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Frei Luís de Sousa, Almeida Garrett

As didascálias presentes no início de cada ato fornecem-nos informações


bastante pormenorizadas sobre o ambiente em que decorre a ação.

Espaço físico
A primeira característica da estruturação do espaço em Frei Luís de Sousa é
a concentração — os espaços desta peça são em número reduzido.

Primeiro ato
Palácio de Manuel de Sousa Coutinho, numa sala que espelha a felicidade da
família. Este espaço caracteriza-se:
• pela amplitude;
• pela decoração rica e luxuosa.
• pela luminosidade;
• pela abertura ao exterior (através das 'grandes janelas rasgadas');
• pelas sugestões cromáticas e pela liberdade de movimentos;
• pela presença do retrato de Manuel de Sousa Coutinho; é um elemento
simbólico: ao ser devorado pelas chamas que consomem o palácio, funciona
como indício de desgraça.

Segundo ato
Palácio de D. João de Portugal, num salão onde a vontade própria das
personagens desvanece. Este espaço caracteriza-se:
• por uma decoração num 'gosto melancólico e pesado';
• pelo fecho ao exterior (as portas 'cobertas de reposteiros' fazem o mundo
exterior desaparecer);
• pela presença dos retratos de D. João de Portugal, de D. Sebastião e de
Camões. O retrato de D. João funciona como anunciador de uma fatalidade
iminente: Maria e D. Madalena fitam-no como que fascinadas e no final deste
ato torna-se o meio de reconhecimento do Romeiro.

Terceiro ato:
Palácio de D. João de Portugal, na parte baixa, cuja porta comunica com a
capela da Senhora da Piedade. Este espaço caracteriza-se:
• pela falta de abertura e de luz;
• pela abundância de frieza e escuridão, tornando-se mais restrito e austero ('é
um casarão vasto sem ornato algum').

A não esquecer!
O afunilamento gradual do espaço em Frei Luís de Sousa anda a par do
avolumar da tragédia.
Espaço psicológico
As coordenadas do espaço psicológico da obra são delimitadas
pelos sonhos proféticos e devaneios de Maria, assim como por
diversos monólogos:
• o monólogo de D. Madalena, que reflete sobre uns versos de Os Lusíadas,
dando conta das preocupações constantes em que vive (Cena I, Ato I);
• o monólogo de Manuel de Sousa Coutinho, quando decide incendiar o seu
palácio (Cena XI, Ato I);
• as reflexões ponderadas de Frei Jorge, que parece antever a desgraça que se
vai abater sobre a família de seu irmão (Cena IX, Ato II);
• o monólogo de Telmo, que revela verdadeiramente o seu conflito interior no
final da peça (Cena IV, Ato III).

Espaço social
Existem várias indicações que contribuem para a integração das personagens
numa classe social elevada — a nobreza:
• D. Madalena tem o epíteto 'dona' que, no século XVII, só se dava às senhoras
da aristocracia ('D. Madalena de Vilhena, lembrai-vos de quem sois e de quem
vindes, senhora');
• Manuel de Sousa Coutinho é cavaleiro de Malta, uma ordem religiosa
unicamente para nobres;
• D. João de Portugal pertence à família dos Vimiosos; e
• Maria, a 'dona bela', tem 'sangue dos Vilhenas e dos Sousas'.

O espaço social é também delimitado pela crítica que o autor dirige à opressão
social causada pelo domínio filipino e ao preconceito que recai sobre
a ilegitimidade (problema que afetou a própria filha de Garrett).

Em Frei Luís de Sousa fazem-se referências que permitem a contextualização


histórica da peça. Sabes quais são?

Tempo dramático
Ao longo de toda a obra há inúmeras referências cronológicas que nos
permitem situá-la no século XVI:
• o casamento de D. Madalena com D. João de Portugal antes de 1578;
• o desaparecimento de D. João de Portugal a 4 de agosto de 1578, na Batalha
de Alcácer Quibir;
• a busca de D. João por D. Madalena durante sete anos (de 1578 a 1585);
• o casamento de D. Madalena com Manuel de Sousa Coutinho, em 1585;
• o nascimento de Maria de Noronha, fruto dessa união, um ano mais tarde.

É, pois, possível situar a ação desta peça em 1599, pois sabemos que D. João
regressa 14 anos após o segundo casamento de D. Madalena e 21 anos
depois do seu desaparecimento na Batalha de Alcácer Quibir. Mais
concretamente, a ação de Frei Luís de Sousa desenrola-se entre os dias 28 de
julho e 5 de agosto de 1599. A ação começa a uma sexta-feira (28 de julho) e
o segundo ato decorre novamente a uma sexta-feira (dia 4 de agosto).

Curiosidades
A sexta-feira assume um importante simbolismo na obra, estando conotada
com a tragédia. Vários eventos ocorrem a uma sexta-feira:
• D. Madalena casa-se com D. João de Portugal;
• D. Madalena conhece Manuel de Sousa Coutinho;
• Manuel de Sousa Coutinho incendeia o seu palácio;
• D. João desaparece na Batalha de Alcácer Quibir;
• D. João regressa encoberto na figura do Romeiro.

A não esquecer!
Apesar de Garrett não respeitar as regras rígidas da unidade de tempo clássica
(a ação deveria decorrer em 24 horas), a estruturação do tempo assenta
na concentração e no afunilamento progressivo.
Tempo histórico
Frei Luís de Sousa é perpassado por algumas referências históricas, das quais
se destacam:

• a Batalha de Alcácer Quibir;


• a conjuntura nacional, após a perda da independência de Portugal e
consequente anexação a Espanha;
• as alusões a Camões, feitas por D. Madalena e Telmo;
• as referências a Bernardim Ribeiro, feitas por Maria;
• o mito sebastianista, cuja génese se encontra enraizada na época histórica
aqui retratada.

Tempo psicológico
O tempo psicológico é o tempo interior das personagens; a forma como
estas sentem a passagem do tempo. Em Frei Luís de Sousa, as personagens
vivem, antecipadamente, um clima de medo, devido aos presságios de
desgraça que as invadem.

Encontramos evidências do tempo psicológico sobretudo em:

• D. Madalena: 'Tenho este medo, este horror de ficar só... de vir a achar-me só
no mundo!';
• Maria: 'A perda do retrato é prognóstico fatal de outra perda maior, que está
perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa (...)', 'E há... oh! há grande
desgraça a cair sobre meu pai decerto! E sobre minha mãe também, que é o
mesmo.'
Nota:
Por vezes, o tempo psicológico parece coincidir com o tempo dramático;
exemplo disso são as palavras de D. Madalena, que faz várias alusões ao
terror pela sexta-feira e refere repetidamente o advérbio de tempo 'hoje',
anunciador de desgraça, fatalidade e solidão.

Estrutura

Personagens
Apesar de o título dar ideia de que a personagem principal é Manuel de Sousa
Coutinho, segundo W. Kaiser, é mais lógico apontar a família como
personagem principal, porque é à volta dela (pai, mãe, filha, criado) que se
desenvolve a ação. Todas as personagens estão marcadas pelo destino, e são
conduzidas, logo desde o início, para a catástrofe final. É esta família que,
marcada pelo destino e pela fatalidade, enceta um percurso destrutivo que a
leva à morte: Manuel e Madalena professam, Maria morre, Telmo fica só e D.
João fica sem família, sem identidade, sem nome, sem referências.

O universo feminino
As personagens femininas ganham relevo nesta peça e caracterizam duas
gerações — a de Dona Madalena e a de Maria. Têm um instinto apurado, que
as faz pressentir a desgraça iminente através de presságios e premonições
constantes. São personagens modeladas e complexas, com uma intensa
densidade psicológica que advém do conflito interior com que se debatem.

Dona Madalena de Vilhena:


• é uma mulher nobre;
• pertencente à família dos Vilhenas;
• o seu nome evoca a figura bíblica da pecadora, Maria Madalena;
• considera-se pecadora por ter amado Manuel de Sousa Coutinho ainda
casada com D. João de Portugal;
• vive torturada pelo remorso do passado, não chegando a viver
verdadeiramente o presente;
• vive constantemente dilacerada por um conflito que a divide entre os seus
sentimentos e o sentido de dever;
• julga merecer a punição que recebe no final, através da qual se purifica e
redime.
Maria de Noronha:
• é uma jovem donzela, filha de D. Madalena e Manuel de Sousa Coutinho;
• evidencia uma rara inteligência e uma inesperada compreensão do mundo,
por ser precocemente desenvolvida, física e psicologicamente;
• sofre de tuberculose, uma marca tipicamente romântica, assim como o seu
carácter de mulher-anjo;
• está bem patente nela o culto de Camões, a encarnação da 'Menina e Moça'
de Bernardim Ribeiro e a esperança no regresso de D. Sebastião;
• dotada do dom da profecia e de uma poderosa intuição, Maria é marcada pelo
destino e simboliza os inocentes que são vítimas dos pecados dos pais.

O universo masculino
As figuras de D. João de Portugal e de Manuel de Sousa Coutinho são as mais
proeminentes, já que estão na génese do conflito. Apesar de nunca se
encontrarem em cena, D. João e Manuel de Sousa Coutinho causam
sofrimento e infelicidade um ao outro e a sua copresença impossibilita a
harmonia familiar.

Manuel de Sousa Coutinho:


• é um cavaleiro de Malta;
• possuidor das maiores qualidades e de uma fé inabalável;
• é um pai meigo e compreensivo, cuja única preocupação é a saúde de sua
filha;
• é um marido apaixonado e dedicado;
• é um cidadão patriota e heroico;
• revela força e segurança ao longo do conflito.
Após tomar consciência da ilegitimidade de sua filha, fica desesperado e
resolve renunciar ao mundo material. O refúgio no convento e a busca de
isolamento atestam o seu carácter romântico.

D. João de Portugal:
• é um nobre cavaleiro que ama a Pátria e o seu rei;
• é uma presença determinante para precipitar a catástrofe;
• revela instintos vingativos e cruéis;
• evidencia uma profunda paixão por D. Madalena;
• escondido na figura do Romeiro, esta personagem não vive, mas paira no ar
como um espetro terrível, uma ameaça iminente;
• nega a sua própria existência e quase se autoexclui, na sua emblemática fala
'Ninguém!'.

Telmo Pais:
• é o fiel escudeiro da família e o confidente de D. Madalena;
• encarna a chama viva do passado, alimentando os terrores de D. Madalena
com as referências constantes a D. João de Portugal;
• encontra-se dividido entre a fidelidade a seu amo, D. João, e o amor paternal
a Maria de Noronha ('lhe quero mais do que seu pai');
• desempenha um papel semelhante ao do coro da tragédia clássica, através
dos seus diálogos, comentários (apartes) e profecias.
Frei Jorge Coutinho:
• é irmão de Manuel de Sousa Coutinho;
• dotado de sensatez, serenidade e de um espírito ponderado;
• funciona como conselheiro dos que o rodeiam;
• acredita que as inexplicáveis situações da vida refletem a vontade de Deus e
que a Fé funciona como um consolo.
Ao comentar os acontecimentos e indiciar o seu desfecho trágico, torna-se
representante, juntamente com Telmo, das reminiscências do coro da tragédia
clássica.

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