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64462-Texto Do Artigo-85105-1-10-20131111
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aqui, portanto, são as experiências que vivenciei com eles nesses contex-
tos e pelo tempo anteriormente especificado. Não discuto, portanto, os
desdobramentos que essa atividade teve nos últimos anos em São Paulo.
Os pixadores com os quais estabeleci contato eram, em sua maioria, jo-
vens entre 13 e 25 anos. Contudo, cheguei a entrevistar alguns com mais
de 30 anos, estes já considerados ídolos, exemplos a serem seguidos den-
tro dessa atividade. A pixação em São Paulo é uma atividade exercida
predominantemente por jovens oriundos de bairros pobres da periferia
de São Paulo e do sexo masculino3.
Neste artigo, da mesma forma que Lalo em sua homenagem póstuma
aos colegas, pretendo começar com a referência a um pixador que já mor-
reu e não conheci: o #DI#4. Na verdade, mais do que falar sobre ele,
minha intenção aqui é discutir o que me falaram a seu respeito. Um dos
nomes de destaque na pixação paulistana, por isso sempre lembrado e
reverenciado, #DI# era da região de Osasco, município da zona oeste da
Grande São Paulo. Ele morreu em meados dos anos 1990. Seus amigos
mais próximos fizeram uma pequena escultura no formato do seu pixo e
o citavam em diferentes momentos como forma de homenageá-lo. Fala-
va-se sobre o #DI# em conversas nos points5, postagens em fóruns e co-
munidades virtuais, e em produções audiovisuais ou reportagens sobre
pixação. Ele foi sempre muito lembrado pela maioria dos pixadores.
Durante o período em que realizei a pesquisa de campo, obtive dife-
rentes informações sobre a morte de #DI# e também sobre sua impor-
tância para os colegas. O que proponho aqui, portanto, é refletir sobre
as referências a esse personagem específico no contexto da pixação em
São Paulo, relacionando-as com as histórias de outros protagonistas das
intervenções visuais urbanas na cidade. Para isso, pretendo discutir a
especificidade dos relatos de sua morte e das homenagens que lhe eram
prestadas a partir de duas noções bastante importantes para a dinâmica
da pixação: as ideias de risco e memória.
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Memória
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fazia sentido para quem era adepto dessa prática. Jovens de diferentes
regiões da cidade estabeleciam contato entre si e sabiam quem, na pai-
sagem urbana, escrevia a marca que tinha aquele formato específico. Por
isso a prática de “lançar” palavras estilizadas nos muros era mais voltada
para eles mesmos ou, como me disse um famoso pixador certa vez, para
quem sabia ler o muro.
O registro, especialmente em vídeo, do ato da escrita da pixação era
outra prática recorrente. Isso implicava tanto registrar os próprios atos e
os dos amigos, como deixar-se ser filmado por outras pessoas que não
pertenciam à pixação, tais como jornalistas, videodocumentaristas e pes-
quisadores. Os pixadores mostravam-se muito solícitos na concessão de
entrevistas e faziam poses pixando para fotografias ou gravações em
vídeo. Alguns desses vídeos tiveram seus lançamentos divulgados no
Point da Vergueiro, dentre eles o intitulado “Pixadores em Ação”, lança-
do ainda em VHS no início dos anos 2000, que fez muito sucesso na
época em que comecei minha pesquisa de campo. Esses vídeos, em sua
maioria, eram comercializados no piso subterrâneo, dedicado ao hip hop
e congêneres, da galeria da Rua 24 de Maio, no centro de São Paulo,
também conhecida como Galeria do Rock. É importante frisar que os
vídeos produzidos por pessoas ligadas de forma mais direta à pixação
tinham uma característica bastante peculiar: a de ressaltar seus autores
em ação, como aponta o nome do filme supracitado, e, principalmente,
em ações de risco, pixando o topo de prédios ou dependurando-se em
janelas. Numa exibição de um vídeo sobre pixação produzido por um
pesquisador e, portanto, um não pixador, ouvi críticas de um praticante
do ofício. Ele me disse que não gostara muito do filme, pois faltara ação
e cenas de ousadia. Essa observação demonstrou, portanto, que a me-
mória audiovisual na pixação valorizava, de maneira fundamental, um
aspecto: o risco.
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Risco
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vam apresentar diante dos riscos ou perigos de morrer ou ser preso. Nesse
sentido, na pixação, a dimensão do risco pode ser pensada a partir das
ideias de experimentação e desafio diante das situações de risco que pro-
duziam, e também como uma reflexão sobre os riscos aos quais estavam
expostos previamente, os riscos socioeconômicos, por exemplo, ou so-
bre aqueles a que se expunham a partir de suas ousadas intervenções na
paisagem urbana, como o de ser assassinado por um agente de seguran-
ça particular. Portanto, além dos riscos próprios de sua prática, grande
parte dos pixadores também se relacionava com outras dimensões de
riscos, como a de se morar num bairro pobre da periferia marcado por
altos índices de homicídio, a de envolver-se com a criminalidade ou a
de se enquadrar no que certos discursos apontam como uma suposta
maior suscetibilidade juvenil a expor-se aos riscos18.
O conceito de risco, como se percebe, não possui uma definição
unívoca. Mary Douglas (1992), por exemplo – que em sua obra clássi-
ca, Pureza e perigo (Douglas, 1991), associou a concepção de perigo às
de sujeira e tabu, discutindo esses conceitos como elementos que são
percebidos como fora de lugar e que, portanto, desafiariam os princípi-
os classificatórios –, em texto no qual aborda, de maneira específica, a
ideia do risco, afirma que este termo inicialmente seria neutro, apon-
tando tanto para a possibilidade de perda como de ganho. Risco, nessa
acepção, indicaria aposta ou cálculo. Posteriormente, afirma Douglas, a
palavra “risco” passou a receber uma conotação negativa, remetendo ao
perigo ou à possibilidade de perda. Já Franz Brüseke (2007), retoman-
do a afirmação de Luhmann sobre a “contingência como valor próprio
da sociedade moderna”, ao discutir a questão da técnica e da ciência em
suas relações com a dimensão do risco na modernidade, defende que,
ao invés de sociedade do risco, como define Beck, a modernidade deve-
ria ser entendida como uma sociedade da contingência. O risco seria,
portanto, “uma expressão moderna da consciência da contingência”.
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preso, fugir etc. Contudo, de certa forma, essa noção também estava
associada à condição socioeconômica a que pertenciam. Morar em al-
guma quebrada da cidade, por exemplo, implicava estar mais exposto
aos chamados riscos sociais e, de certa maneira, já viver, no dia a dia,
inúmeros e diferentes perreios. Por meio de uma prática transgressora
de arriscar-se pela cidade em prédios altos e lugares de difícil acesso, os
jovens pixadores também criavam um modo particular de referir-se às
condições de vida que levavam nos bairros pobres da periferia. A ideia
de “quebrada”, tão propalada por eles e por outros coletivos juvenis,
adquiria novos contornos em seu cotidiano, revertendo-se de sinal ne-
gativo, de estigma e/ou carência, a sinal positivo, de afirmação e mesmo
de superioridade. Quem vive nas quebradas da cidade, conforme essa
perspectiva, adquire maior força por saber lidar com os riscos sociais de
tais lugares e, assim, marca-se por meio de uma prática juvenil trans-
gressora a noção de risco de modo social, econômico e – por que não? –
classista.
Outro aspecto fundamental para se entender os riscos da pixação re-
fere-se à questão de gênero. Afinal, como já afirmei, essa é uma prática
predominantemente masculina. Importante pensar como a pixação re-
toma padrões de um modelo de masculinidade hegemônica pautado em
valores como agressividade, virilidade e competição. A questão da mas-
culinidade de jovens das camadas populares no Brasil é ressaltada por
Alba Zaluar (1985), que discute o quanto a afirmação de um éthos de
masculinidade, associado a exibições de força e à exaltação de uma dig-
nidade masculina, tem sido um dos fatores responsáveis pela adesão de
jovens pobres a práticas criminosas, por exemplo. Em outra pesquisa,
esta realizada em escolas públicas de ensino médio em bairros da perife-
ria de São Paulo (Pereira, 2010), apontei para o protagonismo dos me-
ninos nas brincadeiras e gozações que desestabilizavam as aulas e a or-
dem institucional escolar. Pude, nesse outro contexto, perceber que havia
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Morte
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#DI# era lembrado por sua ousadia e por seu “apetite”, como diziam
alguns pixadores. Ele gostava de pixar no maior número possível de lu-
gares e estes tinham que ter grande destaque e risco. Suas marcas foram
deixadas, dentre outros lugares, no alto de prédios e em casarões históri-
cos22 da Avenida Paulista, uma das mais importantes e vigiadas da cida-
de. Uma das histórias sobre as façanhas de #DI# foi registrada num ál-
bum de figurinhas sobre a pixação, lançado por pixadores. Nele, as
páginas de fundo são ilustradas com matérias de jornal que abordam tal
temática. Numa delas, há uma reportagem que relata uma das ações
ousadas de #DI#. Ele pixou o prédio do Conjunto Nacional, importan-
te e histórico edifício da Avenida Paulista. Após a repercussão de sua
ação na imprensa, ligou para um jornal popular de São Paulo e disse ser
um morador do Conjunto que havia visto como a ação tinha ocorrido.
#DI# relatou como a pixação tinha sido realizada aos jornalistas e pediu
para não ter seu nome revelado. Disse ainda que não queria sofrer re-
presálias e que gostaria de ser identificado apenas como Di. Além de sua
audácia, #DI# também era lembrado por sua humildade, por ser alguém
que não desprezava os outros e que se mostrava sempre disposto a con-
versar ou a assinar uma folhinha para os colegas mais novos da pixação.
Eram recorrentes os comentários sobre sua morte ter ocorrido por um
motivo banal. Segundo os relatos, ele teria sido assassinado por causa de
uma mulher. Porém, há diferentes versões sobre como teria acontecido.
Numa delas, alguém teria insinuado algo para sua namorada que ele não
gostara e ele teria ido tirar satisfação com a pessoa, levando a pior. Em
outra, ele teria paquerado uma moça comprometida e sido morto por
causa disso.
Não é o objetivo deste artigo, entretanto, desvendar o que o levou à
morte. A questão principal está em pensar como, a partir dessa forma
de abordar a morte, é que a pixação apresenta uma síntese dos dois as-
pectos destacados anteriormente: o risco e a memória. A morte é, ao
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Notas
1
Pesquisador associado ao Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São
Paulo. E-mail: alexandrepereira@ig.com.br.
2
Para os que não estão acostumados com a terminologia da pixação – com X e não
com CH, conforme designação dos próprios pixadores –, cabe um breve esclareci-
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mento de dois termos: pixo e grife. O primeiro refere-se a um nome que um indi-
víduo ou um grupo com poucos integrantes escreve com letras estilizadas, de difícil
compreensão para quem não pertence à prática, e tinta spray pelos muros da cida-
de. Geralmente, o pixo nomeia um conjunto de amigos de um mesmo bairro. Já o
segundo, grife, refere-se a um nome ou símbolo que diferentes pixos – que podem
referir-se a grupos ou indivíduos – grafam ao lado de sua inscrição. Esse símbolo
diz respeito, portanto, a uma aliança de vários pixos, que podem fazer parte de
mais de uma grife, ou aliança, desde que não haja conflito entre elas. No caso dos
Sombras, eles eram de duas grifes: Os mais originais e Os melhores.
3
O que não significa que jovens de bairros mais centrais e com situação econômica
mais privilegiada também não participem da pixação; porém, nesses casos, não é
incomum que escondam a classe social a que pertencem, não revelando o bairro
onde moram, por exemplo. O mesmo vale para a questão de gênero, pois, ainda
que em franca minoria, há mulheres na pixação. Uma delas, Caroline Pivetta, des-
tacou-se em 2008 quando pixadores realizaram uma das ações de maior ousadia e
visibilidade ao invadir a 28ª Bienal Internacional de São Paulo para pixar o pavi-
mento que havia sido deixado vazio. A pixadora Caroline Pivetta foi, então, presa e
alcançou relativa notoriedade.
4
Era com esses símbolos, utilizando-se de uma letra D pontiaguda, que ele assinava
seus pixos na paisagem urbana de São Paulo. A alcunha Di era seu apelido pessoal
e pixo ao mesmo tempo.
5
Pontos de encontro que os pixadores estabeleciam na cidade e para onde conver-
giam jovens de diferentes localidades que combinavam de sair para pixar juntos.
6
Em 2005, o point central dos pixadores muda-se para outro local do centro da
cidade, devido à repressão policial na Rua Vergueiro.
7
“Perreio” era o termo utilizado para relatar situações que envolviam dificuldades,
embaraços ou mesmo perigo. O mesmo que apuro. Em alguns momentos, utiliza-
va-se também a palavra “perrengue”, que consta no dicionário da Academia Brasi-
leira de Letras com o significado de “situação difícil de se resolver” (Dicionário
Escolar da Língua Portuguesa – Academia Brasileira de Letras. São Paulo: Compa-
nhia Editora Nacional, 2008).
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Modo como designavam as saídas para pixar. Para uma descrição mais detalhada
dos rolês e dos points dos pixadores, ver Pereira (2005 e 2007).
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A categoria “circuito” é desenvolvida por Magnani (2002) e refere-se ao exercício
de uma determinada prática ou estabelecimento de certos serviços em espaços não
contíguos na paisagem urbana, mas reconhecidos em seu conjunto por quem os
frequenta.
10
“Quebrada” é um termo muito usado por diferentes coletivos para designar bair-
ros de periferia que seriam marcados por pobreza e violência, mas também por
certos laços sociais considerados como mais próximos e/ou solidários. Tem-se,
portanto, nessa ideia de quebrada, certa ambiguidade, pois a mesma pode ser vista
tanto sob a ótica das carências quanto de afirmações positivas de laços de sociabi-
lidade e/ou de força moral.
11
Festas de pixação, na verdade, cujos convites tinham uma apresentação estética
muito parecida com a das folhinhas, pois neles assinavam os pixadores que apoia-
vam a festa. Além das assinaturas, havia a descrição do motivo da festa, muitas
vezes a comemoração do aniversário de surgimento do pixo, e um mapa com as
indicações de como chegar no local servindo-se do transporte coletivo. Os convi-
tes eram distribuídos no point.
12
A noção refere-se à escolha de bens arquitetônicos como principal objeto das polí-
ticas públicas de patrimônio cultural no Brasil. Nos últimos tempos, entretanto,
têm ganhado força propostas alternativas que enfocam a ideia de patrimônio
imaterial. Para uma discussão mais aprofundada sobre a noção de patrimônio de
pedra e cal, ver Gonçalves (2009) e Fonseca (2009).
13
A noção de tática, segundo Michel de Certeau, refere-se a procedimentos criativos
do cotidiano que se contrapõem ou produzem alternativas às grandes estratégias
de controle e/ou de exercício de poder, configurando uma rede de antidisciplina.
14
A escrita, conforme Lévi-Strauss (1996 [1955]), permitiria o desenvolvimento de
uma grande capacidade de preservar os conhecimentos e, consequentemente, uma
maior consciência do passado que levaria a uma maior capacidade em organizar o
presente e o futuro. O autor realiza uma analogia entre a posse ou não da escrita e
os seus conceitos de sociedades quentes e frias, conforme a relação que essas esta-
belecem com a sua história.
15
Durante a pesquisa, a morte de um pixador em acidente de motocicleta foi bas-
tante comentada e lamentada num dos encontros no point. Seu irmão, também
pixador, passou a homenageá-lo nos muros da cidade, escrevendo frases que sau-
davam sua memória.
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A lei foi alterada em 2011. Seu texto passou a fazer maior distinção entre pixação
e grafite. Aumentou-se também a restrição à venda de tinta spray.
17
Alguns pixadores adotavam práticas delinquentes como o furto, que poderia abran-
ger tanto latas de tinta spray quanto produtos de tamanho reduzido, mas de valor
médio, como protetores solares, garrafas de uísque, energéticos, pilhas etc., en-
contrados em supermercados. Havia inclusive aqueles que exaltavam a prática do
furto e o artigo correspondente no código penal, o 155. Um exemplo era o da
grife LOVE 155, criada no período em que eu fazia a pesquisa de campo. Além
disso, não era incomum haver jovens envolvidos em ações criminosas mais graves,
como tráfico de drogas e assaltos.
18
Essa suposta maior suscetibilidade é abordada por autores como Margulis e Urresti
(1996), que apresentam, em discussão sobre a noção de moratória, a ideia de uma
maior disposição dos jovens para a diversão, para o risco e para a aventura. Essa
disposição, porém, segundo tal enfoque, seria construída socialmente a partir da
perspectiva de que os jovens teriam um capital energético a ser gasto, pois, afinal,
a morte ainda estaria longe.
19
Prática, não convencional, comum no fim dos anos 1980 e início dos anos 1990,
de se postar sobre o teto dos trens urbanos em movimento, equilibrando-se como
numa prancha de surfe.
20
Nesse último caso, Ulrich Beck afirma, ao defender que a sociedade industrial
clássica teria se convertido na sociedade industrial do risco, que, com o desenvol-
vimento científico e a busca cada vez maior pelo controle da natureza e dos riscos
que essa poderia oferecer, novos riscos seriam criados, tais como os da poluição, da
contaminação de alimentos, dos acidentes de trânsito ou aéreos, das catástrofes
nucleares etc.
21
A relação entre o lúdico e o arriscar-se ou expor-se a perigos não é grande novida-
de. Mikhail Bakhtin (1987), ao discutir o Carnaval e as festas populares na Idade
Média a partir da obra de François Rabelais, ressalta o caráter agonístico e mesmo
de agressividade e violência intensas que muitas vezes assumia o lúdico.
22
Dentre os casarões, o da família Matarazzo, demolido em 1996. Numa das fotos
de sua demolição, constam os pixos de #DI# e seu colega Dino, conforme pode
ser constatado no link a seguir, em que se discute a pouca preocupação com a
memória da cidade ao abordar a destruição dos antigos casarões e palacetes desta
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ABSTRACT: This article presents the tag graffiti (pixação) in São Paulo
and describes how the taggers change the urban landscape. They are re-in-
venting the city. From an ethnographic point of view, it also discusses how
this activity provides reflections on the ideas of risk, memory and death.
The history of life and death of a particular tagger, famous for his will of
daring, is what links the facts presented in here. It is shown how these young
people put themselves in dangerous situations to be recognized and, in some
way, to be remembered. The possibility of death, or its actual occurrence,
connects two elements: risk and memory.
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