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Auto da Barca do Inferno à lupa

Fidalgo Fidalgo

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Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, Fidalgo – personagem-tipo que representa a
diz: nobreza.
O Fidalgo (F.) traz alguns adereços/símbolos
cénicos que representam os seus pecados e falhas:
25 FIDALGO Esta barca onde vai ora1,
– um pajem, ou seja, um serviçal – exploração do
que assi está apercebida2 mais fraco;
DIABO Vai para a ilha perdida3 – um “rabo mui comprido” (manto) – vaidade;
– cadeira de espaldas – símbolo da sua elevada
e há de partir logo ess’ora4.
posição social.
FID. Pera lá vai a senhora?5
30 DIABO Senhor, a vosso serviço. O Diabo (D.) e o seu ajudante, o Companheiro,
estão a preparar a barca para receber as almas
FID. Parece-me isso cortiço6...
que estão para chegar.
DIABO Porque a vedes lá de fora.

FID.
Porém, a que terra passais?
Percurso da personagem:
DIABO Pera o Inferno, senhor.
35 FID. Terra é bem sem-sabor.
v. 27 – eufemismo
DIABO Quê? E também cá zombais?
FID. E passageiros achais O D., para não assustar as personagens que vão
pera tal habitação? surgindo no cais, não afirma diretamente que a sua
barca tem como destino o Inferno. Usa, assim,
DIABO Vejo-vos eu em feição
outras expressões que pretendem indiretamente
40 pera ir ao nosso cais7... dizer o mesmo de forma suavizada. Por isso,
encontraremos inúmeros eufemismos em toda
a obra.
FID.
Parece-te a ti assi.
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DIABO Em que esperas ter guarida ? v. 29 – cómico de situação: o F. confunde o D. com
9
FID. Que leixo na outra vida uma senhora
v. 31 – Parece-me um barco reles…; o F. mostra-se
quem reze sempre por mi. desdenhoso e altivo
45 DIABO Quem reze sempre por ti!... v. 35 – metáfora
Hi hi hi hi hi hi hi hi! vv. 36-38 – O F. mostra-se arrogante e insolente.
O D. acusa-o de querer ter, no Inferno (“cá”), o
E tu viveste a teu prazer,
mesmo comportamento de gozo que teve
cuidando cá guarecer10 enquanto vivo
por que rezem lá por ti? vv. 39-40 – O Diabo afirma que o comportamento
do F. está adequado ao Inferno
v. 40 – eufemismo (morrer)
vv. 43-44 – argumento de defesa do F.: deixa na
terra quem reze pela sua alma
vv. 45-46 – O Diabo escarnece do F.; o D. muda o
tom cerimonioso e deixa de o tratar por vós e
passa a tu
vv. 47-49 – versos sentenciosos; argumento de
acusação do D.: o F. viveu como quis
1. ora: agora. 2. está apercebida: pronta para partir. 3. ilha
perdida: Inferno. 4. ess’ora: imediatamente. 5. a senhora: o vv. 48-49 – antítese
Fidalgo confunde o Diabo com uma senhora. 6. cortiço:
embarcação pobre. 7. ao nosso cais: inferno. 8. guarida:
proteção, salvação. 9. leixo: deixo. 10. guarecer: salvar-te.

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Fidalgo

50 Embarcai! Hou! Embarcai, vv. 50, 52, 55 e 57– imperativos


que haveis de ir à derradeira11. vv. 51-52 – Há uma crítica a toda a classe social:
já era costume este tipo de comportamentos por
Mandai meter a cadeira, parte da nobreza (personagem-tipo)
que assi passou vosso pai. v. 53 – “que” = porque
FID. Quê? Quê? Quê? Assi lhe vai? v. 54 – espanto por parte do F
55 DIABO Vai ou vem, embarcai prestes!
Segundo12 lá escolhestes. vv. 56-57 – antítese; argumento de acusação;
assi cá vos contentai. destaque para a ideia de livre-arbítrio

Pois que já a morte passastes. vv. 58-59 – influência grega: rio Letes, um dos rios
havês de passar o rio13. do submundo, que as almas tinham de atravessar

60 FID. Não há aqui outro navio?


DIABO Não, senhor, que este fretastes, v. 61 – “fretastes” = alugastes. Ou seja, escolheste
e primeiro que espirastes14 ainda na terra
vv. 60-65 – referência à escolha do F. de, em vida,
me destes logo sinal. ter tido uma postura pecaminosa. Essas ações
FID. Que sinal foi esse tal? terrenas deram “sinal” ao D., por isso, agora,
15 deverá entrar na barca
65 DIABO Do que vós vos contentastes.

FID.
A estoutra barca me vou.
– Hou da barca! Pera onde is? Percurso da personagem:
Ah, barqueiros! Não me ouvis?
Respondei-me! Houlá! Hou! vv. 67-71 – O F. interpela o Anjo (A.) que,
70 (Par Deos, aviado estou!16 inicialmente, o ignora
Cant’a isto17 é já pior... vv. 67-68 – apóstrofe
Que jiricocins18, salvanor19!
vv. 70-73 – cómico de linguagem, cómico de
Cuidam que sou eu grou20?) situação: linguagem popular; como não é
imediatamente atendido pelo A., o F. enfurece-se
ANJO
Que querês? e, num aparte, insulta o barqueiro
FID. Que me digais,
75 pois parti tão sem aviso21,
se a barca do Paraíso
é esta em que navegais.

1 1. ora: agora. 2. está apercebida: pronta para partir. 3. ilha


perdida: Inferno. 4. ess’ora: imediatamente. 5. a senhora: o
Fidalgo confunde o Diabo com uma senhora. 6. cortiço:
embarcação pobre. 7. ao nosso cais: inferno. 8. guarida:
proteção, salvação. 9. leixo: deixo. 10. guarecer: salvar-te. 11. à
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derradeira: finalmente. 12. Segundo: Tal como. 13. o rio: Rio


Letes (rio que os mortos tinham de atravessar). 14. v. 62: e
antes de morrerdes. 15. v. 65: Da vida de prazer que vivestes.
16. aviado estou!: estou bem arranjado! 17. Cant’a isto: Quanto
a isto. 18. jiricocins: asnos. 19. salvanor: com o devido respeito.
20. sou eu grou: palrador. 21. sem aviso: inesperadamente.

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ANJO Esta é; que demandais?

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FID. Que me leixês embarcar. vv. 79-81 – cómico de carácter: o F. afirma ser
22 “fidalgo de solar”, ou seja, de linhagem muito
80 Sou fidalgo de solar ,
antiga, da velha nobreza, sendo que isso, no seu
é bem que me recolhais. entender, lhe garantiria a passagem para o
Paraíso
ANJO Não se embarca tirania vv. 82-83 – versos sentenciosos; acusação do A.:
o F. foi um tirano
neste batel divinal.
FID. Não sei porque haveis por mal
85 que entr’a minha senhoria...
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ANJO Pera vossa fantesia vv. 86-87 – versos sentenciosos; acusação direta
mui estreita é esta barca. do A.; o F. foi presunçoso em vida
vv. 88-89 – cómico de carácter: indignação do F.
FID. Pera senhor de tal marca
que pensa que a sua condição social é um fator
nom há aqui mais cortesia? de salvação

90 Venha a prancha e atavio24! v. 90 – objetos necessários ao embarque


Levai-me desta ribeira! vv. 90-91 – cómico de carácter: autoritarismo do F.
vv. 92-105 – acusação direta do A.: o F. foi um
ANJO Não vindes vós de maneira
indivíduo vaidoso, despótico, que desprezou
pera ir neste navio. os mais frágeis
Essoutro vai mais vazio: v. 95 – “cadeira” – objeto simbólico representativo
do estatuto social e abuso de poder do F.
95 a cadeira entrará
v. 96 – “rabo” – manto comprido representativo da
e o rabo caberá vaidade, arrogância e ostentação do F.
e todo vosso senhorio.

Vós irês mais espaçoso


com fumosa25 senhoria, vv. 99-105 – “fumosa”/“fumoso” – arcaísmo
100 cuidando na tirania v. 101 – dupla adjetivação
vv. 102-103 – antítese
do pobre povo queixoso;
vv. 102-105 – versos sentenciosos
e porque, de generoso26, vv. 104-105 – comparação
desprezastes os pequenos27,
achar-vos-ês tanto menos28
105 quanto mais fostes fumoso.

DIABO
À barca, à barca, senhores! v. 106 – pregão; apóstrofe
Oh! que maré tão de prata! v. 107 – metáfora
v. 108 – metáfora hiperbólica
Um ventezinho que mata vv. 106-109 – cómico de carácter: o D. usa
e valentes remadores! pregões e até canta uma música para publicitar
a sua barca

22. solar: linhagem. 23. fantesia: vaidade. 24. atavio:


adorno. 25. fumosa: vaidosa. 26. de generoso: raça ilustre.
27. os pequenos: menos dignos da barca da Glória. 28. v. 104:
menos digno do Paraíso.

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Fidalgo

Diz, cantando:

110  ós me veniredes29 a la mano,


V Percurso da personagem:
a la mano me veniredes.
vv. 110-111 – lirismo; influência do galego-português:
FID.
Ao Inferno todavia! Vós vireis à minha mão/à minha mão vireis
vv. 112-121 – O F. aparenta conformar-se com a
Inferno há i pera mi?
entrada na barca do Inferno
Ó triste! Enquanto vivi vv. 113-119 – O F. mostra arrependimento
115 não cuidei que o i havia. v. 114 – apóstrofe
Tive30 que era fantasia31; vv. 114-116 – versos sentenciosos

folgava ser adorado;


confiei em meu estado32
e não vi que me perdia.

120 Venha essa prancha! Veremos vv. 120, 122, 124 e 128 – presente do conjuntivo
esta barca de tristura. com valor de imperativo
vv. 120-121 – conformação do F.
DIABO Embarqu’a vossa doçura,
v. 122 – ironia
que cá nos entenderemos…
Tomarês um par de remos,
125 veremos como remais,
e, chegando ao nosso cais, v. 126 – perífrase (Inferno)
todos bem vos serviremos. v. 127 – O D. dará pancada ao F. (estas palavras
seriam acompanhadas de um gesto ameaçador
do D. que, naquele momento, tem nas mãos os
Esperar-me-ês vós aqui,
FID. remos)
tornarei à outra vida vv. 128-130 – cómico de carácter e de situação:
ver minha dama querida revelando arrogância e ingenuidade, o F. ordena
130
ao D. que espere, uma vez que vai regressar à
que se quer matar por mi. terra para ver a sua “dama querida” que acredita
DIABO Que se quer matar por ti? que o ama
FID. Isso bem certo o sei eu. v. 132 – O D. abandona o tratamento mais
33 cerimonioso por “vós” e passa a tratar o F. por “tu”,
DIABO Ó namorado sandeu ,
mostrando a realidade da sua nova situação
135 o maior que nunca vi! v. 134 – “sandeu” – arcaísmo
v. 135 = o maior que já vi!
FID. Como pod’rá isso ser,
que m’escrevia mil dias? vv. 137-139 – hipérbole
DIABO Quantas mentiras que lias
e tu… morto de prazer!
140 FID. Pera que é escarnecer,
que nom havia mais no bem34?
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29. veniredes: vireis. 30. Tive: julguei. 31. fantasia:


imaginação. 32. meu estado: classe social. 33. sandeu:
parvo, ingénuo. 34. mais no bem: maior amor.

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35
DIABO Assi vivas tu, amen ,

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vv. 142-143 – ironia
36
como te tinha querer !

FID.
Isto quanto ao que eu conheço…
145 DIABO Pois estando tu espirando, vv. 145-147 – cómico de linguagem
se estava ela requebrando37
com outro de menos preço38.
FID. Dá-me licença, te peço, vv. 148-149 – cómico de carácter: o F. continua,
que vá ver minha mulher. ingenuamente, a insistir no regresso, mas agora já
pede autorização ao D.; cómico de situação: afinal
150 DIABO E ela, por não te ver,
a “dama querida” (v. 130) não era a esposa, mas a
despenhar-se-á dum cabeço. amante
vv. 149-150 – antítese
Quanto ela hoje rezou, v. 151 – hipérbole
vv. 152-155 – cómico de situação: afinal os gritos
antre seus gritos e gritas, da esposa eram de alegria e de alívio
foi dar graças infinitas v. 154 – hipérbole
155 a quem a desassombrou39. G. V. critica, no ABI, a infidelidade no casamento
FID. Cant’ela, bem chorou! que abala os valores da família e a própria
sociedade.
DIABO Nom há i choro de alegria?
FID. E as lágrimas que dezia?
DIABO Sua mãe lhas ensinou.

160 Ora, entrai! Entrai! Entrai! vv. 160-164 – imperativo


Ei-la prancha! Ponde o pé… v. 161 – “Eis” – advérbio de designação (está
40 associado a um gesto na direção da prancha)
FID. Entremos, pois que assi é .
v. 162 – presente do conjuntivo com valor de
DIABO Ora, senhor, descansai, imperativo; conformação do F.
passeai e suspirai. v. 163 – apóstrofe
165 Entanto vinrá mais gente.
FID. Ó barca, como és ardente! v. 166 – apóstrofe; metáfora hiperbólica
Maldito quem em ti vai! vv. 166-167 – recriminação e arrependimento do F.

35. amen: em verdade. 36. querer: amor. 37. requebrando:


saracoteando; dançando. 38. preço: valor. 39. desassombrou:
consolou. 40. pois que assi é: não há remédio.

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Fidalgo

Diz o Diabo ao moço da cadeira:

Não entras cá! Vai-te d’i!41


DIABO v. 168 – O pajem é uma personagem figurante que
A cadeira é cá sobeja:42 não está sujeita a um julgamento, saindo por isso
de cena
170 cousa qu’esteve na igreja
v. 169 – A cadeira é representativa da tirania e da
não se há de embarcar aqui. exploração dos mais fracos
Cá lha darão de marfim, vv. 172-174 – O F. irá ser torturado; metáfora
marchetada43 de dolores44,
com tais modos de lavores45,
175 que estará fora de si...46

À barca, à barca, bõa gente, v. 176 – pregão; apóstrofe


que queremos dar à vela!
Chegar a ela! Chegar a ela! v. 178 – pregão
Muitos e de boa mente!
180 Oh! que barca tão valente! v. 180 – personificação

41. Vai-te d’i!: Sai daqui! 42. v. 169: A cadeira está cá a


mais. 43. marchetada: enfeitada. 44. dolores: dores.
45. lavores: trabalhos, sofrimentos. 46. v. 175: que ficará
fora de si.
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