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NA ROTA DO ÊXODO

1. Na minha fugaz leitura da imprensa detenho-me, por instantes, no “lead” da


primeira página do JN (08.10.2008): Professores reformam-se à média de 400 por mês.
Embora madraço, epíteto outorgado, em tempos, pelo Presidente do Conselho aos
professores, ainda consigo, por um qualquer desígnio volitivo, seguir com atenção um
dos subtítulos – Fartos da burocratização da carreira dispõem-se a sair perdendo
dinheiro. Em circunstâncias normais da vida democrática de um povo, esta constatação
haveria de semear alguma perplexidade e colher outra tanta indignação efectiva. Mas
não! Subtraindo opiniões pontuais, a indiferença – até a das próprias vítimas – parece
mensurar o tom conformista com que, dia após dia, se vai aceitando o que parece
inevitável. A escola não é uma criação recente; a sua institucionalização remonta à
antiga Grécia onde a academia e o liceu, emergindo de um topos divino, se foram
emendando até aos dias que correm. Como obra humana, mesmo plantada em lugar
sagrado, a escola não está isenta de erros. Nela confluem as crises de todo o género,
principalmente as sociais, e dela emanam, tantas vezes, as soluções capazes de
reinventar um futuro que parece perdido. Mas, mesmo com o terramoto que todos os
dias tem o epicentro na 5 de Outubro, é preciso que os que decidem não esqueçam que
em qualquer escola, pese embora a subtil confusão de babel, na designação dos que
ensinam, haverá sempre professores, mesmo se em tempos transmitiam o saber, mais
recentemente trabalharam por objectivos ou, até, se hoje, os querem desocultadores de
competências do “nada”, espalhadas por evidências de quase tudo, ao serviço de belas
estatísticas que hão-de fazer de nós um povo certificado até ao tutano, mas acolhendo o
raso grau de qualificação que nenhuma mecânica dos números conseguirá iludir.
Há três anos que artífices expeditos – pagos pelo erário público – não se cansam
de engendrar todo o tipo de estratégias capazes de, cirurgicamente, denegrir a imagem
dos professores, junto da opinião pública. Desde o horário de trabalho, às faltas, desde a
avaliação à gestão democrática, tudo foi sendo pensado para, numa pirotecnia
legislativa sem limites, e numa saga despudorada da igualdade, tratar tudo pela mesma
medida. Alguns excertos de prosa governamental, se a tanto a competência da leitura e o
engenho e a arte me não desacompanharem, ficarão como ex-líbris do que foi sendo
debitado em nosso prejuízo e que, em circunstâncias normais, à semelhança da
criminalização várias, também haveria de ser crime por consubstanciar violência
psicológica, em altíssimo grau.

2. Por alturas da (inútil) discussão do grosseiro Estatuto da Carreira Docente


(ECD), a responsável pela tutela haveria de, ufana, inaugurar as hostilidades: Perdi os
professores, mas ganhei a população. Definido o lado, não tardaram a surgir as
consequências dos malefícios consolidados numas tantas agressões que, por efeito dos
vasos comunicantes, juntaram pais e filhos na mesma contenda e com o mesmo alvo,
servindo também para opor a tutela ao Procurador Geral da República. Numa tentativa
de serenar (?!) os ânimos, o legislador produziu o Estatuto do Aluno (esquecendo a
especificidade de alguns cursos da oferta formativa). Sujeito a aturada controvérsia, na
AR, ainda assim, chegou às escolas pronto para fornecer aos estatuídos alunos mais uns
tantos indícios de que a responsabilidade, o empenho e o esforço podem ser
recompensados e, o seu contrário também! O aluno falta? Falta muito? O professor,
dentro do seu horário de 35 horas semanais, que em muitas circunstâncias tem já 40 ou
50 horas, elabora uma prova de recuperação e outra, e quantas forem necessárias até que

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o aluno – e o professor – se deixem vencer pelo cansaço e sigam em frente, para lado
nenhum.

3. Numa tentativa de continuar a cair nas boas graças da população, do ME


saíram as controversas actividades de substituição que foram tudo, até espaço para
“umas graças”, tendo estabilizado na Ocupação Plena dos Tempos Escolares (OPTE).
Apesar do equívoco do acrónimo – não se pode optar –!
Estas actividades não são mais do que aulas de substituição que,
consubstanciando mais um abuso, são distribuídas na componente não-lectiva dos
professores. São aulas, mas não são aulas! Escolas há – as das boas práticas, presume-
se, que organizam estas actividades com tal parafernália de meios e tratamento
estatístico, que esta invenção mais parece uma área disciplinar curricular, a que só falta
atribuir classificação e diploma de mérito. Auscultando alunos e professores não
estaremos longe da verdade se considerarmos ser esta uma das variáveis responsável por
um latente mal-estar no seio das comunidades educativas, sendo que, escapar de tal
tarefa é sempre motivo de contentamento. Mas os abusos não se ficam por aqui: dezenas
de professores, por escola, ministram aulas de apoio a alunos com dificuldades ou
necessidades educativas especiais. Essas aulas deveriam integrar a sua componente
lectiva: são aulas! Mas, não é esse o entendimento da tutela: fazem parte da sua
componente não-lectiva! Alguns professores – 4 na maior parte das escolas – são
coordenadores de departamentos que acolhem mais de trinta professores. Com o
anterior estatuto, beneficiavam de redução da componente lectiva; actualmente passam
intermináveis horas na escola, serão (?) avaliadores, frequentam acções de formação
específicas, por atacado, em horário pós-laboral, sem qualquer compensação ou
redução.
A enorme pressão sobre o horário de trabalho dos professores, com uma
multiplicidade interminável de tarefas, acrescida do não reconhecimento da
especificidade da sua actividade profissional, está a aniquilar, antes de mais o professor,
sua vida pessoal e familiar e a provocar danos irreversíveis na sua saúde, deteriorando a
sua qualidade de vida. Aqui reside um dos factores determinantes que tem levado
ingloriamente – e com grande prejuízo – ao abandono de muitos profissionais, alguns
dos melhores, que eram felizes, zelosos e exímios cumpridores das suas obrigações,
enquanto elas foram humanamente suportáveis. É um êxodo e uma sangria que, não
merecendo da parte dos governantes uma única expressão de preocupação, permite-nos
suspeitar fundadamente que este abandono precoce, de muitos dos melhores, faz parte
de uma programação que terá muitos objectivos, fundamentalmente económicos, mas
constitui um golpe na escola pública de qualidade e há-de hipotecar ainda mais o futuro
das gerações que agoram se deslocam para a escola.

4. Uma das questões de maior controvérsia reside na avaliação dos professores.


Não na sua determinação em serem avaliados, o que de resto já acontecia, mas na recusa
em acolher um modelo que, por diversas incidências, já escalpelizadas por diversos
especialistas, se revelou complexo, não-formativo e excessivamente burocrático. Mais
uma vez a justificação pública do responsável pelo governo, seguiu a via do confronto e,
num gesto populista inqualificável, deu a entender literalmente que os professores não
eram avaliados e que era seu desígnio não se conformar com tal estado de coisas.
Esforçou-se por fazer crer que a avaliação não era a nossa aspiração e, num gesto sem
precedentes, cavalgou a onda, sempre que lhe foi possível, exercendo sobre a classe
uma violência psicológica intolerável. Bastava tão-só ter referido que a avaliação de
professores, expressa no anterior ECD, precisava de ser revista e, de forma simples e

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negociada, tinha evitado reincidir, denegrindo gratuitamente a imagem de milhares e
milhares de professores que, à semelhança do que acontece com outras actividades, são
profissionais competentes, dedicados e merecedores de respeito.
Hoje sabemos, até pela desinibição dos responsáveis do ME, que a avaliação dos
professores há-de ter uns tantos efeitos mas, aquele que se deseja que tenha, será de
carácter económico-financeiro: travar tanto quanto possível e necessário a progressão
nas carreiras e, por essa via, poupar verbas significativas. Mas é com isto que o
Primeiro-Ministro não se conforma? Mas é por aqui que passa a defesa e a qualidade da
escola pública? Aqueles que se interessam pelo ensino, os que consideram a educação
como um dos pilares estruturantes da sociedade, cedo perceberam – desde logo com a
divisão da carreira e com o concurso para professores titulares – que não era a qualidade
nem a dignificação da profissão, muito menos a qualidade da escola pública, que
estavam em causa. A analogia com os militares e o exemplo com a sua mais alta
patente, o general, foi um argumento infeliz, de mau gosto, falacioso (não se deve
comparar o que não é comparável) e mais uma estratégia para denegrir a imagem da
classe. Teríamos agora, por comparação espúria, uma classe vertical com soldados-
professores, sargentos-professores, tenentes-professores e um ou outro general-
professor. Será que, mesmo sem gráfico, é difícil compreender que se começa professor
e que se termina na mesma função? E o que se exige a um professor no início, não é
substancialmente idêntico ao que se lhe exige no fim da carreira?
Hoje percebemos que os critérios estabelecidos para aceder à figura de professor
titular provocaram injustiças insuportáveis e insanáveis. Sabemos também que essas
injustiças são exponenciais, tendo efeito directo no processo de avaliação, com
disparidades de experiência, formação e graduação, inversamente repartidas por
avaliadores e avaliados.
Bem podem argumentar que uma das nossas práticas mais comum, é avaliar.
Concedemos. Contudo, professor e aluno têm estatutos diferentes. A autoridade do
professor quando avalia, seguindo os normativos ético-legais, sai reforçada e não será
afectada. Em contrapartida, uma avaliação por pares não deve ir além do carácter
formativo; qualquer outra avaliação requer formação adequada, de nível superior,
fundamentalmente em supervisão pedagógica. O que o Ministério está a
disponibilizar/sugerir/impor, com elevados gastos financeiros e o sacrifício de muitos
professores, graduados em avaliadores, salvaguardando uma ou outra situação em que
alguma qualidade pontua, são acções que não passam de uma cosmética intensiva e de
um arregimentar de consciências no sentido de eliminar resistências subjacentes a um
modelo que, só por teimosia, continua a delapidar recursos, tempo e a pouca
disponibilidade que existe para preparar as lições e dar atenção aos alunos.
Mas, a engrenagem comporta vícios de vária ordem que se atravessam neste
modelo. Imagine-se que a formação, disponibilizada para avaliadores e para avaliadores
por delegação de competência, se houver disposição para cumprir o CPA, e espaço no
DR para publicar tanto nome, o ME, as DRE’s e tutti quanti, até os próprios
avaliadores, ainda não se interrogaram sobre a questão de que sendo a avaliação
universal e sendo eles opositores às quotas estabelecidas, para dois dos níveis de
avaliação, pelo menos os avaliadores delegados, pelo facto de frequentarem acções de
formação, restritas, por selecção restrita, seja qual for a qualidade das mesmas, isso não
lhes dá vantagens no processo? Um outro vício assenta claramente no insustentável
facto que coloca o avaliador e o avaliado na mesma situação, com funções diferentes: O
avaliador concorre para as mesmas quotas do avaliado, sendo opositor e parte
interessada no resultado do acto e, nessa circunstância, não há garantia nem de isenção,
nem de imparcialidade. O artigo 44º do CPA (alíneas a. e d.) regula esta incidência. A

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manter-se a indefinição sobre esta matéria, é óbvio que a pergunta é inevitável: não há
vergonha, não há moralidade, ou ambas?
Com este modelo as escolas vão entrar em estágio conflitual permanente e, à
semelhança das OPTE, os professores vão repartir as suas preocupações entre o
essencial: os seus alunos, e o acessório: a sua avaliação. Olhando o mundo à volta, até
para desmistificar algumas informações, superiormente veiculadas, é preciso deixar
claro que nenhum país da Europa tem algum modelo de avaliação que se aproxime
sequer do que este governo tem em vigor (experimental). Nem o temível modelo do
País de Gales! É preciso atravessar o Atlântico e, apenas na América Latina,
especificamente no Chile, para encontramos algo semelhante, com periodicidade de 4
anos, carácter formativo e apenas três menções avaliativas. Mas sobre este modelo, não
é tudo. A maior parte das escolas tem quatro super-coordenadores. Entre eles, como de
resto entre todo o corpo docente, existem quotas de excelente e muito bom. Por agora,
imagine-se apenas a mais que provável situação do avaliador receber menção de bom e
atribuir a de excelente, tudo no mesmo departamento e até, na sua área disciplinar. Toda
a gente imagina como vai ser o clima e como vai ser fácil e profícuo continuar a
trabalhar no departamento e, não sendo nada connosco, a auto-estima do contemplado
vai exercitar o sistema nervoso até à convulsão. Exagero? Talvez. O mesmo exercício
pode viajar para uma qualquer turma, e como a avaliação é pública (e punitiva!), os
vários intervenientes na comunidade educativa, por delicadeza, não retirarão daí
qualquer incidência; o clima das escolas, se o modelo avançar, tem todos os
ingredientes para propiciar algumas tempestades, sem que isso signifique qualquer
melhoria das condições que permitem ensinar e aprender, bem pelo contrário. Aliás os
estágios pedagógicos, com outra configuração, é certo, foram e são, à sua escala,
pequenos laboratórios sociológicos, de onde se podem recolher antevisões para o que se
avizinha. Olhando o processo, pelo que ele já permite vislumbrar, não admira que, sem
critérios plausíveis (cada escola faz o que entende), sem defesa (as reclamações valem o
que valem), sem formação adequada, sem bom-senso, tantas vezes sem vergonha, a
aquilatar pelo que se vai conhecendo, muitos professores, excelentes professores, diga-
se, não estão disponíveis para mais este exercício de humilhação, talvez programado
para os empurrar do sistema, e aqui, parafraseando José Gil (Visão, 2. Out. 2008), antes
que comece a interiorização da obediência (e, um dia, do amor á servidão), despedem-
se do que mais gostam, em nome do que mais prezam: a dignidade.

5. Assim, vamos assistindo a poucas mas inquestionáveis atitudes de professores


que, pela sua consciência e sentido de responsabilidade, se demitem de avaliadores, se
reúnem em RGP e decidem travar o processo ou, abandonam as reuniões
departamentais onde se discutem fichas de avaliação. Estes professores não podem
continuar a ser a excepção, embora saibamos, das lições da história, que posições, que
hoje consideramos irrecusáveis, tiverem um único defensor na sua origem.
Questionando esta avalanche de medidas, que são verdadeiros atentados à escola
pública, estiveram em Lisboa mais de 100.000 mil professores. Recuso-me a aceitar
que, por um qualquer efeito de magia, salvo melhor “entendimento” estejamos
reduzidos aos 4.000 que já saíram, aos que fazem contas e sairão em breve e a mais uns
tantos que vão protagonizando uma ou outra acção mais explicita de combate às
medidas em curso.

6. Propositadamente o novo modelo de gestão fechará esta primeira reflexão


sobre o novo paradigma da educação em Portugal. Sintomaticamente, também para o
ME, se fecha um ciclo. Fazendo uma incursão por uma insuspeita conclusão que

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facilmente se depreende da avaliação externa das escolas, tutelada pela IGE, no
essencial, as lideranças democráticas das escolas mereceram avaliação de Bom ou
Muito Bom, não sendo de reportar qualquer circunstância que aconselhasse a alterações
do modelo revogado. Assim sendo, obviamente, pode perguntar-se: o que levou à
alteração do modelo? Ou ainda, porque razão o projecto inicial não previa sequer uma
maioria de professores no C. Geral, ou até -chegava-se ao ponto de considerar que o
PCG não deveria ser professor, de modo a evitar conflitos com o futuro director.
Esclarecedor? Antes de tecer considerações sobre as próprias questões levantadas, vale
a pena teorizar sobre a democracia e sobre as relações democracia-escola. A democracia
não é senão o poder do povo que o exerce através de eleições livres. Numa sociedade
democrática, a escola deve inscrever-se dentro dos pressupostos da democracia,
contribuindo para o respeito pelos direitos fundamentais do indivíduo. A escola é,
essencialmente, por isso o lugar privilegiado para o desenvolvimento das práticas
democráticas; mas, como, se, desde logo, a propósito das malfadadas lideranças fortes e
do pressuposto da necessidade de um responsável nominal, perante a tutela, se procede
a uma escolha por um órgão restrito, entre candidatos que se propõem? Várias são as
disciplinas e, dentro delas, diferentes conteúdos curriculares que apontam e apostam na
educação para a cidadania, nos direitos, liberdades e garantias, seja em cursos de
prosseguimento de estudos, profissionais, efas, cefs ou outros. Como compatibilizar
práticas desavindas? Como abdicar do direito de escolher o órgão executivo,
concedamos, eventualmente apenas o seu presidente, em troca de um director que,
apenas segundo o seu restrito critério escolhe os restantes órgãos intermédios, pelo
tempo e com as orientações que muito bem entender? Não será, por certo, o caminho
que melhor se coaduna com um exercício que se quer livre e representativo das
vontades em plebiscito regulado pelos valores democráticos. Muitas foram as escolas
que se recusaram a participar na formação do coveiro da democracia nas escolas, o
Conselho Geral Transitório. Outras haverão de descobrir, a seu tempo, que, pela sua
própria vontade, caucionaram o director e tudo aquilo que ele significa de retrocesso em
relação aos fundamentos democráticos e ao ensino, também através da prática, do seu
exercício. Os professores que recorreram à aposentação e a conseguiram, apesar de
penalizações várias, ao menos escaparam ao estigma do regresso a um passado de mais
de trinta e três anos, carregado de memórias em que a democracia era uma prática
perigosa e desavinda.
As escolas que têm por estes dias uma safra de colheitas sob suspeita e gente
empolgada com a solidão volátil do poder, que não passa de breve ilusão, deveriam ver
nos que partem, muitos por falta de condições, o desenho do seu futuro próximo em que
a tendência – e bem desejo que se não cumpra – será, cruzando os braços, ou dando-os
colaborantes, para piorar o espaço onde ainda (?) sonhamos e ajudamos a realizar
sonhos.
Mas o que é isso?

Jerónimo Costa, Prof. do Ens. Secundário

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