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AUTO DA BARCA DO INFERNO

O Frade – Cena VI

I – O resumo da cena
Trata-se dum frade cortesão, dançarino, cantor e esgrimista que surge, no estrado, com a sua
amante pela mão. O Diabo sentencia que ele irá para o Inferno por viver amancebado,
desprezando assim os votos de castidade que formulara. Toda a defesa do Frade consiste em
acreditar que o hábito que enverga o livrará das chamas infernais. Mas repelido pelo Anjo,
resigna-se e entra, juntamente com a sua Florença, na barca da perdição.

II – Notas importantes…
1. Embora o Frade da ilustração use um hábito, este
não parece fazer dele um verdadeiro frade. Com
efeito, a personagem apresenta-se com uma rapariga
pela mão, parecendo dançar, e com acessórios
inadequados à sua condição.

2.1. Os objetos com que o Frade se apresenta em


cena são, desde logo, marcas de cortesão: a espada, o
escudo e o capacete. O Frade faz-se ainda
acompanhar de Florença, a amante, evidenciando o seu carácter mundano e contrário ao que
seria de esperar de um membro do clero, que assim quebra os votos de pobreza e de
castidade a que estava obrigado.

2.2. O Frade não esconde nenhum facto da sua vida mundana, pelo contrário, há momentos
em que os exibe orgulhosa- mente, pois acredita que o hábito que enverga é garantia de
salvação, isto é, que sendo frade poderia fazer tudo o que quisesse. Cf. v. 392 “E este hábito
não me vale?” e v. 406 “Não ficou isso na avença.” (Ir para o Céu é um direito garantido, por
contrato, aos frades).

3. O cómico de situação está presente na forma como o Frade entra em cena, cantando e
dançando, com a moça pela mão, e na lição de esgrima que dá ao Diabo. O cómico de carácter
mani- festa-se na maneira como se veste e na sua prosápia, já que se tem a si mesmo em alta
consideração (cf. vv. 398-400 “eu hei de ser condenado? / Um padre tão namorado / e tanto
dado à virtude!…”; v. 422 “Sabê que fui da pessoa!”; vv. 470-473 “Há lugar cá / pera Minha
Reverença? / E a senhora Florença / polo meu entrará lá!”).

Prof. Gina Pereira 2023/2024


4.1. Por exemplo: Sendo membro do clero, e tendo, portanto, a obrigação de dar o exemplo,
os pecados do Frade adquirem particular gravidade. Por isso, o Anjo, representante de Deus,
nem sequer lhe dirige a palavra.

5. O Parvo acusa o Frade de não cumprir o voto de castidade.

6. Referimo-nos aos versos 383–385: “E não vos punham lá grosa, / no vosso convento
santo? / E eles fazem outro tanto!”

Curiosidade: Não deixa de ser curiosa a naturalidade com que se encara a questão de os
frades terem amantes e, conforme se diz no texto de António José Saraiva e Óscar Lopes, de
terem até “mulher e prole”.

III – Síntese
Personagem / Classe social: Frade / Clero (mundano)

Elementos / Simbologia:

 Broquel/ capacete/ espada – simbolizavam o apego aos prazeres e vícios mundanos


 Hábito – Condição sacerdotal (classe social – clero)
 Florença – quebra dos votos de castidade, a sua imoralidade e infidelidade a Deus

Percurso cénico: Cais – Barca do Diabo – Barca do Anjo – Barca do Diabo

Caracterização psicológica

 Direta: O Frade autocaracteriza-se como “cortesão”, ou seja, alguém que está


familiarizado com os hábitos da corte. Mais tarde, assume-se como “namorado” e
“dado a virtude” e que tem “tanto salmo rezado”. Assim, desde logo esta personagem
assume, de forma direta, uma vida dupla como frade, que usa hábito e reza orações e
que também é da corte, que namora, canta, esgrima e toca viola.
 Indireta: As suas atitudes, também certificam que é um padre pecador, que levava
uma vida boémia, em vez de se dedicar afincadamente ao serviço que prestava a Deus
e em auxílio de quem precisasse. Mostra que é obstinado quando se nega a entrar na
Barca do Inferno, convencido de que as suas rezas e o simples hábito de Frade lhe
garantirão um outro destino. Do mesmo modo, também não aceita que Florença entre
nessa barca, o que pode denunciar que o Frade não estava ainda consciente de ter
vivido uma vida de pecado.

Argumentos de acusação do Diabo:

 Não cumpriu na totalidade as leis religiosas


 Quebrou os votos de castidade ao folgar com uma mulher

Prof. Gina Pereira 2023/2024


 Dedicava-se aos prazeres mundanos

Argumentos de defesa do Frade

 Rezou muitos salmos


 (“Este hábito não me vale”)
 Dizia que foi muito importante
 Era bom esgrimista.

Momentos psicológicos da personagem:

 Apresenta-se como cortesão, o que revela que ele frequentava a corte e os seus
prazeres (era um frade mundano)
 Usa o facto de ser Frade naquele tempo (pretende mostrar que o clero se mostrava
superior, poderia fazer o que quisesse sem ser condenado)
 Aceita a sentença porque se o Anjo se recusa a falar com ele é porque todos os seus
pecados foram graves

Tipo(s) de cómico usado(s):

 de linguagem – “Devoto padre marido”


 de situação – a entrada do frade em cena com a moça pela mão
 de carácter – pensava que a relação proibida com a moça seria perdoada pelas suas
muitas rezas.

Destino: Inferno

Intencionalidade do nome dado por Gil Vicente à companheira do Frade:

 A intencionalidade do nome dado por Gil Vicente à companheira do Frade (Florença), é


que Florença representa uma cidade italiana considerada o berço do Renascimento;
além disso essa cidade foi governada pela família Médici, protetora dos judeus,
iniciando uma longa relação da família com a comunidade judaica, que se tornaria
comprometedora com a Inquisição.

Intenção crítica: Gil Vicente pretende criticar:

 o desajuste entre a vida religiosa e a vida que ele levava (vida mundana)
 os símbolos representavam a vida de prazeres que ele levava, o que o afastava do seu
dever à crítica religiosa “Diabo-(…) E não os punham lá grosa / no vosso convento
santo?
Frade- E eles faziam outro tanto!”

Prof. Gina Pereira 2023/2024


 revela que: havia uma quebra de votos de castidade ao hábito comum entre eles. Esta
afirmação alarga a crítica a toda a classe social, pois o Frade é uma personagem tipo,
representando toda uma classe social.

Prof. Gina Pereira 2023/2024

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