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OS ANIMAIS TÊM RAZÃO

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Quem já passou no sertão Eu vinha de Canindé


E viu o solo rachado, Com sono e muito cansado,
A caatinga cor de cinza, Quando vi perto da estrada
Duvido não ter parado Um juazeiro copado.
Pra ficar olhando o verde Subi, armei minha rede
Do juazeiro copado. E fiquei ali deitado.

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E sair dali pensando: Como a noite estava linda,


Como pode a natureza Procurei ver o cruzeiro,
Num clima tão quente e seco, Mas, cansado como estava,
Numa terra indefesa Peguei no sono ligeiro.
Com tanta adversidade Só acordei com uns gritos
Criar tamanha beleza. Debaixo do juazeiro.

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O juazeiro, seu moço, Quando eu olhei para baixo


É pra nós a resistência, Eu vi um porco falando,
A força, a garra e a saga, Um cachorro e uma cobra
O grito de independência E um burro reclamando,
Do sertanejo que luta Um rato e um morcego
Na frente da emergência. E uma vaca escutando.

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Nos seus galhos se agasalham O porco dizia assim:


Do periquito ao cancão. – “Pelas barbas do capeta!
É hotel do retirante Se nós ficarmos parados
Que anda de pé no chão, A coisa vai ficar preta...
O general da caatinga Do jeito que o homem vai,
E o vigia do sertão. Vai acabar o planeta.

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E foi debaixo de um deles Já sujaram os sete mares


Que eu vi um porco falando, Do Atlântico ao mar Egeu,
Um cachorro e uma cobra As florestas estão capengas,
E um burro reclamando, Os rios da cor de breu
Um rato e um morcego E ainda por cima dizem
E uma vaca escutando. Que o seboso sou eu.

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Isso já faz tanto tempo Os bichos bateram palmas,


Que eu nem me lembro mais O porco deu com a mão,
Se foi pra lá de Fortim, O rato se levantou
Se foi pra cá de Cristais, E disse: – “Prestem atenção,
Eu só me lembro direito Eu também já não suporto
Do que disse os animais. Ser chamado de ladrão.
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O homem, sim, mente e rouba, Entre os venenos do homem,


Vende a honra, compra o nome. O meu se perde na sobra...
Nós só pegamos a sobra Numa guerra o homem mata
Daquilo que ele come Centenas numa manobra,
E somente o necessário Inda tem cego que diz:
Pra saciar nossa fome.” Eu tenho medo de cobra.”

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Palmas, gritos e assovios A cobra inda quis falar,


Ecoaram na floresta, Mas, de repente, um esturro.
A vaca se levantou É que o rato, pulando,
E disse franzindo a testa: Pisou no rabo do burro
– “Eu convivo com o homem, E o burro partiu pra cima
Mas sei que ele não presta. Do rato pra dar-lhe um murro.

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É um mal-agradecido, Mas, o morcego notando


Orgulhoso, inconsciente. Que ia acabar a paz,
É doido e se faz de cego, Pulou na frente do burro
Não sente o que a gente sente, E disse: – “Calma, rapaz!...
E quando nasce e tomando Baixe a guarda, abra o casco,
A pulso o leite da gente. Não faça o que o homem faz.”

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Entre aplausos e gritos, O burro pediu desculpas


A cobra se levantou, E disse: – “Muito obrigado,
Ficou na ponta do rabo Me perdoe se fui grosseiro,
E disse: – “Também eu sou É que eu ando estressado
Perseguida pelo homem De tanto apanhar do homem
Pra todo canto que vou. Sem nunca ter revidado.”

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Pra vocês o homem é ruim, O rato disse: – “Seu burro,


Mas pra nós ele é cruel. Você sofre porque quer.
Mata a cobra, tira o couro, Tem força por quatro homens,
Come a carne, estoura o fel, Da carroça é o chofer...
Descarrega todo o ódio Sabe dar coice e morder,
Em cima da cascavel. Só apanha se quiser.”

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É certo, eu tenho veneno, O burro disse: – “Eu sei


Mas nunca fiz um canhão. Que sou melhor do que ele.
E entre mim e o homem, Mas se eu morder o homem
Há uma contradição Ou se eu der um coice nele
O meu veneno é na presa, É mesmo que estar trocando
O dele no coração. O meu juízo no dele.
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Os bichos todos gritaram: O morcego bateu asas,


– “Burro, burro... muito bem!” Se perdeu na escuridão,
O burro disse: – “Obrigado, O rato pediu a vez,
Mas aqui ainda tem Mas não ouvi nada, não.
O cachorro e o morcego Peguei no sono e perdi
Que querem falar também.” O fim da reunião.

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O cachorro disse: – “Amigos, Quando o dia amanheceu,


Todos vocês têm razão... Eu desci do meu poleiro.
O homem é um quase nada Procurei os animais,
Rodando na contramão, Não vi mais nem o roteiro,
Um quebra-cabeça humano Vi somente umas pegadas
Sem prumo e sem direção. Debaixo do juazeiro.

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Eu nunca vou entender Eu disse olhando as pegadas:


Por que o homem é assim: Se essa reunião
Se odeiam, fazem guerra Tivesse sido por nós,
E tudo o quanto é ruim Estava coberto o chão
E a vacina da raiva De piubas de cigarros,
Em vez deles, dão em mim.” Guardanapo e papelão.

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Os bichos bateram palmas Botei a maca nas costas


E gritaram: – “Vá em frente.” E saí cortando o vento.
Mas o cachorro parou, Tirei a viagem toda
Disse: – “Obrigado, gente, Sem tirar do pensamento
Mas falta ainda o morcego Os sete bichos zombando
Dizer o que ele sente.” Do nosso comportamento.

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O morcego abriu as asas, Hoje, quando vejo na rua


Deu uma grande risada Um rato morto no chão,
E disse: – “Eu sou o único Um burro mulo piado,
Que não posso dizer nada Um homem com um facão
Porque o homem pra nós Agredindo a natureza,
Tem sido até camarada. Eu tenho plena certeza:
Os animais têm razão.
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Fim
Constrói castelos enormes
Com torre, sino e altar,
Põe cerâmica e azulejos
E dão pra gente morar
E deixam milhares deles
Nas ruas, sem ter um lar.”

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