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Judeu

Judeu Judeu
Tanto que Brísida Vaz se embarcou, veio um Judeu (J.) – personagem-tipo que representa os
Judeu, com um bode1 às costas; e, chegando ao judeus.
batel dos danados, diz: O J. vem acompanhado de um bode, símbolo
da sua religião. O J. é a personagem mais
desapreciada da obra, já que nem o D. o quer
JUDEU Que vai cá? Hou marinheiro! receber na sua barca. Este tom agressivo e de
DIABO Que má-hora vieste! repulsa prende-se com o contexto histórico-social.
G. V. “desenha” o tipo do Judeu, exagerando
JUDEU Cuj’é2 esta barca que preste?
sobretudo dois traços: o apego à sua religião,
560 DIABO Esta barca é do barqueiro. simbolizado no bode expiatório que ele não quer
JUDEU Passai-me por meu dinheiro. largar, e o seu notório amor ao dinheiro.2
DIABO E o bode há cá de vir? Segundo Oliveira Martins1, “Já no séc. XIV as
JUDEU Pois também o bode há de ir. cortes pediam a D. Pedro (1361) que não desse
DIABO Que escusado passageiro! lugar aos judeus de sua terra de onzenarem,
reclamando que lhes deem logares aguizados
pera sua morada […]. D. João II acolhera os
565 JUDEU Sem bode, como irei lá? expulsos de Castela, mas as cortes não cessam
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DIABO Nem eu nom passo cabrões . de pedir leis de exceção para essa gente que suga
o povo […]. O povo, para qual os assassinos de
Cristo eram réprobos, temia neles as habilidades
e as artes com que, enriquecendo, desgraçaram o
trabalhador”.
1. bode: o bode fazia parte dos sacrifícios nos rituais da
religião judaica. 2. Cuj’é: De quem é. 3. cabrões: maridos
que consentem a infidelidade das mulheres.

Percurso da personagem:

v. 558 – o D. mostra enfado ao deparar-se com o J.


e por ter de interagir com esta personagem
v. 560 – pleonasmo (o D. faz-se de desentendido
de forma a desencorajar o J. de entrar na barca)
v. 561 – cómico de carácter: G. V. coloca o J. a
exibir uma certa afinidade com o D., uma vez que
lembra que é rico e mostra intenção de entrar
na barca do Inferno, não pondo inicialmente em
consideração poder ir para o Paraíso
vv. 561-565 – O J. não considera afastar-se do
bode que, como adereço cénico, representa a
religião judaica, condenada naqueles tempos.
Este animal fazia parte dos sacrifícios nos rituais
da religião judaica. Trata-se do bode expiatório,
isto é, um dos dois bodes que entravam no ritual da
Festa da Expiação dos Judeus (Levítico, cap. 16.º).2
v. 566 – cómico de linguagem: este verso tem um
duplo sentido. Por um lado, o D. afirma não querer
o bode na sua barca, por outro a expressão
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também se refere à figura do próprio J. que assim


é tratado (um marido que permite a infidelidade
da esposa)

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Auto da Barca do Inferno à lupa

JUDEU Eis aqui quatro testões

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vv. 567-571 – cómico de carácter: o J. continua a
e mais se vos pagará. tentar subornar o D. e a insistir em pagar mais uns
insignificantes tostões para que este deixe entrar
Por vida do Semifará4 o bode
570 que me passeis o cabrão! v. 569 – fórmula de juramento: nome do J. ou de
Querês mais outro testão? outro judeu muito conhecido na altura
v. 572 – O D. recusa-lhe a entrada
DIABO Nenhum bode há de vir cá.

JUDEU Porque nom irá o judeu vv. 573-575 – cómico de situação: o J. questiona
onde vai Brísida Vaz? por que motivo não poderá entrar na barca onde
já se encontra Brísida Vaz. Para além disso,
575 Ao senhor meirinho apraz?
confunde o Fidalgo com um oficial de justiça,
Senhor meirinho5, irei eu? um magistrado
DIABO E ò fidalgo, quem lhe deu… vv. 577-580 – cómico de situação: O D. mostra-se
JUDEU O mando, dizês, do batel? indignado, dado que o J. pensa que é o Fidalgo
que tem o poder de decisão. O J., tratando, de
Corregedor, coronel,6 forma adulatória, o Fidalgo por “Corregedor” e
580 castigai este sandeu! “coronel”, usa o imperativo para o instigar a
castigar a ousadia do arrais do Inferno
v. 580 – “sandeu” – arcaísmo
Azará7, pedra miúda,
vv. 581 e 585 – expressões/vocábulos judaicos.
lodo, chanto8, fogo, lenha, vv. 581-588 – cómico de linguagem: o J.,
caganeira que te venha! desiludido, insulta o D., recorrendo a uma
Má corrença9 que te acuda! linguagem muito similar à do Parvo

585 Par el Deu, que te sacuda


co’a beca10 nos focinhos!
Fazes burla11 dos meirinhos?
Dize, filho da cornuda!

Furtaste a chiba12, cabrão?


JOANE v. 589 – cómico de linguagem: o Parvo, que estava
590 Parecês-me vós a mim no cais, acusa o J. de roubo e pergunta-lhe se
tinha roubado o bode
gafanhoto d’Almeirim13 vv. 590-592 – cómico de linguagem: o Parvo
chacinado em um seirão14. insulta o J.

4. Semifará: nome do próprio Judeu ou de outro judeu


conhecido. 5. meirinho: antigo magistrado (o Judeu
refere-se ao Fidalgo). 6. v. 579: o Fidalgo é designado por
corregedor, coronel e meirinho, pois, segundo o Judeu,
são títulos que lhe convêm. 7. Azará: trovoada; azar em
sentido figurado. 8. chanto: pranto. 9. corrença: diarreia.
10. co’a beca: veste talar preta, usada pelos magistrados
judiciais e por alguns seminaristas. 11. Fazes burla:
Zombas, fazes pouco. 12. chiba: cabra. 13. d’Almeirim:
antigamente, era uma vila pertencente ao distrito de
Santarém; D. Manuel vivia em Almeirim durante alguns
meses do ano. 14. seirão: cesta grande.

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Judeu

DIABO Judeu, lá te passarão vv. 593-594 – cómico de situação: o D. vai


porque vão mais despejados. colocando entraves à entrada do J. e tenta
empurrá-lo para a barca da Glória
595 JOANE E ele mijou nos finados
vv. 595-600 – Já que o D. não quer o J. na sua
n’ergueja de São Gião15! embarcação e o J. nem sequer tenta uma
aproximação à barca do Paraíso, é ao Parvo a
quem cabe o papel de acusador; argumentos de
E comia a carne da panela
acusação do Parvo: ações contrárias à religião
no dia de Nosso Senhor! cristã, como ter urinado nas sepulturas e não ter
E aperta o salvanor, cumprido o jejum nos dias santos
600 e mija na caravela!
DIABO Sus, sus! Dêmos à vela! v. 601 – “Sus, sus!” – interjeição = Eia!, Vamos!
Vós, judeu, irês à toa16, vv. 602-604 – cómico de situação: o D. emite a
sentença final. O D. aceita levar o J. para o Inferno,
que sois mui ruim pessoa. acompanhado do seu bode (a religião de que não
Levai o cabrão na trela! prescinde), porém estes não entrarão na barca,
irão a reboque, puxados por uma corda para o
Inferno
v. 603 – cómico de situação: o D. apelida o J.
de “mui ruim pessoa”; condenação final pelo D.

15. São Gião: São Julião. 16. irês à toa: ireis a reboque da
barca.
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