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E SE O CERTO FOR O “AO CONTRÁRIO”?

Sérgio Telles

Nunca fui um notável!


As misses não me amaram, apesar de eu as ter idolatrado. Todas.
Nunca tive convites para aquelas festas onde a parte pública da cidade privada ficava de
fora imaginando o que se passava lá dentro. Quando elas ocorriam, eu as imaginava.
Nunca li Tolstói - Nem sei se tem acento. Nem Cervantes. Nem Victor Hugo. Todos os
grandes clássicos me faltaram à cabeceira.
Aliás, nunca tive cabeceira. Aliás, só uma. Onde, como brincadeira da moda, escrevi meu
nome, ao contrário.
Sempre fui ao contrário.
O “chato de um querubim” que visitou Chico foi gerado em minhas narinas.
A Ilíada sempre me pareceu uma senhora gorda amiga de uma tia distante, igualmente gorda,
chamada Odisséia, e eu nunca entendi o que meu primo em segundo grau, Ulisses, tinha a
ver com as duas.
Não aprendi inglês. Na verdade nunca quis. Uma espécie de protesto ridículo do mendigo
contra o capitalista que lhe atira as águas das poças no meio da noite.
No violão toco as mesmas quatro músicas que aprendi há milhões de anos atrás, e com a
mesma falta de desenvoltura do primeiro dia.
Não sei nadar e, por isso mesmo, nunca me arrisquei a dropar (disso me arrependo).
Não aprendi a dirigir.
Não cozinho bem. Inclusive, nem como bem.
Não me tornei jogador profissional de futebol por ter a certeza de que só jogaria em meu
clube de coração, e amo demais o Fluminense para aceitar que tivesse um perna-de-pau como
eu, a desandar a mágica atuação de todo um time de guerreiros.
Tropecei em todos os shoppings. E caí.
Derramei todos os drinks. E lambi.
Rasguei todas as calças e, depois de todas as feijoadas era em meus dentes que se alojavam
as cascas de feijão.
Nunca escrevi nada que fosse publicável. Aliás, nunca escrevi. Não poderia fazer citações
mirabolantes ou inovadores jogos de palavras. Não as conheço. Mas hoje...
Justamente hoje, eu resolvi escrever. Falar. Registrar.
Só porque hoje me ocorreu uma ideia que, acredito, justifique toda a minha existência sem
grandes feitos notáveis: Eu vivi!
E aí...
Uma ideia me ocorreu... um raro lampejo de ideia de um idiota completamente sem ideia: “E
se o certo for o ao contrário?”
Funciona assim: Nós nascemos, crescemos e vamos para a escola. Estudamos, trabalhamos,
ganhamos dinheiro e, um dia, quem sabe, se o trabalho, o estresse causado por ele ou a mão
certeira de Deus não te levarem, você vai, finalmente, inchado e triunfante, curtir sua vida!
Muito bem. Aceito. Mas... pensa bem, e se o certo for o ao contrário?
E se resolvêssemos viver antes de ler?
Viajar antes de pesquisar?
Amar antes de poetizar?
Crescer antes de aprender?
E se aproveitássemos nossa juventude, nossa força e curiosidade enquanto nos queimam a
carne para depois, com os desejos acalentados nos debruçar sobre as pesquisas e nos tornar
pensadores? Menos os médicos e os professores. Eles precisam de tempo demais.
Não precisamos de pedreiros. Temos nosso instinto de sobrevivência que vai nos levar para
debaixo de algo que nos proteja da chuva. Claro, quando quisermos nos proteger dela. Eu
sempre prefiro o riso molhado. Não precisaremos dos políticos pois seremos felizes e não
teremos que criar imagens de organizadores de nós mesmos. Não vamos querer sapateiros
pois a terra será macia. Aliás, como sempre foi... lembra?
Jamais usaremos cotonetes ou fraldas noturnas, chupetas ou aparelhos dentais. Alisamento
ou tintura de cabelo. Não sei se deveríamos abolir a escova de dentes mas, enfim... não
existiram frascos retornáveis ou abrigos de mendigos. Não teremos as miniaturas de carrinhos
- Do que sentiria falta se estivesse vivendo no mundo de hoje, mas, no ao contrário... Não
precisaremos nem dos carrinhos em miniatura. Do macarrão instantâneo ou café embalado à
vácuo.
Estaremos vivendo. E felizes.
Depois sim.
Quando o joelho doer e as costas não mais permitirem que se toque os pés... Aí iríamos ao
livro...
Às pesquisas...
Às teorias...
Aí sim, teríamos todo o tempo do mundo para ler, pesquisar, poetizar e até escrever.
Para saber de Ulisses e Sófocles, dos Reis e das Princesas...
Seríamos pessoas livres!
Cada um de nós seria alguém que, objetivamente, nunca foi ninguém, em absoluto.
E, subjetivamente, nunca teve certeza absoluta de nada.
E seria uma maravilha.
Jovens vivazes e vividos, ao invés de enlatados em computadores e trancafiados em teorias.
Velhos de olhos ávidos e mente aguçada, ao invés de colecionadores do passado e desejosos
do que não lhes cabe mais.
Não sei se estou certo e, muito provavelmente, como sempre, não esteja. Mas, se por acaso,
o trabalho, o estresse causado por ele ou a mão certeira de Deus me levarem, responderei
diante do criador a toda sua sabatina de vida de bem que interessar para minha salvação.
Falarei dos amores.
Direi da família.
Pintarei arco-íris e contarei sobre o pôr do sol. Do banho de mar e das cachoeiras.
Das pipas e das crianças.
Das freiras, dos padres e pastores. Do mal do mundo.
Do bem do homem.
Dos olhos dela e de meu choro chovido. Do futebol e do gol perdido.
Do passeio de bicicleta e dos tombos das árvores. Dos colos de vós e de mães.
Das gargalhadas desenfreadas.
Do choro de morte.
Da morte.
Do primeiro beijo.
Da punheta no mato.
Do pique esconde e do pique lateiro.
Do cheiro da chuva, do mato e da terra molhada.
Das viagens.
Dos amigos.
Do dinheiro e da falta dele.
Do certo.
Do contrário.
Do obrigatório e do permitido...
Mas Ulisses...
Acho que este não constará do conteúdo programático.

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