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OFICINA DE LINGUAGENS – PROFESSORA KÊNIA

DISSERTAÇÃO CLÁSSICA

TEXTO I : FUVEST 2021


Para além da tragédia: o direito ao riso

Na Antiguidade, a comédia grega foi desenvolvida em oposição à tragédia: enquanto esta retratava
histórias dramáticas vividas por personagens grandiosos, como semideuses, aquela se destinava à crítica
burlesca a questões cotidianas, que variavam de costumes a figuras sociais relevantes na época; desse modo,
com o riso, a comédia buscava instigar suas plateias e suscitar-lhes dúvidas. A partir disso, percebe-se que o
riso, ainda que presente em todas as sociedades e visto, simplificadamente, como a reação ao cômico, apresenta
diferentes faces, alternando entre entretenimento puro e intenções críticas.
Sobre o aspecto recreativo do riso, vale ressaltar a sua grandeza: o entretenimento humorístico ocupa uma
posição de suma importância à condição humana, pois configura-lhe leveza. Relacionado a isso, Antonio
Candido, um dos maiores estudiosos de literatura da história brasileira, afirmou que o direito à literatura deveria
ser visto como um direito humano e, portanto, inalienável a todos. Sua justificativa para tal era simples: a
literatura tem o importante papel de humanizar as pessoas, evitando que elas se tornem “máquinas”. Em
paralelo, é possível articular esse pensamento às artes e, por extensão, ao humor: o riso pelo riso auxilia as
pessoas a resistirem a dificuldades que enfrentam no cotidiano ao oferecer-lhes uma distração necessária ao
bem-estar mental e emocional. Nessa face, então, o riso auxilia o ser a suportar o peso das infelicidades e
persistir em sua vida.
Para além disso, porém, é fato que outra face é igualmente relevante, em se tratando de humor: a reflexão
incitada por ele. A título de ilustração, o escritor português Gil Vicente escreveu a peça “Auto da Barca do
Inferno”, em que diversos personagens mortos veem-se diante das barcas do Céu e do Inferno. ada personagem
simboliza uma alegoria de figuras sociais comuns à época e, por meio de situações exageradas e caricaturais – a
exemplo de um Corregedor que se comunicava em um latim falho e argumentava para entrar na barca celeste -,
são feitas críticas a costumes e estruturas sociais da época. De igual modo, hoje, canais como “Porta dos
Fundos”, por exemplo, usam de vídeos de humor para trazer críticas sociais e políticas que, diluídas no riso,
tornam-se mais palatáveis. Assim, nessa face, o riso é capaz de suscitar a reflexão sobre o que se ri e torna-se
uma ferramenta de mudança ideológica.
Conclui-se, portanto, que o riso apresenta diversas faces, voltando-se ora para a diversão e distração, ora
para a crítica. Porém, ainda que o riso intencionado à reflexão possa parecer mais relevante o do entretenimento
possui, igualmente, importante valor, ao passo que impede que a vida torne-se uma contínua tragédia.

TEXTO II: VUNESP 2020 (“O carro será o novo cigarro?)


“Há algum tempo, a revista “Esquire” publicou um artigo no qual o autor, que nunca havia fumado,
descreve as experiências decorrentes de se propor a fumar um maço de cigarro ao dia, durante um mês. Ao
longo da trajetória do desafio, o homem reflete sobre o tabagismo e suas consequências enquanto fenômeno
social, na medida em que tenta reproduzir o ato de fumar como se já estivesse há muito habituado a ele. Nessa
tentativa o “novo fumante” busca ocupar os mesmos espaços utilizados por tabagistas de longa data e nota
que, na atualidade, fumar é fazer parte de um clube restrito composto por praticantes de um vício que estão
constantemente sob olhares de desprezo e de desaprovação lançados por não-fumantes. Essa situação,
inerentemente adaptada, se repetirá em um futuro um pouco distante com aqueles que continuarem a usar
carros para se locomoverem.
Para a corrente filosófica positivista, a humanidade tende ao progresso. De fato, observa-se que, pelo
menos no que se refere às tecnologias, a evolução humana foi vigorosa. A invenção do automóvel representa
um marco desse progresso ao possibilitar uma locomoção mais rápida. Entretanto, o progresso e evolução
estão fortemente ligados ao contexto no qual se manifestam e, nesse sentido, a popularização do carro se deu
em meio a um cenário de pouco conhecimento acerca das consequências ambientais causadas por esse meio
de transporte como, por exemplo, a intensificação do efeito estufa oriunda da emissão de gases poluentes pela
queima de combustível. Assim, tal como o cigarro, outrora representante de um estilo de vida “descolado” e
hoje visto como maléfico, o carro caminha no sentido de ser, em breve, o vilão.
Todavia, não são apenas as consequências ambientais que estão diminuindo o apreço pelos carros. As
grandes cidades têm enfrentado cada vez mais problemas de mobilidade e esses automóveis se destacam no
agravamento dessa situação. Isso porque, tal meio de transporte é utilizado em larga escala nos grandes
centros urbanos e, apesar de um carro poder transportar, em geral, cinco pessoas, ele é muitas vezes utilizado
individualmente. Logo, o número de veículos em circulação é elevado, o que aumenta os congestionamentos e
torna o trânsito caótico e lento. Os indivíduos, então, começaram a preferir modalidades alternativas que
cumpram a mesma função de deslocamento, porém de forma mais eficiente. E, assim, as consequências
advindas da utilização, ao causarem desprezo e desaprovação, aproximam novamente o carro do cigarro.
Em suma, depreende-se que em um futuro pouco distante a revista “Esquire” poderá publicar um artigo
que narre a experiência de possuir e dirigir um carro, meio de transporte que se tornará símbolo ultrapassado
de progresso e que, seguindo essa perspectiva, será o novo cigarro: utilizado por alguns e desprezado por
muitos. Essa situação decorrerá do entendimento da grandeza dos malefícios causados ao meio ambiente pela
poluição gerada pelos carros e pelo desejo de uma locomoção mais eficiente em cidades cada vez mais
sobrecarregadas. Faz-se necessário, então, pensar quais serão os meios de transportes a serem utilizados, os
quais devem ser preferencialmente coletivos (ônibus, metrô) e, em um futuro um pouco mais distante, será
preciso discutir “qual será o novo carro”.

TEXTO III: TEMA FUVEST/VUNESP - O aceite da mestiçagem é um ideal/utopia que falta ao Brasil?

Um mito social
O Brasil, em sua consolidação ainda como colônia, teve seu desenvolvimento racial baseado na
mestiçagem entre negros, brancos e índios. Posteriormente, com a chegada de milhares de imigrantes das mais
diversas etnias, a riqueza étnica do povo brasileiro tornou-se imensurável. No entanto, a questão do “aceite da
mestiçagem” ainda é um grave problema da sociedade brasileira, pois o que deveria ser um ideal comum a
todos, demonstra-se como uma “utopia” de igualdade.
Nessa conjuntura, um grande sociólogo brasileiro do século XX, Florestan Fernandes, contrapondo-se a
ideia de Gilberto Freyre de mestiçagem harmoniosa, explica que a "democracia racial" brasileira é um mito,
porque a colonização do Brasil se deu por meio de extrema violência, tal que as relações existentes entre os
índios e negros para com os brancos foram decorrentes do estupro, da agressão e da supremacia branca.
Devido a isso, o aceite da mestiçagem torna-se uma utopia pois o ideal de igualdade entre “raças” que
deveria existir em uma república supostamente democrática, desaparece quando levado em consideração a
rígida hierarquia social, política e econômica do Brasil. Ademais, por mais que muitas pessoas digam não ser
racistas, ele continua sendo velado no Brasil, ou seja, muitas pessoas camuflam-o nos preconceitos
socioculturais, como é o caso de um jovem preto ser considerado um alvo em potencial da Polícia Militar por se
encaixar em um “perfil” de criminosos, ou até mesmo, a associação da cor preta e negra a mau agouros.
Logo, a inversão entre o ideal e a utopia nas relações sociais refletem em uma democracia racial
inexistente, tal que o aceite da mestiçagem harmoniosa falta no Brasil, como explicava Florestan ao contrapor
Freyre. No entanto, por mais que apresente-se como uma “utopia”, é necessário que jamais seja perdida pois,
uma sociedade etnicamente rica, não deve haver segregações, pelo contrário, a mestiçagem deve ser o fator
primordial de união, tanto de sangue, quanto de cultura, quanto de futuro.

TEXTO IV: REDAÇÕES FUVEST 2020 “O PAPEL DA CIÊNCIA NO MUNDO


CONTEMPORÂNEO”
Cara ou coroa: o papel ambíguo da ciência no mundo contemporâneo
"Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas": tal ideia resume a teoria humanitista
apregoada pelo filósofo Quincas Borba, da obra homônima de Machado de Assis. Conforme se apreende dessa
fala, o personagem concebia a vida por meio da sua associação a um campo estratégico de luta, tal como
representavam, metaforicamente, as duas tribos antagônicas em disputa pela sobrevivência. Destarte, o
humanitismo, não por acaso, é frequentemente tido como uma sátira às correntes cientificistas típicas do século
XIX e, em especial, ao darwinismo social defendido por Herbert Spencer, que previa a seleção natural dos
indivíduos mais adaptados ao meio, de modo análogo ao proposto por Darwin na Biologia. Sob tal perspectiva,
em um mundo cada vez mais globalizado, o acesso ao conhecimento e às tecnologias digitais, notadamente
desigual, tem se tornado constante alvo de cobiça, norteando as relações de poder existentes e ressignificando o
papel conferido à ciência no cenário contemporâneo.
Desde a Antiguidade, contudo, a razão tem sido objeto de discussão na Filosofia, sendo colocada,
inclusive, como pilar principal da sociedade justa idealizada por Platão na célebre obra "A República". Durante
a Idade Média, por sua vez, a Igreja Católica exercia, de certa forma, um monopólio sobre o conhecimento,
adequando-o à visão religiosa e utilizando-o como instrumento de dominação. Nesse sentido, o período
medieval foi intitulado, pelos pensadores iluministas, de "Idade das Trevas", expressão que se opunha àquela
usada por eles para se referir ao século XVIII, o "Século das Luzes". De modo alegórico, a mencionada antítese
refletia o caráter que então se pretendia dar ao conhecimento cientifico, capaz de afugentar o breu da ignorância
e, como uma lanterna, iluminar o caminho a ser seguido em direção ao aperfeiçoamento da sociedade,
pensamento posteriormente reforçado pelo filósofo francês Auguste Comte. Em sua visão teleológica, o
intelectual elaborou a Teoria dos Três Estágios, elencando a ciência como meio a partir do qual a humanidade
poderia evoluir até atingir o Estágio Positivo ou Científico, que simbolizaria o máximo grau de
desenvolvimento.
Sem embargo, a despeito dos discursos iluminista e positivista, o aprimoramento do conhecimento
evidenciou outras contradições: a Revolução Industrial inaugurou novas relações de exploração; as Guerras
Mundiais estimularam a criação de armamentos potencialmente destrutivos; a Guerra Fria tornou a ciência um
campo, agora oficial, de disputa; e a globalização incentivou o surgimento de uma nova maneira de exclusão
social, vinculada ao acesso desigual às tecnologias digitais. A partir disso, pode-se perceber a clara
materialização da teoria desenvolvida pelos frankfurtianos Theodor Adorno e Max Horkheimer, responsáveis
por analisar a denominada "razão instrumental". Segundo eles, o conhecimento teria se tornado um importante
instrumento de dominação, ampliando a capacidade de interferência do homem sobre a natureza, como
corrobora a intensificação de problemas ambientais, e sobre o próprio homem, a exemplo do emprego de
tecnologia nuclear como forma de dissuasão no contexto geopolítico mundial.
Desse modo, em virtude dos aspectos abordados, constata-se o papel ambíguo da ciência na realidade
contemporânea, pois, paralelamente às facilidades de transporte, comunicação e entretenimento disponíveis
atualmente, fica evidente que a instrumentalização da razão representa uma fonte propulsora das hodiernas
relações de poder. Consequentemente, apesar de desafiador, o uso consciente e democrático da ciência é
indispensável para rechaçar a situação de permanente guerra prevista pela teoria humanitista e consolidar o
conhecimento como alicerce do tão almejado desenvolvimento, conforme sonhavam Platão e Comte.

TEXTO V: FUVEST 2020 “O PAPEL DA CIÊNCIA NO MUNDO CONTEMPORÂNEO”

A ciência libertadora contra a racionalidade instrumental

Há mais de dois mil anos, Platão discorria, no Mito da Caverna, sobre o início do processo de
transposição da doxa - pensamento calcado em opiniões e senso comum - em direção à episteme ou à verdade.
A partir disso, segundo ele, a razão e o contato com o conhecimento permitiram que o homem se
desvencilhasse das amarras da ignorância e chegasse à luz - signo para o pensamento racional e para a liberdade
proporcionada por ele. Modernamente, um grande mantenedor da razão e da liberdade é a ciência, que, por
meio de seus métodos, ajuda na distinção do falso e da verdade e, se realizada com as intenções corretas,
colabora para a maioridade dos indivíduos e para a manutenção das democracias.
Porém, sem um simultâneo desenvolvimento moral e ético, ela pode se tornar um instrumento de
manipulação e consolidação de privilégios. O método e o pensamento científicos baseados na dúvida metódica
do filósofo Descartes, ao superar os laboratórios e chegar ao ensino básico e à vida das pessoas leigas,
fomentam, na população, um senso crítico e uma compreensão da realidade mais eficientes. Para esse filósofo,
o indivíduo que busca o conhecimento deve sempre duvidar daquilo que vê e ouve, fazer uma análise íntegra
dos fatos e das suas origens para, depois, tirar conclusões sobre o que é verdade ou não. Com isso, a episteme
pode se aproximar do homem, a doxa pode ser finalmente transposta e a humanidade pode atingir o que o
filósofo Kant chamou de maioridade, ou seja, autonomia de pensamento para o indivíduo, sem a interferência
de outros. Dessa forma, o pensamento científico, por proporcionar às pessoas senso crítico e independência de
raciocínio, possibilita que elas sejam agentes de suas próprias vidas, saibam agir diante de líderes populistas
que usam discursos falaciosos para angariar apoio popular, consigam interpretar suas realidade e, com
autonomia, exigir de seus governantes as mudanças necessárias.
Todavia, o descaso com a ciência por parte dos políticos impede que ela seja inserida na vida das pessoas
desde a educação básica e afasta os indivíduos de seus benefícios. Esse descaso e o distanciamento entre
população e ciência não são apenas por incapacidade dos políticos ou falta de verbas, estão também
relacionados com uma tentativa de privar as massas de liberdade e de capacidade de raciocínio. Segundo os
filósofos Adorno e Horkheimer, a ciência e a razão podem ser usadas como instrumentos para manter o status
quo de desigualdades, injustiças e privilégios e, a partir da racionalidade instrumental, os mais poderosos e
privilegiados usam a ciência não como forma de obter progresso coletivo, mas sim vantagens individuais. Tais
agentes, deliberadamente, usam a tecnologia para disseminarem fake news e, assim, interferirem nos recentes
processos eleitorais americano e brasileiro ou para, inclusive, descreditar a própria ciência, como aconteceu no
espalhamento da ideia de que os dados do INPE sobre as queimadas e desmatamento na Amazônia eram
mentirosos e exagerados.
Logo, sem uma ética consolidada, a ciência pode ser uma ferramenta para a manutenção, paradoxalmente,
do senso comum, da ignorância e da escuridão da caverna da menoridade. A iluminação ou a maioridade
causadas pelo pensamento científico são, portanto, uma forma de o indivíduo contemporâneo atingir sua
liberdade de raciocínio e, assim, defender a democracia da manipulação, falácias e fake news e, até mesmo,
proteger-se da própria ciência quando ela assume a forma de racionalidade instrumental nas mãos dos mais
poderosos. Distante do pensamento científico, o homem não se defende da manipulação deliberada e retorna à
doxa.

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