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apresentacao | a formacao do psicanalista: por um tripé lacaniano por michele roman faria A preocupacao de Freud em garantir, mesmo apés sua morte, uma maneira de proteger a psicandlise dos desvios, tanto na formagio dos psicanalistas, como na difusio de suas bases tedricas, foi o que o levou em 1910, no Congresso de Nuremberg, a propor a fundacéo da IPA, Associagao Internacional de Psicandlise. Assim como aconteceria com Lacan quatro décadas mais tarde, o problema da transmisséo da psicandlise, bem como o da formagao do psicanalista, se tornava uma importante fonte de preocupacao de Freud, na medida em que surgiam concepgées da psicandlise cada vez mais distantes das bases que cle mesmo havia fundado. O préprio Jung, que ele quisera o presidente vitalicio de sua IPA, antes do término de seu mandato de dois anos jé havia tomado caminhos tedricos muito diferentes dos seus. Se a preocupacao inicial de Freud foi defender a psicandlise das resisténcias exter- nas, aos poucos foi ficando evidente a necessidade de preservé-la também dos caminhos desviantes tomados pelos prdprios psicanalistas. As divergéncias tedricas passaram a mobilizar a busca de uma transmisséo da psicandlise que nao distorcesse a descoberta do inconsciente e a prética na qual ela se sustentava. Em 1914, no texto sobre “A histéria do movimento psicanalitico”, Freud escreve: Isso, e nada mais, foi o que esperava alcangar com a fundacio da ‘Associagao Psicanalitica Interna- ional’, Mas tudo leva crer que era querer demais. Do mesmo modo que os meus adversarios iriam descobrir que nao era possivel lurar contra a corrente do novo movimento, assim também eu acabaria percebendo que este nao seguiria a diregio que eu desejava vé-lo seguir (Freud, 1914/1980, p.57). 1 12 nse TagAO ama da formagio neste perfor, nos qui tavam presentes, também, em pa , 8 Brey Muitos textos foram dedicados a0 t reud alertava os psicanalistas que as resistencias psicandlise hae eee Ja rerapeutica psicat itica” e“Psicansfi proprio meio: em 1910, “As perspectivas fucuras da tera eee ee selvagem”; em seguida, “Recomendagoes 20 médico Se analise” (1912), «Cc, ae te . sic alftico” y vas recome, ‘Contribuigao & histéria do movimento psic nalitico” ( mendagdes sobre a técnica da psicandlise” (1913), “A historia do movimento psicanalitico” (194), “Uma dificuldade no caminho da psicandlise” (1919) ¢ finalmente, “Sobre o ensino dq psicandlise na universidade”. E neste texto de 1919 que Freud propoe aquele que ficarig conhecido como 0 tripé de formagao do psicanalista: ' 1. node ser obtido na ll (..) © que ele fo psicanalista} necesita, em matéra de teoria, pode cone i vros encontros cientificos das sociedadles psicanalit lizada e, avangando ainda mais, eee, no contato pessoal com os membros mais experimentados dessas socedades. No que dia respeito andlise pessoal, pode cons experiéncia pratica, além do que adquire com sua propria anilise pes ae ‘a. cabo os tratamentos, uma vez que consiga supervisio ¢ orientagio de psicanalist (Freud, 1919/1980, vol.17, p.217, grifos nossos). 1a. a0 levar is reconhecidos Na IPA, 0 #ripé composto por anilise, supervisio ¢ estudo te6rico passou a contar com psicanalistas qualificados para a tarefa de atuar como didatas que recebiam, da prépria Associagao, a incumbéncia de promover a formacdo dos novos psicanalistas, Essa preocupacio freudiana de garantir as condigdes necessirias 4 formagio dos psicanalistas permite levantar ao menos duas questoes, ambas retomadas por Lacan, A primeira: qual seria a razio para essa tendéncia a distorg6es tao graves na con- cepsao da psicandlise, que poderiam colocar em risco até mesmo seu destino? Ea segunda, decorrente da primeira: hé como garantir que a teoria ¢ a clinica psicanaliticas mantenham-se imunes a tais distorgoes? O que isso significa em termos da formagio do psicanalista? riscos do imagindrio na transmissio da psicandlise Os problemas de formagio e transmissio da Psicandlise exigiram a atengio de Lacan desde os primeiros semindrios, onde ele jé afirmava que a teoria freudiana estaria sendo mal compreendida pelos psicanalistas de sua época. Foi devido a essa preocupagéo que seus esforcos iniciais estiveram voltados para a promogao de uma retomada do sentido do texto de Freud. Em seu primeiro seminério, Lacan afirmava: Agueles que se encontram em posigéo de seguir Freud, coloca-se a questio de como as vias que herdamos foram adotadas, recompreendidas, repensadas. Além disso, ndo podemos fazer de uma outra forma senao juntar o que traremos sob o titulo de uma critica, uma critica da técnica analitica (Lacan, 1953-54/1986, p.25). ag Interessado em esclarecer os problemas de uma pritica clinica que considerava ter se desviado da experiéncia freudiana, Lacan insistird na importancia de um retorno a Freud. ‘Alguns anos mais tarde, serd seu proprio ensino que se mostraré igualmente suscetivel a distorgées ¢ interpretagdes desviantes, até mesmo por aqueles que o acompanhavam de perto. Em 1972, nas conferéncias proferidas no Hospital Sainte-Anne, ele afirma- ré: “nao hé provavelmente um s6 dentre vocés que me entendam no mesmo sentido” (Lacan, 1971-72/2011, p.85). Sempre atento ao problema da transmissao da psicandlise, Lacan insistia em salien- tar que o mal-entendido se encontra na base da compreensio. No Semindrio 3 (Lacan, 1955-56/1988, p.188) ele jé afirmava: Nio fico surpreso de que alguma coisa persista como mal-entendido a ser dissipado, mesmo centre as pessoas que creem me seguir. Nao pensem que eu esteja exprimindo uma decepgio. Isso estaria em desacordo comigo mesmo, pois que Ihes ensino que préprio fundamento do discurso inter-humano é 0 mal-entendido. Desde os primeiros semindrios, sua adverténcia aos psicanalistas é de que tanto a compreensao da teoria psicanalitica como o manejo da clinica nao estio imunes aos efeitos problematicos do imagindrio ¢ da ilusio de compreensio que lhe é prépria. No Semindrio 2, ele adverte: Hi dois perigos em tudo o que tange & compreensio de nosso campo clinico. O primeiro, é nao ser suficientemente cutioso. (...) © segundo é compreender. Compreendemos sempre demais, especial- mente na anilise (Lacan, 1954-55/1985, p.135). ‘A preocupagao de Lacan seré mostrar que 0 imagindrio induz.ao engano, seduzindo com a ilusio da compreensio. Por isso, ele recomenda aos psicanalistas: Uma das coisas que mais devemos evitar € compreender muito, compreender mais do que existe no discurso do sujeito. Interpretar ¢ imaginar que se compreende, nao é de modo algum a mesma coisa. Eu diria mesmo que é na base de uma certa recusa de compreensao que empurramos a porta da compreensio analitica (Lacan, 1953-54/1986, p.90). Segundo Lacan, toda compreensao carrega sempre o risco de um curto-circuito imaginArio, cujo efeito seria o de fechamento do sentido da prdpria teoria. No Semindrio 6, ele insistird neste ponto: Gostaria de observar que o termo ‘compreensio'- garanto que nao ha qualquer ironia nisso —é proble- mitico. Se hi, entre vocés, alguns que sempre, em qualquer situagao € a todo instante, compreendem ‘que fazem, eu os felicito eos invejo. Mesmo apés 25 anos de exercicio, nao ¢isso o que corresponde A minha experiéncia. Na verdade, esse termo mostra claramente os perigos que comporta em si, Hi, em toda compreensio, um perigo de ilusio (...) (Lacan, 1958-59/2016, p.34-35). 13 14 i sninFAGAO do com 0 mesmo problema, afirmars, ainda preocu ova rabo ey € claro, Pa completamente desapercely, nds ficamos neste imaginario” (Lacan, 1973-74 /ingg E bem adiante, mas 1974: “esta tudo af de ca Por uma simples razo, é que conferéncia de 15/01/74). ‘Atento aos problemas impostos e con ido, ito, pelo imaginaio, colocars no horizontejustamengg Prem seu oitavo semindrio, importincia daquilo que nfo s mpreende, Em seu of sobre a trane a ancia da feréncia, ele prope: «do psicanalista) nfo & que ele com preencdla ou nao compreenda, Pere oo qua, ate certo onto, 0 faro de que cle me compen pod ss pele irei mesmo que, até ' f canfanen grande demais em sua compreensio: Sutras palavias, ele deve sempre pir em divide que aa coe aqui qu ele procuraalanar éjustamente aquilo qu, em de (Lacan, 1960-61/1992, p: 195). O critério de sua posigio correta | aquilo que compreende, principio, nao compreent No Semindrio 10 afirmara que “compreender é sempre avangar capengando para mal-entendido” (Lacan, 1962-63/2005, p.90). Eno Semindrio 21, j4 ao final de seu ‘ensino, lembraré: “nao se deve compreender depressa demais, como eu muitas vezes sublinhei” (Lacan, 1973-74linédito, conferéncia de 13/1 1/73). FE uma adverténcia que vale tanto para o manejo daclinica como para a transmissio dos conceitos, uma barreira que se impée ao que Lacan denominar4, no Semindrio 8 (1960-61/1992, p.149), 0 “objetivo eterno dos professores’, eliminar a ambiguidade dos conceitos, dar-lhes um sentido univoco e estritamente definido. Lacan, advertido dos riscos que 0 imagindrio impée & compreensio dos conceitos, nao buscaré a compreensdo inequivoca, mas formas de transmissao capazes de assegurar tos proprios psicanalistas uma certa imunidade &s ilus6es que conduzem a0 mal-enten- dido. Seu prépri estilo de transmissao — nao exatamente fécil, acessivel ou didético -se revelaré, com o tempo, mais um recurso a pér em evidéncia a nao-compreensio como algo a suportar, requisito necessério ao fazer clinico do psicanalista. No Seminario 18, comentara a dificuldade de compreensao de seus Escritos: Nio entendemos nada, foi o que me disseram. Observem que isso é muita coisa. Algo de que no se compreende nada é a esperanga absoluta, é 0 sinal de que se foi afetado por aquilo. Felizmente cae nada, porque sé se pode compreender o que ja se tem na cabega (Lacan 1970- cape de oe produzir, com uma frase ~ seus famosos aforismos — um enigma a interessar-se pelo que as habitual e intuitivo, convidava seu interlocutor schemas pe ase lem compres, de onde & pone xa, em que frases aparentem rela semelhante a do mestre zen, lembrada no Seminario 20, lente sem sentido (os koan), conduzem A reflex4o a0 deslocat © sentido de seu lugar habitual. E do lado da suspensao do sentido, portanto, que se encontra 0 efeito visado pelos aforismos que marcam o estilo de transmissao de Lacan. No Semindrio 3, ele proprio jd comentava esse seu polémico estilo: « devemos ser coctentes com nossas proprias nogGes na pritica, se todo discurso vilido deve justamente ser julgado nos préprios principios que ele produ, eu diria que é com uma intengao expressa, se no absolutamente deliberada, que prossigo esse discurso de tal maneira que lhes oferego a oportunidade de nio compreendé-lo completamente (Lacan, 1955-56/1988, p.188). E justamente por meio de um discurso de dificil compreensao, de uma escrita quase indecifravel, que Lacan procurard minimizar os efeitos imaginarios diante dos quais a teoria psicanalitica corre risco de desviar-se. Seus aforismos, matemas, esquemas, grafos € fSrmulas, assim como o uso que fez da topologia, consolidaram-se como a estratégia lacaniana para minimizar os efeitos ilusérios préprios a0 imagindrio na transmissao da psicandlise. No Semindrio 8, nao sem ironia, ele afirmara, sobre suas formulas: é preciso to mé-las “burramente”. interesse das formulas é que se pode tomé-las ao pé da letra, a saber, téo burramente quanto possivel, e elas devem nos levar a algum lugar. Este é 0 lado operacional das formulas, e é verdadeiro também para as minhas (Lacan, 1960-61/1992, p.267). Em 1971-72 ele propée: “secretem o sentido com vigor ¢ verao 0 quanto a vida se torna mais facil!” (Lacan, 1971-72, conferéncia de 06/01/72). Segundo Lacan, 0 que se escreve com suas letras “é feito estritamente para que seja impossivel dar-Ihe um sentido” (Lacan, 1973-74/inédito, conferéncia de 13/11/73). Ele chamaré este seu recurso de “matematica de Freud”: “o que dela é, propriamente falando, transmissivel” (Lacan, 1973-74/inédito, conferéncia de 13/11/73). Para Lacan, “cles [os matemas] se transmitem integralmente” (Lacan, 1972-73, p.230), dai terem se tornado sua principal aposta na transmissao dos conceitos. Lacan chegard a afirmar que “um matema é, propria ¢ unicamente, aquilo que se ensina” (Lacan, 1971-72, p.146). Mesmo em 1980, ja ao final de sua vida, mas ainda refletindo sobre os problemas ¢ impasses inerentes a toda transmissao, Lacan insistir4: “Dai minha obstinacao em meu caminho de matemas~ que nao impede nada, mas testemunha do que seria preciso para, 20 analista, colocé-lo no passo de sua fungao” (Lacan, 1980/2003, p.320). Colocaro psicanalista ao passo de sua fungao nao esteve jamais, no ensino de Lacan, do lado da busca de garantias, portanto. Ao contrario, o caminho tragado por Lacan teve como norte, do inicio ao fim de seu ensino, a adverténcia de que nao hd garantias, uma vez que toda garantia sé poderia apoiar-se no imaginario. Nem mesmo o psicanalista mais experiente estaria, assim, livre das ilusbes a que 15 16 Srio dé is i as estratégias criadas pelo préprio Lacan 7 0 imaginério dé consisténcia, ¢sequer #5 St En aueoiny uma garancia de imunidade contra os rscossedusores co ET TITY is in produz, que jamais poderao sercliminados fee ee a p ‘Até mesmo ao trabalhar com a teotia dos nés, seu titimo esiorgo de transmissig Lacan mostra-se apreensivo sobre o problema da ene can 1974 pstinda, no Semindrio 22, que 0 modelo “situa-se no imaginario ee 75linédito, conferéncia de 17/12/74) e que, por isso, nao se deve tomar a mo um modelo, Foi por estar advertido desse problema desde o inicio que on a0 invés deapostar em critérios de garantia de formagao do psicanalista, voltou-se, a 7 trario, Paraa busca de estratégias de transmissao da teoria, de manejo da clinica e le a institucional que mantivessem os psicanalistas advertidos das ilusées imaginarias on le se apoia qualquer garantia. Ao invés das garantias, uma formacao marcada pelo rigor na transmissio dos conceitos necessérios & sustentagio da clinica pelo psicanalista. Lacan distancia-se, por. tanto, de uma aposta em qualquer tipo de garantia, para buscar uma formacéo na qual a propria ideia de garantia pudesse ser questionada. Estaria 0 #ripé freudiano alinhado com essa proposta lacaniana de forma¢ao? Como sustentar uma formagio que se pretenda rigorosamente orientada pelo espitito que marca a transmissao de Lacan? BiNdrig campo, Lacan e a formacio do psicanalista Ainda em 1953, na conferéncia de inauguracao da Sociedade Francesa de Psicanilise (SFP), Lacan jé apontava o “pesado fardo de escolher aqueles que se submetem & an: com objetivo didatico” (Lacan, 1953/2005, p.14). E, irdnico, indagava: (...) aneurose é necesséria para fazer um bom analista? Um pouquinho? Muito? Seguramente no, de jeito algum? Afinal, seré de fato isso que nos guia num julgamento que nenhum texto pode definir € que nos faz apreciar as qualidades pessoais? (Id.). Lacan manteve-se, desde o inicio de sua insercao institucional, critico constante da formacao do psicanalista que a andlise chamada didética pretendia assegurar, ¢ das burocraticas balizas supostamente capazes de garantir 0 bom andamento de uma and lise — 0 conhecido setting, com regras de contrato tigidamente predefinidas, que dle considerava mais parecerem ter sido criadas para garantir o conforto do psicanalista. Sequer 0 tempo da sessio, intocével instrumento da técnica até entio, deixou de ser questionado por Lacan, Enquanto a IPA de Freud exigia garantias formagao, Lacan questionava a Propria ideia com a descoberta freudiana do inconsciente. que dependiam de um modelo rigido de de garantia, que lhe parecia incompativel Ao fundar sua propria instituigao, a Escola Freudiana de Paris (EFP), criara me- canismos institucionais — como o trabalho em cartel — imaginarios de grupo, presentes nas estruturas denunciad. das massas” (cf. Lacan, 1967/2003, Em sua escol: buscando evitar que os efeitos as por Freud em sua “Psicologia p.248), produzissem um engessamento da prética. a, insistiré na importancia de uma formacio distinta do model lo univer- sitdrio € distante da burocracia institucional, sustentando a aposta em uma formagao que mantivesse viva a reflexio sobre as bases necessérias para o exercicio de uma pratica orientada pela descoberta freudiana do inconsciente, Ao invés de definir critérios de formacio do psicanalista, 0 debate sobre 0 que ¢ wm psicanalista. Dedicard, em 1967-68 um seminério inteiro ao “ato psicanalitico”, no qual, omando a devida distincia das supostas regras e garantias que qualificariam o psicanalista, afirmara que o psicanalista se define por seu ato. insistiré em manter vivo E uma forma de abordar a questéo que tem ao menos o interesse de ser nova. Quero dizer que, até agora, nada péde ser articulado de sensato nem de sélido sobre o que & que qualifica como tal 0 Psicanalista, Fala-se certamente de regras, de procedimentos, de modos de acesso mas, ainda assim, isso nio diz.o que é um psicanalista. O fato de que eu fale do ato psicanalitico, a partir do que, em suma, espero poder dar um passo no que se chama a qualificagéo do psicanalista(...) eis algo que por silevanta um problema em nada insoltivel (Lacan, 1967-68/inédito, conferéncia de 20/03/68). Ao invés de critérios rigidos e burocraticos, Lacan insistiré na necessidade do debate sobre a formagio, do questionamento sobre suas bases e, principalmente, na importancia de manter viva a pergunta: 0 que é um psicanalista? No Semindrio 17 (1969-70/1992, p.50), ele afirmaré: O que define o analista? Ja o disse. Sempre disse, desde sempre — simplesmente ninguém jamais compreendeu nada, ¢ além disso, naturalmente, a culpa néo é minha andlise, eis 0 que se espera de um psicanalista. Mas 0 que se espera de um psicanalista, evidentemente seria preciso tratar de compreender 0 que isso quer dizer. Com uma proposta institucional néo pautada na iluséria busca por garantias, Lacan empenhou-se na criagio de mecanismos capazes de manter vivo 0 debate sobre a formacio. Seu esforgo era o de “dar trabalho aos psicanalistas”, como ele afirmava, tarefa assumida a0 longo de toda a vida em seus seminérios. “Para mim, nio hé nada mais penoso que dar-lhes trabalho, Mas ao fim das contas, tal é meu papel”, ele comentara na abertura do Semindrio 21 (1973-74linédito, conferéncia de 13/11/73). Em 1971-72, nas conversas com os psiquiatras de Sainte-Anne, lembraré que a formagio é tarefa do psicanalista, que deve fazer sua parte, enfrentando as dificuldades inerentes a cla: “eu me esforgo para que 0 acesso a esse sentido nao seja demasiadamente facil, de sorte que vocés devem fazer sua parte” (Lacan, 1971-72, p.48). Lembraré constantemente que a resistencia é também do psicanalista, ¢ que ela 17 18 APRESENTAGAO al ele opera: ios pak a é seu préprio campo, é 7 prios psicanalistas a0 que 5 2, ta Se rPtifculdades que devem ser resolvidas. Quero bri as nédita, p-242). éprii ui faz parce da prépria estructura com 2 4 © que se pode chamar 3 o que traz 0 testemunho mais sua propria estructura (Lacan, 1966-67/it No Semindrio 24, afirmara: & algo que toma seu ponto de partida no préprig f isténcia — eu 0 disse - E surpreendente que a resistencia — ¢u 0 | 7 hi ; paisa eee joanalisante nao enconta jamais nada pior que a resisténcia do anal (Lacan, 1976-77/inédita, conferéncia de 11/01/77). No Semindrio 12, é lembrava que “a neurose de transferéncia € uma neurose do analista. Se evade na transferéncia na medida em que ele nao est4 no ponto quanto ao desejo do analista” (Lacan, 1964-65/inédito, p.83). Sua preocupa¢ao com a formagao sera colocar ; no sentido do seu ato, incluindo a resisténcia do psicanalista no horizonte da reflexio sobre as dificuldades que fazem obstéculo a clinica. Nio sera do lado de nenhuma garantia, portanto, que Lacan situard a formacio do psicanalista, cuja operacao conta com sua prépria resisténcia a desvia-lo de seu ato, € que tem no imagindrio o risco constante de encaminhd-lo a uma pratica que tende a se acomodar em regras, no setting, a leva-lo a compreender mais do que esta no discurso do paciente. o desejo do psicanalista a trabalhar por um tripé lacaniano de formagio do psicanalista Uma formaio que se pretenda rigorosamente orientada pelo espirito que marcaa transmissdo de Lacan exige, portanto, estratégias que mantenham o psicanalista em uma posicao de trabalho, de reflexéo sobre o ato que define sua operacéo como psicanalitica. Sem esse trabalho constante, nao hd como livrar-se do risco de que a acomodagao ima- gindria, ilusoriamente sustentada no setting ou em qualquer outra baliza supostamente segura, se transforme em resisténcia do préprio psicanalista, e isso talvez se aplique também ao sripé freudiano de formacio. atin, mam pegs pa da re ce Bo enone wpe cabe: imprescindivel como o saber da madeira ara enn ee a cae 7 oo Para o carpinteiro, mas sem encontrar jamais a mestria e a rigidex das regras como destino, Quanto 3 qualificagio, ha bastante tempo que, para tudo o que é do saber, a reflexio construtiva scafea de epstemecolocou em causa opratcante, quando se trata de um sabers tanto queem Pat cada vez que se trata de assegurar ut aa im saber em seu estatui | asseg tO, pre i: a Parsee contadieroaninco de que toda pritica humana. dige sean en este ~ digo pr: prevalecer 0 ato no quer absolutamente dizer que nds repudiariamos a referéncia a ela ~ todo pra- ticante supde um certo saber, se queremos 1 no que é da episteme. Todo o saber da madeia, eis que para nés definiré o carpinteito (Lacan, 1967-68/inédito, conferéncia de 20/03/68) Sem 0 conforto burocritico do setting, nem as ilusées de um outro colocado no lugar de mestria que o tripé freudiano corre o risco de caucionar, caber4 ao praticante colocaro sabera trabalho para enfrentar a angistia inerente as dificuldades de sua pratica, fazendo dela a causa que mobiliza seu desejo de analista. ‘Assim, uma formagao que se pretenda rigorosamente lacaniana nao poderia estar apoiada nem nas qualidades pessoais do psicanalista, nem naquele com quem o psicana- lista estuda, se analisa ou supervisiona seus casos, mas no ato cujos efeitos caracterizam uma andlise, ¢ na reflexao constante que esse ato exige, a fim de que a angtistia nao opere como resisténcia, exigindo um mestre como resposta a obturar o trabalho. Nao estariam na escrita, na transmissdo e na clinica as praticas mais favoraveis a colocar o psicanalista, a0 mesmo tempo, diante dos desafios e anguistias préprias a uma operacao que tem inconsciente como seu objeto ¢, também, mobilizado pelo saber que pode funcionar como causa ao nao ignorar o lugar da resisténcia que impede a andliise? Escrever, transmitir, clinicar, tém a poténcia de colocar o praticante em contato direto com as exigéncias necessérias & formagao, que jamais excluem do horizonte a dificuldade e a angiistia, que jamais deveriam apoiar-se nas garantias imagindrias e da mestria, mas, ao contrério, exigem do praticante tomar a medida da ignorancia como tal, fazendo dela um caminho. Conforme afirma Lacan no Semindrio 2: Sé é ensino verdadeiro aquele que consegue despertar uma insisténcia naqueles que escutam, esse desejo de saber que s6 pode surgir quando eles préprios tomaram a medida da ignorincia como tal - naquilo em que ela é, como tal, fecunda - isso também vale para aquele que ensina (Jacques Lacan, 1954-55/1985). p.260). Este livro, que € 0 segundo volume de nossa colegio, retine psicanalistas que se dedicaram & reflexo sobre a clinica e a teoria psicanalitica, tomando como ponto de partida sua prética clinica, seu desejo de transmitir algo dessa pratica ¢ 0 desafio de fazé-lo pela escrita. referencias bibliogréficas FREUD, S. (1910). As perspectivas futuras da terapéutica psicanalitica. (1910). Psicandlise selvagem. - (1912). Recomendagées ao médico que pratica a psicandlise. avnesenT4O écnica da psicanilis. (1912) Novas recomendagées sobre a técnica da p ori: i i ‘analitico, (1914), Contribuigio & histéria do movimento psic (1917). Uma dificuldade no caminho da psicandlise. (1919), Sobre o ensino da psicandise na universidade, (1921). Psicologia das massas ¢ andlise do Eu, In: Obras completa. Imago. Rio de Janeiro, 1980. LACAN, J. (1953-54). O semindrio 1: 0 ecritos tenicos de Freud, Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1986. , 95459) Oseminri 2: 0 Eu na teria de Freud ena tdonca da prcandl Zahat. Rio de Janeiro, 1985, ae Bega O seminério 3: as psicoses. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1988, 22 edigio ———_.. (1958-59). 0. irio 6: di a “omindra 6:0 dese sua interpreta, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, - (1971-72). 0 Seminario 19, Ou pior. - (1972 73) Osemindrio 20: Mais aiy ' Mais ainda, Jorge Zahar + Rio de Janei : Janeiro, ——_.. (1973-74). O semindrio 21: Les non-dupes erent, Inédito. ——_.. (1974-75) O semindrio 22: RSI. Inédito. - (1976-77). O semindrio 24: V’insu que sait de l'une bevue saile a mourre. Inédito. - (1971-72). Estou falando com as paredes. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2011. - (1953). 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