniões aconteciam
durante a noite, sobretudo na noite de sábado para domingo: os cristãos participavam
nas orações comuns do sábado, e depois encontravam-se entre si. Parece ter sido este
uso o que conduziu a que se designasse o domingo como “oitavo dia”.
O que presidia à Eucaristia, depois de ter dado graças, abençoava o pão e a vinho
estendendo sobre eles as mãos e pronunciando as palavras do Senhor na ceia. A oração
de benção e o gesto de estender as mãos correspondiam àquilo que encontravamos nas
“berakoth” judaicas.
À Eucaristia seguiam-se as orações. Estas eram da competência dos Apóstolos ou
dos presbíteros, mas também podiam ser feitas por mulheres.
Um outro factor a sublinhar na vida da primeira comunidade é a sua organização
11

económica. Os Actos dizem-nos que os irmãos põem tudo em comum, mas esse pôr em
comum não era obrigatório.
Finalmente recorde-se a existência de um serviço assistencial aos pobres e às
viúvas, controlado pelos Apóstolos mas efectuado pelos diáconos.

Oposição do Sinédrio
Os mesmos Judeus que levaram Cristo à morte por se auto-intitular Messias,
viravam-se agora contra os que diziam que ele tinha ressuscitado. Além disso, os
milagres operados pelos Apóstolos e a sua pregação que ganhava para a fé uma
multidão de crentes determinaram a intervenção das autoridades judaicas de Jerusalém.
Entre as medidas repressivas levadas a cabo por essas autoridades sublinhem-se as
seguintes: Pedro e João são presos e proibidos de falarem ou ensinarem em nome de
Jesus (Act 4, 3 e 18); os Apóstolos são presos pelo sumo sacerdote e pelos saduceus e
metidos no cárcere público (Act 5, 18). Um anjo do Senhor abriu as portas da prisão...
Voltam depois a ser chamados ao Sinédrio e intimados a não falarem em Jesus (Act 5,
27-29).
Estevão, um dos diáconos, é chamado ao Sinédrio e acaba por sofrer o martírio
(Act 7, 57-60). O discurso por ele proferido diante do Sinédrio faz estalar uma grande
perseguição, a primeira sofrida pela Igreja. Esta perseguição obrigou muitos discípulos
a fugirem de Jerusalém, a que viria a originar uma maior difusão da cristianismo e uma
separação cada vez maior entre a Igreja e a Sinagoga. Veremos adiante para onde
fugiram estes discípulos...
Sobre o martírio de Estevão ver DANIEL-ROPS I, 38.

Conversão de Saulo
Na narração do martírio de S. Estevão, Saulo é mencionado. Era jovem e inimigo
declarado dos cristãos. Tanto é assim que assiste de bom grado ao martírio de S.
Estevão e toma parte nele.
Por nascimento pertencia ao grupo dos helenistas. Era de Tarso. Mas tinha
recebido uma herança ainda mais valiosa: era “da raça de Israel, da tribo de Benjamim,
hebreu e filho de hebreus” (cf. Fil 3, 5). Por isso Saulo aprendeu desde a infância as
línguas grega e aramaica. Em aramaico lhe fala Jesus quando o faz cair do cavalo. E o
12

grego será a língua que ele usará no seu apostolado.


Não contente com o martírio de Estevão, queria fazer mais “estragos” e ir a
Damasco, Mal ele sabia que em Damasco Deus o esperava. É baptizado por Ananias, e
começa a pregar nas sinagogas que Jesus é o Filho de Deus. Perseguido pelos seus
correligionários anteriores interrompe a pregação (terá ido para o deserto arábico?!); e
prepara-se para o ministério apostólico que retomará três anos mais tarde.
Ver DANIEL-ROPS I, 27-29.

O diácono Filipe e o Apóstolo Pedro


A conversão de Saulo fez-nos deixar no ar a pergunta: para onde foram os
discípulos fugidos de Jerusalém após a morte de Estevão e subsequente perseguição?
Muitos foram para outras cidades da Judeia e para a Samaria, enquanto os
Apóstolos ficaram em Jerusalém.
Da pregação aos samaritanos ocupou-se Filipe, diácono, tendo a sua missão obtido
êxito: muitos samaritanos receberam a fé e baptizaram-se. Além da Samaria (cidade),
Filipe passa pela Cesareia (que fica na região da Samaria), Jope (na Judeia) e diz um
texto bíblico que, impulsionado por um anjo, por Gaza (na Filisteia). Nesta cidade de
Gaza encontrou-se com um eunuco, ministro de Candaces (rainha da Etiópia – Act 8,
26-37). Esta conversão de um etíope representa um passo importante na propagação do
Evangelho. Eusébio de Cesareia, na sua História Eclesiástica, II, 1, 13 chama a este
eunuco a “primícia do mundo pagão”. O cristianismo abrira fileiras, ultrapassara os
horizontes da judaísmo. Começava a converter o paganismo.
De Gaza, Filipe foi “arrebatado” a Azoto e daí ruma à Cesareia. A Jerusalém
chega entretanto a notícia do sucesso obtido por Filipe na sua obra evangelizadora.
Então Pedro e João põem-se a caminho e vão confirmar, através da comunicação do
Espírito Santo – sacramento da confirmação – a obra iniciada por Filipe.
Depois de ter visitado a Samaria, Pedro passa pelas planícies de Sarón, e desce à
região da Judeia, mais propriamente à cidade de Lida. Aqui cura Eneias, que estava
prostrado num catre há oito anos e através desse gesto consegue a conversão dos
habitantes de Sarón e de Lida (cf. Act 9, 32-35).
Estando Pedro em Lida, chegaram junto dele dois homens, pedindo-lhe que se
deslocasse a Jope, onde uma discípula, de nome Tabitá, havia falecido. Pedro foi então
13

lá e ressuscitou Tabitá. Mercê deste milagre, muitos acreditaram no Senhor. E Pedro


deixou-se ficar algum tempo em Jope, na casa de um curtidor, de nome Simão (cf. Act
9, 36-42).
Na corte itálica, situada em Cesareia, existia um centurião de nome Cornélio. Era
religioso e temente a Deus. Segundo o relato das Actos capítulo X, teve um sonho.
Como fruto desse sonho, enviou um criado a Jope, a chamar Pedro. Este acompanha-o a
Cesareia, onde lhe vem ao encontro o centurião. Trava-se um diálogo entre eles,
Cornélio é admitido ao cristianismo e Pedro chega à conclusão que a salvação de Deus
não é apanágio dos Judeus que se convertem mas possibilidade para toda a gente, que a
comunidade cristã se pode abrir aos pagãos, que a ninguém se pode recusar o baptismo.
Os discípulos, porém, parecem não estarem de acordo com Pedro e por isso,
quando este regressa a Jerusalém, teve que se justificar. A justificação foi convincente;
os ânimos acalmaram-se e Deus foi glorificado pelos presentes que diziam: “logo,
também aos gentios Deus concedeu a conversão e a vida” (Act 11, 1-18).
Deixemos, porém, agora a Pedro. A ele voltaremos mais tarde.

Cristãos de Antioquia
A perseguição que se desencadeou à morte de Estevão não levou apenas os
cristãos para outras cidades da Judeia e para a Samaria. Alguns foram para muito mais
longe: ilha de Chipre, Damasco e Antioquia. Em Antioquia, os cristãos lá chegados,
provenientes de Jerusalém, pregavam a Evangelho somente aos judeus. Mas outros que
também para lá foram e que eram provenientes do Chipre e Cirene, tinham mentalidade
mais aberta e começaram a dirigir-se aos gregos, anunciando-lhes Jesus Cristo. Este
acontecimento – como diz o nosso autor – assinala a grande abertura da Igreja aos
gentios, abertura que timidamente Pedro havia iniciado sofrendo várias resistências.
Em Antioquia os sequazes de Cristo receberam dos pagãos a nome de
. O aparecimento desta designação pode revelar duas coisas:
-- a imagem que os ambientes pagãos teriam das comunidades cristãs. Os cristãos
seriam uma espécie de seita messiánica, os “partidários de Chrestos” (cf. PETERSON,
E., Fruhkirche, Judentum und gnosis, Viena 1959, 64-88);
-- que a comunidade dos cristãos tinha já uma consistência que lhe permitia ser
reconhecida a nível oficial, aos olhos dos romanos.
14

De facto a Igreja de Antioquia é a primeira a apresentar uma importante


comunidade pagano-cristã, coexistente com uma judeo-cristã (cf. Gal 2, 12).
Combinam-se assim, em Antioquia, dois tipos de comunidade.
Rapidamente se transformou Antioquia em centro irradiador de cristianismo no
ambiente helenístico-pagão. A partir de Antioquia se desenvolverá a obra missionária.
Daqui terão partido Paulo e Barnabé para a evangelização da Ásia Menor, e aqui
tornarão após terem terminado a seu apostolado. Assim, durante alguns anos, Antioquia
será a centro da Igreja universal, como Jerusalém a foi até aos anos 40 e como depressa
o virá a ser Roma.

Reaparecimento de Paulo
Após a sua conversão Paulo vive três anos afastado da vida pública, e no ano 39
vai a Jerusalém, onde se encontra (provavelmente) com Pedro e Tiago, irmão do Senhor
(Gal 1, 18; Act 9, 27). Entra em choque com os helenistas (Act 9, 29), os quais
procuram dar-lhe a morte. Então Paulo é levado pelos irmãos para Tarso (Act 9, 30),
onde Barnabé, no ano 42, o virá buscar para o conduzir consigo a Antioquia (cidade
onde passa os anos 43-44).
No ano 44 Paulo e Barnabé tornam de novo a Jerusalém e quando regressam a
Antioquia vão acompanhados dum terceiro elemento: João Marcos. Poucos meses
faltavam para que Paulo desse início ao seu ministério (ano 45).
Deixemos, porém, o ministério de Paulo para o capítulo seguinte e vejamos que
outros acontecimentos se registaram na década de 40.

Perseguição de Herodes Agripa


No ano 41, Calígola, imperador romano, é assassinado, sucedendo-lhe na cargo
Cláudio I. Como rei da maior parte da Palestina foi designado Herodes Agripa.
Apenas chegado a Jerusalém, deu provas de ter em grande consideração a lei e de
ter grande simpatia pelos hebreus.
Desejoso de atrair-se a amizade do povo por meio do seu zelo religioso, reiniciou
a perseguição contra as cristãos. Matou à espada S. Tiago, irmão de João e, ao ver que
aquilo tinha agradado aos judeus, capturou também Pedro (Act 12, 2-3). Ver DANIEL-
15

ROPS I, 45-46.
Na noite anterior ao dia marcado para a execução de Pedro, este milagrosamente
foi libertado, retira-se de Jerusalém (ano 43) e apenas voltaremos a encontrá-lo nessa
mesma cidade aquando da realização do concílio.
Entretanto a perseguição que determinou a fuga de S. Pedro depressa acabará pois
Agripa morre na ano 44.
Durante a ausência de Pedro, Tiago, irmão do Senhor, toma conta da Igreja de
Jerusalém. Viveu como verdadeiro asceta e viria também ele a dar a vida por Cristo,
através do martírio.

O Concílio do Jerusalém
É outro dos grandes acontecimentos dos anos 40. Pedro reaparece nele. Estão
também presentes nele Paulo e Barnabé. (Ler o nossa autor pp. 9 e 10. Ter sobretudo em
conta isto:
-- o Concílio contribui para um maior distanciamento entre o cristianismo e a
sinagoga;
-- fica definitivamente resolvida a questão das relações entre o cristianismo e a lei
moisaica).
16

CAPÍTULO II – EXPANSÃO DO CRISTIANISMO

1. Factores favoráveis à expansão


Alguns factores favoráveis à expansão do cristianismo já foram por nós elencados.
Recordêmo-los e acrescentemos outros:
a) A difusão da língua e cultura helénica. De facto a cultura e língua grega não
eram apenas sabidas pelos gregos mas pelos judeus e pelas romanos (sobretudo pelos
mais cultos). Recorde-se a este propósito o que foi dito acerca do grego ;
b) A existência de um texto bíblico como os Setenta ajudou à evangelização dos
não cristãos (Judeus e pagãos);
c) Foram igualmente uma boa ajuda as sinagogas, lugares de culto que podiam ser
utilizados pelos evangelizadores;
d) Recordemos ainda a existência de uma grande expectativa messiánica no
interior do povo Judeu;
e) O império romano, além de ter criado dificuldades, favoreceu também os
evangelizadores pois aportou, duas grandes vantagens: criou um ambiente de paz
política, com a autoridade civil a garantir a ordem social; facilitou as comunicações,
quer terrestres, quer marítimas, permitindo que depressa se fizessem circular notícias ou
ideias; Ver História do Cristianismo I, 53.
i) As religiões tradicionais dos gregos e romanos viviam numa situação de crise
(pormenores sobre isto em JEDIN, H., Manual de Hístoria de la Iglesia I, Barcelona
1980, 149-164). Além disso o Evangelho era mais compreensível que a doutrina dos
sapientes de outrora, e resolvia os grandes problemas que sempre afligem o homem, os
problemas de Deus, da imortalidade da alma, do fim da vida terrena, da justiça
retributiva, etc. Como refere Justino (Dial 8), muitos descobriram no cristianismo a
única filosofia “credível” e prática. Os pagãos sentiam a doutrina cristã como algo
absolutamente novo e inaudito; Ver História do Cristianismo, 74-75; História do
Cristianismo II, 94-96; História do Cristianismo III, 53, 61-66, 68.
g) Teve imensa importância o fervor da fé dos primeiros cristãos. Homens e
mulheres de qualquer condição social sentiam-se no dever de difundir a Evangelho.
Quer os escritores cristãos, quer os pagãos (Plínio, o jovem; Celso; Galeno; Imperador
17

Juliano) atestam que a vida dos cristãos era, para a ambiente pagão, uma pregação
eloquente, e que o exemplo deles obtinha muitos aderentes à Igreja. Os seus costumes, o
amor fraterno e a admirável actividade caritativa emergiam luminosamente no pano-de-
fundo obscuro de uma sociedade saturada de vícios e de aversões e de ódio. Orígenes
(C. Cels. 3, 29) declara que os cristãos, confrontados com a massa pagã, são autênticos
“astros celestes sobre a terra”. E Justino (Apol. 1, 16) atribui muitas conversões ao seu
exemplo de virtude. Ver Carta a Diogneto V e VI.
h) Um outro factor decisivo favorável ao cristianismo e fonte de muitas
conversões foi a firmeza dos cristãos nas perseguições (destas falaremos adiante) e a
heroicidade dos mártires. Tertuliano ousava afirmar, dirigindo-se aos pró-cônsules
pagãos: podeis fazer-nos a mal que quiserdes, podeis crucificar-nos, torturar-nos,
condenar-nos, aterrorizar-nos, matar-nos. Isso de nada vos servirá; antes pelo contrário,
prejudicais-vos a vós próprios pois que o sangue é semente de novos cristãos (“...semen
est sanguis christianorum” – Apol. 50).

2. Obstáculos à propagação do cristianismo


a) O primeiro deles é já do nosso conhecimento e podemos exprimi-lo usando
palavras de S. Paulo: “pregar Cristo crucificado era escândalo para os judeus e loucura
para os gentios” (1 Cor 1, 23); Ver Comby I, 37.
b) Os romanos eram tolerantes no tocante à religião dos outros povos. Até
inseriam os deuses dos povos conquistados no elenco dos seus próprios deuses.
Mas o caso dos cristãos apresentava algumas particularidades, pois que
professavam uma religião nova, monoteística e universal. (Ver Comby I, 36). Por outras
palavras, o cristianismo contava com alguns sequazes e em várias nações e diversos
povos, e além disso aspirava conquistar o mundo inteiro e eliminar todas as religiões.
Dado o estreito nexo existente entre a fé nos deuses e o Estado antigo, muitos
acreditaram que o cristianismo ameaçava o Estado pela base. Estas preocupações
aparecem ainda mais justificadas quando os cristãos se recusam a prestar culto ao
Imperador...
Portanto, para os romanos ser cristão implicava falta de patriotismo, implicava
alta traição. Não serão precisos muitos anos para que os cristãos sejam cobertos das
maiores calúnias. Assim Marco Aurélio, Tácito e Epíteto acusam-nos de odiarem o
18

género humano; a finais do século II os cristãos são vistos como causa das calamidades
públicas, dado o desprezo a que votam as divindades da pátria. Estas calúnias não rara
levantaram contra eles a furor do povo;
c) Nem só os romanos estavam contra os cristãos. Os próprios judeus que não
tinham aderido a Cristo consideravam os seus co-nacionais como inimigos da raça e
como traidores do povo e da sua religião;
d) Por fim, os gentios que se convertiam, particularmente os provenientes dos
estratos superiores da sociedade, eram vistos como “ateus”, como “inimigos do género
humano” e sujeitavam-se a serem perseguidos ou a sofrerem o martírio.

3. Apostolado de Pedro, Paulo e João


Os Apóstolos foram os maiores impulsionadores do cristianismo. Eles são até
considerados os fundadores de várias igrejas porque:
-- ou foram os primeiros a anunciar a Palavra;
-- ou visitaram as comunidades nascentes, implantando aí a hierarquia.
Vejamos agora a acção de três deles: Pedro, Paulo e João.

3.1 O Apóstolo Pedro


Escassas são as notícias a nós chegadas relativas ao Apóstolo que Deus escolheu
como pedra basilar da Igreja.
Os Actos dos Apóstolos falam só da obra por ele realizada em Jerusalém e na
Palestina nos primeiros anos após a Ascensão do Senhor, a pregação do Pentecostes, a
cura do coxo de nascença, a prisão por duas vezes, a pregação na Samaria e Judeia.
Mas os Actos não nos dizem para onde foi Pedro depois de ter fugido da prisão
onde Agripa o mandara meter. Daí que algumas dúvidas se levantem a propósito da vida
do primeiro dos Apóstolos. E daí que alguns dos dados que vamos apresentar sejam
apenas hipóteses prováveis, não certezas apodíticas.
Na Tradição Pedro é apresentado como fundador do episcopado em Antioquia.
Este facto dá a alguns autores a certeza de que Pedro esteve em Antioquia (cf.
LEBRETON e ZEILLER, El nacimiento de la Iglesia, in FLICHE-MARTIN, Historia
de la Iglesia I, Valencia s.d., 219) e dá a outros a hipótese de que lá tenha estado (cf.
BIHLMEYER-TUECHLE, Storia della Chiesa I – L’Antichità Cristiana, Brescia 1985,
19

76).
Poderá reter-se como certo que Pedro visitou a Galácia, o Ponto, a Bitínia, a
Capadócia e a Ásia. Aos fieis destas províncias dirige o Apóstolo a sua primeira
Epístola.
Da menção de um partido de Cefa em Corinto (1 Cor 1, 12) pode deduzir-se que
Pedro por lá terá estado algum tempo.
Finalmente, Pedro esteve em Roma. Nisso a Tradição é concorde. Não sabemos
em concreto os passos que deu até chegar a Roma, nem a data exacta da sua chegada,
havendo quem a coloque no ano 42 (cf. LEBRETON e ZEILLER, op., cit., 225.
Também Eusébio aponta esse ano).
Segundo una tradição em voga no quarto século e posteriores (nascida com o
autor do catálogo dos papas – S. Jerónimo) Pedro habitou em Roma durante 25 anos.
Também Eusébio aponta tal número (Pedro teria entrado em Roma no ano 42 e falecido
no ano 67). Estes depoimentos, porém, se por um lado nos dão a perceber que o príncipe
dos Apóstolos permaneceu em Roma muito tempo, por outro não se conjugam com
outros dados históricos irrefutáveis: é que a perseguição de Nero, que vitimou Pedro,
produziu-se no ano 64. Além disso, e como pode deduzir-se das viagens petrinas, que
atrás elencamos, Pedro não esteve sempre em Roma...
Da permanência de Pedro em Roma pouco mais se conhece que o seu martírio.
Este ter-se-á dado por crucifixão, e a texto mais antigo a confirmá-lo é o Evangelho de
S. João (21, 18), escrito depois da morte de Pedro.
A expressão “estender as mãos” é usada par alguns autores clássicos (cf. Plauto)
para significar a suplício da crucifixão.
A Tradição do martírio por crucifixão vem explicitamente no Martyrium Petri do
terceiro século, divulgado por Tertuliano e Orígenes.
O lugar de sepultura de Pedro foi o Vaticano; no fim do segundo século o padre
romano Gaio falava do “troféu” (monumento celebrativo) de Pedro sobre esta colina.
Nas proximidades Nero tinha, como afirma Tácita, martirizado os cristãos no
circo que se sabe ter existido na zona vaticana, junto da actual Basílica de S. Pedro. Não
é, portanto, impossível que os cristãos tivessem recolhido os ossos do Apóstolo e os
tivessem sepultado na vizinha colina, em humilde túmulo. Esse lugar, como as recentes
escavações comprovaram, era destinado a lugar de sepultura para gente humilde.
20

Ver Comby I, 17; ver História do Cristianismo, 60-61.

3.2. O Apóstolo dos “gentios” – Paulo


Da vida e actividade missionária de Paulo temos bastantes notícias, que nos são
fornecidas sobretudo pelo livro dos Actos e pelas cartas paulinas. Apenas alguns anos
(do 61 ao 67) estão menos documentados, já que o relato dos Actos termina
exactamente com a primeira vinda de Paulo ao tribunal romano, no ano 61.
A S. Paulo se atribuem três grandes viagens apostólicas, a primeira realizada antes
do Concílio de Jerusalém, as outras posteriores ao concílio.
Analisemos cada uma delas:
a) PRIMEIRA VIAGEM (primavera de 45 a primavera de 48)
Teve o seu início (aliás coma as outras duas) na capital da Síria, isto é, em
Antioquia e marca o começo do ministério de Paulo.
Os Actos descrevem-nos as circunstâncias da partida: Paulo e Barnabé embarcam
no porto de Antioquia, passam a Selêucia e dirigem-se à Ilha de Chipre, iniciando os
seus trabalhos na cidade de Salamina.
Evangelizaram depois as cidades de Perge a Atalia, na Panfília, a de Antioquia na
Pisídia, as de Icónio, Listra e Derbe na Licaónia. Portanto, a viagem ficou circunscrita à
Ásia Menor (cf. mapa seguinte).
Em qualquer uma das cidades Paulo e Barnabé dirigem a palavra a todos. Pregam
nas sinagogas (cf. Act 13, 5; 13, 14; 14, 1) ao Sábado. Apresentam-se como membros
de uma seita Judaica. Mas os ouvintes nem sempre são apenas os judeus ou os
convertidas ao judaísmo. São também os pagãos. Em Antioquia da Pisídia, por exemplo,
os pagãos vêm ouvi-los à sinagoga (Act 13, 44), o que provoca a inveja dos judeus; o
mesmo sucede em Icónio (Act 14, 1).
Como reação à pregação, os judeus que não se convertem criam acaloradas
discussões no decurso das quais os missionários são expulsos, às vezes maltratados.
Porém, nem todos reagem assim à pregação apostólica; Paulo e Barnabé
encontram, no geral, corações dóceis. Surgem, então nas cidades por eles evangelizadas,
pequenas igrejas ou comunidades. Para as governarem são eleitos “presbíteros”, que
exercem o seu ministério sob a vigilância de Paulo.
O acolhimento à mensagem evangélica foi mais favorável entre os pagãos que
21

entre os judeus. Isto representa um facto novo, que é fundamental para Paulo. Na
verdade, a partir deste momento, ele começa a elaborar a teologia da rejeição dos judeus
e da conversão dos pagãos.
Aos gentios que se convertem Paulo não impõe a circuncisão, nem a observância
de outras prescrições rituais judaicas. Esse um dos motivos que justifica a contínua e
calorosa oposição de tantos judeus; esse é também um dos motivos da realização do
Concílio de Jerusalém onde a questão foi dirimida a nível da Igreja. Dizemos “a nível da
Igreja”, pois que muitos judeus não ficaram nada convencidos de que a solução
encontrada era a melhor. Pelo contrário, procuraram fanaticamente destruir Paulo e
afastar dele as “suas” igrejas...

b) SEGUNDA VIAGEM
Esta viagem, iniciada a princípio do ano 50, é de extrema importância, pois
assinala a entrada de Paulo na Europa.
Como companheiro de Paulo encontramos agora Silas. Depois de terem passado
por Tarso (cidade natal de Paulo) dirigem-se às comunidades de Licaonia (Derbe e
Listra).
Em Derbe juntara-se-lhes Timóteo, partindo depois os três para Icónio e
Antioquia da Pisídia.
Partindo desta última cidade, Paulo vai à conquista de novos mundos. Atravessa a
Galácia, a Frígia e a Mísia (aqui ao grupo dos três alia-se um quarto, Lucas).
Os Actos nada nos dizem acerca do acolhimento que Paulo e companheiros (Silas
e Timóteo) receberam na Galácia. Mas a carta paulina aos Gálatas faz-nos supôr um
acolhimento cordial, embora pouco depois essa comunidade se tenha deixado seduzir
pelo judaísmo.
Atravessada a Frígia e a Mísia, Paulo e companheiros dirigem-se para a
Macedónia, empurrados pela visão relatada em Act 16, 9. Fizeram uma primeira
“escala” em Filipos. A primícia da pregação aos filipenses foi Lídia, comerciante de
púrpura, que se fez baptizar a ela e a toda a família, e recebeu os missionários em sua
casa. Surgiu assim o primeiro núcleo da igreja de Filipos.
De Filipos, os missionários dirigem-se para Tessalónica. Paulo começa a
frequentar a sinagoga, e durante três sábados consecutivos prega o Cristo morto e
22

ressuscitado (cf. Act 17, 2-3). Muitos gregos e mulheres mais nobres acreditam,
enquanto os judeus, “cheios de inveja” (Act 17, 5) põem a cidade em alvoroço. Paulo e
seus companheiros fogem para Bereia. Aqui há novas conversões, e novos ataques dos
judeus. Paulo foge para Atenas deixando em Bereia os seus companheiros de viagem.
Indignado com a idolatria ateniense, com os epicúreos e estoicos, Paulo começa a
pregar Cristo. Ávidos de novidades, epicúreos e estoicos escutam com interesse o
“estrangeiro”. Alguns, com certo desprezo, perguntam: “que pretende este charlatão
dizer-nos?”. Outros, ao ouvi-lo falar de Jesus e de ressurreição observam: “este anuncia
deuses estrangeiros”. Uns e outros atraídos pelo fascínio do exótico conduzem Paulo ao
areópago. Aqui o Apóstolo profere o discurso que vem registado em Act 17, 22-31 (e
que é de leitura obrigatória).
Foram escassos os frutos do trabalho de Paulo em Atenas. Algumas almas
confiaram-se a ele, mas não suficientes para fundar uma Igreja. Os cultos atenienses,
enfeudados na sua sabedoria, riem-se do Apóstolo... Depois destes acontecimentos
Paulo desloca-se a Corinto, cidade cosmopolita e um dos principais centros do comércio
mediterrâneo. Muitos coríntios levavam uma vida licenciosa, num caos moral que iria
dar não poucas dores de cabeça a Paulo.
Apenas chegado a Corinto, une-se a Áquila e Priscila que tinham vindo de Roma,
e que trabalhavam na fabricação de tendas. Com eles trabalhou e viveu, discutindo
todos os sábados na sinagoga e convencendo judeus e gregos.
Quando Silas e Timóteo, que tinham ficado na Macedónia (mais precisamente na
Bereia) se vieram reunir a ele aqui em Corinto, Paulo redobrou a sua actividade.
Aumentaram os êxitos da sua missão e também a oposição dos judeus. Paulo
permanece em Corinto ano e meio (início de 51 a verão de 52), ensinando (sobretudo
aos gentios) a Palavra do Senhor.
Depois retorna a Antioquia passando por Jerusalém.

c) TERCEIRA VIAGEM
Na Primavera do ano 53, Paulo empreende outra viagem. Depois de uma visita à
comunidade da Galácia e da Frígia (confirmando na fé todos os discípulos), dirige-se a
Éfeso, onde começa por pregar nas sinagogas, e depois numa escola (de Tirano); a
pregação prolonga-se por dois anos. De Éfeso escreve a carta aos Gálatas e a primeira
23

aos Coríntios. Com esta primeira carta aos Coríntios não consegue pôr ordem naquela
cidade. Paulo decide-se, no verão de 55, a ir lá pessoalmente.
Foi um fracasso.
Retorna a Éfeso; volta a escrever aos Coríntios (2 Cor) e manda-lhes a carta por
Tito (talvez com intenção secreta de saber o efeito que a carta produziria).
Paulo tinha então intenções de continuar a sua obra em Éfeso até à festa do
Pentecostes do ano 56, porque em Abril e Maio, as grandes festas de Artemisa (deusa da
fertilidade) atrairiam à cidade muitos peregrinos. Deste modo, essa ocasião poderia
proporcionar uma mais rápida difusão do Evangelho.
A festa realizou-se, mas foi ocasião para um motim que pôs em perigo a vida de
Paulo. Um ourives, de nome Demétrio, queixou-se que o seu comércio era ameaçado
pelo Apóstolo, pois que este pregava em toda a parte que os deuses feitos por mãos
humanas não eram deuses. Demétrio conseguiu sublevar os ourives e estes puseram a
cidade em alvoroço. Uma vez mais Paulo teve que se esquivar.
Apesar dos desgostos sofridas em Corinto e Éfeso, Paulo não desanima. Dirige-se
a Troade, e daí à Macedónia. A fins de 57 está em Corinto, onde escreve a carta aos
romanos.
Inicia-se então a viagem de regresso a Jerusalém: de Corinto a Filipos, de Filipos
a Troade, de Troade (por mar e fazendo escala em Mileto para onde convoca uma
reunião dos presbíteros de Éfeso aos quais dirige um “discurso de despedida” – Act 20,
17-36) a Tiro e de Tiro a Jerusalém, onde chega no dia de Pentecostes do ano 58.
Chegado a Jerusalém, Paulo vai a casa de S. Tiago, onde se encontravam reunidos
os anciãos. Paulo contou então os êxitos que obtivera no seu apostolado entre os
gentios. S. Tiago e os anciãos, por sua vez, informam Paulo das acusações que os judeus
lhe fazem: desviar os pagãos da circuncisão e dos costumes judaicos (Act 21, 21).
Aconselharam-no a fazer publicamente um acto de lealdade ao judaismo. Paulo vai,
portanto, ao Templo.
Judeus vindos da Ásia reconhecem Paulo e levantam um grande tumulto. Acusam
injustamente o Apóstolo de ter profanado o Templo, introduzindo nele um pagão (um
tal Trófimo de Éfeso). O tumulto originou a detenção de Paulo pelas tropas romanas,
sob as ordens do tribuno Lisia.
Este tribuno, que não entende o aramaico, não entende nada do que se está a
24

passar e pensa açoitar Paulo. Porém Paulo, dirigindo-se ao centurião encarregado de


levar a cabo o castigo, diz: “É-vos permitido açoitar um cidadão romano antes de
condená-lo?”. O tribuno, atemorizado, afasta Paulo do meio da multidão e, no dia
seguinte, fá-lo comparecer ao Sinédrio. O Apóstolo, aproveitando o ódio existente entre
fariseus e saduceus, enfrenta-os. A discussão torna-se violenta, a sessão foi
interrompida.
Lisia decide-se então a mandar o acusado a Cesareia. Paulo ficou assim
encarcerado e à mercê do procurador Félix durante dois anos.
No ano 59 Félix é substituído por Festo. Os judeus pedem-lhe que mande Paulo a
Jerusalém. Mas Paulo volta a apelar a César. Festo manda-o então a Roma, onde o
Apóstolo chega na primavera da ano 61. Fica prisioneiro por mais dois anos, não na
prisão pública mas numa casa alugada onde Paulo acolhia todos os que iam ter com ele
pregando o reino de Deus (Act 28, 30-31).
Junto ao prisioneiro estavam alguns amigos fiéis, entre os quais Lucas. E do
cativeiro escreve Paulo as cartas aos Colossenses, aos Efésios, aos Filipenses.
Em 63, Paulo é de novo um homem livre. Reata as suas viagens apostólicas, como
atestam as cartas a Timóteo e Tito. Terá visitado as cristandades por ele fundadas na
Ásia e Macedónia, tentando prover à sua sucessão. Pensa-se igualmente que terá vindo à
Península Ibérica.5
Com a perseguição de Nero, Paulo acaba por retornar à prisão, e por sofrer o
martírio, decorria a ano 67. A sua tomba encontra-se na magnífica Basílica de S. Paulo
“fuori mura” de Roma; como lugar de execução indica-se um lugar não longínquo da
Basílica, onde existe hoje a abadia dos Trapistas.
Ver História do Cristianismo, 62-63.

3.3. Apóstolo S. João – (Cf. José Orlandis, 29-21)


Chamo a atenção para o seguinte:
-- Nem todos os autores concordam com esta afirmação do Orlandis: “João parece
que permaneceu largo tempo na Palestina”. Assim,
a) Danielou–Marrou (Nuova Storia della Chiesa I) afirmam: a seguir ao Concílio

5
O Cânone Muratoriano fala de uma “profectio Pauli ab urbe ad Spaniam proficiscentis”; S. Clemente de
Roma, na sua Carta aos Coríntios fala que o Apóstolo chegou como arauto do Evangelho até aos limites
extremos do Ocidente.
25

perdemos as pegadas de João “até ao momento do seu exílio em Patmos, sob


Domiciano”;
b) Bihlmeyer–Tuechle (Storia della Chiesa I) referem: “já no segundo século uma
óptima tradição afirma que mais tarde (a partir de ano 60) o Apóstolo João operou como
“Sumo Sacerdote” em Éfeso, nomeando bispos na Ásia Menor e fundando
comunidades...”. Portanto, para conciliarmos a opinião destes autores com a do nosso
teremos que admitir que dez anos são um largo tempo...
c) Fliche–Martin põe a pergunta (Historia de la Iglesia I): quando é que João se
transferiu para a Ásia? – E respondem: “é impossível sabê-lo”.
-- Igualmente simplista nos parece esta outra afirmação do nosso autor (que aliás é
partilhada por Bihlmeyer – Tuechle): “no tempo de Domiciano (81-96) o Apóstolo foi
perseguido e sofreu desterro na Ilha de Patmos. Durante esta época João escreveu o
quarto Evangelho, suas três epístolas e o Apocalipse”.
Ainda hoje a questão do autor dos escritos joaninos não encontrou uma solução
universalmente aceite; ainda hoje se duvida que o Evangelho e o Apocalipse, nas suas
formas actuais, sejam do mesmo autor. O que parece poder admitir-se é que esses
escritos datam de finais do século I e que terão nascido nas comunidades cristãs da costa
ocidental da Ásia Menor. Nesta região e neste tempo, o Apóstolo João era uma figura de
destaque, de modo que os escritos que levam o seu nome procedem também do seu
espírito, mas provavelmente receberam da mão dos seus discípulos a forma definitiva.
4. Regiões evangelizadas até ao século IV
-- Maior expansão dá-se nas cidades: Cristianismo = fenómeno prevalentemente
urbano.

a) No Oriente
-- No Oriente romano dois grandes focos de irradiação: a Síria e a Ásia Menor.
-- Século II aparece novo centro de irradiação: Edessa (capital do pequeno estado
de Osrohene). Escapam-nos as circunstâncias em que se deu a evangelização desta
cidade. A tradição recolhida por Eusébio, que põe o rei Abgar em correspondência com
Jesus e faz evangelizar o país pelo Apóstolo Tomás e pelo discípulo Tadeu (Addai)
apresenta todo o aspecto de lenda...
-- Século III a Arménia romana adere ao cristianismo. Tal facto é confirmado pela
26

carta que a essa região enviou o bispo Dionísio de Alexandria, por ocasião do cisma de
Novaciano.
-- Desde o século II reconhecem-se historicamente bispos em Alexandria e esta
cidade parece já ter naquele tempo uma numerosa população cristã. Em Alexandria
funcionou uma famosa escola catequética, na qual ensinaram homens ilustres como
Orígenes e Dionísio, o Grande.
-- Século IV: cristianismo chega à Mesopotâmia,6 introduz-se na Pérsia7; será que
também chegou à India?.8

b) No Ocidente
-- Em Itália:
Tácito (Anais XV, 44) diz-nos que já na perseguição de Nero se registou em Roma
uma “multitudo ingens” de mártires cristãos.
Quando Paulo vem a Roma na ano 61 e desembarca em Pozzuoli muitos cristãos
vão-lhe ao encontro...
O Papa Cornélio (+258) fala de um número imenso de cristãos romanos, guiados
por 46 presbíteros, 7 diáconos e perto de 100 clérigos menores, com 1500 viúvas e
orfãos confiados aos seus cuidados.
As sedes episcopais de Cápua e Nápoles são muito antigas, havendo até quem as
date de fins do século I.
A sede de Milão deverá datar-se de meados do século II; e do mesmo tempo, se
não ainda anterior, é a sede de Ravena.
Do século III serão as sedes de Aquileia, Pádua, Verona...

-- Na Gália:
As notícias mais seguras sobre a Gália encontramo-las no século II. Sob o
Imperador Marco Aurélio (169-179), em Lyon e em Vienne encontramos comunidades
florescentes, formadas em grande parte por gregos, os quais durante a perseguição

6
Por volta do ano 260 o bispo Dionísio de Alexandria supõe que lá existe uma Igreja organizada e
Eusébio diz-nos que a perseguição de Diocleciano fez mártires nesta região.
7
O rei persa Shapur I (241-272) durante as suas campanhas de guerra arrastava consigo para a Pérsia
muitos prisioneiros cristãos da Síria.
8
É provável que o Evangelho tenha lá chegado, via Edessa. Ainda no início do nosso século havia quem
ligasse a evangelização da Índia ao Apóstolo Tomás (cf. DAHLNAN, J., Dio Thomaslegende, 1912 e
VATH, A., Der hl, Thomas, der Apostel Indiens, 1915). Tal ligação, porém, parece-nos hipótese remota...
27

tiveram muito que sofrer; o bispo de Lyon, Ireneu, pregou também aos celtas.
Várias sedes episcopais surgiram no segundo e em parte no terceiro século:
Marselha, Arles, Vienne, Orange, Paris, Reims...

-- Na Germânia:
S. Ireneu (Adv. Haer. I, 10, 2) fala-nos de Igrejas “in Germaniis” (= Germânia
inferior e superior, sobre a margem esquerda do Reno). Entre as dioceses mais antigas
contam-se as de Treviri, Colónia, Maguncia (ou Magonza).

-- Na África:
Centro principal: Cartago, que recebeu o cristianismo no século II. Natural de
Cartago era Tertuliano, o qual nos diz (Adv. Scap. 2) que a população das cidades era
constituída por um maioria de cristãos.
No século III uma das grandes figuras desta Igreja africana foi S. Cipriano, que
refere (cf. Ep. 59, 10), que por volta do n. 240, um herético foi condenado por noventa
bispos.

Na Hispânia:
Vários autores admitem a hipótese de o cristianismo ter chegado à Hispânia por
intermédio de S. Paulo (cf. FLICHE–MARTIN e BIHLMEYER–TUECHLE).
Admitindo essa hipótese, o certo é que nada sabemos das consequências dessa missão
paulina...
Ireneu (Adv. Haer I, 10, 2) e Tertuliano (Adv. Jud. I, 7) são os primeiros a falar de
igrejas nesta região.
Notícias mais precisas encontramos por meados do século III, quando Cipriano
(Ep, 67) escreve às Igrejas de Leão, Astorga e Mérida e acena à de Saragoça (na altura
chamada Caesaraugusto).
As cartas do Concílio de Elvira (cerca de 305) falam de numerosas comunidades
cristãs.
Conclusão: ler último parágrafo da p. 25 do Orlandis.
28

4a. Regiões evangelizadas até ao século IV (sistematização mais completa)

a) No Oriente Romano
Dois grandes focos de irradação: Síria e Ásia Menor

1. SÍRIA
-- recordem-se, no séc. I,
* viagens de Paulo
* aparecimento do nome “cristãos”
-- no séc. II, está já fortemente penetrada de cristianismo
-- progressos da evangelização continuam certamente no séc. III
-- pelas assinaturas do Concílio de Niceia (ano 325) possui nessa altura pelo
menos 22 bispos; entre eles figuram os corepiscopoi = bispos rurais: sinal de que o
cristianismo já chegara aos campos

2. ÁSIA MENOR
-- em muitas cidades pregou S. Paulo, talvez também S. João, antes de finais do
séc. I
-- é uma das regiões do império onde Cristo mais foi pregado
-- Paulo funda a Igreja de Éfeso, que João terá governado
-- o Diácono Filipe estabelece-se nas Igrejas de Tróade, Laodiceia, Gerápolis
-- o Apocalipse é dirigido às Igrejas de Esmirna, Pérgamo, Sardes, Filadelfia,
Tiatira, Éfeso e Laodiceia
-- as cartas de S.to Inácio (+/- ano 100) falam das Igrejas de Trala e Magnésia
-- Paulo leva o cristianismo
* à Pisida (Icónio, Antioquia, Listra, Derbe)
* à Galácía
* à Frígia (cf. comunidade de Colossos)
-- a Bitínia, nas costas do Mar Negro, é alcançada ainda no séc. I
-- a cidade de Sínope, no séc. II, tem já bispo: o pai do futuro hereje Marcião
-- na região do Ponto existem muitos cristãos já no tempo de Marco Aurélio (séc.
29

II)
-- a Capadócia tem cristandades desde o séc. II

3. PENÍNSULA HELÉNICA E ILÍRIA (ILIRIUM)


-- Paulo e Barnabé pregam na ilha de Chipre (anos 44-45)
-- Macedónia (Filipos, Tessalónica, Bereia, Atenas, Corinto... ) e Grécia (Acaya)
evangelizam-se nos começos da pregação cristã, através de Paulo e Tito (= apóstolo de
Creta)
-- no séc. II é certo existirem igrejas na Trácia, Tessalia, Lacedemonia, Cefalonia
-- também a finais do séc. II o cristianismo chega a Bizâncio
-- Paulo ter-se-á deslocado aos confins da Ilíria (+/- Albânia)
-- Tito terá chegado à Dalmácia (= parte da Croácia, Bósnia-Herzegovina e
Montenegro => região a SO dos Balcãs, junto ao Adriático)

4. EGIPTO
-- terá recebido a semente cristã no tempo apostólico
-- a tradição atribui a fundação de Alexandria a S. Marcos
-- desde o séc. II conhecem-se historicamente bispos de Alexandria
-- aí funcionou uma famosa escola catequética (cf. Orígenes...)
-- no séc. II, perseguição de Septímio Severo faz aí (e em Tebaida) muitos
mártires
-- 50 lugares do Egipto – Cirenaica incluída – contam com comunidades cristãs
antes de Niceia e mais de 40 possuíam sedes episcopais
-- da Cirenaica é o Cireneu que ajudou Jesus. Muitos cireneus estão presentes no
Pentecostes
-- na 2ª metade do séc. III têm bispo próprio as cidades de Cirene, Berenice,
Arsinoe e Sosuza

5. PALESTINA, FENÍCIA, ARÁBIA


-- a Palestina é o berço do cristianismo
-- no séc. II existem cristandades em Cesareia, Tiro, Jafa, Gaza...
-- a Arábia já tem cristianismo no séc. II (Orígenes visita-a no tempo de Caracala,
30

por volta de 214)

6. ARMÉNIA ROMANA
-- bispo Dionísio de Alexandria (meados séc. III) dirige aos cristãos armenos,
governados pelo bispo Mansurio, uma carta sobre a penitência

b) No Ocidente Romano

1. PENÍNSULA ITÁLICA
-- tempo de Nero cristianismo tem já raízes profundas em Roma
-- ao vir para Roma, Paulo é acolhido em Pozzuoli por alguns cristãos
-- ainda no séc. I existe cristianismo em Herculano e Pompeia (cidades soterradas
na catástrofe de 79)
-- no séc. II já existirão as sedes de Milão e Ravena
-- no séc. III aparecem Aquileia, Verona, Brescia, Pádua
-- antigas são também, havendo quem as date do séc. I, as dioceses de Cápua e
Nápoles
2. GÁLIA
-- há quem diga que Paulo aportou em Marselha ou Norbona... lenda?!
-- séc. II: grande esforço evangelizador com S.to Ireneu de Lião
-- no mesmo séc. II – tempo de Marco Aurélio – aparecem os mártires de Lião e
Vienne (também Marselha?!)
-- do séc. III serão as sedes de Marselha (?), Arles, Orange, Paris, Reims,
Soissons, Chalôns, Bourges, Boudeus...

3. GERMÂNIA
-- S.to Ireneu fala da Igreja “in Germaniis” (= inferior e superior, sobre a margem
esquerda do Reno)
-- entre as dioceses mais antigas: Treveri, Colónia, Magonza

4. HISPÂNIA
-- vários autores falam em Paulo (Fliche-Martin; Bihlmeyer-Tuechle...) mas nada
31

sabemos dessa possível missão paulina


-- de excluir a tradição espanhola da evangelização por S. Tiago, o Maior (dado
que foi martirizado em Jerusalém antes da dispersão dos Apóstolos)
-- Ireneu e Tertuliano são os primeiros a falar de igrejas nesta região
-- notícias precisas aparecem no séc. III, quando Cipriano escreve às igrejas de
Leão, Astorga e Mérida e acena à de Saragoça
-- as cartas do Concílio de Elvira (cerca de 305) falam de numerosas comunidades
cristãs

5. BRETANHA
-- terá sido tocada pela evangelização no séc II
-- no séc. III Orígenes fala dela como região que conhece a fé cristã
-- ainda no séc. III, a perseguição de Dioclesiano faz lá vítimas (S.to Albano, em
Verulano e outras vítimas em Caerleon)
-- no Concílio de Arles (314) estão presentes três bispos: de Londres, de York e de
Lincoln

6. ÁFRICA
-- ver sebenta p. 33.
-- ver Fliche-Martin I, 289
-- ver ib., II, 191 -193

c) A evangelização fora do império romano

1. OSROHENE OU EDESSA (pequeno estado independente, entre confins do


império romano do Oriente e território persa)
-- ver sebenta p. 32

2. PÉRSIA (ou Irão)


-- tradição de pregação por parte de Bartolomeu, Tadeu e Tomé não tem
fundamento sólido
-- nos Actos (Pentecostes) fala-se em Partos, Medos, Elamitas, e habitantes da
32

Mesopotâmia
-- faltando pégadas sólidas, admite-se que a Pérsia tenha conhecido o cristianismo
a finais do séc. I ou inícios do II
-- grande expansão do evangelho a partir do séc. III
-- ver Fliche-Martin II, 195

3. GEÓRGIA
4. ARMÉNIA NÃO ROMANA
5. ÍNDIA
(ver Fliche-Martin II, 196)

Mapas em:
-- Atlas Bíblico Geográfico-Histórico
-- História do Cristianismo, 64-65

Sobre este tema: “Regiões evangelizadas até ao século IV”, ver FLICHE–
MARTIN, Historia de la Iglesia:
I, El nacimiento de la Iglesia , 283-291;
II, La Iglesia en la penumbra, 181-197.
33

CAPÍTULO III – A IGREJA E O IMPÉRIO ROMANO


A história do cristianismo considera este período como o tempo dos mártires. Foi,
de facto, um tempo em que muitos tiveram que pagar a sua adesão a Cristo com o
martírio.
Neste contexto temos que colocar-nos a questão: porquê tanta agressividade
contra os cristãos? Que terão estes feito para chamarem a si tanto ódio? Que motivos
justificam as perseguições de que foram vítimas?

Causas das perseguições


Genericamente falando, parecem não serem os cristãos os culpados da violência
que a muitos vitimou. Na verdade, eles apresentam-se como respeitadores do poder
temporal, como obedientes ao poder civil constituído. Aliás, foram essas as instruções
que receberam de Cristo e dos Apóstolos:
-- Cristo mandara dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César;
-- S. Pedro (1 Pd 2, 17) exortou os cristãos a temerem a Deus e honrarem o rei;
-- S. Paulo alertara para a origem divina do poder considerava obrigação de
consciência obedecer à autoridade pública.

Para percebermos as causas das perseguições temos, pois, que procurar outros
motivos. E esses motivos (continuamos a falar em termos genéricos) são os seguintes:
a) Exclusivismo dos cristãos: só o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob é que é
Deus. Ele é o a único Deus;
b) Intransigência em relação a qualquer outro culto ou religião. Os romanos
inserem no seu elenco de deuses as divindades dos povos conquistados e admitem até a
existência de deuses desconhecidos; e essas muitas divindades que compõem o
Pantheon romano recebem culto. Os cristãos, porém, não aceitam isso e recusam-se a
prestar culto aos deuses “fabricados pelas mãos dos homens”;
c) Pretensão de universalidade (cf. o que sobre isto dissemos anteriormente);
d) O cristianismo – como pôs em relevo M. Sordi – apresenta-se como uma
novidade, como qualquer coisa que se opunha e rompia com a tradição. Ora sendo
recente, ele não tinha “credenciais” suficientes para ser tomado em consideração,
34

enquanto a religião popular e as filosofias antigas, independentemente das suas verdades


intrínsecas, eram dignas de respeito, já que constituiam a tradição greco-romana; Ver
Comby I, 36.
e) Polémica dos intelectuais, ódio e desprezo por parte das esferas dirigentes
conservadoras, violências e tumultos por parte de populares concorrem a criar um clima
de intolerância (sobretudo nos séculos II e III). Os cristãos começam a ser vistos como
criminosos, como “inimigos do género humano”;
f) O ódio dos judeus também pesou muito em algumas perseguições
(particularmente na primeira: Pompeia, mulher de Nero, era favorável aos judeus. Por
intermédio dela os judeus podiam influenciar o imperador...).

PERSEGUIÇÕES DO SÉCULO I

a) Perseguição de Nero
A perseguição de Nero relaciona-se com o incêndio de Roma, ocorrido no ano 64.
Por isso vamos referir-nos primeiro ao incêndio e depois à perseguição, vendo depois as
conexões entre uma e outra.
O incêndio começou na noite de 18 para 19 de Julho. Durou 6 dias e 7 noites. Das
14 regiões em que Augusto tinha dividido Roma, 3 foram destruídas e 7 seriamente
danificadas.
Todas as fontes que relatam o acontecimento consideram Nero o autor do
incêndio. Nenhuma culpa dos cristãos. E o povo tinha consciência da inocência dos
cristãos. Sabendo disto, Nero (como Pilatos) quis lavar as mãos e lançar as culpas sobre
os seguidores de Cristo.
Ouçamos Tácito (Anais XV, 44): “...nenhuma obra humana, nenhuma
generosidade do príncipe ou cerimónia expiatória conseguiu destruir a infâmia de que o
incêndio tinha sido ordenado. Portanto Nero, para cortar o falatório, inventou réus e
castigou com refinadas penas aqueles que, já odiosos pelas seus ritos nefandos, o vulgo
chamara cristãos”.
Do depoimento de Tácito colhemos dois elementos:
1. houve uma perseguição;
2. as penas foram “refinadas”.
35

Ver Comby I, 42.


Quanto à perseguição, certamente que ela não se registou logo após o incêndio:
antes de mais era necessário cuidar dos sinistrados e Nero não se teria apresentado ao
povo (que o via como responsável do incêndio) logo após o desastre. A perseguição não
se terá, pois, registado antes de Outubro.
Diz-nos Tácito que (acusados não tanto de incêndio como de ódio ao género
humano) os primeiros a serem submetidos a julgamento foram os que confessaram
responsabilidades no sinistro; depois, partindo dos indícios recolhidos nos
interrogatórios ou sob denúncia de gente “comprada”, uma grande multidão acabou
também por ser julgada e condenada.

Uma vez que os cristãos foram colectivamente acusados do incêndio, bastava que
alguém se declarasse cristão para “ter direito” a ser condenado.
A execução das refinadas penas deu-se no Outono do ano 64, inícios de 65. Teve
lugar nos jardins de Nero. Foi feita em modo cruel, mas ao mesmo tempo teatral. Três
géneros de suplícios:
-- Venatio = os cristãos eram revestidos de peles de feras para que os cães os
dilacerassem;
-- Crucifixio = pregados ou atados na cruz;
-- Tunica molesta = queimados vivos para iluminarem as trevas noturnas.

Relativamente ao número de vítimas, Tácito fala de “ingens multitudo”; Clemente


de Roma fala em “magna electorum multitudo”. É difícil traduzir em números precisos
estas expressões. Seguramente que as vítimas não foram mais de mil; e poderão só ter
sido 200 ou 300.

Convém ainda ter em conta que esta perseguição foi excepcional, provavelmente
confinada aos cristãos de Roma. E convém referir que a perseguição neroniana não se
esgota no episódio violento que até aqui estivemos a narrar. Ela ter-se-á prolongado de
forma não tão intensa mas mais sistemática, nos anos sucessivos. Ver Daniel-Rops I,
154-155.
36

Há quem aceite a existência de um “institutum neronianum”, isto é, de um Edicto


de prescrição do cristianismo, que ficou a vigorar por alguns anos e que considerava o
cristianismo superstitio nova, malefica, exitiabilis (=detestável). Em abono de tal
hipótese podem aduzir-se os depoimentos de Tertuliano (Ad nationes I, 7, 14: “et tamen
permansit evasis omnibus hoc solum institutum neronianum”) e de Sulpício Severo
(Chronica II, 29, 3: “Post etiam datis legibus religio vetabatur, palanque edictis
propositis christianum esse non licebat”). Se admitirmos a existência deste “institutum
neronianum” teremos que aceitar que Nero não foi apenas o primeiro perseguidor dos
cristãos, mas também o emanador do fundamento jurídico das perseguições e o pioneiro
das tentativas “oficiais” de destruição do cristianismo.

b) Perseguição de Domiciano
Alguns estudiosos recentes puseram em dúvida a existência desta perseguição.
Porém, os argumentos por eles apresentados baseiam-se mais na fantasia que na
realidade (cf. MONACHINO, V., Le persecuzioni nell’impero romano e la polemica
pagano-cristiana, Roma 1980, 36ss). De facto, muitas são as fontes que nos atestam a
existência de tal perseguição. Assim,
-- Clemente de Roma começa a sua carta aos Coríntios escrevendo: “...e isto por
causa das imprevistas calamidades que se sucederam e das tribulações que nos tocaram
em sorte”;
-- Algumas passagens do Apocalipse falam de tribulações que os cristãos sofreram
ou irão sofrer (cf. 1, 9 onde João se refere à sua deportação para Patmos; cf. 2, 3 onde se
fala de ter sofrido pelo nome de cristão; cf. 2, 9 onde se fala de tribulações e se alude às
blasfémias daqueles que se dizem judeus mas que não são mais que “sinagoga de
Satanás”; cf. 2, 13 onde se volta a referir a fidelidade ao nome de cristão como causa de
tribulações).

Estas passagens que referimos põe-nos em contacto com uma perseguição naquele
tempo existente. Os cristãos são perseguidos por causa do seu “nome”. Talvez os judeus
tivessem contribuído na perseguição: pelo menos é isso que insinua a denúncia
“Sinagoga de Satanás”.
Um outro testemunho valioso acerca desta perseguição de Domiciano é-nos dado
37

por Eusébio. Referindo-se a Domiciano, Eusébio diz-nos que ele “...acabou por mostrar-
se o verdadeiro sucessor de Nero no ódio e na guerra contra Deus” (HE III, 17).

Importante é também o testemunho de Dione Cassio (Storia romana LXVIII, 14):


“No mesmo ano Domiciano mandou à morte, juntamente com muitos outros, Flávio
Clemente, embora este fosse seu primo e se tivesse casado com Flávia Domitila,
também ela sua parente: acusou-os de impiedade para com os deuses (ateísmo); com
esta causa foram condenados muitos outros que seguiam os costumes judaicos: uns
foram mortos, outros privados de qualquer direito. Domitila foi apenas desterrada na
Ilha Pandetari. Foi morto Glabrio...”.

Resumindo:
a) Motivos de condenação:
-- ateísmo ou “impiedade para com os deuses”;
-- pertencer ao cristianismo ou ter o nome de cristão.
b) Extensão da perseguição:
-- Roma;
-- Províncias da Ásia.
c) Mártires:
-- Glabrio ou Glabrião;
-- Flavio Clemente;
-- Flavia Domitila;
-- Muitos outros.
Ver Daniel-Rops I, 163-165.

PERSEGUIÇÕES NO SÉCULO II

Domiciano morreu (assassinado) no ano 96. Sucedeu-lhe Nerva, homem tolerante:


imediatamente revogou as condenações por “impiedade” e chamou os que tinham sido
exilados.
Esta tolerância de Nerva não durou muito tempo; ele foi imperador apenas durante
dois anos (96-98) e o seu sucessor Trajano não lhe seguiu as pisadas (98-117).
38

O reatar das perseguições tem a ver com uma carta que Plínio, ao ser elevado ao
cargo de Governador provincial da Bitínia, dirigiu a Trajano. A carta de Plínio e o
rescrito de Trajano são os primeiros documentos oficiais entre o Estado Romano e os
cristãos que chegaram até nós.

1. No tempo de Trajano
A carta de Plínio, o jovem, a Trajano
Data de 112 ou 113. E diz o seguinte (a tradução é minha; o texto original - em
latim - encontra-se em A., MANARESI, L’Impero Romano e il Cristianesimo, Turim
1914, 107-108):

“É meu costume, senhor, referir-te todos os assuntos sobre os quais tenho dúvidas.
Na verdade, quem pode, melhor do que tu, resolver a minha incerteza ou iluminar a
minha ignorância? Nunca estive presente em processos feitos contra os cristãos, e por
isso ignoro em que é que e até que ponto devo castigá-los ou interrogá-los. Senti
também incerteza se seria de admitir qualquer descriminação por causa da idade e se as
crianças, uma vez que são ainda débeis, devem ser tratadas como os mais robustos; se se
deve perdoar a quem se arrepende, ou se a quem foi cristão nada ajude o facto de não
continuar a sê-lo; se se deve punir quem ostenta o nome de cristão, ainda que não tenha
cometido delitos, ou se se devem punir os delitos independentemente da ostentação
daquele nome. Entretanto, em relação àqueles que me foram denunciados como cristãos,
agi deste modo. Interroguei-os se eram cristãos; se confessassem que sim, fazia-lhes
duas ou três vezes a mesma pergunta ameaçando-os de castigo; se persistiam,
condenava-os. (...) Foi-me proposto um opúsculo anónimo contendo os nomes de
muitos, os quais negaram depois serem ou terem sido cristãos, uma vez que, seguindo o
meu exemplo, invocaram os deuses, ofereceram vinho e incenso à tua imagem (...) e
além disso maldisseram a Cristo (...).
(...) Recorri ao teu conselho, porque isto pareceu-me digno de consulta dado o
grande número de acusados, uma vez que muitos, de todas as idades, de todas as
classes, de ambos os sexos são e serão chamados a juízo. Não só pela cidade mas
também pelas aldeias e os campos se difundiu a contágio desta superstição, a qual
parece poder ser travada ou corrigida. Certo, já se vê que os templos recomeçam a ser
39

frequentados, antes quase desertos; recomeçam a celebrar-se os solenes sacrifícios,


durante longo tempo omitidos e a vender-se por toda a parte as vítimas das quais até
agora raros eram os compradores (...)”. Ver. Comby I, 44.

A carta de Plínio permite-nos algumas conclusões:


-- o cristianismo difundira-se muito, quer pelas cidades, quer pelas aldeias e
campos; os seus adeptos eram gente de todas as idades, de todas as classes sociais e de
ambos os sexos;
-- a propagação do cristianismo tivera como efeito a decadência do culto pagão: os
templos eram pouco frequentados, os sacrifícios solenes omitidos, as carnes das vítimas
pouco compradas;
-- a situação do cristianismo não mudou: continua a ser uma religio illicita, uma
superstitio prava et immodica (corrupta e extravagante); seus sequazes estão sujeitos a
serem denunciados e punidos com a pena capital, e isto pelo simples facto de serem
cristãos. E alguns acabaram mesmo por serem “sacrificados”;
-- muitos negaram serem ou terem sido cristãos e demostraram isso oferecendo
sacrifícios.

O rescrito de Trajano
Rescrito = espécie de constituição imperial; não é uma lei, mas interpretação
autêntica de uma lei já existente.

A carta de Plínio obteve resposta pronta de Trajano. Contrariamente à carta, a


resposta é breve. Vamos transcrevê-la (traduzindo):
“Procedeste como devias, ò meu segundo, no examinar as causas daqueles que te
foram denunciados como cristãos. Uma vez que não é possível estabelecer uma norma
universal e (direi quase) invariável: não se devem procurar os cristãos, mas se são
acusados e se mostram convencidos, é necessário puni-los, de modo porém que se
algum nega ser cristão e o demonstra com factos, isto é, adorando os nossos deuses,
embora suspeito pelo passado, por causa do seu arrependimento obtenha o perdão. Em
relação aos opúsculos anónimos, estes não devem ser aceites (...) (cf. Manaresi, o., c.,
109).
40

Algumas conclusões se podem tirar da carta de Trajano:


1. Ele, no geral, aprova aquilo que Plínio realizou, admitindo, porém, a
inexistência de uma “norma universal”;
2. Estabelece alguns critérios:
2.1. O Estado romano não deve ir à procura dos cristãos, apesar de não tolerar
oficialmente o cristianismo.
2.2. Os órgãos estatais devem intervir quando alguém é denunciado como cristão,
e acertada judicialmente a verdade da denúncia deve proceder-se à condenação
(independentemente de idades, sexo ou condição social).
2.3. Devem ser absolvidos os que renegam Deus e retornam ao culto dos deuses.

Entre as vítimas de Trajano merecem particular menção Inácio de Antioquia e


Simeão, bispo de Antioquia.

2. No tempo de Adriano (117-138)


O rescrito de Trajano comportava, embora na sua intencional ambiguidade,
vantagens para os cristãos, a principal das quais era eles não serem procurados por
iniciativa dos órgãos governativos, mas só depois de denunciados por alguém. Porém, a
transferência da iniciativa para os privados podia ser habitualmente aproveitada pelos
agitadores, os quais, após levantarem tumultos, podiam não somente denunciar mas
também requerer a condenação do cristão. E isto parece ter sucedido com frequência,
sobretudo na Ásia.

Alguns magistrados não concordavam com esta concessão feita aos privados.
Entre eles, o próprio pró-consul da Ásia, Licínio Graniano. Este escreveu ao imperador
Adriano dizendo-lhe não considerar justo que se cedesse aos gritos da praça para
condenar inocentes.

Respondendo à questão que lhe fora colocada, Adriano mandou um rescrito (que
foi recebido e endereçado não já a Graniano mas sim no seu sucessor, Minucio
Fundano). Eis o texto do rescrito:
41

“Recebi as cartas que me foram endereçadas pelo teu predecessor Graniano,


homem nobilíssimo. Não me pareceu oportuna deixar passar inobservada uma tal coisa,
a fim que os homens não sejam molestados e não se deixe aos caluniadores livre curso
para qualquer delito. Se, portanto, os provinciais entendem persistir nesta sua petição
contra os cristãos, de modo a sustentá-la mesmo diante do tribunal, só a este devem
dirigir-se, porém não com petições ou simples algazarras. É de facto muito melhor que
se alguém quer denunciar outros se institua um regular processo; e se portanto algum
faz a sua acusa e consegue provar que os acusados fazem alguma coisa contra as leis,
então tu pune conforme a gravidade do delito. E se depois, por Hércules, algum toma
este pretexto para caluniar, tu decide segundo a gravidade e pune doverosamente”
(EUSÉBIO, HE IV, 9).

Não nos é possível fixar com segurança a data deste rescrito. Mas a sua datação
deverá colocar-se pelos anos 125-126.
Quanto ao conteúdo do rescrito ele diz-nos o seguinte:
1. Também para Adriano, como já para Trajano, os cristãos são passíveis de
condenação;
2. Adriano não se opõe a que os provinciais acusem os cristãos, porém exige que a
acusa seja feita por meio de uma petição, que deve ser apresentada ao tribunal para que
se proceda a um regular processo;
3. Quem toma a iniciativa de acusar os cristãos deve demonstrar que eles
cometeram qualquer coisa contra as leis. Isto provado, o juíz deve punir conforme a
gravidade do delito;
4. O juíz não deve permitir o acesso aos caluniadores, e se descobre que alguém
agitou para caluniar deve puni-lo severamente.

Nem sempre as disposições de Adriano foram observadas e nem todos as


interpretaram do mesmo modo. É verdade que no tempo de Adriano não existem
martírios historicamente documentados mas não se pode excluir a hipótese de que se
tenham verificado. Numa coisa, porém, houve progresso é que agora o processo de
condenação tem que desenvolver-se com regularidade, a prova está a cargo do acusador
e o juíz não deve ceder a petições ou agitadores populares.
42

3. No tempo de Antonino Pio (138-161)


Antonino Pio era filho (por adopção) de Adriano e sucedeu-lhe no trono durante
as anos 138-161.
A política religiosa de Antonino foi substancialmente a mesma de seu pai
Adriano: não se admitiam acusações feitas no meio de tumultos; admitiam-se as
apresentadas em processo regular.9

4. No tempo de Marco Aurélio (161-178)


Durante o reinado de Marco Aurélio os cristãos atravessaram a sua pior fase em
todo o século II. E isto não somente por causa do imperador, mas também por um
conjunto de circunstâncias, das quais destacamos duas:
a) Aparecimento do montanismo. O montanismo apareceu nos últimos anos do
reinado de Antonino Pio. Era um movimento entusiástico e fanático, de exagerado rigor
ascético. Os montanistas pretendiam substituir a hierarquia ordinária pelos espirituais (=
homens cheios do espírito); pretendiam instaurar o reino do Paráclito, desprezando a
organização social e o Estado.10
A Igreja condenou este movimento. Mas os órgãos estatais não souberam
distinguir montanismo/igreja oficial. Consequentemente, os cristãos foram considerados
opositores políticos e indivíduos socialmente suspeitos por se oporem ao Estado e à
sociedade em geral.

b) Aparecimento de calamidades naturais e guerras. Muitas províncias do


império foram infortunadas por calamidades naturais (terramotos e pestes) e o próprio
império começava a ser ameaçado pelos bárbaros.
Havia um certo mal-estar que exasperava o povo. Os cristãos começam a ser
culpabilizados por esse mal-estar, além do mais porque não participam nas cerimónias
expiatórias que se realizam em muitos sítios para contentar e acalmar os deuses...

No reinado de Marco Aurélio devemos distinguir dois períodos de perseguição:

9
Isto em linha de máxima. Houve, no entanto, excepções - caso de S. Policarpo de Esmirna, que foi
vítima de um tumulto e não de um processo regular.
10
Sobre a montanismo falaremos em pormenor mais tarde.
43

-- Primeiro Período: por volta do ano 167. O império atravessa dificuldades e


sofre calamidades: ataque de Oderzo e de Aquileia, por parte dos germânicos; soldados
de Lúcio Vero retornam da expedição pártica trazendo a peste; espalha-se a fome... Para
aplacar os deuses ordenam-se sacrifícios e ritos expiatórios nos quais os cristãos não
tomam parte...
-- Segundo Período: por volta do ano 174-178. A perseguição atinge o cume no
ano 177, na Gália (cidade de Lyon) onde foram martirizados cerca de 50 cristãos.
Ver Comby I, 45; ver Daniel-Rops I, 180-183, martírio de Sta. Cecília.

5. No Tempo de Commodo (176 ou 180-192)


A situação dos cristãos melhorou sob o filho de Marco Aurélio, Commodo, que
sucedeu ao pai em Março de 180 e que estava já associado ao império desde 176.
Eusébio, na sua História Eclesiástica e colocando-se na situação de cristão,
escreve: “No tempo em que reinava Commodo, a nossa condição mudou para melhor, e
por divino favor a paz estendeu-se a todas as Igrejas da Urbe” (V, 21, 1).
O testemunho de Eusébio, porém, peca por optimismo. As suas palavras podem
entender-se no sentido de que não existiu nenhuma verdadeira iniciativa persecutória
por parte de Commodo; mas em várias partes da Igreja não faltaram repressões
sanguinosas: em Julho de 180 foram condenados em Cartago 12 (o nosso autor fala
apenas em 6) cristãos de Scillium (ver Daniel-Rops I, 184ss), na Numídia; no 184-185
o pró-consul da Ásia Arrio Antonino perseguiu cruelmente os cristãos; no 185 deu-se
em Roma o processo de condenação de Apolónio, que muito provavelmente era
senador; antes de 190 alguns cristãos foram condenados a “trabalhos forçados” nas
minas da Sardenha.

Características comuns das perseguições do século II


Tentando apresentar uma síntese das características comuns das perseguições do
século II parecem-nos ser estes os pontos a reter:
1. A religião cristã é legalmente condenada;
2. Não se registam perseguições gerais (como acontecerá no século seguinte), mas
a perseguição está sempre latente, chegando mesmo a rebentar aqui e acolá de modo
violento;
44

3. O Estado não vai por sua iniciativa à procura dos cristãos; mas aceita
denúncias, feitas conforme à lei, por parte dos cidadãos privados. Quando alguém, em
processo regular, é acusado perante o juíz, este começa por convidar o cristão à
apostasia. Se o cristão não cede, sofre a pena capital;
4. Geralmente os magistrados inclinam-se mais para a absolvição que para a
condenação;
5. Apesar do previsto na legislação, o ódio popular e os tumultos continuaram a
fazer as suas vítimas. Para corrigir e travar tais exasperações foram editados rescriptos,
que nem sempre foram eficazes (cf. caso de Policarpo de Esmirna e dos 50 cristãos de
Lyon).

PERSEGUIÇÕES: FINS DO SÉCULO II A MEADOS DO TERCEIRO

Entre o aparecimento de Septímio Severo (em 193) e o fim do reinado de


Maximino, o Trácio, em 238, os cristãos gozaram, no geral, de um clima de paz.

a) Septímio Severo (193-211)


Dum modo geral, Septímio Severo não se mostrou hostil aos cristãos; pode
mesmo dizer-se que se lhes mostrou favorável. Assim, por Tertuliano sabemos que
confiou o seu filho Caracala a uma ama cristã; que interveio em favor de eminentes
personagens conhecidas como cristãos para defendê-los com a própria autoridade das
acusações dos populares...

Conhecidos estes dados, difícil se torna explicar a perseguição desencadeada pelo


mesmo Septímio Severo nos anos 202-203, altura que se registou aquela que alguns
historiadores chamam a perseguição dos catecúmenos.

Eusébio começa o livro VI da sua História Eclesiástica referindo-se a esta


perseguição. Escreve ele: “Quando o próprio Severo suscitou as perseguições contra as
igrejas, luziam por toda a parte os testemunhos dados pelos atletas da religião; mas o
maior número desses atletas de Deus apareceu em Alexandria, onde de todo o Egipto e
de Tebaide foram conduzidos como para um amplíssimo estádio e onde receberam de
45

Deus as suas coroas depois de terem sofrido com enorme coragem os diferentes
tormentos e toda a espécie de morte” (VI, 1).

Particular centro de perseguição foi a escola catequética de Alexandria: o seu


chefe, Clemente, salvou-se porque fugiu, enquanto Leonida, pai de Orígenes, sofreu o
martírio. O próprio Orígenes viu-se ameaçado quando tentou reconstruir a escola
dispersa, tendo sido nessa altura condenados muitos dos neo-convertidos por ele
instruídos.
Ver Comby I, 46; Sebenta de Patrologia, 35-36.

Também nas províncias africanas estalou a perseguição. Os mártires mais célebres


são os que hoje veneramos como sendo Sta. Felicidade e Sta. Perpétua.11

Um problema importante que temos agora que levantar é este: como justificar esta
perseguição dos anos 202-203 que parece contrastar com o comportamento do
imperador nos anos anteriores?

A resposta mais plausível é esta: a perseguição de 202-203 foi o desembocar da


precedente exasperação contra os cristãos. Estes recusavam-se participar nas cerimónias
religiosas organizadas como comemoração dos 10 anos de “reinado” de Septímio...

Sob os sucessores de Septímio Severo a política religiosa inspirou-se num critério


sincretista, tendente a conduzir o politeísmo romano ao culto de um Deus Supremo do
qual os outros deuses não seriam senão símbolos ou aspectos. Viveu-se, pois, um novo
clima de paz, que viria a ser brevemente interrompido (anos 235-238) por Maximino o
Trácio.

b) Maximino o Trácio (235-238)


Sob este imperador regista-se a perseguição do clero, assim chamada porque no
dizer de Eusébio ela se dirigiu ao clero superior.

11
Sobre elas existe uma obra, cujo autor provável é Tertuliano e que se intitula Passione delle SS.
Perpetua e Felicità. Um extracto dessa obra aparece em G. LAZZATI, Gli sviluppi della litteratura sui
martiri nei primi quattro secoli (Turim 1956) 177-189.
46

Sabe-se que Maximino começou por expulsar do seu palácio imperial os cristãos
nele residentes; e sabe-se que na Capadócia e Ponto a perseguição foi sanguinária e
causou muitas execuções.

c) Filipe o árabe (244-249)


Durante o reinado de Filipe o árabe o cristianismo gozou não só de tolerância
como até de simpatia. Este imperador ou era cristão, como parece deduzir-se de duas
passagens de Eusébio (HE VI, 34; VII, 10, 3) e como afirma S. Jerónimo (De vir. Ill.
54), ou pelo menos simpatizante e benévolo para os cristãos.

Tal simpatia pelo cristianismo e um certo desinteresse pela religião tradicional


causaram-lhe aversão por parte da aristocracia senatorial (ainda aderente na sua quase
totalidade à religião tradicional), e causaram-lhe aversão por parte das multidões pagãs.
A reacção à sua pessoa haveria de estender-se também a quem ele nutria simpatia...12

Quando se alterou o vértice do império e Filipe foi substituído por Décio, quase
todos esperavam que o novo imperador fizesse rebentar nova perseguição, tal era o
clima de hostilidade e oposição contra a política tolerante e até benévola de Filipe.

PERSEGUIÇÕES: MEADOS SÉCULO III A INÍCIO SÉCULO IV

Perseguição de Décio (249-251)


Décio reinou apenas dois anos. Proclamado imperador eu Junho de 249 derrota
Filipe na batalha de Verona, tendo este último, nessa batalha, encontrado a morte.
Dando crédito ao ditado “quem com ferros mata com ferros morre”, faleceu em 251
quando lutava contra os godos.

Na origem da perseguição por ele desencadeada está um seu edicto, que não se
sabe exactamente quando foi promulgado. O que se sabe é que o maior número de

12
Assim se explica que o fim do seu reinado (ano 249) tenham encontrado a morte Apolónia, o velho
47

mártires cristãos se registou no ano 250, pelo que o edicto não pode ser senão de 249 ou
primeiros meses de 250.

O Edicto de Décio impunha, não só aos cristãos reconhecidos como tais ou aos
suspeitos de o serem, como a todos os habitantes do império a participação nos
sacrifícios que se iriam realizar em honra dos deuses oficiais. Esses sacrifícios
constituíam uma solene supplicatio aos deuses para que protegessem o Estado. Quem
não sacrificasse teria pelo menos que queimar uns grãos de incenso diante das imagens
dos deuses...

O cumprimento de tal obrigação (imposta indistintamente a todos os súbditos)


devia ser comprovado através da apresentação do libelo que a “comissão dos
sacrifícios” dava a quem os fizesse.

Na intenção do legislador, o edicto visava essencialmente os cristãos; porém,


obrigando todos ao solene acto de culto pagão, o imperador aparecia menos odioso aos
olhos dos cristãos (não eram eles os únicos a terem que sacrificar...) e, por outro lado,
obtinha uma declaração da religião que cada um professava.

Se os cristãos obedecessem ao determinado no edicto, apostatavam a própria fé; se


não o fizessem, o imperador ficava a saber concretamente contra quem devia proceder,
pois que só quem se recusava a sacrificar é que era verdadeiro cristão.

O Edicto não devia vigorar por muito tempo, mas apenas até que todos tivessem
tido possibilidade de sacrificar. Estabelecia-se, pois, um tempo limite para a execução
do sacrifício. Terminado o prazo (e salvo circunstâncias especiais previstas – v.g. casa
de doença...), infligiam-se as penas, que poderiam ir desde a tortura ao exílio e à
execução...

Colhidos de surpresa, atemorizados pelas penas anunciadas, tomados pelo pânico,


alguns cristãos uniram-se aos pagãos e cumpriram a Edicto. Conhecêmo-los por lapsi.

Serapião...
48

Neste grupo se incluem os:


-- sacrificati, os que executaram o sacrifício propriamente dito;
-- thurificati, isto é, os que só ofereceram uns grãos de incenso no altar;
-- libelatici, isto é, os que escreveram o nome no catálogo dos adoradores,
receberam o libelo embora na realidade não tenham sacrificado.

Contudo, nem todos apostataram. Muitos mantiveram-se fiéis e ou morreram sem


terem renunciado à sua fé (mártires) ou sofreram tormentos embora não tenham morrido
(confessores). Ver Daniel-Rops I, 361-362.

Perseguição de Valeriano (253-260)


Nos primeiros anos do seu reinado (253-257) Valeriano foi tolerante e até
benévolo para com o cristianismo. O testemunho de Dionísio de Alexandria na sua carta
a Ermanone é explícito a este propósito: “Valeriano antes da perseguição foi doce e
benévolo contra os homens de Deus. Nenhum dos imperadores precedentes, nem sequer
aqueles que publicamente eram considerados cristãos, foram tão benévolos e cordiais
com eles. No início do seu principado ele acolhia-os com amizade e benevolência, e a
sua casa estava cheia de homens pios, era uma Igreja de Deus” (in Eusébio, HE VII, 10,
3).

Esta disposição favorável do imperador em relação aos cristãos e este estado de


paz geral para a Igreja durou até ao verão de 257, altura em que ele deu início a uma
perseguição original, que não tomou como objecto o singular cristão, mas a Igreja na
sua estrutura hierárquica e na sua organização de vida associada e o laicado cristão nos
seus membros mais representativos: indício de que o cristianismo se ia impondo aos
olhos dos órgãos estatais como instituição hierarquicamente organizada, com um clero
distribuído em vários graus.

Para entendermos esta mudança de comportamento em Valeriano convém


recordarmos:
1. O cristianismo, apesar de tudo, continua a ser condenado por lei;
2. O império vive uma situação desastrosa: atacado no Oriente pelos persas,
49

violado nas suas fronteiras Ocidentais pelas contínuas invasões dos bárbaros, aflito
interinamente por epidemias atribuídas à ira dos deuses e por carências econômicas (que
poderiam ser minimizadas através do confisco de bens a essa Igreja que aos poucos
tinha enriquecido...).

Na perseguição de Valeriano podemos distinguir dois momentos, coincidentes


com dois edictos: o de 257 e o de 258.

O Edicto de 257 determinava o exílio de bispos, padres e diáconos que não


sacrificassem aos deuses. Este Edicto teve pouco sucesso pois não obteve a desejada
acefalia: outros bispos, padres e diáconos que conseguiram escapar ao controlo
“policial” mantiveram a celebração do culto...

O Edicto de 258 desencadeou uma perseguição cruenta. Ele determinava que


bispos, padres e diáconos que se recusassem a sacrificar aos deuses deviam ser
imediatamente mortos; que os senadores, as personalidades eminentes e os membros da
ordem equestre (= cavaleiros) que fossem cristãos deviam ser privados das suas
dignidades e bens, e se depois disto continuassem a confessar-se cristãos, condenados à
morte.
Este último Edicto, felizmente, não foi aplicado com o rigor que Valeriano
pretendia, além do mais porque a muitos governadores e magistrados repugnavam
medidas repressivas tão pesadas e de tão vasto alcance.

Os cristãos, graças à recente experiência de fraqueza na perseguição de Décio,


mostraram-se desta vez mais decididos e corajosos na profissão da sua fé,
acompanhando os seus bispos ao lugar de execução e recolhendo como relíquia a seu
sangue, e isto diante da polícia e dos algozes.

Mártires mais ilustres desta perseguição foram:


-- em Roma, o Papa Sisto II;
-- em Cartago, o bispo Cipriano;13 Ver Comby I, 48.

13
Da paixão de S. Cipriano possuimos o verbal do interrogatório e a sentença – cf. MONACHINO, Le
50

-- em Tarragona, o bispo Frutuoso. Ver Daniel-Rops I, 376.

A perseguição terminou no ano 260, com a subida ao poder de Galieno, filho de


Valeriano. Galieno emitiu um Edicto de tolerância, no qual além de suspender as
medidas repressivas contra os cristãos ordenava a restituição a estes últimos das Igrejas
e lugares de culto que lhe tinham sido confiscados.

Perseguição de Dioclesiano
Terminada a perseguição de Valeriano, a Igreja gozou de um clima de paz durante
mais de 40 anos. Foi tempo suficiente para que a Igreja se consolidasse, e até para que
criasse simpatia em muitas autoridades estatais.

Esta nova situação possibilitou, entre outras coisas, que:


-- o culto não se desenrolasse em casas privadas, mas em locais a ele destinados,
às vezes espaçosos e belos;
-- os bispos, em muitas regiões, estivessem em boas relações com as autoridades
governamentais, mantendo com elas frequentes contactos;
-- em muitos lugares os cristãos exercessem funções públicas. E isto chegou a
acontecer na própria corte imperial de Dioclesiano, no início do seu reinado. Nessa
altura ele via com bons alhos os cristãos, confiava-lhes tarefas de responsabilidade e,
em sinal de benevolência, dispensava-os da obrigação de participarem nas cerimónias
do culto pagão. Lactâncio (De mort. Persecut. XVI, 1) parece até insinuar que a mulher
de Dioclesiano (de nome Prisca) e a filha (chamada Valéria) eram ou cristãs ou
catecúmenas, ou pelo menos simpatizantes do cristianismo.

Se tal era a situação, se eram boas as disposições de Dioclesiano em relação ao


cristianismo, como justificar o aparecimento de uma perseguição tão longa e cruel,
movida por parte de Dioclesiano?

persecuzioni nll’imperio romano... (Roma 1980) 127. Ver Comby I, 48.


51

a) Reformas
Dioclesiano quer acabar com a longa crise que abalou durante todo o terceiro
século o império romano. Ele sabia que essa crise se devia essencialmente a dois
factores: um externo (contínua pressão dos bárbaros nas fronteiras do império) e outro
interno (frequentes usurpações do poder imperial por parte dos comandantes de legiões
ou de governadores que eram aclamados imperadores pelos soldados).

Intuindo que só um imperador não bastava para conter e rebater os inimigos


externos, nem para impedir as rebeliões internas contra o legítimo soberano, resolveu-se
(ano 286) a escolher um colega com o título de César, para com ele governar o império.
A escolha recaiu em Maximiano, que ficou encarregado da parte Ocidental,
especialmente da Gália.

Dioclesiano reúne-se com Maximiano em Milão no ano 289. Nesta reunião ele
exprime a sua concepção religiosa, acrescentando ao seu nome o título de Jovius (=
participante da divindade de Júpiter) e ao de Maximiano o de Herculius (= protegido de
Hércules, que era filho de Júpiter).

Estes novos títulos são deveras significativos: significam que o poder imperial se
coloca em directa conexão com a divindade, isto é, o poder vem da divindade e o
imperador é mais que humano (= participa do sobre-humano). Designar Maximiano
com Herculius é dizer-lhe que ele (tal como Hércules é filho de Júpiter) está
subordinado a Dioclesiano.

Em 293, Maximiano recebe o título de Augusto, e dois outros oficiais (Galério e


Constanço Cloro recebem o título de Césares). Fica assim estabelecida a tetrarquia, ou
seja, o colégio dos quatro governantes, no qual não só os dois césares ocupam posição
subordinada relativamente aos augustos, como, embora possuindo o mesmo título,
Maximiano se subordina a Dioclesiano.
52

Esquematizando:
Dioclesiano (Jovius) = Augusto
Maximiano (Herculius) = Augusto
Constanço Cloro = César
Galério = César

A concepção religiosa de Dioclesiano, a necessidade de unir internamente o


império para o proteger quer dos usurpadores quer dos invasores, a nomeação de
Galério (inimigo acérrimo dos cristãos) como César, são alguns dos factores que
explicam o reaparecimento das perseguições.

b) Perseguição
Nela se podem distinguir duas fases:
1ª Fase: afastamento dos cristãos do exército e do palácio imperial. Não se sabe ao
certo quando tal afastamento se verificou; muito provavelmente terá ocorrido entre os
anos 298-300.14
Processou-se sem derramamento de sangue, por vontade expressa de Dioclesiano.
A maior parte dos cristãos permaneceu fiel à sua fé, pelo que foi despedida. Os oficiais
cristãos do exército perderam os graus que tinham (gradus dejectio), os simples
soldados foram despedidos ignominiosamente (ignominiosa missio).
Note-se, entretanto, que no próprio palácio de Dioclesiano esta medida repressiva
para os cristãos só foi aplicada parcialmente, tanto que quando apareceu o primeiro
edicto de 303 ainda viviam no palácio imperial notórios cristãos.
É igualmente de supor que Galério (inimigo dos cristãos) e Maximiano (homem
rude) tenham aplicado essa medida repressiva com mais firmeza, e que Constanço Cloro
a tenha aplicado de um modo muito ameno.
Assim estiveram as coisas até 303...

2ª Fase: edictos de perseguição. Pelo que nos diz Lactâncio no seu De mort.
persecut. Cap. X-XI, no inverno entre 302-303, Dioclesiano e Galério encontraram-se
para conversarem sobre os assuntos mais importantes do Estado. Naturalmente que o

14
J. MOREAU, in Sourc. Chret. 39, II, 263 e 266 diz que terá ocorrido entre os anos 299-300; SORDI, Il
53

“assunto” cristianismo também foi abordado, propondo Galério o extermínio dos


cristãos e mostrando-se Dioclesiano pouco disposto à crueldade.
Uma vez que Dioclesiano, com os seus argumentos, não conseguiu amansar a
fúria de Galério, resolveu convocar para uma reunião (conselho) alguns altos
funcionários civis e militares.
Os convocados foram interrogados e alguns que detestavam os cristãos retiveram
que era necessário exterminar os inimigos dos deuses. Outros, que eram de opinião
diversa, tendo compreendido qual era a vontade de César, que por temor, que por desejo
de lhe agradarem deram também eles e seu consentimento.
Mas nem isto conseguiu levar o principal Augusto à violência: decidiu antes
consultar os deuses e enviou um arúspice15 a Mileto para consultar Apolo. O deus
pronunciou-se em desfavor dos cristãos... Surgem, então, os edictos de perseguição.

Primeiro Edicto: data de 23 de Fevereiro de 303. Ordenava a destruição dos


lugares de culto e que fossem queimados os livros sagrados. Os cristãos eram privados
de todos os direitos civis.
A este edicto se deve a perda de tantas bibliotecas e de tantos arquivos, entre eles
o particularmente rico da Igreja romana...

Segundo edicto: data de Abril de 303. Deram-lhe origem alguns distúrbios


surgidos em Mitilene e na Síria. Os cristãos foram responsabilizados por esses
distúrbios.
Eis, a este propósito, a descrição de Eusébio (HE VIII, 6, 8-9): “Quando pouco
depois alguns da região chamada Mitilene e outros da Síria tentaram apoderar-se do
império, foi promulgado um edicto imperial que ordenava de encarcerar e acorrentar por
toda a parte os chefes das igrejas. E o espectáculo do que então aconteceu supera
qualquer descrição: inumeráveis pessoas foram por toda a parte encarceradas; os
cárceres de todos os lugares, antes preparados para os assassinos e violadores de
sepulcros, foram agora preenchidos por bispos, padres, diáconos, leitores e exorcistas,
de tal modo que deixou de haver lugar para aqueles que eram condenados pelos seus
delitos”.

cristianesimo e Roma, in Storia di Roma XIX (Bolonha 1965) 336-338 fala do ano 297.
54

Terceiro edicto: data, também ele, de 303, e terá sido promulgado antes do
inverno desse ano.
Exigia aos clérigos encarcerados que sacrificassem aos deusess: os que
sacrificassem seriam postos em liberdade; os que não sacrificassem seriam torturados
ou sofreriam até o martírio.

Quarto edicto: promulgado em Março de 304, ordenava que em todos os lugares


todos fossem obrigados a oferecerem publicamente sacrifícios aos deuses.
Com ele se abriu uma perseguição geral. Este edicto foi executado com extrema
decisão e pode afirmar-se que correram rios de sangue.

A perseguição foi muito cruel nas províncias sob a administração de Dioclesiano


(Ásia Menor, Síria, Palestina, Egipto), nas de Galério (Trácia, Ilírica) e nas de
Maximiano (Itália, Espanha e África). Pelo contrário foi branda nas de Constanço Cloro
(Britânia e Gália).
Balanço final da perseguição ver ORLANDIS, p. 42-43; Daniel Rops I, 393.

15
Arúspice = sacerdote que faz prognósticos após análise das entranhas das vítimas.
55

CAPITULO IV – ORGANIZAÇÃO E VIDA DA IGREJA PRIMITIVA

Esquema da matéria a estudar:

1. Organização

CLÉRIGOS MAIORES:
-- o Papa (Pedro e seus sucessores)
-- os bispos e presbíteros (1)16
- confusão terminológica
- dois tipos de comunidades
- eleição dos bispos
-- os diáconos

CLÉRIGOS MENORES:
-- subdiácono
-- acólito
-- exorcista
-- leitor
-- hostiário

FIÉIS:
-- confessores
-- viúvas, virgens, ascetas
-- carismáticos
-- simples cristãos
-- lapsi / traditores

2. Vida
a) Iniciação cristã: catecumenado (audientes e competentes ou electi) e baptismo17
b) Eucaristia18

16
Ver sobre isto artigo fotocopiado e inserido nestes apontamentos.
56

c) Justiça nos litígios entre cristãos (da “arbitragem” ao Bispo Juíz)


d) Excomunhão e penitência pública
e) Questão dos lapsi
f) Os cemitérios19

1. Igrejas locais na idade apostólica

A expansão da Igreja foi semeando de cristandade o mapa do mundo antigo. Estas


igrejas que aqui e acolá iam surgindo sentiam-se unidas por um duplo vínculo: o da fé e
o da caridade.

O facto de essas igrejas viverem rodeadas de paganismo favorece um forte sentido


de ligação à igreja universal.

Desde o princípio, quando o colégio dos Doze ainda se encontrava em Jerusálem,


a fundação de novas igrejas ia acompanhada da instituição da sua própria hierarquia. E
normalmente essa hierarquia era constituida pelo colégio dos prebíteros e anciãos.

Ao colégio dos presbiteros e anciãos eram confiadas as funções litúrgicas e de


governo da comunidade.
Não quer isto dizer que logo desde muito cedo não tenham existido igrejas
“comandadas” por um poder “monárquico” casos de Jerusalém (Apóstolo S. Tiago) e de
Roma (Pedro). Mas a maior parte das igrejas do século I, entre elas a da Antioquia e as
de fundação paulina, não tinham um episcopado monárquico regularmente establecido
antes um colégio de anciãos constituia a hierarquia local, submetido ao Apóstolo
fundador da igreja e àqueles que o acompanhavam (hierarquia itinerante).
Os membros deste colégio são designados por “presbíteros” ou “episcopos”.

17
Acrescentar ao Orlandis o que dizemos nas p. 67-68.
18
Acrescentar ao Orlandis o que dizemos nas p. 68-69.
19
Ver nestes apontamentos p. 70.
57

2. Generalização do episcopado monárquico

Acentuou-se à medida que foram desaparecendo os Apóstolos.


A ele se chegou mercê de duas necessidades: a de encontrar alguém que
representasse a comunidade nas relações com as outras comunidades e a de defender a
unidade perante tendências centrífugas, cismáticas ou heréticas.

A evolução da colegialidade do poder para a monarquia não se completou ao


mesmo tempo em todas as igrejas. Mas pode afirmar-se com certeza que a princípios do
século II, quando S.to Inácio de Antioquia escrevia as suas epístolas, que o episcopado
monárquico se encontrava já largamente difundido na Igreja. Desde o século II,
portanto, as cristandades tiveram à sua frente um bispo, que era o chefe da Igreja local,
detinha a plenitude do poder da Ordem (sem compartilhá-la com os membros do
presbitério) e como sucessor dos Apóstolos gozava das prerrogativas necessárias para o
governo da comunidade.

Uma vez que o bispo era o pastor da sua igreja, não é de estranhar que a selecção
da pessoa que haveria de desempenhar o episcopado intersasse vivamente a toda a
comunidade.

A designação do bispo dava-se por eleição e intervinha a comunidade respectiva,


isto é, o clero e o povo. Eram sobretudo funções do clero e povo atestar sobre a
idoniedade do candidato para o apresentar. Participação decisiva iriam também ter os
bispos de outras igrejas vizinhas, aos quais competia, além do mais, outorgar aos eleitos
a consagração episcopal.
Mais dados sobre as nomeações episcopais nos primórdios da Igreja podem ler-se
em: ABREU, José Paulo, As nomeações episcopais nos primórdios da Igreja, in
Humanistica e Teológica VII (Set.-Dez. 1986), 3, 283-303.

3. O primado romano

As comunidades locais nunca se consideraram auto-suficientes ou separadas.


58

Sentiam-se sempre parte integrante da igreja universal. Enquanto permaneceram


reunidos em Jerusalém, Pedro e os outros apóstolos detinham a suprema direcção da
Igreja. Logo que Pedro se deslocou para Roma, após a sua passagem por Antioquia, a
Igreja romana tornou-se o centro da unidade da Igreja universal. E os sucessores de
Pedro foram também seus sucessores no exercício do primado.

Este primado romano é reconhecido tanto no Oriente cono no Ocidente. Temos


disso alguns testemunhos. Assim, por exemplo, S.to Inácio de Antioquia, a caminho do
martírio, escreveu à Igreja de Roma “que preside na capital do território dos romanos” e
esta, além disso, “colocada à cabeça da caridade”. E S.to Ireneu de Lião fala da Igreja de
Roma como sendo “a maior, a mais antiga e melhor conhecida, fundada e establecida
pelos gloriosíssimos apóstolos Pedro e Paulo” (Cfr. Folch Gomes, pp. 38-39 e 117).

Os próprios papas têm consciência do seu primado. E até não se esquivam a


resolver problemas surgidos no seio de alguma igreja local (caso de Clemente de Roma
que interferiu na Igreja de Corinto, aquando da deposição de alguns clérigos por causa
de uma discordância interna) – cfr. Folch Gomes, 17ss.

4. Estrutura das igrejas cristãs

Eram constituídas, na sua maioria, por gentes de humilde condição, mas contavam
com pessoas pertencentes à aristocracia romana.
À frente da Igreja estava o bispo como chefe único – isto, claro, a partir da
instituição do episcopado monárquico.
Presbíteros e diáconos constituíam os graus supremos do clero.
Quando cresceu o número de fiéis e nas grandes cidades resultou impossível
atender a todos num único centro, os presbíteros que antes assistiam o bispo local nas
funções litúrgicas e pastorais puseram-se à frente das diferentes igrejas ou “títulos” que
se criaram.
O número de diáconos costumava ser fixo: sete, em memória dos sete primeiros
diáconos instituídos pelos apóstolos em Jerusalém.
Além dos clérigos maiores (Bispos, presbíteros, diáconos) surgiram – para auxílio
59

dos primeiros e ao longo dos três primeiros séculos – os clérigos menores: subdiácono,
acólito, leitor, exorcista, hostiário.

Quanto aos fiéis, eles subdividiam-se em:


-- carismáticos (homens dotados de especiais dons do Espírito Santo, existentes
apenas no período apostólico), que podiam ser apóstolos, profetas, “didáscalos”;
-- confessores;
-- lapsi / traditores;
-- viúvas, virgens, ascetas;
-- simples cristãos.

A actividade fundamental do laicado cristão dos primeiros séculos foi a


participação na acção missionária da Igreja. Eles fizeram chegar a mensagem de Cristo
a todos os ambientes.

5. Iniciação cristã: catecumenado e baptismo

O mais frequente, nos tempos apostólicos, era o baptismo dos adultos (embora
também tivessem sido baptizadas crianças). Como dizia Tertuliano, nesta época “os
cristãos não nascem, fazem-se”.

O baptismo de crianças tornou-se mais frequente a partir do século II, ao


incrementar-se o número de pais cristãos; e generalizou-se a partir do século IV.

Normalmente, até ao século IV, o baptismo era precedido de um processo de


conversão do paganismo e de um período de preparação. A este período de preparação
chama-se CATECUMENADO.

O catecumenado implementou-se na Igreja a finais do século II e decaiu a partir


do V. O candidato a catecumeno tinha que ser apresentado por um cristão que o
conhecesse e fosse fiador das rectas intenções do candidato. Antes de ser admitido ao
catecumenato o candidato era submetido a um “inquérito” sobre a sua vida e costumes.
60

Variava o tempo de duração do catecumanado (3 anos em Roma, 2 em


Espanha...). Durante este tempo os catecúmenos designavam-se com o nome de
audientes. Algumas semanas antes da data marcada para o baptismo eram examinados
de novo e, superada a prova, passavam para o grupo dos competestes ou electi. Uma
preparação mais intensa preenchia essas últimas semanas, dedicadas sobretudo ao Credo
e Sacramentos de Iniciação.

Épocas normais para administração do baptismo eram as Vigílias da Páscoa e


Pentecostes, ou, em caso de necessidade, vigília de algum domingo.

Como se procedia ao baptismo?


-- Primeiro o baptizando tinha de fazer um jejum, a renúncia a Satanás, a
promessa de fidelidade a Cristo;
-- Depois, triplice imersão, ligada à invocação das três pessoas da Santíssima
Trindade (excepção feita aos doentes ou impossibilitados. Nestes casos bastava a
infusão ou aspersão...);
-- Seguiam-se alguns ritos complementares: unção com o óleo consagrado,
assinalação com o sinal da cruz, entrega da veste branca. Ver Comby I, 52-53.

Depois do baptismo a catequese continua, em jeito de homilia pascal (recorde-se


que o baptismo era administrado por altura da Páscoa...).

A propósito do baptismo surgiu no século III uma importante controvérsia.


Discutia-se: o baptismo administrado por herejes ou cismáticos é válido ou não?
Respostas:
-- Igreja africana e algumas asiáticas: re-baptizavam...;
-- Igreja romana: simples imposição das mãos;
-- Papa Estevão: baptismo válido;
-- S. Cipriano: baptismo inválido;
-- S.to Agostinho: pôs termo à questão conforme parecer de Roma.
61

6. Eucaristia

Executando o mandato do Senhor, a comunidade começou imediatamente a


praticar a celebração eucarística, em forma de banquete e como recordação-actualização
do sacrifício de Cristo.

Num primeiro período ela celebrava-se à noite, como a última ceia. Isto trazia
inconvenientes, denunciados já por S. Paulo em 1 Cor 11, 20ss. Por isso, já no início do
século II começa a celebrar-se de manhã, antelucanum (antes do amanhecer).
Justino, na sua 1ª Apologia, dá-nos pormenores sobre o modo como a Eucaristia
era celebrada: a assembleia abre-se com a leitura das “memórias dos Apóstolos” e dos
“Escritos dos Profetas” (LXVII, 2). Estas leituras são seguidas de uma homilia
(terminada esta retiram-se os penitentes e os catecúmenos).
Ver Comby I, 54; Folch Gomes, 65-67.

Após a homilia fazem-se as orações pelas intenções da Igreja e dá-se o beijo da


paz. Procede-se seguidamente à oração eucarística. O povo responde Amén. Os
diáconos distribuem o pão e o vinho consagrados. Por fim, recolhem-se as ofertas para
os pobres.

Além da comunhão sob as duas espécies, existiam outros particulares: o pão


consagrado era dado aos fiéis que o levavam para casa para uso quotidiano (CYPR, De
laps. 26); neste caso, como também quando se levava a Eucaristia aos ausentes (cristãos
doentes ou presos), a comunhão dava-se sob uma só espécie.

O costume de receber a comunhão em jejum é já referido por Tertuliano (Ad


uxorem 2, 5).

O alimento sagrado era distribuído na palma das mãos; o cálica servia para todos.

Quanto ao Domingo, ele é indicado por vários nomes:


-- (na Didaché, nº 14);
62

-- oitavo dia (na Epístola de Barnabé);


-- primeiro dia (em Justino).

Relativamente ao lugar onde a Eucaristia era celebrada:


-- em casa de algum irmão (Igreja doméstica – cfr. Daniel-Rops, 213);
-- em lugares expressamente dedicados ao culto (séc. III).
Ver Daniel-Rops I, 210. 213-214.

7. Cemitérios

Começam a aparecer quando aparecem os lugares de culto.


Grandes cemitérios: as catacumbas (assim chamadas a partir do século IX). As
mais antigas são as de S. Calisto.

As catacumbas são um óptimo instrumento para conhecermos a primitiva arte


cristã; as superfícies das paredes e tectos das câmaras sepulcrais foram decoradas com
imagens.
Os temas dessas imagens são tiradas da Sagrada Escritura ou de fontes cristãs.
Entre as mais antigas representações encontram-se, por exemplo, Daniel entre os leões,
Noé na arca, Jonas engolido e expelido pelo cetáceo, ressurreição de Lázaro...
Resumindo, pinturas de narrações bíblicas nas quais o homem se livra do perigo de
morte, e têm consequentemente por objectivo proclamar a esperança de que os cristãos
entrarão na vida eterna. Na mesma linha se coloca a figura do Bom Pastor, que se
encontra não só na primitiva pintura como nas inscrições sepulcrais.
Daniel-Rops I, 197-201.

8. Serviço assintencial e partilha de bens

A partilha de bens, que inicialmente se fazia na Igreja de Jerusalém foi


desaparecendo. Mas as colectas estavam desde os tempos apostólicos na tradição cristã.
Cada qual ia dando na medida das suas posibilidades, alimentava com aportações
63

voluntárias a caixa comum da sua Igreja.

A caixa servia para o sustento dos ministros da Igreja e permitiu a organização da


benificiência cristã, fenómeno importante e sem precedentes no mundo antigo: basta
dizer que, a meados do século III, a Igreja de Roma mantinha a expensas suas mais de
1500 pessoas necessitadas, viúvas e pobres.

9. Justiça nos litígios entre cristãos

Repare-se que se diz “entre cristãos”. É que se o lítigio fosse entre um cristão e
um pagão só havia uma possibilidade: o recurso ao magistrado romano.
Quem deu a solução para o caso foi Paulo, aproveitando a ocasião de cristãos de
Corinto terem recorrido a juízes civis para resolver um conflito. Paulo reagiu. Já era
escandaloso que os irmãos se pegassem entre si; pior ainda se recerriam aos tribunais
civis.
Por isso Paulo propôs que os conflitos se resolvessem dentro da Igreja. O
procedimento a seguir seria o da arbitragem: os litigantes deveriam escolher como
árbitros um ou vários cristãos que pela sua prudência e imparcialidade fossem dignos de
confiança e deveriam comprometer-se a acatar a decisão.

A solução paulina (baseada na convicção de que os litígios só tem a ver com o


temporal e não com o espiritual – daí o não recurso ao bispo) não vingou por muito
tempo. Depressa o Bispo se tornou juiz nato dos pleitos. E da concentação dos pleitos
na mão do bispo, rapidamente se chegou aos tribunais episcopais.

10. Excomunhão e penitência pública

Vimos que o baptismo comportava (comporta) um aspecto social: incorporação na


comunidade cristã. De maneira análoga, os pecados mais graves levavam anexa uma
sanção de carácter social: a excomunhão = privação de sacramentos e exclusão de
consórcio com os irmãos na fé.
64

A excomunhão produzia o efeito de exemplaridade, defendia os fiéis do contágio


das más condutas, e era uma pena medicinal, tendente à emenda do deliquente e à
absolvição da culpa.

O caminho do retorno à comunhão, além da emenda, comportava a disciplina


penitencial, mais ou menos duradoira conforme a gravidade da falta, e terminava na
absolvição sacramental e na plena re-integração na Igreja. Ver Comby I, 57.
Nem sempre o tema da penitência e perdão dos pecados foi pacífico. Chegaram a
existir opiniões desencontradas sobre o assunto. Assim:
-- Montano defendia a teoria dos pacados irremissíveis;
-- Tertuliano, na última época da sua vida, defendia que a igreja podia perdoar
todos os pecados; mas não devia perdoar os autores das faltas mais graves (ou seja, aos
idólatras, adúlteros, homicidas).

Esta questão recrudesceu aquando da perseguição de Décio, por causa dos lapsi.

11. A questão dos lapsi

Pano de fundo: a perseguição de Décio que, como vimos, transformou muitos


cristãos em lapsi. Ora muitos destes lapsi, sobretudo na África cartaginesa, terminada a
perseguição, solicitaram a re-integração na Igreja. Exibiam “cartas de paz” que lhe
haviam sido passadas por Confessores e até por Mártires.

Muitos pastores readimitiram os lapsi com excessiva facilidade. Contra isso se


insurgiu S. Cipriano, dizendo caminhar-se desse modo para o laxismo. E o mesmo bispo
submeteu a questão ao episcopado africano.

Solução: admisssão dos lapsi, prévia rigorosa penitência pública. Os “libeláticos”


teriam uma penitência mais simples que os “sacrificati” (a penitência destes seria para
toda a vida).

Em Roma surgiu, a este propósito, uma tendência rigorista: Novaciano defendia


65

que a apostasia era pecado irremisível, mesmo em caso de morte. Por seu turno, o Papa
Cornélio, condenou a doutrina de Novaciano, o qual chegou mesmo a ser condenado
por um sínodo romano.
66

CAPÍTULO V – A VERDADE CRISTÃ E AS HERESIAS

O período que vai de 70 a 140, além de ser um período de expansão, foi também
para o judeo-cristianismo um período de crise interna. Essa crise interna levou ao
aparecimento de várias correntes heréticas, das quais destacamos duas: CERINTO e
EBIONISMO.

Estes desvios doutrinais, por sua vez, provocaram o aparecimento de outras


correntes heréticas, bem mais perigosas: o GNOSTICISMO e o MANIQUEISMO.

Às heresias judeo-cristãs, gnóstica e maniqueia juntar-se-iam outras, de teor


escatológico e rigorista: MONTANISMO e DONATISMO.

I – Judeo-cristianisino heterodoxo

1. Cerinto

-- É um judeu cristão, de finais do primeiro século, que observava a circuncisão e


o sábado;
-- ensina que o mundo não foi criado por Deus, mas por uma potência que o
ignora; o mundo está longe de Deus que existe acima de tudo (a potência que criou o
mundo foi um demiurgo);
-- Jesus nasceu de Maria e José. É apenas um homem eminente. Cristo desceu
sobre Jesus sob forma de pomba no momento do baptismo. Antes da paixão Cristo
retornou para o Pai. Jesus não possui natureza divina e não tem nascimento virginal.

2. Ebionismo

-- Alguns derivam este nome de uma personalidade que teria tido o nome de
Ebion; outros fazem-no derivar (hipótese mais provável, tendo em conta o modo
simples como os ebionitas viviam) do vocábulo hebreu ebion (= pobre);
-- os ebionitas não ensinam que o mundo tenha sido criado por uma potência
67

alheia a Deus; professam, no entanto, em relação à origem do mundo, ideias dualistas:


Deus estabeleceu desde o começo um princípio bom e outro mau; este último tem o
domínio do mundo actual; o outro dominará no mundo futuro;
-- o princípio bom é Cristo, o profeta messiánico prometido. Esse Cristo existiu
em Jesus de Nazaré, já que este último foi consagrado por Deus como Messias e dotado
de força divina no dia do seu baptismo no Jordão;
-- Jesus não era, portanto, o filho pré-existente de Deus, mas o filho natural de
pais terrenos. Mas como Jesus se comportou de modo exemplar no tocante ao
cumprimento da lei, Deus elevou-o a Messias;
-- tarefa de Jesus: reduzir o judaismo à límpida observância da lei pura, e ganhar
os gentios para Deus. Esta missão cumpri-la-ia ensinando a Palavra de Deus e não por
uma acção salvífica extraordinária, nem muito menos por uma morte redentora (que os
ebionitas negam);
-- Ao morrer Jesus, Cristo retirou-se dele (= negação do valor soteriológico da
vida e morte de Cristo);
-- à estima da lei moisaica e à negação do valor soteriológico da morte de Cristo
liga-se um certo anti-paulinismo, característico dos ebionitas. Paulo é visto como
inimigo da lei.
Ver História das Heresias, 19ss.

2.1. Gnosticismo

Gnosticismo = conjunto de doutrinas e seitas, de tendência sincretista, que se


preocupam essencialmente com dois problemas: o do homem e o do mal.

Origem do nome: vem de gnosis = conhecimento dos mistérios divinos reservados


a uma elite. Possuir a gnosis significa – usando palavras de Orlandis – possuir o
conhecimento perfeito, a verdadeira ciência, que dá a chave do enigma do mundo e da
presença do mal no mundo; significa aclarar a sentido da existência.

Princípios comuns aos vários sistemas gnósticos:


68

a) Altíssima ideia de Deus: Deus está infinitamente distante da natureza e do


tumulto dos seres materiais. Não foi Deus quem criou o mundo, pois que este é
intrinsecamente mau. Deus é único, absolutamente separado dos seres materiais. Ele é,
por exemplo, o silêncio, o abismo. Deus escapa a qualquer analogia com o mundo
empírico. Por isso é incognoscível. Manifesta-se porém, em emanações sucessivas,
permanecendo fora do emanado. Ao produto emanado chama-se éon. Os produtos
emanados são seres intermédios entre Deus e os homens. São – diz Orlandis – seres
semidivinos que formam com Deus o Pleroma, o mundo superior e luminoso do Deus
verdadeiro.

b) Péssima ideia da matéria: esta não foi criada por Deus, pois é intrinsecamente
má. O próprio homem, apegando-se a ela, perverte-se e alheia-se de Deus. A matéria
não é criação de Deus mas do Demiurgo, um ser criador, intermediário entre Deus e o
mundo.

c) A Gnosis é por si mesma revelação: sendo a gnosis conhecimento perfeito, não


precisa de outra fonte de revelação. Não é o gnóstico que tem de adaptar-se às
Escrituras; são estas que têm necessidade dele para verem aclarado o seu sentido.

d) Para o gnóstico, a Igreja não merece comentários. Isto porque o gnóstico se


preocupa com o Deus desconhecido não com o Deus que revelou a Sua vontade...

e) Alguns gnósticos negam qualquer rito ou sacramento. Pelo menos é isso que
nos diz S.to Ireneu ao afirmar: “Dizem que não se deve realizar o mistério da potência
invisível e inefável com criaturas visíveis e corruptíveis (...)” (Adv. Haer. I, 21, 4). Mas
a maior parte dos gnósticos consideram os mistérios e sacramentos meios aptos para
despertar a “gnosis” no iniciado.

f) Uma vez que os gnósticos se consideram uma elite da humanidade, a sua prática
ritual está cheia de símbolos, de fórmulas sagradas e de consagrações, numa palavra, de
mistérios que têm como fim a delimitação precisa das comunidades gnósticas e o ser
sinal de uma realidade superior. Ver História das Heresias, 33ss.
69

Infiltração gnóstica na Igreja: os gnósticos vêem no cristianismo um opositor a


conquistar, um rival a destruir. Concebem, portanto, o plano de destruir o cristianismo,
tentando inserir nele células gnósticas. Objectivo deles era apresentar o gnosticismo
como sendo a autêntica expressão da melhor tradição cristã. Claro que Cristo expôs a
sua doutrina a todos; mas só alguns – os gnósticos – é que são capazes de compreender
bem o que Cristo queria dizer. Por outras palavras, a fidelidade na captação da
mensagem de Cristo divide os cristãos em três grupos:

1. Pneumáticos: são os que alcançam a plena iluminação da doutrina, os que


alcançam a gnosis (= conhecimento perfeito de Deus);

2. Psíquicos: são cristãos de segunda classe que não entendem bem a doutrina,
mas que mesmo assim conseguem salvar-se por causa da sua fé a por causa das boas
obras que praticam;

3. Hílicos ou infiéis: não entendem a doutrina (= não possuem a gnosis) nem


praticam as boas obras.

Principais representantes do gnosticismo dentro do cristianismo: BASILIDES,


VALENTIM, MARCIÃO.

BASILIDES: nasceu na Síria. Influiu em Alexandria, mas também teve sequazes


em Roma. Grande actividade literária (v.g. fez um comentário aos evangelhos em 24
livros). Entre outras coisas Basilides diz que Cristo só aparentemente (docetismo) foi
visto em forma humana; quem morreu na cruz, em sua vez, foi Simão de Cirene.
Ver Historia das heresias, 38-39.

VALENTIM: nasceu no Egipto. Começou a sua actividade docente em 135, em


Alexandria. Durante quase duas décadas fez propaganda das suas ideias em Roma.
Conflitos com os cristãos de Roma fizeram-no retornar ao Oriente. Cartas, livros e
homilias propagavam as suas ideias. E essas ideias (cf. Orlandis, 69) são:
-- Jesus não é homem verdadeiro, mas um ser divino procedente do “Pleroma”
70

que ao entrar no mundo assumiu um corpo aparente (docetismo), como aparente foi o
seu nascimento, paixão e morte;
-- a salvação consiste em obter a “gnosis” e em deixar-se vivificar por ela.

MARCIÃO: era patrão de uma companhia de navios (armada) em Sínope, cidade


da qual seu pai era bispo. Foi excomungado na sua pátria (Ásia Menor) e veio a Roma
(ano 140). As suas ideias principais são:
-- o Deus criador do Antigo Testamento não é o Deus verdadeiro, nem o Pai de
Jesus. Ele é apenas a Deus rigoroso e justo que, pela lei moisaica, impôs ao povo judeu
um jugo insuportável;
-- o Antigo Testamento não faz parte da Sagrada Escritura, pois nele se fala do
Deus justiceiro, criador do universo, demiurgo, que não conhece a justiça e o amor. O
Deus bom só se revelou quando enviou Cristo como redentor;
-- Paulo foi o único Apóstolo que recebeu o Evangelho não falseado. Esse
Evangelho autêntico está consignado nas cartas de Paulo (sobretudo na carta aos
Gálatas) e no Evangelho de Lucas (excepção feita aos dois primeiros capítulos);
-- Marción comenta a Sagrada Escritura (reduzida a alguns escritos de S. Paulo e a
parte do Evangelho de S. Lucas) na sua obra Antithesis, da qual se conservam ainda
alguns fragmentos;
-- não aceita que Cristo, redentor enviado pelo Deus bom, escolhesse a impura
carne humana para morada da divindade. Só aparentemente Cristo assumiu a condição
humana, do mesmo modo que a sua morte foi apenas aparente. Conclusão: a morte de
Cristo não foi real, não produz redenção;
-- condena o matrimónio: este permite o uso do corpo. Sendo o corpo mau,
matéria má, os baptizados não devem casar-se.
Ver Comby I, 66; Daniel-Rops I, 283-288; História das heresias, 41ss; Historia
do Cristianismo, 104.

Reacção da Igreja: através de três processos:

a) Medidas coactivas, v.g., excomunhão de Marción;


71

b) Medidas teóricas: demonstração, no plano literário, da incompatibilidade entre


doutrinas gnósticas e tradição cristã. Entre os contestadores dos gnósticos destaque para
Ireneu de Lyon (Ver Historia do Cristianismo, 100), autor da obra Desmascaramento e
refutação da falsa gnósis (conhecida sob o título Adversus haereses) e para Tertuliano
(que escreveu De carne Christi e De ressurrectione carnis, demonstrando pela Sagrada
Escritura incarnação de Cristo e a ressurreição da carne, o Adversus Marcionem o
Adversus Valentinianos e o De praescrisptione haereticorum, defendendo a verdadeira
tradição apostólica diante das pretensões dos heréticos, nomeadamente dos gnósticos;

c) Medidas práticas: o gnosticismo, pretendendo ser o depositário fiel da


revelação divina, levou à elaboração, por parte dos teólogos cristãos do século II, das
Séries episcopais, à elaboração de um Cânone das Escrituras, ao arraigamento do
Símbolo da Fé (= Credo).

Obras de Tertuliano contra os gnósticos

a) De praescriptionem haereticorum (As prescrições dos heréticos): nesta obra


Tertuliano quer valer-se da praescriptio, isto é, da objecção jurídica, prevista no direito
romano, que permite ao réu travar o processo por ser inadmissível a forma como o
acusador o colocou.
Concretizando: segundo Tertuliano, o objecto de litígio entre a Igreja e os seus
adversários é a Sagrada Escritura. Só que esta não pode ser usada por eles na discussão,
pelo simples facto de que não lhes pertence. Com que direito então se agarram a ela
para combater a Igreja? Mais: Quem lhes confere o privilégio de serem eles os fiéis
intérpretes da Escritura?
Pelo contrário, a Bíblia pertence àqueles que se mantêm fiéis à regra de fé. E
quem são esses que se mantêm fiéis à fé?
-- Cristo concedeu aos Apóstolos a missão de pregar o Evangelho;
-- os Apóstolos fundaram as Igrejas, anunciaram a essas Igrejas o Evangelho e
confiaram a outros a missão de anunciá-lo;
-- portanto, quanto Cristo revelou não pode ser testemunhado senão pelos
Apóstolos e pelas Igrejas que eles fundaram;
72

-- concluindo, deve à partida considerar-se falsa qualquer doutrina que esteja em


contradição com a verdade das igrejas, dos Apóstolos, de Cristo, de Deus (c. 21).

b) Adversus Marcionem (Contra Marcião): consta de 5 livros. É a obra mais


extensa de Tertuliano. Constitui a fonte principal para o estudo da heresia de Marcião.
No 1º Livro, refuta o dualismo que, segundo Marcião, existe entre o Deus do AT e
o do NT, demonstrando que uma tal oposição é incompatível com a própria noção de
Deus. Na verdade, Deus não é, se não é uno; Aquele que acreditamos existe, diz-nos
que não seria Deus se não fosse uno. Aliás, tem que ser uno o ser que representa a Suma
Grandeza, pois não pode ter igual, sob pena de não ser soberanamente grande (1,3).
O Criador do mundo identifique-se, portanto, com o Deus bom, com o único Deus
que existe (2º Livro).
O 3º Livro demonstra que Cristo encarnado é o Messias.
Nos 4º e 5º Livros demonstra a inexistência de contradições entre o AT e o NT.

c) Adversus Valentinianos (Contra os Valentinianos): é um comentário satírico à


doutrina dos gnósticos valentinianos. Pela substância e disposição de matérias baseia-se
no Adv. Haer. de S.to lreneu, e também em S. Justino.

d) De Carne Christi (Sobre a carne de Cristo): rebate o docetismo dos gnósticos.


Tertuliano aplica-se a demonstrar a realidade do nascimento de Cristo. Afirma que Jesus
viveu e morreu numa verdadeira carne humana. Insiste de tal forma na humanidade de
Cristo que chega a declará-LO feio.

e) De resurrectione carnis (A ressurreição da carne): é um tratado contra quantos


negam a ressurreição da carne, mormente contra os gnósticos. Diz Tertuliano que o
corpo foi criado por Deus, resgatado por Cristo, e deve ser julgado juntamente com a
alma no fim do mundo (c. 3, 15).
73

2.2. Maniqueismo

Fundador: o Persa Mani ou Manes, que nas fontes gregas e latinas se chama,
respectivamente  ou Manichaeus. Nasceu a 216 e morreu em 277.
Reiteradas visões revelaram a Manes sua grande vocação religiosa. Um anjo revelou-lhe
que ele estava destinado a ser apóstolo e arauto de uma nova religião universal, cujo
conteúdo lhe foi manifestado em posteriores revelações. Consciente disso, Manes
começa a sua actividade iniciando uma viagem até à Índia. Através dos seus seguidores,
a doutrina de Manes chegou depois ao Egipto, Irão, China, Síria e Arábia, África,
Roma, Gálias e Espanha. Na África o maniqueismo encontrou um ilustre aderente, que
o foi durante um decénio – S.to Agostinho.

Doutrina:
-- Dualismo radical na concepção de Deus: há dois seres ou princípios supremos
de igual categoria: o Princípio da luz e a princípio das trevas. Ambos são ingénitos (=
não gerados) e possuem o mesmo poder. Encontram-se em antítese ou contraste
irreconciliável, cada um detendo o seu próprio império. O império da luz é governado
pelo pai da grandeza; o do mal, pelo príncipe das trevas, que manda sobre numerosos
demónios;
-- Concepção dualística do homem: este é mistura de luz e trevas. E o homem
começa a salvar-se quando toma consciência disso mesmo. Desde que o homem começa
a conhecer-se, o pai vem ao seu encontro, ajudando-o a libertar-se cada vez mais das
trevas que existem nele. Para se encontrar com o homem Deus serve-se de
mensageiros...
-- Os mensageiros da verdadeira religião são quatro: Buda, Zoroastro, Jesus e
Manes. Os três primeiros tiveram uma acção circunscrita: Buda actuou apenas na Índia;
Zoroastro cingiu-se à Pérsia; Jesus à Judeia. Nenhum destes três fixou a sua mensagem
por escrito. Daí que as religiões por eles fundadas depressa tenham decaído e
adulterado. Mas esse fracasso é agora compensado por Manes: ele é o apóstolo da
última geração, o enviado da luz; ele constituí o último chamamento universal (não
circunscrito a qualquer região) à salvação. O Paráclito que Jesus tinha prometido desceu
sobre Manes e revelou-lhe os mistérios ocultos (= a gnosis). Por isso Manes pode
74

apresentar-se e ensinar como o Paráclito prometido. Pela boca de Manes fala a Espírito
enviado por Jesus.
-- Ética: abstenção de tudo o que liga o homem à matéria, para que aumente o
império da luz e não o das trevas, para que o homem chegue à gnosis e não à “agnosia”.
O perfeito maniqueu é aquele que renuncia a este mundo, nele nada quer possuir,
combate em si mesmo todos os desejos e concupiscências, praticando a continência
absoluta e recusando o matrimónio.
-- Organização: os adeptos do maniqueismo estavam congregados numa igreja
bem organizada. Cabeça dessa igreja era Manes, de quem todos os outros recebem
autoridade. Sob Manes encontram-se 12 apóstolos, 72 bispos, 360 presbíteros, os
“fiéis”.
-- Sagrada Escritura: o Deus da Antigo Testamento não é o Deus da luz (nisto
coincide com Marción). Este Deus da luz é revelado sobretudo pelo Novo Testamento e
cartas Paulinas.
Ver História do Cristianismo, 98-99; Dicionário das religiões, 230-231.

3. Heresias de carácter rigorista e escatológico

3.1. Montanismo

Montano = frígio que por volta de 170, nas províncias asiáticas da Frigia e Misia
se apresenta como sendo profeta do Espírito Santo. Este Espírito Santo só agora, por seu
intermédio, iria conduzir a cristandade à verdade total.

Aderem a ele duas mulheres: Priscila e Maximila, que se põem também a


profetizar. O montanismo, de facto apresenta-se como explosão do profetismo.

Doutrina:
-- Escatologia: o montanismo dá grande importância às visões e revelações. O
conteúdo dessas revelações é essencialmente escatológico. Os tempos do Paráclito
tiveram início com a vinda de Montano. Cristo está para aparecer na sua última vinda. A
75

nova Jerusalém está para se tornar realidade e o seu reino durará mil anos
(milenarismo);
-- Exaltação do martírio: fugir do martírio significaria apego a este mundo que
caminha para o fim;
-- Renúncia ao matrimónio: tanto quanto possível, pois apega a este mundo. As
duas profetisas (Priscila e Maximila) abandonaram a comunidade conjugal com seus
maridos. Tertuliano condena as segundas núpcias;20
-- Necessidade do jejum, como meio de preparar a alma para a vinda de Cristo.
Montano impõe o jejum contínuo (sem qualquer interrupção) como preceito para todos
os cristãos.

O montanismo espalhou-se pela Síria, Gálias, Ásia, Roma, mas não teve tanto
impacto como o maniqueismo. Além disso, a morte dos três primeiros representantes da
profecia significou um duro golpe para a ulterior propagação do movimento. Maximila
morreu no ano 179 e ela tinha precisamente anunciado: “Depois de mim não virá
nenhum profeta mas a consumação do fim” (Tertuliano Adv. Praxeam 1). Este oráculo
permitiu a muitos adeptos um juízo sobre a autenticidade da pregação, que só poderia
ser negativo. O movimento teria acabado mais cedo se não tivesse contado com a
adesão de Tertuliano (provavelmente a partir de 205/206).
Ver História das Heresias, 55-59; História do Cristianismo, 87.

3.2. Donatismo

O donatismo não é apenas uma heresia, mas também um cisma, no qual


desempenhou papel importante Donato.
O cisma donatista tem como causa externa a perseguição de Dioclesiano, que
originou a questão: como julgar a conduta dos cristãos que nessa perseguição
apostataram?
Alguns dos que se mantiveram fiéis viam nos que apostataram uns grandes
traidores (“traditores”) da fé. Mais ainda: consideravam que se os “traditores” fossem

20
Cf. a obra De exhortatione castitatis, onde exorta um amigo viúvo a não contrair segundas núpcias, as
quais qualifica de “espécie de devassidão” e De monogamia, um violento libelo contra a liceidade das
segundas núpcias. Altaner-Stuiber, Patrologia, 165.
76

sacerdotes, os sacramentos por eles administrados não eram válidos. Por outras
palavras, a validade do sacramento dependia do estado de graça do ministro.
Esta concepção teológica manifestou-se decisiva quando foi preciso encontrar um
substituto para o Bispo de Cartago, Mansurio. Como substituto dele foi apontado e
sagrado Ceciliano. Só que um dos bispos consagrantes foi Félix, um “traditore”.
Reunidos em Concílio, 70 bispos da Numídia declararam nula a sagração e contrapõem
a Ceciliano primeiro Mayorino e logo depois Donato.
Neste cisma Donato/Ceciliano iria intrometer-se Constantino, convocando para
um julgamento em Roma os dois contendentes acompanhados cada um de 10 bispos
apoiantes, e convocando depois (ano 314) em Arles um novo concílio (no qual
participaram numerosos bispos), que não deu qualquer resultado...
Deixemos para depois a desfeixo desta contenda e fixemo-nos por agora nas
principais ideias de Donato:
a) Concebe a Igreja como comunidade integrada apenas por santos;
b) Defende uma errónea teologia sacramental. Chega a afirmar que os lapsi, para
voltarem à Igreja, têm que ser rebaptizados, e que o baptismo administrado por um
sacerdote “caído” não é válido.
Ver História das Heresias, 61-74.
77

(Resumo do) CAPÍTULO VI – LITERATURA DA ANTIGUIDADE


CRISTÃ

1. Desenvolvimento das letras cristãs

Fins do século I, com os escritos joaninos, termina o ciclo da revelação divina e


começa um novo ciclo: o da literatura cristã.
Essa primitiva literatura espelha a vida da Igreja desse período. Os primeiros
escritos eram como que “escritos de família”, dirigidos aos irmãos na fé. Ao surgir a
necessidade de defender a Igreja perante ataques externos apareceram os “escritos
apologéticos”. Igualmente a necessidade de defender a fé e verdade cristãs contra os
erros ou heresias deu origem aos “escritos anti-heréticos”: Terminada a preocupação
apologética ou polémica, vão aparecendo, redigidas em tom mais calmo, várias obras
com uma apresentação sistemática e completa da doutrina cristã. A estas várias obras
podemos chamar “escritos teológicos”.

2. Padres Apostólicos (Ver Daniel-Rops I, 267-270)

Quem são: grupo de escritores de lingua grega dos séculos I e II, assim chamados
pela sua ligação com os Apóstolos, dos quais directa ou indirectamente se podem
considerar discípulos.

Principais escritos:
-- Didaché: composta na Síria a fins do século I ou inícios do II, contém normas
de vida moral, preceitos litúrgicos, normas referentes à organização das comunidades. É
o mais antigo texto de disciplina eclesiástica que possuímos.

-- Epistolário:
-- S. Clemente Romano (a carta que ele escreve aos coríntios exigindo que estes
lhe obedeçam é, como vimos, importante no que concerne ao Primado de Pedro);
Ver Comby I, 60.
-- S. Inácio de Antioquia (as certas que escreve às igrejas asiáticas, à Igreja de
78

Roma e a Policarpo de Esmirna são documento luminoso sobre a fé, piedade e vida das
igrejas a começos do século II); Ver Daniel-Rops I, 268-269.
-- S. Policarpo de Esmirna: escreve à comunidade de Filipos, dando-lhe
numerosas instruções acerca da verdadeira fé e da vida cristã. Insiste especialmente na
obediência devida a bispos e diáconos.
Ver Daniel-Rops I, 269.
-- Pastor de Hermas: esta obra diz-nos o que pensava a Igreja romana do século
II acerca da penitência e vida cristã. É um Apocalipse apócrifo. O autor da obra tem em
vista levar os fiéis à penitência.

3. Literatura apócrifa e martirial

a) Literatura apócrifa = nasce da intenção de cobrir o vazio que o Novo


Testamento deixara aberta em torno a temas de não pouca importância, como a infância
de Jesus, a vida de Maria, as actividades missionárias dos Apóstolos.
Para cobrir esse vazio muitos recorrem à imaginação: surgem assim relatos
lendários, fantásticos, onde abundam prodígios de toda a ordem, e que tomaram a forma
de evangelhos, actos, epístolas e apocalipses.
Apesar de pouco credível, esta literatura tem o seu interesse: é necessária para
compreendermos a arte da época e ilustra costumes e modo de vida da primitiva Igreja.
Ver Evangelho Segundo S. Tomé.

b) Literatura martirial: também aqui entraram as lendas. Note-se, porém, que


muitos martírios estão documentados:
-- escritos dos taquígrafos ou dos notários públicos, nas quais eram registadas as
perguntas e respostas e a sentença do julgamento;
-- relatos, escritos por cristãos contemporâneos que foram testemunhas presenciais
do facto. Estes relatos eram relidos nas Igrejas quando se celebrava a data de aniversário
do martírio.
79

4. Escritos Apologéticos e Anti-Heréticos

A literatura apologética e anti-herética aparece antes de meados do século II. Com


ela se enfrentam dois inimigos: o mundo pagão e a heresia.

a) As obras apologéticas dirigem-se essencialmente ao público pagão


(excepcionalmente aos judeus não crentes – cf. Diálogo com Trifon de S. Justino), e em
primeiro lugar aos imperadores ou autoridades romanas.
21
Defendem o cristianismo das acusações de ateísmo, homicídios, imoralidades ,
inimizade para com o género humano... e/ou apresentam a doutrina cristã.
Sublinha-se o modo de viver dos primeiros cristãos como óptimo argumento em
seu favor e como prova da falsidade das acusações contra eles movidas.
Afirma-se mesmo que os cristãos são os melhores cidadãos e os súbditos mais
fiéis do império.
Entre os escritos apologéticos contam-se, por exemplo, os seguintes:

-- 1ª Apologia de S. Justino, dirigida a Antonino Pio, Marco Aurélio e Lúcio


Vero, ao Senado e a todo o povo romano. Nesta obra Justino parte da proposição: Quem
não tem crimes não deve ser condenado; ora os cristãos não cometeram os crimes de
que são acusados; logo, não devem ser condenados. Tentando provar a proposição
menor, o santo acrescenta: “Os cristãos, embora não adorem os deuses do império, não
são ateus, porque adoram, em espírito e verdade, o único Deus verdadeiro. Também não
são imorais, nem homicidas, nem inimigos do império. São cidadãos virtuosos,
pacíficos, amigos da ordem e do trabalho” (INSUELAS, J. B., Curso de Patrologia
(Braga 1948) 54);

-- Diálogo com Trífon, contra os Judeus, aos quais Justino quer provar que Jesus
é o Messias e que a Sua religião é verdadeira. Este Trífon talvez seja o conhecido e
douto Rabí Tarfón, contemporâneo de Justino;

-- Epístola a Diogneto. De autor desconhecido, esta Epístola diz que: “a) Os

21
Entre os pagãos havia quem acusasse os cristãos de se juntarem em reuniões noturnas para comerem a
80

cristãos rejeitam o paganismo porque não podem ser idólatras, adorando deuses de
madeira e de pedra; b) rejeitam igualmente o judaísmo porque os seus ritos são ridículos
e indignos da divindade; c) o cristianismo é uma religião que dá costumes, uma vida e
sentimentos superiores a tudo quanto a paganismo produziu de melhor e mais
alevantado. Os cristãos são, no mundo, o que a alma é no corpo. Animam-no com as
suas virtudes, coisa maravilhosa e humanamente inexplicável, que não é possível
realizar-se senão pela omnipotência divina. Deus enviou à terra o seu Verbo, que
também é Deus, para ser o fundador desta religião divina(...)”. (INSUELAS, o.c., 64-
65);
Ver Comby I, 38; ver a epístola na colecção Fontes de catequese 110.

-- O Apologeticum de Tertuliano, que é a melhor das apologias. Nesta obra,


dividida em 50 capítulos e endereçada aos magistrados romanos, Tertuliano propõe-se
provar que as leis de perseguição contra os cristãos são injustas e que as cristãos não
devem ser condenados porque: “1º - o processo empregado contra eles é irregular e
absurdo; 2º - as leis, que lhes são aplicadas, são contrárias ao direito comum e ao direito
natural; 3º - as infámias secretas, os crimes de impiedade e de lesa majestade, de que os
acusam, não existem. São imaginários; 4º - A associação a que os cristãos pertencem,
não tem nada contra o direito. É portanto uma associação lícita. A doutrina dos cristãos
é verdadeira; a sua conduta, tanto pública como particular, é irrepreensível”
(INSUELAS, o.c., 154). Ver Comby 40.

b) As obras anti-heréticas visam, como é lógico, o combate às heresias. A maior


das heresias que a Igreja primitiva conheceu foi o gnosticismo; daí que a maior parte da
literatura anti-herética seja também anti-gnóstica.

Autores e obras a merecer destaque:


1. Hegesipo, autor das Memórias, compostas em cinco livros após uma viagem de
observação e estudo das principais Igrejas. Defende que a maior garantia da verdade
católica é a sucessão ininterrupta de bispos a partir dos Apóstolos. As Memórias são um
verdadeiro arsenal de notícias para a história eclesiástica;

carne de crianças ou para práticas incestuosas...


81

2. Santo Ireneu, autor de A falsa gnosis desmascarada e refutada, comummente


conhecida pela nome Adversus haereses, em 5 livros. No primeiro livro faz uma
exposição exacta das erros das diversas seitas gnósticas; no segundo livro emprega a
dialéctica e os argumentos racionais para provar o absurdo das teorias e a inutilidade
dos argumentos dos seus adversários; no terceira serve-se da tradição mostrando que a
verdadeira regra de fé é a que se encontra no ensino dos apóstolos inalteravelmente
conservado pela Igreja; no quarto livro serve-se das palavras da Bíblia (Sermones
Domini), isto é, estabelece a demonstração pela Sagrada Escritura, Velho e Novo
Testamento (ataque indirecto a Marción); no quinto livro ocupa-se dos novíssimos, em
particular da ressurreição da carne (neste livro Ireneu mostra-se milenarista);
Ver Comby I,66-67.

3. Tertuliano, autor da obra De Praescriptione hereticorum. É uma refutação geral


de todas as Heresias Tertuliano opõe aos herejes a autoridade da Tradição e da Igreja.
Segundo ele, “os herejes não possuem a verdadeira fé, porque esta não se encontra
senão nas igrejas fundadas pelos apóstolos, ou deles derivadas, e que dos apóstolos
receberam a doutrina de Jesus Cristo. Partindo de Deus, a verdade veio até nós por Jesus
Cristo, pelos apóstolos e pelas igrejas apostólicas. Ora os herejes estão fora destas
igrejas. Logo não possuem a verdadeira fé nem têm direito a possuir as sagradas
escrituras” (INSUELAS, o.c., 155).

5. Origens da ciência teológica

A literatura apologética e anti-herética permitiu uma exposição da doutrina


ortodoxa sobre alguns pontos essenciais da fé cristã. Mas não deu uma visão de
conjunto, sistemática, científica, da doutrina teológica. Essa visão de conjunto, orgânica
e completa só começa a aparecer por volta do ano 200, levada a cabo por grandes
mestres, os quais se organizam essencialmente em duas escolas: a de Alexandria (com
sua filial em Cesareia) e a de Antioquia.
82

a) Escola de Alexandria

-- Fundador: Panteno, que se estabeleceu na cidade por volta do ano 180.


Ver INSUELAS, 129-130.
-- A escola respira o ambiente da cidade: cultura helénica, platonismo, propensão
à especulação teológica.
-- No aspecto bíblico: é na cidade de Alexandria que se compõe a versão bíblica
dos LXX e é nesta cidade que vive Filon, mestre judeu que tentou realizar uma síntese
entre a Escritura e a filosofia grega, abrindo caminho à exegese alegórica da Bíblia.
Filon considera que a verdade plena da Escritura só se alcança se se penetra no seu
significado alegórico.
-- Principais expoentes da escola: nos princípios Clemente e Orígenes; mais tarde
(já na época romano-cristã) Atanásio e Cirilo.

-- Clemente: sucede a Panteno na direcção da escola e dá a esta poderoso


impulso. Foi ele quem começou a fazer uso do método alegórico na interpretação das
Escrituras.
Ver INSUELAS, 131-135.

-- Orígenes: leva a escola ao máximo esplendor. Era o maior sábio da antiguidade


cristã e o maior teólogo da Igreja grega. Assume a direcção da escola com apenas 18
anos, e governa-a, com pequenas interrupções, de 204 a 230. Neste último ano viaja à
Palestina e aí, sem ordem do seu bispo, é ordenado sacerdote. Protesta o seu bispo
Demétrio, fazendo com que em dois sínodos alexandrinos (230-231) Orígenes seja
declarado degradado da sua dignidade sacerdotal e cargo de mestre. Então Orígenes
deixa-se ficar em Cesareia da Palestina, ande funda uma nova escola à qual preside
durante 20 anos. Em Cesareia iria colhê-lo e debilitá-lo a perseguição de Décio. Veio a
morrer em Tiro (ano 253) sucumbindo aos sofrimentos. Tinha 70 anos de idade.
Realizou uma obra literária de colossais dimensões (há quem fale em 2.000
livros). Foi o fundador da ciência escriturística, tendo comentado, usando o método
alegórico, todos os livros do Antigo e Novo Testamento. Ver Comby, 70.
A sua principal obra chama-se EXAPLAS, um “gigantesco monumento de crítica
83

Bíblica” (Mourret). As EXAPLAS contêm o texto do Antigo Testamento escrito em seis


colunas paralelas. Na primeira coluna, o texto hebraico escrito em caracteres hebraicos;
na segunda, o mesmo texto, escrito em caracteres gregos; na terceira, a versão de
Aquila; na quarta, a versão de Símaco; na quinta, a versão dos LXX; na sexta, a de
Teodocião. Este trabalho monumental foi começado em Alexandria e concluído em
Cesareia, pela ano 245. Outra obra importante de Orígenes é o Peri Archon que se pode
considerar como primeiro tratado de teologia dogmática.
Ver INSUELAS, 137-146; Comby I,65.

-- Atanásio -- Ver INSUELAS, 230-244;


-- Cirilo -- Ver INSUELAS, 249-260.

b) Escola de Antioquia

Fundador: Luciano de Samosata, em 312. Ver INSUELAS, 118-119.


A escola: contrapõe-se às de Alexandria e Cesareia, ao método alegórico, à
transformação da Escritura em “mitologia”. Defende a exegese filológica e histórica dos
livros sagrados, a interpretação literal e sentido óbvio dos textos.
Principais expoentes (menos notáveis que os de Alexandria): Diodoro de Tarso,
Teodoro de Mopsuéstia, S. João Crisóstomo (este muito importante, mas mais virado
para a pastoral e pregação = “boca de ouro”, que para estudos estritamente científicos).

-- Diodoro de Tarso: fundou em Antioquia, ou nos arredores da cidade, um


mosteiro, pelo qual passaram Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo. Esse mosteiro
chegou a ser chamado “escola dos ascetas”.

-- Teodoro de Mopsuéstia: comentou grande parte da Bíblia. Segundo uma lista


apresentada por Tixeront, as suas obras exegéticas abarcam:
- um comentário, em 5 volumes, sobre o Génesis;
- um comentário, também em 5 volumes, sobre os Salmos;
- um comentário sobre S. Mateus, outro sobre S. Lucas e outro ainda sobre S.
84

João;
- comentou ainda os actos e cada uma das epístolas de S. Paulo.
Pela mesma lista de Tixeront sabemos que tem ainda outros comentários, mas não
chegaram até nós.

-- S. João Crisóstomo: é o maior doutor da escola de Antioquia e o melhor dos


oradores sagrados do Oriente. Foi igualmente um escritor fecundo. No tocante à
exegese, comentou a maior parte dos livros do Antigo e do Novo Testamentos, mas os
seus comentários são em forma de homilias, dispostas em séries, mais ou menos longas,
conforme os assuntos de que trata. Deixou-nos mais de 640 homilias. As referentes ao
Antigo Testamento comentam sobretudo o Génesis, Salmos, Isaias: das respeitantes ao
Novo Testamento salientem-se 90 sobre a Evangelho de S. Mateus, 7 sobre o de S.
Lucas, 88 sobre S. João. Comentou ainda os Actos e todas as epístolas paulinas.
Ver INSUELAS, 328-342.
85

CAPITULO VII – CONVERSÃO DO MUNDO ANTIGO

(Resumo do ORLANDIS, 93-120)

1. Edicto de Milão

-- Recordar tetrarquia: Diocleciano e Maximiano são os Augustos; Constanço


Cloro e Galério são os césares.
-- Quem vai substituir Diocleciano é Galério, a qual reconhece o fracasso das
perseguições e, sentindo-se próximo da morte, publica em
311: Edicto de Sárdica
-- existam de novo os cristãos;
-- celebrem suas assembleias e cultos.
Importância do Edicto: pela primeira vez o cristianismo é tolerado e deixa de ser
“superstitio illicita”.

-- Constantino apodera-se do Império em 312, após vitória sobre Maxêncio na


Ponte Mílvio. As suas hostes, dando seguimento a uma visão que ele tivera,
transportavam o monograma de Cristo. Constantino publica em
313: Edicto de Milão
-- cristianismo não apenas tolerado; plena liberdade religiosa;
-- Igreja volta à posse dos lugares de culto, propriedades e bens de que tenha sido
despojada.
Ver Comby I, 49; Daniel-Rops I, 403ss.

2. Da liberdade religiosa à unidade católica

A orientação católica imprimida por Constantino acentua-se sobretudo a partir de


324, altura em que domina sobre todo o Império. Nesse
324: dois Edictos para o Oriente:
-- mantém-se quanto dito em 313, mas
86

-- imperador faz profissão de fé cristã e


-- exorta os súbditos a “servir com toda a reverência a lei divina”.

A partir daqui,
-- o paganismo é considerado “falsa religião das trevas” e passa à situação de
apenas tolerado;
-- funcionários imperiais são proibidos de tomar parte nos sacrifícios do culto
pagão;
-- novos funcionários são escolhidos de entre os cristãos.

Outras intervenções do Imperador pró-cristianismo:


-- constrói templos e basílicas em Roma e Constantinopla;
-- preocupa-se com a unidade da fé, pelo que convoca em 314 o Concílio de Arles
(combate o cisma donatista) e em 325 o de Niceia (combate o arianismo);
-- publica leis que restringem o divórcio, convertem o Domingo em dia de festa
semanal, favorecem a Igreja e a hierarquia (imunidades, isenções fiscais, efeitos civis às
sentenças dadas pelo tribunal do Bispo, nova forma de libertação dos escravos =
manumissão na Igreja). Ver Comby I, 73e76.

-- Após Constantino: mantem-se a política religiosa constantiniana, e o anti-


paganismo. Única excepção: Juliano, o apóstata, que tentou restaurar o paganismo.
Ver Comby I, 77.

-- Evolução religiosa chega ao seu termo com TEODÓSIO, último grande


imperador. Ele proclamou o CRISTIANISMO católico como RELIGIÃO DO
IMPÉRIO. “A famosa constituição Cunctos Populos, promulgada em Tessalónica a 28
de Fevereiro do ano 380, ordenava a todos os povos que prestassem a sua adesão à fé
cristã, a transmitida pelo Apóstolo Pedro aos Romanos(...); a infâmia legal era a pena
reservada a quem desobedecesse a este mandato. Nos anos seguintes, novas leis
completaram a eliminação do paganismo e proibiu-se qualquer acto do culto gentio,
tanto público como privado” (ORLANDIS, 97). Ver Comby I, 77.
87

3.Cristianização da sociedade

Conversão de Constantino abre às multidões as portas da Igreja:


-- Até ao século IV, os cristãos são minoria, são elites de homens com força de
vontade e elevação de espírito capazes de afrontarem as dificuldades e riscos;
-- Após século IV, maioria da população adere ao cristianismo. As comunidades
cristãs dão lugar à sociedade cristã. Como se dá essa passagem?

4. Das comunidades cristãs à sociedade cristã

Esta passagem levou muito tempo e é um facto histórico da maior importância,


além do mais pelas alterações que provocou:

-- recepção de multidões na Igreja leva a uma certa “perda de qualidade”;


-- o homem não entra agora para a Igreja após uma “conversão” pessoal; nasce
dentro da Igreja;
-- o catecumenado conheceu no século IV um período de apogeu, com a entrada
de tantos pagãos. Mas logo de seguida decai, vindo a desaparecer num futuro próximo;
Ver Jedin II, 401-404.
-- desaparece gradualmente o costume de administrar o baptismo só nas grandes
solenidades (Páscoa, Pentecostes); passa a ser administrado ao longo de todo o ano;
-- relaxamento da intimidade da vida que existia nas primitivas comunidades; a
esse relaxamento se deve o desaparecimento da penitência pública e a aparecimento da
confissão auricular como único meio de receber a absolvição sacramental;22
-- Constantino tinha permitida que os tribunais episcopais julgassem toda a
espécie de contendas ou pleitos e outorgou pleno valor civil às suas sentenças. Isso
levou a que:
-- no século IV: bispos vivem afogados nas tarefas judiciais com prejuízo do
ministério -religioso-pastoral;
-- no século V: sem oposição eclesiástica o império restringe a competência
judicial do Bispo, ficando-lhe reservadas as causas espirituais e aquelas que envolviam

22
Cf. AA. VV., Os sacramentos. Teologia e história da celebração, ed. Paulistas, colecção Anámnesis 4
88

clérigos. Nasce assim o “privilégio de foro”;


-- quanto às eleições de bispos recordemos quanto já dissemos: a participação
popular vai agora ser reduzida, até converter-se em aclamação simbólica.
Sobre a Eucaristia: ver Daniel-Rops I, 512-516;
Peregrinações e Relíquias: ver Daniel-Rops I, 500-503.

5. Evangelização dos campos

-- Foi a grande tarefa da Igreja a partir da instauração do império cristão.

-- Grande exemplo de evangelizador no Ocidente: S. Martinho de Tours (371-


397).
Nasceu em 316 na Panónia.
Aos 15 anos o pai inscreve-o no exército. Entre esta idade e os 18 anos dá-se o
célebre episódio de Amiens: entrando na cidade, um pobre, meio nu, pede-lhe esmola.
Martinho corta com a espada a sua clâmide militar e oferece metade ao pobre.
Baptizado, ordenado sacerdote, orientado por S.to Hilário de Poitiers, consegue
deste licença para fundar o mosteiro de Ligugé.
Em 371 é elevado à sede episcopal de Tours, fundando depois, perto da cidade, o
mosteiro de Marmoutier.
Depois de intenso trabalho apostólico, faleceu em 397. O povo entronizou-o e
durante a Idade Média faziam-se imensas peregrinações ao seu túmulo.

-- “O culto dos mártires, e dos santos em geral, jogou então um papel muito
importante na catequese cristã. As massas rurais estavam formadas por gentes simples e
rudes, para as quais os santos – uns homens de carne e osso, que tinham encarnado
heroicamente as virtudes cristãs – constituíam a lição mais prática da pedagogia da fé. O
homem corrente sentia os santos como alguém muito próximo, e por isso ninguém
melhor que eles podia servir-lhe de intercessores junto de Deus e como caminho para
Ele. O culto às relíquias – provas tangíveis da “humanidade” de mártires e santos –
difundiu-se muito nesta época, porque respondia plenamente às exigências mais íntimas

(S. Paulo 1989) 165-184.


89

dos homens de então” (ORLANDIS, 104).

-- Muitas festividades de sabor pagão foram cristianizadas e inseridas no


calendário litúrgico eclesial. E muitos santuários pagãos foram convertidos em templos
dedicados ao Senhor e aos santos.

-- Entretanto, a crise do império romano no século V, as invasões bárbaras e


consequente retrocesso cultural... contribuiram a atrasar em algumas regiões o avanço
do cristianismo ou até a um retorno ao paganismo. Para termos uma ideia da lentidão do
processo de cristianização e dos reveses que este processo por vezes sofreu aduzimos o
exemplo da nossa Hispânia:
“Por volta do ano 400, Hispânia podia considerar-se já terra cristã. Apesar disso, a
finais da século VI, São Martinho de Braga (para nós São Martinho de Dume) escrevia
um tratado, De correctione rusticorum, destinado ainda a combater os resíduos
paganizantes e outras deficiências existentes na vida cristã das povoações camponesas
da Galiza e norte de Portugal. Os concílios espanhóis do século VII fazem pensar que
tais deficiências, próprias de um estado de imaturidade cristã, ainda que mais
denunciadas em regiões periféricas como as que formavam a antigo Reino suevo, não
deixavam de existir também em outros lugares da Península visigótica” (ORLANDIS,
106).

6. As igrejas rurais

A evangelização dos campos trouxe consigo a necessidade de organizar a pastoral


da gente neles residente. Para isso foi preciso criar:
-- um clero rural
-- igrejas e oratórios onde se pudessem administrar os sacramentos e celebrar os
actos de culto.

A conversão da população rural implicou, portanto, a dispersão do clero (dantes


centrado nas cidades), e a criação daquilo a que hoje chamaríamos paróquias.
90

Fundações de “paróquias” registaram-se na Gália (com S. Martinho de Tours), em


Itália (séculos V e VI), na Galiza (norte de Portugal incluído – aqui por obra de S.
Martinho de Dume).

São Martinho de Dume:


Natural da Panónia, actual Hungria.
Estudou no Oriente, dirigiu-se depois a Roma e França, visitando aqui o túmulo
de S. Martinho de Tours, ficando a considerar este seu patrono e modelo.
Conhece o rei dos Suevos, Cararico, e com este vem para o noroeste de Península
Hibérica, em 550.
Assenta em Dume, no Mosteiro. Tornou-se bispo de Braga em 556, e no seu
tempo realizou-se o 1º Concílio de Braga (561).
Combateu os restos de arianismo e paganismo.
Faleceu em 20 de Março de 579 e foi sepultado em Dume. No século XI os seus
restos mortais foram transferidos para a Sé de Braga.
A partir de 1985 S. Martinho passou a ser padroeiro principal da Arquidiocese de
Braga.
Ver O Concílio de Braga e a função da legislação particular da Igreja, 113-114;
Santos de cada dia III, 204ss.

As paróquias rurais tinham pia baptismal e junto a ela costumava existir o


cemitério.

As paróquias foram constituindo o seu espólio e património, imobiliário, e o clero


sustentava-se com os seus próprios cultivos e com as oferendas e direitos de estola
pagos pelos fiéis.

Mas nem todas as igrejas rurais foram “paróquias”; eram mais abundantes os
templos (oratórios, basílicas, ecclesiae). Muitos desses templos foram erigidos e
provistos por particulares (fenómeno que se irá acentuar na Idade Média). Esses
particulares – logicamente grandes latifundiários ou gente de grandes posses – tendiam
a considerar os templos por eles erigidos como propriedade pessoal, da qual podiam
91

extorquir os rendimentos e para a qual tinham o direito a nomear o clérigo. Aqui se


encontra a origem da “Igreja própria”, tão característica da Idade Média.

7. Estrutura da sociedade cristã: clérigos e leigos

A época romano-cristã trouxe consigo algumas novidades relativamente ao


estatuto do clérigo. A maior dessas novidades é, sem dúvida, a disciplina sobre o
celibato obrigatório, promulgada no século IV. As motivações de tal disciplina parecem
ser estas:
-- apreço que a Igreja desde sempre sentiu para com o celibato “por amor do reino
dos céus”;
-- virgindade de Cristo e de Nossa Senhora;
-- evangelhos e cartas dos Apóstolos proclamam a excelência da castidade;
-- virgens e ascetas devem à continência perfeita a venerarão que o povo lhes
devota.

O problema do celibato abarca dois aspectos distintos: matrimónio dos clérigos e


a continência daqueles varões que, sendo casados, receberam a ordenação clerical.
Quanto ao matrimónio dos clérigos:
-- a disciplina Oriental do século IV proíbe absolutamente o matrimónio dos
presbíteros, sob pena de deposição;
-- no Ocidente, a disciplina é mais rígida ainda: Leão I estende até aos
subdiáconos a proibição de contrair matrimónio.

Quanto à continência dos clérigos casados:


-- No Ocidente ela aparece imposta ao longo do século IV23 em várias regiões
(Hispânia?, Gália, África cartaginesa, Roma), acabando por se impôr em todo o
Ocidente, com a ajuda, preciosa de decretais dos Papas;
-- No Oriente a disciplina da continência não vingou; abriu-se assim uma
disparidade disciplinar entre Oriente e Ocidente que ainda hoje existe...

23
Está hoje provado que a cânone de Elvira respeitante a este assunto e tido como pioneiro em matéria de
continência dos clérigos é uma interpolação posterior, pelo que pode ser falso afirmar-se a vanguardia de
Elvira neste assunto. Sobre a história do celibato ver Comby I, 11-12.
92

No alie respeita aos leigos, recordemos quanto dito a propósito das eleições
episcopais; mas acrescentemos que alguns deles – os mais qualificados – continuam a
influir na seleção de bispos, nos concílios e na administração eclesiástica.

Os leigos mais considerados são os ascetas e as virgens. Chega mesmo a


constituir-se, no século IV, um ordo virginum. Dentro deste ordo, várias possibilidades:
-- algumas virgens permanecem em suas casas; outras reúnem-se em incipientes
comunidades;
-- algumas fazem um simples propositum (compromisso privado de castidade);
outras consagram-se a Deus de modo público e solene.

Existe desde o século IV um ritual de consagração ou velatio (traduzido à letra =


recepção do véu) das virgens. A consagração ocorria geralmente nas grandes
festividades, dentro das celebrações litúrgicas e na presença dos fiéis.

8. Origens monásticas no Oriente

O monaquismo é um fenómeno antiquíssimo, se entendido como contemptus


saeculi (= separação ou segregação do mundo). Tal segregação aparecia como condição
prévia à purificação interior e à contemplação divina.

No interior do cristianismo, a espiritualidade monástica sofreu grande incremento


no Oriente, a partir do século IV, essencialmente por obra de: a) S. Antão Abade; b) S.
Pacômio; c) S. Basílio; d) S. Sabas e S. Efrén.

a) S. Antão Abade: influi no Egipto. Faz vida anacorética (= solidão e silêncio).


Em pouco tempo aderem a ele milhares de “anacoretas”, que viviam em covas ou
cabanas, sós ou em grupos de 2 ou 3, dedicados plenamente à oração, penitência e
trabalhos manuais. “Uma vez por semana, no dia do Senhor, os solitários acorrem à
igreja comum para assistir aos ofícios divinos e escutar os conselhos dos anciãos”
(ORLANDIS, 116); Ver Comby I, 87.
93

b) S. Pacômio: influi no (Baixo) Egipto, e lança os fundamentos de um outro


género de vida religiosa: a cenobítica. Em contraste com a solidão dos anacoretas,
fomenta a vida em comum e a obediência ao superior religioso. Assim, os monges
pacomianos vivem juntos, em grandes mosteiros, e formam comunidades
numerosíssimas (às vezes com milhares de membros). Toda a vida da comunidade está
regulamentada (= Regra de S. Pacômio) e vigiada por um superior.24

c) S. Basílio: promove a vida monástica na Ásia Menor, sob forma cenobítica.


Fundou vários mosteiros e compôs várias obras sobre a espiritualidade monástica,
completando deste modo o que faltava às “Regras” anteriores. Daí o poder dizer-se que
foi ele quem deu a definitiva constituição ao regime monástico. As orientações de S.
Basílio foram acolhidas em Constantinopla pelos monges Studitas (do famoso mosteiro
Studion), os quais exerceram importante papel na história religiosa bizantina.25

d) S. Sabas e S. Efrén: difundiram o monaquismo na Palestina e na Síria.


Insistiam em extraordinárias penitências (um dos seus seguidores, de nome S. Simeão,
conseguiu passar 37 anos no alto de uma coluna situada perto de Antioquia).
Ver Historia de la vida religiosa I, 274ss.

9. Primeiro monacato ocidental

Alguns dos mosteiros surgidos na Palestina na segunda metade do século IV


tinham sido fundados por senhoras da aristocracia romana, dirijas por S. Jerónimo.
Ver Comby I, 88-89.

S. Agostinho: impulsiona o movimento ascético na África, promovendo a vida


ascética e comunitária de clero e virgens na cidade de Hipona.

S. Martinho deTours: reúne os “solitários” (=ascetas) que vão aparecendo nos


mosteiros de Ligugé e Marmoutier.

24
Os monges egípcios, quer os aderentes a S. Antão, quer os aderentes a S. Pacômio, iriam cair, no século
V, por ignorância teológica na heresia monofisita. Contribuiram assim, talvez inconscientemente, ao
aparecimento de um cristianismo copto, desvinculado de Roma e Constantinopla.
94

S. Honorato: erige um mosteiro na ilha de Lérins (onde se forma S. Cesáreo de


Arles).

Cassiano: funda o mosteiro de S. Víctor, em Marselha. As suas “Instituições


monásticas” e as “Collationes” (= Conferências) fazem dele mestre da espiritualidade
monástica ocidental. Ele exige do monge “grande pureza de coração”, desprendimento
das criaturas, prática da caridade, contemplação.

S. Bento: é o maior impulsionador do monaquismo ocidental. Chama-se até PAI


DOS MONGES DO OCIDENTE. Reuniu a sua primeira comunidade no Subiaco.
Fundou depois uma segunda em Montecassino. Esta última pauta-se por vida intensa de
comunidade, perfeitamente regulada, dividida entre oração litúrgica, lectio divina e
trabalho manual. No final da sua vida S. Bento compôs uma Regra, a Regra beneditina,
que se transformou na regra por excelência do monaquismo ocidenal.
Ver Comby I, 88-89; Linage Conde I, 101ss; História do Cristianismo, 220-221.

25
Sobre o sentido das palavras anacoreta, cenobita, monge, etc., ver Comby I, 85.
95

CAPÍTULO VIII – OS ORGÃOS DA AUTORIDADE

(Resumo do Orlandis 121-145)

1. Introdução

No capítulo anterior tivemos oportunidade de analisar o modo como o


cristianismo se foi gradualmente implementando no império. Vimos que em 311 (Edicto
de Sárdica) ele deixa de ser “superstitio ilicita” para se tornar “tolerado”; dois anos
depois respira-se no império um clima de plena liberdade religiosa e à Igreja são
restituídos lugares de culto, propriedades e bens que lhe tinham sido confiscados; vimos
igualmente que com Teodósio (constituição Cunctos populos de 380) o cristianismo se
tornou religião do Império.

Apontamos já algumas consequências destas transformações: de comunidades


cristãs passa-se a uma sociedade cristã; o catecumenado floresce em flecha para depois
desaparecer; aparece a confissão auricular, em substituição da confissão e penitência
públicas; os campos são evangelizados; aparecem as igrejas rurais, as igrejas próprias,
as paróquias; gera-se a dispersão do clero...

Feita esta síntese de anterior capítulo é agora altura de considerarmos outras


mudanças que se registaram no mesmo século IV e que se podem condensar em dois
fenómenos, a saber:
a) reestruturação da organização eclesiástica (“Na nascente sociedade cristã, os
orgãos pastorais e de governo das antigas comunidades resultavam pelo menos
insuficientes para atender às necessidades que traziam consigo os novos tempos” –
Orlandis 121);
b) distanciamento Oriente-Ocidente, do qual se tinha já apercebido Diocleciano
que inclusive dividiu o império em duas partes e multiplicou os soberanos. No decorrer
e após o século IV esse distanciamento irá acentuar-se, e cristalizar-se-á em .duas
culturas diversas, dois impérios, dois destinos diferentes (o Ocidental morre no Século
V – invasões Germânicas, enquanto o Oriental, centrado na nova Roma =
96

Constantinopla, perdurará par mais um milénio).

Passemos então agora à análise destes dois fenómenos que acabamos de


mencionar.

2. Cristianismo latino e cristianismo oriental

Vários factores contribuíram decisivamente para a separação Oriente-Ocidente.


Mencionamos alguns:
-- diferenças temperamentais entre latinos (juristas pragmáticos) e gregos
(inclinados à especulação);
-- dualidade linguística: no Ocidente e a partir do século IV o grego é substituído
pelo latim nos actos de culto. Logo no século seguinte a Cúria Romana e a maioria dos
Padres ocidentais já desconhecem o grego, enquanto os orientais ignoram cada vez mais
o latim e menosprezam a literatura escrita nessa língua. Este desaparecimento de um
Idioma comum torna-se prejudicial quando surgem controvérsias a nível teológico: há
sempre o receio das traduções incorrectas, gera-se a desconfiança. Além disso, a
incomunicabilidade obstaculiza o enriquecimento da ciência teológica: os Padres dum e
doutro “bloco” não se leêm reciprocamente (o Oriente, por exemplo, não recebeu a
transcendental aportação doutrinal de Santo Agostinho” – Orlandis 123);
-- aos poucos vai-se assim separando a Igreja latina das igrejas orientais,
encabeçadas pela bizantina, separa-se o cristianismo ocidental de outro oriental de
língua e cultura grega, copta ou siríaca;
-- Constantinopla tenta elevar-se ao nível de Roma: fundando-se na
“capitalidade”, pretende para si prerrogativas semelhantes às que disfruta a sede
romana;
-- As divergências disciplinares (p. ex. vimos atrás que enquanto no Ocidente é
imposta continência aos clérigos casados, no oriente a disciplina da continência não
vingou) e a disparidade de destinos a que aludimos atrás contribuíram a que com o
passar do tempo a distância entre as duas partes do império fosse aumentando;
-- criada a distância foi fácil passar depois à “crónica tensão”, que desembocará
no cisma de 1054.
97

3. Bispos e dioceses

Até ao século IV o bispo tem a sua acção praticamente confinada na cidade, uma
vez que os campos ainda não tinham sido evangelizados. Quando estes recebem o
Evangelho, o Bispo tem que estender a sua acção às periferias urbanas, aos espaços
rurais e aos camponeses. Abre-se assim o caminho à noção de DIOCESE (= extensão
territorial sob autoridade de um determinado bispo).

A diocese é delimitada geograficamente, e o bispo é instado a que exerça o seu


poder de ordem e governo apenas dentro do espaço que lhe está confinado ou apenas
sobre aqueles que ele rege como pastor.

Em princípio o bispo não deve mudar de diocese. Mais, o concílio de Niceia


proibiu as trasladações episcopais e até as dos clérigos maiores. Esta norma tinha por
fundamento escriturístico a indissolubilidade do matrimónio: é que, em sentido
alegórico, estimava-se que o Bispo, ao ser nomeado, contraía matrimónio espiritual com
a sua Igreja, selando uma união que só com a morte se podia romper; por isso, qualquer
mudança de diocese equivaleria simbolicamente a um adultério.

A rigidez normativa que acabamos de referir sofreu mitigações aquando das


invasões bárbaras. Nesta altura alguns bispos tiveram que forçosamente abandonar as
suas sedes e acabaram por ser postos à frente de outras igrejas. Mas passado este
período, no geral prevalece o critério anterior...

4. O Bispo e a Sociedade

O ruir do império provocou, no Ocidente, século V, um vazio de poder. A


administração pública foi-se desintegrando gradualmente; magistrados e funcionários
abandonaram as suas tarefas; o poder civil deixara de tutelar a povo.

No meio da ruína geral, a autoridade do bispo é a única que se mantém de pé. Os


Bispos vêem-se na necessidade de intervir na vida social. E fazem-no de vários modos:
98

-- defendem as gentes socialmente mais débeis – os humiles, pauperes,


miserabiles personae;
-- defendem as próprias cidades, organizando a defesa perante os invasores, e
negociando com estes. O Bispo transforma-se assim em defensor civitatis. A maioria
dos Pastores, aquando das invasões, permaneceu junto do povo e sofreu a mesma sorte
que este (cf. S.to Agostinho que morre na cidade episcopal de Hipona sitiada pelos
vândalos). Ver Daniel-Rops I, 561ss.

5. As províncias eclesiásticas

A divisão do território em províncias era típica da império romano. Sempre que


conquistavam territórios, os romanos dividiam-nos em grandes circunscrições, à frente
das quais ficava um “governador” dotado de amplos poderes. No século IV o império
contava com mais de 100 províncias.

Recalcando a divisão civil, também a Igreja, na época romano-cristã, criou uma


organização territorial, constituindo circunscrições de carácter supra-diocesano, que
tiveram entidade própria e foram dotadas de órgãos com peculiares funcões de governo
e acção pastoral. A esta demarcação supra-diocesana deu-se o nome, no Ocidente, de
Província e, no Oriente, de Eparquia. Presidia à Província o bispo metropolita, ou seja,
aquele que ocupava a sede mais importante.

Competia ao metropolita:
-- controlar as eleições episcopais nas diversas dioceses da província;
-- julgar no seu tribunal as causas providas em apelo dos tribunais diocesanos;
-- presidir aos concílios provinciais, órgão colegial do episcopado da província
onde se tratavam as questões de interesse comum, se resolviam diferenças e se legislava
sobre a vida religiosa.

6. As grandes sedes: os patriarcados

Algumas sedes episcopais ostentavam um prestígio singular, uma importância


99

superior à das simples capitais de província eclesiástica. Sedes deste tipo podem
encontrar-se quer na Igreja latina quer na Oriental.

Na Igreja latina

As sedes mais prestigiadas no século IV e seguintes são essencialmente estas:


-- a de Milão, enaltecida pela personalidade de S.to Ambrósio e por ter sido em
algumas ocasiões morada imperial;
-- a de Ravena, morada da corte nos últimos anos da vida de império ocidental, e
mais tarde capital do reino ostrogodo e da Itália bizantina;
-- a de Cartago, que sobressaía na África do Norte não só pela importância da
cidade como também pelo prestígio do seu bispo Cipriano.

Na Igreja Oriental

As sedes que se destacam são as seguintes:

-- Jerusalém, a cidade santa por excelência;


-- Alexandria: a esta a Concílio de Niceia atribui efectiva primazia eclesiástica
sobre todo o Egipto. Esta primazia fundava-se na importância da cidade em si (capital
do Egipto) e no princípio da apostolicidade (o seu primeiro bispo tinha sido o
evangelista S. Marcos);
-- Antioquia: Niceia tinha-lhe submetido a “diocese” civil do Oriente. Além disso
era a capital da Síría e nela tinha residido Pedro;
-- Constantinopla: considerou-se, desde o seu início, como “nova Roma”.
Desaparecido o Império Ocidental, ela tornara-se a nova capital do império do Oriente.
Quando nela, em 381, se celebrou um Concílio, aos seus bispos foi concedida primazia
de honra. Mas isto parecia não satisfazer ainda as pretensões da nova capital. E por isso
no Concílio de Calcedónia realizado 70 anos mais tarde as constantinopolitanos
pretendem a aprovação do famoso cânone 28, que atribuía a Constantinopla os mesmos
privilégios e honras que tinha a sede romana e, além disso, submetia à sua autoridade
jurisdicional todos os territórios do império Oriental não dependentes dos patriarcados
100

de Alexandria, Antioquia ou Jerusalém.


(Completar com Orlandis, 135 (ao meio)-136 (cimo)).

7. O Pontificado Romano e o Ocidente Cristão

Origem do primado romano: Mt 16, 18. Ao Papa corresponde, portanto, a


sollicitudo omnium ecclesiarum:
-- Primeiros séculos: os Papas sentem dificuldades, em exercer a sua autoridade
sobre a Igreja universal e sobre as igrejas particulares;
-- A partir do século IV, algumas alterações: desenvolve-se a doutrina sobre o
primado, com os contributos dos Papas S. Dâmaso (366-384), S. Leão I (440-451),
Gelásio (492-496) e Gregório Magno (590-604); os Papas podem actuar com mais
liberdade, tanto nos negócios atinentes à Igreja universal como nos respeitantes às
Igrejas particulares;
-- Século VI: como reacção ao bispo de Constantinopla que começara a usar o
ostentoso título de “Patriarca Ecuménico”, o Papa Gregório Magno acrescenta aos
títulos do Bispo de Roma (Vigário de S. Pedro, Vigário de Cristo, Papa...) o título de
“servus servorum Dei”.

A acção papal é exercida através de vários processos:


-- pelas epístolas decretais, que tentavam resolver assuntos levados a Roma pelas
igrejas locais;
-- pelos legados, isto é, presbíteros ou diáconos da Igreja romana que agiam em
nome do Papa e levavam as orientações deste às Igrejas locais;
-- pelos vicariatos Apostólicos, que podiam ser sedes episcopais (caso de Arles e
Tessalónica) ou pessoas (isto a partir de finais do século V: foram eleitos vigários
apostólicos, a título pessoal, três bispos da Hispânia).

A acção dos Papas nem sempre se confinou ao religioso. Eles tiveram também
importantes intervenções nos grandes acontecimentos políticos que marcaram a
passagem da antiguidade à Idade Média. Eis alguns exemplos:
-- Leão I vai ao encontro de Átila e salva a Itália da invasão dos hunos (452);
101

-- o mesmo Papa, três anos depois, sai ao encontro do rei vândalo Genserico que
se preparava para destruir Roma. Desta vez Leão I conseguiu apenas que se poupassem
as vidas e que a cidade não fosse incendiada;
-- quando, no século VI, se debilitou o domínio bizantino sobre Itália, Gregório
Magno e os Papas da sua época tiveram que proteger o país e as populações contra a
permanente ameaça dos ducados longobardos da Itália central.

8. O Pontificado e a Igreja do Oriente

A partir do século IV os Pontífices tentam, conscientes do seu primado, intervir no


Oriente. Só que o exercício de tal primado esbarrou com grandes dificuldades – recorde-
se quanto dito a propósito do distanciamento Oriente-Ocidente. Às causas já referidas
juntem-se estas:
-- tendências autonomistas dos patriarcados;
-- agudas interferências dos imperadores.

Alguns bispos orientais, seguindo o Concílio de Sárdica (343-344) que sancionava


o direito de qualquer bispo a apelar, em última instância, a Roma, recorreram ao Papa.
Mas foram excepção. Permaneceu, no geral, uma atitude receosa e sobretudo evitava-se
qualquer interferência de Roma no plano disciplinar.

A situação agrava-se com o cisma de Acácio, patriarca de Constantinopla (471-


489). Este instigara o imperador a que publicasse um edicto dogmático – o
HENOTICON, tendente a uma conciliação com os monofisitas. Félix II excomunga o
Patriarca; este manda retirar o nome do Papa dos dísticos da Igreja de Constantinopla. O
cisma viria a durar 30 anos; terminou quando os bispos orientais aconselhados por
Justiniano, assinaram o documento do Papa Hormisdas chamado LIBELLUS
HORMISDAE, no qual se definia expressamente o primado pontifício. Em troca os
Papas passaram a considerar Constantinopla como segunda sede da Igreja.
102

9. Concílios Ecuménicos

Os Concílios ganham novo vigor a partir da século IV. Celebram-se muitos a


nível de província ou região e celebram-se outros de carácter ecuménico, ou seja,
representando todo o orbe cristão e funcionando como órgãos colegiais supremos da
Igreja universal.
Entre os séculos IV e IX contam-se 8 CONCÍLIOS ECUMÉNICOS: vê-los em
Orlandis 141.
Curiosidades:
-- todos estes concílios se reúnem no Oriente e a maioria dos participantes são
orientais;
-- apesar da iniciativa muitas vezes partir do Papa, quem os convoca é o
Imperador;
-- os Papas aprovam as Actas e Decretos, conferindo assim aos Concílios carácter
universal;
-- o Imperador às vezes participa nas sessões, intervém activamente no Concílio e
normalmente promulga edictos confirmatórios, que garantem a protecção da autoridade
civil em ordem a um cumprimento das decisões;
-- os 4 primeiros concílios (equiparados por Gregório Magno aos “4 livros do
Evangelho”) gozaram de especial veneração na Igreja e suas profissões de fé eram tidas
como a norma mais firme da doutrina ortodoxa.

10. O Imperador Cristão

Membros da Igreja, fiéis cristãos sujeitos à autoridade dos Pastores, os


imperadores gozam, a partir de Constantino, de uma missão especial:
-- fomentam a cristianização da sociedade através de leis que promulgam;
-- dão origem a um Direito Romano cristão.

A missão especial dos imperadores facilmente. degenerava em “cesaropapismo”


portador de algumas consequências negativas:
-- tentativa de dar soluções políticas ecléticas a questões doutrinais;
103

--maior preocupação com a unidade do império do que com a verdade dogmática.

Note-se, no entanto, que naquele tempo a Igreja julgava indispensável o


contributo do imperador para a realização do plano divino e para a salvação do homem.
Por isso, “quando os imperadores bizantinos do século VII deixaram de ser para a Santa
Sé um eficaz escudo defensivo (...) os Papas viraram-se para o ocidente e procuraram no
rei franco (Carlos Magno...) o auxílio que não podiam já esperar do imperador oriental”
(Orlandis 145).
104

CAPÍTULO IX – A IDADE DOS PADRES E A FORMULAÇÃO DO


DOGMA TRINITÁRIO

A idade dos padres (Resumo)

Séc. III: florescimento da ciência teológica – cf. as duas escolas.


Séc.s IV-V: grande avanço na ciência teológica:
-- por influência das escolas
-- pelo aparecimento de novos problemas doutrinais
-- pelo clima de liberdade que a Igreja respira

1. Os grandes padres do Oriente

S.to Atanásio:
-- em Niceia – 325: defende homoousios do Filho
-- tem três “Discursos contra os Arianos”
--foi Bispo de Alexandria
-- presumível autor de “A vida e obras de n/ santo pai Antão”
Basílio de Cesareia:
-- foi Bispo de Cesareia
-- organiza a caridade – CIDADE DE EMERGÊNCIA
-- preocupa-se com a vida monástica – grandes e pequenas regras
-- preocupa-se com a ortodoxia (defende divindade do E.S.)
Gregório de Nazianzo:
-- autor de cinco “Discursos Teológicos”, nos quais
-- defende a divindade do Filho e do E.S.
Gregório de Nisa:
-- Bispo de Nisa
-- defende divindade do E.S. no Concílio de Constantinopla
S. João Crisóstomo
Cirilo de Alexandria:
-- principal mariólogo – Theotokos (= Maria, Mãe de Deus)
105

2. Os grandes padres do Ocidente

S. to Ambrósio:
-- baptizou S. to Agostinho
-- conselheiro de três imperadores (Graciano, Valentiniano II, Teodósio)
S. Jerónimo:
-- traduz do hebraico para o latim a S.E. (VULGATA)
S. to Agostinho:
-- autor das “Confissões” e de “A cidade de Deus”
S. Leão Magno:
-- dogma cristológico e teologia do primado
S. Gregório Magno:
-- autor de “Morais” e “Diálogos”
-- canto gregoriano
S. to Isidoro de Sevilha:
-- autor das Etimologias

1. Introdução

Aludimos já ao facto de no século III ter existido uma verdadeira ciência


teológica, protagonizada por homens de grande valor, inseridos em duas escolas: a de
Alexandria (na qual pontuavam Clemente, Orígenes...) e a de Antioquia (com
Tertuliano, S. Cipriano...).

A existência e influência destas escolas, o aparecimento de novos problemas de


doutrinais e o clima de liberdade conseguido pela Igreja são as causas de um enorme
florescimento da ciência teológica nos séculos IV e V.

De facto, os séculos IV e V (segundo alguns autores os séculos IV a VII, isto é,


até S. Bernardo) constituem a Idade de Ouro da patrística, tempo durante o qual a
ciência teológica fez inumeráveis progressos. No Oriente e no Ocidente aparece uma
106

plêiade de personalidades excepcionais, que uniam a santidade de vida e a ortodoxia26 a


uma destacada actividade no campo das ciências sagradas, inclusivamente no campo da
cultura em geral.

O que vamos agora fazer é recordar os padres gregos e latinos que mais fama
obtiveram e que mais contribuiram para a formulação da doutrina e teologia cristãs.

2. Os padres Orientais

a) S. to Atanásio: é o símbolo da ortodoxia católica frente ao arianismo. Esteve


presente em Niceia (era ainda diácono). No concílio e na sua teologia defende a
consubstancialidade do Filho em relação ao pai (homoousios). É autor dos três
“Discursos contra os arianos”, nos quais explica a natureza e geração do Verbo e que
serviram de base ao futuro desenvolvimento da teologia sobre a Trindade. Em 328 foi
nomeado bispo de Alexandria. O seu episcopado não foi pacífico, pois repetidas vezes
teve que defender a fé de Niceia contra os arianos, defesa que lhe custou cinco
expulsões da sua sede. Atanásio é ainda presumível autor de “A vida e obras de nosso
santa pai Antão”, opúsculo largamente difundido e suscitador de grande propagação do
ascetismo cristão. Ver Curso de Patrologia, 230ss. ; Comby I, 112 ; Insuelas, 23ss.

b) Os “Capadócios” = irmãos Basílio de Cesareia e Gregório de Nisa e o seu


amigo Gregório de Nazianzo. Ver Os padres da Igreja e a questão social, 15ss.

b1) Basílio de Cesareia: “Baptizado em adulto, depois de uma educação literária


esmerada Basílio (230-379) escolhe, durante algum tempo, a vida monástica, antes de
ser bispo da sua cidade natal Cesareia (em 370).Uma triplice preocupação marca o seu
episcopado: organização da caridade num período de constante escassez – monta uma
cidade de urgência;27 organização de uma vida monástica comunitária – compõe as
Grandes e Pequenas Regras; a preocupação da ortodoxia e da unidade numa época
agitada pelas querelas arianas. (...) Comenta a Escritura e precisa a função do Espírito

26
Estes últimos dois factores distinguem-nos dos simples escritores eclesiásticos a quem faltava pelo
menos um deles.
107

no seu “Tratado sobre o Espírito Santo”. Homem moderado e de diálogo, Basílio, a


quem deram o cognome de Grande, não viveu o suficiente para ver o fruto dos seus
esforços em favor da paz da Igreja” (Comby 112-113).

b2) Gregório de Nazianzo: é autor de cinco discursos teológicos, nos quais


defende a divindade do Filho e do Espírito Santo. Chegou, por breve período de tempo a
ser bispo de Constantinopla. Também se preocupou com os pobres.
Ver Folch Gomes, 250-263; Os Padres da Igreja e a questão social, 35ss.

b3) Gregório de Nisa: é o teólogo mais profundo deste grupo dos três
Capadócios. Chegou a ser casado, entrou depois num mosteiro, acabou por ser bispo de
Nisa. Desempenhou, sobretudo pela defesa da divindade do Espírito Santo, papel
importante no Concílio de Constantinopla. Ver Insuelas, 280ss.

c) S. João Crisóstomo: é o mais fecundo dos padres gregos, o melhor orador


(boca de ouro) e exegeta eminente. Comentou vários livros da Bíblia. Bispo de
Constantinopla durante seis anos (contra a sua vontade), não conseguiu adaptar-se à
corte imperial. As suas homilias acabaram por acarretar-lhe a inimizade da Imperatriz
Eudóxia, pelo que perdeu a sede e foi desterrado. Os muitos sermões de João
Crisóstomo visam a preparação para o baptismo (Catequeses doutrinais) e os diferentes
estados da vida dos cristãos: o sacerdócio, o matrimónio, a virgindade...
Ver Insuelas, 328ss.

d) A todos estes que mencionamos deveriamos ainda acrescentar o nosso já


conhecido Cirilo de Alexandria que manteve a doutrina ortodoxa contra Nestório e
que, devido à sua defesa do título de Mãe de Deus (theotokos) para a Virgem Maria,
deve considerar-se como o principal mariólogo entre todos os padres da Igreja. A sua
doutrina mariana foi ratificada, como se sabe, no Concílio de Éfeso (431).
Ver Insuelas, 248ss.

27
Ver a sua “homilia para o tempo da fome e da seca” – Comby I, 113.
108

3. Os grandes padres ocidentais

3.1. “O primeiro dos grandes padres ocidentais foi S. to Ambrósio (333-397), que
realizou uma notável actividade literária de exegese bíblica e de pregação, mas esteve,
além disso, no centro da actualidade, numa época singularmente conflituosa e difícil.
Ambrósio era um romano genuíno e esta realidade faz-se sentir tanto na sua brilhante
carreira civil como no seu governo pastoral de Bispo de Milão, a cuja sede foi elevado
por aclamação popular, sendo ainda simpes catecúmeno. Correspondeu a S.to Ambrósio
a honra de administrar o baptismo àquele que havia de ser o maior dos padres
ocidentais, S.to Agostinho. Coube-lhe também em sorte ser amigo e conselheiro de três
imperadores (Graciano, que o venerava como a um pai; Valentiniano II, assassinado aos
20 anos; e Teodósio, o Grande) e excomungou um deles (o último) – Teodósio, o
Grande – por causa da matança de Tessalónica; todavia, por ocasião da sua morte fez
dele um impressionante elogio fúnebre, tão sentido como a oração que pronunciara anos
antes em memória do seu antecessor Valentiniano II. A fama de Ambrósio transcendeu
a sua sede episcopal – Milão – cujo prestígio cresceu notavelmente, não só na Itália do
Norte, como também em outras regiões do Ocidente latino” (Orlandis, História Breve
do Cristianismo, 39);

3.2. S. Jerónimo: originário da Dalmácia (actual Jugoslávia), foi vagueando


durante longo tempo (passou por Antioquia, Constantinopla, Tréveris, Roma) até se
fixar em Belém. A sua obra como historiador e exegeta é notável; mas o seu grande
legado foi a tradução de numerosas livros da Bíblia directamente do hebreu e do arameu
para o latim. Esta versão é a célebre VULGATA, reconhecida como autêntica (= isenta
de erro) pelo Concílio de Trento;

3.3. “(...) o principal padre da Igreja e uma das figuras cimeiras da história cristã,
e mesmo de toda a humanidade, foi o africano (actual Argélia) Aurélio Agostinho
(354-430). As suas “Confissões” – autobiografia espiritual desde a infância até à
conversão – é uma obra prima da literatura universal (...). S. to Agostinho comentou a
Antigo e o Novo Testamento e tratou os grandes temas da teologia, que graças ao seu
contributo experimentou progressos decisivos. (...) Agostinho interroga-se acerca dos
109

acontecimentos históricos que se sucediam diante das seus olhos e em especial ante a
ruína do império romano do Ocidente, abatido pelas invasões dos bárbaros,
precisamente quando tinha chegado a ser um império cristão. Os pagãos interpretavam
estas desgraças de Roma como um castigo dos deuses, por se ter abandonado a velha
religião. Em resposta Agostinho escreveu a “Cidade de Deus”, ensaio de teologia e de
história (...) em que se pergunta pelo sentido dos tempos e pelo plano da providência
divina” (Orlandis, História breve..., 40);

3.4. S. Leão e S. Gregório Magno: “A Igreja do Ocidente conta também entre os


seus Padres dois Papas aos quais a história atribuiu o apelativo de “Magno”: Leão e
Gregório. Leão I (...) contribuiu de modo substancial para a formulação do dogma
cristológico. A teologia do primado romano e a sua fundamentação escriturística no
Primado conferido por Cristo a Pedro deve-se igualmente em boa parte a S. Leão. O
outro Papa “Grande”, Gregório (540-604), é um romano já projectado para a Idade
Média. O mundo tinha mudado muito em poucos séculos: (...) o horizonte vital de
Gregório Magno (...) era a Itália lombarda, a Espanha visigoda e a França merovíngia.
As obras de Gregório – os “Morais” e os “Diálogos” – haviam de ser lidas com avidez
pelos homens da Idade Média; e o canto “gregoriano” conservou-se vivo até à Igreja dos
nossos dias” (Orlandis, História Breve..., 40 ; Insuelas, 622ss, 638ss.);

3.5. S.to Isidoro de Sevilha: “(...) pode considerar-se em rigor o último padre
ocidental. As suas “Etimologias” foram a primeira enciclopédia cristã e a sua missão foi
ser mestre do Ocidente medieval, ao qual fez chegar as riquezas da sabedoria da
Antiguidade” (Orlandis, História Breve..., 40).

4. Formulação do dogma trinitário: o arianismo

A Idade de Ouro da patrística foi simultaneamente a época das grandes heresias a


propósito da SS.ma Trindade, da pessoa de Cristo e da graça. Serviram estas heresias
como incentivo ao desenvolvimento teológico...

Uma dessas heresias – talvez a maior da época – é conhecida pelo nome de


110

ARIANISMO, o qual, por sua vez, lança raízes em dois outros desvios doutrinais: o
sabelianismo e o subordinacionismo. Vejamos, então, primeiro o que diz o sabelianismo
e o que se entende por subordinacionismo para depois entendermos a que é o arianismo.

SABELIANISMO: movimento encabeçado por Sabélio que defende uma


exagerada unidade na Trindade, ou seja, defende a existência de uma só pessoa divina: o
Pai e o Filho constituem uma só pessoa, embora se manifestem em dois “modos” –
modalismo – diversos.

SUBORDINACIONISMO: admite igualmente a existência de uma só pessoa na


Trindade, que é o Pai. As várias variantes que se englobam sob este nome
subordinacionismo afirmam que o Filho é inferior ao Pai, ou que o Filho não é eterno,
ou que não é da mesma natureza do Pai ou que é simples homem ainda que dotado de
uma dynamis, de uma singular força divina.

ARIANISMO: de Ario, presbítero alexandrino. Ario professa um


subordinacionismo radical: não só subordina o Filho ao Pai como nega àquele a
natureza divina. Defende a unidade absoluta de Deus, fora do qual tudo quanto existe
(Filho incluído) é criatura Sua. O Verbo teria tido um início, não é eterno. Mesmo
assim, o Verbo é a mais nobre das criaturas porque a única e criada directamente pelo
Pai enquanto as outras criaturas foram geradas através do Verbo. Ver Comby I, 93.

Por dois factcres o arianismo conseguiu rápida difusão:


-- foi acolhido pelos intelectuais procedentes do helenismo, racionalistas e
familiarizados com a noção do Deus Supremo;
-- a maneira ariana de conceber o Verbo entroncava com a ideia platónica do
demiurgo, qual ser intermédio entre Deus e o mundo e artífice simultaneamente da
criação.

Consequências do arianismo: se Cristo, Verbo de Deus, não é Deus verdadeiro a


Sua morte não foi redentora, o pecado do homem não está redimido.
111

O arianismo começou por abalar a Igreja de Alexandria mas em breve se


transformou em problema para a Igreja universal. A resolução dele exigiu a convocação
do primeiro concílio ecuménico da Igreja, o Concílio de Niceia.

5. Concílio de Niceia e pós-Concílio

O concílio contou com a participação de cerca de 300 bispos.


Nele participou Ario, que pessoalmente defendeu a sua doutrina. Foi rebatido por
Marcelo de Ancira e sobretudo pelo diácono alexandrino Atanásio, os quais obtiveram
do concílio a aprovação do “símbolo” da fé que definia inequivocamente a divindade do
Verbo, empregando um termo que expressa com a máxima precisão a doutrina trinitária,
o homoousius = consubtancial. (Ver símbolo de Niceia em Comby I, 96).

O símbolo de Niceia foi aprovado quase por unanimidade: Ario e outros dois
bispos que o recusaram foram excomungados e desterrados.

Apesar da condenação nicena, o arianismo continuou a ameaçar a Igreja por muito


tempo, incrementado por um bispo em comunhão com Niceia mas na prática filo-
ariano: Eusébio de Nicomédia. Este conseguiu convencer o imperador (Constantino) de
que o único obstáculo à unidade do império eram os defensores da fé de Niceia e
conseguiu que se iniciasse contra eles uma violenta perseguição. Uma das vítimas desta
perseguição foi, como vimos, Atanásio.

Muitas dioceses, sobretudo da Ásia Menor, foram entregues a bispos arianos.


Alturas houve em que o arianismo parecia tudo levar de vencido. A este propósito é
elucidativo o testemunho de S. Jerónimo: “A terra inteira gemeu e descobriu que se
tinha tornado ariana”.

Para a vitória definitiva da ortodoxia contribuiram os Capadócios, que


conseguiram atrair muitos desviados à doutrina Nicena e o Imperador Teodósio que
firmemente aderiu à ortodoxia católica. Este imperador, para pôr termo à longa luta
doutrinal reuniu o primeiro concílio de Constantinopla (381), último grande golpe
112

contra os arianos.

6. I Concílio de Constantinopla e a divindade do Espírito Santo

6.1. Apresentação da questão cristológica

Este concílio pressupõe uma lógica: quem nega a consubstancialidade do Filho


com o Pai e o considera apenas a primeira das criaturas, com maior razão nega a
divindade de Espírito Santo. E, de facto, houve quem enveredasse por esta lógica:
Macedónio de Constantinopla. Segundo este macedonianismo, o Espírito Santo é apenas
uma criatura, ainda que superior a todos os anjos e especial dispensador das graças (os
seguidores de Macedónio conhecem-se pelo nome de pneumatómacos = inimigos do
Espírito Santo).

Também na resolução deste problema doutrinal influiram decisivamente os


Capadócios, de modo particular Gregório de Nazianzo e Gregório de Nisa. Na verdade,
estes ensinam a homoousia = a consubstancialidade do Espírito Santo em relação ao Pai
e ao Filho, e preparam a definitiva formulação doutrinal do Concílio de Constantinopla.
O Concílio sanciona o triunfo final da ortodoxia sobre o arianismo, renova a profissão
de fé de Niceia e completa a doutrina acerca do Espírito Santo: “Cremos no Espírito
Santo, Senhor que dá a vida, que procede do Pai, que com o Pai e o Filho é igualmente
adorado e glorificado, que falou pelas profetas”.

Antes do termo do século IV ficou assim formulada a doutrina acerca da SS.ma


Trindade. O símbolo niceno-constantinopolitano foi recebido como regra de fé, quer no
Oriente, quer no Ocidente. Por determinar ficavam as relações do Espírito Santo com o
Filho. E esta lacuna iria dar que falar (cf. Orlandis, 160 (3 últimas linhas)-161).
113

CAPÍTULO X – QUESTÃO CRISTOLÓGICA E DOUTRINA DA GRAÇA

No capítulo precedente vimos como se formulou a relação de Cristo no seio da


Trindade. Ficou, porém, por abordar o Cristo considerado em si mesmo, isto é, não foi
dito como sendo ele perfeito Deus e perfeito Homem n’Ele se unem, sem confusão nem
detrimento, as duas naturezas, a divindade e a humanidade.

Um primeiro erro a propósito da essência de Cristo, condenado já no I Concílio de


Constantinopla é conhecido pela nome de APOLINARISMO (de Apolinário, amigo de
S.to Atanásio). Partindo da teoria platónica segundo a qual o homem se compõe de três
elementos: corpo, alma sensitiva e alma espiritual, Apolinário diz que em Cristo o
terceiro elemento (alma espiritual) é substituído pelo Logos divino. Sendo assim
(consequência...) Cristo não é verdadeiro homem, não é homem completo, ainda que
possua na íntegra a divindade. A teoria de Apolinário contradizia, portanto, a doutrina
católica acerca da perfeita humanidade de Cristo, tão essencial aos dogmas da
encarnação e redenção. Ver História das Heresias, 99ss.

Erróneas a propósito da essência de Cristo eram também as posições quer da


escola de Antioquia, quer da escola de Alexandria. No entender destas escolas, as duas
naturezas não realizavam em Cristo senão uma união moral e relativa, por isso, mais
que de uma encarnação deveria falar-se de uma “inhabitação” do Verbo no homem
Jesus; usando uma comparação, a natureza divina teria penetrado na humanidade de
Cristo como o fogo na brasa ou ferro candente (= união acidental e externa). Portanto,
mais que de união de duas naturezas tratar-se-ia de união de duas pessoas.

2. Nestório e o Concílio de Éfeso

O Problema cristológico foi levantado expressamente quando um teólogo da


escola de Antioquia pregou contra a maternidade divina de Maria, causando profunda
tristeza no povo. Esse teólogo chamava-se Nestório. Em seu entender, Maria não teria
gerado o Filho de Deus, mas sim o homem Cristo que habitava no Verbo. Por isso, não
se lhe deveria chamar Theotokos (Mãe de Deus) mas somente Christotokos = Mãe de
114

Cristo.

Tendo tido conhecimento das afirmações de Nestório, o Papa (Celestino I)


encarrega Cirilo, patriarca de Alexandria, de obter de Nestório a retratação das suas
ideias. Cirilo redige 12 anatematismos anti-Nestório. Este não os aceita. Então,
Teodósio II convoca todos os bispos para um concílio a realizar em Éfeso.

O desenrolar do Concílio (iniciado em 431) foi muito acidentado. Na primeira


sessão é aprovada um decreto redigido por Cirilo, onde se formula a doutrina da união
hipostática e se acorda a deposição e excomunhão de Nestório. Rejubila o povo de
Éfeso, ao ver confirmado a Maria o título de Mãe de Deus.

Poucos dias depois chegam ao Concílio os bispos antioquenos chefiados pelo


patriarca João. Recusam-se a aceitar o que estava decidido e organizam-se em
assembleia separada (anti-concílio).

Depois de um período de indecisão, Teodósio II apoia o Concílio. Nestório é


exilado, Maria é reconhecida por todos como Mãe de Deus.

3. O monofisismo e o concílio de Calcedónia

O monofisismo encontra a sua origem nos teólogos alexandrinos de meados do


século V, os quais não admitem a doutrina defendida em Éfeso a propósito das duas
naturezas de Cristo. No entender destes teólogos, dizer duas naturezas equivaleria a
dizer duas pessoas. Ora, segundo eles, depois da encarnação já não existem em Cristo
duas naturezas, existe uma só – daí “monofisismo” – porque a natureza humana foi
absorvida pela divina.

O primeira a anunciar esta doutrina da única natureza em Cristo foi EUTIQUES,


superior de um importante mosteiro de Constantinopla, que se viu apoiado por um
ambicioso patriarca: DIÓSCURO de Alexandria.
115

No intuito de fazer vingar as suas ideias, Dióscuro convence o imperador


Teodósio II à convocação de um Concílio em Éfeso. O Concílio foi convocado (ano
449). Preside-o o próprio Dióscuro. O Papa (Leão I) envia legados, portadores de uma
“carta dogmática” que Dióscuro não permite seja lida. O Concílio condena a doutrina
das duas naturezas em Cristo.

A reacção contra este “sínodo de ladrões” ou “Latrocínio de Éfeso” (como lhe


chamou Leão I) não se fez esperar. O Papa S. Leão convoca um novo Concílio, agora
em Calcedónia, ano 451. Este Concílio de Calcedónia foi o mais concorrido dos
Concílios da Antiguidade. Nele se condena o “Latrocinio de Éfeso”, Dióscuro e seus
sequazes e se aprova:

Com esta definição, o Concílio de Calcedónia parecia terminado; porém


realizaram-se ainda várias sessões para tratar de questões disciplinares. Na última
sessão, ausentes os legados Papais, aprovou-se o famoso cânone 28, que não foi
aprovado pelo Papa Leão I e que constituiu desde então um dos pontos de conflito entre
Oriente e Ocidente.
116

4. Na sequência do monofisismo

O monofisismo não desapareceu após o Concílio de Calcedónia. O povo cristão


do Egipto, muito influenciado pelos monges que eram partidários apaixonados dos
patriarcas de Alexandria, considerou a condenação de Dióscuro e da doutrina monofisita
como um ataque directo contra a sua Igreja.

Dentro desse povo poucos eram os “melquitas”, ou seja, os fiéis ao império e ao


Concílio de Calcedónia (300 mil contra 6 milhões de coptas monofisitas). Daí a
preocupação que vários imperadores bizantinos tiveram de encontrar fórmulas de
compromisso entre ortodoxos e monofisitas (cf. Henoticon).

Quando Heraclio se sentiu entalado pelos persas e árabes, tentou asegurar-se a


fidelidade dos monofisitas do Egipto e Síria. Por isso buscou uma conciliação com eles,
mas sem se opôr a Calcedónia. Então a via de conciliação que arranjou, sugerida pelo
patriarca de Constantinopla Sérgio, foi esta: em Cristo existem, de facto, duas naturezas.
Mas, dada a união hipostática, em Cristo existiu um único modo de agir, uma só
“energia” humano-divina (= monoenergismo), e uma só vontade (= monotelismo).

Sérgío pensava que esta fórmula podia satisfazer a todos; aos católicos porque
mantinha a doutrina das duas naturezas definida em Calcedónia; aos monofisitas porque
a única energia e vontade simbolizavam a perfeita unidade de Cristo que eles
postulavam.

Seguindo o conselho de Sérgio, Heraclio publica, em 638, um decreto dogmático,


o ECHTESIS, que gerou grande polémica e foi um completo fracasso. O sucessor de
Heraclio (Constâncio II) acabou por ter que proibir, con um novo decreto – TYPUS,
toda a disputa sobre a existência de uma ou duas vontades em Cristo.

5. O final da questão cristológica

Dá-se no III Concílio de Constantinopla (680-681), que completou o símbolo de


117

Calcedónia com uma profissão de fé explícita nas duas energias e nas duas vontades em
Cristo.

Assim, antes de terminar o século VII ficava encerrada a última questão


cristológica e tinha-se completado um enorme esforço de formulação da doutrina da fé.

6. A questão da Graça

A finais da século IV, o mundo religioso da Península Hibérica foi agitado por
algumas doutrinas acerca da graça, que tinham como autor um monge bretão de nome
Pelágio e como divulgador na Península o asceta Prisciliano.

Pelágio preocupou-se em perceber a relação entre graça divina e liberdade


humana, isto é, em saber qual a parte que corresponde a Deus e a parte que corresponde
ao homem na salvação eterna da pessoa.

Nas suas conclusões Pelágio mostrou-se racionalista, minimizou o papel da graça


e professou, em contrapartida, um radical optimismo na natureza humana e na
capacidade desta para, com suas próprias forças, evitar o pecado e fazer o bem. Pelágio
afirmava ainda o carácter pessoal do pecado de Adão e negava que esse pecado se
tivesse transmitido à sua descendência.

Na África, o pelagianismo encontrou forte resistência em S.to Agostinho. O


contributo dado por S.to Agostinho à Teologia da salvação tem excepcional importância:
“Questões tais como o estado de justiça original, a existência e universalidade do
pecado de Adão, a necessidade da graça para as obras meritórias e, em suma, as linhas
mestras do grande problema da justificação do homem foram resolvidas por Agostinho
com tal autoridade que a sua doutrina constitui um elemento essencial do dogma
católico” (Orlandis, 175).

Porém, no calor da polémica teológica, Agostinho acabou por exagerar (=


agustinismo). Falando da predestinação e da salvação ele dizia: pelo pecado de Adão
118

toda a humanidade se converteu em massa damnata, em massa de perdição, da qual


Deus, por pura benevolência extrairia aqueles que desde toda a eternidade tinha
predestinado à salvação. Quem se salva salva-se não só pelos seus méritos pessoais mas
sim pela eficácia irresistível da graça.

Estas proposições agustinianas que, sacrificavam totalmente a autonomia humana


à omnicausalidade divina, suscitaram, como é lógico, numerosas reacções que alertaram
para a necessidade de uma correção do agustinismo.

A doutrina católica a propósito da graça foi formulada no II Concílio de Orange


(529). “O Concílio, presidido S. Cesáreo de Arles, declarou a incapacidade do homem
natural para operar, por suas próprias forças, o bem sobrenatural; a impossibilidade de
“merecer” a graça e a necessidade desta para o “início” da salvação e para a sua
consumação pela perseverança final. Excluiu-se, todavia, a doutrina agustiniana da
vontade salvífica particular de Deus e da predestinação absoluta; e condenou-se
resolutamente a chamada “predestinação ao mal”.
Com isto se fixava definitivamente a doutrina da Graça e ficava encerrada a
controvérsia suscitada por Pelágio mais de um século atrás” (Orlandis, 176).
119

CAPÍTULO XI – CONVERSÃO DOS POVOS BÁRBAROS

1. As invasões bárbaras e os novos reinos

Com a queda do império romano do Ocidente e a implementação de povos


bárbaros nos territórios das suas antigas províncias arranca o processo de formação da
Europa e o cristianismo ultrapassa os limites da cultura greco-latina para atingir a
germânica. Ver Comby I, 123.

A pressão dos bárbaros sobre o império começa já a sentir-se no século III, altura
em que Roma se viu obrigada a retificar alguns limites, abandonando certos territórios
muito avançados. A meados do século IV, empurrados pelos hunos (sediados na
Mongólia, actual China), os visigodos vêm instalar-se na actual Grécia, a sul do
Danúbio, e em 410, chefiados por Alarico I saqueam Roma, indo depois instalar-se no
sul da Gália e na Hispânia, fixando a sua capital em Tolouse.

Outras tribos bárbaras não seguiram o percurso do Danúbio mas sim o do Reno:
são elas as dos suevos, vândalos e alanos. Os suevos e alanos viriam a ser absorvidos
pelos visigodos, que na península ibérica e sul da Gália estiveram até serem destruidos
pelos árabes em 711. Os vândalos, com Genserico, atravessam o estreito e apoderam-se
da província romana do Norte de África. Genserico dominou a população e formou aí
um novo reino, que durou até 535, altura em que foi destruído pelos bizantinos
(Justiniano I, tentando reunificar o Antigo Império, mandou Belisário a combatê-los e
fundou lá o exarcado de Cartago).

A península italiana conheceu dois povos germânicos: primeiro foi ocupada pelos
ostrogodos (493-553), que fixaram a capital em Ravena e que em 476 tinham mandado
Odoacre a vencer e destronar o último imperador do Ocidente, Rómulo Augústulo. Os
ostrogodos desapareceram aquando da reconquista bizantina levada a cabo no tempo de
Justiniano II, com a ajuda dos longobardos (ano 568), que lá permaneceram até serem
destruídos por Carlos Magno (em 774).
120

Na Gália Oriental existiu, durante quase um século (443-534) um reino burgúndio,


que os hunos vieram destruir e cujo resto seria anexado ao reino franco (a região onde
ficou esse resto ainda hoje se chama Borgonha; os hunos, à morte do seu grande chefe
Átila, foram progressivamente perdendo força).

Os francos ocupavam, por volta do ano 480, uma região de proporções diminutas
no nordeste da Gália. Conseguiram depois expandir-se muito, no tempo de Clodoveu
(ou Clóvis). Essa expansão foi tal que em pouco tempo o reino franco passou a
compreender a maior parte da actual França e amplas regiões da Bélgica, Alemanha
Ocidental e Áustria.

De todos os reinos barbáricos fixados no Ocidente e que mencionamos, o reino


franco foi o único que conseguiu sobreviver ao longo do tempo, entrelaçando-se em
continuidade com a França dos séculos posteriores.

Resumindo, e em linhas muito gerais:


-- a norte da Península Ibérica, os suevos;
-- resto da Península Ibérica e sul da Gália, os visigodos;
-- no Norte de África estão os vândalos;
-- em Itália, após ostrogodos, estão os longobardos;
-- no Norte da Gália estão primeiro os burgúndios, depois os francos que
estendem o seu domínio até à Bélgica, Alemanha ocidental e Áustria;
o resto da Alemanha foi ocupada pelos Alamanes, Bávaros e Turíngios.

2. Origens e causas do arianismo germânico

Dentre os povos invasores, uns nunca chegaram a incorporar-se à Igreja, tendo


permanecido arianos até à sua extinção como grupo nacional (caso dos ostrogodos e
vândalos); outros começaram por ser arianos, mas depois aderiram à fé católica.

Como explicar esta adesão bárbara ao arianismo? Eis algumas causas:


a)“O arianismo penetrou nos povos germânicos através dos visigodos, o primeiro
121

dos povos barbáricos que recebeu o cristianismo” (Orlandis 182). Ora quem o
cristianizou foi Ulfilas, um bispo que tinha sido sagrado em Constantinopla pelo famoso
ariano Eusébio de Nicomédia. Durante os 40 anos do seu episcopado Ulfilas
desenvolveu grande actividade entre as godos e sobretudo levou a cabo uma versão da
Bíblia em língua gótica, tendo tido previamente que compôr um alfabeto, pois que os
godos ainda não tinham escrita;

b) “A conversão dos visigodos ao arianismo teve uma considerável repercussão na


atitude religiosa de outros muitos povos barbáricos contemporâneos”. Muitos deles
converteram-se ao cristianismo, mas optaram igualmente pela confissão Ariana;

c) vários Imperadores impulsionavam o arianismo. Desses destaque-se Valente,


um dos grandes responsáveis da educação ariana dos visigodos (ele mesmo era ariano e
foi quem mandou missionários aos visigodos);

d) o arianismo era uma forma de os minoritários invasores manifestarem a sua


autonomia em relação à mais numerosa população romana. Era uma forma de afirmação
de personalidade, de evitar misturas ou confusões. A isto se deve que o arianismo destes
povos quase nunca tenha sido proselitista, nem tenha sido imposto pela força às
povoações de origem provincial romana (excepção: os vândalos da África do Norte, que
organizaram sistemáticas perseguições. Outras perseguições esporádicas existentes
deveram-se mais a motivos políticos – busca de unidade – que religiosos).

3. Do arianismo ao cristianismo católico

“Ao longo do século VI vários povos germânicos consumaram a sua evolução


religiosa e, abandonando o arianismo, abraçaram a fé católica” (Orlandis 185). Os
primeiros a converterem-se foram os burgúndios, sob influência dos francos católicos;
depois converteram-se os suevos da Galiza, por obra de S. Martinho de Dume; depois
converteram-se os visigodos.
122

3.1. Conversão dos suevos

Da história do reino suevo pouco sabemos, mas uma carta do Papa Virgílio de 538
dirigida ao Bispo de Braga diz-nos que eram arianos, embora não criassem obstáculos à
Igreja Católica. Sabemos igualmente que, além do arianismo, no reino suevo existiam
ideias priscilianistas e restos de paganismo.

Como se sabe, o priscilianismo, caracteriza-se, de entre outras coisas, pelo


seguinte:
-- erros sabelianos acerca da Trindade (a Trindade seria uma pessoa ou princípio a
manifestar-se em três modos);
-- docetismo a respeito de Cristo;
-- negação de que o Deus do Antigo Testamento seja o mesmo do Novo
Testamento.
O priscilianismo começou a desaparecer quando Paterno (Bispo de Braga) e dois
bispos de Astorga renunciaram aos seus erros, no I Concílio de Toledo (ano 400). Mas
ainda tinha muitos adeptos no tempo de S. Martinho de Dume (cf. Concílio de Braga de
561).

Da existência do paganismo no reino suevo também não pode duvidar-se. Bastará


recordarmos os livro De Correctione Rusticorum e a colecção de Cânones da autoria de
S. Martinho de Dume (ler O Concílio de Braga e a função da legislação particular da
Igreja. Actas da XIV semana internacional de Direito Canônico. (Braga, 1975) 113-
114.
Por volta de 550, o rei suevo Cararico, impressionado pelos milagres operados no
sepulcro de S. Martinho de Tours, converte-se ao catolicismo e abre espaço à actividade
missionária da Igreja Católica. E ao sucesso desta actividade contribui um monge vindo
da Panónia (Hungria), de nome Martinho, que funda em Dume um centro de missão.
Martinho de Dume, que depressa se torna metropolita de Braga (depois de 561-580),
fundou a Igreja nacional do reino dos suevos.
123

3.2. Conversão dos visigodos

No início, e à semelhança do que tinham feito outros povos germânicos, os


visigodos adoptam um sistema dualístico, separando estado e sociedade. Pretendiam,
portanto, a existência de um único estado, mas mantendo os godos e as romanos a sua
própria identidade.

Tal sistema, porém, rápido se mostrou anacrónico e ineficaz. Embora proibidos


por lei, começam a aparecer matrimónios mistos (entre godos e romanos). O próprio rei
Teudis casou com um dama da aristocracia hispano-romana, e publicou leis comuns
para os dois grupos raciais. Os contactos políticos, militares, eclesiástico-culturais
levam muitos godos a abraçarem o cristianismo e fazem com que alguns dos seus chefes
religiosos passem a integrar a hierarquia católica.

No início do seu reinado, Leovigildo viu-se na necessidade de instaurar no seu


reino a unidade, quer a nível externo, quer interno. Para conseguir a primeira, subjugou
a aristocracia do Norte da Hispânia e logrou êxitos sobre os suevos (que viriam a ser
definitivamente conquistados em 585) e sobre os bizantinos. Em 573 assegurou o futuro
da dinastia, elevando os seus dois filhos – Hermenegildo e Recaredo – à classe de
consortes regni.

Mais difícil de conseguir foi a unidade interna, à qual se devotou, ao que parece,
entre os anos 578-580. Como primeiro passo para a unidade anulou a proibição dos
matrimónios mistos (já antes desrespeitada) e mandou unificar a legislação para os dois
grupos raciais.
Por resolver ficara ainda o problema religioso, que assume capital importância
quando Hermenegildo, regente da zona Bética, residente em Sevilha, casado com uma
católica franca convicta (Ingunda) e sujeito à Influência de metropolita Leandro adere
ao catolicismo. A adesão de Hermenegildo ao catolicismo provocou a ruptura com o
pai, defensor da “religio goda”; este último parte à conquista de Sevilha e Córdova (ano
584). Instado a retratar-se, Hermenegildo não o fez. Foi preso e assassinado em
Tarragona, na páscoa de 85.
124

Prosseguindo os seus intentos de unificação sob o signa ariano, Leovigildo


convoca um concílio em Toledo e tenta atenuar as diferenças dogmáticas entre católicos
e arianos admitindo, por exemplo, a consubstancialidade do Filho com o Pai. Obteve
alguns êxitos mas passageiros porque...

Seu filho e sucessor, Recaredo (586-601) abraçou s fé católica dez meses após ter
assumido o governo (587). Facilitou depois a passagem do clero e bispos arianos para o
catolicismo conseguindo a integração deles no clero católico. Quanto ao povo, e uma
vez convertido o soberano, fácil foi unificá-lo sob o signo católico.

3.3. Conversão dos longobardos

Quando parte do actual território italiano estava sob o domínio do ostrogodo


Teodorico, os longobardos eram aliados dos francos e bizantinos. E este pacto político
marca o início do catolicismo entre os longobardos, embora isso não signifique uma
decisão peremptória deles em favor do catolicismo.

Justiniano I tinha conseguido recuperar a Itália e extinguir o domínio ostrogodo.


Para manter a posse deste território contra eventuais invasões de outros povos
germânicos, consentiu que os longobardos ocupassem as terras compreendidas entre o
Danúbio e o Sava. Não satisfeitos com o pedaço de terra que lhes tinha tocado em sorte,
os longobardos tentam expandir-se. Começam por derrotar os Gépidas (povo da família
dos godos e encorajados por este sucesso invadem o Norte da Itália (568-572). Esta
acção militar parece ter comportado a adesão dos longobardos ao arianismo, pelo
seguinte motivo...

Os langobardos costumavam assumir os restos das tribos derrotadas não como


escravos, mas na qualidade de novos sócios das suas tribos. Ora para facilitar esta fusão
com os Gépidas e ostrogodos derrotados, o rei Alboino decidiu-se pelo arianismo.

Sob a regência de Agilulfo, e muito por influência da sua mulher Teodolinda, dá-
125

se uma mudança na política religiosa longobarda. Embora o rei tenha permanecido


ariano, promoveu a colaboração com os romanos, assumiu inclusive muitos no seu
conselho real, e deixou que o seu filho fosse baptizado na Igreja Católica (cismática:
questão dos “três capítulos” de que falaremos adiante). Mais ainda: deu refúgio ao
missionário irlandês Columbano, que em Bobbio fundou um importante mosteiro.

Um outro grande passo dos longobardos em direcção ao catolicismo deu-se no


tempo de Arioaldo, também aqui por influência da esposa Gundeperga (católica não
cismática). Sob influxo desta, o mosteiro de Bobbio une-se à sede romana e torna-se
centro missionário entre os longobardos.

Nesta viragem longobárdica em direcção a Roma e ao catolicismo não cismático


pontuaram ainda Ariperto, que confessa a fé católica de observância romana e abole o
arianismo como religião do Estado, e Perctarit, que representa a vitória definitiva do
catolicismo e ajuda o Papa na restauração da Igreja do Norte de Itália.

4. A conversão dos francos

“Nos anos de transição do século V ao VI, quando o arianismo exercia um


predomínio indiscutível entre os povos invasores germânicos, teve lugar um
acontecimento que estava destinado a revestir transcendental importância na história da
Igreja: a conversão dos francos ao catolicismo” (Orlandis 186).

Ao contrário de muitos outros povos germânicos, os francos mantiveram-se


pagãos até que no ano 482, começa a reinar um jovem monarca, Clodoveu. Nesta altura
a maior parte do território franco estava sob domínio dos visígodos e burgúndios, ambos
arianos. E “a população galo-romana não sentia nenhuma inclinação por estes
dominadores heréticos e considerava como seus chefes naturais os bispos...” (Orlandis,
186).
Uma vez no trono, este novo rei Cloluveu, começa a sua caminhada para o
cristianismo: casa com uma princesa católica da Borgonha, chamada Clotilde; baptiza
os filhos; recebe o “sinal do céu”:
126

“No ano 496, francos e alamanes enfrentam-se na sangrenta batalha de Tollbiac.


O exército franco estava a ponto de ser vencido, e nessa hora de angústia, Clodoveu
invoca Jesus Cristo (que Clotilde proclama o Filho de Deus vivo), e promete fazer-se
baptizar se, como sinal, lhe outorga a vitória sobre os seus inimigos. Subitamente muda
a sorte do combate: os alamanes retrocedem, seu rei morre na luta e todo o exército
inimigo se rende ante os francos. Clodoveu cumpriu a sua promessa e recebeu o
baptismo numa data que não pode precisar-se com absoluta certeza: o 25 de Dezembro
de 500. Um importante grupo de guerreiros do séquito régio – 3000, segundo Gregório
de Tours – seguiram o exemplo do seu chefe e receberam também o baptismo”
(Orlandis, 137).28
Eis o relato de S. Gregório:

Clodoveu foi o primeiro monarca Germânico a abraçar o catolicismo. Durante


alguns anos o cristianismo estaria bem vivo entre os Francos. Essa vivacidade está
patente nos quatro concílios nacionais do século VI e no de Paris do século VII, no
contributo à evangelização de outros povos Germânicos (de que falaremos a seguir), na
obra de S. Gregório de Tours e Venâncio Fortunato (italiano, radicado na Gália, e autor
do hino Pange lingua.

28
Sobre a importância do “exemplus regis” a das princesas católicas ver Orlandis 189-191.
127

5. Conversão dos Alamanes, Bávaros e Turíngios

5.1. Os Alamanes

Até terem sido derrotados pelos Francos, os Alamanes eram pagãos; após
conquista de Clodoveu (496 ou 497), os mais influentes aproximaram-se da nova
religião e a parte setentrional do território ficou sob domínio Franco.
Quer nos territórios que ficaram sujeitos aos Francos, quer nos pertencentes aos
nobres Alamanes, depressa surgiram igrejas e capelas dedicadas a S. Martinho, a
S.Miguel Arcanjo, a S. João Baptista...
Importante na cristianização deste povo foi a fundação da sede episcopal de
Constança, junto ao lago homónimo. Constança viria a ser uma das dioceses maiores e
mais célebres da Alemanha.
O influxo do cristianismo sobre o povo Alamano era já forte no séc.VI, de tal
modo que os vários chefes das várias estirpes, reunidos em assembleia, decidiram
aceitar a nova religião.

5.2. Os Bávaros

Também eles tiveram que reconhecer (por volta de 540) o domínio dos Francos,
embora tivesse continuado a existir (até finais do séc. VIII) a casa ducal dos
Agilulfingos, da qual saira Teodolinda, Rainha dos Longobardos.
O principal evangelizador deste povo foi S. Ruperto, vulgarmente chamado
“apóstolo da Baviera”; a ele se deve a construção do mosteiro de S. Pedro em Salzburgo
(actual Áustria); o principal organizador eclesiástico foi S.Bonifácio, que dividiu o
território em quatro dioceses (Passavia, Ratisbona, Salzburgo e Frisinga).
Da Baviera haveriam de partir missionários que grande contributo prestaram à
evangelização dos eslavos (particularmente dos residentes na Morávia e Boémia) e
Húngaros.
128

5.3. Turíngios

Ocupavam a actual zona central da Alemanha. Ficaram sujeitos aos Francos em


531. Alguns Francos fixaram-se na zona sud-ocidental, que assim se foi cristianizando
assumindo o nome de Fracónia Oriental.
Quem se encarregou de completar a obra de conversão e de lançar as bases da
organização eclesiàstica foi S. Bonifácio. A maior diocese desta região foi a de
Würzburg, cujo primeiro bispo foi o Anglo-Saxão Burcado.

6. As Crintandades Célticas

Os inícios de uma missão cristã sobre as ilhas britânicas ressaltam possivelmente


ao tardio segundo século; para sermos precisos, essa missão abrangia somente a parte
romanizada da ilha maior, então chamada Británia, uma vez que a parte setentrional e a
Hibérnia (= Irlanda) nunca estiveram sob o lmpério Romano.
No tempo das invasões Germânicas (Anglos e Saxões) por volta de 450, a igreja
perdeu terreno, dado que muitos Bretões emigraram para fugir aos invasores. Muitos
destes fugitivos acabaram por organizar-se religiosamente e por fixar-se na zona hoje
conhecida por Bretanha (noroeste da França).

6.1. Cristianisno na lrlanda

Enquanto na Británia esmorecia, o cristianismo cristalizava-se na Irlanda.


Dizemos “cristalizava-se” pois que, embora S. Patrício seja apontado como primeiro
missionário da ilha “Hibérnia” e dos “Scoti”, o certo é que já antes dele existiam
pequenos grupos cristãos, aos quais o Papa Celestino mandara em 431 o bispo Palladio.
De qualquer forma, o nome de S. Patrício está em profunda cenexão com a
conversão da Irlanda, e com toda a razão se lhe atrubui o nome de “apóstolo” daquela
ilha.
A cronologia da sua vida é ainda hoje muito discutida. Possuimos uma sua
“confessio”, mas que não reporta qualquer data. Pior ainda: existe uma dupla tradição a
respeito da sua morte. Segundo uma tradição, a data da morte seria a ano 461; segundo
129

outra, seria o de 491 ou 492.


Numa data as fontes estão de acordo: a da chegada do missionário à Irlanda, que
se deu no ano 432. Sabemos também que foi raptado pelos “Scoti” quando tinha 16
anos, foi feito escravo e durante o tempo da escravatura converteu-se. Ao fim de 6 anos
conseguiu fugir e tornou à sua pátria, a Britânia.
Uma vez na pátria sentiu-se chamado ao apostolado entre os raptores. Instruído e
ordenado Bispo desembarcou em 432 na Irlanda Setentrional, enquanto Palladio
trabalhava no sul da ilha.
Percebendo a importânia do “exemplus regis”, Patrício procurou antes de mais
nada a ajuda dos reis tribais (recorde-se que a população estava dividida em grupos
tribais) no Ulster, onde fundou o centro missionário de Armagh, a sua sede episcopal.
Apesar de as tradições pagãs terem permanecido ainda durante muito tempo,
Patrício demonstrava ser hábil no “baptizar” os velhos ritos e festas; onde existiam
centros de culto pagão, em breve surgiria uma sede episcopal. E assim quando Patrício
morreu o cristianismo sobre a ilha verde estava já assegurado.
A Igreja irlandesa apresenta, desde o seu ínicio, características peculiares: ela
organiza-se à volta do mosteiro, que é ao mesmo tempo centro de vida religiosa e de
cultura; os cristãos inclinam-se ao ascetismo e à prática das mais duras mortificações
corporais; existe grande preocupação pela moral, preocupacão que originará os famosos
livros penitenciais (= manuais para confessores, onde ao elenco dos pecados concretos
corresponde um elenco das penas ou penitências a atribuir pelo confessor); fomenta-se o
culto de todos os santos; o cômputo pascal não segue o ajustamento romano realizado
por Dionisio, o Pequeno; existe uma grande preocupação missionária:
“Os monges celtas praticavam, como um dos exercícios próprios da vida ascética,
a “peregrinação por amor de Deus”, que os levava a não ter morada permanente aqui na
terra, impulsionando-os à aventura apostólica. Assim, S. Columba (521-597) foi o
promotor da evangelização da Escócia, e S. Columbano (540-615), depois de se
preparar no mosteiro de Rangor, partiu para terras ainda mais distantes: a França
merovíngica, o país das alamanes, a Suiça actual e até à Itália do Norte (...) Assim, por
muitas terras da Europa continental, a tradição cristã céltica foi deixando pégadas mais
ou menos profundas na vida da Igreja” (Orlandis, 193).
130

6.2. Evangelização dos Anglo-Saxões

Quando estes invasores Germânicos se impuseram à população Celtico-Românica,


o cristianismo sofreu, como dissemos, notória baixa. Em alguns centros eclesiásticos
antigos, tais como York e Londres, além da Romanitas quase se perdia mesmo o
cristianismo.
A hostilidade existente entre invadidos (população Céltico-Romana) e invasores
fez com que os primeiros se recusassem a evangelizar os segundos. Daí que o primeiro
impulso de evangelização dos Anglo-Saxões tenha surgido da parte dos Francos, através
da merovíngica princesa Berta.
Esta princesa casou com Etelberto, Rei de Kent (um dos sete reinos em que a
Inglaterra estava dividida) e conseguiu dispor o Rei a abraçar o cristianismo.
Aproveitando-se desta situação, o Papa Gregório Magno enviou de Roma um grupo de
monges, encabeçado por Agostinho.29 Os monges chegaram a Kent em 597, e no natal
desse mesmo ano Etelberto recebeu o baptismo, e juntamente com ele uma multidão de
nobres e súbditos.
Como o Rei de Essex entretanto também se convertera, Agostinho tratou de
construir uma Igreja única para toda a ilha, que compreendesse quer os convertidos
Anglo-Saxões quer os velhos cristãos Bretões. Estes últimos não aceitaram o plano de
Agostinho.
À morte do monge (604) registaram-se situações críticas nos reinos já
evangelizados e retornos ao paganismo. Mas a obra evangelizadora viria a sofrer novo
importante impulso com a chegada de Teodoro de Tarso, que conseguiu organizar
firmemente as estruturas da Igreja.
Tal como na Irlanda, também na Inglaterra Anglo-Saxónica florescem os
mosteiros, focos de cultura e irradiação missionária. Aos monges Anglo-Saxões se deve
exactamente a evangelização da germânia ainda pagã.

Chegados ao fim deste capítulo é altura de tirarmos algumas conclusões:


-- até início do séc.VIII, a maior parte da Europa está ou convertida do arianismo
ao cristianismo, ou então cristianizada;

29
Ver Comby I, 127.
131

-- alguns dos povos evangelizados transformaram-se dapois em evangelizadores,


merecendo especial referência os Francos e os Irlandeses;
-- as Princesas católicas e as Reis foram grandes agentes de evangelização. Papel
evangelizador relevante foi também exercido por vários monges e respectivos
mosteiros;
-- o estilo irlandês, que teimou em permanecer específico, influi largamente quer
na Inglaterra e Escócia quer, depois, em toda a Igreja, mormente no tocante à moral.

Apenas mais duas notícias, que nos ajudam a perceber o porquê da rápida
expansão do cristianismo entre os “bárbaros”: a primeira notícia tem a ver com a
religião deles; a segunda, versa a relação deles com os romanos.
Quanto à religião dos “bárbaros”: estava em franca decadência, quando eles
apareceram. Indícios desta decadência são a grande superstição em que viviam e o
fatalismo paralisante em que se moviam. Mas em contraste com esta decadência, esses
povos possuiam uma alta moralidade, reconhecida pelos seus próprios inimigos. Por
isso o “evangelho” apareceu aos olhos dos “bárbaros” como uma “alegre notícia”, que
eles aceitaram, salva raras excepções, de boa vontade.
Relativamente à relação romanos-germânicos importa dizer o seguinte: o
relacionamento entre eles nem sempre foi tão difícil quanto à primeira vista possa
parecer. Por vezes foi até fácil e nada hostil.
De facto, muitos germânicos tinham já sido criados na civilização romana. Desde
o século III inteiras tribos de povos germânicos eram toleradas dentro das fronteiras do
império, com a única obrigação de ajudarem militarmente o imperador romano em caso
de necessidade.
Mais ainda: algumas vezes encontramos bárbaros a lutarem do lado do império
romano. Assim sucedeu no tempo de Justiniano I: este chamou, como vimos, os
longobardos para o ajudarem a expulsar da Itália os ostrogodos.
Teodorico, rei ostrogodo (493-526), foi reconhecido por Bizâncio como “patricius
romanorum”, aparecendo assim diante dos romanos como vigário do imperador do
Oriente, enquanto que para os germânicos era rei.
Os visigodos conviveram de perto com os romanos. Quando os suevos e os
visigodos se converteram ao cristianismo, as diferenças étnicas entre estes povos e os
132

romanos acabaram mesmo por desaparecer.


Em contraste com os ostrogodos e visigodos estão os vândalos, os quais se
mostraram sempre hostis aos católicos e aos romanos (recorde-se que eram arianos.
Foram destruídos por Justiniano I em 534).
Na Europa, o povo mais importante, o que mais influiu na história do Ocidente,
foi o franco. Clodoveu (481-511) foi nomeado consul pelo imperador romano oriental
Anastácio. Ele não tinha problemas em aparecer diante dos seus “bárbaros” com túnica
de púrpura e diadema (símbolos da dignidade consular), embora o seu reino em nada
dependesse do império bizantino. Os próprios galos (da Gália) não colocaram
dificuldades de maior em pagarem os seus tributos aos novos invasores, os francos, em
vez de os pagarem aos romanos. E inclusivé a chanceleria franca, pouco depois da
invasão, não teve pejo em emitir os documentos oficiais em latim, embora se regulasse
pelo direito germânico e não pelo romano.

Tudo quanto até aqui foi dito antecede o séc. VIII, porque a partir deste, como
veremos, a situação da Europa vai alterar-se. Mas isso deixamos para a história da Idade
Média...

Islamismo

O Islamismo – a religião dos árabes – foi fundada por Maomé, no século VII.
Antes dele, os árabes adoravam a força da natureza e os astros, e tinham em Meca um
Santuário – a Kabba – onde se guardava a pedra negra.
Reconhecendo embora um Deus superior, davam mais importância aos seus
numerosos ídolos. A cidade de Meca, além de grande centro de comércio, era a cidade
sagrada, lugar de peregrinações.

O Islão é, numericamente, a maior religião do mundo (500 milhões de fiéis),


depois do Cristianismo. Está espalhada sobretudo no norte de África e no sudoeste da
ásia. Depois do Judaísmo, é o islão que oferece mais traços de parentesco com o
Cristianismo.
A palavra árabe “Islão” significa “submissão”, “abandonado a Deus”. A fórmula
133

“In Châ Allah” (se Deus o quiser) exprime a fé na actuação constante de Deus sobre o
universo.

Maomé
Nasceu em Meca no ano 570. Ficou orfão de pai e mãe muito cedo e foi entregue
a um tio que resolveu encaminhá-lo para o comércio.
Deslocando-se em caravanas estableceu contactos comerciais com a Arábia, Síria
e Palestina. Neste último país tomou contacto com a Sagrada Escritura e com a figura de
Jesus Cristo. Então, Maomé abandonou o comércio e empenhou-se numa reforma
religiosa.
Um dia pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia: “Maomé, tu és o enviado de Deus”.
Desde este momento teve a certeza que Deus o destinava para ir levar aos homens a Sua
Mensagem, à semelhança dos antigos profetas. Nos primeiros tempos encontrou uma
grande resistência por parte dos ricos e autoridades que achavam que a sua doutrina
contra os ídolos, afastava as peregrinações de Meca.
Os seus seguidores fiéis foram além da sua família, os que nada tinham, os pobres
e os perseguidos.
Passou dez anos de luta silenciosa durante os quais teve que mandar para a
Abissínia muitos dos seus fiéis e ele próprio teve que fugir para Medina, que quer dizer
“cidade do profeta”. (A data da fuga – hegira – é o início da era muçulmana).
Então, Maomé, tornou-se, simultaneamente, chefe político e religioso e um
diplomata de grande talento.
Maomé morreu em Medina, a 8 de Junha de 632.

Duas verdades:
-- Allah é um, Allah é grande.
-- Maomé é o Profeta de Allah, embora precedido de outros profetas como
Abraão, Moisés e Jesus.

O muçulmano crê nas criaturas invisíveis, na imortalidade da alma, no julgamento


de Deus, na ressurreição da carne, no paraíso e no inferno.
134

As obrigações:
-- A profissão de fé num Deus Único: Allah; “Não há outro Deus além de Deus,
Maomé é o Profeta de Deus”.
-- A oração, cinco vezes ao dia, voltados para Meca. Há ainda a oração pública
feita ao meio dia de sexta-feira, na mesquita.
-- O jejum de Ramadan – abster-se de comer e beber desde o nascer ao pôr do Sol,
durante o mês lunar.
-- A esmola – dada aos pobres segundo a consciência de cada um; quando os bens
ultrapassam um mínimo, os fiéis uma determinada quantia para as necessidades da
comunidade (“imposto religioso”).
-- A peregrinação a Meca – obrigatória pelo menos uma vez na vida.

O Corão:
Para o muçulmano, o texto sagrado do Corão é a maior riqueza terrena. Nele
encontra os ditames da fé, da vida cumum, leis e sugestões. Não há muculmano que não
possua um exemplar, e não é raro encontar muculmanos que o saibam todo de cor.
Compõe-se de 114 capítulos (suras); alguns dos quais muitos extensos (286 versículos)
e outros muito breves (3 versículos), num total de 6236 versículos formados por 7924
palavras e 323621 letras.

Ao lado de diferenças fundamentais, o Islamismo e o Cristianismo apresentam


vários aspectos comuns: a fé num Único Deus, a crença numa Revelação, a veneração
de Maria, um esforço moral e espiritual.

Jesus no Islão
O capítulo XIX do Corão é dedicado a Maria Virgem, muito venerada por todos
os fiéis muçulmanos e que eles consideram Mãe puríssima. De resto, o Corão fala
muitíssimo de Jesus, tido como um grande profeta.
135

A ARTE APÓS O SÉCULO IV

Segundo DANIEL-ROPS, A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires, ed.


Quadrante (S. Paulo 1988)

A arte cristã em plena luz do dia

Desta rápida expansão do cristianismo, desta exploração de vitalidade que faz


pulular os monges e ecoarem os coros dos fiéis nos atos litúrgicos, resta-nos evocar os
seus dois testemunhos mais expressivos: a brilhante manifestação da arte cristã e a
realização das promessas que a literatura cristã havia feito desde os primeiros tempos.
Ao contrário do que.se tem dito muitas vezes, não foi a conversão de Constantino
que marcou o começo da arte cristã. Se é verdade que, nos dias em que estava proscrita
e era perseguida, a Igreja não tinha senão uma arte modesta e limitada pela sua situação
de clandestinidade, não podemos deixar de considerar pouco equitativo o juízo de
Leclercq: “Durante o período que precedeu o triunfo da Igreja, o cristianismo inspirou
artesãos, mas não possuiu um único artista”. Na sua imperícia e na sua rusticidade, seria
tão desprovida de engenho essa arte.das catacumbas, cujas lições não foram esquecidas
por um Rouault?
Já no século III a arte cristã tomara forma, ao libertar-se das influências pagãs;
favorecida pelas longas pausas que se abriam na perseguição, começara a sair das
obscuridades subterrânas e, conforme diz Eusébio, “cada cidade fizera surgir do chão
vastos edifícios”. O que a conversão de Constantino provocou foi a proliferação dessa
arte, a sua efetivação e o cunho que ela vai imprimir na própria vida. Enquanto os
objetos familiares se cristianizam – são numerosas, por exemplo, as lâmpadas de azeite
que ostentam símbolos cristãos –, erigem-se numerosas igrejas, multiplicam-se os
sarcófagos com ornamentos evangélicos e os mosaicos cristãos cobrem já muitas
paredes. Nota-se um impulso que nada poderá deter.
A igreja, edifício do culto – tal como Constantino e Helena, e depois os seus
sucessores, a mandaram construir – é essencialmente a basílica, isto é, a antiga sala de
reunião dos romanos, que se destinava a muitos fins, sobretudo à administração da
justiça. Algumas seitas religiosas já tinham utilizado edifícios deste gênero para as suas
136

assembléias cultuais, como por exemplo os pitagóricos, cuja basílica foi encontrada na
Porta maior de Roma.
A basílica era uma construção alongada com três naves, cujo teto e vigamento
assentavam sobre colunatas, completadas por um vestíbulo à imitação do que existia nas
casas e, às vezes, por uma parte arredondada num dos extremos, a ábside, em que se
situava o altar. Este tipo foi certamente o mais espalhado: São Pedro, São Paulo extra-
muros, São João de Latrão, Santa Inês, Santa Maria Maior, São Lourenço extra-muros,
eram desse tipo no seu estado primitivo, para não citarmos senão igrejas romanas, e
ainda hoje se vê, quase intacta, Santa Sabina, erigida nos primeiros anos do século V. A
igreja de Tiro, dedicada em 314, e a grande basílica de Jerusalém, consagrada em 335,
eram sem dúvida deste modelo.
Mas este tipo não é o único. Conhecem-se – sobretudo no Oriente – igrejas que
não são mais do que uma sala quadrada coberta com uma cúpula e com ábsides, modelo
certamente de origem iraniana; ou igrejas em forma de cruz com os quatro braços
iguais, e até Igrejas inteiramente circulares, inspiradas em salas das termas ou dos
mausoléus, numa disposição que os batistérios hão de conservar. Talvez se deva à
influência oriental a aparição do transepto, em meados do século IV, que torna
cruciforme o plano da basílica, imprimindo-lhe claramente um valor simbólico.
Visitando esta ou aquela basílica constantiniana – Santa Sabina, por exemplo –, é
fácil imaginar o que poderia ser uma cerimônia numa igreja primitiva. O átrio é
reservado aos catecúmenos e penitentes; na nave principal amontoam-se os fiéis,
homens à direita e mulheres à esquerda; em frente, separado por grades, está o coro,
onde se instalam os presbíteros; no vão da ábside, a cadeira episcopal.
As igrejas são ornamentadas tanto no exterior corno no interior. O luxo destas
ornamentações parece impressionar muito os contemporâneos. Prudêncio consagra
descrições repassadas de fervor e de graça à decoração das basílicas de Constantino:
“Pinturas multicolores, remirando nos lagos o seu ouro, que a água matiza de reflexos
verdes. Tetos com vigas de ouro, que fazem de toda a sala como que um nascer do sol.
Nos vãos, vitrais rutilantes, semelhantes a prados repintados de flores”. É um hábito
quase geral cobrir as paredes dos edifícios religiosos com painéis decorativos, pintados
ou de mosaico. Mas não deixam de manifestar-se algumas resistências; ascetas
rigorosos, e até um concílio – o de Elvira – fazem certas reservas sobre o uso de uma
137

ornamentação demasiado rica. A opinião mais espalhada, porém, é a de muitos Padres


da Igreja, que vêem na arte uma utilidade apologética: “O que a linguagem da história
ensina pelo ouvido, mostra-o o silencioso desenho pela reprodução”, diz São Basílio; e
São Gregório Niceno afirma que o desenho nas paredes “presta os maiores serviços” e
que o mosaico “torna dignas da história as pedras que pisamos com os pés”.
Assim surge, pela pintura, pela escultura e pelo mosaico, uma Bíblia em imagens
de uma imensa variedade, e não somente urna Bíblia, mas um livro de piedade e de
teologia, um martirológio e uma lenda dourada dos Santos. Alargam-se e expandem-se
agora os temas que nos três primeiros séculos giravam somente em torno da esperança
do outro mundo. Surge um novo sistema de ensino e de tradição. A figura de Cristo, que
até então ocupara um lugar episódico, instala-se no centro de toda esta nova estética.
Jesus mostra-se agora coberto de glória nos mosaicos desses arcos do triunfo que
assinalam a entrada das ábsides basilicais; já não esse Jesus adolescente e imberbe dos
afrescos das catacumbas, mas um Jesus vestido de roga, com a cabeça aureolada por um
nimbo, como o juiz majestoso que virá no fim dos tempos.
Quanto a pinturas de igrejas, possuímos poucas; podemos ver algumas análogas
nas catacumbas, executadas por ocasião das restaurações e embelezamentos que ali se
fizeram. Os traços mais salientes são a preocupação de realismo e de semelhança, e uma
firmeza cada vez mais acentuada no desenho. Na outra extremidade do mundo cristão,
no Alto Eufrates, a modesta igreja de Dura Europos, relíquia saída das areias, apresenta-
nos – como obras provinciais de um artista pouco habilidoso, mas que constituem
preciosos documentos dos fins do século III – admiráveis afrescos em que Jesus acalma
a tempestade, cura o paralítico, conversa com a samaritana ou caminha sobro as águas.
O mosaico, forma eminente da técnica romana, desenvolve-se a serviço. Os
pequenos blocos de mármore, de vidro e de esmalte resistem infinitamente melhor do
que a frágil pintura a fresco. No fim do século, quando se constrói sob o impulso do
papa Sirício a basílica de Santa Prudenciana, é ao mosaico que se recorre para decorá-la,
e o seu grande Cristo em glória, rodeado dos Apóstolos, é provavelmente a primeira
obra-prima indiscutível da arte cristã da escola romana, antes de que floresça em
Ravena a incomparável escola cujas obras-primas ainda hoje nos enchem de admiração.
Por sua vez, a escultura expande-se em baixos-relevos aplicados em algumas
partes das igrejas e em inúmeros sarcófagos. Desapereceram os temas pagãos, à exceção
138

de uns poucos motivos decorativos menores. É o Novo Testamento que fornece a maior
parte dos assuntos, muitas vezes em ligação com cenas do Antigo que, segundo o
método da interpretação simbólica, são consideradas como suas figuras. É o momento
em que se multiplicam esses suntuosos sarcófagos que se vêem no museu de Latrão, no
Vaticano, em Arles, em Ravena e no Louvre; a obra-prima é, sem dúvida, o de Júnio
Basso, datado de 359, extraordinariamente perfeito no equilíbrio da sua composição, na
proporção e na moderação das personagens. É surpreendente verificar, em todas as
esculturas posteriores a Constantino, uma mudança de expressão fisionômica em
comparação com a das épocas precedentes; ao passo que, exteriormente, muitas estátuas
apresentavam um rosto de feições cansadas e com a boca caída, as do século IV têm
uma doçura e uma serenidade notáveis. Em muitos dos seus elementos, esta escultura
anuncia já aquela que virá a florescer, seis ou sete séculos mais tarde, nos pórticos
românicos das nossas catedrais.
E assim o Evangelho penetrou nessas terras profundas onde toda a arte vai haurir
a sua seiva. Falando da unidade dessa arte, afirma um escritor decididamente “laico”:
“Esta unidade é devida à comunidade de sentimentos profundos, à emoção perante o
espetáculo do Universo divino, à piedade pela miséria dos homens, à atenção voltada
mais para o mundo dos espíritos do que para o dos corpos”, o que mostra bem que o
cristianismo soube orientar a arte, como todo o resto, para a lei de Jesus.
139

Você também pode gostar