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FOUCAULT 4 DIZER A 5 VERDADE SOBRE SI PRIMEIRA CONFERENCIA Estou ciente de que meu lugar ndo ¢ bem aqui, em uma reuniio ‘entifica consagrada a semiotica. Foram necessiirios todo o libe- ralismo intelectual e toda a liberalidade de voeés para me acolh em aqui. Paul Roniseact realmente desejon imaginar que havia alguma relagao entre o género de pesquisas conduzidas por vocés ‘© omeu proprio trabalho quando, certo dia, eu Ihe expliquei onde ‘me encontrava. De fato, algo havia me tocado na histéria das re- | gras, dos deveres e das obrigacdes concernentes a sexualidade nas sociedades crists do Ocidente: o fato de as interdigdes de fazer esta ou aquela coisa, de ter esta ou aquela forma de relaciio, terem sido muito regularmente associadas a certas obrigagdes de falar, de dizer a verdade sobre si. Melhor ainda: essa obriga dizer a verdade sobre si no recai simplesmente sobre as ages (permitidas ou proibidas) que se teria eometido, mas sobre os afetos, sobre os sentimentos, sobre os desejos que se teria expe- Fimentado; essa obrigacio impele o sujeito a buscar em si aqui- lo que pode s ce aquilo que pode estar disfargado sob Paul Boul or de semis na Universidade Vitoria, Toro formas ilus6rias. Diferentemente da maioria dos outros grandes sistemas de interdigGes, o que concerne & sexualidade fol acopla- do a obrigacio de certa decifracao de si. Isso fica manifesto na historia recente da psicanalise. {er5,n0 ugar da tia fase) Crejo que hé, em nossas socledades, uma diferenca muito significa- tiva entre as interdigdes que concernem a sexualidade e os outros grandes sistemas de prolbi¢do: as primeiras ~ quero dizer, as proi- Digdes que recaem sobre o sexo — foram acopladas a obrigacao de dizer a verdade e de efetuar certa decitragio de si Com certeza, estou bem ciente de dois fatos. O primeiro é que a confissio e 0 reconheeimento desempenharam um papel multo im- portante nas instituigées penais e reigiosas: e nfo somente no que «diz respelto as faltas sexunis, mas a todas as espécies de pecado, de delito, de crime” Mas é evidente que a tarefa de anslisar os proprios pensamentos ou os préprios desejos foi sempre mais importante no ‘que congerne as faltas sexuais do que em qualquer outra espécie de pecado (com exce¢o, talvez, do orgulho). Por outro lado, estou igualmente ciente que a conduta sexual, mais 0 quo qualquer outra espéeie de conduts, fo subymetidan regras rita estritas de segredo, de decéncia e de modéstia, De sorte que a sexualidade, em nossa sociedade, estligada ao mes- ‘mo tempo, de maneira bastante estranha e complexa, a proibigoes ver- bals e a obrigagdes de verdade. A sexualidade esta ligada & obrigaao de esconder 0 que se faz ede decifrar o que se ¢. ssa associagio de proibigBes que recaem sobre os atos e a pa- lavras e de fortes incitagdes a falar do sexo 6 um trago constante de nossa cultura, Devemos nos lembrar de que a psicandlise nasceu no meio da épo- 2. Vervs, pp. 80-82, 93-94 [pp 66-69,7779}. {3 Foucault retraga a histéris do papel desempentado pels confssto nas inst tuigbesenos procedimentosjuccros desde Idade Média ao séeulo oenas aulas de 13 €20 de maio de 198 do curso de Louvain. CL MLN. 26 cowmincias | | i | | j ici ‘Mas é também verdadeiro na longa historia da diregio de cons- clénela e da préties penitenctal desde a Idade Médla."E ¢ ainda delineamentos dessa associacio entre a interdigio de fazer e a rigacdo de dizer (de dizer a verdade sobre si).* Foi assim que coneebi o projeto, talver.um pouco bizarro, de studar ni 0 tos sexusis (especialis- tas em hstéra social realizam, e muito bem, esse genero de esti. dos), a8 hist6ria do vineulo entre tas ram), a questo era colocada da seguinte maneira: se se quiser | | ter uma conduta racional, se se quiser regrar sua aglio segund brinefpins verdadeirns,o que.se deve interditar, aqual parte desi E preciso renunciar, a qual tipo de ascese convém submeter-se? ‘Em suma: qual € 0 preco aseético da raza ; ra, eu gostaria de colocar uma questo inversa: como certos conhecimentos constituiram o prego a pagar para fazer valer uma interdigdo? Se se deve renunciar a esta ou aquela coisa, o que é preciso conhecer de si? 4 Foucault fornece indieagbes mals detaladas sobre essa histra na aula de 19¢e everero de1975 do curso no Coldge de France, Oa Anormas, assim como ‘na aula de 1g de meio de 1981 do eursode Louvaln CL ax, MFDY. 5 CLO, pp. 282-307 [pp. 261-84} ORS, pp 74-88: MEE, pp 12960, 1166 uate solitude” [98 in DB,n 295,pp. 995-7 [*Sexualidadee sli" ‘combat dela chastet [1982], in D1, 312 pp. 112427 'O combate da asta de" *La pares" 1982} n bv p.23;Les techniques de so" [198] IDEN. 363, p.a6z7-g As tonics de {6 Arespelto dese problema bastante delicado, ver Sv, pp. 286-93 [p. 254-63; 5S, pp 403-04 [pp. $1879} 8, pp. 8485 17 CEM. oueaut Lea techniques deo Se pet p. 160 "As tenleas des" 27 PRIMERA COMFERENCIA, I i I Ao colocar esse tipo de questdes é que fui levado a estudar [esprocedimentos da herme: sina Antiguidade paga ‘grist. A hermenéutica dos mitos e das lendas era uma prética ‘corrente na cultura antiga: 0s prinefpios e os métodos dessa her- ‘menéutica jé foram muito estudados. A hermenéutica de si, em ‘contrapartida, ¢ relativamente menos conhecida. isso por varias Uma é que 0. smo interessou-se mais delibera- damente pela historia de suas crencas ¢ de suas instituicBes. do gue pela de suas préticas reals. Outra é que essa pritica da her- ‘menéutica de si jamais se organizou (ainda que tenha sido muito, precisa em seus procedimentos) em um corpo de doutrina como i. hermenéutica dos textos. Aterceira raza ito frequen- temente, fol confundida com a filosofia ou com as doutrinas da | alma, da queda, do pecado, da concupiscéncia. Enfim, parece-me que essa hermen@utica de si fol veiculada e difundida através da cultura oeidental por um grande niimero de canais; integrou-se ouco a pouco aos modelos de experiéncia, aos tipos de atitude que eram propostos aos individuos; a tal ponto que frequente- mente ¢ difiel isolé-la e separé-la daquilo que cremos ser a expe- rigneia espontdnea que fazemos de nés mesmos. A experiéncia _que fazemos de nds mesmos nos parece ser, sem divide, o que hd ‘de mais imediato e mais originério; na realidade, porém, ela tem ‘seus esquemias e suas pritias historicamenteformadas.B 0 que) [ers aerésoimo devextoentrea primeira partee segunda, que se ‘oma atereetral 0 Permitam-me lembrar, em algumas palavras,o contexto em que estuoa hermenéutiea desi) ‘Meu objetivo fi, durante um longo tempo, esbocar uma histér dos diferentes melosgragas aos quais,em nossa cultura, os sees homanos desenvolveram um conhecimento desi. Bisso através de diversas prd- 28 COMMRINCIAS j tiews, como a economia oua gramética,° a psiquiatria ou a medicina* as instituigdes penais,” Porém, o mais importante para mim ndo é avaliar esse conhecimen- 10 ¢ dentiticar se se trata de uma eiéneia ou de uma ideologias néo & ‘mostrar ~o que € um trufsmo ~ que esse tipo de conhecimento tem ‘uma importincla eeondmica e um papel politico, jogos da verdade" muito partculares,igadas a ténicas particulares ‘que os seres humans utizam consigo. eqiese pe dtnguide modo gent gua ‘cansformas, mani hee ‘Meu objetivo é analisar as assim chamadas clénclas humans como i es stow oes enol snag eget, tel de daring le producto, } | prios metos, e com a ajuda de outras pessoas (ou sob a diregio de our {as pessoas), certo niimero deoperagdes Sobre seu corpo, sobre sua | alma, sobre seus pensamentos, sobre sua conduts;¢ isso de maneira a se transformar.ase modiieare alcancarcertoestaco de pereicin de felicidade, de pureza de tuminagao:a tornar-s um sabi, fliceiro, aatingir a luz, ai ilidade, a inse | Bsses quatro grandes tn nologlaquase munca funeionam separadamente;no existe teenologia de predugio que possa ar son apliar sistemas designos; sabe-se também que tod técnica de produgéo {associa a processos de dominagio especticos: um certo Karl Marx, no lio de Ovcapital issea speito coisas muito mais precisase inte- ressantes do que. difell distingsio entre infraestrutura e superestrutura 8 come, 9 Chae Lanaissance deta einige: Une archtop di reat medic Paris POF, 19630 nascimento da einico, wo Csr 11 Parauma introduesoandloga ao tema das téenicas ou tecnologis de si ver ‘ons, pp. 37-38; "Sexual et solitude’ op. cit pp. 989-90 [*Sexuslidadee so |i Les techniques de so op cit p. 1604 “As denieas de". Sobre esse {ema ver também sv pp. 37,279 MPD, pp. 124; "Subjective vite [981.0 DE in. 204, pp. 1032-33: pp 16, 29 PRIMERA COMERINCIA, ‘hide. i V Te pode acrescentar-se que toda tenologta de produc implica | )yeert0s modes de formagio e de modificago deindividuos,ndo apenas no sentido evidente de que devem recorrer a ela para sdquirit certa ‘competénela mas também.no de que devem recorrer ala para adotar | cert stitude para consigo mesmos e para com o ambiente, assim como | para com os outros. Seria possfvel tomar cada uma dessas matrizes maiores da razio prética ~a tecnologia de produgdo, a tecnologia do signo, a tecnologia do poder e a tecnologia de si e mostrar, ao meso femapo, sua natu- reza particular e sua interagdo constant “Para situar meu trabalho em relagéo a essa totalidade, eu diria que, antes de tudo, sdo essas duas tltimas teenologias ~ a tecnologia de _ dominacio e a teenologia desi ~ que retiveram minha atengio e me ;param, O mais frequente, quando se estuda ahistria das || érefern-seas dus primeira teenologas, quer se vate deuma.referén- —. de dominagioe de teenloza des Por exemplo,no que concerea leur, nfo busquelavala ds- curso plgudtrcorelerindo-me a errio das clincls formals nem twplear seu naseiment reterindo-me dexploragio nas socledades Industrials Mas quis mostrar amo tbo degerenlamento dos inv duosnonterloren exterior ds aslostornoupoestel esse estanho dlscuso de modo a tomar compreensies susignseagto economics | t oun aberragdes formals (ue elo sbsurdas apenas na eperéne ij, basmnresen tao donates sss |||uetoter de dominago, im todo cas tllemdaume nfeessaeada |{}vez mais pelas teenologias de si Mais precisamente, pelos pont Interagdo entre mas e oulas, Monde as tecnologia de dominagho {dos individuos uns sobre os outros reeorrem aos processos pelos quais, | os individuos agem sobre si mesmos. Esse_ponto de contatd onde se 12 Chr Le pousorpayehitrique- Cours au Colége de Franc, 1973-1974, o°8. caus Lagrange. Parts: Seulalimaré, 2003 [0 poder psiqultrico Curso dado ro Collie de France (9732974) 30 cOMIRENCIAS x 8 -ttouam uma sobre out maneia come os indios so rgdos ea maneira como. eles se conduzem| asimesmos.énqueeuchamo, . "creo, de a governamentalidade™* Meu objetivo €analisar a histria da hermeneutiea de sino quadro dessa governamentalid - " Gostaria de estudar a formagio da hermenéutica de si em dots ccontextos stcessivos: dots contextos bastante diferentes um do _ouiro, masque apresentam, apesar de tudo, cert continua ‘se desenvolviam as pratieas eas insttuigGes monasticas. Porém, nao gostaria de estudé-la somente em suas formulagbes teGricas, e sim em relacdo com um conjunto de praticas que tive- ram, na Antiguidade clissica ou tardia, uma grande importancla. [cts: Ao menos nos grupos soctais que eram, aquela época, os pri cipais representantes da cultura,] Tals préticas constituiram o que, em gregn, ce chamava epiméleia heautod e, em latim, cura sui {ers} ‘Nao € muito fécll traduzir estas palavras: “culdado de si" A forma verbal epimeleistha’ heautod significa algo como cuidar de simesmo, S‘occuper de soi-méme {ocupar-se de si mesmo] * Seibem que nada disso é mais do que um ponto de partida, Um ponto de partida para uma andlise possivel do culdada de sl através de nossa cultura. 0 objetivo de tals estudos seria analisar as relages entre o cul. dado de si sob suas diferentes formas e as diferentes formas do conhe- cimento de si: essas relagtes slo constitutivas de nossa subjetividade, 13, CL ons, pp. 38-38, 1 Anoga de epimelelaheautod (exidado des") constitalocorsgto das and ses de Foucault no euso A Heementtica da Sueto, ne College de France (et 1S, pp. 458 [pp 455) ¢atravessa.a malor parte de seus ulimos trabalhs, até spublieagt,em jumbo de 1984, do tereero volume de Histra da sexuaiade, snstuladojustamente Ocuidado des. 15, Emifrancés no orignal PRIMERA CONFRINCIA Essa nogo é obscura para nés, agora, ¢ como que insipida.A tal ponto que, se nos perguntarem qual fol o principio moral mais importante e mais caracteristico da filosofia antiga, a resposta ‘que nos vir imediatamente ao espirito ser4 o precelto délfico: conhece-te a ti mesmo. Ora, é preciso lembrar, primeiramente, de que o preceito apolineo, antes de ser um principio filosétfico, ‘era uma regra para a consulta a0 ordculo (segundo Defradas, algo ‘como: nfio te tomes a ti mesmo por um deus). [cts Ou, segundo ‘outros comentadores: sé cansciente do que realmente pedes ao oriculo.}” Mas, é preciso lembrar, sobretudo, de que a regra so- bre ser preciso conhecer-se a si mesmo foi regularmente associa daa regra de ser preciso cuidar de si mesmo. Associagdo que, na maloria das vezes, chega a ser mesmo uma subordinacio: ¢ por ser preciso ocupar-se consigo, por ser preciso cuidar de si, que se deve colocar em pritiea o preceito déifico do gnotht seauton. [18 no garda ima frase] E bem mais: conhece-te a ti mesmo era considerado um meio de cculdar de st ‘Tal associagio 6 explicita nos dilogos socratieos de Plato e nos _Momordvets de Nenofontey ola é iguslmente oxplicita em Bpictetoo 20 longa de toda a radio neoplatOnica, de Albino, no século 1a Proclo, E, com frequencia, essa assoctagio era uma subordinagio: era porque se devia euldar de simesmo que se punha em prética 0 principio deltico *gndthi seautén’ Bisso durante cerca de um milénio da cultura antiga, Coloquemos algumas balizas nessa longa duracao. Em primeiro lugar, o proprio Sécrates. Na Apologia, nds 0 ‘vemos apresentar-se a seus juizes como 0 mestre do cuidado de si, Ele é aquele que interpela os passantes ¢ Ihes diz: vés vos 16. Cl Jean Dettadas, Les themes de a propagande delphique. Paris: C Klimek sek, 954, p. 268-83. 17 Fowoaulttazaqutslusto a interpretagio de W.H. [Wilhelm Heinrich} Roscher ‘em"Welteresiber die Bedeutung des 2u Delphi und die dbrigen grammata delpika. Prolog, 60, 1901.CL. HS, pp. 5-5 [P56 18 Xeofonte, Dias efetas memordvets de Sderates, trad. Edson Bin Sto Paulo Bapr, 2006. 3 comntycias i j i | ‘ocupais de vossas riquezas, de vossa reputagio e de honrarias; ‘mas com vossa virtude e vossa alma nfo vos preocupais. Séera- tes é aquele que zela para que seus concidadtios culdem de si ‘mesmos. Ora, no que concerne a esse papel, Séerates diz um ouco adiante, na mesma Apologia, rés coisas importantes: essa €uma missio que the foi confiada pelo deus, ¢ ele nia abando- nar antes do tiltimo suspiro; 6 uma tarefa desinteressada, para a qual nfo pede nenhuma retribuigao, cumprindo-a por pura be- nevoléncia; enfim, é uma fungo util para a cidade, mais itil até que a vitoria de um atleta em Olimpia, pois, quando ensinamos as pessoas a ocuparem-se de si mesmas (mals que de seus bens), ensinamo-las também a ocuparem-se da prépria cidade (mais que de suas questdes materiais), No lugar de condené-lo, seus juizes fariam melhor se o recompensassem por ter ensinado os outros a culdar de si mesmos.” ito séculos mais tarde, a mesma nogao de epiméteia heautod aparece com um papel igualmente importante em Gregorio de Nissa. [cTs: Mas com uma significago profundamente diferente. ‘Com essa expressio, ele ndo designa 0 movimento pelo qual se cuida de simesmo e da eidade_] Com esses termos, ele denomina ‘o movimento pelo qual alguéi renuneia ay eusunnento, desapegs dacarne e, gracas a virgindade do coragdo edo corpo, reencontra ‘a imortalidade da qual havia deeaido.”” Em outra passagem do ‘mesmo Traité de la virginité [Tratado da virgindade}, ele faz da parabola da dracma perdida 0 modelo do cuidado de si" Voces se lembram dos versiculos do Evangelho segundo Lueas: por uma dracma perdida, é preciso acender a lampada, vasculhar toda a casa, explorar todos os seus recantos, até ver brilhar na sombra ‘o metal da peca;" do mesmo modo, para reencontrar a efigie que Deus imprimiu em nossa alma e que o corpo cobriu de sujeira, é preciso “cuidar de si, acender a luz da raziio e explorar todos os recantos da alma, Percebe-se bem que o ascetismo cristo, como 19 Plato, Apologia de Socrates in idlogos, x 1a, trad Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pars, 1980, 280-31¢, pp 56-60, 20 Grégoire de Nyse [Gregério de Nise}, Trait de avrg, rad Michel ‘Aubineau Pars: Batons du Cert, 1966 x, p. 42991 Sources Chrétiennes, 19 21 thi 20, 3,pP- 40172, 22 Bvangelbo segundo Leas, xv, 840. 33 PRIMERA CONFERENCIA a filosofia antiga, coloca-se sob o signo do cuidado de si efaz da ‘obrigagdo de ter de se conhecer um dos elementos dessa preo- ‘cupagiio essencial. Entre estas duas referencias extremas - Séerates e Gregorio de Nissa -, pode-se constatar que 0 cuidado de si constituit: no somente um prinefpio mas também uma pratica constante. Tomo dois outros exemplos, muito afastados, agora, pelo modo de pen- ‘samento e pelo tipo de moral, Um texto epicurista que devia servir ‘como manual de moral, a Carta a Meneceu, comega assim: “Nunca 6 cedo demais ou tarde demais para culdar de sua alma. Deve- -se, portanto, filosofar quando se é jovem e quando se é velho"?* afilosofia é assimilada ao culdado da alma (o termo é, inclusive, precisamente médico: hygiainein), ¢ esse culdado é uma tarefa para toda a vida. ers} E, ainda que saibamos muito pouco sobre os efteulos epieuristas de época helenistica ou da época republicans tardia na tsa, as in- formagbes que podemos extrair de Filodemo mostram claramente que, nesses circulos, o ensino ea vida cotidiana eram organizados de modo a incitar cada qual a cuidar de si. Acomunidade inteira ~mestres alunos ~ tinh por objetivo aludar vada mnesibry du gue ponatarefa de epimeleisthai heautod, tinha por objetivo] daliéton sotzesthai, a salvagio mitua® No tratado De vita contemplativa [Sobre a vida contemplativa} sabe-se que Filon descreve um grupo sobre 0 qual nao ha pratt- 23 “Queninguém neste emse dedicar flosatieenquantojove sede fazé-lo depois de velho, porque ninguém jamais € demasiado jover ou “demasiado velho para sleangar a sade do expire. Quem ana que ahora de ‘dediear-sSlosofiasinda nde chegou. ou que ea japaseou, & como we dissese ‘que sina nfo ehegow augue paseo ahora de ser felis pieuro, Carta sobre ajelcizade (a Menecey,trad. Alvaro Lorencin| eEn20 Del Carratore. Sto Paul ditora Unesp, 2002, . 2. 24 Cl Marcello Gigante, Philodeme: Sur la iberé de parole’ in Assocation CGulleume Buds, Acres du vr Congres, Paris, 10 aor 1968. Paris Les Belles Letres, 3969. 25. Pilon Alexandie [Flo de Alexandra), De vita contemplation tra, Perre Miquel. Parl: Ritons du Cerf, 1963. Les Oeuvres de Pilon @Alexandie,.29, 2 CONHRINCIAS i ae siinatcenctinnae camente nenhuma outra noticia além daquelas bastante sueintas, que ele proprio dé; (crs: Filon os chama de Terapeutass)trate-se, «em todo easo, de um grupo muito mareado pela religiosidade que eesté nas fronteiras da cultura helenistica e da cultura hebraica as pessoas viviam em retiro austero, consagravam-se & leitura, ‘A meditagao, as preces individuais e coletivas; reuniam-se em in- tervalos regulares para uma espécie de banquete espiritual. Tudo sso advinha de uma tarefa principal que era, segundo 0 texto, ‘a epiméleia heautod, 0 euidado de si Entretanto, nio ¢ possivel restringr-se a isso. Seria um erro cerer que 0 euldado de si foi uma invengio do pensamento flo- s6fico e que constituia um preceito préprio a vida filosética. Bra, de fato, um preceito de vida que, de modo geral, fora altamente valorizado na Grécia Plutarco cita, assim, um aforismo lacede- ménio que, desse ponto de vista, ¢ muito significativo. Certo dia, perguntaram a Alexandre por que seus compatriotas, 0s espar- ‘anos, confiavam o cultivo de suas terras a eseravos, no lugar de reservar para si essa atividade. A resposta fol esta: “Porque ‘preferimos nos ocupar com nés mesmos”* Ocupar-se consigo, 6 um privlégio; ésinal de uma superioridade social, em oposi- ‘lo aqueles que devem ocupar-se dos outros para servi-los ou, ainda, ocupar-se de um oficio para poder viver. A vantagem que a riqueza,o status eo nascimento trazem é traduzida pelo fato de haver a possibilidade de ocupar-se consigo. Pode-se notar que a concepgio romana do otium é muito proxima: 0 “lazer” aqui designado 6, por exceléncia,o tempo que se passa ocupando-se consigo mesmo. Nesse sentido, afilosofia, tanto na Grécia como em Roma, nfo fez mais que transportar para suas prOprias exi- ‘genelas um ideal social muito mais expandido. f possivel com- preender também como «flosofia, apresentando-se como aarte de ocupar-se consigo, pode ser uma atividade aristoeratica (no platonismo) ou entio a democratizagao de um ideal aristocrético (entre 05 epicuristas e, mais tarde, no estoico-cinismo). Contudo, no importante lugar que atribuia ao euidado de si, © que a filosofia fez ndo foi simplesmente interiorizar e trans- 26, Plutarue [Ptutareo},Apophtegmes aconiens ra. Frangos Fuhrman, Paris: ‘Les Belles Lettres, 988,217 pp. 17-72. Oeuvres Morales, 35. PRIMA CONTERENCIA formar um ideal social bastante tradicional; parece-me que ela também herdou préticas muito particulares oriundas de um meio estrangeiro. Remeto-me aqui a uma hipétese de E.R. Dodds reto- ‘mada na Franga por J-P. Vernant. Segundo esse hipétese, os gre- 0s, colocados em contato com as eWvilizagdes do Leste Europeu ‘ partir do século vn, teriam herdado diversas praticas que sio encontradas nas culturas xamanicas.” ‘Tals pratieas, mediante numerosas transformagves, tiveram ‘muita importancia na hist6ria da relago que mantemos conosco; elas constituem o que se poderia chamar de uma arqueologia da filosofia. De maneira muito esquemética, € possivel resumi-las como a seguir. Elas incluem exercicios de abstinéneia ~abstinén- ia alimentar e abstinéneta sexual que tém por finalidade asse- {gurar, ao mesmo tempo, uma puriicacao do corpo e um perteito ‘dominio sobre esse mesmo corpo. Ineluem também exerefetos de resisténcia pelos quais se habilta 0 corpo a insensibilidade, ‘o que diminui sua dependéncia em relagio ao mundo exterior e permite uma concentragdo do pensamento e da atencao sobre objetos interiores. Hs que se aerescentaras praticas de retenco dda respiraciio e de morte aparente que sio destinadas a fazer 0 individuo escapar da morte e a colocé-lo em contato com as po- t@neias divinas. Ora, nfo é nada difiefl encontrar tais préticas no interior de uma filosofia acerca da qual se deve sempre lembrar que, na Antiguidade, era uma atividade e uma forma de vida. & assim que encontramos as regras de abstinénciae de austeridade destinadas a purificar a alma e a torné-ta eapaz de eontemplar a verdad; encontramos as regras de concentragio do pensamento que permitem desapegar-se do mundo exterior e fixar o olhar em realidades mais interiores ou mais elevadas; enfim, encon- tramos a famosa meléte thandtou, que, por falta de algo melhor, traduzimos por “meditagdo da morte”; mas trata-se, antes, de um verdadeiro exereicio de morte pelo qual se tenta atualizar 27 Ver, em especie re Robertson Dodds, Os gregos eo raciona trad, Pa o Domenech Oneto. Sto Palo: Bseuta, 2002, pp. 199-80; lean Perr Vernant "Aspectos miteos da memoria” L969] « "Aspectos da pessoa na religito grega” Liséo) in to epensamento entre os greg: Bsudos de psieotogia store, ra. Helganueh rian. Rio de Janet: Paz € Teer, 990 36 comRBNCIAS | | a morte em si mesmo para colocar-se em comunicagio com a imortalidade ¢ os deuses. Pensemos em Sécrates tal como aparece em certos dislogos de Platao. Ele também era um desses homens que, devido a um trabalho exereido sobre si mesmos, adquiriram um poder mais que humano: Séerates ¢ 0 homem que soube resistir ao frio na batalha de Mantinela;** é aquele que pode resistir & beleza de Al- ‘éaquele que, a porta do banquete a que fol convidado, permanece imével, insensivel a tudo que se passa no redor.”® Ora, também Sderates que recomend a todos os homens que se ‘ocupem de si mesmos, mas segundo uma pritica que seré a da filosofia, Na transfiguragdo dessas antigas técnicas de siem forma de vigilancta filoséfica voltada para si, Séerates representa (com 08 pitagéricos, aliés) um momento importante. [Em todo caso, mesmo tendo se tornado um principio filos6fi- 0, 0 culdado de si permaneceu uma forma de atividade. 0 pré- prio termo epiméleia nao designa simplesmente uma atitude de consciéncia ou uma forma de atengio que alguém teria consigo __mesmo; designa uma ocupagdo regrada, um trabalho com proce- dimentos e objetivos. Xenofonte, por exemplo, emprega o termo epiméleia para designar o trabalho do dono da casa que dirige sua exploracdo agricola.” & uma palavra utilizada também para de- signar os deveres rituais que se ledicam aos deuses e aos mortos. Aatividade do soberano que zela por seu povo e dirige a cidade 6 também chamada epiméteia. Quando os fl6sofos e moralistas recomendam cuidar de si (epimeleisthai heautou), portanto, deve- -se ter em mente que nio aconselham apenas prestar atenco a si, evitar as faltas ou os perigos ou manter-se ao abrigo. Ea todo um dominio de atividades complexas e regradas que eles se refe- rem. Pode-se dizer que, em toda a flosofia antiga, o cuidado de si {oi considerado, ao mesmo tempo, um dever e uma téenica, uma 28 Patio “Obanguote’ in Dialgos, 4, ad, Carlos Alberto Nunes Belém Universidade Federal do Par, 1980, 2208+, pp. 378.79, Nose tata da betala ‘de Mantineie sim dabatalbe de Pode. 29, Ibid, 2176-2106, pp. 275-78 30 Ibid 74675. pp. 223-25. 4t_ Xenofont, eondmico trad. Anne Lis Amal de Almeida Prado, Sto Paulo: Martins Fontes, 1999, 37 PRIMI CONTIRINCIA obrigacdo fundamental e um conjunto de procedimentos culda dosamente elaborados. ‘B.com base nessa ética e nessa tecnologia de si que tentare! ddeserever o desenvolvimento da hermenéutica do sujeito na An- tiguidade. Em um trabalho anterior, tenteianalisar a constituigio de um saber psicopatolégico a partir da prétiea e das institulgbes de internamento:* também tentei compreender a formaciio de ‘uma antropologia criminal a partir de préticas da penalidade e do castigo legal.” Do mesmo modo, gostaria de compreender a formagio de uma hermenéutie de sie, mais exatamente, a forma- cio de uma hermenéutica do desejo sexual e da concupiseéncia a partir dessa teenologia de si Naproxima conferéncia,tentarel destacar alguns tragos funda- rmentais dessa tecnologia de si em uma época que pode ser con- siderada uma verdadeira idade de ouro de sua historia: os dois primeiros séeulos de nossa era, época do Alto Império. Na pré- xima conferéneia, indicarei a forma de conhecimento e de deci- fragdo de sia que a cultura de si dew lugar durante esse periodo. ‘Na quarta e quinta eonferéncias, retomarei estas duas questes tecnologia e decifragio de sino contexto do aseetismo cristo nos séculos rv ev de nossa era. Na iltima conferénela, colocarel algumas belizas para uma hist6ria possivel da hermenéutica de sina cultura ocidental. Antes de terminar, porém, gostaria de [evocar] uma questo que pode ser legitimamente colocada. Se é verdade, como acabo de dizer, que 0 euidado de si, com todas as técnicas que the foram vinculadas, {teve] tanta importancia na Antiguidade elassiea ou tardia, como se explica o fato de esse termo ter desaparecido? ‘Como se explicam no apenas 0 fato de ele nao ser mais rele~ vante mas também o de haver certa tendéncia a esquecer sua Importaneia histériea? Como se explica, para colocar de modo 32 con, a3 chs. 38 coMRDNCIAS simples, que tenhamos conservado a meméria do gnothi seau- tn ~ ainda por cima como uma das mais altas expresses do pensamento e da cultura antigos ~ ao passo que esquecemos a importancia atribuida durante longo tempo a seu precelto ge- meo: epimele seautoa?™ Parece-me que podemos evocar virias razées. 1) Primeiramente, uma transformagio muito profunda dos prinet- pios da moral nas sociedades ocidentais. Parece-nos agora bem dificil fundar uma moral rigorosa, uma moral austera e exigente, sobre o prineipio de que devemos atribulr a nés mesmos mais im- portincia que a qualquer coisa no mundo, Somos, antes, inclinados areconhecer ai o fundamento de um imoralismo que permite 20 Individuo escapar de toda regra ou constituir-se, em todos os casos, ‘como critério de validade para toda regra possivel. Isso por sermos herdeiros de uma moral cristé que, paradoxalmente, fez. da rentincia asia condigdo da salvagdo. Somos igualmente herdeiros de uma ética (em parte crista, em parte laica) que faz do respelto a lei a > forma geral da conduta moral, Enfim, somos herdeiros também de ‘uma moral soeial que busca na relagiio com os outros a regra dos ‘comportamentos aveitaveis, Meuiante tals tradigbes de pensamento, fo cuidade de si] ndo parece ser muito suscetivel de fundar uma mo- ral. E fato que, desde 0 século xv1, a critica das morals estabelecidas ‘vem sendo feita ustamente em nome da importancia que se deveria, dar ao eu. O eu é sempre o que se objeta iis rentincias ascétieas, a universalidade da Lei, is obrigagdes que nos ligam aos outros. 2) 0 conhecimento de si recebeu na filosofia teériea uma im- ortancia cada vez mais consideravel. De Descartes a Husserl, 0 principio de conhecer-se a si mesmo apareceu como o prinef- pio primeiro de uma teoria do conhecimento. Nenhum conhe- cimento pode ser considerado como fundado se nio tiver se interrogado primetramente sobre 0 sujeito cognoscente: seja para interrogar 0 critério da evidéncia intultiva, seja para bus- car determinar com base nele os limites de um conhecimento 34 Sobre esse problems ver também Hs, pp. 3-20 (pp. 1239) "La culture de so ince, pp. 97-98 39 PRIMERA CONIERENCIA possivel. Pode-se dizer, portanto, resumidamente, que houve ‘uma inversio de hierarquia entre os dois prineipios que a Anti- guidade havia associado: 0 culdado de si eo conhecimento de Enquanto o segundo aparecia mais frequentemente como consequéncia do primeiro no pensamento antigo, na filosofia moderna fica claro que é 0 conhecimento de si que constitu 0 principio fundamental. 3) Asso 6 preciso acrescentar ainda as ciéncias humanas que >buscaram dara forma geral do conhecimento a toda preocupacao concernente ao ser humano, Sem diivida, essas ciéncias so, em, ‘sua maforia, distantes em forma e em objetivos do gnéthi seau- {én socratico ou do conhecimento de si tal como 0 encontramos centre 0s fil6sofos. Mas nem por isso elas traduzem menos, & sua maneira, um dos tragos mais fundamentais e mais constantes da cultura ocidental: a saber, que a relagio consigo ¢ e deve ser es- sseneialmente uma relagdo de conhecimento. B ainda: sem duivida, desde o séeulo x1x, podem-se ver os sinais| de um novo desenvolvimento da cultura de sk; poderfamos se~ guir esse movimento através de manifestacbes diversas, mais frequentemente estéticas, allés, que politicas. Entretanto, 6 no- tavel que, mesmo quando tomou formas politieas de revolta ou de luta contra morais estabelecidas, ele exprimiu-se sobretudo como vontade de “redescobrir”o eu e de liberd-lo". 0 que éuma certa maneira de consideré-lo um objeto inteiramente dado que seria preciso, antes de tudo, conhecer. Gostaria de reverter essa perspectiva que 6 agora tio corrente e busear o conjunto de pratieas pelas quais se constituiram as modalidades diversas do conhecimento de si. rote do conecimento dest) ‘Mas € preciso notar que, mesmo quando tomou a forma de uma revolta ou de um combate contra a moral estabelecida, ele tem por 4° cOMIRINCIAS objetivo liberar 0 eu. Todavia, o eu talvez nfo deve ser considerado uma realidade que é preciso liberar ou desenterrar, ¢ sim ser con- siderado 0 correlativo de teenologias construfdas e desenvolvidas ao longo de nossa historia, © problema, entio, nfo € liberar o eu; [o problema sio] essas tecnologias, isto é, 0 eu."* 85 “Taver problema do eu nto sej descobrro que cle ¢ em sua postidade, talvero probleme nt sla descobrir un eu positvo ou fundamentopostivo do eu Talveznosso problema se descobit que oeundo nada além do corelaivo hlstérico da tecnologia cnstruida no curso de nossa histéra. Talvexo proble- ‘ma sj dar essastecnologlas.B, nese caso, um dos prineipais problemas politicos hoje sera, no sentido esto da pslava, a politica de nas mesmo Ks, pp. 90-5 4 PRIMERA CONFEREKCIA, TERCEIRA CONFERENCIA ‘Transerido do texto datlografado tha primeira versio da conferénoa om frances (one xa¥ 28730, ala 29, dossies, Gostaria hoje de evocar algumas priticas a que a culturade sideu ugar. Lembro ainda uma vez: tals préticas, tais como aparecem nos dois primeiros séculos de nossa era, no sdo Invengao dessa poca; tém atrés de si uma longa historia; ¢ certo, porém, que no comeco do Império adquiriram uma extensio considerdvel ¢ formas cada vex mais “sofisticadas”. Duas observagées, para comegar. 1) Aessas formas priticas da cultura de si frequentemente se dava ‘nome geral de dskesis ~ exercicio, treinamento, aseese: Assim, ‘MusOnio Rufo dizia (e nisso nao fazia sendo repetir um ensina- mento tradicional) que a arte de viver (téchne (o4 biou) era como todas as outras artes: ndo se podia aprendé-la somente pelo en- sinamento tedrico (mathesis), ela requeria pratica e treinamento (skesis)? Entretanto, o uso dessa palavra na espiritualidade erista no deve produzir ilusdo retrospectiva. Sem duvida, alguns exer- cicios da dskesis antiga serio utilizados no aseetismo cristo, em particular nas instituigées mondsticas (por conseguinte, no exame de consciéneia ou no controle permanente de representagées). 1 Sobre dela rege de dskesi, er 8x pp 35-96 [PP 32-34 HS, pp. 201-06. 398 (bp. 28186, 373-74: 0¥, pp 266-68 [pp 93-941 UF, pp. 84-90, 2 Caius Musonius Rus {Caio Musnio Rul, Sur ererice.in Teles Musonius, Predicaions: Deux prédicateurs dans Partgui, trad. André-Jean Festugire.Pe- is: Vln, 1978, 19,69, Ch. 8, pp.39203 [pp 28283), 8 Contudo, 0 sentido geral da ascese cristl sera muito diferente daquele da ascese filoséfica antiga. Esquematicamente: + aascese cristé tem como finalidade tiltima a rentinela a si, enquanto que, para a ascese filoséfica, se trata de chegar a constituir consigo mesmo uma relagio definitiva de posse ede soberania; + aascese cristi tem como tema principal o desapegoem rela- io ao mundo, enquanto que, na ascese filoséfica, se trata de dotar o individuo de uma preparagio, de um “equipamento” que Ihe permita afrontar o mundo. 2) Essa pratica de si esté ligada ao conhecimento de si, Mas nisso ‘também € preciso evitar confusdo e precaver-se para nfo inter- pretar tudo com base no platonismo. + Atradicio plat6niea, com efeito, conservoue desenvolveu 0 tema jé presente no Aletbiades: a saber, que 0 euidado de si 4 deveria assumir como forma principal, se nfo exclusiva, 0 conhecimento de si; que esse conhecimento de si deveria assumir aforma deum ato de meméria no qual a alma redles- cobre sua verdadeira natureza, + Na pritica filoséfica dos estoicos, dos cinicos, dos epieuristas, © conhecimento de si nao é a principal forma de pratica de si, pelo contrario; e, sobretudo, néio tem forma de meméria, ‘mas, antes, de preparago para o porvir. Gostaria hoje, primeiramente, de analisar a prétiea de si como preparagao para o porvir; depois, de busear quais formas de co- nnhecimento de i estavam ligadas a essa preparagdo parao porvit. ‘Temos o habito de relacionar conhecimento de si e memoria: tal- vez seja uma influéncia remota do platonismo; 6 uma influéncia sempre atual do cristianismo; é também, sem diivida, o presente efeito da psicandlise. Para nds, a hermencutica de si é sempre, ‘mais ou menos, deciiragdo do passado. f interessante ver, na cul- tura de side que falo, formas de conhecimento de si que se situam er ‘em uma relagao totalmente outra com o tempo: a preparacio in- quieta e desconfiada do futuro. " Aaascese como preparagio Seneca, no De beneficiés [Sobre os beneficios|, citao texto de um filésofo efnico muito préximo do estoicismo: Demétrio, Na pas- sagem, Demétrio recorre & metfora bastante comum do atleta: devemos exercitar-nos (exercitatio) como o faz. um atleta;ele ni aprende todos os movimentos possiveis, ndo tenta fazer proezas: {miteis; prepara-se para alguns movimentos que Ihe sejam neces- sérios na luta afim de triunfar sobre seus adversérios.‘ Do mesmo ‘modo, nao temos de realizar faganhas em nos mesmos (a ascese filos6fica desconfia dos personagens - thefoi dndres -, frequentes ‘na Antiguidade, que enaltecem as maravilhas de suas abstinéneias, de seus jejuns, de sua presciéneia do porvir). Como um bom luta- dor, devemos aprender exclusivamente aquilo que nos permitira resistir aos acontecimentos possiveis de se produzir; devemos aprender a nao nos deixar perturbar por eles, a néo nos deixar levar pelas emogdes que eles poderiam suscitar em nés, ra, do que precisamos para manter o dominio diante dos acontecimentos que se podem produzir? Precisamos de “diseur- sos": de l6goi, entendidos como discursos verdadetros e racionals. 8 “L-]se tata na asces, de prepare india pars fitiro, um futuro que & ‘constnuido de aontceimerosimpresos aeontesientos ca naturezaem ge ‘avez conlegamos, os quas porém ii podemas saber qudo se produzirSo nem mesmo se se produattn. Tat se pos na ascese, de encontrar uma preparegao, ums poraskeué capar de austarseo que poss se produc a isso somente no momento exato em que se prods aso ven poke MS, p. 306. 256) 4 *O grande ltador nto 6 dic Demetri} aquele que conheceafundotoves ws ‘Aguas e todas as capturas que quasendo se usamn em combate, mas aquole que bbeme consclencosament treinou-s exercult) em una ou uss dente elas © ‘spreite atentamente seu emprogo, pois o que importante a quantidade de coisas que sabe desde que salba obastant para veneer Sénaque Des bien, ‘wad, Prangos Préchac. Pars Les Belles Lettres, 2003, V4, 76 ed bras: S- ‘ea, Sobre as bens, trad. Alexandre ire Viera Montecristo, 209, M4) 88 cONMRENCIAS Luerécio fala de veridiea dieta que nos permitem conjurar nossos temores e nio nos deixar abater por aquilo que acreditamos se- ‘rem infortinios, O equipamento de que precisamos para enfrentar oporvir éum equipamento de discursos verdadeiros. Sf eles que nos permitem afrontar o real, Trés questdes se colocam a seu respeito. 1) A questio de sua natureza. Quanto a isso, as diseussdes entre as escolas filoséficas no interior das mesmas correntes foram ‘numerosas. O ponto prineipal do debate concernia a necessidade de conhecimentos tedricos. Sobre esse ponto, os epicuristas esta- vam todos de acordo: conhecer os prineipios que regem o mundo, a natureza dos deuses, as causas dos prodigios, as leis da vida e da morte ¢, do ponto de vista deles, indispensdvel a fim de se pre- parar para os acontecimentos possiveis da existéncia. Os estoieos se dividiam segundo sua proximidade com as doutrinas einicas uns atribuiam importanela maior aos dégmata, prineipios teérieos ‘que complementam as prescrigdes praticas; outros, ao eontrario, »atribufam o lugar prinefpal as regras coneretas de conduta. AS cartas 90-91 de Séneca expéem muito objetivamente tals teses.* Aqui somente as menciono; a tiniea coiea que gostaria de assinalar € que esses discursos verdadeiros de que precisamos concernem apenas aquilo que somos em nossa relacio com o mundo, em nosso lugar na ordem da natureza, em nossa dependéncia ou independéncia no que diz respeito aos acontecimentos que se roditzem. Nao so, de forma alguma, uma decifragéo de nossos pensamentos, de nossas representacdes, de nossos desejos. 2) A segunda questio que se eoloca concerne no modo de existé cia desses discursos verdadeiros em nés. Dizer que sio necessé- rios para nosso porvir ¢ dizer que devemos estar em condig&es de recorrer a eles quando a necessidade se fizer sentir. Quando ‘um acontecimento imprevisto ou um Infortinio se apresenta, 6 preciso que, a fim de nos protegermos, possamos apelar aos dis- cursos verdadeiros que [tm] relago com eles.£ preciso que eles 5. Id, Cartas a Lue trad.. A Segurado Campos Lisbox: Fundagda Calouste (Gulbenkian, 2021, cart 90 © 91, pp. 439-62 89 TERCERA COMFERENCIA, estejam em nés, nossa disposi¢io. Para isso, os gregos tém uma expresso corrente, prdcheiron échein, ue 0s latinos tradutzem. por habere in manu, in promptu habere ter 2 mao. E preciso compreencler que, nesse caso, se trata de algo bem diferente de uma simples lembrangaa ser evocada caso a casio se apresente. Plutarco, por exemplo, para earacterizara presenca desses dis- ‘cursos verdadeiros em n6s, recorre a muitas metéforas. Compara- -08 a um medicamento (férmakon) de que devemos estar munidos para prevenir todas as vicissitudes da existéncia (Marco Aurélio compara-os ao estojo que um cirurgiio deve sempre ter a mio); Plutarco fala deles também como de amigos dentre os quais “os mais seguros e melhores sio aqueles cuja presenga titi na adver- sidade nos traz socorro"; em outra parte, evoca-0s como uma voz interior que se faz ouvir por si mesma quando as paixdes comegam A agitar-se; € preciso que estejam em nés como “um mestre cuja vorbasta para apaziguar 0 rosnar dos cies"® Encontramos em uma passagem de Séneca (De Benefils) uma grado desse tipo, que vai desde o instrumento de que dispomos até 0 automatismo do

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