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A valorização da experiência de compra busca deslocar a


essência da transação para uma dimensão relacional, emocional e,
muitas vezes, lúdica. Criar uma ambiência sensível (cores, formas,
fragrâncias, texturas etc.) que promova a imersão no universo
sígnico da marca/produtos favorecendo a sedução e o
envolvimento. Como Lipovetsky (2019, p.23) afirma em seu livro
Agradar e trocar “a sedução é uma força, um instrumento produtor
de desejabilidade”. E as marcas contemporâneas aprenderam os
caminhos da sedução para chegar a aplacar com suas ofertas a
dimensão hedonista que todos temos, e o momento da comprar em
sua ritualística própria é privilegiado.

Pag 62... No cotidiano é que se estabelecem de fato as relações de


consumo, muitas vezes, à margem do que desejam e comunicam
os criadores e criativos e conhece-las é o único caminho para o
efetivo entendimento do consumidor.
Pag 63...o estudo do comportamento não é mercadológico... este
produto?

Pag 74 ...Um segundo aprendizado é que os rituais de consumo


mantêm características de repetição e constância, mas também
incorporam inovações, de modo que são mais moventes que os
rituais de passagem tradicionais. Parte destas inovações na
incorporação dos elementos da cultura material na vida dos
cidadãos se relaciona com o avanço tecnológico (novos usos,
novos materiais, novas funcionalidades...), mas também, por desejo
de ser/ fazer com o aumento da informação e, por consequência,
expansão da consciência em relação e questões de
sustentabilidade, principalmente na vertente ambiental e social, esta
última mais evidente no Brasil. Assim, os aproveitamentos que se
desdobram em “res” (reuso, reciclagem, ressignificação...) podem
ser incorporados gerando novos ciclos ritualísticos de consumo ou
descarte.

Pag 75... Os rituais de consumo também podem se manifestar de


forma mais performática que os rituais clássicos, ainda que estes
mantenham em muitos casos, alto grau cênico e cerimonial, como o
casamento, por exemplo. No entanto, dado o contexto
contemporâneo e o desejo de construir uma identidade no
consumo, principalmente no contexto das redes sociais, a
performance é muito presente. No momento, o Instagram ( e o IGTV
embutido) é a rede social digital mais emblemática desta
necessidade de performance, uma vez que privilegia a fotografia e o
vídeo, os comentários rápidos e o estímulo aos likes e
compartilhamentos. Também sofre influência da forte presença das
marcas na plataforma, inclusive de cunho declaradamente
comercial (vender) além da sempre presente força publicitária.
As plataformas digitais que privilegiam a visualidade fotográfica e
videográfica estimulam o consumo mimético e ganham
impulsionamento no contexto do consumo de moda, maquiagem,
perfumaria, mobilidade etc., bens com alta potencialidade cênica no
contexto das performances sociais. Sintetizam o auge do consumo
mimético.
Outro aprendizado fundamental é que os rituais de consumo
revelam as sutilezas dos relacionamentos interpessoais. As
pessoas por meio das compras e dos usos revelam seus valores,
quereres e não quereres e, ainda mais, expressam suas
idealizações e aspirações, o que em muitas situações não
conseguem fazer de outra maneira, como bem apresentado por
Miller:

O ato de comprar é uma práxis ativa que constitui os relacionamentos, interfere neles e remete
novamente a eles. O ato de comprar pode, por exemplo, tornar-se uma expressão vicária de
relacionamentos, que evita que os envolvidos tenham de ser mais explícitos sobre o que está
acontecendo. O motivo das brigas em família passa a ser se os indivíduos estão comendo
verdura ou o “não usar a saia nem morta” e não as incompatibilidades básicas entre as
pessoas. O ato de comprar pode revelar contradições entre a autoimagem e a idealização ou a
desvalorização do eu pelos outros. (MILLER, 2002, p161).

No ato de compra, mas em todo o processo ritualístico, na busca,


no uso, no armazenamento e no descarte, podemos nos deparar
com manifestações mais ou menos perceptíveis das relações entre
as pessoas. Submissões, influências, determinações, tudo pode
emergir da análise do consumo quando ampliarmos o foco do
indivíduo para os casais e as famílias e suas relações por exemplo.
Quem escolhe, quem compra, quem paga, quem influencia, quem
segue... essas e tantas outras possibilidades de consumo, revelam
no fundo, relações psicológicas e sociais bem mais profundas
relacionadas a personalidade, papeis sociais e afetos.
O consumo compreendido como um ritual é uma fonte
inesgotável de investigação interdisciplinar, principalmente em
contextos como o brasileiro e tantos outros países capitalistas e
ainda mais, os latinos-americanos, onde sua centralidade se dá
muito mais como acesso do que como expressão entorpecida e
desenfreada do apenas “ter”. Como afirma Canclini (2010.p.59)”
“Hoje vemos os processos de consumo como algo mais complexo
do que uma relação entre meios manipuladores e dóceis
audiências”. Oi ainda nas contribuições de Han (2016), p.111)
“Os bens não duram. Trazem inscrita a caducidade como elemento
constituinte. O ciclo de aparecimento e desaparecimento das coisas
é cada vez mais breve”, porque estar em movimento é um valor e a
efemeridade impõe esta dinâmica.

Pag 80... A convicção de que o alto consumo equivale a um alto


padrão de vida é uma crença geral da sociedade moderna
(WILLIAMS,2011, P.258). E essa crença está presente em todo o
ocidente e, por isso, não é diferente na América Latina e no Brasil.
Bauman (2008), p.60) é primoroso na reflexão sobre a relação entre
consumo, qualidade de vida e promessa de felicidade “a Sociedade
de consumidores talvez seja a única na história da humana a
prometer felicidade na vida terrena, aqui e agora e a cada agora
sucessivo”. O problema está justamente em quem não tem acesso
ao consumo, uma vez que ser consumidor é a forma de descrever
as pessoas pela sua capacidade econômica. Assim Bauman
entende que a massa de pobres está completamente fora da
dinâmica do consumo, o que em nosso caso é a maioria da
população na América Latina. “Reclassificados como baixas
colaterais do consumismo, os pobres são agora, e pela primeira vez
na história registrada, pura e simplesmente um aborrecimento e
uma amolação” (BAUMAN,2008,p.160). E continua:
“desnecessários, indesejados, desamparados – onde é o lugar
deles? A resposta mais curta é: fora das nossas vidas”
(BAUMAN,2008, P.161) Pode parecer uma crítica exagerada, no
entanto, não é absoluto.
Pag 81... Seguindo na perspectiva argumentativa, destaco
Baudrillard (2009) que, décadas atrás, apresentava uma abordagem
Pag...82 crítica sobre o papel da moda para a expansão do
consumismo e reforçava o caráter devastador da sociedade de
classe e até mesmo sua influência no incentivo da infelicidade da
população, justamente pelas promessas não cumpridas de
felicidade eterna. Uma perspectiva bastante negativa e, com foco
nos efeitos(só nocivos) do consumo sobre a sociedade. No entanto
esta é uma das visões possíveis, lembrando que Baudrillhard é um
filósofo francês bastante crítico e que Bauman é um sociólogo,
marxista, polonês e é a partir desta perspectiva que analisam o
mundo. Mas também Veblen (1965) no seu livro economia do ócio,
traz reflexões contundentes sobre o consumo não destinado ao
conforto ou à utilidade, mas simplesmente a propósito honoríficos
de prazer ao que o autor chamou “consumo conspícuo”.
Muitas críticas, todas bastante pertinentes, se entendemos que
décadas depois, já no século XXI, consumir traz o sentido da
cidadania, e uma quantidade enorme de pessoas estão à margem.
Mas, Dowbor (2017) economista polonês, radicado no Brasil há
mais de 5 décadas, em seu livro A era do capitalismo improdutivo,
escancara as origens da desigualdade crescente em todo o planeta
e a partir de uma pergunta “como os bancos registram lucros
bilionários em plena recessão e desemprego”? Dá o tom de suas
argumentações, indo além do consumo, aprofundando e
mergulhando na estrutura da sociedade capitalista que promove
uma grande concentração de renda, sem resposta as
desigualdades crecentes, além de repressão e intolerância. Seu
foco é apresentar como a financeirização dilacera as economias no
Brasil, na América Latina e mundo afora. O consumo, claro é parte
estruturante da sociedade capitalista, mas o fundamento Pag...83
das desigualdades está no sistema financeiro que nada produz,
mas que tudo ganha.
Caminhando um pouco mais em nossa reflexão, vejamos Canclini
(2010), antropólogo argentino, como nos apresenta o consumo:

“O consumo serve para pensar, partimos da hipótese de que, quando selecionamos os


bens e nos apropriamos deles, definimos o que consideramos publicamente valioso,
bem como os modos de nos integrarmos e nos distinguirmos na sociedade, de
combinarmos o pragmático e o aprazível” Canclini (2010,p.35).
Como vimos, Canclini traz uma perspectiva diferente, uma vez que
entende o consumo como expressão da identidade, como uma
manifestação de quem somos e dos nossos quereres, portanto,
também um caminho de autoconhecimento, e atribui ao processo
de escolha uma possibilidade de aprendizado sobre nós mesmos,
do que gostamos, do que nos fica bem, daquilo que proporciona
prazer ou do que não nos atrai. Portanto, absolutamente legítimo.
Em certa medida alinhado com Miller (2002). Haveria no consumo a
junção de uma dimensão prazerosa, daí sua enorme potência. E o
autor continua:

Ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos reconhecidos pelos aparelhos
estatais para os que nasceram em um território, mas também com as políticas sociais e
culturais que dão sentido de pertencimento, e fazem que se sintam diferentes os que
possuem uma mesma língua, formas semelhantes de organização e de satisfação de
necessidades (CANCLINI, 2010,P.35)

Pag...84 Agora Canclini traz nova camada de sentido ao consumo.

Se consumo é expressão de nossa identidade, nos ajuda a


entendermos quem somos e a nos expressarmos, assume também
uma importante face social de pertencimento, de caminho para
nossa integração ao coletivo, de reconhecimento e de condição
para nos tornarmos parte do coletivo. O consumo passa então a ser
constitutivo da cidadania. Esta perspectiva é particularmente
relevante e não surpreendente vir de um autor argentino porque é
na precariedade das condições socioeconômicas da América latina,
onde as condições básicas de vida não estão garantidas à massa
da população, que poderia vir. Uma massa apartada do consumo,
sem acesso a condições mínimas de vida, nem falo de “qualidade”
de vida, o que inclui não apenas a subsistência, mas também
produtos e serviços que garantam melhores condições de saúde,
proteção, bem-estar, educação e cultura, passando pela tecnologia
digital que atravessa todas essas instâncias

Canclini tem um tom de Jorge Bergoglio quando este se


pronuncia pela primeira vez em 13 de março de 2013 já como Papa
Francisco “Irmãos e irmãs, boa noite! Vocês sabem que o dever do
conclave era de dar um bispo a Roma. Parece que meus irmãos
cardeais foram buscá-lo quase no fim do mundo! Mas, estamos
aqui!”. Sim, é o fim do mundo ou em uma abordagem mais
eufemística, das bordas e das franjas do mundo que podem vir as
possibilidades de entendimento das complexidades da vida na
sociedade capitalista contemporânea e, consequentemente, de
alguma mudança. E essa afirmação não é utópica, tampouco
autocentrada, é uma constatação: a vida vivida na escassez, na
apartação, no enfrentamento cotidiano das dificuldades de toda a
ordem, impõe força, coragem e criatividade como caminhos
possíveis, sem elas o resultado é só degradação, submissão e
miséria. Está em Guimarães Rosa (1984), no clássico Grande
Sertão Veredas “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim...

Pag 85...O povo Latino-americano pode apresentar alternativas


para um mundo que vive agora na incerteza, onde o passado já não
explica e o futuro está encoberto por espessa neblina, ocultando-se;
uma sociedade alicerçada na transitoriedade e na efemeridade,
onde “nada é dado”, simplesmente porque as instituições já não são
mais seguidas como no passado, mas constantemente
questionadas e as pessoas, também consumidores, estão muito
mais informadas, o que também faz aumentar a responsabilidade
de suas escolhas. Como no discurso do escritor colombiano Gabriel
Garcia Marques quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em
1982 “Apesar disso, da opressão, do saque e abandono,
respondemos com vida. Nem enchentes, nem pragas, nem fome,
nem cataclismos, nem mesmo as eternas guerras, séculos após
séculos, foram capazes de subjugar a persistente vantagem que a
vida tem sobre a morte”. As respostas latino-americanas vão no
sentido mais humano possível, a insistência em viver.

Os processos históricos explicam boa parte das condições de


vida na América Latina. A colonização espanhola devastadora, com
a exterminação dos povos indígenas do norte do México ao sul do
Uruguai, apoiada pela segregacionista, dogmática e sangrenta fé
católica, em muito similar a colonização...

Pag... 86 O impacto para o cidadão é imenso e diverso, mas um


destaque importante e que também se relaciona com os
comportamentos de consumo é o reforço de um individualismo
desenfreado, um “salve-se quem puder” pela própria
impossibilidade de ver-se como parte de um coletivo. Como afirma
Harari (2018, p117 “As pessoas vivem vidas cada vez mais
solitárias num planeta cada vez mais concentrado”,

Pag 12... É processo e não apenas um ato, o de comprar. Envolve todas as


possibilidades de ações e estratégias de aproximação, busca de informações,
formação de opinião, mas também de sedução, compra propriamente dita, uso dos
produtos e serviços nos contextos mais variados, guarda, descarte em alguns casos,
ressignificação em tantos outros.

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