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ANDRE BAZIN U i al CINEMA? Montagem proibida Cin Blane, Baton Rouge Une jéepos comrneles auties A originalidade de Albert Lamorisse ja se afirmava com Bin Ie petit ave [Bim, \ burrico, 1954). Bima € talver, junto com Cris Blanc [Crna Branca, 1953], 0 \inico filme verdadeiro para criangas que o cinema jé produziu. B claro que ‘sxintem outros ~ poucos, aids -, adequados em diferentes graus a jovens es- pevtadotes. Os sovieticos fizeram um esforco particular nesse campo, mas me patece que filmes como Beleet parus dino (Uma vela a0 longe, de Vladimir Leyoshin, 1937] se dirigem antes a adolescentes. A tentativa de produgio es- wializada feita por J. A, Rank foi um fracasso comercial c estético. De fato, © quiséssemos criar uma cinemateca ou catologar uma série de programes ata um piblico infantil, 96 encontrarfamos alguns eurtas-metragens feitos ‘vom esse fim, mas com éxito desigual, € alguns filmes comerciais, dentre os squais os desenhos animados ~ cuja inspiracdo e tema sio pueris.o bastante: ‘1 particular certos filmes de aventura, Neo se trata de uma producio espe- s simplesmente de filmes inteligiveis por um espectador com idade mental inferior a eatorze anos, Como sabern0s, muitas vezes os filmes ameri- 1 Texto pulicado orjinalmente em Cahiers dl Cinéma, 31, 0.65, dex. 1956, pp. 92-36 8 ccanos ndo ultrapassam esse nivel virtual, & 0 que acontece com os desenhos animados de Walt Disney. Obviamente, no entanto, filmes desse tipo nao podem ser comparados com a verdadeira literatura infantil (pouco abundant alii). Jean-Jacques Rousseau, antes dos discipulos de Freud, jé havia advertido que tla ndo era de ‘modo algum inofensiva: La Fontaine é um moralista cinico ¢ a Condessa de Ségur, uma avo diabolica e sadomasoqaista, Ja é notério que os cantos de Perrault escondem os simbolos mais baixos e devemos admitir que a argu- ‘mentagio dos psicanalistas ¢ dificilmente refutavel. No mais, nao é preciso recorrer i psicenilise para perveber a profiundidade deliciosa e aterrorizante ‘que esti no principio de sua beleza de em Alice no pats das maravithas ou nos Contes de Andersen. Bsses autores tém um poder de sonho que sc confunde, Por sua natureza e intensidade, com o da infincia, Nio hi nada de pueril esse universo imaginario, Foi a pedagogia que inventou para es criangas as cores sem perigo, mes basta ver 0 uso que fazem delas para ficar fixado no seu verde paraiso poycado de monstros, Os autores da verdadeira literatura infantil sio apenes rata ¢ indliretamente educativos (talvez Jules Verne seja 0 nico). Sio poctas cuja imaginagao tem o privilégio de ter permanecido no comprimento de onda onitico da infincia. Por isso & sempre ficil afirmar que, em certo sentido, a obra deles & ne- fasta e 86 convém, na realidade, aos adultos. Se com isso querem dizer que ela nao € edificante, eles tem razdo, mas é um ponto de vista pedagogico e nao estético, Ao contrario, 0 fato de o adulto ter prazer em lé-la, e talvez ‘mais prezer do que a ctianga, €um sinal da autenticidade e do valor da obra Oartista que trabalhe espontaneamente para universal. langas alcanga seguramente © batao vermelho [Le Ballon rouge, de Albert Lamorisse, 1956] jé &talvez ma intelectual e por isso mesmo menos infantil O simbelo aparece mais clara- mente em filigrena no mito, No entanto, sua associagao com No reino das fi- daz [Une Foe pas comae es autres, de Jean Tourane, 1957] ressala @ diferenca 84 ‘entre a poesia vilida tanto para eriangas como para adultos ea puerilidade, ‘que s6 podria satisfazer os primeitos. Mas nio quero falar disso desse ponto de vista, Este artigo nao é uma verhudeira critica © s6 evocarel eventualmente as qualidades artistices que siribuo a cada uma dessas obras, Mew propésito seré apenas o de analisar, 2 partir do exemplo surpreendentemente significative que elas oferecem, certas Inia da montagem em sua relagio com a expressio cinematogréfica e, mais ‘esencialmente, sua ontologia estética. Desse ponto de vista, ao contririo, a sproximagdo de O baldo vermelho e de No reino das jadas poderia ser pre- smedlitada, Ambos demonstram maravithosamente, em sentidos radicalmente ‘opostos, as virtudes e os limites da montagem. ‘Comegarei pelo filme de Jean Tourane para constatar que ele €de cabo a ‘abo uma extraordinéria lusteagio da famosa experiéncia de Kulechov so- lire 0 close de Mogjulkhin. Sabemos que a ingénua ambiglo de Jean Tourane fazer um Walt Disney com animais de verdade, Ora, é evidente que os sentimentos humanos atribuidos aos animais sio (pelo menos no essencial) lumia projecao de nossa propria conseiéncia, $6 lemos em sia anatomia ou comportamento 0s estados de alma que mais ou menos inconscientemente Ihes atribuimos, a partir de certas semelhangas exterlores com a anatomia ‘01 com 0 comportamento do homem. Nio devemos desconhecer e subest: ‘nar essa tendéncia natural da mente humana, que s6 foi nefasta no campo ciontifico. E preciso ainda observar que a cigncia mais moderna redescobre, jor engenhasos meios de investigasao, uma determinada verdade do antro- omorfismo: ¢ inguagem das abellias, por exemplo, proved e interpretada com precisao pelo entomologista Von Fricht, vai bem mais longe que as nals louces analogias de um antropomorfismo impenitente, Em todo caso, © erro cientifico esté bem mais do lado dos animais-méquinas de Descartes do que dos semiantropomorfos de Buffon. Mas, para além desse aspecto yrimério, & ovideate que o antropomoriisme procede de um modo de co- inhecimento analdgice gue a simples erica psicolégica nao poderia explicar ‘nem sequer condenar. Sen dominio estende-se. pois. da moral (das Fabu- lus de La Fontaine) ao mais alto simbolismo religioso, passando por todas is zonas da magia e da poesia. ‘Montagem protida 85 Nio se pad, portanto, condenar 0 antropomorfismo a priori, indepen dlentemente do nivel em que se situa Inflizmente temos que admitir que, no caso de Jean Tourane, esse nivel 6 0 mais baixo, A um s6 tempo o mals falso

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