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\ DOUTRINA A CIFRA NEGRA DA CRIMINALIDADE OCULTA * RAUL CERVINI Professor de Direito Penal da Universidade Nacional de Montevidéo © advogado I, Introdugio — II. A cifra negra como norma descriminalizadora — lil. Investigagées levadas a efeito no campo da cifra: negra — IV. Avaliagdo e conclusées. I — INTRODUCAO E considerdvel a confuséo que tradicionalmente se faz sobre alguns conceitos basicos, empregados no campo da investiga¢o da criminalidade oculta. Entre outras causas, pode-se atribuir isto ao fato dé que, histori- camente, grande parte daqueles que estudavam o tema analisavam as cifras sem delas extrair a sua real significagfo, sem avaliar a danosidade social que cada caso de impunidade, latente ou manifesta significava. A partir dos anos 60, a politica criminal, redescoberta na Europa, em razdo da crise que atinge a dogmatica, e diante da urgente necessidade de se encontrar novas solugdes para velhos problemas, e, sobretudo, para os recentes problemas que atingem a sociedade contempordnea, conver- teu-se na forga propulsora de um grande movimento internacional de refor- ma do Direito Penal. Gracas ao impulso desse “espirito de reforma”, vai-se delineando o sentido e o alcance das diferentes manifestagdes da criminalidade oculta. Nesse contexto renovador, a existéncia das chamadas cifras “negra” e “dou- rada” da criminalidade denunciam disfungdes do sistema diversificado tipo, e que reclamam, também, solugdes diferentes. Através desta exposigéo, procuraremos evidenciar a natural relacao existente entre certas formas de delingiiéncia oculta, de pouca danosidade social, que esto incluidas dentro da cifra negra da criminalidade e con. veniente critério descriminalizador. Por certo que esse nao € 0 nosso posi- cionamento, como temos manifestado em trabalhos anteriores, acerca de outras categorias de andlise da criminalidade oculta — esta, sim, de grande 1. Trad. do Prof. José Henrique Pierangelli ¢ da advogada Maria Alice Andrade Leonardi, O autor ¢ o tradutor representam seus paises junto ao Instituto Interame- ricano de Direitos Humanos, érgao ligado a ONU e OEA, com sede em San José da Costa Rica. Ba nocividade: social.—-, yinculadas ao exercicio abusivo do poder politico, da fortaleza ecohdmica; e, inclusive, da especializagéo profissional —. cuja manifestagao mais relevante € 0 dominio funcional ou operativo dos: meios tecnolégicos —, conhecidas como cifra dourada da criminalidade. * As tendéncias de descrimimalizagao e de criminalizacio, como ensina Barbero Santos,3 devem operar’ simultaneamente, como .instrumentos’ de um mresmo € imprescindivel processo renovador do Direitd Penal. Em tal sentido, deve-se proceder descriminalizagéo de maneira .responsdvel, dos delitos menores, que congestionam o sistema, e, a0 mesmo tempo, crimi- nalizar.condutas quando inexiste outro recurso para a protecéo da comu- nidade — ullima ratio — exatamente aquelas condutas de grupos privi legiados, de auténtica nocividade social, que tém permanecido fora da pri- meira investigagdo, ou seja, do primeiro nivel de selecdo abstrata norma- tiva, e, em todo caso, realizar uma prévia avaliacgéo e um estudo sobre os custos € os efeitos destas novas tipificagées. If — A CIFRA NEGRA COMO NORMA DESCRIMINALIZADORA, Como corolério natural do principio descriminalizador acerca das auto- nomias culturais, tem-se assinalado que uma proibicéo nao deve ser inclui- da numa lei penal se nao for possivel colocd-la em vigor, ou, mais preci- samente, st s6 uma pequena porcentagem de infratores é atingida pelo sis- tema penal.¢ Surge, entéo, imediatamente, a seguinte questdo: qual é o limite que se deve dar a essa pequena porcentagem? Isto € praticamente impossfvel de se responder com preciséo, e também muito dificil de se responder, sem’ que se tenha respondido a uma questo mais fundamental: Por qué a inaplicabilidade relativa € um argumento descriminalizador? Partindo-se da’ perspectiva da minima intervengao, assinala-se que a existéncia dessa cifra negra, que Aniyar de Castro define como a diferenga existente entre a criminalidade real (quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinadds) e a criminalidade aparente (criminalidade conhecida pelos érgéos de controle),® indica, comprovadaménte; acerca 2. Raul Cervini, “Anélisis Criminolégico del Fenémeno del Delito Organizado”, in Revista Doctrina Penal, n, 40, octubrediolembre, aio 10, Editorial Depalma, Buenos Aires, 1987, pp. 689 e ss. __ 3, Marino Barbero, Santos, “La Defensa Social: Tyeinta afios después”, Revista Doctrina Penal, aio 8, Editorial Depalma, Buenos Aires, Argentina, 1985, p. 212; ¢ Marind Barbeto Santos, Delito Coritra el Orden Sécio-ecéndmico: Presupuestos en la’ Reforma Penal. Cuétro’ Cuestiones Fundamentales.” Publicacién de ‘la Primera Cétedra de Derecho Penal de la Universidad de Madrid, 1982, p. 151. 4. Nigel Walker, La Técnica de Sentenciar en una Sociedad Racional. Edito- riel Monte Avila, Caracas, Venezuela, 1969, p. $8. 5.. Lola Aniyar. de Castro, Criminologia de la Reaccién Social. Instituto de Cri- minologia, Universidad de Zulia, Masscaibo, 1977, p. Bl. / 155 de alguns delitos, um percentual substancial, em que néo é aplicado o sis- tema penal, e que, em alguns casos, é praticamente absoluto, circuns- tancia que debilita a sua prépria credibilidade, ou seja, a credibilidade de todo o sistema penal. Este ponto é contestado por alguns autores, fundamentalmente os vin- culados ao chamado “novo realismo americano”, de que na histéria de todo Cédigo Penal sio observados inumerdveis exemplos de proibicées, que se permitiu tornd-las obsoletas, sem que se tenha constatado uma debi- lidade acerca das partes operativas do Cédigo. Ademais, ajuntam um outro argumento a favor da retengao, ou de se incluir proibigdes no aplicaveis, ao assinalar que a lei influi sobre a conduta, e ndo simplesmente porque a pessoa se sente dissuadida em razao das poss{veis conseqiiéncias de infrin- gi-la, mas, sim, também porque a toma como uma declaracao daquilo que a sociedade em quest4o, majoritariamente, condena. ® A primeira dessas afirmagées parte do dogma positivista de que tudo © que tem forma de lei e esté incorporado a um texto penal é lei penal. Seguindo Zaffaroni,” entendemos que a imprescindivel efetividade de um texto penal s6 surgiré quando todas as suas normas servirem ao homem para alguma coisa de valor significativo; do contr4rio, nao nos encontra- remos diante de um Direito Penal antropologicamente fundamentado, ¢ esses textos serao fonte de permanentes tensdes e conflitos sociais. Por outro lado, a resposta ao segundo argumento é de principio e surge através de uma complexa avaliagdo critica, que arranca no mesmo processo de criminalizagéo de condutas culturalmente aceitas e continua em outro nivel, com a andlise da execugaéo das normas, especialmente atra- vés do estudo da formacao do estereétipo do delingiiente e da chamada dis- tribuig&o diferenciada da imunidade, que mais adiante examinaremos. Mas, desde jé, adiantamos que nos sentimos inclinados a pensar que, se aqueles que sao julgados por um delito determinado s&o considerados como uma pequena e desafortunada selegaéo dentre os que tenham cometido 0 mesmo delito, o ptiblico considerard 0 seu processo injusto, e esse sentimento coleti- vo certamente levard & perda de reputagio de todo o sistema repressivo e que tal sentimento bem poderia ser irracional — especialmente se os infra- tores compreenderam que estavam correndo o risco de serem julgados — isto nado impediré a existéncia de um sentimento muito difundido e desa- gregador. Elucidados, pelo menos provisoriamente, éstes pontos, dedicaremos a nossa atengao a andlise dessas formas de criminalidade oculta, conhecidas como cifra negra, cuja existéncia liga-se inequivocamente, na nossa maneira de ver, com uma tessitura descriminalizadora. 6. Nigel Walker, La Técnica de sentenciar (...), op. cit., pp. 50 € ss." 7. Eugenio Rail Zaffaroni, Manual de Derecho Penal: Parte General, Editorial Ediar, Buenos Aires, Argentina, 4." ed., 1985, p. 302. 156 II — INVESTIGACOES LEVADAS A EFEITO NO CAMPO DA CIFRA NEGRA Faz j6 varios decénios, a atengdo de muitos criminélogos e sociélogos tém sido atrafda por esse fenémeno chamado de “a cifra negra” ou “campo obscuro da delingiiéncia”, ainda que a partir de um enfoque que, como diz agudamente Hulsman, nao era especificamente de critica ao sistema em si. A criminologia empjfrica, com efeito, destacava como anomalia a exis- téncia de um bom ntimero de infragdes penais, varidvel segundo a sua natureza, que nao era conhecido “oficialmente”, nem detectado pelo siste- ma e, portanto, tampouco, perseguido. Lembra-nos Hassemer ® que o primeiro intento da criminalidade clés- sica de diluir as implicagdes derivadas da existéncia das cifras obscuras foi feito através da tese acerca da “diferenca constante” entre a crimi- nalidade real e a que chega a ser conhecida: a criminalidade real e a conhecida encontram-se sempre na mesma proporcéo, uma em relagéo & outra. Com esta tese, a existéncia das cifras obscuras nao poderia preo- cupar nem mesmo minimamente a criminologia tradicional, pois suas rela- goes e valoragdes bésicas resultariam corretas, ainda que a delingiiéncia conhecida fosse quantitativamente menor do que a realmente existente. To- davia, tratava-se de uma concepgao estatica, que partia de premissas falsas, porquanto, ou desconhecia o fendmeno de mutagdo social ou entéo admitia que o fenémeno de mudanga social influisse sobre a criminalidade, reci- clando, de modo dindmico, as suas diferentes instancias. Nos tltimos anos, a partir de outra perspectiva e fundado em outro rigor cientifico, a sua existéncia provoca diversas interrogagdes, que, muito além das insuficiéncias dos organismos policiais de detectagéo e de con- trole ou da ineficiéncia de certas técnicas criminalisticas, envolvendo o funcionamento de todos os segmentos do sistema penal. Pode-se afirmar que um dos ataques mais certeiros 4 criminologia tradicional, de cunho positivista, tem-se centrado justamente no fato de que os seus estudos esta- vam dirigidos ao exame de populagdes de reclusos como indice significati- vamente representativo da delingiiéncia real da sociedade e fundamentados principalmente nas estatisticas off Historicamente, a criminologia positivista concentrou-se na ilusoria tarefa de encontrar caracteres diferenciais que pudessem explicar o delito através do delingiiente “fichado”, descuidando daquilo que, hoje em dia, temos por evidente, ou seja, o fato de que as populagdes carcerérias nao formam um indice significativo em relagaéo & proporgao real de delin- qiientes de uma sociedade, posto que, embora muitos individuos cometam 8. Winfried Hessemer, Fundamentos de Derecho Penal, Editorial Bosch, Bar- celona, 1984, p. 75. 157 atos apenadas pela’ Jei, em: muitos casos ‘eles nao saa détectados, bu, seo so, nessas ocasides se ]hes dd um tratamento diferenciado, KS Acentua Baratta que o sistema s6 pode recrutar uma parte infinite- simal de .sua clientela potencial e-que, precisamente, ‘os estudos sobre a “cifra obscura” da criminalidade e sobre a prdpria organizagao da justiga penal demonstram claramente que “o sistema s6 pode aplicar sangdes pe- nais previstas pela lei a um percentual dos reais infratores que, num pro- médio relativo a todas as figuras delitivas, nas sociedades centrais, nao é superior a um por cento”.® E tudo isto, segundo o mesmo autor, em face da inadequacdo, do enorme desencontro existente neste ‘sistema entre os programas de acdo (processo legislativo, criminalizaco priméria) e os recursos administrativos de que o sistema dispde para implementar esses programas (criminalizagao secundaria). Evidentemente, se os estudos acérca dos delingiientes versam, na sua maioria, sobre estatisticas oficiais realizadas com populagdes de reclusos, teremos uma viséo distorcida e incompleta das dimens6es reais do problema da criminalidade nas nossas sociedades, porque j4 nao podemos cerrar os olhos ao fato de que a justica é aplicada de maneira diferenciada, a ponto de, segundo a afirmaco de Hassemer, os presos encontram-se nas insti- tuigdes penitencidrias, nfo porque se conhega suas condigées reais de delingiientes, mas sim baseada em uma imputagao de tal condicao, funda- mentada em uma definigao. !° Diante disso, podemos nos perguntar como o faz a criminédloga venezuelana Miriam Gicovate Postaloff: 1! sera que realmente os individuos que integram uma populagao carceréria sio dife- rentes daqueles que compdem a massa que nao tém sido detectada, ou que tem sido revelada, nao tem sido processada? E, tendo atingido esse ponto, perguntamos ainda: Quais sao os caracteres que possuem aqueles indivi- duos que sdo efetivamente detectados e processados? Faz-se necessério, entio, recorrer-se As nogdes de estigma ¢ de estered- tipo do delingiiente, as quais fazem seu finca-pé na existéncia de uma idéia ow idéias preconcebidas, sobre a qual ou quais sao as caracterfsti- cas do delingiiente, sobre cuja base projetam-se e dirigem-se, inclusive, as medidas € operacGes policiais. 9. Alessandro Baraita, “Requisitos Minimos de Respecto de los Derechos Hu- manos en la Ley Penal”, Revista Criminologia y Derecho I, Editorial Fundacién de Cultura Universitaria, Montevidéo, Uruguay, 1987, pp. 7 © ss. No mesmo sentido: Alessandro Baratta, “Principio del Derecho Penal Minimos: Para una teoria de los derechos humanos como objeto y limite de Ja ley penal”, in Revista Doctrina Penal n, 40, octubre-diciembre, afio 10, Editorial Depalma, Buenos Aires, Argentina, 1$87, pp. 623 ¢ ss. 10. Winfried Hassemer, op. cit., p. 75. 11. Miriam Gicovate Postaloff, Los Procesos de descriminalizacién, Imprensa de la Universidad Nacional de Venezuela, Faculdad de Ciencias Juridicas y Polt- ticas, Caracas, Venezuela, 1982, pp. 55 ¢ ss 158 Precisamente, a tese de Denis. Chapman’? dirige-se, a desmistificagao das..categorigs de delingientes, Sua. idéia central é a.de.que o,orime é.um fenémeno generalizado , dentro da, sociedade,, que.ndo $6 os etiquetados, como os. desviados ou ,délingiientes infringem as leis, ainda que as. conde~ nagdes recaiam, sistemdtica ¢ inexoravelmente sobre eles, enquanto. que outros membros da sociedade, ec. certos grupos sociais, gozam de virtuab impunidade. Para este autor, ndo mais existe diferenga, entre os rotulados como delingiientes e ndo delingiientes que a condenasao, ou seja, que dois individuos podem haver cometido delitos, mas s6 0 que é-condenado passa a ser considerado como. tal. Essa “‘incidéncia diferenciada da con- denagdo” deye-se fundamentalmente aos processos, socisis que dividem a sociedade em classes criminais e, inclusive, ao ambiente institucional pro- tetor, no qual passam a maior parte de suas vidas, ou no, qual passam parte do tempo. ou participam de.algumas de suas atividades. 18 Contemporaneamente, analisando as causas da falta de funcionalidade do sistema, Arno Pilgram™ expde que o fendmeno de selecao se produz através de um processo de filtragdo escalonado, j4 que indo além do pré- prio legislador, tanto os autores como as vitimas, as testemunhas, a polf- cia, os promotores de justica e os tribunais atuam como “filtros” determi: nantes na cleigéo de quais acontecimentos devem ser definidos como delitos e quais pessoas devem ser classificadas como delingiientes, com todas as conseqiiéncias que disto resulta. '5 12. Denis Chapman, “El Estereotipo del Delincuente y. sus Consecuencias So- ciales”, in Estigmatizacién y Conducta Desviada, Recopilacién de Rosa del Omo, Maracaibo, Venezuela, Universidad de Zulia, Centro de Investigaciones Criminolé- gicas, 1974, pp. 169 € ss. Sobre o mesmo ponto v. Sonia ‘Navarro Solano, Estignia- tizaci6n, Conducta Desviadu y Victimizacién en una Zona Marginalidad, editado pelo Ianud, San José, Coste Rica, 1983; José Enrique Castillo Barrantes, Becker y Chap- man: Crimindlogos Interaccionistas: El Interaccionalismo simbdlico en criminologia visto en dos de sus representantes. Editado pelo Yanud, San José, Costa Rica, 1980. 13. Denis Chapman, op. cit., ut supra, p. 170. 14. Arno Pilgram, “Kriminalitét in Osterreich: Studien zur Soziologie der Kri- minalitatentwicklung, Viena, 1980, cit. por Eugenio Zaffaron”, in Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina (Primer informe). Documentos y cuestio- narios elaborados para ei Seminario de San José, Costa Rica, 11 a 15 de julho de 1984, Buenos Aires, p. 140. 15. A partir de um enfoque dogmético diferente M. Pavarini in: “Ricerca un Tema criminalita economica”, La Questione Criminale, 1975, pp. 937-545, ensaia uma classificagio das causas de impunidade em duas grandes categorias. Em primeiro lugar, encontramse as causas de tipo legislative, que se referem tarito a estrutura geral do direito punitivo burgués, como a configuragdo dos tipos penis e a propria natureza ideoldgica do Direito Penal como instrumento de matriz classiste. Em segundo lugar, assinala a existéncia das causes relacionadas éom a aplicagao da lei penal, que aludem tanto as dificuldades de criminalizagao: priméria (quando @ norma incriminadora existe, mas néo é efetivamente eplicada), como as de criminalizagao secundaria (quando a norma penal é aplicada, mas © condenado nfo é estigmatizado, vele dizer, néo sofre a marca social ou juridica como conseqiiéncia da pena); Winfried Hassemer, op. cit. ut. supra, pp. 76 ¢ ss., refere-se a uma série de fatores 159 Com acerto, acrescenta o Professor Zaffaroni que, conquanto o Esta- do de Direito requeira, entre outras condigdes bésicas, a absoluta submis- so de todos os seus habitantes & lei, qualquer que seja a posigao social que ocupem e a funcdo que desempenhem, na realidade constata-se uma desfigurag&o desse Estado de Direito, que se verifica fundamentalmente, no plano social, mediante a criagéo dos meios massivos de comunicagio, de um esteredtipo criminal completado sobre a imagem exteriorizada dos seto- res marginalizados e da criminalidade convencional, posto que, por dife- rentes caminhos, ocultam-se ou dissimulam os crimes chamados “de cola- rinho branco”. Diversas investigagdes, especialmente realizadas nos Esta- dos Unidos e na Escandindvia, tém destacado que o risco de ser preso aumenta significativamente em razio inversa & situag&o sécioeconédmica. 1° Isto coincide com a maneira em que se estrutura a repressao penal em relagao a certas manifestagdes delituosas privilegiadas, p. ex., a econd- mica, que sempre é exclufda, vale dizer, que nfo criam carreiras criminais, é que, nfo obstante o que se faz, nfo possuem um efeito estigmatizante. Pode-se, entdo, dizer que o estigma atua como um componente funcional do sistema social, j4 que ao criar os estereétipos, criam também elementos simbélicos facilmente manipuléveis. Dessarte, o esteredtipo do delingiiente & que provém do proletariado, ou do subproletariado cresce em condigdes econémicas ¢ efetivas reputadas como precérias, que o véo determinando a ser um individuo adulto instdvel, agressivo & sociedade e incapaz de integrar-se ao seu processo produtivo. Definitivamente, esse esteredtipo do delingiiente se concretiza naqueles que integram os grupos marginalizados. 17 Fundados no que foi exposto, numerosas investigagGes acerca dessa cifra negra da criminalidade tém rentado pdr em evidéncia a exata quanti- dade desses fatos legalmente puniveis que o sistema ignora ou descuida. Os procedimentos empregados para esse fim séo muito variados. Nesse sentido, 0 autor alemao Hassemer '8 ressalta a utilidade de trés varidveis metodolégicas fundamentais, a saber: a) averiguagdes em relagdo aos auto- que atuam sistematicamente: a) néo resultam perceptiveis todos os delitos que se cometem; b) nem todo delito que foi observado por alguém chega 20 conhecimento das autoridades; c) nem todo delito conhecido pelas autoridades resulta esclarecido pela policia; d) ao esclarecimento policial de um delito, nem sempre se segue uma aco judicial; e) nem todo delilo em que o Ministério Publico tenha formulado a dentincia € julgado e termine através de sentenga; f) ainda quando se chegue a Juizo e se constate a existéncia de um delito, nem sempre 0 acusado € condenado. 16. Servin Carlos Versale, Las Cifras Doradas de la Delincuencia. Revista Hanud al Dia, afio 1, n. 1, San José, Costa Rica, abril de 1976, p. 22. 17. Eugenio Ratil Zaffaroni, En busca de las Penas Perdidas: Desligitimacién y Dogmdtica Jurtdico Penal. Editorial Ediar, Buenos Aires, 1989, p. 135, assim se manifesta: “Na América Latina, o esteredtipo sempre se nutre com os caracteres de homens jovens das classes mais carentes, ressalvados nos momentos de violéncia polftica ou aberto terrorismo de Estado, em que o esteredtipo se desvia para atingir 08 vardes jovens da classe média (0 jovem subversivo) (...)”. 18. Winfried Hassemer, op. cit., p. 76. 160 res ou técnica da autodendncia; b) averiguacées em relagéo as vitimas; c) averiguagdes em relacao aos informantes. A essas técnicas de base, podemos ajuntar: d) o sistema das varidveis heterogéneas, proposto pot Wehner," e, inclusive e) a técnica do segui- mento operativo destinado aos agentes do controle formal (policia e tribu- nais), que encontra-se introduzida na obra de Hoods e Sparks *° e, em segui- da, desenvolvida metodologicamente por Aniyar de Castro. * A) Através de autodentncia, submete-se a interrogatério um grupo de pessoas da populagao em geral, acerca dos fatos delituosos que foram cometidos, tenha ou nao havido processo. Trata-se de se estabelecer o niimero real de pessoas que cometem ou que tenham cometido delitos, com © que se amplia o nosso panorama da delinqiiéncia real, possibilitando realizar comparacgées entre a percentagem de delingiientes oficiais e a dos desconhecidos. Isto exige, freqiientemente, como é dbvio, a escolha de uma amostragem representativa da populagdo. Certamente, surge a indagagdo acerca de quantos individuos que, mesmo tendo praticado delitos ¢« que nao foram detectados, admitiram o seu cometimento, quando se esta realizando uma investigagao desta natu- reza, por mais penetrante e reservada que esta seja. Em conseqiiéncia, como afirma Hulsman, ** neste meio é diffcil, oferecer cifras precisas, e aquelas que sao propostas sao, freqiientemente, pouco confidveis e variam de um pais para outro. Nao obstante a reserva exposta, 0 mesmo autor cita, para fornecer uma orientagéo acerca da magnitude do problema, uma pesquisa que realizou numa empresa de Friburgo, Alemanha. Dessa investigacéo obteve como resultado, que, de 800 fatos ocorridos no interior dessa firma e que poderiam ser criminalizados, s6 um o fora. B) As averiguagdes em relacdo as vitimas possuem caracteristicas bem diferentes, porque a informagéo é obtida mediante interrogatério com individuos da populagéo comum, acerca dos delitos de que tenham sido objeto, vale dizer, que nos proporciona uma orientagdo diferente, posto que permite investigar as razGes que levam & falta de dentncia, e, por outro lado, entre aqueles que foram denunciados, quais ndo foram indi- ciados ou processados e por qual razic. Evidencia-se, pois, que através deste método, pode-se alcangar um indice nem real em casos de alguns tipos de delito, como, por exemplo, furto, roubo, dano. Mas, em outros, como os de estupro, os resultados podem apresentar-se alterados, em face do aspecto social (problemas de 19. B. Vehner, Criminotogia, Citado por M. Rey Lopez, t. I, Editorial Aguilar, Madrid, 1975, p. 478. 20. Roger Hoods ¢ Richard Sparks, Problems Claves en Criminologia. Biblio- teca para el Hombre Actual, Ediciones Guadarrama, Madrid, Espafia, 1970, p. 74. 21. Lola Aniyar de Castro, op. cit., p. 85. 22. Louk Hulsman, op. cit., p. 93. 161 imagem). E certo que tampouco as pesquisas refletiréo as cifras reais relativas Aqueles delitos em que o autor é sua prépria vitima, como é o caso dos jogos de azar, e que requerem uma espécie de cumplicidade entre © individuo e o prejudicado. Por tiltimo, devemos ter em conta aqueles acontecimentos que a prépria vitima os considera delito, seja em razio de valoragdes subculturais ou por tratar-se de fatos especialmente prdéxi- mos, que as pessoas nao inscrevem no registro da “criminalidade”, a que se refere Hulsman. *% Na América Latina, podemos lembrar a investigagao de campo dirigida pelo professor mexicano Luis Rodriguez Manzanera, ** na cidade de Jalapa, Estado de Vera Cruz, onde, com a ajuda de alunos da Universidade, inves- tigou 3.000 pessoas, com a finalidade de estabelecer as margens da viti- mizagao oculta e, por conseqiiéncia, a avaliagao dos fatos que nao chega- ram ao conhecimento da justica. As conclusdes foram surpreendentes: uma entre duas pessoas admitiu ter sido vitima de um delito durante o ano anterior ao da pesquisa (1975), mas somente 22% denunciou o fato, circunstaéncia indicadora de que 4 entre 5 delitos permaneceram na cifra negra e nao chegaram ao conhe- cimento da autoridade (pelo menos mediante delagao da vitima). Indagados a informar as raz6es que os inibiram de recorrer A auto- tidade acerca dos fatos, 45% disseram que, levando o fato ao conhecimento da autoridade “sé se perde tempo, e as autoridades no fazem nada”; 26% ndo fizeram a dentncia por considerar que isso nao valia a pena; o medo de vinganga alcangou 11% e o temor ou vergonha em relacfo a investigagdo chegou a 8,2%. De se concluir, portanto, que a desconfianga nas autoridades foi ressaltada pela maioria, como a primeira causa da impunidade, seguida pela consideragdo de que a conduta lesiva no era realmente grave. Por sua parte, nos Estados Unidos, a Comisséo Presidencial que se encarrega do cumprimento da lei e da administracdo da justica, realizou em 1980 uma pesquisa, cujas conclusdes — em que pese a diversidade do 23. Louk Hulsman, op. cit., en note n. 4 da p. 93, assim se expressa: “Se pide a las personas que participan, en estas encuestas que digen — en un contexto andni- mo, evidentemente — si en el curso de un periodo determinado han sido victimas de infracciones, de cudles, por parte de quién, si han presentado una denuncia, etc. Los resultados de estas encuestas me han impresionado particularmente. El cuestio- nario preguntaba: ‘Ha sido usted victima de alguna agresién? (lo que en el sistema penal se suele Ilamar delito de lesiones personales)’. ‘Fue alguién que usted cono- ciera?’. ‘Fue alguién de la familia?’ Pues bien, nadie respondié afirmativamente a esta Ultima pregunta, en circunstancias en que esta clase de frecuente (en Jos Paises Bajos se puede decir que un 50% de las mujeres han sido golpeadas por sus maridos). Ha visto en la negacién de la evidencia una especie de signo: cuando se trata de acontecimientos préximos, la gente no los sitia en el registro de Ia criminalidad”. 24. Luis Rodriguez Manzanera, “Victimizacién en una Ciudad Mejicana”, Re- vista Hanud al dia, aio 4, n. 40, San José, Costa Rica, abril 1981, pp. 77 € ss. 162 meio sécio-cultural investigado — resultaram relativamente similares &s ob- tidas por Rodriguez Manzanera, em Jalapa, vérios anos antes. ** A respeito das motivagGes que inibem as vitimas em denunciar, existe um trabalho especffico e inédito de Hilda Marchiori, cujas conclusdes toma- mos conhecimento através de Elfas Neuman. ** Elas séo, em sua ordem: — o temor do ofendido de sé-lo novamente (medo em relagao ao autor do delito); — por nao considerar grave a conduta lesiva; — ndo confiar na justica; — temor de causar preju(zo ao autor, por ser membro da famfli — a perda Ue tempo implicada na delagdo e nos tramites judi — a vitima agrediu o autor e sabe ser tao responsdvel pelo delito como este; — a delagao a prejudica: estupro, estelionato, etc.; — a vitima na@o tem provas, ou desconhece o autor; — para evitar serem novamente vitimizados pela policia, peritos fo- renses, Juizes; — pela pressio familiar e social em ser identificada como vitima de determinados delitos, que a marginaliza e humilha. C) As averiguagdes em relagéo aos informantes tém a vantagem de que, por se tratar de uma amostragem acerca de fatos relativos a terceiras pessoas, proporcionam numa primeira instancia, dados bastante desinibidos e confidveis, sempre que nao realizados dentro de um reduzido Ambito sub- cultural e geogrdfico, decorrentes de conhecimentos prdprios e imediatos quanto ao tempo decorrido.?” Sobre essas bases ¢ tomando cuidado no observar um minimo de rigor metodoldgico, os informantes devem ser questionados acerca da circunsténcia que Ihes permitiu um conhecimento direto sobre o cometimento de algum delito num determinado lapso tem- poral e num determinado lugar. D) Na teoria, o sistema de varidveis heterogéneas, devido principal- mente & sua flexibilidade operativa e tracado escalonado, parece resumir todas as vantagens dos métodos j4 analisados, conquanto na sua aplicaco pratica se tenha mostrado como um procedimento por demais complexo e custoso. Os crimindlogos norte-americanos Riley ¢ Nélson,”* informam 25. Luis Salas, “La justificacién de los Estudios de Victimizacién en América Latina”, Revista Hanud al dia, afio 4, n. 10, abril 1981, San José, Costa Rica, p. 37. 26. Elfas Neuman, Victimologia: El Rol de la Victima en 106 Delitos Conven- cionales y no Convencionales, Editoriel Universidad, Buenos Aires, Argentina, 1984, p. 48. 27. H. M. Blaloch jr., Introdugdo @ Pesquisa Social, 2+ ed., Edigdes Zaher, Rio de Janeiro, 1976, p. 70. 28. Matilda White Riley ¢ Edward E, Nélson, A observagdo Sociolégica. Edi- ges Zahar, Rio de Janeiro, 1976, pp. 199 € ss. 163 que uma pesquisa deste tipo, realizada pelo Bowdoin College, exigiu trés niveis de controle informético para se chegar a resultados de valor mediano, entre os quais se mencionam: — EF substancialmente maior a cifra negra de delitos leves em relagao aos graves. — As vitimas tém uma crescente tendéncia @ autocomposigio no campo das infragdes menos graves e de mediana gravidade. O mesmo procedimento foi utilizado por Lopez-Rey,* na Turquia, com a finalidade de detectar a cifra negra de abortos nessa regiao, fato que se atribuiu principalmente & adocdo de um método inadequado, real- mente complexo para um pafs em outro est4dio de desenvolvimento. E) Por tltimo, a técnica do seguimento operativo dos agentes de con- trole social (policia e tribunais) reverte o enfoque e dirige os seus esforgos no sentido de estudar as causas reais de vulnerabilidade ¢ de disfungdes de todos os segmentos do sistema penal. Como temos assinalado, todos os segmentos do sistema penal interyém em um processo de filtragéo por etapas e, conquanto seja certo que uma grande quantidade de vitimas se abstém de denunciar os fatos delitivos & policia, esta tampouco transmite todos os acontecimentos que lhes sao noticiados a justiga, que, por sua vez, arquiva a maior parte dos fatos que lhes sio submetidos. Com precisio, os ctiminélogos Hoods e Sparks, # examinando esse poder discricionério da policia em relagéo a certos delitos, se perguntam: sua atuac&o, em certas oportunidades, nao dependerfio do jufzo que fazem OS seus agentes sobre ser ou nao uma atividade delitiva? Por exemplo: em relaco aos jogos de azar, aborto, drogas, etc., para, em seguida, acre: centarem que alguns observadores créem que o miimero de crimes regi: trados reflete simplesmente aquilo que os recursos de que dispde a polfcia, enquanto outros, a isso acrescentam que a policia tem interesse em manter uma crescente razio criminoldgica. Numa {ntima relagdo com essas conclusdes, Biderman e Reiss *! refe- rem-se a um aspecto sumamente importante, como o é o fato de que uma organizagaéo operacional como a polfcia, prefere nao se inteirar de fatos além daqueles que pode abarcar com os seus recursos, e, por isso, sele- ciona as suas investigagdes no sentido de que estas se encaixem com os fins préprios da organizagao, sua estratégia e suas taticas. Complementariamente, Hulsman, * recolhendo os resultados de uma pesquisa realizada por P. Robert e C. Faugeron, conta-nos que na Franga, o 29. M. Lopez-Rey, op. cit., p. 483. 30. Roger Hoods Richard Sparks, op. cit, pp. 74 € ss., v. Lola Aniyar de Castro, op. cit. ut supra, pp. 85 e ss. 31. Biderman e Reiss, tomado de Hoods e Sparks, op. cit ut supra. 32. L. Hulsman e J. B. de Cellis, op. cit., p. 53 (nota n, 6). 164 Ministério Publico, que é quem decide sobre a oportunidade da promogéo da agéio penal em face dos fatos puniveis, arquiva dois tergos das investi- gacdes que lhes sao submetidas, e que investigagées sérias realizadas acerca do poder discriciondrio dos agentes encarregados de introduzir os fatos no sistema, demonstram que “nos diferentes niveis de selegéo atuam todas as classes de critérios, que nada tém a ver com os principios legais: p. ex., um assunto é admitido ou nao, segundo o volume de expedientes do res- pectivo tribunal”. Na doutrina nacional, Langon Cufarro escreveu: “Nds nado estamos fazendo uma critica a esta realidade, mas simplesmente constatamos um fato: o do tremendo poder discriciondrio de que dispde os magistrados. De todas as condutas proibidas pelo legislador, s6 algumas séo objeto da atividade institucional da parte dos detentores do controle. Mediante dife- rentes critérios, no geral benevolentes e com fins de justiga, so os policiais, promotores de justica e jufzes aqueles que realmente decidem que delitos vo ser perseguidos, de que forma e com qual intensidade”. Mais adiante, acrescenta: “(...) o que prevalece é 0 principio da oportunidade, derivado de um processo de selecdo inevitével, que ocorre porque o Estado nao poderé jamais investigar todos os fatos delituosos, nem sequer todos os que sao delatados”, 3° IV — AVALIACAO E CONCLUSOES A valoragao do real significado e implicagdes relativas a cifra negra da criminalidade presta-se, como € dbvio, ainda contemporaneamente, a vérias ligdes. Estas sio exibidas num amplo espectro, que vai desde uma teoria particular da pena, que tem-se desenvolvido nos ultimos anos na Europa, chamada de “integracao-prevencao”, que pretende legitimar inte- gralmente o funcionamento do sistema penal, mesmo aceitando a sua sele- tividade, ao mais radical abolicionismo. 1. Tremos nos ocupar em primeiro lugar da teoria da “prevengio- integracéo”, também conhecida como “teoria da preveng&o positiva”, que tem encontrado a sua exposi¢ao mais perfeita no recente tratado de Gunthet Jakobs. ** De acordo com Baratta, *5 esta perspectiva sistemdtica parte da 33. Miguel Cufiarro Langon, Enfoque Critico sobre la Criminalizacién de las Faltas, Trabalho inédito, vers. mimeogrdfica de sua conferéncia na cidade de Tacua- remb6 durante o Congresso da Associagéo de Magistrados do Interior, outubro de 1989, pp. 18 e 19. 34. Gunther Jakobs, “Strafrecht Allgemeiner Teil: Die Grundlagen und die Zurechnungslehre”, De Gruyter, Berlin/New York, cit. por Alessandro Baratta, “Integracién-Prevencién: una nueva fundamentacién de {a pena dentro de la teoria sistemica”, in Revista de Derecho Penal n. 29, enero-marzo de 1985, Ed. Depalme, Buenos Aires, p. 4. 35. Alessandro Beratta, Integracién-Prevencion (...), op. cit, pp. 3 € ss. 165 concep¢ao Luhmanniana do Direito como instrumento de integraciio e esta- bilizag&o social dos sistemas complexos, e é nesse ponto conceitual que se explica o sentido e a fung&o do delito, da pena, e, inclusive, da propria cifra negra, na obra de Jakobs. A) O delito é visto como uma ameaga & integridade e & estabilidade do conglomerado social, na medida que € a expressiio simbélica de fide- lidade ao direito, que faz estremecer a confianga nas instituigdes. A pena, por sua vez, constitui para esse autor, uma expressao simbdlica simetrica- mente oposta aquela representada pelo delito que, como instrumento de prevengao positiva, tende a restabelecer a confianga e afirmar a fidelidade ao direito, antes de tudo e principalmente em relagdo a terceiros. Por outras palavras, para este novo enfoque sistémico, a reprovabilidade da conduta nao se funda na leséo de bens juridicos e nem no principio de culpabilidade, mas sim, e principalmente, na prevengdo positiva do signi- ficado simbélico da atividade do individuo contréria A norma. B) Assentada sobre essas bases, a existéncia de uma avultada cifra negra de delingiiéncia nao provoca qualquer inquietagéo em relacdo ao funcionamento real do sistema. Indo além, esta teoria, por certo, legitima © principio de seletividade e os mesmos processos de imunizagao da res- posta penal, posto que, como bem se expressa Baratta,** o delingiiente condenado € visto como “um individuo a fun¢go punitiva, que esté cen- trada no restabelecimento da confianga nas instituigdes por parte do res- tante da comunidade, confianca esta que foi quebrada pela iniragdo penal, na determinag&o dos valores protegidos pelo sistema penal e na integragao social”. O professor de Saarbrucken realga as implicagdes anti-humanistas e autoritdrias desta doutrina, que reduz o condenado a um bode expiatério, certamente escolhido entre inumerdveis infratores por se encontrar situado numa faixa de maior risco e “sacrificado em tal situagéo para a salva- guarda de um duvidoso interesse geral, mas sem respeitar os principios de justiga ¢ de igualdade”. C) E notével, e certamente nao casual, a coincidéncia nos argumentos da teoria examinada e aqueles que tém sido desenvolvidos, do outro lado do oceano, por alguns autores integrantes do “novo realismo americano”, ao qual nos referimos no item II A, deste trabalho. 2. No outro extremo, na vertente abolicionista, afirma Hulsman, *” que a cifra negra nao tém aparecido como uma simples anomalia, mas sim para se constituir muma constante e se pergunta: como se conceber nor- 36. Alessandro Baratta, Requisitos Minimos (...), op. cit, p. 11. 37. Louk Hulsman, ¢ J. Bernat de Celis, op. cit., p. 54. 166 mal um sistema que n&o intervenha, a nao ser tangencialmente, que & tao excepcional do ponto de vista estat{stico, na vida social? £ evidente, acrescenta o autor, que aqueles princfpios ou postulados tedricos sobre os quais fixamos este discurso e nos quais repousa o sistema penal, como o so a igualdade, a seguranca, o proceso legal, etc., s6 se aplicam a um ntimero limitado de situagdes e de pessoas; sua efetiva vigén- cia encontra-se substancialmente falseada, e o sistema, no seu conjunto, se veré como “uma construgao espontaneamente estranha a vida da gente”. A partir dé sua perspectiva abolicionista, o autor conclui que é a prépria nogdo ontolégica do crime ou delito,%® que tem estado em crise, pois, a cifra negra indica claramente que os fatos aos quais a lei denomina de delitos, “naio séo vividos como fatos considerados A parte, separados por outros acontecimentos”. 3. Da nossa parte, entendendo ser o Direito Penal o tiltimo recurso da comunidade, e no contexto desse princ{pio garantidor da intervencfo m{nima, cremos que a alta cifra negra referente a determinados tipos de delitos, considerados de pequena danosidade, pode ser, em muitos casos, uma resultante de mudanga na sensibilidade da sociedade, j4 que certos tipos e conduta, tipificados como delituosos, tem deixado de ser consi- derados como perigosos e lesivos (perderam seu valor significativo) a um bem jurfdico, que pode ter sido importante num determinado momento. E, consegiientemente, parece ser aconselhével proceder-se A sua paulatina descriminalizagao, Uma detida andlise das disfungées do sistema no campo de numerosas condutas corapreendidas dentro da cifra negra, nos leva, inequivocamente, nessa dirego descriminalizadora. A) As diferentes indagagdes aqui expostas e, o que é mais importante, © préprio funcionamento real de todos os segmentos do sistema penal, evi- denciam que existe, induvidosamente, uma enorme quantidade de aconte- cimentos formalmente considerados como delituosos e, teoricamente, me- recedores da aplicagéo da lei penal que, no dizer de Hulsman, “Nao sio considerados ou valorizados como tais pelas presum{veis vitimas ou pelos agentes do sistema, pessoalmente. interpelados mediante delagdes con- cretas”. 8° E absolutamente certo que nestes casos encontram-se aquelas ativida- des delitivas que nao s&o facilmente percept{veis. Vale dizer que aquelas condutas que nao se dirigem diretamente contra uma vitima concreta, como ocorre nos delitos contra o meio ambiente ou em outros que envolvem interesses mais ou menos difusos. Tais delitos (@m grande possibilidade 38. O autor fala em crime © delito, por forga do sistema adotado em seu pais, o tripartite. Preferimos introduzir a alternativa ou para adequar o contetdo ao nosso sistema, o dualista (N.T.). 39. Idem, p. 54. 167 de permanecer no campo obscuro da criminalidade, posto que nfo sio cometidos em frente de. uma vitima que possa ser capaz de estar disposta a pdr em marcha os mecanismos de controle do sistema (delitos sem vi- tima), e € também certo que, em determinadas situagdes muito extraordi- nfrias, determinados delitos com vitima, podem redundar dificilmente con- trol4veis por esta, como por exemplo, os furtos que permanecem sem se descobrir a autoria, que sao praticados nos grandes armazéns, *° que nor- malmente sao creditados como “prejuizos contabilizados”. Nao obstante, feitas as ressalvas de rigor, reiteramos a existéncia de um bom ntimero de condutas tipificadas como delitivas que n&o séo assim consideradas pelas préprias vitimas, ou pelos agentes do controle formal, por tratar-se — usando a terminologia da moderna teoria normativa da cultura * e do professor Zaffaroni #? — de tipos contidos em normas que nao podem ser culturalmente incorporadas, enquanto nfo suscitam res- postas simbélicas, por carecerem de um minimo fundamento antropolé- gico ou, por outras palavras, porque nao tém para os envolvidos um valor significativo. B) Também se percebe objetivamente que, em muitas situagdes, como assinala Langon Cufiarro, ** as vitimas consideram esses fatos como assun- tos de pequena monta, mais adequado e melhor para os seus interesses a adogio de um tratamento informal para a situagaéo criada (acertos parti- culares), antes de enfrentar-se os aborrecimentos trazidos pela atuagéo do sistema, como ocorre fregiientemente nos casos de invasio de domicilio, ilfcito previsto no art. 356, do CP. 45 C) Em outros casos — acrescenta o mesmo autor — é a prépria lei que fomenta e¢ estimula os acertos particulares e menciona o art. 59, da lei de cheques, que impde o arquivamento dos procedimentos judiciais, se o devedor paga sua divida, os outros prejuizos e as despesas 40. Preferimos utilizar a expressdo constunte do original, embora ela se refira, claramente, aos supermercados € hipermercados (N.T. 41. A expresso original é: diferencias inventariales, que preferimos traduzir por prejuizos contabilizados. 42. Gertrude Jaeger ¢ Philip Selznick. "A normative Theory of Culture’, in American Sociological Review, 1964, pp. 29, 653 € 669. 43. Rail Eugenio Zaffaroni, op. cit., p. 302. 44. Miguel Cufiarro Langon, Curso de Introduccién a la Criminologta, Monte- vidéo, Ed. Universitéria, 1. I, 1986, p. 75. 45. O art. 356 do Cédigo Penal uruguaio tem a seguinte redagéo: “Art. 356 (penetracién ilegitima en el fundo ajeno) — El que, contra la voluntad expresa o técita del legitimo ocupante, penetrare en fundo a jene, halléndose este cercado por muro, cerco, alambre foso o obras de andlogo cardcter, por su estabilidad, seré castigado con cincuenta a quinientos pesos de multa” (N. T.). 168 4. Em quaisquer das hipéteses por ultimo enumeradas, a légica da minima intervengao penal nos conduz a uma tessitura de prudente descri- minalizagéo de tais condutas. Conseqiientemente, consideramos necessério rever 0 catélogo de ilfcitos, procurando eliminar dos textos aqueles tipos penais de escassa danosidade social, em relacéio aos quais a proibicdo nao pode valer efetivamente, hipdteses em que a regulamentagdo da conduta deve, na nossa maneira de ver, ser buscada fora do ambito penal. 169

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