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Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra

Em Viagens na Minha Terra, é evidente a influência da literatura de viagens, muito


popular naquele tempo, nomeadamente Viagem Sentimental (1768), de Sterne,
e Viagem à roda do meu quarto (1795), de Xavier de Maistre.

Garrett combina este género com a exploração da novela sentimental em torno de um


triângulo amoroso – Carlos, Joaninha e Georgina –, que tem um desfecho trágico.
Sendo assim, torna-se difícil catalogar este texto, como aliás o próprio autor refere
– “Neste despropositado e inclassificável livro das minhas VIAGENS” (Cap. XXXII).

A obra é, efetivamente, original, já que, para além do relato de uma viagem,


encontramos o tom crítico e pedagógico do discurso narrativo, num ensaio reflexivo
sobre Portugal. Há, assim, uma dupla perspetiva na construção da obra: uma objetiva,
ligada à observação do real, e uma subjetiva, ligada à interiorização do real e que resulta
em divagações mais ou menos inesperadas e que determinam o título plural Viagens.

Assim, ao longo de 49 capítulos, o leitor é convidado a (re)visitar terras nacionais, mas


também a acompanhar as reflexões do narrador, numa tessitura textual claramente
transgressora. Optou-se pela apresentação do resumo dos capítulos selecionados pelo
Programa e Metas.

Nota

• Todas as citações da obra Viagens na Minha Terra seguem a edição da Coleção Educação Literária, da Porto Editora,
2016.
a. Resumo dos capítulos

Viagem Novela
Viagem
Capítulo
(deambulação (história de Carlos e
(reflexão crítica)
geográfica) Joaninha)
• Embarque no vapor
“Vila Nova” com • Gosto pela cultura
I
destino a Santarém – 17 popular
de julho de 1843
• Espiritualismo vs.
Materialismo
• Paragem em Vila Nova
II-IV
da Rainha e Azambuja
• Crítica aos clichés da
Literatura Romântica
• Crítica à falta de
• Chegada ao Pinhal da
V originalidade e à imitação
Azambuja
dos modelos estrangeiros
• Chegada ao Cartaxo
• Crítica aos horrores da
VI-VIII
guerra
• Chegada à charneca
• Chegada ao Vale de
IX
Santarém
• Descrição do Vale de • Língua portuguesa vs.
X
Santarém francesa
• Início da novela, em
1832

• Apresentação das
personagens e das
relações que se
XI- XXVI estabelecem entre elas

• Encontro entre Carlos


e Joaninha

• Partida de Carlos para


a guerra
• Crítica à arquitetura
XXVII-
• Chegada a Santarém moderna e à degradação • Carlos e Georgina
XXXIII
dos monumentos
• Revelação da verdade:
Carlos é filho de Frei
XXXIV-
Dinis
XXXV
• Partida de Carlos
XXXVI- • Passeios por Santarém
Viagem Novela
Viagem
Capítulo
(deambulação (história de Carlos e
(reflexão crítica)
geográfica) Joaninha)
XLII
XLIII- • Carta de Carlos à sua
• Partida de Santarém
XLVIII prima
XLIX • Regresso à capital

Capítulo I

• Embarque, no dia 17 de julho, de 1843, rumo a Santarém.

• Reflexão sobre as idiossincrasias do seu povo e das suas gentes – “o povo, que tem
sempre melhor gosto” (ideologia liberal).

• Discussão entre dois grupos de viajantes: os navegadores da região de Aveiro, de


Ílhavo, e os campinos, ou Bordas-d’Água, homens de Alhandra, região do Ribatejo, que
eram forcados (descrição pormenorizada / apreço pela cultura popular, “efeito do real”).

Capítulo V

• Chegada ao pinhal da Azambuja: desilusão face à paisagem real.

• Desencanto face à realidade que conduz à análise dos desenganos da literatura


romântica, baseada na repetição dos modelos estereotipados: imitação dos modelos
estrangeiros e a falta de verosimilhança na conceção das personagens e da intriga.

• Continuação da viagem até Cartaxo – face à deceção, decide continuar a viagem,


numa “enfezada mulinha”, que lhe lembra um Marquês excêntrico que conheceu em
Paris e que o leva a nova divagação sobre o nosso épico Camões, no capítulo seguinte,
até que chega ao Cartaxo.
Capítulo VIII

• Descrição da charneca, uma vegetação típica que ocorre entre Cartaxo e Santarém.

• Descrição do espaço real que o circunda, classicamente locus amoenus, com a sua
claridade serena e vegetação abundante, num quadro harmonioso.

• Espaço real como ponto de partida para a evocação de uma paisagem romântica, com
um bosque que leva à meditação e ao encontro com Deus; um rochedo onde se assiste
ao pôr do sol; uma planície erma e selvagem; um pastio bravo – ambiente idealizado.

• Recordação da visita de D. Pedro ao exército liberal, depois da Batalha de Almoster,


ganha pelos liberais aos absolutistas em 1834 e reflexão – “Toda a guerra civil é
triste”.

Capítulo X

• Descrição do Vale de Santarém, enquanto lugar primordial e impoluto – Éden –,


partindo do plano geral do vale; enumeração da vegetação viçosa, densa e espontânea
em segundo plano; e visualização, num terceiro plano, de uma “janela meio aberta de
uma habitação antiga mas não delapidada”.

• Reflexões diversas: os diferentes papéis do homem e da mulher; a novela sentimental


de Bernardim Ribeiro – Menina e Moça; o gosto pela língua francesa.

Capítulo XIII

• Antipatia do narrador pelos frades, como o da história narrada, Frei Dinis, apesar de
reconhecer a importância dos símbolos desta classe para a literatura.
• Duelo Idealismo/Materialismo: Frade é o D. Quixote da sociedade velha; Sancho
Pança representa-se pelos barões na sociedade nova, embora com menos piada – retrato
caricatural do barão, que é “o mais desgracioso e estúpido animal da criação” –
enquadramento político: medidas capitalistas de Costa Cabral, que cercearam a
liberdade em prol do progresso material.

Capítulo XX

• Resumo dos capítulos anteriores: relações entre as diferentes personagens, Frei Dinis
visitava Joaninha e a sua avó todas as sextas-feiras, para trazer notícias de Carlos, que
está na guerra – criação de uma atmosfera misteriosa.

• Passeio de Joaninha pelo vale; descrição marcadamente romântica da jovem – a figura


angelical, a típica mulher-anjo da literatura romântica.

• Reencontro entre Carlos e a sua prima, dois anos após a separação: encontro intenso,
diálogo comovente e beijo tranquilizador.

Capítulo XLIV

• Apresentação dos reais laços que unem Frei Dinis a Carlos (pai e filho) e este a
Georgina (mulher).

• Alusão à carta de Carlos dirigida a Joaninha após a morte desta (a missiva foi entregue
por Frei Dinis ao narrador, no capítulo anterior, quando, movido pela curiosidade,
voltou a passar pela casa da “menina dos rouxinóis”).

• Expiação de Carlos que culpa o seu coração excessivo de o ter levado à


perdição. Carlos arrepende-se de ter fugido de casa por não reconhecer Frei Dinis como
seu pai e considerar a sua avó cúmplice do crime cometido. Sente-se incapaz de
perdoar, já que sua mãe também morreu sem o ter feito, e deixa a justiça em mãos
divinas.
• Narração do percurso do herói romântico desde que saiu de Portugal, mesclando essa
história com reflexões sobre o amor: em Inglaterra, conheceu uma abastada família,
com três filhas, com as quais travou amizade, o que deu origem a um complexo quadro
amoroso; apesar de Laura o cativar de forma especial, será com Georgina que acabará
por casar.

Capítulo XLIX

• Revelação do narrador a Frei Dinis: foi colega de Carlos, que já não vê há alguns anos.

• Frei Dinis diz-lhe que este está irreconhecível em termos físicos, tendo engordado
bastante, e que se tornou barão.

• Destino de Joaninha e de Georgina (tipicamente romântico): a primeira enlouqueceu e


morreu nos braços da avó e da mulher do seu amado, a segunda criou uma comunidade
religiosa católica onde é abadessa.

• Partida de Santarém, deixando Frei Dinis a rezar e a velha a penar; sonho com estas
duas personagens e barões, e com notas a caírem do céu.

• Reflexão crítica final – a viagem na sua terra foi superior em relação a todas as outras
que realizou; promessa de não andar nos caminhos de ferro dos barões, símbolo do
materialismo:

Assim terminou a nossa viagem a Santarém: e assim termina este livro.

Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas
quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na
minha terra.

Se assim o pensares, leitor benévolo, quem sabe? pode ser que eu tome outra vez o
bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias
para te contar.

Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar." (Cap. XLIX)
► Estruturação da obra: viagem e novela

A dificuldade em classificar Viagens na Minha Terra é inegável devido à ligação entre


dois planos – o da viagem (física, reflexiva, crítica) e o da novela sentimental –, apesar
da mestria do autor em urdir os diferentes níveis.

Assim, tal como acontece em A Ilustre Casa de Ramires, também na obra garrettiana
em análise é possível identificar diferentes níveis narrativos, como se passa a mostrar:

1.° nível narrativo: Viagem geográfica; narrador-viajante; participante e personagem


principal (autodiegético)

2.º nível narrativo: Novela sentimental; narrador-companheiro de viagem; não


participante (extradiegético)

3.° nível narrativo: Carta de Carlos a Joaninha; narrador Carlos; participante e


personagem principal (autodiegético)

Assim, o primeiro nível diegético é o da viagem física, que tem início no dia “17 deste
mês de julho, ano da graça de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e de boa estreia”,
e da qual o narrador-viajante-autor dará as suas impressões, tendo a duração aproximada
de uma semana (de segunda a sábado), com outros companheiros de jornada.

Nessa viagem real pelo país real, o capítulo X deve ser analisado com cuidado especial,
já que a casa avistada no Vale de Santarém desperta a curiosidade do viajante, que
deixará de ser o narrador para passar a ouvir a história narrada por um desses
companheiros de viagem.

É desta forma que se dá início à trágica novela sentimental da “menina dos rouxinóis”.

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