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CRÔNICA 1 - CRIANDO MEMES - JULIANO MARTINZ

Ela conheceu Marcos pela internet. Uma foto sem graça, uma pose estranha, um sorriso
amareladamente forçado, mas um fértil humor convincente.
Marcos não simplesmente compartilhava memes. Ele os criava.
Pequenas tirinhas humorísticas. Nunca compartilhava o que não
era seu. E produzia num ritmo alucinante. Memes e mais memes.
Uma mente brilhante focada na direção errada, ela pensou. Não
teria futuro. Não fazendo aquelas piadas caricaturescas sobre os
tempos de escola e tirinhas sobre relacionamento com os pais.
Não que não fossem engraçadas. Até eram, e muito. Mas ela,
sensibilidade para as artes, percebia que havia ali um gigantesco
potencial; um potencial que merecia atenção.
Na linha do tempo da rede social dele, postou-lhe sugestões. Que
tal uma peça de teatro? Um projeto piloto para a televisão?
Crônicas semanais para o jornal da cidade? Um foco mais visionário. Além dessa mesmice. E
das “memesices”.
Ele respondeu:
“Eu não teria futuro. Eu não ia conseguir…“
Hum… Um talento oprimido pela baixa valia. Um potencial espremido entre as paredes da
depressão. Algo em comum entre grandes artistas. O que ela poderia fazer? Iria ajudá-lo,
decidiu. Seria a guerreira a resgatar-lhe a sapiência e levaria o homem frente aos refletores – o
lugar onde deveria estar, e de onde nunca deveria sair.
No post, perguntou se ele já tinha escrito algo assim. Talvez engavetado. Ou perdido em
alguma pasta no computador. Ela tinha alguns conhecidos, pessoas influentes no mundo das
artes. Poderia dar um toque, um empurrãozinho. E estava realmente decidida a fazer isso.
“Tenho sim”, espondeu Marcos. Ela vibrou. Trocaram e-mail. E ele enviou diversos textos.
Algumas crônicas, um romance inacabado, um roteiro para um longa-metragem. Para surpresa
dela, um pior que o outro. Textos vagos, toscos e repetitivos. Não eram humorísticos, e muito
menos dramáticos. Apenas palavras desconexas de alguém que não sabe o que quer dizer. Se
fossem para a televisão não dariam uma novela mexicana.
No Facebook, Marcos, parecendo impaciente, postou em seu feed:
“E aí, já leu os textos? São bons? O que achou?”
Ela respondeu:
“Ahh, cara… ainda nem tive tempo. Estou aqui gargalhando com as últimas tirinhas que você
postou… kkkkkkk”
CRÔNICA 2 - FELIZ POR NADA - MARTHA MEDEIROS
Geralmente, quando uma pessoa exclama Estou tão feliz!, é porque engatou um novo amor,
conseguiu uma promoção, ganhou uma bolsa de estudos, perdeu os quilos que precisava ou algo
do tipo. Há sempre um porquê. Eu costumo torcer para que essa felicidade dure um bom tempo,
mas sei que as novidades envelhecem e que não é seguro se sentir feliz apenaspor atingimento de
metas. Muito melhor é ser feliz por nada.
Digamos: feliz porque maio recém começou e temos longos oito meses para fazer de 2010 um ano
memorável. Feliz por estar com as dívidas pagas. Feliz porque alguém o elogiou.
Feliz porque existe uma perspectiva de viagem daqui a alguns meses. Feliz porque você não
magoou ninguém hoje. Feliz porque daqui a pouco será hora de dormir e não há lugar no mundo
mais acolhedor do que sua cama.
Esquece. Mesmo sendo motivos prosaicos, isso ainda é ser feliz por muito.
Feliz por nada, nada mesmo?
Talvez passe pela total despreocupação com essa busca. Essa tal de felicidade inferniza.
“Faça isso, faça aquilo”. A troco? Quem garante que todos chegam lá pelo mesmo caminho?
Particularmente, gosto de quem tem compromisso com a alegria, que procura relativizar as
chatices diárias e se concentrar no que importa pra valer, e assim alivia o seu cotidiano e não
atormenta o dos outros. Mas não estando alegre, é possível ser feliz também. Não estando
“realizado”, também. Estando triste, felicíssimo igual. Porque felicidade é calma.
Consciência. É ter talento para aturar o inevitável, é tirar algum proveito do imprevisto, é ficar
debochadamente assombrado consigo próprio: como é que eu me meti nessa, como é que foi
acontecer comigo? Pois é, são os efeitos colaterais de se estar vivo.
Benditos os que conseguem se deixar em paz. Os que não se cobram por não terem cumprido
suas resoluções, que não se culpam por terem falhado, não se torturam por terem sido
contraditórios, não se punem por não terem sido perfeitos. Apenas fazem o melhor que podem.
Se é para ser mestre em alguma coisa, então que sejamos mestres em nos libertar da patrulha do
pensamento. De querer se adequar à sociedade e ao mesmo tempo ser livre.
Adequação e liberdade simultaneamente? É uma senhora ambição. Demanda a energia de uma
usina. Para que se consumir tanto?
A vida não é um questionário de Proust. Você não precisa ter que responder ao mundo quais são
suas qualidades, sua cor preferida, seu prato favorito, que bicho seria. Que mania de se
autoconhecer. Chega de se autoconhecer. Você é o que é, um imperfeito bem-intencionado e que
muda de opinião sem a menor culpa.
Ser feliz por nada talvez seja isso.
CRÔNICA 3 – A FITA MÉTRICA DO AMOR - MARTHA MEDEIROS

Como se mede uma pessoa?


Os tamanhos variam conforme o grau de envolvimento.

Ela é enorme para você quando fala do que leu e viveu, quando trata você com carinho e respeito,
quando olha nos olhos e sorri destravado.

É pequena para você quando só pensa em si mesmo, quando se comporta de uma maneira pouco
gentil, quando fracassa justamente no momento em que teria que demonstrar o que há de mais
importante entre duas pessoas: a amizade.

Uma pessoa é gigante para você quando se interessa pela sua vida, quando busca alternativas
para o seu crescimento, quando sonha junto.
É pequena quando desvia do assunto.

Uma pessoa é grande quando perdoa, quando compreende, quando se coloca no lugar do outro,
quando age não de acordo com o que esperam dela, mas de acordo com o que espera de si
mesma.

Uma pessoa é pequena quando se deixa reger por comportamentos e clichés.


Uma mesma pessoa pode aparentar grandeza ou miudeza dentro de um relacionamento, pode
crescer ou decrescer num espaço de poucas semanas: será ela que mudou ou será que o amor é
traiçoeiro nas suas medições?

Uma decepção pode diminuir o tamanho de um amor que parecia ser grande.
Uma ausência pode aumentar o tamanho de um amor que parecia ser ínfimo.
É difícil conviver com esta elasticidade: as pessoas se agigantam e se encolhem aos nossos olhos.

Nosso julgamento é feito não através de centímetros e metros, mas de acões e reacões, de
expectativas e frustrações.
Uma pessoa é única ao estender a mão, e ao recolhê-la inesperadamente, se torna mais uma.
O egoísmo unifica os insignificantes.

Não é a altura, nem o peso, nem os músculos que tornam uma pessoa grande. É a sua
sensibilidade sem tamanho.
CRÔNICA 4 – RECADO AO SENHOR 903 - RUBEM BRAGA
“Vizinho,

Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que
me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi
depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação
verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento
do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem
trabalha o dia inteiro tem direito a repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há
vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor; é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se
agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois
números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo
1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103
e embaixo pelo 903 – que é o senhor.

Todos esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano Atlântico


fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e
bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22
horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha
casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21h45, e explicarei: o 903 precisa
repousar das 22 às 7 pois às 8h15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará ate o 527
de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada: e
reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas
o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo
silêncio.

[…] Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem
batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua
casa. Aqui estou’. E o outro respondesse: ‘Entra vizinho e come do meu pão e bebe do meu
vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é
bela’. E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do
vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa
nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.”
CRÔNICA 5 – A GRAMA DO VIZINHO – MARTHA MEDEIROS

Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma.
Estamos todos no mesmo barco. Há no ar certo queixume sem razões muito claras.
Converso com mulheres que estão entre os 40 e 50 anos, todas com profissão, marido, filhos,
saúde, e ainda assim elas trazem dentro delas um não-sei-o-quê perturbador, algo que as
incomoda, mesmo estando tudo bem.
De onde vem isso? Anos atrás, a cantora Marina Lima compôs com o seu irmão, o poeta
Antônio Cícero, uma música que dizia: “Eu espero / acontecimentos / só que quando anoitece / é
festa no outro apartamento”.
Passei minha adolescência com esta sensação: a de que algo muito animado estava
acontecendo em algum lugar para o qual eu não tinha convite. É uma das características da
juventude: considerar-se deslocado e impedido de ser feliz como os outros são, ou aparentam ser.
Só que chega uma hora em que é preciso deixar de ficar tão ligada na grama do vizinho.
As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação, que é infectada por falsos
holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias. Os notáveis alardeiam muito suas vitórias, mas falam
pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas,
então fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando na
verdade a festa lá fora não está tão animada assim. Ao amadurecer, descobrimos que a grama do
vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco, com motivos pra
dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente.
Só que os motivos pra se refugiar no escuro raramente são divulgados.Pra consumo externo,
todos são belos, sexys, lúcidos, íntegros, ricos, sedutores.
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada/ todos os meus conhecidos têm sido campeões
em tudo”.
Fernando Pessoa também já se sentiu abafado pela perfeição alheia, e olha que na época em
que ele escreveu estes versos não havia esta overdose de revistas que há hoje, vendendo um
mundo de faz-de-conta. Nesta era de exaltação de celebridades – reais e inventadas – fica difícil
mesmo achar que a vida da gente tem graça. Mas, tem. Paz interior, amigos leais, nossas músicas,
livros, fantasias, desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na nossa biografia. Ou será
que é tão divertido passar dois dias na Ilha de Caras fotografando junto a todos os produtos dos
patrocinadores? Compensa passar a vida comendo alface para ter o corpo que a profissão de
modelo exige? Será tão gratificante ter um paparazzo na sua cola cada vez que você sai de casa?
Estarão mesmo todos realizando um milhão de coisas interessantes enquanto só você está
sentada no sofá pintando as unhas do pé? Favor não confundir uma vida sensacional com uma
vida sensacionalista..
As melhores festas acontecem dentro do nosso próprio apartamento.
CRÔNICA 6 – O FIM DO MUNDO - CECÍLIA MEIRELES

A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum
sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-
me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e
aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto
temiam.

Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós,
crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.
Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada,
levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então
não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente,
maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que
caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia
sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão
apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.
Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não
se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste – mas que importância tem a tristeza das
crianças?
Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do
mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em
redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um
sentido do mundo peculiar a cada um.
Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena,
porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo
dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já
muito antiga.
O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se
valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou
tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos
outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos – além dos
particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e
muito mais do que cabe enumerar numa crônica.
Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos
este dom de viver da maneira mais digna.
Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus – dono de todos os
mundos – que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira
mortal. Há mesmo alguns místicos – segundo leio – que, na Índia, lançam flores ao fogo, num
rito de adoração.
Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do
universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos
arrogamos posições que não temos – insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade
total.
CRÔNICA 7– MENDIGO – PAULO MENDES CAMPOS
Eu estava diante de uma banca de jornais na Avenida, quando a mão do mendigo se estendeu.
Dei-lhe uma nota tão suja e tão amassada quanto ele. Guardou-a no bolso, agradeceu com um
seco obrigado e começou a ler as manchetes dos vespertinos. Depois me disse:
– Não acredito um pingo em jornalistas. São muito mentirosos. Mas tá certo: mentem para
ganhar a vida. O importante é o homem ganhar a vida, o resto é besteira.
Calou-se e continuou a ler as notícias eleitorais:
– O Brasil ainda não teve um governo que prestasse. Nem rei, nem presidente. Tudo uma
cambada só.
Reconheceu algumas qualidades nessa ou naquela figura (aliás, com invulgar pertinência
para um mendigo), mas isso, a seu ver, não queria dizer nada:
– O problema é o fundo da coisa: o caso é que o homem não presta. Ora, se o homem não
presta, todos os futuros presidentes serão ruínas. A natureza humana é que é de barro ordinário.
Meu pai, por exemplo, foi um homem bastante bom. Mas não deu certo ser bom durante muito
tempo: então ele virou ruim.
Suspeitando de que eu não estivesse convencido da sua teoria, passou a demonstrar para mim
que também ele era um sujeito ordinário como os outros:
– O senhor não vê? Estou aqui pedindo esmola, quando poderia estar trabalhando. Eu não
tenho defeito físico nenhum e até que não posso me queixar da saúde.
Tirei do bolso uma nota de cinquenta e lhe ofereci pela sua franqueza.
– Muito obrigado, moço, mas não vá pensar que eu vou tirar o senhor da minha teoria. Vai me
desculpar, mas o senhor também no fundo é igualzinho aos outros. Aliás, quer saber de uma
coisa? Houve um homem de fato bom. Chamava-se Jesus Cristo. Mas o senhor viu o que fizeram
com ele?
CRÔNICA 8 – NA ESCOLA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Democrata é Dona Amarílis, professora na escola pública de uma rua que não vou contar, e
mesmo o nome de Dona Amarílis é inventado, mas o caso aconteceu.
Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou assim:
-- Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito importante. Pode ser?
-- Pode – a garotada respondeu em coro.
-- Muito bem. Será uma espécie de plebiscito. A palavra é complicada, mas a coisa é simples.
Cada um dá sua opinião, a gente soma as opiniões e a maioria é que decide. Na hora de dar
opinião, não falem todos de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu saber o que é que
cada um pensa. Está bem?
-- Está – respondeu o coro, interessadíssimo.
-- Ótimo. Então, vamos ao assunto. Surgiu um movimento para as professoras poderem usar
calça comprida nas escolas. O governo disse que deixa, a diretora também, mas no meu caso eu
não quero decidir por mim. O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os alunos. Para
todos ficarem satisfeitos e um não dizer que não gostou. Assim não tem problema. Bem, vou
começar pelo Renato Carlos. Renato Carlos, você acha que sua professora deve ou não deve usar
calça comprida na escola?
-- Acho que não deve – respondeu, baixando os olhos.
-- Por quê?
-- Porque é melhor não usar.
-- E por que é melhor não usar?
-- Porque minissaia é muito mais bacana.
-- Perfeito. Um voto contra. Marilena, me faz um favor, anote aí no seu caderno os votos
contra. E você, Leonardo, por obséquio, anote os votos a favor, se houver.
-- Agora quem vai responder é Inesita.
-- Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por que vai deixar de usar aqui dentro?
-- Mas aqui dentro é outro lugar.
-- É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal que eu vi outro dia na rua, aquela é
bárbara.
-- Um a favor. E você, Aparecida?
-- Posso ser sincera, professora?
-- Pode, não. Deve.
-- Eu, se fosse a senhora, não usava.
-- Por quê?
-- O quadril, sabe? Fica meio saliente…
-- Obrigada, Aparecida. Você anotou, Marilena? Agora você, Edmundo.
- Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A senhora deve ficar muito bacana de
calça comprida. O seu quadril é certinho. -- Meu quadril não está em votação, Edmundo. A calça
sim. Você é contra ou a favor da calça?
-- A favor 100%.
-- Você, Peter?
-- Pra mim tanto faz.
-- Não tem preferência?
-- Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.
-- Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de tomar nota dos votos iguais ao de Peter:
nem contra nem a favor, antes pelo contrário.
Assim iam todos, votando, como se escolhessem o Presidente da República, tarefa que talvez,
quem sabe? No futuro sejam chamados a desempenhar. Com a maior circunspeção. A vez de
Rinalda:
-- Ah, cada um na sua.
-- Na sua, como?
-- Eu na minha, a senhora na sua, cada um na dele, entende?
-- Explique melhor.
-- Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona, venha. Eu quero vir de midi, de
máxi, de short, venho. Uniforme é papo furado.
-- Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor?
-- Evidente. Cada um curtindo à vontade.
-- Legal! – exclamou Jorgito. – Uniforme está superado, professora. A senhora vem de
calça comprida, e a gente aparecemos de qualquer jeito.
-- Não pode – refutou Gilberto. – Vira bagunça. Lá em casa ninguém anda de pijama ou
de camisa aberta na sala. A gente tem de respeitar o uniforme.
Respeita, não respeita, a discussão esquentou, Dona Amarílis pedia ordem, ordem, assim não
é possível, mas os grupos se haviam extremado, falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se
fazia ouvir, pelo que, com quatro votos a favor de calça comprida, dois contra, e um tanto-faz, e
antes que fosse decretada por maioria absoluta a abolição do uniforme escolar, a professora achou
prudente declarar encerrado o plebiscito, e passou à lição de História do Brasil.

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