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1. Nogio de técnica do corpo Eu digo as téenicas do corpo, porque se pode fazer a teoria da técnica do corpo a partir de um estudo, de uma exposicao, de uma descricio pura e simples das técnicas do corpo. Entendo por essa expressio as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma cradicio- nal, sabem servir-se de seu corpo. Em todo caso, convém proceder do concreto ao abstraro, nio inversamente. ‘Quero vos apresentar o que julgo ser tum dos setores do meu ensi- no que nao reaparece noutras partes, que é o objeto de wm curso de Et- nologia descritiva (os livros contendo as Jnstrugdes sumérias¢ as Instru~ 48es para uso dos etndgrafos estio por ser publicados) e que virias vezes jf abordei em minhas aulas do Instiruto de Emologia da Universidade de Paris. Quando uma ciéncia natural faz progressos, ela nunca os fax. no sentido do conereto, e sempre os faz no sentido do desconhecido, Ora, 0 desconhecido se encontea nas fronteiras da ciéncias,1é onde os profes- sores “devoram-se entre si”, como diz Goethe (eu digo devoram, mas Goethe nao é tio polido). E geralmente nesses dominios mal partithados que jazem os problemas urgentes. Essasterrasa desbravar contém, ali, uma marca. Nas cigneias naturais tas como elas existem, encontramos sempre uma rubrica desoneosa. Ha sempre um momento, nao estando nda a ciéncia de certos fatos reduzida a conceitos, no estando esses fa- 10s sequer agrupados organicamente, em que se planta sobre essa massa de fatos 0 marco de ignordncia: “Diversos”. af que devernos penetra “Temos certeza de que éai que hd verdades a descobrir; primeiro porque se sabe que nao se sabe, ¢ porque se tem a nogio viva da quantidade de fatos. Durante muitos anos, er meu curso de Etnologia deseritiva, tive que suportar essa desgraca e esse oprébrio de “diversos” num ponto em que essa rubrica “Diversos”, em etnografia, era realmente heter6clita. Eu sabia perfeitamente que a marcha, o nado, por exemplo, que coisas aot esse tipo eram especificas a sociedades determinadas; que os polinésios nao nadam como nés, que minha gerago nao nadou como nada a gera- «fo atual. Mas que fenémenos sociais eram esses? Eram fentdmenos 50- Ciais “diversos”, e, como essa rubrica & um horror, pensei vérias vezes nesse “diversos”, a0 menos toda vez que fui obrigado a falar disso, de tempos em tempos. Escusai-me se, para formar diante de vs essa nogio de técnica do corpo, vos conto em que ocasides persegui € como pude colocar clara- mente o problema geral. Foi uma série de passos consciente e incons= cientemente dados. De inicio, em 1998, estive ligado a alguém cujas iniciais ainda re~ cordo bem, mas cujo nome esqueci. Tive preguiga de tornar a procurdé~ lo, Bra ele que redigia um excelente artigo sobre 0 “Nado” para a edigao da British Encyclopedia de 1902, entio em curso. (Os artigos “Nado” das duas edigdes posteriores ndo sao tao bons.) Ele mostrou-me o interesse histotico e etnogrifico da questdo. [sso foi um ponto de partida, um. quadro de observagao. Posteriormente — eu mesmo 0 percebia ~ assisti ‘4 mudanga das téenicasdo nado, ainda no periodo de nossa geragio, Um cexemplo nos fard compreender isso imediatamente, a nds, psicdlogos, bidlogos, socidlogos. Outrora nos ensinavam a mergulhar depois de ter aprendido a nadar. E, quando nos ensinavam a mergulhar, nos diziam para fechar os olhos ¢ depois abri-los dentro d’égua. Hoje a técnica & inversa. Comeca-se toda aprendizagem habituando a crianga a ficae dentro d”égua de olhos abertos. Assim, antes mesmo que nadem, as ctiangas sio treinadas sobretudo a controlar reflexos perigosos mas ins- tintivos dos olhos, sio antes de tudo familiarizadas com a gua, para inibir seus medos, criar uma certa seguranga, selecionar paradas e movi= ‘mentos. Hi portanto uma técnica do mergulho e uma técnica da educa 20 do merguiho que foram descobertas em meu tempo. E vejam que se trata claramente de um ensino técnico, ¢ que hi, como para toda téeni- a, uma aprendizagem do nado, Por outro lado, nossa geragdo, aqui, as- sistiu a uma mudanga completa de técnica: vimos 0 nado a bragadas e com a cabega fora d°égua ser substituido pelas diferentes espécies de crawl. Além disso, perdeu-se o costume de engolir dgua e de cuspi-la. Pois os nadadotes se consideravam, em meu tempo, como espécies de barcos a vapor. Era estiipido, mas, enfim, ainda fago esse gesto: no consigo desembaracar-me de minha técnica. Eisai, portanto, uma técni- ca corporal espeeifica, uma arte gimnica aperfeigoada em nosso tempo. 402 Tees do corps Mas essa especificidade & 0 cardter de todas as téenicas. Um exem= plo: durante a guerra pude fazer numerosas observagbes sobre essa ¢s- pecificidade das técnicas. Como a de cavar. As tropas inglesas com as ‘quais eu estava nao sabiam servir-se de pas francesas, 0 que obrigava a substieuir § mil pas por divisio quando rendiamos uma divisio francesa, « vice-versa. Bisa, de forma evidente, como uma habilidade manual s6 se aprende lentamente. Toda técnica propriamente dita tem sua forma. Mas o mesmo vale para toda atitude do corpo. Cada sociedade tem seus habitos préprios. Também durante a guerra tive muitas ocasides de perceber diferengas de um exército a outro. Uma anedota a propésito da ‘marcha. Todos sabeis que a infantaria brtinica marcha a um passo dife- rente do nosso: diferenga de freqiiénela, com uma outra duragao. Nao falo, por enquanto, do balaneeio inglés, nem da agzo do joelho etc. Ora, 6 regimento de Worcester, tendo feito proezas consideraveis durante a batalha do Aisne, a0 lado da infantaria francesa, pediu a autorizagio real para te toques de clarins e batevia francesas, uma banda de corneteiros € de tambores franceses. O resultado foi pouco encorajador. Durante cerca de seis meses, nus ruas de Bailleul, muito tempo depois da batalha do Aisne, vi com freqiiéneia o seguinte espeticulo: o regimento conser- vara sua maecha inglesa e a sitmava a francesa, Tinka inclusive & frente da tropa um pequeno ajudante de infantaria francés que tocava corneta ‘e marcava 0s passos melhor que o: demais. O pobre regimento de no- bres ingleses ndo conseguia desfilar. Tudo era discordante em sua mar- cha, Quando tentava marchar direito, ea a miisica que no marcava 0 ppasso. Com isso, 0 regimento de Worcester foi obrigado a suprimie os clarins franceses. Com efeito, os toques de clarins adotados de exército aexército, outrora, durante a guerra da Criméia, eram roques de clarim de “descansar”, de “retirada” etc. Assim, vi de forma muito precisa ¢ freqiiente, nfo $6 quanto 4 marcha mas também quanto @ corrida e seus desdobramentos, a diferenga de t€cnicas tanto elementares quanto es- portivas entre ingleses ¢ franceses. O padre Curt Sachs, que vive neste ‘momento entre nds, fer a mesma observagio. Falou disso em varias de suas conferéncias. Ele reconhece de longe a marcha de um inglés e de sum francés Mas essas eram s6 as primeiras aproximagées do tema. Uma espécie de revelagio me veio no hospital. Eu estava doente «em Nova York e me perguntava onde tinha visto mogas andando como ‘minhas enfermeiras. Eu tinha tempo para refleti sobre isso. Descobri, 405 por fim, que fora no cinema. De volta & Franca, passe a observa, brerudo em Pars, a freqléncia desse andar; as jovens exam francesas caminhavam também dessa maneira. De fato, os modos de andar ameri=. «anos, gragus ao cinema, comegavam ase disseminar entre nds. Era uma idéia que eu podia generaliza, A posigo dos bragos e das mos enguane {0 se anda é uma idiossincrasia social, e ndo simplesmmente um produto endo Sei que arranjos e mecanismos puramente individuais, quase ine {eiramente psiquicos. Por exemplo: creio poder reconhecer assim uma jovern que foi educada no convento, Ela anda, geralmente, com as mos fechadas. E lembro-me sinda de meu professor do gindsio interpelando- tt animal! Andas 0 tempo todo com as manoplas aberta tanto, existe igualmente uma educasio do and: _ Outro exemplo: hi poses da mae, em repouso, convenientes ou inconvenientes. Assim, podeis adivinhar com certeza, se uma crianga conserva; 4 mesa os corovelos junto ao cor €, quando nao come, ag mis sobre os joelhos, que ela & inglesa, Una sites francesa no se ‘comporta mais assim: abre os cotovelos em leque ¢ os apéia sobre a mesa, ¢ assim por diane. Sobre a carrida, enfim, também presenciei, como vés todos, a mt danga de éenia. Imaginem que meu profesor de ginistica, um dos me- thores formados em Joinville, por volta de 1860, ensinow-me a corter om os punhos colados ao corpo: movimento completamente contrad ‘rio a todos os movimentos da corrida; foi preciso que eu visse os cor~ teat Profissionais de 1890 para compreender que devia correr de ou tro moda, ‘Assim, durante muitos anos tive a nogic da naturez social do “hax Situs”. Observer que digo em bom latim, compreendido na Franga, “habitus”. A palavea exprime, infinitamente melhor que “habito”, a “exis” [hexis], 0 “adquirido” ea “faculdade” de Aristételes (que era um psicélogo). Bla nlo designa os hibitos metafisicos, a“meméria” misterio- ‘sa, tema de volumosas ou curtas € famosas teses. Esves “habitos” variam_ ‘do simplesmente com os individuos e suas imitagées, variam sobretudo om as sociedades, as educagdes, as convenincias eas modas, os presi Bios. E preciso ver ténicas ea obra da razdo prticacoletva e individual, |i onde geralmente se v8 apenas a alma e suas faculdades de repetigao. Assim, tudo me reconduzia um pouco & posigio tomada poe alguns de nés, aqui em nossa Sociedade, a exemplo de Comte: a posigao de Dut mas, por exemplo, que, nas relagdes constantes entre obiologico eo so- 404 Tenia do corpo ciolégico, nao reserva muito espago a intermediagio psicolégica. E con clu que nao se podia ter uma visio clara de todos esses fatos, da corri- da, do nado ete., sendo fazendo intervie uma triplice consideracio em ‘vez de uma tinica, fosse ela meedinica ¢ isica, como uma teoria anatdmi- ca fisioldgica da marcha, ou, 20 contrétio, psicolégica ou sociologica. £0 triplice ponto de vista, 0 do “homem total”, que & necessirio. Enfim, uma outra série de fatos se impunha. Em todos esses ele- mentos da arte de utilizar 0 corpo humano os fatos de educagao predomi navam. A nogdo de educagio podia sobrepor-se a de imitagio, Pois ha ceriangas, em particular, que tém faculdades de imitacao muito grandes, outeas muito pequenas, mas todas se submetem % mesma educagio, de modo que podemos compreender a seqiiéncia dos encadeamentos. O que se passa € uma imitagao prestigiosa. A crianga, como 0 adulto, imi- ‘a atos bem-sucedidos que ela viu ser efetuados por pessoas nas quais confia e que tém autoridade sobre ela. © ato se impde de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biolégico, relative a0 corpo. O individuo assimila a série dos movimentos de que € composto 0 ato executado diante dele ou com ele pelos outros. E precisamente nessa nocao de presto da pessoa que faz 0ato or- denado, aurorizado, provado, em relagao 20 individuo imitador, que se verifica todo 0 elemento social. No ato imitador que se segue, verifi- cam-se elemento psicoldgico ¢ o elemento biolégico. Mas 6 todo, o conjunto & condicionado pelos trés elementos soluvelmence misturados. ise ‘Tudo isso pode facilmence ser relacionado a outros fatos. Num livro de Elsdon Best, publicado na Franga em 1925, acha-se um documento no- tivel sobre a maneira de andar da mulher maori (Nova Zelandia). (Nao se diga que sdo primitivos,julgo-os sob certos aspectos superiores aos celtas e aos germanos.) “As mulheres indigenas adoram um certo ‘gait’ (a palavra inglesa é deliciosa): a saber, um balanceio solto e no entanto articulado dos quads que nos parece desgracioso, mas que € extrema- mente admirado pelos Maori. As maes exercitavam (o autor diz “drill") suas flhas nessa maneiza de andar que é chamada ‘oniai”. Ouvi mies di zerem a suas filhas (eu traduzo) ‘no ests fazendo o onio’, quando uma rmenina deixava de fazer esse balanceio.” (The Maori, 1, p- 408-9, cf p- 155.) Era uma maneira adquirida, e no uma maneira natural de andat. [Em suma, ralvez ndo exista “maneira natural” no aduleo. E com mais ra 405 io ainds quando outros fatos técnicos intervémt: no que se refere a © fato de andarmos calgados tansforma a posigo de nossos pés ‘mos isso bem a0 andarmos descalgos. Essa mesma questo fundamental colocava-se a mim, por um fo aspecto, a proposito de todas as nogdes relativas a forga ma renga na eficicia no apenas fics mas orn, de ceri aol situo mais em meu terreno do que no terreno perigoso da psica loi dos modos de andar, no qual me ants dame dey Eis aqui um fato mais “primitivo”, austaliano desta v. mula de ritual de caga e ritual de corrida a0 mesmo tempo. S © australiano consegue correr atrés de cangurus, emas, até deixi-los exaustos. Consegue capturar 6 opossum no alto de sua ae ore, embora o animal oferega uma resisténcia particular. Um desses tie tuais de corrida, observado hi jé cem anos, é6-da corrida ao cdo selvas sem, o dingo, nas tribos dos arredores de Adelaide. O cagador nfo cessa de cantar a seguinte formula: Colpeia-o como tufo de plumas de éguia (de iniciagdo ec.) Golpeia-o com o cna, eae Golpeia-o com a faixa de cabesa, Golpeia-o com o sangue de circuncséo, Golpeia-o com o sangue da basa, Golpeiano cam os ménstruse da mulher, Fix ale dormir ete! ‘Numa outra ceriménia, a da caga 40 opossum, o individuo leva na boca tum pedago de cristal de rocha (kawemubka), pedra magica entre todas, € ¢anta uma fSrmula do mesmo género,eé assim convencido de que pode

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