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ERICH NEUMANN O MEDO DO FEMININO E outros ensaios sobre a psicologia feminina pauLus Titulo original The fear of the feminine — and other essays on feminine psychology © Princeton Universty Press 41 Willam Steet, Princeton, New Jersey, 08540 Tradugae Thereza Otvistina Stummer Rovisdo vo Storniolo Colegtio AMOR E PSIQUE dirigida por Dr. Léon Bonaventure ~ Pe. Ivo Storniolo ~ Dra, Maria Ele! Spaceaquerche Dacios internacional de Catalogacdo na Publicago (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Neumann, Erich (© medo do feminino : @ outros ensaios sobre a psicologia feminina | Erich Neumann ; [tadugo Theroza Christina Stummer), — Sao Paulo : Paulus, 2000, (amor e psiqua) ‘Titulo original: The fear ofthe feminine Bibliogratta ISBN 85-349-1659-4 1. Feminiidade (Psicologia) 2. Mulheres ~ Psicologia 3. Psicandlise | Tit lI Série, 99.5359 ©0-155.633 Indices para caisiogo sistematica 1. Psicologia feminina 155.633 © PAULUS ~ 2000 Rua Francisco Cruz, 228 04117-091 Sao Paulo (Brasil) Fax (0-=11) 5579-3627 Tel. (0-11) 5084-2088 http:/iwwpaulus.com be direditorial@paulus.org.br ISBN 85.2¢9-1659-4 ISBN 0-691-084737 (ed. original) INTRODUGAO A COLEGAO AMOR E PSIQUE Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, 0 ho- mem descobrit, novos cuminhos que @ levam para a sua interioridade: o we proprio expage interior torna-ne um lugar novo de experiéncia, On vinjanten destes eaminhos nos revelam que somente o amor 6 capaz de gerar a alma, também 0 amor precisa de alma, Assim, em lugar de buscar causas, explicagées psicopatolégicas As nossas feri- das ¢ aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lu- gar, amar a nossa alma, assim como ela 6. Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feridas e estes sofri- mentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a realizagao de nossa totalidade. Assim a nossa prépria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira. Finalmente, nao é 0 espiritual que aparece primei- ro, mas o psiquico, ¢ depois o espiritual. E a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sen- tido, 0 que significa que a psicologia pode de novo esten- der a mao para a teologia. Esta perspectiva psicolégica nova é fruto do esforco para libertar a alma da dominagao da psicopatologia, do espirito analitico e do psicologismo, para que volte a si mesma, & sua propria originalidade. Hla nasceu de refle- xoes durante a pratica psicoterdpica, e esta comegando a renovar 0 modelo e a finalidade da psicoterapia. H uma v nova visdo do homem na sua existéncia cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimen- sdes diferentes de nossa existéncia para podermos reen- contrar a nossa alma. Ela poderd alimentar todos aque- les que sao sensiveis & necessidade de inserir mais alma em todas as atividades humanas. A finalidade da presente colegao é precisamente res- tituir a alma a si mesma e “ver aparecer uma geracao de sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem da alma”, como C. G. Jung o desejava. Léon Bonaventure VI NOTA INTRODUTORIA A presente traducio brasileira deuw-se a partir da versao para 0 inglés dos textos de Erich Neumann reunidos sob o titule The fear of the feminine. Os trés primeiros ensaios ram parte do Zur Psychologie des Weiblichen, publicado pela Rascher Verlag, em 1953, como segundo volume de uma série de obras de Erich Neumann: *Umkreisung der Mitte: Aufsatze zur Tiefenpsychologie der Kultur” (“Em lorno do pon: to central: ensaios de psicologia profunda da cultura”) (0 Profiieio de Neumann para aquela sua obra é aqui reproduzido, por ser relevante tambérn para os dois outros ensaios acrescentados neste livro. A histéria dos textos originais é a seguir esclarecida, “Os estagios psicologicos do desenvolvimento da mulher” é 0 pri- meiro ensaio. Foi ampliado e revisto a partir de uma conferéncia a associngSes de Psicologia em Zurique, Basel e Tel Aviv. A conferéncia ja un ensaio, "Die Urbeziehung der Mutter” (“A relacao primor- dial com a Mic"), publicado em Der Peychologe III (Bern), em 1951, mais tarde incorporado a obra-prima de Neumann: A Grande Mae (com tradueao brasileira pela editora Cultrix de Sao Paulo). ( segundo, “A lua e a consciéneia matriareal”, foi publicado em um ntimero especial de Eranos Jahrbuch XVIIT, em 150, como ho- menagem aos setenta e cinco anos de Carl Gustav Jung. Com o titulo de Aus der Welt der Urbilder (“Do mundo dos arquétipos), esse niime- ro trazia mais dez ensaios de conferencistas em Eranos “Sobre a ‘Flauta Mégiea’ de Mozart”, 0 tereeiro ensaio, reeebeu acréscimos a partir de uma conferéncia para associaciesde psicologia em Zurique, Basel e Tel Aviv. A versio que se publicou foi dedicada por Neumann & sua mulher, Julie Neumann, psieéloga analitica. Esse trabalho teve traducdo para o inglés por Esther Doughty e saiu em Quadrant II (1978), uma publicagao da Fundagao C. G. Jung de Nova York. O texto foi revisto por Boris Matthews, que também traduziu para o inglés o Prefécio do autor, os dois primeiros ensaios ¢ 0 ulti “O medo do Feminine”, Aos trés ensaios originais sobre 0 Feminino, reuniram-se outros dois. “O significado do arquétipo da terra para os tempos modernos" foi uma palestra que Neumann proferiu em Tel Aviv e, depois, na con- feréncia de 1953 em Eranos, com sua primeira publicagdo no Jahrbuch de 1953. A tradueao para o inglés saiu na Harvest, revista de estudos Junguianos da Associacio de Psicologia Analitica de Londres, ern duas partes: a primeira, no nimero 1981, na tradugio do saudoso Eugene Rolfe, baseada em um rascunho de Madeline Lockwood editado por Ruth Ludgate; a segunda, no niimero 1983, na tradugao de Michael Cullingworth. “O medo do Feminino” era parte de um simpésio realizado no Ins- tituto C. G. Jung de Zurique, publicado como Die Angst (“O medo") pela Rascher Verlag, nos “Studien aus dem C. G. Jung Institut" (1959), com contribuigdes de oito estudiosos de varias disciplinas. ‘Trés ensaios ja haviam sido traduzidos para o inglés: “Os estagios psicoldgicos do desenvolvimento da mulher”, na tradugao de Rebecea Jacobson, revista por Hildegard Nagel e por Jane D. Pratt, para a revista Spring (1959); “A lua e a conseiéncia matriareal”, na traducao (parcial) de H. Nagel, para a Spring (1954); “O medo do Ferninino”, na traducao (também parcial) de Irene Gad e Ruth Horine, editada por Jeanne Walker, para a Quadrant 19 (1986), Essas versdes foram consultadas para a edicao em inglés reunida pela Princeton University Press, da qual resultou esta traducio brasileira. No corer do texto, aparece o termo “Self” (com maitiseula), af mantido no sentido junguiano. termo das Weibliche aparece, conforme o contexto, na versto em inglés e também na presente traduedo como “mulher” ou “mulheres” {quando apresentou conotacdo individual), “o Feminino” ou “o Femi- nino Arquetipico” (quando assumiu um sentido arquetipico), ainda como “mulher”, “fémea” e “o Feminino” (quando 0 termo alemao pare- ceu referir-se tanto a mulher individualmente quanto A energia arque- tipica), Igual prineipio adotou-se para o termo das Ménnliche, traduzido ora por “o Masculine”, ora por “macho” ou “homem’. ABREVIATURAS DAS REFERENCIAS B.S. = Bollingen Series (Nova York e Prineeton). CW = The Collected Works of C. G. Jung, edigdo organizada por Gerhard Adler, Michael Fordham, Herbert Read ¢ William MeGuire, 20 volumes, traduzida para o inglés por R. F. C, Hull, 1951-1979, Nova York/Princeton (B.S, XX) e Londres [as obras com- pletas — 0.C. — de Jung tém tradugao em portugués pela editora Vozes de Petropolis] EJ = Branos Jahrbiicher, organizado por Olga Frocbe-Kapteyn (até 1960), Zurique, Freud, Sigmund, Standard Bd. = The Standard Edition das obras psi coldgicas completas de Sigmund Freud, 24 volumes, traduzidas para o inglés por James Strachey e outros, 1953-1974, Londres [a “Bdicdo Standard” das obras de Freud encontra-se traduzida em portugués pela editora Imago do Rio de Janeiro], Jung, C. G., “The Relations” = “The Relations between the Ego and the Unconscious”, nas O.C. 7, §§ 202-406; original: “Die Bezie- hungen zwischen dem Ich und dem Unbewussten”, Gesammelte Werke 7 (Zurique/Olten), cuja primeira edigio, como livre revisto ncia de 1916, deu-se em Zurique (1928), ‘Neumann, Amor and Psyche: The Psychic Development of the Feminine, ACommentary on the Tale by Apuleius, trad. para o ingles por Ralph Manheim, Nova York (BS. LIV) e Londres, 1956; original: Amor und Psyche. Mit einem Kommentar von Erich Neumann, Ein Bei trag 2ur seelischen Entwicklung der Weiblichen, Zurique, 1952 (com traducao brasileira pela editora Cultrix de Sao Paulo: Amor & Psiquél Neumann, Depth Psychology and a New Ethic, trad. para o inglés por Eugene Rolfe, Nova York, 1969; original: Tiefenpsychologie und neue Ethik, Zurique, 1948 [com tradugio brasileira do original al ao: Psicologia Profunda e Nova Etica, Paulus, $40 Paula Neumann, The Great Mother: An Analysis of the Archetype, trad. para © ingle por Ralph Manheim, Nova York (B.S. XLVID) « Londres, 1955; original: Die Grosse Mutter. Der Archetyp des grossen Weiblichen, Zurique, 1956 [com traducio brasileira pela editora Cultrix de Sao Paulo: A Grande Mae — Umestudo fenomenolagico da constituigéo feminina do inconscientel Neumann, The Origins and History of Consciousness, trad. para 0 inglés por R. F. C. Hull, Nova York (B.S. XLID e Londres, 1954; original: Ursprungegeschichte des Bewusstseins, Zurique, 1949. Neumann, U. d. M. = Umkreisung der Mitte, 3 volumes, Zurique, 1958, IY = Papers from the Eranos Yearbooks, trad. para o inglés por Ralph Manheim e R. F. C. Hull, 6 volumes, Nova York/Princeton (BS. XXX) e Londres, 1955-1968. PI PREFACIO Estes ensaios sobre a psicologia do Feminino inse- rem-se no contexto da psicologia profunda da cultura e da terapia cultural, uma vez que para a crise de nossa época contribuiram de forma cabal tanto 0 valor-canone masculino da conseiéneia ocidental, patriarcalmente uni- lateral, quanto a ignorancia fundamental sobre a psico- logia da mulher e da fémea, diferentes na esséncia. Por isso a compreensio do Feminino constitui-se numa ne- cessidade premente, e nao apenas para entender o indi- viduo singular, mas também para curar o coletivo A histéria do desenvolvimento da consciéncia no Ocidente é a de uma consciéneia masculina, orientada ativamente, cujas realizagdes conduziram a cultura pa- triareal. Por sua vez, outras leis governam o desenvolvi- mento do Feminino — ja que este nao participa de ne- nhuma forma decisiva no desenvolvimento “masculino”, tal como se da na época moderna. A natureza diferente da psique da mulher e da fémea deve ser re-descoberta, se as mulheres quiserem entender a si préprias, mas tam- bém se o mundo patriarcalmente masculino, adoecido gracas & sua unilateralidade extrema, quiser re-cobrar a satde. ‘A psicologia analitica percebeu que existe ativo no inconsciente do homem um elemento feminino e, no in- 5 consciente da mulher, um elemento masculino. & ne- cessdria uma psicologia profunda do Feminino e das mulheres que leve em conta esses novos insights, se qui- sermos compreender todos os problemas da relagao ¢ do casamento; além do qué, ela possibilita que mulheres homens compreendam-se a si préprios de forma mais plena. Em “0s estagios psicolégicos do desenvolvimento da mulher”, procuramos dar um esboco abrangente dos passos no desenvolvimento da mulher, no que este difere dos do homem. Por sua vez, em “A lua e a consciéncia matriarcal” procuramos explicar a consciéncia feminino- matriarcal essencialmente diferente e que forma a base de muitos comportamentos e modos de ser peculiares das mulheres e do feminino. A “consciéncia matriarcal”, uma consciéncia “parturejante” em sentido bastante especifi- co, forma a ponte entre a mulher e o individuo criativo — por exemplo, o artista do sexo masculino, no qual a ani- ma, seu lado feminino (e, com a anima, também a consci- éncia matriarcal), aparece com maior acento do que no homem patriarcal mediano. Por conseguinte, o ensaio sobre a Flauta magica de Mozart calha de modo significativo a este contexto, por- quanto 0 Auseinandersetzung — 0 conflito e a harmonia de um com outro — dos mundos matriarcal e patriarcal (os quais constituem 0 real objeto de nossa contribuicao & “psicologia do feminino”) ocupa o centro da épera e seu notavel libreto. A flauta mdgica supera tais antiteses e culmina em uma nova sintese. Desenvolver uma sintese assim, na realidade psiquica do individual e do coletivo: cis uma das tarefas fundamentais e voltadas ao futuro a argo da terapia individual e cultural em nossa época. E. NEUMANN I OS ESTAGIOS PSICOLOGICOS DO DESENVOLVIMENTO DA MULHER’® Ems origens ea historia da consciencia,* tragamos © desenvolvimento dos estagios arquetipicos que condu- zem & formagao da conseiéncia e de um ego ao qual cha- mamos de “patriarcal”, pois os portadores deste desdo- bramento predominantemente ocidental sao homens com seus valores caracteristicos. Muito embora o desenvolvimento da consciéncia numa direcao patriareal também seja necessario para a mulher moderna, 0 desenvolvimento dela segue um cur- so essencialmente diverso. 0 desenvolvimento normal da mulher ocidental, bem como as premissas psicolégicas de suas neuroses, constituem a base empirica para o esboco que tentaremos apresentar aqui. O primeiro estagio do desenvolvimento feminino, bem como do masculino, é 0 de uma unidade psiquica caracte- rizada pelo simbolo do urdboro, a serpente que forma um circulo fechado, a comedora da prépria cauda. Preferi- mos este simbolo ao conceito do inconsciente porque a vitalidade e a oposieao dinamica do processo sio visiveis hele, e essas qualidades nao sao veiculadas pelo conceito de inconsciente. * “Dic psychologischen Stadien der weiblichen Entwicklung” Zur Peyeholey dew Woiblic."Truchugao em inglés de Boris Matthews (ver a Nota Introdutoria), “Original: Urworunnesechichte des Bewusstscins, Zavique, 1949. Na situacdo psiquica original prevalece uma fusio, ou melhor, uma nao-separagao entre o ego e o inconsciente. Aqui estamos diante de um estagio pré-egotista da psique que se ergue filogenética e ontogeneticamente como 0 ini- cio do desenvolvimento de cada consciéncia individual. Neste estagio, o ego da mulher, como o ego do homem, se relaciona com o inconsciente como com uma mie cuja su- perioridade ¢ tao grande que ainda nao se pode falar de uma separacao mae e filho, inconsciente e ego. Em certa medida, a crianca ainda nao nasceu e ainda esta contida no uréboro materno, Em termos individuais, esta situagao é expressa na falta de separagao da crianga em relagao a mie, assim como é exemplificada coletivamente pelo contenimento do individuo no poder suprapessoal, mater- nal, protetor do grupo, do cla ou da familia, que em grande medida determina o que o individuo faz ou deixa de fazer. Inicialmente o inconsciente aparece como a boa mae, isto 6, a relacio priméria da crianga com ela tem um acento positivo, pois o ego dependente, infantil, é protegido e nu- trido pelo ego materno. Por “relacdo primal com a mae”, queremos dizer a totalidade dos relacionamentos do bebé ou da crianga pequena com sua mae, antes de ter uma per- sonalidade delimitada por uma consciéncia centrada no ego. Ha mais fatores transpessoais do que pessoais em ago no relacionamento primal, pois a crianga est sujeita a uma preponderdncia de forcas arquetipicas, transpessoais, Arquetipicamente, o relacionamento primal — isto 6, dependéncia total do ego ¢ do individuo em relacao ao inconsciente e ao grupo — é experienciado em projeciio sobre a mae que, a despeito de sua individualidade, mar- cao bebé ca crianga pequena como 0 uréboro materno e a Grande Mae? 0 relacionamento primal da filha com a 2Pode-se ver que estamos lidando com uma projegio pelo fate de que mes: ‘mo se outra pessoa — out até um animal — tomar o lugar du mae, pode assur ir o papel do portador da projecdo. 8 mée difere fundamentalmente daquele do filho, ¢ en- tender essa diferenga constitui uma contribuicao essen- cial para entender a discrepancia entre a psicologia dos homens e a das mulheres. Se dizemos que, apés um ponto decisivo de seu de senvolvimento, a crianca do sexo masculino experienci a mae como um “tu” dessemelhante, diferente dele pré- prio, ao passo que a crianga do sexo feminino experiencia a mae como um “tu” semelhante ¢ nao diferente, surge uma pergunta: Em que sentido queremos dizer isso, € como esse Lipo de “diferenga” 6 possivel, uma vez que 0 hobé nao pode inicialmente estar —e de fato nao esta — consciente de quaisquer diferengas sexuais? O relacionamento embridnico, bem como o infantil, du criunga com a mae, € 0 protétipo de todos os relaciona- montos primais. Neste sentido, o relacionamento primal de fato se “origina” na mae, isto é, 6 moldado pelo arqué- tipo da mae, protétipo psiquico do elemento materno que vive na psique humana. No entanto, isso nao quer dizer que a reaedo psfquica da crianga swrja em virtude dos efeitos do relacionamento primal com a mae pessoal, no sentido que, por exemplo, a psicandlise acredita que as cexperiéncias pessoais singulares do individuo sio a cau- sa de desenvolvimentos posteriores, O relacionamento embriénico, bem como o infantil, com a mie, é 0 protétipo de toda instancia de participation mystique e 0 “con- tenimento do ego no uréboro” simplesmente descreve este fato. Na historia da humanidade, a diferenciagio do ho- mem e da mulher esta entre as mais precoces e impres- sionantes projecdes de opostos, e a humanidade primeva considerava © homem e a mulher como 0 protétipo dos opostos em geral. Por esta razo, toda oposicao aceita fa- $Neumann, Oyen histivia, op cit cilmente o simbolismo do Masculino e do Feminino, e por conseguinte, a oposigao de consciente e inconsciente é experienciada em termos deste simbolo, com 0 Mascul no sendo identificado ao consciente e o Feminino, ao in- consciente. Esta oposicao simbélica nio esta limitada ao fenémeno secundario da anima e do animus; ela surge do contenimento original no uréboro, 0 local do nascimento da consciéneia “masculina” e do inconsciente “maternal”. A objetividade do consciente se desenvolve a partir da nao-diferenciagao do inconsciente no decorrer da histé- ria humana por meio de uma “separacdo” simbélica en- tre Masculino e Feminino. A crianga do sexo masculino experiencia este principio de oposicao entre Masculino e Feminino dentro do relacionamento primal com a mie, um relacionamento do qual a crianca do sexo masculino deve desistir para alcangar 0 préprio potencial e encon- trar sua identidade como macho. Atotalidade da psique, cujo centro é o Self, existe num relacionamento de identidade como corpo, 0 vefcullo dos pro- cessos psiquicos. As mudancas fisicas de bebé para meni no, jovem, homem e ancido também sao acompanhada por mudancas psiquicas que diferem grandemente das mudaneas correspondentes no desenvolvimento da mu- Iher. Por isso, temos de supor entre os sexos uma diferen- ca biopsiquica que é manifestada de maneiras simbélicas € arquetipicas, muito embora nao possa ser expressa em quaisquer das categorias caracterolégicas propriamente ditas. Portanto o Self, como a totalidade da personalida- de, carrega justificadamente caracteristicas sexuais se- cundarias, e tanto 0 corpo quanto a psique esto intima- mente ligados em sua dependéncia dos horménios.> ‘Ver Jung “The Relations’, par 296es [ver as Abreviaturas das Reterén: cis) °0 fato de que esta lei nao 6 valida no desenvolvimento ka individuagao no deve nos preoeupar agi 10 Mesmo quando, em sociedades pré-patriareais, as criangas do sexo masculino permanecem por longo tem- po com os grupos de mulheres e so modeladas por sua participation mystique, a experiéncia de dessemelhanga 6 dada desde o inicio, ou de qualquer forma, a partir do ponto em que essas criangas percebem as diferencas en- tre os sexos. Mas nao importa como e sob que condigdes culturais se manifesta o principio de opostos do princfpio Masculino-Feminino. Tampouco tem importancia que essa diferenga tenha sido interpretada de maneira equi- vocada ¢ tenha levado a conclusdes incorretas devido a preconceitos patriarcais culturalmente condicionados. Visto que o individuo do sexo masculino experiencia a situagao primal — identidade com a mae, o outro Femi- nino —como identidade com um nao, somente numa fase posterior é que a descoberta do Self como individuo do sexo masculino,® é atingivel, estando como esté em opo- sigdo ao relacionamento primal. Somente a consecucio do desapego do relacionamento primal, e uma atitude ob- jetiva em relagao a este ultimo leva a descoberta do Eu masculino e a estabilidade, Quando isso nao é conse- guido, 0 individuo do sexo masculino permanece preso e castrado no incesto materno e urobsrico,”’ isto 6, ele é inauténtico e alienado de si mesmo, Em outra parte, jé descrevemos esta situagdo fundamental e o desenvol- vimento que dele emana descritos em mitos nos quais os primeiros estagios do desenvolvimento da consciéncia cram interpretados como sendo essencialmente o Mas- culino libertando-se do Feminino, o filho libertando-se da mae. ‘eta descoberta do Self nao deve ser confundida com a descoberta do Self a individualidade da segunda metade da vida. Iniclalmente parece ser desco- berta do ego, mas 6 0 primoiro estagio da descoberta do Self, 0 qual, na individuacio da mulher, chamamos alcangar © Sel, ‘Origen ehistéria iL uma experiéncia masculina fundamental que o relacionamento primal, a identificagéo com um tu, acabe sendo “falsa”. Os efeitos duradouros desta experiéncia aparecem na tendéncia masculina a objetividade com a confrontagdo de que isso necesita, na sua tendéncia a se relacionar somente a partir do mundo distante e cons- ciente do logos, e na sua reluténcia em se identificar in- conscientemente com um tu. Isto leva a um maior grau de isolamento do individuo do sexo masculino, mas, igual- mente, a uma formacao intensificada e uma solidez do ego e da consciéncia, tudo isso numa certa oposigao & psi- cologia feminina. Sob a forma de medo de relacionamen- to, esta experiéncia fundamental esta a espreita no pano de fundo de muitas neuroses dos homens, Visto que a descoberta masculina do Self est vincula- da, por sua propria natureza, ao desenvolvimento da cons- ciéncia e a separagéio dos sistemas consciente e inconscien- te, 0 ego e a consciéncia sempre aparecem simbolizados arquetipicamente como masculinos. Isto significa que 0 individuo do sexo masculino identifica seu ego com a cons- ciéncia e com seu papel arquetipicamente masculino, ¢ se identifica com o desenvolvimento da consciéncia no decorrer da histéria humana. Individualmente, ele so- brevive fora do caréter arquetipico do heréi e experiencia seu Self somente em sua batalha vitoriosa com o dragio, isto 6, 0 lado natural do inconsciente que se confronta com ele sob a forma de relacionamento primal. Mas para a mulher o relacionamento primal tem um efeito e uma significagao completamente diferentes. Quan- do a crianga — seja ela do sexo masculino ou feminino — se torna consciente do prinefpio da oposigéo Masculino- Feminino, sob qualquer forma que ele aparega, 0 relacio- namento primal com a mde é a prépria forma de se rela- cionar. Mas para a menina, todas as complicagoes que existem na experiéncia do menino de ser diferente desapa- 12 recem. Mesmo que ela “realize scu potencial” como mulher, aidentidade com sua mae no relacionamento primal pode, em grande medida, continuar a existir, e sua descoberta do Self é priméria, pois a descoberta do Self eo relacio- namento primal, no caso da menina, poclem ecineidir. Isto significa que a mulher pode continuar no relacio- namento primal, expandir-se nele, ¢ realizar o proprio po- tencial sem ter de deixar o cfrculo do urdboro materno ea Grande Mae. E quando ela permanece neste ambito 6, com certeza, infantil e imatura do ponto de vista do de- senvolvimento da consciéncia, mas nao é alienada dela pré- pria, Fnquanto numa situagao semelhante o homem é “cas trado”, isto 6, seu ser auténtico Ihe 6 roubado, a mulher simplesmente permanece fixada, firmemente segura a uma forma imatura de seu ser auténtico. Repetidas vezes ve- mos que, mesmo em meio a uma cultura ocicental, pa- triarcal, a mulher pode florescer como um todo natural nesta forma néo-desenvolvida psicologicamente — 6, sem um desenvolvimento correspondente da conscién- cia — que teria feito um homem fracassar, ha muito tem- po, na sociedade, e tornar-se neurético, Esta situagao ba- sica, na qual a descoberta do Eu eo relacionamento primal correspondem, da as mulheres desde o inicio a vantagem de uma inteireza e completude naturais que os homens nfo possuem. Orelacionamento mae-filho/a 6 da identif'eacdo m tua, € 0 fato de que a descoberta do Self (na qual a mu- Iher se experiencia como pertencente ao sexo feminino) coincide com o relacionamento primal (no qual ela ex- periencia a mae como pertencente ao sexo feminino) leva 11. um reforgo primério de todos esses relacionamentos que passam a existir por meio da identificagao. Isto também contrasta com a experigncia do individuo de sexo mascu- lino, que fundamentalmente prefere uma forma de se rolacionar baseada na justaposi¢ao 1 E se, por um lado, a forma de se relacionar na oposi- io ou na justaposiedo é uma forma individual de se rela. cionar que 6 moldada naturalmente, por outro as formas naturais de a mulher se relacionar por meio da identifica, a0 derivam do vineulo de sangue da gravider, isto é, do relacionamento primal com a mae com quem se origina este relacionamento. Por esta razao, o anseio derelaciona. mentos de identidade acompanha a mulher ao longo de sua vida e dé forma a sua tendéncia de eriar novamente uma situagao semelhante, Mas somente como adulta, quan. do experiencia a gravidez e se torna a portadora de um relacionamentv primal com seu filho ou filha, o desejo da mulher com inclinagdo para 0 matriareado chega a reali. zacao; e entdo seu ego, como sujeito, experiencia o conte- nimento do filho ou filha e a identidade com ele ou ela, 7 O relacionamento simbélico de Deméter e Coré, cuja significagio mitolégica foi clucidada por Junge Kerényi.* caracteriza a fase de conservacio do Self na qual o ego feminino permanece preso ao inconsciente materno ¢ a Self. A importincia deste mitologema para a psicologia fominina reside nisto: encontramos aqui uma psicologia matriareal que determina especificamente o relaciona. mento da mulher com o Feminino, bem como com o Mas. culino. Os efeitos deste tipo de fase arquetipicamente dirigida sio quase sempre demonstrAveis em constela. g0es sociolégicas correspondentes, ao passo que ao mes. mo tempo governam o comportamento inconsciente da mulher. Conseqitentemente, em nosso contexto, nao im. porta delimitar a medida na qual as condicdes psicol6gi. cas afetam a situagdo social, ou vice-versa, como as con. digdes sociais coletivas distantes afetam a psique da mulher. "ung e Kerényi, Boye on a Science of Mythology (BS. XX Ul, 1940). (1" ed, 1941. Os ensaios de Jung foram reeditados em CW §il.] ie 4 E tipico desta fase de conservagao do Self que psico- logicamente, e muitas vezes sociologicamente, a mulher permanega no grupo das mulheres cli da mae e mante- nha sua continuidade “ascendente” no relacionamento com 0 grupo de maes e “descendente” com 0 grupo de fi- Ihas. Sua solidariedade com «1 proximidade das mulheres e do Feminino coincide com sua segreyzngiio © seu senso de alienagao dos homens e do Mascu O irmao exogamico, com quem o contato & desde muito cedo estritamente dificultado por tabus, assume papel de autoridade espiritual e de lideranga masculina, mesmo ke, como no eld exogamico, ele vive em outro lu- sar. Por outro ldo, 0 marido proveniente do ela estran- feiro, com quem ha um relacionamento sexual, perma- nece um forasteiro no grupo das mulheres, e em grande medida fica sem direitos nem poderes. O status de alie- nigena deste homem é freqiientemente evidenciado pelo cardter de segredo de suas visitas A esposa. O tabu da sogra — isto 6, a mancira ansiosa pela qual o marido evi {a a mae da esposa — aponta nessa mesma diregao. Esse (abu é caracteristico da alienagao, e mais, da hostilidade que predomina entre os individuos do sexo maseulino e do sexo feminino nesta fase. Isso porque, psicologicamente falando, a esséncia da fase de conservagao do Self reside no fato de que o predominio do elemento materno impede qualquer encontro individual e completo entre homem e mulher, Masculino e Feminino. Uma parte disso é a expe- riéncia que a mulher tem do homem e do Masculino como um padrao e um subjugador hostil, ou é idéntica a ela. ‘A fase de conservacao do Self pode durar muito tem- po, pois torna possivel a existéncia humana saudavel para a mulher e para o grupo. E ainda que esta fase deva ser encarada como positiva, em termos da preservagao da vida, (em efeito negativo quando relacionada ao desen- volvimento da conseiéneia, que 6 dificultado pelo poder 15 impressionante do inconsciente. Deste angulo, a Grande Mae aparece como aterradora e devoradora, néo apenas como boa e protetora. Em termos do desenvolvimento feminino, 6 claro, a possibilidade de que esta fase de conservacao do Self pos sa durar muito tempo nao significa que a mulher jé nao tenha chegado a um acordo com 0 Masculino e com os homens com os quais tenha vivido, desde o inicio, na mais intima associagao. © fato de que uma mulher casada “moderna” que tem filhos e nao parece necessariamente neurotica possa viver na fase de conservacao do Self significa que, nao perturbada por nenhuma Auseinandersetzung, ela exis- te num estado de auséncia de tomada de consciéncia so- bre a vida e sobre o viver com outra pessoa. Nesta fase, tudo Ihe parece “sbvio ¢ natural”, 0 que, muitas vezes indica que ela esta repleta de suas préprias idéias a res. peito do cardter do Masculino do préprio marido, sem haver experienciado, como ego ou como individuo, o Mas- culino em geral e o marido em particular. Para a mulher, porém, a significagao do Masculino transcende de muito seu relacionamento com 0 parceiro, e uma mulher cujo desenvolvimento esta parado na fase de conservagao do Self 6, de maneira geral, um ser incompleto, mesmo que nao se torne neurética. O relacionamento externo e 0 re- lacionamento interno e com o Masculino — isto 6, com 0 homem externo ¢ com o principio masculino em a¢éo/ dentro dela — constituem parte de sua inteireza do mes- mo modo que um relacionamento com 0 Feminino exter- no ¢ interno no caso do homem. A parte sua significago para seu préprio desenvol- vimento psicol6gico, a persisténcia da mulher na fase de conservagao do Self tem também conseqiiéncias negati- vas para a familia dela. Isto porque as “fases” nao sio fantasmas abstratos de um passado histérico, mas antes 16 imagens de constelagées inconscientes que estao em agio agora, como em épocas anteriores, sendo necessérias ao desenvolvimento da personalidade. Assim, por exemplo, a psicologia matriareal do cla materno pode ainda ser dominante num casamento ocidental, patriarcal, ¢ 0 tabu da sogra ainda trai sua vitalidade em incontaveis piadas a respeito da sogra, que expressam o fato de que a mie da esposa ainda domina a filha e toda a familia de apa- réneia patriarcal da filha, A significacdo negativa dessa fase enconira expre: um grande nimero de perturbagées do casal, ou, de modo geral, em perturbagdes do relacionameato da mu- Ihor com o Masculino, Aalienagéio em relagdo gos homens ou u hoxtilidade para com cles, que nela predomina, mui- tas vezes 1 impossibilita para um relacionamento inte- rior com um homem, e torna-se desse modo uma fonte de rigidez, entre outras disfungoes, A restrigdo do interesse da mulher pelos filhos, que considerados como o significado correto do casamen- to, pertence a esta mesma categoria. As doengas neuréti- cas infantis que surgem por meio desta constelagao po- dem desaparecer nos estdgios iniciais, se a mae se tornar normal. Mas a psicologia da mulher nesta fase também po- de ser determinada por um relacionamento com o homem que € apenas sexual. Isto tem seu protétipo na énfas no individuo félico do sexo masculino encontrado no ma- triarcado e na psicologia das “amazonas” que dai decor- re. Embora predomine o carter puramente félico, des- conexo, lascivo, da sexualidade, 0 mito relata que as amazonas usavam os homens somente a fim de gerar criangas. Nestas constelacées, as mulheres preservam a unidade do grupo das amazonas, enquanto se relacionam com 0 Masculino e com o homem como com algo estran- xviro, em parte hostil, em parte “inteiramente outro”, Ww Entre os efeitos negativos desta fase, encontramos também uma situagao na qual a mulher se experiencia masoquisticamente como sofredora, e conseqiientemen- te reduz 0 homem e 0 Masculino ao nivel de meros s4di- cos. Muito freqiientemente, a constelacao arquetipica do matriarcado esta por detras desta espécie de “perversao” que, num sentido mais geral, é caracteristica de um gran- de ntimero de mulheres. Mas precisamente esse traco “masoquista” torna-se compreensfvel somente em termos do préximo estagio do desenvolvimento da mulher, que designamos como “a invaséio do uréboro patriarcal” Neste nivel, ainda prevalece a situagao original, urob6rica. Mas a intengao da acentuagao do elemento masculino-patriareal na expresso uroboro “patriarcal” é frisar que aqui se trata de uma questéo de desenvol- vimento na diregao do patriarcado. Ora, a situacao urobérica seré superada e emerge o arquétipo do Grande Pai. No matriarcado — isto 6, sob a hegemonia da Gran- de Mae — 0 Masculino somente pode ser experienciado numa forma diminuida. O matriarcado vé o lado mascu- lino do uréboro, que evidentemente é bissexual, como parte da Grande Mée, como seu instrumento, auxiliar e satélite. O individuo do sexo masculino é amado enquan- to crianga e enquanto jovem, e usado como seu instru mento de fertilidade, mas continua integrado no Femini- no e subordinado a ele, e seu ser masculino auténtico seu carater singular nunca sao reconhecidos.* Com a invasao do urdboro paterno, porém, algo com- pletamente novo acontece com a mulher. Ela é tomada pelo poder desconhecido, avassalador, que ela experiencia como numinoso informe. Na hist6ria do desenvolvimento da consciéncia, o encontro com uma forea anénima deste tipo 6 sempre uma experiéncia dos limites do ego, expe- "Cr. Neumann, Origens e histéria, e The Great Mother 18, rigncia essa encontrada nao somente entre povos primi- tivos, mas também entre pessoas de consciéncia desen- volvida, por exemplo na sua experiéncia de misticismo"” © de individuacdo. A experiéncia que o ego faz de seus limites, portanto, nao significa somente que um ego pri- mitivo, facilmente dissolvido, encontrou 0 numinoso na semelhanga de sua propria falta de forma. Em fases de (ransigéio c em situagdes que transformam a personali- dace — sempre que uma nova situagao arquetipica 6 cons- tolada eseja por quaisquer razdes for —o arquétipo, como algo numinoso © indefinido, andnimo e transpessoal se confronta de mancira nvasssladora com a consciéneia do ogo. A connciénein primeiramente reage, tanto na situa- cio individual como no desenvolvimento coletivo, sentin- do-no sobrepujada e derrotada, $6 gradualmente 6 que sli erin novas formas de adaptagao ao arquétipo que, no nivel subjetivo, conduzem ao desenvolvimento, ao enri- quecimento e extensao da consciéneia, e dat ao nivel ob- jetivo manifestam-se em fendtipos ou encarnacées do ninoso cada vez mais diferenciados. Kassim o poder avassalador nao apenas do ntiminoso andnimo, mas também dos numina e do nume, da divin- dade com uma figura masculina, pertence ao estagio urobdrico paternal. Esse desdobramento comega no ma- triarcado com o aparecimento de grupos pluralistas de poder de carater masculino, demoniaco, tais como os cabiros, os sAtiros e os déctilos, cuja multiplicidade ain- da trai seu anonimato e sua numinosidade sem forma. Eles so seguidos por figuras de deuses falico-ctonicos, que na verdade ainda sao subordinados & Grande Mae (como eram na Grécia, por exemplo, Pa, Poséidon, Hades nu "Ch, Neumann, Kulturentwicklung und Religion (U. d. M., vol I, 1958). Inelui Mystical Man", B) 1948 (trad. in PBY, vol. 6), “The Payehological Meanings of Rittals", Ej 1950 e “The Mythieal Word and the Individual’, Fj 1940 (rad, RT sEsenbsom in Quadrant 1411981), 19 e 0 Zeus cténico), mas que as mulheres podem expe- rienciar como o uréboro patriarcal. Divindades tipicas que aparecem como urébore patriarcais sao Dioniso e Wotan, assim como Osfris e, em outro nivel cultural, Shiva, cuja forma transpessoal esta envolvida por um anonimato palpavel. Nao apenas a maioria dessas figuras é venera- da orgiasticamente como deuses da fertilidade, mas nos relacionamentos emocionais e extasiados da mulher ela experiencia as profundezas inimaginaveis da propria natureza. Para a mulher, a invasdo pelo uréboro paterno cor- responde a uma experiéncia inebriante de ser dominada, de ser tomada por um “penetrador arrebatador” que ela nGo experiencia pessoalmente em relagaio a um homem concreto, nem projetada nele, mas sim como um nume transpessoal, andnimo. A impessoalidade e o fato de se sentir dominada, indefesa, sao constituintes essenciais da experiéncia neste estagio. Na mitologia, encontramos este estagio representa- do nos relacionamentos da “virgem” matriareal néo com seu marido, mas com um deus que a domina, ora como nuvem ou vento, como chuva ou raio, ouro, lua, sol, e as- sim por diante, ou entdo como um falo numinoso em forma animal que penetra nela, seja como serpente ou passaro, como touro, bode, cavalo ete. Realmente, incon- dicionado como é por qualquer coisa proveniente do mun- do externo, o cardter arquetipico da experiéncia nesta fase 6 tao claro que devemos perguntar diante de qual expe- riéncia interior estamos aqui. Forgas interiores incons- cientes e contetidos transpessoais cuja carga de energia excede grandemente a da consciéncia da mulher irrom- pem na personalidade com o surgimento do urdboro pa- terno. Porque o poder do inconsciente penetra ¢ domina, a mulher o experiencia como algo Masculino que a arre. bata, a toma, a traspassa e a transporta para além de si 20 mesma. Por conseguinte, 0 movimento do inconsciente sempre é percebido como numinoso ¢ criativo, pois sua invaso “frutifica” e modifica a personalidade da qual se apossa.!" Esta experiéncia pleromatiea — pleromatica por- que uma divindade numinosa 6 experienciada em sua indeterminagao informe, mesmo quando transitoriamen- te pode assumir alguma forma — enche a mulher de me- do mortal. Um simbolo ébvio deste fato é 0 mitologema da morte-matrimonio, na qual a energia masculina co- mo assaltanto @ raptor pode se Lornar Hades, o deus da morte quo rapta a mulher, como Coré, 6 a leva para seu roino, Associado 1 osta enorme e urrebatadora presenga ou ¢0 Manculina, esti o sentimento transpessoal de inndequaguo da mulher — isto é, um sentimento de infe- rioridde que tem aqui sua base impessoal arquetipica. Diante do Masculino, a mulher sente-se por demais pe- quena, Compreensivelmente, 6 como medo que ela ex- periencia sua incapacidade de conter dentro de si o falo inteiro da divindade, Encontramos 0 Masculino como serpente, dragao e monstro em um grande niimero de ansiedades sexuais e comportamentos neuréticos da mulher que dificuitam seu lacionamento com os homens. Entretanto, na entrega feminina de aceitagao desta situagao, e ao se deixar do- minar, a mulher é levada a vitéria sobre o medo, e sua ansiedade é transformada em embriaguez ¢ orgasmo. Nesta transformagdo (cuja significacdo podemos apenas meneionar de passagem aqui), a figura de dragao do urdboro paterno assume, por exemplo, a aparéneia de um No pedemos entrar aqui na diseussio da experiéncia da anima no il: ‘viduo do sexo masculino, a gual, no caso de um homem criativo e relijiowo, & completamente andloga a experiéneia da mulher. a1 deus, e a afirmagio de Herdclito prova que Dioniso e Ha- des sao uma tinica e mesma figura nos mistérios.!” ‘Tomada de profunda e total emogao pelo Masculino, a mulher supera o estagio de conservagao do Self e chega uma nova fase de sua experiéncia, a da entrega do Self Muito embora também seja expressa por meio do corpo, sua profunda emogao orgidstica tem um caréter espiri- tual. Mas este carder espiritual nada tem a ver com a logica abstrata do espirito masculino, patriarcal; perten- ce a uma forma especifica, feminina, de experiéncia espi- ritual que é muitas vezes associada ao simbolo da ua na mitologia." ‘Aconexao entre emogio espiritual e orgasmo fisico 6 ainda expressa na mulher moderna; sua comocdo espiri- tual pode ser tao intensa, por exemplo, com musica, que ela pode atingir o orgasmo, e seu “entendimento” dos con- tetidos espirituais pode estar ligado a sensagées fisicas. Isto significa que, falando simbolicamente, cla nao en- tende com a cabeca, mas com o corpo inteiro; para ela, processos espiritual-emocionais e fisicos esto unidos, de maneira bastante estranha para o homem mediano."* Masa relagao com o uréboro patriarcal tem também efeitos negativos se a mulher fica presa nele. Em con- traste com o estagio de “conservagao do Self” no qual a mulher no experienciava o Masculino em sua autentici- dade, o elemento novo nesta fase é a qualidade avassa- ladora do Masculino. Onde uma consciéncia do sexo mas- "=Herdelito de Beso, fr. 15, in K. Freeman, Ancilla to the Pre-Socratic Philosophers, 1948, "Ver abso, Ensaio 11,“A Lua ¢ a Conseiéncia Matriareal’. “Por outro lado, maitas evidéneias atestam que, tanto para o bem como para o mal, a pessoa criativa é mais agudamente conseiente de sua dependén- fa do corpo do que a pessoa comum, Nao ha diivida de que isso se deren um ‘maior gra de sensibilidade e a uma conseiéneia mais aguda de prveessos intix mamente ligados, Mas, mesmo aqui, consistente com sou desenvolvimento, a consciéncia patriareal tem tendénecia a comecar como se fis livre ea negar ‘sua depondéneia de processos do inconseiente e do corpo, 22 culino exigiria que a experiéncia fizesse seu efeito, por exemplo como “assimilagao dos contetidos que invadem a consciéncia”, para a mulher, tanto o carater arrebatador do acontecimento como o processo de trabalhar sua expe- riéneia do fato tornam-se mais dificeis para ela, pois o Masculino permanece numinoso, andnimo ¢ transpessoal. Uma tendéncia humana que trabalha inconsciente nente rumo a formagao da personalidade, que chama- mos de “centraversao”,!" forga a mulher — assim como forca o homem —a passar por todas as fases necessarias ao desenvolvimento individual. E demorar-se em uma fase que deve ser atravessada significa uma regressao no que rospeito ao desenvolvimento da personalidade. As figuras positivas © neyativas do urdhoro pa cal proporcionan um dos motivos essenciais de proble- mar quo, no nivel pessoal, a psicandilise desereveu como experiéneia feminina do complexo de Edipo. Mas, fre- yiientemente, o complexo de Bdipo 6 apenas “secunda- riamente personalizado”," vale dizer, e a expresséo do primeiro plano de uma constelagao arquetipica. Fre- qitentemente a relagdo com o uréboro patriarcal esta por detras da fantasia do incesto com o pai pessoal, mas a imagem arquetfpica com a qual a mulher experiencia a ligagao vai além dos tragos do pai pessoal, e muitas vezes os exclui completamente. Mas ser mantida cativa pelo uréboro patriareal — como uma constelagao arquetipi- ca —nao se restringe A psique da crianga; pelo contrario, permanece um problema continuo também para a mu- Ther adulta que nao superou esse estagio. ‘Uma das formas caracteristicas pelas quais 0 uréboro patriareal atua como um perigo — mas absolutamente nao 0 tinico — 6 0 do espfrito-pai fascinante. As agdes NOrigens-e histéria, Index, s. v. centroversso, "tbid.,» ¥.complexo de Eaipo, 23 desta forma fazem uma constelagao da figura da “filha do pai eterno”, isto é, uma mulher que, como virgem, per- manece vinculada ao espirito-pai sob forma visfvel ou invisivel. A mulher como profetiza e como freira, como “génio” ou “anjo” pode ser uma expressio de sua fixagao nesta fase arquetipica na qual ela se relaciona por meio de uma conexéo intuitiva a uma forca espiritual trans- pessoal, cuja magnitude transpessoal aparece quer den- tro de uma estrutura religiosa como a divindade, quer personalizada como o grande homem poeta, visiondrio, poeta etc., a quem a mulher esta vinculada. Neste caso ela vive como a “anima” do homem, isto é, como sua ins- piradora, e conseqiientemente pode perder o direito a vida pessoal, que também tem qualidades terrenas, maternais e outras que deveriam ser desenvolvidas. Ela “vive aci- ma de seus meios” ¢ 6 inflada;}” 6 identificada com uma figura arquetipica feminina que excede de muito seus li- mites meramente humanos e que, como Sophia, 6 a par- ceira do Espirito-Pai. Uma variante desta constelagao 6 a “mulher sem sombra”"* que é infecunda porque se des- ligou de seu lado terreno, de seu lado sombra. Aconstelacéo permanece um componente intoxicante no relacionamento da mulher pequena com o grande in- dividuo do sexo masculino, e portanto uma certa infan- tilidade e um certo sentimento de filha nunca é supera- do. Quando 0 cativeiro intuitivo no urdboro patriarcal leva a perda da terra — isto 6, a uma perda do relacionamento com a realidade concreta —o Espirito-Pai freqiientemente aparece como um feiticeiro que fascina negativamente a mulher e a mantém prisioneira. Simultaneamente, po- rém, a hostilidade da Grande Mae faz uma alianga com 0 Jung, “As Relages” "Ver fiugo von Hofmannsthal, Die Frau ohne Schatten 1919, libreto, mais tarde reeserito como narrativa em prosa. 24 cativeiro da mulher no uréboro patriarcal e com a con- comitante perda de sua conexéo com a terra. O desenvolvimento necessirio do estagio de conser- vagdo do Self, vinculado A mae, para a entrega do Self ao uréboro patriarcal inclui também um curto grau de hos- tilidade para com a mae, pois a transigao para uma nova fase sempre tem de lutar com a resisténcia da fase a ser superada, uma resisténcia determinada pela inéreia da psique. Conseqiientemente, 0 poder tenaz da mae, que agora parece terrivel, trabalha contra a transigdo para 0 uréboro patriareal. Mas, como todas as resisténcias cor- respondentes que surgem em virtude do arquétipo da fase ser superadn, isto nao conduz A doenga, e sim ao confli- lo, Todavin, se uma fixagdo caracterizada pelo predomé- nio do urdboro patriareal se desenvolver nesta fase, apa- rece ugors, juntamente com a figura negativa do pai como fviticeiro, também uma forma negativa da Grande Mi que se vinga da traigdo da filha. A figura da Grande Mae rogride A da bruxa mitolégica que, por exemplo, em contos de fada, langa um encantamento na filha e a aprisiona Na fase da conservacdo do Self, a mulher pode fun- cionar plenamente de maneira feminina e natural, domi- nada pelo vinculo com a mae, com o inconsciente e o cor- po. Com a invasdo do urdboro patriarcal, ela ontra nao somente numa nova fase de experienciar a si mesma como mulher, mas chega a experiéncia do espirito. Mas, caso se enquadre no uréboro patriarcal, torna-se possuida pelo pirito, t4o alienada de si mesma que perde até mes- mo seu relacionamento fisico com sua feminilidade. Para a mulher, 0 vinculo positivo com a Grande Mae lambém é sempre o pré-requisito psicolégico para se tor- nar mae, ser fértil e ter um relacionamento saudavel com © proprio corpo e com a terra. Por outro lado, afastar-se dn Grande Mae leva a incapacidade de desenvolver as qualidades maternais e frutiferas de sua natureza fo a6 nina, ¢, conseqitentemente, aos sintomas tipicos de his- teria de afastamento do corpo, e de fato, até mesmo de esterilidade. Freqiientemente a possessdo neurética da mulher pelo animus ¢ a expresso de sua incapacidade de diferen- ciar entre o Self eo Masculino. A mulher torna-se vitima de sua tendéncia a identificagao e se aliena da sua pré- pria natureza ao superdesenvolver 0 lado masculino, 0 lado do animus. Esta identificagao com o espiritual ¢ 0 Masculino pode encontrar expresséio em conflitos verda- deiramente trgicos. Ao se identificar com 0 Masculino transpessoal que toma 0 lugar da entrega e devogao au- téntica, a mulher abdica da propria natureza de terra,)? © torna-se, desse modo, uma vitima indefesa dos poderes masculinos. Este perigo, que pode até levar a psicose, 6 tambi iionado pelo fato de que na sua entrega extre- ma ao Self, a mulher nunca chega ao ponto de assimilar © lado masculino que vive nao somente em seu parceiro, mas também na sua propria psique, e, conseqiientemen- te, nunca desenvolve uma personalidade auténoma de direito proprio. Anatureza concedeu o apogeu ao mistério do femini- no no relacionamento primal e na gravidez, um apogeu que ocasionalmente acontece mesmo sem consciéncia e mesmo que ndo seja expresso em ritual; o mistério mas- culino € 0 feito e algo a ser merecido.2" Muito embora a descoberta do Self da mulher como feminino seja uma condigao original em contraste com a experiéncia masculina, a mulher que quer se tornar cons- ciente deve também chegar a experiéncia da alteridade e dissolver sua totalidade original. Caso contrario, conti- nocas “Nesta acepeio, considerar problema do “ospirita negative em meuThe Mythieal Word and the Individual” (ver acima, 110), "Origens o histéria, especialmente a primeira parte “Os Bstdgios Mitolé- tics da Evolugso da Conseitneia’ 26 nuaria @ ser “apenas” ela mesma, e nunca experienciaria 0 masculino, 0 lado consciente de sua personalidade, e seu desenvolvimento humano, Quando falamos de consciéncia, queremos dizer uma consciéncia centralizada no ego e amplamente separada do inconsciente, cujo desenvolvimento arquetipicamente masculino, independente, apresentamos em outra parte Mas sua forma — que tem se manifestado na consciéncia patriarcal, a base do pensamento cientifico ocidental —é um caso extremo. Ao lado dela, encontramos transigdes vivas entre o inconsciente e 0 consciente tais como a cons- ciéncia matriarcal, especialmente caracteristica para as mulheres.”! Para as mulheres, 0 relacionamento com 0 todo nor- malmente nunca 6 completamente substituide pola ca- pacidade de relagao consciente. Além de identifi ego com o ponto médio da consciéncia, a mulher sempre experiencia o Self do sexo feminino — que representa um ponto de vista que engloba a totalidade da psique— como poderoso e convincente num nivel de sensagio, ao passo que o individuo do sexo masculino identifica mais plena- nlo 0 ego a consciéneia e sua percepgao do relaciona- mento primal reeai em grande parte no inconsciente, Conseqiientemente, a tendéncia masculina leva da dissolugio dos vinculos do relacionamento primal a um estabelecimento do Masculino arquetipico como o elemen- to auténtico dele. Por contraste, o desenvolvimento femi- nino, ao se afastar do relacionamento primal, rumo consciéncia, ocorre inicialmente por meio do “Tu” do se- xo masculino, que desempenha o papel de consciéncia redentora para a mulher, quer seja experienciada de maneira impessoal ou transpessoal, interna ou exter- namente. Ver abaixo, ensaio IL Portanto, na vida da mulher, o relacionamento com © Masculino é decisivo, mas de um modo diferente do re- lacionamento do homem com o Feminino. Com excerao de certas vicissitudes modernas, o desenvolvimento da mulher e sua assimilagao a cultura esto muito intima- mente ligados ao Masculino arquetipico. A filiacao & for- ma patriarcal de nossa cultura permitiu que a mulher se separasse do estado natural no relacionamento primal levou a seu relacionamento com 0 Masculino como pai e marido, animus e guia. Exagerando: para a mulher, o Masculino caracteris- ticamente impele para diante; para o homem, as caracte- risticas do Feminino retém. (Ambos encontram expres- so no processo de individuacao na segunda metade da vida.) Para a mulher, o Masculino significa redengao da consciéneia. A caréncia aparentemente maior da mulher no relacionamento com um homem e com 0 Masculino, ¢ a independéncia aparentemente maior do homem para com a mulher e 0 Feminino estao relacionados com esta situago basica, mesmo se a projegio do Masculino da mulher sobre um homem desempenha um papel mais importante no desenvolvimento de sua consciéncia do que o proprio homem. Embora a consciéncia da mulher seja diferente, em natureza e énfase da consciéncia do homem, a mulher é forgada a alienagao do Self a servigo do desenvolvimento da consciéncia. E compelida a desenvolyer também o la- do Masculino, sem 0 que nao é possivel a realizacao cul- tural”? No protétipo mitol6gico de processos psicolégicos, a libertagao do Feminino em relagao ao poder do ursboro Jung, “As Relagdes"; Emma Jung, “On the Nature of the Animus’, in Animus and Anima (Analytical Psychological Club of New York, 1957); M. Esther Harding, The Way of ali Wornen (New York, 1933 28 patriareal 6 tarefa do herdi, que deve resgatar do dra+ kao a virgem capturada. Em contraste com o urdboro pa- triarcal, 0 Masculino arquetipico agora aparece sob for- ma individual e pessoal, conduz 0 Feminino — como mulher ou como anima libertada dos poderes do urdboro paterno e materno — ao seu préprio dominio, 0 dominio do patriarcado, Além dos incontaveis exemplos dos contos de fada de todos 08 povos, encontramos esta constelagéo mitolé- tea, por exemplo, na historia da vitéria de Perseu sobre 0 dragao e na historin da libertagdo de Andromeda ou na libertagao de Brunilda por Sigeufredo. No dltimo caso, 0 poder impressionante é caracterizado por dois simbolos Um 6 Wotan, que como uréboro patriarcal fascina sua prisioncira; 0 outro é 0 Haberlohe, o muro de chamas, que, como cireulo urobérico, cerca Brunilda adormecida, © que o herdi deve transpor. © her6i, 0 Masculino libertador, é tanto uma forea “externa” como uma forga “interna”. Isto significa que 0 processo pode percorrer um trajeto no qual um homem e parceiro “verdadeiro” assume o papel libertador da luz da consciéncia e dissolve a velha forma de cativeiro no inconsciente ou, como alternativa, pode ser um Masculi- no “interior”, uma forga de consciéncia na propria mu- Iher, cujo ato de libertagao tem éxito. Normalmente, am- bos acontecem de modo simultaneo, na medida em que a propria qualidade interior da mulher de consciéncia srquetipicamente masculina é projetada primeiramente sobre um homem externo. Mas em qualquer caso, para 0 yo da mulher este “agente” masculino aparece como algo “oxterno”, “mais forte” e independentemente auténomo. © ego feminino tem a absoluta, e em certo sentido, corre- (a, conviegao de que nao pode realizar este ato com a for- (1 dlo “proprio ego”, e de que depende da ajuda do poder Masculino arquetfpico para a “abrir” psiquicamente na a morte-matriménio com 0 urdboro patriareal e fisicamen- te no seu casamento real com um homem, de modo que também a sua libertagao para a consciéncia esta presa a pessoa do heréi. Somente em formas posteriores e mais elevadas de desenvolvimento é que esta forca arque- tipicamente masculina pode ser experienciada e conheci- da pelo que é, como algo interior, a tal ponto que a mulher atinge a “autonomia”, isto 6, uma relativa independéncia de seu parceiro externo. Na transigao da fase do uréboro patriarcal para a do patriareado, o heréi masculino parece portanto ser ne- cessério e um passv & frente para o desenvolvimento da consciéneia. O desenvolvimento da consciéneia apresen- tado em As origens e a historia da consciéncia ocorre den- tro de uma tensio de opostos criada pelo ego e pelo in- consciente, por cujo intermédio o ego pode se fortalecer, 0 sistema consciente pode ser formado, e a esfera pessoal pode ser delimitada da esfera impessoal. E por esse mo- tivo que neste confronto ha uma desvalorizacao do Femi nino arquetipico, 0 qual, do ponto de vista maseulino, parece estar vinculado e identificado aos poderes do in consciente. O desdobramento patriarcal da mitologia da lua para a mitologia do sol — assim como a mudanga de posigao do Femninino como deusa por meio de quem a ter- ra ea fertilidade das coisas vivas estao abrigadas, para a outra, como esposa, que governa somente o mais estreito circulo familiar, bem como a mudanea, do predominio do individuo do sexo feminino no grupo, para o Estado mas. culino — nao pode ser conseguido a menos que o Mas- culino acentue negativamente o Feminino. Mitologicamente este proceso corresponde a fase da batalha entre o heréi e o monstro devorador urobérico; sociolégica e politicamente, é expressa no desenvolvimen- "Ver abaixo, pp. 57s, 30 to de uma cultura patriarcal e leva, no desdobramento do relacionamento entre homens e mulheres, ao casamen- 10 patriareal como a base da familia e da vida patriarcal. A linha patriarcal do desenvolvimento da conscién- cia leva a uma condigio na qual os valores masculino- patriareais sao dominantes, valores esses freqiientemente concebidos em oposic&o direta aos do Feminino arque- ipico e do inconsciente. Este desenvolvimento, dirigido pelo canone cultural arquetipicamente condicionado e impresso no desenvolvimento de cada crianca nas eultu- identais, leva A separagao entre consciéneia e in- A evolugio do sistema consciente independente com um ego masculino como seu centro, & supressao do inconscionte e 1 sua maior repressio possivel do campo do vindo do eyo. Hstamos empregando “patriareal” e “matriareal” cmno termos psicolégicos que devem ser aplicados ape- has secundariamente a condigées politicas, esferas de influéneia ete. Por conseguinte, uma cultura “patriarcal” © seus valores esto em oposigao aos valores e atitudes validos para uma consciéncia “matriareal”, que é, ela pr6- pria, uma forma “primaria” de toda consciéncia e cuja representante preferida é a mulher. Neste sentido, é um passo a frente no desenvolvimento quando uma conscién- cia patriarcal substitui uma consciéncia matriarcal. Mas quando se sabe das fraquezas e perigos psicolégicos da cultura patriarcal, cuja forma extremada no Ocidente con- temporaneo levou a uma crise que colocou em perigo a humanidade inteira, se evitard o erro de encarar a “cons- ciéneia matriareai” como apenas um legado areaico e 0 Feminino arquetipico como “relativamente nao-desen- volvido” Entretanto, podemos penetrar o complexo problema du consciéneia ocidental moderna na sua forma patriar- cal somente quando tivermos reconhecido a necessidade a1 do desenvolvimento da consciéncia ao “extremo patriar- cal” e sua oposigao a consciéncia matriarcal, Somente entao podemos também captar a significagéo daquilo que, simbolicamente descrito como psicologia “masculina” ¢ “feminina”, determina o desenvolvimento normal, bem como 0 anormal, de pessoas modernas de ambos os sexos, Como discutimos no ensaio seguinte, para a mulher a figura central da consciéncia matriarcal 6 0 ursboro pa- triareal como lua que a compele A entrega do Self, isto é, 4 sua rentincia & conservagio do Self no relacionamento primal com a mae. Mas enquanto esta entrega do Self traz a mulher sua propria experiéncia de um nivel profundo do Feminino, “a libertagao da cativa pelo herdi”, a liberta. $40 do dominio do uréboro patriarcal pelo homem, coloca novamente em perigo sua esséncia, apesar de ser um deson- volvimento necessario. Este 6 o perigo da perda do Self Independentomente de o patriarcado ser primitive oualtamente civilizado, quando a mulher é integrada nelo e subordinada aos seus valores, o individuo do sexo mas- culino torna-se para ela o representante da consciéncia ¢ do desenvolvimento da consciéncia. Isso dé ao homem uma preponderdncia psicolégica que determina o “fené- tipo do casamento patriarcal tanto quanto determina o lugar da mulher na vida. Ocasamento na era patriareal, que, em nome da bre- vidade chamaremos “casamento patriareal”, engloba int meras situagdes psiquicas nas quais os sexos se relacio- nam entre si. Sob a falsa aparéncia de formas patriarcais, uma multidao de complicagdes emocionais esta escondi. da nesses casamentos, complicagées essas que se encon. tram na raiz de um grande niimero de dificuldades mo. dernas no casamento e na criacéo dos filhos. gong Neste contexto, fenétipo refere-se A uparéneia exterior, om contraste ‘genstipo” que designa a verdadeira estrutura psfqui 32 O fato de que as variedades do casamento patriarcal vom preservando sua forma hé milénios prova que, de certa maneira, oferecem modos de vida emocionalmente viiveis tanto para homens como para mulheres. Muito embora o casamento patriarcal represente um perigo con- siderivel para o desenvolvimento da mulher, as chances que cla tem de realizar suas necessidades interiores den- tro dele — mesmo que seerctamente — sao suficien- temente grandes. Por esta raziio, a forma patriareal de casnmento nao foi obvinmente sbalada até os tempos mo- dernos. Com bastante freqiiéncia, porém, acontece que, examinado main de perlo, vemos que a aparéncia pa- triarenl constitu apenas a forma externa, por assim di- wer, & pernona, de um casamento por detrés do qual estao cults formas de relacionamento marital que se desviam do putriareado ou se opdem diretamente a ele. © casamento patriareal 6 uma solugio coletiva na qual o homem e a mulher, 0 Masculino e 0 Feminino, se unem num estado no qual cada um ampara 0 outro, de modo que conseguem uma simbiose que constitui a colu- a vertebral da cultura patriarcal. A preservacdo desta instituigao mais transpessoal — isto 6, a da cultura pa- triarcal, e a seguranga do individuo nela inserido — er- #ue-se como um significado transpessoal acima do rela- cionamento das partes envolvidas. Mitologicamente, a estabilidade da cultura patriarcal esta refletida no rela- cionamento do céu e da terra em sua interdependéncia mitua, cuja certeza serve de garantia para a existéncia continuada do mundo. Espera-se que os parceiros no ca- ssmento correspondam a esta constelagao: 0 hamem sim- holiza 0 céu ou o paraiso e a mulher, a terra, como néo spenas 0 mito, mas também o rito revelam claramente ¢m intimeros costumes referentes ao casamento, A fim de fazer esta identificacéo simbdlica, ambos os parceiros dovem renunciar & sua bissexualidade psicolégica natu- aa ral, cuja existéncia em versées modernas 6 mostrada, entre outras coisas, pelo fato de que o lado feminino do homem se constela como anima, e o lado masculino da mulher, como animus.” A identificagao do individu do sexo masculino com a estrutura da consciéncia e do ego, que deixa seu lado feminino inconsciente, facilita psico- logicamente esta espécie de unilateralidade, Aconexo do homem com a mulher é agora determi- nada de maneira caracteristica: a consciéncia puramente masculina dele se relaciona somente com a feminilidade da mulher em quem ele projeta sua feminilidade incons- ciente sob a forma de anima. Du mesmo modo, a mulher se relaciona conscientemente como puramente feminina com a masculinidade do homem e projeta nele seu pré- prio lado masculino inconsciente sob a forma de animus, O fato de esta divisao de papéis aparecer no mito signifi- ca que o cénone cultural patriarcal, segundo o qual todo menino ¢ toda menina sao criados, coloca numa posigao central e dé uma honra especial a esta limitada amplitu- de dos modos possiveis de relacionamento. Este alicerce sagrado, arquetipico, confere as instituigdes sociais eri gidas de acordo com ele a inviolabilidade dbvia necess: ria a sua existéncia continua. Isso significa que um ho- mem “feminino” e uma mulher “masculina” — contrérios & verdadeira estrutura psfquica de um sem ntimero de individuos — sao agora vistos como formas repulsivas de existéncia humana que sao suprimidas logo de inicio, © esses individuos lutam para esconder 0 melhor que po- dem suas préprias naturezas desviantes. O resultado desta situagao coletiva é uma polariza- a0 do Masculino e do Feminino, homem e mulher, que parece criar uma situacéo inequivoca. Este cardter ine- uivoco conduz & sensacao de seguranga que diz respeito Jung, “As Relagies' 34 ‘orientagio da consciéncia na cultura patriarcal, na qual Masculino = homem e Feminino = mulher, e que exige como scu ideal que homem e mulher se identifiquem em termos desta inequivocabilidade, Esta estrutura simbiética constitui o fundamento da familia e da cultura patriarcal, pois garante nao apenas seyuuranga @ inequivocabilidade, mas também uma ten- niw inerentemente fértil dos opostos entre Masculino e Fominino, homem ¢ mulher, Entretanto, gragas a esta nituagio coletiva que parece tor sido originalmente su- portavol para um ntimero rclativamente grande de pes- Boas, todow extox componentes da natureza “bissexual” do individuo que nie correspondem ao tipo ideal requeri- do so reprimicos ou suprimidos. Mas isto significa que todor enter componentes geram uma crescente tensdo no Inconnciente ¢, de modo semelhante, aos elementos de roma reprimidos pela moralidade predominante* cons- (ituem as “reservas” psiquicas potenciais que, caoticamen- lo, dio forma aos acontecimentos em tempos de tumulto © revolugao.? Quando, porém, um grande mimero de pessoas ja se desenvolveu em diregéo 4 individuacdo, a tal ponto que isi nao pode suprimir 0 carter “equivoco” de sua nature- zat humana em favor de um ideal coletivo baseado no ar- quétipo, acontece uma crise no casamento patriarcal ¢ na estrutura patriareal da cultura. ‘Mas, em qualquer caso, a simbiose cultural do casa- mento patriarcal atua de maneira muito menos favor vel para o Feminino e as mulheres do que para o Mascu- “Newman, Depth Psychology and a New Ethic . ‘papel signlieativo que homens e milleres "perversos" desempenham «om revels, nsurrigse te, deriva dass lipo na penfeia da sociedad Hutrarel seus eompanheires de viagem com grande reserva de poderes st {nimi Inumeravels exemplos podem ser enconteados nas Revolugdes Fram tn Navinta e Russa, Bvidentemente, noo dlxarfamos de reconheeer 0 ear {ar nnnte vezes herd © positive de revolaciondrio por estar lino e os homens. Em virtude da cireunstancia de as mu- lheres serem compelidas a abragar uma feminilidade inequivoca, enquanto os valores da consciéncia numa cul- tura patriarcal sao masculinos, elas permanecem nao- desenvolvidas neste ambito e dependem da ajuda dos homens. Mas 6 por isso que os homens se consideram superiores e véem as mulheres como inferiores. Os efeitos negativos do patriarcado para o Feminino ¢ para as mulheres constituem um circulo vicioso no qual os homens (forgosamente) limitam as mulheres ao cam- po estritamente feminino, mas com isso a impossibilitam de participar autenticamente da cultura patriarcal ¢ a obrigam a aceitar um papel no qual ela é considerada segunda colocada ¢ inferior. Mas os homens baseiam sua justificagao da desvalorizacao da mulher e do Feminino, © as mulheres baseiam sua suposta “inferioridade natu. ral” no fato de que esta atitude coloca a mulher em um papel no qual o homem tem de trati-la como se ela fosse uma sua filha menor de idade. Uma situagao destas nao pode ter senao conseqiiéncias catastréficas para a crian- ga do sexo feminino, que tem de acabar aceitando estes valores patriarcais, bem como a desvalorizagao de scu préprio Eu. A oracdo matinal diria do judeu que agrade- ce a Deus por nao ter nascido mulher, assim como a psi- cologia de Freud, baseada na “inveja do pénis”, sao ex- Press6es extremadas desta situacéo patriarcal e do perigo a0 qual o Feminino ¢ as mulheres estéo expostos na simbiose cultural do patriarcado. Mas onde esta simbiose de fato atua e a mulher no patriarcado suprime a propria natureza ou renuncia a ela, a mulher torna-se prisioneira e seu casamento acaba por ficar semelhante a um harém. Psicologicamente, isto significa que, neste tipo de casamento, nao apenas sua consciéneia patriarcal continua néo-desenvolvida, mas também que ela renuncia A consciéncia matriareal que 36 Ihe 6 especifica como mulher, pois nao corresponde aos valores patriarcais, ou se opde a eles. A identificagao com os valores patriarcais que ela no adquiriu por esforco proprio, mas apenas repete como um papagaio, leva a ima indoléncia e a uma danificacdo da consciéncia e co- loca em risco 0 desenvolvimento psicolégico da mulher. ila continua numa forma de psicologia “filial” sob 0 pro tetorado do patriarendo, uma forma na qual o individuo «lo sexo masculino carrega a projecio do arquétipo do Pai, ea mulher permanece subordinada a ele, infantil e ene correndo riseo, esta mulher filial nao 6 a pessoa crintiva que emergiu no relacionamento com 0 urdhore patriareal. No mundo patriarcal, os ho- monn 60 Masculino atribuem a si proprios as qualidades patornais'e maternais; 0 homem da seguranga & mulher; ole & nao apenas o gerador e portador do espirito ou da conseiéneia, mas também o protetor e o provedor. E desse modo que a esposa patriarcal sofre a limita- ito, na verdade, a atrofia do Feminino. Deixar para tras os estagios anteriores — relacionamento primal com a Grande Mae, que constituiu a base do senso feminino do Ku, e 0 urdboro patriarcal, que estabeleceu o relaciona- mento dela com 0 campo transpessoal — é significativo na medida que garantir a interagao viva, dinamica, de forgas que constituem o desenvolvimento progressivo. Mas fazer da mulher uma prisioneira do patriarcado detém 0 «desenvolvimento ulterior. Sua vida e seus interesses sio0 reduzidos aquilo que é meramente pessoal, de fato, a0 mais estreito campo material; e agora, repetindo como tim papagaio as palavras dos homens, surge uma psico- logia do “animus”, um sintoma de que ela cait sob 0 po- der do homem e do Masculino, que indica deteriora¢ao, om lugar do poder gerador matriareal inerente ao Femi- nino ¢ mulher. a7 Mas, a despeito de tudo isto, temos de falar de uma simbiose cultural do patriarcado, pois, quando analisa- mos mais profundamente a. situagdo, encontramos a ima- gem do poder do homem e do Masculino, compensada por uma inverso de longo aleance da “relagao de poder”. A dominagéo externa por parte do homem e de sua psi- cologia encontra seu complemento na projecao da anima do homem sobre a mulher e na regresséo que acompanha esta “perda de alma”. Na situagao patriareal, a anima, a figura simbélica dos poderes do sexo oposto, arquetipi- camente femininos da psique no proprio homem —é re- primida para o inconsciente; mas esta especie de cons- telacdo conduz necessariamente a projec do elemento reprimido (isto 6, a anima) sobre o mundo exterior, o qual, neste caso, 6 a mulher. Deste modo, 0 homem “perde” a alma, e, por conseguinte, se perde inconscientemente para a mulher. Esta perda torna o homem emocionalmente infantil, taciturno, instavel, suscetivel, dependente da mulher em termos dos préprios sentimentos.® Uma constelagao deste tipo leva ao predominio da Grande-Mae, isto 6, regressao a um estagio anterior de consciéncia — no qual o homem se relaciona com a mu- Iher como crianga ou amante juvenil e vigoroso. Tal situagéo se manifesta de diferentes formas no introvertido e no extrovertido. No nivel mais baixo, esta perda de alma transforma o homem em um marido domi- nado pela mulher, que vive com ela como se ela fosse sua méde, de quem ele é dependente em todas as coisas refe- rentes a emogées e vida interior. Mas até mesmo 0 caso relativamente positivo, no qual a mulher é a senhora do dominio interior e mae do lar que, simultaneamente, tem de lidar com todas as perguntas e problemas do homem ligados a emogées e vida interior, até isso leva a uma fal- * Jung, “As Relagées’ 38 ta de vitalidade emocional e a uma unilateralidade esté- ril no homem, Ele descarrega somente os assuntos “ex- ternos” e “racionais” da vida, profissio, politica ete. Por causa da perda da alma, o mundo que ele modelou torna- se um mundo patriareal, que, por ser desalmado, repre- senta um perigo sem precedentes para a humanidade. Neste contexto, nao podemos nos aprofundar ainda mais na importancia de um desenvolvimento completo do po- tencial feminino arquetipico para uma nova, futu so- ciedade. Esse tipo de reversio no relacionamento psicologico de poder e dependéneia entre homens © mulheres com certeza pode ocorrer por letras da fachada do casamento patriarcal e dentro de uma simbiose cultural “bem suce- dida”. Realmente, a forca da simbiose patriareal s6 faz tornar maior por meio desta espécie de entrelacamento inconsciente entre homem e mulher. Com extraordinéria freqiiéneia, a esposa inteligente sabe como esconder sua ditadura dos olhos do mundo e, com certeza, dos olhos do marido. Pois quanto mais patriarcal e tirénica for a per- sona de seu marido, mais ele é regido de dentro pela ani- ma.” No patriareado, todas as vezes que uma mulher «que nao a esposa carrega a projecdo da anima que rege 0 homem —e se essa mulher néo pode ser incluida na es- (rutura patriareal que, na verdade, é fundamentalmente poligamica tanto oficial quanto nao oficialmente — se- kue-se a dissolucao do casamento patriareal estavel, jun- tumente com uma transi¢éo para um estdgio superior, mais complicado e mais consciente do relacionamento homem-mulher. Uma outra forma pela qual os homens perdem a alma para o Feminino e para a mulher dentro da simbiose pa- (rinreal & expressa de maneira um tanto oposta na ade- th so fandtica dos homens ao patriarcado que desvaloriza continuamente o Feminino. Assim o homem se relaciona tiranicamente com a mulher, até 0 ponto do sadismo se- xual e do despotismo patriarcal, de modo que a mulher, como é tipico sob a lei patriarcal, j4 nao existe por direito préprio, mas é propriedade do homem. Mas, mesmo nes- ta situagdo, a dependéncia psiquica do individuo domi- nante do sexo masculino em relagéo A mulher que ele domina ronda no pano de fundo. A dependéncia masculi- na se expressa, por exemplo, no predominio do arquétipo da mae, arquétipo esse que pode freqiientemente ser de- monstrado no predominio da mae pessoal ou da esposa como mie dos filhos, como no casamento patriarcal ju- daico. Muito embora A primeira vista possa parecer pa- radoxal, uma outra forma pela qual o arquétipo da mae pode dominar o homem se manifesta como a dependén- cia dele em relacdo 4 mulher como objeto sexual. Pois o fato de ele ser dominado pelo sexo corresponde a0 domi- nio da Grande Mae sobre o filho-amante, o qual na ver- dade é para ela um instrumento que serve os objetivos coletivos da espécie. Visto que a simbiose patriarcal esta baseada numa cisio —isto 6, no isolamento de uma consciéncia unilate- ral do inconsciente que se ope a ela — aqui também sur- ge 0 perigo de doenga psicologica. Enquanto a pessoa que estiver correndo perigo continuar a ser monopolizada e mantida cativa por uma solugao coletiva — por exemplo, pelos valores do cdnone cultural patriarcal —, 0 perigo é coletivamente minorado. Isto acontece de acordo com a ética antiga gragas & ajuda da psicologia do bode expia- torio,*' a qual, neste caso, leva culturas patriarcalmente °F seu aspacto transpessoal, o complexo de mae de Don lenin 6am exem= plo disso Ver o capitulo “A Grande Mae” in Origens e histiria, pp. 19-101 “Neumann, Depth Psychology and a New kihie 40 informadas, tais como a judaico-crista, a mugulmana ea hinduista, a “reconhecerem” o Feminino ¢ as mulheres »mo 0 mal. O Feminino e as mulheres so portanto su- primidos, eseravizados, externamente eliminados da vida, ow até mesmo, como em julgamentos de feiticeiras, per- seguidos e levados & morte como portadores do mal. Ape- 15 0 fato de que o homem nao pode existir sem a mulher dificultou 0 exterminio, sob outros aspectos tao popular, «deste “mau” grupo de seres humanos que tem de carre- ar a projecdo do inconsciente pernicioso, Quando uma avaliagao coletiva como a patriarcal jé nao pode persistir em virtude da individualizagéo pro- xressiva da humanidade, tampouco é possivel a psicolo- Kia coletiva do bode expiatério, Enquanto outrora a mu- Iher era considerada a raiz de todo o mal humano ¢ terreno, hoje em dia dificilmente alguém a considera a causa da Guerra Mundial. Agora a mente coletiva consi- dera idéias ou imagens como agentes, como forgas do des- Lino. Culpa o capitalismo ou 0 bolchevismo por todos os nossos males, culpa a religiao ou a falta dela, as condi- «oes sociolégicas ou as constelagdes astrolégicas, isto 6, sis condigdes na terra ou nos e6us— chamadas, por exem- plo, “os tempos”, mas nunea a realidade do individuo. Mas se persiste uma cisao psfquica, e nenhuma so- lugao coletiva pode superé-la, ela deve ser experienciada individualmente em maior grau do que outrora e levar a doengas individuais — a neuroses. A presenga de neuro- os « freqiientemente a indicagao de que estamos lidando com uma pessoa cujo desenvolvimento individual ja ndo wy cneaixa no padrao antigo, coletivo, e que, conseqiien- tomente, adoeceu ou é compelida a encontrar novas for- mun dle relacionamento.% ‘wer, incapacidade do individuo de se adaplar ao enone mentor wenietivis pode Tevar @ uma deonga “ativien” 4. A mulher que é privada da prépria vitalidade inte- lectual ou espiritual por meio da projegao do seu animus sobre 0 individuo do sexo masculino na simbiose patriar- cal regride aos estdgios pré-patriarcais do desenvolvimen- to psiquico. Isto pode levar, caracteristicamente, a um re- forco do arquctipo da mae na mulher e a identifieagao da mulher com ele. O relacionamento primal de Deméter e Coré é revivido, ¢ se ela propria nao for capaz de assumir © papel de mae, o carditer do casamento supostamente patriareal é determinado pela familia da esposa. No caso extremo, a sogra do homem — a mae de sua esposa — as- sume 0 controle. Mas na situagao matriarcal, o irmao por parte de mae, como a verdadeira autoridade, pode tam- bém governar a vida da irma, mais do que o marido, Uma outra forma de regressao 60 retorno ao urdboro patriareal. Em nivel pessoal, isto se manifesta como um aumento de forca da imago do pai a qual a mulher retor- na. Por exemplo, apés um breve periodo durante o qual © marido é foreado a desempenhar o papel patriarcal- paternal, os valores, opinides e atitudes do pai da mu- Iher tornam-se novamente decisivos para ela e minam 0 relacionamento dela com 0 marido, Para outro tipo de mu- Iher ou outro nivel de desenvolvimento, 0 urdboro pa- triarcal pode ser projetado sobre um contetido trans- pessoal. O relacionamento pessoal da mulher com o marido pode ser completa ou quase completamente re- duzido a nada quando cla empenha sua fidelidade a um movimento, grupo, seita, grande homem, ou algo afim, ou fica fascinada por eles. Embora ela freqiientemente mantenha contato com os filhos, em casos extremos es- ses relacionamentos também podem desmoronar, em vir- tude de sua regressao. Quando isso acontece, o dragao da do conseguiu devorar-Ihe “corpo ¢ alma”, uma ex- 0 que caracteriza adequadamente: tal situacao ar- Complieagdes que surgem da simbiose patriarcal, ¢ us tontativas para escapar desta situagao coletiva e che- ur a solugdes e relacionamentos individuais provocam um niimero nao desprezivel de problemas matrimoniais modernos, Antes de delinearmos fases adicionais, mais individualizadas, do desenvolvimento da mulher, vamos unalisar um sonho que ilustra como foi constelado o pro- hema do cativeiro de uma determinada mulher moder- na no patriarcado, 0 sujeito do sonho, uma mulher judia na primeira metade da vida, que vivia em Israel, conheceu um arabe que queria se casar com cla ¢ Ihe prometeu uma vida magnifica, com a condigéo de que ela renuni religido. Depois de algumas ditvidas, ela concordou e co- megou a viver uma vida paradisiaca no palicio do arabe. Mas aquela vida no paraiso era perturbada por um fend meno que assim era descrito pelo sonho dela: Todas as noites, uma coruja aparecia e despedacava uma dguia. E todas as manhis, ela era obrigada a ver os despojos da iyguia, pregados na parede. O sonho terminou quando a mulher comegou a escrever uma carta a avé, na qual pe- dia deseulpas por haver renunciado a sua religiao. Vamos tentar interpretar este sonho. O casamento «la mulher com o érabe criou uma situagao na qual o re- lucionamento dela com o homem era conforme exclusiva- mente ao prinefpio do prazer, de maneira infantil e im- pessoal. A mulher pagou por esse paraiso sensual do inconsciente com a rentineia a sua religiao. Uma vez. que a sonhadora nao era religiosa, 0 sonho nno parecia estar tratando de algo essencial de que ela houvesse desistido. Mas abandonar o lado dela mesma quo a diferenciava do érabe nao deixava de ter conse- qiiéneias. O drama que estava sendo encenado aconteceu humm nivel mais profundo e impessoal, entre poderes, que, de inicio, pareciam nada ter a ver com a consciéncia ¢ a 43 vida da sonhadora. ‘Todas as noites, uma coruja estra- galhava uma dguia. A guia 6 um simbolo arquetipico masculino do sol, dos céus e do espirito; a coruja, por ou- tro lado, simboliza a noite eo Feminino arquetfpico. Alam disso, como simbolo da sabedoria do noturno, a coruja por si mesma néo esta associada a nenhum simbolismo ne- gativo; ¢ aquela que enxerga no escuro, isto 6, sua in- tuicdo® funciona abrangendo os processos obscuros, inconscientes, Enquanto principio da sabedoria femini- na, a coruja é um simbolo tao positive quando surge como aave de Atena, quanto é negative quando surge como a ave da bruxa, que utiliza a mesma sabedoria a servigo do mal. O Feminino arquetipico, tao submisso e bem-com- portado no harém, durante o dia, descarrega sua desfor- ra do mesmo modo que a coruja noturna na dguia a quetipicamente masculina. Enquanto a éguia rege o dia e aconsciéncia, a coruja precisa se esconder. Mas duran- te a noite, cla nao somente rege como também destr6i 0 principio arquetipico masculino, o qual, é claro, desperta para uma nova vida todas as manhas, com o sol. O simbolismo do sonho revela nao somente a rever- sdo da posigao de dominagao patriarcal a qual ja nos re- ferimos e no qual o “lado interior” é representado pelo mundo noturno da coruja, mas também o efeito insidio- samente prejudicial que o Feminino arquetipico reprimido tem sobre o Masculino arquetipico, A oposieao patriar- calmente reforcada entre Masculino e Feminino, dia e noite, consciente e inconsciente, leva a uma batalha ocul- ta, porém mortal entre os sexos que vocifera por debaixo da superficie da dominagao patriarcal e da simbiose mz culino-feminino e das profundezas noturnas do relacio- namento inconsciente. “Jung, Nos Pricolégicas, CW 6, Definigio 25. 44 A acvitagio aparentemente inocente do paraiso do hurém, por parte da mulher, e sua agradavel prontidéo om se subjugar ao homem tém conseqiténcias ocultas porém terriveis.* Em sua regressao para a hostilidade matriareal para com 0 individuo do sexo masculino, sim- holizada pela coruja como a Grande Mée, o Feminino ar- «uctipico vinga-se do Masculino arquetipico que o humi- hou @ abusou dele como um objeto de prazer. O bom Feminino arquetipico regenera 0 Masculino a noite, per- mitindo-lhe renascer com 0 novo dia; aqui, porém, o Fe- minino mau dilacera 0 Masculino, assim como, todas as hoites, Penélope resistia a seus odiados pretendentes, destruindo 0 que tecera durante o dia. No nivel subjetivo, isto 6, que se refere a psique da sonhadora, o feito da coruja significa mais do que a des- truigo do prinefpio do espirito arquetipicamente Mascu- lino e mais do que a possibilidade ativada de vida arquetipicamente feminina, instintiva, noturna (isto é, inconsciente). Por seu casamento com o arabe, a mulher pgou o alto prego do sacrificio de sua religiao, um prin- ipio espiritual pertencente A sonhadora que é na verda- de coletivo, mas que, nao obstante, representa uma for- ina mais elevada de consciéncia do que o lado dominante, ontrangeiro, instintivo, representado pelo arabe. Neste nentido, a coruja também representa um aspecto nega- tivo, regressivo do principio feminino na propria sonha- dora que, todas as noites, repetidamente mata o lado arquetipicamente maseulino da prépria consciéncia, a Aqui. A submissao ao patriarcado e o sacrificio de seu lado oupirituall determinam a consciéncia da sonhadora. Isto “fextrennmnoeslarecoer que anarrativa de Aplin da isin de Amor i ituin Mies, nqqui, a invasio do poder feminino hostil é represent. lero sie do Pa. Nena Aner ve 46 comporta duas consoqiiéncias: uma delas é0 parafso sen- sual de vida instintiva; a outra é 0 drama da coruja e da guia no inconsciente coletivo. Interpretado no nivel ob. jetivo, onde ocorre entre a sonhadora e seu marido, entre Feminino e Masculino, o drama da coruja e da guia sig nifica isto: a vinganga do Feminino sobre 0 Masculine regressao ao nivel de hostilidade matriareal para com ox homens, isto é, derrota do Masculino, com a ajuda da pro. pria vulnerabilidade ao instinto. E 0 padrao de Sansio e Dalila: a Grande Mae com sua vitsria noturna e a eastra. ¢40.¢ a mutilagdo do Masculino arquetfpico, com a ajuda dos impulsos aos quais o Masculino é vulnerdvel, __Todavia, no nivel subjetivo, no qual a coruja ea dguia sao atitudes da propria sonhadora, eis o que o sonho sig- nifiea: sua prontidao em sacrificar os seus bens espiri. tuais, 0 relacionamento coletivo com o espirito-pai (reli. giao) em troca de uma vida inconsciente de prazer condus a dominagao catastrofien da Mae Torrivel, que torna a Pessoa Inconsciente e traz prazer, mas que também ani- duila todas as conexdes com o prineipio masculino, com a consciéncia, ¢ com 0 lado espiritual da psique. Nas mu. Theres modernas, esta regressio 6 expressa negativamen. te, tanto interna quanto externamente. Na pritica, isso causa danos ao marido e ao relacionamento dela coma ele tanto quanto ao proprio desenvolvimento dela, o qual na pode permanecer sem conseiéncia, nem apenas noturno e semelhante a coruja, Em contraste com a coruja que mutila,® que 60 as- pecto do Feminino arquetipico hostil ao dia, a avé da so. nhadora é 0 aspecto humano da Grande Mae. O processo pelo qual a sonhadora ira tornar-se consciente da situ: ao faltosa, e ser redimida num mundo que a torna in. “Aqui a cory, simbolo postiv da sabedoria fominin, 6 nega ‘egressiva, pois despedaga a fguia “de maneira nao natural” Negetvamente 46 conaciente, comega com sua carta de desculpas a av6. A avo como Grande Mae é o Self, que protege o individuo e ox valores do Feminino arquet{pico que afirmam a cons- ciénein necessdria ao desenvolvimento da inteireza, ¢ a qual, quando 6 chegado o momento, determina os proble- mas da vida, particularmente da segunda metade da vida, través dos quais a inteireza deve ser realizada no pro- cvsso de individuagao. Mas 0 processo de individuagao perlence a. uma fase do desenvolvimento da mulher que jt superou a simbiose da cultura patriarcal. Enquanto os problemas ji mencionados sao resol dos no interior da simbiose do patriarcado, as forasteiras no patriarcado ja nao pertencem a esse Lerritérie parti- cular. Como forasteiras, clas sfio, em grande medida, “pre- cursoras”, Claro, aquelas mulheres que permanceem fi- xadas no relacionamento primal como filhas olernas da Mie, ou como filhas eternas do uréboro patriarcal (isto 6, presas em estagios pré-patriarcais de desenvolvimento), néo conseguem chegar a um casamento patriarcal nem a uma simbiose patriarcal. Mas, para as ndo-redimidas do patriareado — isto 6, para aquelas mulheres nas quais a decepedo feminina com o patriareado esta se tornando visivel —, a situagao é diferente. A necessidade e a prontidao do Feminino em deixar que o heréi o redima das fases pré-patriarcais de desen- volvimento esta ligada ao fato de que, arquetipicamente, 0 Feminino experiencia 0 Masculino como solar e trans- pessoalmente espiritual. O Masculino ¢ identificado com 1 atividade, a vontade e a consciéncia, ¢ o desenvolvi- mento rumo ao espirito masculino, assim como 0 é no jowenvolvimento da consciéncia patriarcal, na qual o pré- prio masculino assume esta identificagao. Mas todas as vozes que a mulher experiencia o homem individual como \um mero representante coletivo desses valores — isto 6, quando o homem corresponde a eles apenas na medida 47 em que ja atravessou os estagios arquetipicos do desen- volvimento consciente, mas como pessoa e como indivi duo nao os realiza de nenhuma maneira vital —, ela se decepciona com ele, pois ele corresponde apenas coletiva mas néo individualmente ao arquétipo do herdi redentor. Neste caso, a mulher que sofre por causa de um marido patriarcal que fracassa como parceiro antecipa interior- mente a fase de “confrontagao”, que se caracteriza pelo encontro de dois individuos, Visto que 0 casamento patriarcal 6 quase tao antigo como nosso conhecimento hi ‘ico — o conhecimento, como a histéria, somente é possivel com o predominio de uma consciéncia patriarcal —, as complicacées que o canone da cultura patriarcal acarreta para 0 Feminino sdo também muito antigas. Encontramos, por conseguin- te, esses tipos de situacao e suas solugées ja prefiguradas na mitologia. Isto é particularmente observavel na mito- logia grega™® que, em grande medida, 60 precipitado de conflitos fundamentais desencadeados pelo choque entre a mentalidade pré-grega, matriarcal, e os povos gregos patriarcais invasores. Assim, a tragédia do encontro de Jasao com Medéia reside nisto: embora Jasao tenha real- mente salvo Medéia do dragao, e a tenha libertad do mundo regido pelo pai dela, falhou, pois deveria ter de- senvolvido um relacionamento individual com ela, Aban- donou-a porque nao era um antagonista a altura da indi- vidualidade e da paixao dela obviamente perigosas, que nao podiam ficar contidas num casamento patriareal, Deixada com a desiluséo do fracasso do parceiro, Medéia regrediu a Mée Terrivel, que mata seus préprios filhos e vai-se embora na carruagem do dragao. Isto significa que "A origom individual dos mitos, ic mcr 8, sua estratificagho imbrienda, as novas retagies dacdas a eles, nada tém a ver com esta eonstelagio psicologica gue representa uma parte desses poderes, uma constelugin quo edita.e revise 08 mitos enquanto tas. 48 1 redengio pelo heréi— aparentemente obtida pela vit6- ria de Jasao sobre 0 dragdo — ficou incompleta. Encontramos o mesmo problema com Ariana e Teseu, mas sob forma diversa. Teseu também liberta Ariana, que o ajudara, do poder do pai dela, e entao a abandona. Mas neste ¢aso nao ocorre regressfo A Mae Terrivel; em vez disso, ela dé um passo muito mais positivo, progressis- {a1, em diregao ao urdboro patriarcal, passo esse que se revela como uma transigao de seu desenvelvimento. Dioniso encontra Ariana ¢ a liberta. O fracasso do herdi pessoal, terreno — Teseu — é eclipsado pelo relaciona- mento dela com 0 Masculino transpessoal capaz de edimir 0 Feminino. No desenvolvimento da mulher moderna, isto signi- ficaria que seu desapontamento com um parceiro pessoal realmente leva a desisténcia do relacionamento pessoal com um homem em particular ou com os homens em ye- ral, mas que esse mesmo desapontamento flui para di ‘0 do desenvolvimento emocional e espiritual de um re- lacionamento redentor com o transpessoal, por exemplo, de uma forma religiosa. Neste caso, nao devemos falar de uma regresséo a0 urdboro patriarcal; em vez disso, devemos cnearar a figura patriareal, urobsrica, de Dioni- 0, como um simbolo progressista do desenvolvimento fe- minino. Em contraste com este tipo de encontro positive com © uréboro patriarcal, vemos outros encontros na mitologia nos quais esse poder é regressivo e destrutivo. Encontra- mos, por exemplo, 0 resultado catastréfico deste tipo de situagao no mito grego das filhas de Minias. Por causa de sua tendéncia a permanecer esposas boas e fiéis — isto a cumprir o cfnone da cultura patriarcal, recusam-se a permitir que Dioniso as tome a forga quando passa triun filmente pela vizinhanga. Mas a abordagem de um quétipo — isto 6, de um poder transpessoal que, como 40 Dioniso, significa morte, redeneao, transformagao, em es pecial para as mulheres — é decisiva, e seu poder avas- salador ndo pode ser excluido da vida sem punigao, Por conseguinte, para aquelas mulheres, a tendéncia cons- tritiva artificialmente imposta da “boa esposa”, para nao admitir energias transpessoais prementes, leva a insani- dade na qual elas perecem. At6 mesmo as doencas mentais das mulheres de hoje podem ser determinadas pelas atitudes de uma psicolo- gia patriarcal tradicionalmente “fiel” e constritiva. O de- senvolvimento rapido ocasionado pela invasao do trans- pessoal excluido, nestes casus, e lurna-se negativo. Neste sentido, o fato de colocar em risco, na verdade o colapso, do casamento simbictico, patriarcal, pode constituir um dos diversos elementos necessarios ao desenvolvimento da mulher. Sempre que 0 encontro entre o homem e a mulher 6 necessiirio — 0 aqui, estamos falando do rela- cionamento entre dois individuos — um casamento de- finido tao-somente pela simbiose patriarcal e por seu ca- rater coletivo deve ser rompido, esta é uma assergio corroborada no apenas pelo grande mimero de divorcios, mas também pela cura de muitas doengas neuréticas das mulheres modernas e por seu desenvolvimento.” A“fide- lidade” é um problema central especialmente da psicolo- gia feminina, pois, muitas vezes, a fidelidade néo é um indicio de um relacionamento vital com 0 parceiro, mas apenas a expresso de letargia psiquica, e tolhe o pro- gresso necessario do ponto de vista do desenvolvimento para uma nova fase da vida. A quebra da fidelidade pode ento ser um sintoma necessario da luta do herdi, na qual um tabu que se tornou sem valor deve ser quebrado. A “fidelidade” 6 entao revertida, sendo precisamente a ati- tude que faz aquilo que o destino exige, mesmo se isso "Ver Neumann, Depth Psychology and a New Ethic 50 ‘nto correspouce a um eénone tradicional de valores trans- mitidox — isto 6, coletivos, Neste caso, a fidelidade a in- dividuagio, vale dizer, ao préprio destino e ao préprio dononvolvimento necessério, é mais significativa do que fa fidolidace a uma atitude pré-individual. Mas o que real- mente decide um conflito desse tipo, independentemente a como ele surge, é fatal e nunca subordinado a um jul- snmento coletivo que vem de fora. Im contraste com 0 casamento coletivo, patriareal «que, em tiltima analise, & contraido por clas ¢ familias, 0 problema do relacionamento individual — isto 6, do en- contro — torna-se evidente quando o relacionamento se lorna uma questao de amor individual, mais do que de impelido por forgas externas coletivas, como por exem- plo por grupos de energias interiores coletivas, tis como impulsos. Mas o relacionamento individual que toma sew Iugar como casamento por amor ao lado do casamento patriarcal tradicional" pode ainda existir dentro da nor- ma coletiva do casamento patriarcal. A situagao mudou somente nos tempos modernos «quando todo o relacionamento entre 0 Masculino e o Fe- minino, homens e mulheres, se tornou problematico. Vista mudanga se expressa no somente no relaciona- mento entre marido e mulher, mas também no interior «la prépria psique, ja que o relacionamento do homem com 0 préprio lado feminino inconsciente, a anima, e da mulher com 0 seu masculino inconsciente, comega a en- r na conseiéneia Aqui termina a psicologia do patriarcado e comega a psigologia do encontro, de entrega e devogio ao Self, da descoberta do Self feminino. Sao estas as duas wiltimas e mais clevadas fases do desenvolvimento psicolégico fe- oncontra-se no mito-con > rstitipo arquetpico desta situagio amorosa eno {do fila se Apuleto, a histria de Amor e Psique, BL minino. Sua descrigao ultrapassaria os limites de nosso ensaio, pois os problemas desta fase englobam quase to- dos os problemas da mulher moderna, na medida em que ela 6 realmente “moderna”, isto 6, nao apenas vive por acidente em nossos tempos. Ambas as fases pressupsem uma vit6ria interior sobre a simbiose do patriareado, 5 igualmente possivel, no processo, que o desenvolvimento feminino seja levado as tiltimas conseqiiéncias no inte- rior de um casamento que comegou de maneira patriar- cal e simbélica, ou que o proceso leve ao rompimento do casamento e a um novo relacionamento. Mas toda tran- sigdo de uma fase para outra somente pode se dar por intermédio de conflito psiquico, e a personalidade inteira deve ser envolvida. Uma crise desse tipo, mesmo se ocorrer no interior de um casamento, tem de envolyer ambos 0s parceiros, pois, para a mulher, uma mudanga no relacionamento entre homem e mulher também supée sempre uma transformagao correspondente no parcciro. Uma causa extremamente comum de conflitos entre casais e de di- vorcios esta no fato de que o desenvolvimento rumo a uma nova fase de relacionamento, vitalmente necessé- rio para um dos parceiros, esta tragicamente fadado ao fracasso em virtude da falta de compreensio do outro par- ceiro, ou de sua incapacidade de participar do desenvol- vimento. Em contraste com a polarizacao da simbiose patriar- cal, um verdadeiro “encontro” ocasiona um relacionamen- to no qual homem e mulher se relacionam como estrutu- ras conscientes e inconscientes, isto é, como pessoas inteiras. Em A psicologia da transferéncia, Jung discutia essa forma de relacionamento como um quatérnio ar- quetipico, isto 6, como um relacionamento quadruplo no qual consciente e o inconsciente de ambos os parceiros esto em contato. Isto engloba a natureza inteira de cada 52 ponson, por conseguinte, no caso do homem, nao apenas uu consciéncia patriarcal masculina, mas igualmente seu ludo fominino da anima, Mas isto nao é projetado incons- cientemente, de modo que o homem pareca, para si mes- mo © para sua contraparte feminina, como puramente imaxculino; a0 contrario, o homem e a mulher tém de se yelacionar igualmente com os lados feminino e masculi- no do homem, Em termos humanos isso produz uma ple- nitude de complicagées e problemas, pois 0 lado feminino da anima do homem 6 emotivo e de inicio ele nao percebe isso, de modo que s6 indiretamente e por meio do sofri- mento ele experiencia partes essenciais da propria na~ iureza, facetas que experimentou primeiramente na par- cvira como algo estranho e Feminino. Estes problemas exigem, contudo, 0 maior esforgo, nao apenas do préprio homem, mas igualmente da mulher que, por sua vez, tem «lv testemunhar 0 colapso de sua imagem de masculini- dade ideal, na medida em que vai se tornandoconsciente do lado feminino do homem. Com complicagdes semelhantes, isso ¢ valido tam- hom para a psicologia do animus da mulher, e sua cr vente pereepedo dela. Também esse proceso exige mui- lissimo da compreensao e da tolerdncia mtitua de ambos 0s parceiros. Conseqiientemente, nessa fase de encontros, 1 complicada multiplicidade de relacionamentos psiqui- cos entre homem e mulher ¢ de fato incalculavel tender as exigéncias desse tipo de situagao, contu- do, nao apenas garante um relacionamento vital e uma Lensdio de pélos opostos; mas ao mesmo tempo deixa que ‘iwesséncia tnica e individual de ambos os parceiros entre no relacionamento. Ja que o inconsciente da pessoa e sua inteireza so envolvidos no processo de transformagao da personalidade, deve-se renunciar ao aspecto exterior con- vonvionalmente coletivo da personalidade, e o carter {nico o singular do ser humano comega a dar seus efeitos ba sem ser perturbado pela persona.” Mas 86 entio as duas pessoas chegam a um verdadeiro encontro. Ali onde os niveis mais profundos da personalidade estao incluidos na Auseinandersetzung viva, as qualidades meramen- te individuais da personalidade da pessoa constituem 0 ponto de partida para experienciar o transpessoal em si mesmo e em sua contraparte. Esta forma de encontro é a forma mais elevada possivel de um verdadeiro relaciona- mento entre homem e mulher. Em prinefpio, para o homem a forma intima de rela- cionamento, simbolizada no quatérnio de transferéncia e que engloba o inconsciente, parece dificil e importuna, como uma espécie de cativeiro, e parece estar de acordo com a tendéncia feminina de formar relacionamentos de identidade. Evidentemente, a tendéncia de criar relacio- namentos de identidade constitui o fundamento da na- tureza formadora de comunidade do Feminino, que, na participation mystique, tenta, de quando em quando, res- tabelecer os vinculos e lagos primitivos da humanidade. Para a mulher, o que carrega o sinal de vida nao 6 0 agir, e sim 0 estar em comunidade. Para ela, isso nao é conver- sa durante as refeigdes, e sim a refeiedo compartilhada, nao é discussfio nem conversa, ¢ sim estar juntos lado a lado que é decisivo. Onde quer que isso verdadeiramente ocorra, conhe- cer ao outro sem palavras é uma forma de proximidade mais completa e mais essencial para o Feminino do que a postura face a face do Masculino, ego a ego e consciéncia aconsciéncia, que divide com mais freqiiéncia do que une. Um grande mimero de conflitos no casamento e nos relacionamentos depende desse forte contraste entre a natureza masculina ¢ a feminina, tornando a constela- ¢40 entre homem e mulher t4o extraordinariamente com- Jung, “As Relagies" 4 ploxa quo ate mesmo entre anima e animus aparecem os telacionamentos antitéticos que arquetipicamente distin- stom 0 Masculino do Feminino, Fiel a sua natureza fe- minina, a anima, independentemente do ego masculino do homem, que busca distancia, tende a criar um rela- vionamento de identidade emotivamente colorido que corresponde ao relacionamento primal. Por contraste, em #uin feminilidade, a mulher tem de fato a intengdo cons- 1c de estar junto, de se unir na participation mystique, 1 perseguida pelo lado do animus arquetipicamente maseulino de sua natureza, nao pode se refrear de ter “pontos de vista” separatistas c irritantes, nem de fazer uhservagoes eriticas ete.; subseqiientemente, fica magoa- dia e ferida quando isso perturba a uniao espiritual que ku tao ardentemente deseja com 0 marido. Portanto, para ambos os participantes — homem c mulher — a fase do encontro encerra dificuldades ex- (raordinarias. Elas surgem fundamentalmente do fato de «jue 0 problema do relacionamento se mostra insepa- ravelmente ligado ao problema da individuagao, do de- senvolyimento da totalidade. A criagdo de um relaciona- mento “quaterndrio”, como o deserito em A psicologia da Iransferéncia de fato acontece em grande medida no in- consciente, apenas com a participagao concomitante, ou completamente ausente por parte do ego. Mas, na reali- dade, 0 “relacionamento quaternério” é representado en- tre a totalidade de ambas as pessoas, isto é, entre a intei- reza de ambos, que engloba consciente e inconsciente. Se © elemento psiquico contra-sexual de cada uma das pes- soas, animus ou anima, é incluido no processo de inte Kracdo que restabelece a bissexualidade primordial de adit individuo, a orientagao para o mundo patriarcal de vlores deve ser abandonada. Mas isso impele a pessoa a encontrar 0 préprio caminho, uma tarefa para a qual os procoitos coletivos jé nao podem oferecer nenhuma ajuda. 65 Mais uma vez, isso ressalta um contraste entre os problemas dos homens e das mulheres, contraste esse — com conseqiiéncias para a adaptagao da mulher moder- na — que leva facilmente ao desenvolvimento de neuro- ses. Aassimilagao do lado feminino é realmente um pro- blema decisivo na individuagao do homem, mas continua aser scu “assunto particular”, pois a nossa cultura pa- triarcal nao apenas nao exige individuagao, mas na ver- dade tende a rejeit.i-la no individuo do sexo masculino. A assimilagao do lado do animus arquetipicamente mas- culino da natureza da mulher, porém, é uma outra histé- ria. Nos tempos modernos, a cultura patriarcal, que ja nao a oprime nem impede sua participacao cultural, mo- tiva a mulher, a partir da infancia, a desenvolver o lado oposto de sua psique. Isto significa que as mulheres sio forgadas a um certo grau de alienagao do Self em nome do desenvolvimento consciente, Inicialmente, exige-se mais dela do que do homem, A masculinidade e a femini- lidade séo, ambas, exigidas da mulher, ao passo que dele se exige apenas masculinidade. Estamos falando aqui de uma das complicages, mas também de uma das oportu- nidades increntes a situacao da mulher, para a nossa cul- tura, que levou a haver uma percentagem tao elevada de mulheres envolvidas no desenvolvimento da psicologia moderna, de maneira ativa, por meio de sua colaboracao € passiva, por meio de seus conflitos. Entretanto, uma conseqiiéncia posterior da situagéo fundamental da mulher é que, na medida em que a “cons- ciéncia” é formada pelas avaliagdes da cultura patriarcal, nao desperta respostas entusidsticas nas mulheres, pois muitas vezes est em oposigao aos valores do Self femi- nino como uma expresso da cultura patriarcal. A mulher nunca sente que é exatamente “ela propria” quando iden- tifica seu ego consciéncia patriarcal. Freqiientemente, tem a impressdo de que se aliena de si mesma ao se tornar 56 conneionte, pois sofre 0 conflito entre a estrutura simboli- eamonte masculina de sua conseiéneia e a estruiura femini- tna de sua totalidade como se fosse uma disfungéo. Mas 0 nolrimento dela é legitimo e a “dualidade” dela s5 6 uma dis- fungsio quando medida com a totalidade ingénua e a equivo- cubilidade da situagao primitiva qual ela deve renunciar. ‘Assim como os homens e as mulheres so naturalmen- (w compelidos pela energia masculina arquetipica neles existente a abandonar o relacionamento primal e encon- rar 0 caminho rumo ao ego ¢ A consciéncia, ambos tam- hem sao forgados por suas energias femininas arquetipicas inerentes a renunciar novamente a esta posigao e seguir rumo a uma totalidade que abrange Masculino ¢ Femini- no, No caso da mulher, 6 a propria psique que a forga a sair do mundo patriareal ¢ a entrar no que é propriamente dela; para o homem é a anima, ¢ por detrés da anima, em ultima anélise, também a totalidade da psique que o im- pulsiona a desistir de sua identidade puramente masculi- na. Para ambos, tornar-se sadio, inteiro, esta no centro do processo de individuagao, o desenvolvimento psiquico da segunda metade da vida Na fase mais clevada do desenvolvimento feminino, nvindividuagao leva a mulher a descoberta do Self. Agora #encontro com 0 Masculino assume a forma de um en- contro interior, no qual a mulher experiencia as préprias cnergias arquetipicamente masculinas. Ela se torna agora consciente das influéncias psiquicas que antes eram experienciadas de forma projetada no mundo exterior. Todos os simbolos e contetidos caracteristicos da primei- va fitse reaparecem, mas esto agora sob o signo da in- leyragdo da personalidade completa e um desenvolvimen- to que tinha seu centro nao no ego, e sim no Self, como 0 centro da personalidade unificads © significado ¢ a importancia de uma constelagio arquotipicn dependem da fase da vida nas quais apare- 87

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