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O TERCEIRO SINAL - Sérgio Telles 1

O Terceiro Sinal
de Sérgio Telles

(Palco praticamente vazio. Só alguns pedaços de papel amassado e um resto de cenário. Entra um
faxineiro empurrado. Tímido, com a presença da platéia, tenta brincar, fazer alguns malabarismos
com a vassoura, nada vai dando certo. Finalmente se assume e começa a varrer o palco. Até que
não se contém.)
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FAXINEIRO - Olha só, é o seguinte: Vocês vão me dando uma licençinha aí, mas aqui é tudo
meio maluco mesmo. Me mandaram limpar o palco agora, e até onde eu sei, já era pra estar limpo
desde três horas. Mas Claudinei não veio. Claudinei é o menino que trabalha aqui dia de hoje. Aí foi
um arranca-rabo, porque eu moro longe, telefone só o de dona Zilá, uma velha gorda que leva dois
dias pra dar um recado, resultado: Só pude chegar agora. Aí falei, não vou limpar, já tem gente. E
nego dizendo: Limpa! E eu falando: Não vou! E nego: Vai! E eu: Não vou! E nego: Vai! Vim!
Forçado, mas vim. Vocês me dão uma licençinha aí, eu vou fazer tudo rapidinho e já, já começa a
peça. (Vai varrendo) Eles podiam pelo menos pedir pra vocês esperarem lá fora, não é? Ou então
um daqueles “grandes artistas” que tão lá dentro podia pegar a vassoura por cinco minutos e
resolver o problema. Mas não, eles são artistas. Não varrem o palco, não carregam um pedaço de
cenário... Tem uns aí que até comigo já pegaram vale transporte para ir embora para casa. Quase
ninguém vem aí mesmo ver esse negócio esquisito que eles tão fazendo. Mas na frente dos outros...
Eles são artistas. Tudo cheio de cachecol, calça colorida, manga de camisa na cabeça. Manga de
camisa na cabeça, onde é que já se viu? Aí fica assim: Tudo passando fome. Mas se alguém olha,
eles são artistas. (Dando uma banana para dentro.) Aqui para vocês, artistas! (Jogam para ele um
carrinho de faxina. Volta a limpar. Depois de um tempo vai se distraindo. Olha para dentro.) Olha
só: Vocês me desculpem. Eu não sei, é um negócio que me dá, toda vez que eu subo no palco, eu
começo a falar umas besteiras... E agora... Vocês aí, eu... Licença, é rapidinho. (Volta a varrer.
Para. Olha para dentro.) Mas eu acho que lá vai demorar. Tem uma tal de Léa aí, que leva dois
anos pra se maquiar. Vocês conhecem Léa? Artistona tá ali. Bota para quebrar. Não sei porque pé
que ela não faz novela. Eu adoro novela. Vejo essas novela tudo, quando eu to em casa. Agora, eu
não sei se vocês concordam comigo, porque eu nem tenho nem muito estudo, nem nada, mas vocês
já viram o Tony falando? Ó, chego me arrepiar. Não. Parece que ele tá falando comigo, dentro da
minha casa. Não é, não? Pode ser a novela ruim que for, mas se Tony estiver lá, eu tô vendo. Bicho
bom tá ali. Tem um amigo meu, que é meio sem jeito para essas coisas de teatro, não entende
muito, e como ele sabe que eu trabalho aqui e assim, sei, mais ou menos como é que a banda toca,
vive me perguntando as coisas. Outro dia, ele veio me perguntar se o Tony era pai, de verdade da
menina da novela. Ai eu me retei. Eu falei assim: “Ezequiel, você tá maluco? Eles estão
interpretando. Deixa de ser burro Ezequiel.” Eu hein... Sabe o que é que eu queria era ver? Era o
cara morrer hoje na novela e amanhã tá todo mundo procurando saber onde é que é o enterro. Isso
ninguém faz! Sim, mas eles aqui são assim, tudo meio doido, mas eles tudo gostam de mim. É sério.
Eles me chama até de “Seu”! é verdade! Eles me respeitam! Aí fica assim: “Seu” Mário, me traz um
cafezinho? “Seu” Mário, paga essa conta ali no banco pra mim? Na verdade eu nem sei porquê que
eles me chamam de “Seu”, se a maioria aí é muito mais velho do que eu. Ah, rapaz, eu acho que é
para manter distância né? Se chamar de “seu”, não pode dar tapinha nas costas. Mas eu acho que
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eles tudo gostam de mim, é... Mas também, tem que gostar mesmo, né? Eu sei uns macetes aqui
nesse teatro, que ninguém sabe. Vez em quando tão me chamando às pressas pra abrir uma porta
que tá emperrada, pra dizer onde é que tá um resto de cenário... Até pra acender a luz de serviço já
tive que vir aqui uma vez. Luz de serviço, é essa luz normal que acende pro pessoal ensaiar, não é
nada desses refletor aí não. Aí, como é luz pra ensaiar, ou seja pra trabalhar, chama de luz de...
Serviço. Aí já viu: Só tem peça aqui se eu acender a luz, se eu limpar o palco, só tem peça aqui se
eu deixar. Mas, claro eu sempre deixo. Eu adoro... Eu só não gosto dessas coisas que eles fazem aí,
não. Uns negócios estranhos, todo mundo gritando, se embolando no chão, umas coisas de maluco...
Uns tal de laboratório... Teve um outro dia, eu tava quietinho, ali no cantinho, só espiando, aí a
mulé falou assim: Agora vocês vão ver uma luz azul... Eu falei: Rapaz... E aí os caras lá, né? Aí ela
disse: Agora, vocês vão vê essa luz entrando. Eu falei: Isso não vai dar certo... Daqui a pouco, o
cara começou a gritar: Eu to vendo, eu tô vendo! Tá entrando! Tá entrando! Eu falei: To saindo! Tô
saindo! Ô! Seguro morreu de velho. Não. Eu lá quero saber de laboratório? Laboratório para mim é
lugar de levar xixi para passear. Eu não quero isso, não. Eu já fiz teatro,uma vez. Lá onde eu moro,
o pessoal da igreja todo ano faz um negócio de semana santa: A vida de Cristo. É bonito, faz a vida
todinha. Uns três anos eu fazia lá. Sabe quem é que eu fazia? Eu fazia: Baltazar! É, fazia com muito
gosto. Eu dizia assim: Eis um presente para o presente que o senhor nos enviou. Era bonito... Eu
tinha mesmo muito gosto de fazer. Eu sei que começou a juntar muita gente para ver, o negócio
começou acrescer, aí a prefeitura se meteu, aí tirou nós tudo e botou um monte de artista de
laboratório. É verdade que ficou mais bonito mesmo. Mas eles não fazem com metade do gosto que
a gente fazia. Porque a gente não tinha laboratório, mas a gente tem... Peito e ruga. Saca peito e
ruga? O peito é pra sentir, e a ruga é pra lembrar o que o peito já passou... Eu mesmo não passei
pouca coisa não... Não passei mesmo... Até corno eu já fui. É sério, só pode falar de amor quem já
foi corno. É. Olha aí as músicas sertanejas, os pagodes, cada uma mais linda que a outra, mas tudo
de corno. Não é? Se o cara vai falar de amor e não foi corno, não tem graça. Porque todo mundo já
deu ou já levou corno. Ninguém escapa. Eu acho inclusive que o cara não com segue ser feliz se
não foi corno. Fica faltando alguma coisa. Gorete mesmo. Gorete é, minha nega, minha fé! Eu
morro de medo de perder Gorete. Dói demais perder amor não é, não? Quem nunca perdeu gente
que te amou de verdade? Gente que a gente amou sozinho... E eu não quero perder Gorete. Outro
dia eu achei um texto aqui... Peraí. Era assim: “A perda do amor é igual à perda da morte. Só que
dói mais. Quando morre alguém que você ama, você dói inteiro, mas a morte é inevitável, e, por
isso, normal. Quando você perde alguém que você ama, dói mais fundo, porque você podia ter, já
que está vivo. Mas não tem, porque fim de amor é pra sempre.” É nunca mais. Que miséria! O amor
muito grande é uma miséria! E o pior de tudo é que mesmo depois disso tudo, eu digo que sim. Eu
quero que sim! Eu acho que na verdade, todo mundo quer sim. Não é? Mesmo que possa doer.
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Mesmo que depois acabe. Bola para a frente que o jogo é de campeonato. Eu mesmo já perdi tanta
coisa nessa vida... A gente perde tanto: Emprego, família, dinheiro mesmo, só quando tem. Agente
perde alegria, perde até amigo... Imagine se a gente fizesse...
“( ... ) Uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás.
Quantos você ainda vê todo dia?
Quantos você já não encontra mais?
Faça uma lista dos sonhos que tinha
Quantos você desistiu de sonhar?
Quantos amores jurados pra sempre?
Quantos você conseguiu preservar?
Quantos amigos você jogou fora?
Quantos você conseguiu entender?
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos, ninguém quer saber.
Quantas mentiras você condenava
Quantas você teve que cometer?
Quantos defeitos sanados com o tempo
Eram o melhor que havia em você?
Quantas canções que você não cantava
Hoje assovia pra sobreviver.
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você?”

(Soa o primeiro sinal.)


(Lentamente ele vai voltando a varrer. Até que não se contém e começa a limpar o palco
violentamente. )
“Sabe o que é um coração
Amar ao máximo de seu sangue?
Bater até o auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.
Agora chega!
Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas:
Aproximem-se!
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Peitos, braços e pernas,


Aticem as velas!
Vai começar o banquete
De amar de novo
A mulher que hoje me amar
Encontrará Gorete lá dentro...
Pois que se mate!”
Porque eu estou de saco cheio! Acabou! Acabou! Acabou essa maldição dessa morena, acabou!
Para falar a verdade, a verdade assim, mesmo, a morena é feia. Rapaz é feia mesmo. Mas é feia de
verdade, não é aquelas feinhas, assim, não. É feia de qualidade. Ela fica me perguntando porque é
que eu levo a cervejinha para tomar na casa dela e nunca vou com ela para lugar nenhum. O que é
que eu vou falar? Eu digo que tô cansado para não ficar feio. Mas não tá colando mais não. Outro
dia eu me peguei até fazendo poesia pra morena. Poesia, imagina! (Pausa.) Ficou uma desgraça. Eu
acho, que é porque eu não tenho estudo. Aí não consigo falar forçado. Pra mentir tem que ter
estudo. Porque, quando eu faço pensando em Gorete, parece que eu sou Vinícius. É, fica tudo bom.
É sério... Eu nem penso, só vou vendo a cara dela e fazendo. Já escrevi até poesia para passarinho
que canta de manhã, mas para a morena... Eu acho que eu só faço quando eu tô... Eu acho que eu
consigo fazer uma agora. Vamos fazer uma coisa? Quatro pessoas, cada uma fala uma palavra, que
eu vou fazer uma poesia agora, aqui, na hora. (Improviso) Viu. Mas esse negócio de poesia é
esquisito, não é? É que na verdade, eu acho que ela só serve para chamar a saudade pra mais perto.
E o pior, é que eu faço esses negócio na cara de pau, quebrando a cabeça. Aí vem Vinícius, pra
mim, o maior de todos, e resolve tudo com uma frase. É, vê se não é lindo, ele disse assim: “Amar é
a vontade de ficar perto, se longe, e mais perto, se perto”. Ah, mas a saudade dói demais, não é,
não? Porque tem umas coisas que eu não entendo como é que se esquece. Quer ver: Tem algum
casal casado aí? Casado ou namorado ou amigado ou ajuntado, enfim... Casal. ( Escolhe um. ) Não
tem nada que ela(e) tenha feito que você nunca vai esquecer, mesmo que acabe? Não é verdade?
Gorete mesmo, até hoje, é a única pessoa que sabe tudo de mim. Ela até me ajuda. Briga comigo,
mas ajuda. Na verdade, ela briga porque sabe do que é que eu tenho medo. É. Esquisito ter alguém
que sabe tudo de você. Desde a primeira vez que eu entrei num teatro de verdade, eu acho que eu
fiquei até meio assustado, achando que aquilo não era para mim. Só é Gorete é que acredita em
mim. É por isso que eu acho, que às vezes, eu tenho até raiva da morena. Quando eu falo para a
morena que eu quero ser... Falo das minhas coisas, ela diz que eu sou faxineiro. Eu tento explicar
para ela que ninguém na vida é uma coisa só e que eu também não tenho vergonha de ser faxineiro.
Mas ela corta logo o assunto e vai direto pro que interessa. Ela querer que eu seja motoboy? É. É
que ela tem um primo lá que é motoboy, e ela fica enchendo o saco para me arrumar uma vaga lá
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onde ele trabalha. Ela não entende que eu não sou faxineiro, eu sou faxineiro de teatro. É muito
mais importante. Eu limpo um palco... Hoje não, porque eu vim às pressas, mas todo dia, eu trago
meu radinho, e fico... Ando por aqui tudo... Conheço cada cantinho disso aqui. Tem uns cantos que
as pessoas nem nunca reparam, mas eu vejo, vou lá e limpo. O primeiro dia que eu cheguei aqui,
querendo mostrar trabalho, né. A empresa tinha me mandado para cá e eu tinha achado legal, não
queria ir, sei lá, parar em hospital. Eu não gosto de hospital. Eu sempre digo que só entro em
hospital doente e em cemitério carregado. Aí, chegou uma hora, que os caras me chamaram, cheio
de pressa para limpar o palco que a peça já ia começar e o palco tava melado. Eu já tava trocando de
roupa para ir embora, me vesti de novo, rapidinho e despinguelei para cá. Quando eu entrei aqui,
tinha uns quatro caras em cena e a platéia lotada. Rapaz... Eu fiquei roxo sangue. Do jeito que eu
me lembro parece que foi duas horas que eu fiquei ali com cara de cachorro que perdeu a
compostura na igreja. Aí um dos caros virou e falou assim: O quê é? Eu falei: Não, nada, é que me
mandaram limpar. O cara me olhou de ódio e gritou, na minha cara: A entrevista está encerrada!
Retire-se! Menino, eu queria morrer. Aí falei: Tô demitido. Quando eu saí, os caras se acabando de
dar risada. Depois todo mundo me explicou que era sacanagem. Batizado, essas coisas. Mas aquele
negócio que eu senti, quando tava ali... Foi aí que eu comecei a guardar os textos que eu achava... A
entender o que é isso aqui. Quando eu cheguei em casa, eu contei para Gorete, é linda Gorete. Eu
tentava explicar para ela o que é que tinha acontecido, e ela não falava nada, só me olhava, com
olho de amor. Depois eu perguntei para ela, porque é que ela tava me olhando assim, aquelas
perguntas bestas que a gente faz quando já sabe a resposta. Aí ela me disse assim: Não precisa
explicar, você tá com cara de menino. Eu falei: Cara de menino? Ela disse: É. Toda vez que você
fica feliz, você faz cara de menino. Passei uns três dias sem conseguir dormir direito. E todo dia,
depois daquele, eu ficava aqui, brincando, imaginando esse teatro com gente e eu no palco. Igual
agora. E a maldita da morena que nunca conseguiu entender o que é que eu sinto por isso aqui.
Gorete, não. Gorete entende. Um dia, quando eu cheguei em casa, Gorete tava com a cara mais
linda que ela já fez para mim. Eu devia estar com cara de menino, porque quando eu olho Gorete eu
faço cara de menino. Aí eu perguntei o que era, ela me disse: Parabéns, você vai conseguir. Eu falei:
O quê? Ela disse: Olha. Me mostrou em cima da mesa. Eu fui olhar o papel que tava lá, quase caí
para trás. Era o meu nome. Ela tinha ido, sem me falar nada, e me inscreveu numa... Numa coisa
que eu queria. Eu acho que ela tava mais feliz do que eu. Porque eu tremia. Mas Gorete estava lá, e
quando Gorete tá lá, tudo fica mais fácil. Ela me ajudou em tudo. Gorete também tem arte. Aí, uns
dois dias depois, eu fui lá no Castro Alves, o maior de todos. Era dia de teste. Tava cheio de gente,
tudo de preto, tinha uns que pareciam que iam fazer teste de circo, de tanto que se torcia. Outros
gritando, tudo fazendo laboratório. Daqui a pouco começou a aparecer um monte de gente que me
conhecia, daqui do teatro, e começou a perguntar se eu agora era faxineiro daquele teatrão. Eu
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fiquei ali... Fiquei. Conversando, dando risada, brincando e... E rindo meio triste, sei lá. Teve uma
hora que chamaram um número, e ninguém respondia. Todo mundo ficou brincando, eles diziam:
Beleza, menos um. E eu ali, brincando. Rindo da cara do cara que não foi. Teve um que me pegou
pelo braço e falou assim, vai lá, seu Mário! Eu falei: Para com isso menino. Eu não sou artista, não.
Saí dali e fui embora para casa. Eu disse... Eu não disse nada para Gorete, não. É linda, Gorete.
Sabia que todo o dia, quando eu chego em casa, Gorete pega dos meus bolsos os textos tudo que eu
cato por aqui, estica assim, o melhor que ela puder e guarda numa pasta lá que ela arrumou? Essa
Gorete... Sabia que às vezes eu queria saber escrever teatro? Eu ia fazer uma peça da minha vida. Já
imaginou se a gente pudesse escrever o nosso texto, escolher os atores e dirigir? Êta nós! Só ia ter é
coisa boa. Eu não sei se os outros iam querer ver, mas eu ia soltar os cachorros. Não ia nem precisar
de laboratório. Não ia comer reggae. Eu ia sair vomitando tudo o que eu já senti nessa vida de meu
Deus. Ia virar bicho, com essa dor esquisita que parece um buraco que não fecha! Todo mundo diz
que baiano não nasce, estréia. Eu concordo. Mas acho mais, todo o brasileiro estréia. Porque haja
arte para segurar toda essa rebordosa que a gente recebe, todo dia, não é não? Receba sua galinha
pulando! É por isso que eu acredito, que...
“O povo brasileiro é, sem dúvida, artista em sua essência.
É um povo guerreiro, que vive e sobrevive a lutas diárias, e que nem sempre, ao final do dia, tem o
descanso merecido.
É um povo que trabalha como poucos e ganha menos que muitos.
Um povo mágico, que não se sabe de onde, ainda tira, quando tudo parece perdido, um riso da
cartola.
Um povo que tem fé no futuro, ainda que não tenha presente.
Um povo que tem como único direito cumprir seus deveres.
Mas há algo que não se tira desse povo: A alegria, a vontade de viver e a obrigação que cada um
se impõe de ser feliz.
Ser Brasileiro é ser Herói.
É agüentar tomar cerveja só em dia de merreca.
É ver os craques indo embora do País do futebol.
É deitar com Cruzeiro no bolso, sonhar com Cruzado, ter pesadelo com Cruzado novo, acordar
com Cruzeiro de novo, e viver, com a terrível sensação de que isso é Real.
Ser Brasileiro...
Ser Brasileiro é esperar com paz de monge que um dia isto acabe.
É encarar o trem lotado,
Apertar a mão do amigo,
Beijar a boca da Maria,
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Fazer o sinal da cruz...


E ir à luta...
Porque a vida...
A vida é muito curta!”

(Soa o segundo sinal.)

Tá aí! O segundo chamado da vida real. Sempre me arrancando o direito de sonhar. Também,
sonhar pra quê? O tempo de sono é tão curto e o trabalho é tanto... ( Volta a varrer. ) Como é que
um faxineiro vai ter direito de sonhar? Não é assim que eles fazem? Se você é pobre, preto, gay, sei
lá. Se você é fora do que eles chamam de regra, não sonha! Mas a verdade é que eu sonho sim! Não
sonha! Sonho! Sonho porque sou teimoso! Sou gente Ruim! E tenho certeza de que vai chegar o dia
em que sonhar vai ser comum, não vai mais ser proibido. Vai ser lei. Direito de quem existir!
Obrigação de quem viver! Porque eu não entendo isso, não. Como é que alguém consegue viver
sem sonhar? Se a vida fosse mais fácil, eu até entendia, mas do jeito que vai... Agente é tão
acostumado a isso que tem vergonha de dizer que sonha. Alguém aqui tem coragem de dizer qual é
o seu maior sonho? O sonho de verdade, o sonho da sua vida... Um sonho com peito e ruga. Então!
É isso! A gente tem que ir atrás dos nossos sonhos, agarrar no dente e não largar nem debaixo de
trovoada! Não dá pra perder tempo. O tempo não pára e pior ainda, não volta. Até eu preciso
sonhar. Preciso sonhar muito, eu preciso sonhar sempre... Porque cada vez que eu acordo a verdade
me assusta. Eu sempre me imagino assim... “(...) Um artista no anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela.
Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco
Apenas abre a voz e o tempo canta.
Trêmulo o ator recita um drama
Que ainda está por ser escrito.
No anfiteatro sob um céu de estrelas
Um concerto eu imagino
Onde num relance o tempo alcance a glória
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E o artista o infinito”. Porque nem o céu limita o vôo de quem precisa sonhar, de quem tem a arte
rasgando a alma. De quem se sente artista por nada, não. Só porque nasceu assim, meio aleijado.
Meio gato, vivendo mais vida do que tinha para viver. Sendo artista da vida! Agora mesmo,
finalmente eu tô aqui. Falando para uma platéia! Eu acho, que talvez a vida seja assim mesmo:
Nenhum chamado fica sem resposta e nenhuma resposta fica sem eco. Eu passei tanto tempo
falando sozinho, que me assusta ter alguém para me escutar. De repente quando eu falava sozinho,
na verdade já era meu ensaio. Sei lá... Vai ver que hoje... Hoje é o meu dia! Só de estar aqui,
falando com vocês! Eu. Um Mário qualquer, faxineiro qualquer, duas horas de casa para o trabalho
e a volta muito mais complicada. Mas com a alma limpa. A cabeça cheia. A alma limpa e agora
realizada e lavada. Um Mário sem estudo, um Mário ninguém, mas que cismou que é artista. De
alma, de coração, sei lá! “Mas perdoai, gentis espectadores, o gênio sem chama, que ousou trazer
para esse pequeno tablado um tema tão grandioso. Mas afinal, o mundo todo é um palco, todos os
homens e mulheres não passam de atores. Têm suas entradas e saídas de cena.” E tem mais! Eu
não acredito numa estória que tem, que se o sujeito fizer oitenta textos ou pintar mil quadros e
ninguém vê, não é arte. É mentira. É arte sim. Se fosse assim, ninguém ficava famoso depois de
morto. A arte já tava lá. Errado era quem nunca viu. Será que é por isso que ninguém acredita mais
no amor? Eu acho que é por isso que a gente tem que amar de peito aberto. Se não ninguém acredita
no que tá lá dentro. Errado é quem sente ou quem tá cego? Tem que pagar para ver, o negócio deve
estar lá. É isso que eu vou fazer: Acreditar no que tá dentro do peito de Gorete e mandar essa
morena pegar a BR. Se eu não acreditar no peito de Gorete, eu não posso mais nem acreditar em
mim. Se eu ainda sou artista por dentro, é porque Gorete também tem arte. E eu vou ter que matar
essa coisa que me arrepia, porque nunca me aplaudiram? Porque nunca fui olhado? Se arte fosse
coisa de rico, “merda” não era “boa sorte”. Se arte fosse coisa de rico, era os pobres que tava por aí
suicidando. Pobre não suicida porque sabe ver arte. Pobre não suicida porque sabe ver flor, sol e
mar. Pobre não suicida porque sonha. Pobre pára na rua para ver o artista, porque eles tudo se
parecem, tem tudo a mesma cara de gente. Ninguém entende que pobre não suicida porque tem
peito e ruga? Enquanto os rico e os besta tem vergonha das ruga que ganhou de presente da vida. Eu
não quero nem saber. Eu me aplaudo todo dia quando invento minhas peças na minha cabeça cheia.
Mas não tá bom? Que se dane também. Que se dane o meu medo. Que se dane quem não vê a
minha arte. Porque ela mora no meu peito e vive na minha ruga. Não tem arte só no palcão, com
luz, cenário e papelada. É como dizia um velho amigo meu: Cultura não se compra e a arte não tem
berço! Cultura se eu entendo direito o que é eu não tenho mesmo, não. Mas arte... É por isso que eu
quero que se dane! Hoje, sou eu que estou aqui! E pelo menos hoje, vamos sair na rua e ver a arte
do sinal, do moleque pulando na praia, do circo que tá fechando e da vida que tá passando. Pelo
menos hoje, vamos ser cada um artista da vida que leva! Vamos explodir, rir, achar bonito tudo que
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tá difícil e fazer arte na cara da gente, dessa gente com cara de gente, essa gente com cara de artista!
Hoje, aqui, vocês me ajudaram a fazer a minha peça, a montar o meu sonho... Quem foi que disse
que platéia não é artista? Pra ser artista, só tem que ser gente. Conhecer gente e morder um sonho.
Tem uma música que diz assim: ( Canta )
“E aprendi que se depende sempre,
De tanta, muita, diferente gente,
Toda pessoa sempre é as marcas
Das lições diárias de outras tantas pessoas.
E é tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá.
É tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense estar.
É tão bonito quando a gente pisa firme
Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos.
É tão bonito quando a gente vai à vida,
Nos caminhos onde bate bem mais forte o coração.”
Então tá combinado! Tem que ter coração. Vamos fazer o seguinte? Vamos chamar cada dia de
‘Pelo menos hoje”. Então, dê um sorriso, pelo menos hoje! Abrace alguém, pelo menos hoje! Diga
“Eu te amo”, olhe pro sol, brinque com uma criança, pelo menos hoje! acredite em Deus, pelo
menos hoje! Seja feliz, seja artista, pelo menos hoje! Porque hoje... ( Canta batucando no balde. )
“É melhor ser alegre que ser triste,
A alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração...”
E lembrar, sempre, de agradecer a Deus, principalmente pela vida!
“Porque a vida,
De tão interessante que é, a todos os instantes,
A vida chega a cortar, a enjoar, a roçar, a ranger, a dar vontade de dar pulos,
De ficar no chão, de sair para fora de todas as casas, de todas as lógicas,
De todas as sacadas e ir ser selvagem para a morte,
Entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos e perigos,
E ausência de manhãs...”
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(Soa o terceiro Sinal)

FIM

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