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Ficha Síntese

Poesia Trovadoresca

Cantigas de amigo

Ai flores, ai flores do verde pino


Ai flores, ai flores do verde pino1, Vós me preguntades polo voss'amigo,
se sabedes novas do meu amigo! e eu bem vos digo que é san’e vivo4:
Ai Deus, e u é2? Ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo, Vós me preguntades polo voss'amado,


se sabedes novas do meu amado! e eu bem vos digo que é viv'e sano:
Ai Deus, e u é? Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo, E eu bem vos digo que é san'e vivo
aquel que mentiu do que pôs3 comigo! E seera vosc'ant'o prazo saído5:
Ai Deus, e u é? Ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado, E eu bem vos digo que é viv'e sano
aquel que mentiu do que mi 'á jurado! e seerá vosc'ant'o prazo passado:
Ai Deus, e u é? Ai Deus, e u é?

D. Dinis

1: pino – pinho; 2: “e u é” – onde está; 3: pôs – combinou/acordou; 4: “san’e vivo” –


são e vivo; 5: “seera vosc'ant'o prazo saído” – e estará convosco antes de acabar o
prazo/em breve
Notas sobre a cantiga:
- A cantiga pode dividir-se em dois momentos exatamente simétricos: a fala da
donzela e a resposta das "flores do verde pino"
- O cenário (idílico, mas isolado) onde a donzela se encontra decorre
implicitamente deste diálogo (como implícito é o motivo da sua presença ali: decerto à
espera do amigo)
- A técnica do paralelismo implica aqui, não uma repetição e amplificação do que
é dito nas estrofes iniciais (como acontece frequentemente neste género de cantigas), mas
uma verdadeira intensificação narrativa: o tempo passa, o seu amigo não vem, a donzela
inquieta-se. Na sua fala inicial, por exemplo, ela passa rapidamente do simples pedido de
notícias à hipótese de ele a ter enganado (o mentiroso!).
- Na sua resposta, as flores sossegam-na. Note-se, no entanto, que esta resposta,
no seu segmento inicial (o seu amigo está vivo e de saúde) não incide nas perguntas
explícitas da donzela, mas antes na pergunta que ela não ousa formular: teria o seu amigo
morrido?
- Finalmente, no segmento final da resposta (ele virá antes de passar a hora
combinada), percebemos que essa hora ainda não passou, ou seja, que a donzela chegou
muito antes e que toda a sua inquietação não passa disso mesmo: inquietação de uma
jovem apaixonada, sozinha num pinhal e insegura (e note-se como o refrão, inalterado,
para isso contribui).
Digades, filha, mia filha velida:
-Digades, filha, mia filha velida1: -Tardei, mia madre, na fria fontana,
porque tardastes na fontana2 fria? cervos do monte volvian a augua.
(Os amores hei.) (Os amores hei.)

-Digades, filha, minha filha louçana3: -Mentir, mia filha, mentir por amigo!
porque tardastes na fria fontana? Nunca vi cervo que volvesse o rio.
(Os amores hei.) (Os amores hei.)

-Tardei, mia madre, na fontana fria, -Mentir, minha filha, mentir por amado!
Cervos4 do monte a augua volvian5. Nunca vi cervo que volvesse o alto6.
(Os amores hei.) -Os amores hei.

Pero Meogo
1: velida – bela/formosa; 2: fontana – fonte; 3: louçana – bonita/formosa; 4: cervos –
veados; 5: volvian – remexiam/agitavam; 6: alto - rio, no seu curso no interior das terras

Notas sobre a cantiga:


Nos manuscritos, esta é a última cantiga do notável ciclo dos "cervos" de Pero
Meogo. Em diálogo com a filha, a mãe pergunta-lhe por que demorou tanto na fonte; a
moça alega então que os cervos do monte revolviam a água (subentende-se: teve de
esperar até que ela ficasse de novo límpida); mas a mãe, fazendo-lhe ver que percebe que
ela está a mentir, mostra-se muito cética com esta justificação, dizendo que nunca tal
coisa tinha visto.
Claramente ligada às outras cantigas do ciclo (em particular, àquela que relata
precisamente a ida à fonte), é de salientar aqui, sobretudo, o funcionamento do refrão,
que devemos entender, pelo menos nas quatro primeiras estrofes, como correspondendo
à voz interior da moça (ou seja, não se trata da resposta que ela dá à mãe, mas
precisamente do que lhe pretende ocultar).
Cantigas de amor

A mia senhor que eu por mal de mi


A mia senhor1 que eu por mal de mi pero11 mi tod’ este mal faz sofrer,
vi, e por mal daquestes2 olhos meus des que a nom vi nom er vi pesar
e por que muitas vezes maldezi d’ al, ca nunca me d’ al pudi nembrar.
mi e o mund’e muitas vezes Deus,
des3 que a nom vi nom er4 vi pesar A por que mi quer este coraçom
d’ al5, ca6 nunca me d’ al pudi nembrar7. sair de seu lugar, e por que já
moir’ e perdi o sem12 e a razom,
A que mi faz querer mal mi medês8 pero m’ este mal fez e mais fará,
e quantos amigos soía9 haver, des que a nom vi nom er vi pesar
e desasperar de Deus, que mi pês10, d’ al, ca nunca me d’ al pudi nembrar.
D. Dinis

1: “mia senhor” – minha senhora; 2: daquestes/as – destes/as; 3: des – desde; 4: er – de


novo (voltar a); 5: al (em frases negativas) – mais nada; 6: ca – pois/porque; 7: nembrar
– lembrar; 8: mi medês – a mim mesmo; 9: soía (soer) – costumava; 10: “que mi pês” –
ainda que me pese; 11: embora/ainda que; 12: sem – senso/juízo/razão

Notas sobre a cantiga:


Leia-se: “O meu grande mal foi pousar os olhos na “mia senhor”, pelo que muitas
vezes me amaldiçoei, e ao mundo e a Deus. Desde que a vi, nunca mais recordei outra
coisa, se não ela; nunca mais sofri por outra coisa, senão por ela. Faz-me querer mal a
mim mesmo e desesperar de Deus. Por ela, quer este meu coração sair do seu lugar e eu
morro, já depois de ter perdido o juízo e a razão. Todo este mal ela me fez e mais fará.”
Desde que deixou de ver a sua senhora, o trovador nunca mais sentiu pesar - mas
apenas porque ela ocupa totalmente os seus pensamentos e ele não consegue lembrar-se
de mais nada. De resto, em cada estrofe ele vai descrevendo o poder que a sua senhora
tem sobre ele: ela é aquela que viu por seu mal e que muitas vezes maldisse (1ª estrofe);
a que o faz querer mal a si mesmo e a todos os seus amigos, e ainda desesperar de Deus
(2ª estrofe); a que lhe faz sair o coração do lugar e perder a razão (3ª estrofe).
A dona que eu am'e tenho por Senhor
A dona que eu am'e tenho por Senhor1
amostrade-mi-a Deus, se vos en2 prazer Essa que Vós fezestes melhor parecer
for3,
de quantas sei, ai, Deus!, fazede-mi-a
se non dade-mi a morte. veer,
senom dade-mi a morte.
A que tenh'eu por lume d'estes olhos
meus
Ai Deus!, que mi a fezestes mais ca mi4
e por que choran sempr' amostrade-mi-a amar,
Deus,
mostrade-mi-a, u6 possa con ela falar,
se non dade-mi a morte.
se non dade-mi a morte.
Bernal de Bonaval

1: senhor - senhora; 2: en -disso/disto; 3: prazer for (seer prazer) – agradar a; 4: “mais ca


mi” (mais/melhor ca mi(m)) – mais do que a mim mesmo; 6: u – onde

Notas sobre a cantiga;


Dirigindo-se a Deus, o trovador pede-lhe que lhe permita ver a sua senhora ou
então que lhe dê a morte. Na última estrofe, o pedido inclui a possibilidade de esse
encontro ser num lugar onde o sujeito poético possa falar com a “senhor”.
Cantigas de escárnio e maldizer

Ai dona fea, fostes-vos queixar


Ai dona fea, fostes-vos queixar vos quero já loar todavia;
que vos nunca louv'en[o] meu cantar; e vedes qual será a loaçom5:
mais ora quero fazer um cantar dona fea, velha e sandia!
em que vos loarei1 todavia;
e vedes como vos quero loar: Dona fea, nunca vos eu loei
dona fea, velha e sandia2! em meu trobar, pero6 muito trobei;
mais ora já um bom cantar farei
Dona fea, se Deus mi perdom, em que vos loarei todavia;
pois havedes [a]tam gram coraçom3 e direi-vos como vos loarei:
que vos eu loe, em esta razom4 dona fea, velha e sandia!
João Garcia de Guilhade

1: loarei – louvarei; 2: sandia – louca/maluca; 3: coraçom – vontade; 4: razom – razão,


assunto (de uma cantiga) e forma específica de o abordar; 5: loaçom – louvor (“louvação”)
6: pero – embora/ainda que

Notas sobre a cantiga:


Uma das mais antologiadas cantigas dos Cancioneiros medievais, paródia ao
elogio cortês da senhora: já que uma dona se queixa de nunca ter sido louvada pelo
trovador, João Garcia de Guilhade dispõe-se agora a fazê-lo - mas à sua maneira.
Neste poema, o trovador afirma-se superior à “dona”, adotando uma postura de
arrogância e desprezo, bem visíveis no facto de a invocar, mas não lhe dar a palavra: ditar
o silêncio a alguém é quase negar a sua existência como pessoa.
Retrato da “dona”

• Feia, velha e louca


• Gostaria / desejava que o sujeito lhe compusesse cantigas de amor, porque, assim,
a elogiaria – a “dona” quer ser louvada, ou seja, quer que o trovador expresse o
seu amor por ela
• Possui as características opostas às da “senhor” das cantigas de amor: feiura -
beleza; velhice - juventude; loucura - bom senso/juízo.
Roi Queimado morreu com amor
Roi Queimado morreu com amor mais outr’omem per rem8 nono faria.
em seus cantares, par Santa Maria,
por ũa dona que gram bem queria; E nom á ja de sa morte pavor,
e, por se meter por mais trobador, se nom, sa morte mais la temeria,
por que lh’ela nom quis [o] bem fazer1, mais sabe bem, per sa sabedoria,
feze-s’el em seus cantares morrer, que viverá, des quando morto for;
mais resurgiu2 depois, ao tercer dia. e faz-[s’]em seu cantar morte prender9,
des i ar vive10: vedes que poder
Esto fez el por ũa sa3 senhor que lhi Deus deu, - mais quen’o
cuidaria11!
que quer gram bem; e mais vos en4 diria:
por que cuida que faz i maestria5,
E se mi Deus a mi desse poder
enos cantares que fez, á sabor6
qual oj’el á12, pois morrer, de viver13,
de morrer i e des i d’ar viver ;7

ja mais morte nunca [eu] temeria.


esto faz el, que x’o pode fazer,
Pero Garcia Burgalês

1: “nom quis [o] bem fazer” – não correspondeu ao seu amor; 2: ressurgiu – ressuscitou;
3: sa – sua; 4: en – disso/disto; 5: maestria – o termo tem aqui o sentido geral de "mestria"
(obra de mestre) e o sentido técnico que assume na Arte de Trovar (cantiga sem refrão,
as mais reputadas entre os trovadores); 6: á sabor (há sabor) – tem gosto/prazer; 7: “de
morrer i e des i d’ar viver” – de morrer aí e depois de voltar a viver: 8: per rem – por
nada/de modo nenhum; 9: “morte prender” (prender morte) – morrer; 10: “des i ar vive”
– depois disso volta a viver; 11: “mais quen’o cuidaria” – mais do que poderia supor; 12:
“qual oj’el á” – que ele tem; 13: “pois morrer, de viver” – (o poder…) de, depois de
morrer, voltar a viver

Notas sobre a cantiga:


Dirigida ao trovador Rui Queimado, esta composição é uma das mais célebres
paródias ao cliché da morte de amor, tão repetidamente jurada nas cantigas de amor de
todos os trovadores galego-portugueses (Pero Garcia Burgalês não sendo, aliás, exceção).
A sátira que aqui desenvolve talvez tivesse sido propiciada por uma particular cantiga de
Rui Queimado, na qual este trovador, por amor da sua “senhor”, lhe diz que se arrepende
da sua anterior decisão de querer morrer, cantiga esta que tem, aliás, também ela, um tom
semi-jocoso. Note-se, entretanto, que esta paródia de Pero Garcia Burgalês visa, ao
mesmo tempo, e mais especificamente, os dotes poéticos de Rui Queimado, cujo
problema, para Pero Garcia, seria querer "meter-se" a fazer aquilo que não sabe.
Espaços,
Representações de Linguagem,
Género Sujeito poético protagonistas e
afetos e emoções estilo e estrutura
circunstâncias

Variedade do
Ambiente
sentimento
doméstico e
amoroso: amor,
familiar,
saudade, tristeza,
marcadamente
mágoa, ansiedade,
feminino
alegria Paralelismo
(donzela ou
menina e as
Confidência Refrão
amigas, ou a mãe
- Voz feminina amorosa à
Cantigas de e a filha)
(donzela, Natureza, às Recursos
amigo
menina) amigas, à mãe expressivos: ex.:
Ambiente
personificação,
coletivo
Relação com a comparação,
(romaria,
Natureza: apóstrofe
santuário)
confidente
(personificação),
Ambiente rural e
em harmonia com
natural (campo,
o estado de
rio, mar)
espírito da donzela

Ambiente
aristocrático
Coita de amor –
(nobres, rei,
paixão infeliz,
senhores) Cantiga de
sofrimento por
mestria (sem
amor, que pode
Palácio refrão) ou com
- Voz masculina levar à morte por
recurso a refrão
(trovador) que amor
Cantigas de Corte
se dirige à sua
amor Recursos
amada (a sua Elogio cortês –
Ambiente expressivos: ex.:
“senhor”) louvor da
marcado por um adjetivação,
“senhor”, modelo
código e por hipérbole,
de beleza e virtude
convenções comparação
(vassalagem
(amor cortês, a
amorosa)
mesura, a
cortesia)
Paródia do amor
cortês (louvor da
dona; morte por
- Voz masculina
amor)
(trovador) que Sátira, cómico
Cantigas de faz uma crítica Ambiente
Crítica de
escárnio e indireta (cantiga palaciano e da Recursos
costumes (falta de
maldizer de escárnio) ou corte expressivos: ex.:
dotes poéticos de
direta (cantiga ironia
um trovador, a
de maldizer)
miséria de
elementos da
nobreza, etc.)

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