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REMATE DE MALES, Campinas, (12):45-55, 1992 FRANCIS DE CASTELNAU E 0 RELATO DE UM GRUPO DE ESCRAVOS DE SALVADOR DA BAHIA EM 1851. ou DO CARATER SIMIESCO DOS INDESEJAVEIS. LUIZ DANTAS IEL/UNICAMP Nous ne descendons pas du singe, nous y allons, Gobineau Nas pdginas introdutérias dos Estudos sobre a poesia popular do Brasil, de 1888, Silvio Romero protestava contra a raridade de trabalhos consagrados a linguas e culturas africanas em nosso pais, apesar de dispormos, segundo sua propria expresso, do "material em casa"; apressava os especialistas, antes que tantos testemunhos vives ¢ informagdes diretas desaparecessem irremediavelmente. Nina Rodrigues, no classico Os africanos no Brasil, reuniéo de um conjunto de investigagdes que se estendem de 1890 a 1905, relembrou as mesmas palavras de Silvio Romero, comentando: "Hoje é a Bahia talvez a nica provincia ou estado brasileiro em qué 0 estudo dos negros africanos ainda se pode fazer com algum fruto. Mas, ou esse estudo se faz. de pronto, ou a sua possibilidade em breve cessaré de todo. Sto todos os africanos de idade muito avangada e tal a mortalidade deles que dentro de poucos anos terdo desaparecido os ‘iltimos"” Da mesma forma, os relatos dos viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil no século XIX so surpreendentemente parcos em exames atentos do variadissimo contingente de escravos africanos. Tantas linguas a serem classificadas, tantos costumes, tantos destinos guardaram siléncio face ao interesse timorato desses viajantes: foram relegados a categoria de um pitoresco sem excesso de zelo detalhista. Por outro lado, junto aos espiritos melhor intencionados, a sua ocultagao talvez se deva ao reptidio que sentiam pelo tema escravista. Nao bastou que Martius houvesse recomendado ao historiador brasileiro futuro indagar a condicéo do africano chegado ao pais, se acaso pretendesse fazer uma hist6ria completa do Brasil’; nao bastaram algumas descrigdes exceptionais, como a de Koster, ou o panorama dos "Usos e costumes dos negros” inserido por Joao Mauricio Rugendas em sua Viagem pitoresca através do Brasil‘, de 1835, para apresentar a Silvio Romero o retrato complexo do africano brasileiro, considerado enquanto “objeto de ciéncia”. * Cit. in Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, 6* ed. Sio Paulo, Ed. Nacional: Brasilia, Ed, Universidade de Brasilia, 1982, p-XV. * op. cit p.l7, > Consultar Carl F.P. von Martins. Como se deve escrever a Histéria do Brasil (1* edigio, em portugues, 1845), fem especial ¢ cap. "A raga africana em suas relacdes para com a Histria do Brasil", in © estado do direito entre os autéctones do Brasil, Belo Horizonte, Ed. Itstiaia: Sto Paulo, Ed. da Universidade de Sto Paulo, 1982, pgs.85/\(7. “In oko Mauricio Rugendas. Viagem pltoresca através do Brasil, (1* edicto em francés ¢ alemdo, 1835), 8* ‘digdo, Belo Horizonte, Ed. Iatiaia: Sto Paulo, Ed. da Universidade de S40 Paulo, 1979, pgs.279/286. Sobre o papel de Rugendas, estudioso dos africanos, consultar 0 estado recente de Robert W. Slenes, " vem!: Africa cobertaedescoberta no Brasil", in Revista USP, Sto Paulo, dezembro)jaseiro/fevereiro de 1991/1992, n° 12, pgs.48/67. relato aqui apresentado, e que tento compreender, no responde de modo satisfatério a essa expectativa. Ele sitta-se, alias, num curioso terreno onde a ciéncia, ou em todo caso a atividade classificat6ria, a investigag4o antropol6gica convivem com a credulidade mais permeével 4 intruséo do maravilhoso, resultando num capitulo de uma espécie de historia natural fantéstica. Esse texto permite ao menos objetar a Jodo Mauricio Rugendas que a travessia do oceano, a violéncia do cativeiro no significaram para os africanos a completa morte de suas lembrancas, a destruigdo das idéias anteriores, como ele afirma, e 0 apagamento de seus interesses*. Trata-se, apesar de sua precariedade e apriorismos, de um registro precioso dessas presencas plenas, se no silenciosas, pelo menos nfo ouvidas*; trata-se também, forgosamente, de uma comprovacdo melancélica da adverténcia de Silvio Romero e Nina Rodrigues sobre o inexorével esaparecimento de tantos testemunhos, condenados a durarem apenas 0 que dura uma vida. Mas, ‘vamos ao autor do texto, Francis de la Porte, conde de Castelnau (1812-1880) visitou o Brasil em duas ocasides. Num primeiro tempo, enquanto organizador e chefe de uma expedi¢ao oficial francesa que, entre 1843 e 1847, percorreu nao s6 o Brasil central, mas boa parte do continente sul-americano. A meta da expedicdo* era provar ser realizével a navegacdo, por via fluvial em sua quase totalidade, centre as Antilhas francesas e Buenos Aires. O trajeto concebido implicava subir 0 rio Amazonas ¢ tomar um dos afluentes austrais, o Tocantins ou 0 Araguaia, percorrendo-o contra a corrente até as cabeceiras, de modo a atingir o ponto de divisto das Aguas da bacia amazénica ¢ platina, para dai enfim, negociando um breve percurso intermediério em chao firme, descer, primeiro um dos afluentes, em seguida o proprio rio Parand até a destinacdo final, Buenos Aires’. A contrapartida monumental desse périplo so os quatorze volumes in quarto da Expediio as regides centrais da América do Sul, editados entre 1850 e 1859", que a colecéo Brasiliana traduziu e publicou ‘em 1949 entre nés, pelo menos a secgao correspondente ao Brasil’. Francis de Castelnau regressou Franga com suas colegdes boténicas, objetos, croquis ¢ notas por assim dizer as vésperas da Revolugdo de 1848, que depés Luis Felipe, instaurou provisoriamente a Republica, e privou, ao mesmo tempo, o explorador dos recursos financeiros da dinastia dos Orledes para a edieAo futura da obra. A propria expedicao cientifica, alias, contara com o patrocinio e estimulo direto dos Orledes. O retorno imediato de Francis de 5 Joao Mauricio Rugendas, op. cit, p.282. ® Reenvioao estudo de Robert W. Slenes, citado acima, cuja matéria é a sobrevivéncia das cultrasafricanas no Brasil ‘© questio da comunicagio entre comunidades de escravos linguisticamente diversas. Cf, Dictionnaire de Biographie Francaise, sob a direcdo de Prevost e Roman d’ Amat, fasciculo XXXVI, Paris, Librairie Letouzey et Ané, 1954. 5 Sobre os objetivos de viagem exploratéria, consultar um primeiro relato parcial de Francis de Castelnau, “L’Araguail (sic, Seéaes de voyage dans I'Amérique du Sud", in Revue des Deux Mondes, 1848, tomo 3 (1° de julho de 1848), pgs.151/169, % A expedigio atingiu muito concretamente essas regides limitrofes as duas grandes bacias fluviais. Castelnau, nto sem entusiasmo, afirma: "A fazenda do Estivado (vizinha do municipio de Diamantino), onde nos achévamos, fica Tocalizada num dos pontos mais curiosos do continente, Ali, com efeito, a alguns passos uma da outra, ficam as nascentes de dois dos maiores rios do mundo, a saber 0 rio Amazonas e 6 rio da Prata. Dia vird em que se poders estabelecer sem dificuldade comunicacao entre estes gigantescos rio. pois, conforme nos informou o préprio dono da casa, com o simples inuito de regaro sew quintal cle tinha feito correrem as 4guas de um para o leito do outro. As nascentes do rio Estivado, que € 0 verdadeira tronco do Arinos, acham-se numa anfractuosidade do planalto, a qual descamba para o norte, 200 metros a leste da sede da fazenda a que deu nome; por outro lado, 84 metros a oeste da ditima, saem de um buriizal as primeiras éguas de um afluente do Tombador, que, como sabemos, étributario do Cuiabs. O sitio do Estivado acha-se por onseguinte no divisor das 4guas que correm para o norte e para'o sul”, in Expedigio as regides centrais da América do Sul, tradugéo de Olivério M. de Oliveira Pinto, Cia. Editora Nacional, colegao Brasliana, Sio Paulo, 1949, tomo Il, pair + Consultar Expédition dans les parties centrales de I'Amérique du Sud, de Rio de Janeiro a Lima, et de Lima au Para; exécutée par ordre du gouvernement francais pendant les années 1843 a 1847 sous la direction de Francis dde Castelnau, Paris, P, Bertrand, 1850-1859, 14 volumes. "Op. eit 46 Castelnau ao Brasil, em 1849, como consul francés em Salvador da Bahia, é consequéncia da reviravolta politica. E de Salvador que o viajante-naturalista, em seguida diplomata, dirigiu a publicagdo colossal, financiada por subscricdo, assinando, inclusive, o capitulo introdutério da obra ra capital da provincia”. Da mesma forma, é em Salvador que o documento aqui apresentado foi concebido, © seu titulo completo, longo se comparado 4 modéstia das pouco mais de 60 paginas da brochura, é Informagées sobre a Africa Central e sobre a localizagao de uma nagio de homens de rabo - segundo depoimento dos negros do Sudio, escravos em Salvador da Bahia”. As palavras iniciais de Castelnau explicam a origem e 0 propésito do livro: © pequeno trabatho que submeto neste momento ao ptiblico compoe-se de informagoes que pude obter dos negros escravos de Salvador. Pouco tempo apés minha chegada aquele posto, nao tardei a notar que varios deles sabiam ler € escrever 0 drabe e 0 libico, vindo-me ao espirito que, em meio a uma multidao tal, origindria de todos os pontos da Africa, achar-se-iam alguns individuos capazes de fornecer informagdes Sobre os lugares ainda inteiramente desconhecidos do vasto continente. Obtive, dessa forma, itinerdrios que nao obstante serem muito incompletos, podem, apresentar todavia algum interesse aos que se ocupam da geografia do imerior da Africa. Caberia interromper a citagdo para esclarecer alguns dos termos empregados por Castelnau. Jé 0 titulo, ao mencionar 0 Sudao (ndo se trata do pais atual, naturalmente, mas de uma entidade homébnima bem mais genérica), lembra o quanto permanecia impreciso 0 conhecimento do continente africano, excegao feita de seu contorno litordneo € do mundo muculmano tradicional. © Sudao de Castelnau corresponde ao que os ge6grafos arabes denominaram de Blad-es-Sudan, © pais dos negros, em oposicao a Blad-el-Beidan, 0 pais dos brancos, isto é, tudo aquilo que se estendia ao sul do Sara, Ainda por volta de 1830, um mapa inglés apresentava o Sara separado do restante do continente por uma ininterrupta ¢ fantasista cadeia de montanhas, prolongando-se de costa a costa como uma vasia muralha diviséria, Cabe lembrar que as primeiras exploracdes, das regides centrais da Africa iniciaram-se em data posterior a0 documento de CasteInau: John H. Speke e Richard Burton deixam Zanzibar em dezembro de 1856 permanecem até 1859 na regido dos lagos centrais africanos, Tanganika ¢ Vit6ria; Samuel Baker explora as nascentes do Nilo nos dez anos que vio de 1863 a 1873; Livingstone, enfim, sé chega a Africa em 1866" Compreende-se, dessa forma, que Francis de Castelnau tente obter dos escravos baianos um conjunto de itinerérios e informagdes inéditos, através de depoimentos orais, preenchendo assim 0s varios da cartografia existente. O proprio Castelnau, quando enirentou os planaltos centrais, brasileiros, utilizara um instrumento semelhante, o muito preciso e indispensdvel Itinerdrio do Rio " Castelnau conch a introdugd0, explicando: “A crise financeira subsequente acs acontecimentos politicos de 1848, rio é a causa tnica do atraso softido pela publicaco desta obra; eu regressara a Europa num estado de saiide que no ‘permit por muito tempo trabalho de nenhiuma espécie: estive cego durante um ano, Hoje. enfim, de volta ao Brasil, onde exergo as fungdes de cOnsul do governo franc8s, sou obrigado @ me consagrar a um trabalho considerdvel sem ajuda de rnenhum tipo: ¢ privado das obras mais indispensiveis, sb posso solcitar entio, sob todos os aspectos. a indulgéncia do pablico para com uma obra redipida em circunstincias tio desfavoriveis", in Expédition..., vol.1, pgs.31/2. traduzido jor mim, assim como as demais passagens, quando nilo houver referéncia explicia a0 tradutor. "9 Consuitar Francis de Castelnau, Renseignements sur l'Afrique centrale et sur une nation d’hommes & queue ‘qui s'y trouveralent, &'aprés le rapport des négres du Soudan, esclaves & Babla, Paris, P. Bertrand, 1851, 63 p., 4 grivurss. \ Consukar a historia das expedigdes inglesas a Africa central, de 1856 a 1900, de Alan Moorehead, The White Nile, Londres, Penguin Books Lid., 1971, ¢ em especial a Cronologia, pgs.308/315 47 de Janeiro ao Para e Maranhao, pelas provincias de Minas Gerais e Goids do general Cunha Matos'’, sucedaneo, sob forma de descrigdo pormenorizada, do mapeamento ainda insuficiente. Continua a apresentagao da brochura Um dos escravos, Mahamma ou Manuel, era sobretudo notével por sua inteligéncia e fizera viagens muito extensas. Com frequéncia, os meus estudos de naturalista permitiram confirmar as narratives, julgando-as sempre de grande exatiddo, até que um dia fatou-me dos Niam-Niams, ou homens de rabo que assegurava ter visto. Apesar de minka incredulidade, sustentou o fato entrando em particularidades detathadas. A seguir, tive a oportunidade de encontrar uns doze negros do Sudao que pretendiam ter visto Niam-Niams ou ter ouvido falar de sua existéncia como fato indubitdvel. Ligava pouca importancia as declaracées, quando entretanto, por ocasido de meu retorno & Franca, soube que um outro viajante obtivera informagées da mesma ordem na Ardbia e assegurava, inclusive, ter avistado um homem de rabo. Desde entdo, julguei que seria porventura de alguma valia para a historia da raga humana publicar os resultados do inquérito de Salvador, sem garantir de forma alguma a exatidao de um fato que parece até contrario aos principios zoolégicos, pois hd de se notar que os macacos mais proximos do homem ji se encontram privados desse apéndice, ou se os possuem, Sao apenas rudimentares. Entretanto, sabe o naturalista que a teoria cientifica ‘mais plausivel pode ver-se derrubada, em certas circunsténcias, por uma inica observado. Acresci as notas 2 traducdo de alguns termos, e os retratos das nagées principais trazidas a Salvador pela excravidao, da mesma forma que um mapa, feito tao sé a partir das indicagées de alguns negros inteligentes, que apontavam a posicdo dos lugares que visitaram dispondo graos de milho pelo chdo. Nao é necessdrio acrescentar 0 quanto um trabalho dessa espécie esté sujeito a reserva, dando-o apenas como simples documento". Assim, o itinerario centro-africano para fins eminentemente préticos, de finalidades bem definidas, também abarca um outro mapa que se povoard de monstros medida que avangarmos para 2lém dos horizontes familiares dos informantes negros de Castelnau, ou se quisermos, para fora das zonas limitadas pelos grdos de milho espalhados na terra batida das ruas de Salvador. A curiosa e imprevista sintonia entre o ouvinte branco ¢ a meméria ou 0 imaginério do falante africano merece aten¢ao. Francis de Castelnau justifica a sua quase credulidade, ou meio ceticismo alegando lum outro testemunho europeu dos homens de rabo. Trata-se exatamente, ¢ possivel localiz4-lo, de um certo Sr. Ducouret. Com efeito, os anais da Academia de Ciéncias de Paris, com data de 20 de agosto de 1849, registram a seguinte informago, que eu cito parcialmente: O Sr. Ducouret envia uma Nota sobre a raca dos Ghilanes (equivalente aos Niam- Niams de Castelnau), raga que habita o interior da Africa, o Sudo meridional, € que é célebre entre os povos vicinhos por apresentar uma particularidade estranhissima de organizagao. O Sr. Ducouret ndo péde penetrar até a regido habitada pelos Ghilanes, mas viu na Meca, em 1842, um individuo que apresentava a conformacao mencionada, ¢ as informagaes prestadas por este homem sobre « tocalizacao de sua terra natal, de onde foi levado muito cedo, correspondiam bastante bem & que se conhece como Sendo a regiao dos Ghilanes () 'S Cf. Raimundo José da Cunha Matos, Itinerdrio do Rio de Janeiro a0 Pari ¢ Maranhao, pelas provincias de Minas Gerais e Golds, Rio de Janeiro, Tip. Imperial ¢ Constiicional de J, Villeneuve ¢ Ca., 1836, 2 tomos. "© Cf, Francis de Castelnau, Rensejgnements..., op. cit, pgs.5I6. 8 € 0 registro prossegue com 0 convite. por parte da Academia, aos demais sécios para que obtenham dados suplementares'”. Quer referidos como Ghilanes, quer como Niam-Niams. o certo é que Francis de Castelnau acatou em Salvador uma lenda dos homens de rabo bem arraigada. Bastardo, todavia, pouco mais de vinte anos, para que 0 Grande Dicionério Larousse do século XIX (1874) apresentasse os homens caudados da Africa ja transformados em pura estulticia, Comenta o verbete *Niam-Niam", historiando a questio, que eu cito também parcialmente: Um erro singularissimo foi aceito a respeito dos Niam-Niams e intrigou os sabios que se ocupam de antropologia. Um holandés chamado Struys contou, em 1677, ter visto um negro com um rabo do comprimento de um pé. Apos Struys, Hornemann contou o mesmo fato e atribuiu positivamente o estranho apéndice aos Niam-Niams, Em 1844 (imprecisio evidente), wm outro viajante, chamado Ducouret, apresentou & Academia de Ciéncias um desenho representando um negro com rabo, feito segundo o original que ele pretendia ter visto na Meca. Geoffroy Saint-Hilaire fer justia a essa fébula e demorstrou a impossibilidade. do ponto de vista anatémico, da realidade do desenho. Em 1860, Guillaume Lejean, que se encontrava em Kartum, viu entre as maos de um traficante de escravos um objeto estranko encontrado sobre 0 cadaver de um Niambara: era o famoso rabo. objeto de tantas controvérsias € que no é mais que um ornamento de couro semelhante aos rabos de cavalo de certos Peles-Vermelhas. Compoe-se de duas partes bem distineas: uma parte rigida, artificialmente endurecida, e uma parte flutuante. enfeitada com alguns objetos de ferro batido. Ele é amarrado ao cinto que os Niam-Niams usam, passa entre as pernas e abre-se por detras em leque. Pode-se ver na ‘revista) Tour du Monde de 1860 um desenho que representa esse apéndice. e figura atualmente na colecdo de Halim-Pachd. no Cairo «...* Esta mise-au-point do Dicionario Larousse tornou-se possivel gracas. em grande parte. as atividades do antropélogo e explorador italiano. Carlo Piaggia, que permaneceu entre os veridicos Niam-Niams de 1863 2 1865. Modernamente. esse conjunto ou federac3o de nacdes & designado por seu nome proprio. os Azande ou Zandé. que vivem na atual Reptiblica Centro- Africana’*. O estranho e insinuante nome de Niam-Niam circulava de fato entre os povos vizinhos dos Azande, que dessa forma ao mesmo tempo os designavam e faziam perpetuar uma aterradora, e injusta, reputagdo de antropofagia. Elisée Reclus, em sua monumental Nova Geografia Universal, de 1888, tece alguns comentarios sobre esses equivocos etimolégicos ¢ antropolégicos O renome dos Niam-Niams hé muito se estendera para além de sua regido, até entre os Niibios e os Arabes; porém a miragem que o afastamento produz conferiu estranhos costumes a esse povo misterioso, ao fazer deles até mesmo uma raga diferense de homens. uma espécie superior de macacos. Os famosos “homens de "7 Ce Ducouret. "Note sur Ia race des Ghilénes, race habitant le Soudan méridional”, in Comptes rendus bebdomadaires des séances de I'Académie des Sciences, Paris. Mallet Bachelier. Impr--Libr.. 1853, tomo XXIX. pes.213/214, Alguns meses mais tarde. na sessio de 22 de ounubro de 1849. ainda o Sr. Ducoureté citado pela Academia. a enviar “...1 Como documento de apoio a sua Nota ‘sobre a existbncia de uma raga de homens com o céccix prolongado no centro da Africa’. uma Not de dois viajantes. os Srs. Amaud e Vayssidre, que recotheram informacdes andlogas referentes a povos designados, ads, por um nome diferente, O Sr. Ducouretanuncra a intensio de ocupar-se. durante viagem, de pesquisas relativas @ antropologia, ¢ exprime o desejo de obter. a esse respeito. instrugdes da Academia ( (op it. tomo XXIX, pgs.451/452 ", in Grand Dictionnaire Universel du XIX e Sitcle. 1874. tomo XI. p.975 Cr Nami '® Consultar 0 panorama histérico das pesquisas sabre os Azande em E.E, Evans-Pritchard, The Azande - History ‘and Political Institutions. Oxford. Oxford University Press. 1971. em particular 0 Prefici, pgs.IX0L 49 abo" que os viajantes contavam ter encontrado além das regides do alto Nilo, ndo eram outros sendo os Niam-Niams, embora ndo amarrem ao cinto, como os Bongo, um rabo de boi, que d distancia poderia com efeito assemelhar-se a um apéndice natural: as peles de animais gue eles atam & cintura prestam-se bem ‘menos i ilusdo. Mas 0 nome de Niam-Niam, sindnimo de "Comedores", aplicado por sinal a varias outras tribus além das dos Zandé pelos Nitbios, é relativamente ‘merecida, ao menos para um certo niimero de povos. Piaggia, que foi o primeiro a percorrer de 1863 a 1865 a regiao dos Niam-Niams, na vertente nilética, péde constatar um inico caso de antropofagia, 0 de um inimigo morto cujos despojos foram divididos entre os vencedores”. Francis de Castelnau reproduz em seu livro cerca de vinte depoimentos de escravos, identificados pelo nome de batismo ¢ pelo nome afticano; identificados também por nagdo de origem, religiio, sistema de taruagens e sinais tribais, com o acréscimo de um pequeno Téxico das palavras mais habituais de cada lingua. Quase todos respondem a questo sobre a existéncia dos Niam-Niams fabulosos. Manuel, jé mencionado, talvez mesmo um escravo a servigo do cénsul francés, nascido na cidade de Cano, na Nigéria atual, ¢ 0 mais longamente ouvido dos informantes. Ele participou, segundo afirma, de uma expedicao contra os Niam-Niams. O enconiro assim de deu: A expedicao Haiica pernoitou nove vezes naguelas matas extensas; foi com ‘frequéncia necessdrio abrir caminho para dar passagem aos cavalos. Ao sair da ‘floresta, comecaram a escalar altas montanhas, percebendo poucos dias depois um bando de selvagens Niam-Niam. Dormiam ao sol todos eles; os Haticas aproximaram-se sem ruido e massacraram até o iitimo; tinham todos rabos de quarenta centimetros de comprimento, por dois ou trés de didmetro: o éredo é liso: caddveres de varias mulheres, de conformagdo idéntica, encontravam-se entre os demais; estavam absolutamente nus. Nos dias seguintes. a expedicdo encontrou varios outros bandos, que conheceram a mesma sorte; um estava ocupado em comer carne humana, e as cabecas de trés homens assavam ainda ao fogo, Suspensas a varas fincadas no chao. Manuel ia a frente e viu matarem muitos deles; examinou os cadéveres, mediu os rabos e ndo péde conceber nenhuma diivida quanto @ sua existéncia. Os Haticas, durante seis meses, percorreram e assolaram a regiéo. Toda ela é cobena de rochedos muito altos. A maioria dos Niam-Niams vive em buracos de rocha, embora alguns construam choupanas miserdveis de patha, 0s Haiicas foram muitas vezes atacados pelos selvagens e mataram grande nimero deles; sao de um preto retinto e os dentes limados, 0 corpo nao é tatuado, obtém ‘fogo por meio de uma pedra que se encontra nas redondezas (o silex?). Servem-se de clavas, flechas e azagaias; na guerra dao gritas agudos. Cultivam arroz, mitho € outros cereais e frutas desconhecidos dos Haiigas; séo homens formosos; 0s cabelos so crespos. (0s Haticas atravessaram varias cursos de dgua pouco considerdveis que supuseram dirigir-se para o lago Chade. ® Cr, Blisée Reclus. Nouvelle Géographie Universelle, Pars. Libr. Hachette et Cie.. 1888. tomo XTHL. “A Africa meridional”. pgs.261/262 “Tomando ainda mais intneada a etimologia de “niam-niam”, rranscrevo um trecho desse mesmo verbete na Enciclopedia Universal Mustrada - Europeo-Americana, Bilbao. sid, tomo XXXVI, p.S04. desta fei numa insuspeitada acepedo zootécnica’ “Raga de cdes do centro da Africa caracteizada por sua curta cauda, enrolada como & dos suinos. ...) Estes animais tm uma aptidao extraordindria para a engords, condicSo apreciadissima pelos indigenas. uma vez que na regio Niam-Niam 0° cles sie comestiveis” 50 chefe dos Niam-Niams pediu graga, porém o rei de Cano mandou matar a todos ‘5 prisioneiros, porque tinkam rabo e porque supunha que ninguém compraria escravos semelhantes. Os Niam-Niams possuem boizinhos sem chifres ¢ cabras de grande porte, bem como carneiros A expedicdo regressou pelo mesmo caminho. Os Haiicas tinham até entéo ouvido {falar dos homens de rabo, mas duvidavam do fato e a finalidade da expedigao era ‘confirmar isso", ‘A narrativa de Manuel, mais longa, sobretudo em seus preambulos geogréficos, reforga a idéia de passagem de um mundo familiar em direcio a um outro territ6rio consideravelmente mais impreciso. No primeiro, as distancias so claramente mensuraveis pelos dias de marcha, as localidades nomeadas, os aliados reconhecidos. os animais identificados. Apés transpor uma zona fronteitica, representada por essa floresta labirintica onde por nove dias vagueia 6 destacamento hatica, penetra-se em outro territério, depois de escalada uma nova barreira de montanhas, para se descortinar enfim a paisagem desolada que serve de quadro natural aos nus, trogloditas e canibais Niam-Niams. Confrontado ao relato de Manuel, se me for possivel valer de uma evidéncia, Iembraria que todas as sociedades hamanas tiveram os seus homens selvagens, até mesmo aquelas ‘que n6s chamamos de selvagens. ¢ todas elas definiram, em consequéncia ¢ a seu modo, os critérios da selvageria. Nao existe 0 selvagem em si. O "selvagem” ¢ delineado, negativamente, pelos tracos da “civilizag4o”, com todas as suas variantes segundo as épocas, ou modificagdes conforme os espacos. Apenas permanecerao como constantes, talvez, certas oposi¢des do tipo cru e cozido®. Sem grande esforeo, com efeito, serd possivel apontar toda uma rede delas. aqui e ali no texto mencionado. Manuel, por exemplo, muculmano, ¢ natural da cidade de Cano, centro importantissimo no século XIX, a “rainha das cidades haticas"®, também referida como a Manchester africana, pela producdo em escala pré-industrial de tecides e roupas. A nudez dos Niam-Niams, nesse caso. denunciada com ainda mais veeméncia pelo apéndice animalesco sera (0 sem contraposto escandaloso. Outros escravos ouvides por Castelnau recordarao de igual modo a indumentéria suméria dos canibais. a pele de cameiro atada a volta do corpo. na descrigdo de ‘Abukabar, também muculmano, baguirmi™. ou no testemunho de Griss, hatica de Bauchi**; um terceiro, Manuel. nativo de Bornu”. referit-se-4 aos seus atavios barbaros. 0 pedago de madeira que atravessa 0 lobo dilatado das orelhas dos homens. ou o lébio das mulheres niam-niams. A culindria canibal, a seu tumno, ainda que desembaracada das perversdes do cra, é um tema forte para as variagdes do macabro barbaro. Os festins sAo sempre surpreendidos em meio, ou com frequéncia proximo de seu término. oferecendo ao intruso aterrorizado desde 0 espetéculo do ‘moqueado niam-niam simples, as cabecas humanas espetadas em varas, (nas versdes de Manuel, ‘© informante privilegiado de Castelnau®, e na de Griss’) iguaria que compensa a pouca 2 Cf, Francis de Castelnau, Renseignements..., op. cit., pgs.15/16. laguel andlise de L'le 2 Consultar. sobre a questio do “eterno selvagem”, 0 artigo consagrado por Pierre Vi cisme, Paris, Haia, Mouton imystérieuse de Jules Verne in Léon Poliakov (org), Hommes et Bétes - enfretiens sur le Fad. 1975. pes.129!%42 ® 0 epiteto ¢ de Joseph Ki-Zerbo, Histéria da Atvica Negra, trad. de Américo de Carvalho, Publicagées Europa- América, vol. 1. p.192. Cf, Francis de Castelnau, Renseignements... op. cit.. p32 ° Idem, p.4t % eer, 0.29, ® Idem. p.1s. idem, p at 51 suculéncia por um ganho inegivel em truculéncia -, até o preparo mais doméstico, o ensopado niam-niam que o mesmo Griss” inspeciona. Um outro escravo, Ibrahim, de Bornu®, acusa a vileza do aprovisionamento niam-niam, quando relata a acolhida a um viajante incauto por uma aldeia nas montanhas. ¢ a maneira como foi abatido pelos selvagens, em plena noite, numa viola¢do Sbvia das regras de hospedagem. A relacio dos t6picos poderia ser ampliada, as habitagdes precérias ou naturais. as montanhas pedregosas ¢ estéreis, a modorra niam-niam em face 4 mobilidade empreendedora dos demais povos, etc. Resta, todavia. o sinal de selvageria mais clamoroso, monstruoso, em sua acepcao etimolégica daquilo que mostra e adverte: o rabo. Se praticéssemos, para efeito pratico, ume divisio da monstruosidade imaginaria em duas categorias, em dois graus de alteridade, melhor dizendo, poderiamos obter, por exemplo. a do monstro completamente diverso e a do quase idéntico". Na primeira classe, a capacidade de ameaca ou de reptidio esto diretamente proporcionadas 4 condigao de desumanidade, dimensbes avantajadas, atributos incompreensiveis. formas inauditas que afastam 0 monstro de tudo aquilo que pertence esfera familiar do homem. No segundo grupo, onde porventura 0 horror serd mais intenso, 0 monstro pode passar por um ser deste mundo, um semelhante, embora nao o seja. Ele é ao mesmo tempo estrangeiro e irmio, por isso mesmo mais insidiosamente assustador. © “quase” é a palavra-chave. E os Niam-Niams, monstros "por excesso”. adotando agora uma sub-divisio da teratologia cientifica do século XIX, trazidos em presenca do rei de Cano, seriam condenados 4 morte por terem rabo. ¢ nao transformados em escravos. como todos os demais semethantes dos haticas. Francis de Castelnau, a0 ouvir o relato de Manuel, face a face com 0 monstro Niam-Niam, dispunha em seu espitito de trés possibilidades de reagéo. Ou bem a observacao referida pelo africano era absolutamente incompativel com 0 conhecimento positivo, mero foiclore, ‘no apresentando os requisitos minimos para ser estudada de uma perspectiva cientifica: ou. hipotese oposta, o fato era inédito, embora perfeitamente conforme com as previsdes da ciéncia, ‘0 que tornaria. entio. impossivel concebé-lo em termos de anomalia ou monstruosidade, hipétese que Castelnau rejeita explicitamente, Resta enfim uma terceira e mais sutil possibilidade. A observacdo era ignorada pela ciéncia, aparentemente era contraria ao corpo de conhecimento existente, embora um novo exame pudesse fazer surgir um elo perdido que preenchesse uma lacuna, esta sim, conhecida e admitida. Nesta direcSo, sem divida. é que parece encaixar-se 0 “documento” de Castelnau. Contudo, um rapido exame de alguns dos elos ndo explicitados de seu pensamento poder melhor esclarecer 0 mistério dessa sintonia com o informante haga, ou a natureza da credulidade do viajante europeu. Nas palavras introdutérias das Informagies, jé citadas. 0 viajante-diplomata oferecia 0s resultados de sua pesquisa como subsidio a *histéria da raca humana", colocando esta iltima, de modo patente, no interior de um processo evolutivo - a titulo de lembrete, Charles Darwin iniciou a redacao de suas notas sobre a viagem do Beagle em 1837, ¢ publicou A Origem das espécies somente em 1859. Embora Castelnau nao tenha estabelecido uma teoria evolucionista propria, existe uma passagem da “Introducao" de sua Expedicao as regides centrais da América do Sul (nao traduzida na versdo brasileira abreviada) que avanga algumas precisdes sobre a concepgao do viajante, Depois de tecer comentarios sobre 2 degenerescéncia do aborigene sul- americano, condenado a desaparecer, assim camo as espécies vegetais diante de um novo broto forte, ativo, 0 homem branco, Francis de Castelnau esboca uma espécie de hist6ria das ragas ® Idem, ibidem. ® Idem. p43. 31 Tomei de empréstimo essss categorias 2 F. Gonzales-Crussi. no capinulo “Teratologia" de seu Carnets d'un anatomiste, trad. de Pierre-Emmanvel Dauzat, Pars, Flammarion, 1986, pgs.147/173.. autor. por sua vez, vai buset-las, ‘em Henn Baudin, Le Monstre dans le science-fiction, Paris. Letres modernes. 1976. Para quem estudou de modo aprofundado esta raca (a vermelha), ela acha-se represeniada por pouco mais que alguns individuos de cada uma das mil nacdes que a compunham outrora; esta variedade da espécie humana que desaparece rapidamente da superficie terrestre talvez tenha sido 0 tronco do tipo humano que teria decaido, em razdo de mil causas exteriores, até o negro, de um lado, e teria avancado até 0 ramo caucésico, por outro, embora haja razdes mais numerosas para se acreditar que a sua supremacia sucedeu dda raga negra e precedeu d da nossa. A mutabilidade da espécie jd € admitida por muitos naturalistas, e se a rejeitarmos, torna-se imposstvel explicar as diferencas especificas que quase todas (0 seres antediluvianos apresentam com relacdo aos que hoje povoam a superficie de nosso planeta. Vé-se, alids, que quanto mais nos aproximamos das idades ‘geoldgicas, mais a animalizacao aparece sob formas distintas das que vemos vivas em torno de nés® ‘Assim, seja qual for a posi¢ao cronolégica do surgimento e preponderdncia da raca vermelha, a posicéo mais precéria ou menos evoluida permanece a do negro. confundido, no comentirio final de Castelnau, com as mais antigas eras geol6gicas™. Permitamo-nos uma digressio. Quando Lineu, no final do século XVIII, teve a ousadia de incluir ohomem na série natural. ainda que encaberando o reino animal (a classificagdo de Lineu, pitoresca, concebe o género homem subdividido nas espécies: homo sapiens, 0 homem; homo troglodytes, 0 chipanzé: homo satyrus, o orangotango; homo lar, 0 gibgo), ele fazia ao ‘mesmo tempo surgir uma questo deveras espinhosa. Uma vez. afastado o dominio do divino, permanece 0 do humano e do animal. Como aparti-los claramente? Se até entio o homem podia considerar-se uma cOpia da imagem divina, embora imperfeita, ele vai abordar o século XIX enfrentando a sua condicéo de parvenu entre os seres™, conquistando penosamente a sua condicdo presente, a sua diferenciago. Curiosa e significativa analogia com a ascencdo do burgués no mundo contemporaneo, cuja posicao nao Ihe foi assinalada por direito divino, porém obtida € mantida por esforco. Os semelhantes do homem deixam de participar de uma natureza divina comum, porque nao mais criados 4 imagem e semelhanca de Deus: tornam-se quase idénticos, isto é, 2 forma mais assustadora do monstro. Mais do que nunca serio recessérios os sinais exteriores demarcadores das precarissimas fronteiras que separam o homem que se algou & condiggo de homem. daquele qua guarda ainda lacos com as origens humildes ¢ infamantes. A humanidade é um produto da evolucéo continua, ndo acabada. indefinidamente perfectivel dos seres, é 0 resullado das transformagSes miiltiplas da animalidade. Mais do que nunca, séo as obras da civilizacdo que se encarregam de abrir 0 fosso que separa 0 homem do quase idéntico a0 ® Cy, Francis de Castelnau, Expédition... op cit. vol. 1, "Introduglo", pgs.7/8. 3 Acrescento, para reforgara citagio, algumas consideragbes emitidas por Castelnau. ao observarin loco, por ocasito de uma escala no Senegal, antes de sua primeira viagem ao Brasil, os primeiros africanos: “Tendo esuudado durante longos ‘anos a raga africana transplantada na América. eu sempre ardentemente desejara conhecé-la em seu proprio pais. livre € independente, Confesso. todavia, que essa experiéncia nfo fez mais do que confirmar as idéias que eu tinha sobre © pequeno desenvolvimento intelectual desta variedade da raga humana. Como ne América, encontrei-a aqui ‘embrutecida pela bebida e as mais absurdas superstigdes; cémica em seus movimentes, lembra-nos a cada passo 0 ‘macaco. 0 falo ¢ que. livre na Africa ov escravo no Novo Mundo, 0 negro é sempre preguigaso. ladrio e mentiroso. A extrema facilidade com que se submete & escravidio prova nele 4 auséncia de um dos mais nobres atnbutos da alma humana. Forgado ao cativeiro, o negro engorda, 20 passo que o indio da América se deixa morrer". in Expedigdo.... 0p. cit. tomo 1. pes. 13/14. passagem incluida na versio abreviada traduzida no Brasil. © gnfo. naruralmente. € meu, pontando para os aspectos mais vistosos dos aprionsmos dessa ciéncia antropologica. Nao deixa de ter a sua graca a pecha de supersticinso lancada pelo viajante aos africanos, em particular ao lembrarmos 4 posterior incorporacdo dessas superstigdes as do naturalist, Encontresa expresséo em Gruseppe Montalenti, LEvolurione. Tunm. Piccola Biblioteca Einaudi - Scienza, 1982, pa 53 homem, e diferenciam este ultimo do animal mais préximo®. O homem civilizado nao existe em si, mas é 0 resultado de um esforgo acumulador de conhecimentos. portanto sujeito a todas as vicissitudes. Existe inegavelmente também uma grande angistia nessa rdo fixidez. nessa perda da distingao, nessa ameaca de derrocada. O homem perdeu a sua condicao de aristocrata da Criacio, ser de excegaio cuja esséncia inaliendvel independia de vicissitudes, viu-se transformado num futador sem repouso. O sucesso presente & obra da poupanea milenar dos antepassados. mas € apenas um processo em curso, ascendente, estagnavel ou declinante, perpetuamente sujeito as leis da concorréncia. Os sinais exteriores de sua condicéo, por vezes objeto de uma obsessio da ‘mensuragdo, permite como ao burgués que ele se localize dentro de sua historia pessoal, e se situe com relagdo aos semelhantes de sua classe. Nao conheco melhor evocagdo dessa anguistia que a de um texto de ficgdo, et pour cause, ligeiramente posterior aos anos em que se situam as nossas referencias, embora ainda fortemente articulado a essas preocupacdes. Refiro-me ao tenebroso A. itha do doutor Moreau de H.G. Wells*. O narrador - depois de assistir as transformages dos animais domésticos ¢ ferozes em homens. pelas mos do vivisseccionista demiurgo Moreau, ¢ & posterior decaida desses quase-homens @ condigdo bestial - ndo consegue mais, ao retornar a Londres, suportar a vista da multidao nas ruas Se, ent@o, eu olho para os meus semelhantes, que esto ao redor de mim. sinto recrudescerem as minkas apreensoes. Vejo semblantes carrancudos ¢ irritados, outros amortecidos e perigosos, outros diibios e mentirosos; nenhum deles possui a calma superioridade de uma alma razodvel. Tenho a impressdo de que o animal vai reaparecer de repente naqueles semblantes, que dentro em pouco a degradagdo dos monstros da itha se vai novamente manifestar em maior escala” Como remate a essa vertigem das linhas divisorias, depois de abatidas as barreiras que isolavam 0 homem do mundo animal. surge a férmula inexoravel de um contemporaneo de Francis de Castelnau. 9 autor do Ensaio sobre a desigualdade das ragas. 0 conde Gobineau, numa apéstrofe ao século das Luzes: "Nao ha homem ideal. o homem nao existe". Queria ele afirmar que “as familias humanas sdo marcadas por diferencas tio radicais. tio essenciais que se poderia recusar nada menos que a sua identidade de origem"™. ° Retire, quase texmalmente. esse comentitin do verbete “homem” do Grande Diciondrio Larousse do Século XTX. ‘op. cit. tomo IX. p.3$5. Cito a passagem: "Is é um fate que no podemos nevar (a existencia de atributos que possam diferenciar com clareza o horsem dy macaco): contentar-nos-emos apenas em notar que existe em geral uma tendéncia excessive 2 comparar an macaco 0 homem tndustriosoe civilizado das racas superiores: mas. quando colocarmos a0 lado do macaco um dos representantes atrasados das nossas racas inferiores, quando compararmos a intligéncie de certos animais. e do macaco em particular. @ desses seres degradados que levam 0 nome de auscalianos, de bosquimanos. ec.: ‘quando lembrarmos que o homem civilizado nao é um produto de nagureza, mas um produtoda educacdo adguinida durante quinbentos séculos de expenncia,talvez: quando. enfim, quisermos comparar a atual existéncia do macaco com a de n0§505 primeiros pais. caf como foi revelada pelos vestigios que deixaram na tera, éntio, dizemos, as diferencas profundas apayarse-ao.e as semelhangas apareceriio com mais clareza ¢ mais realidade.” °° CE H.G. Wells. itha do doutor Moreau (1* edicio 1896). s/ind. do sradator. H. Garmies. Rio de Janeiro, 1910, 5 Tdem, op. ct. pes.208/205 * Cf, Conde de Gobineau. Essai sur Pinégaité des races humaines (1* edivéo 1854), Paris, Firmin-Didot es Cie S* ed.. Sd. 1° tomo, p.189, ® Idem, op. cit.. p-106. Acrescemto, para estahelecer um didlogo com a afirmagio de Gobineau, uma passagem extraida da Expedigao... de Francis de Castelnau, a deserigio de uma festa entre escravos durante a eleigdo de um ret de Congo em Sabra. alguns dias depois do Natal de 1843. Castelnau escolhe o género buviesco para seu relat: as mascaras € 0s disfarces ali esto para melhor indicar a impossibilidade de confusio das esséncias. ou toa 2 distincia que vat da identidade & quase wentidade: “A corte (do rei do Congo), em cujos tajes se musturam sodas as cores e os enfeites mais cextravagantes, senta-se de cada lado do casal de reis; vem depots uma infinidade de outros personagens. 0s mais consideriveis dos quais eram sem divida grandes capities, guerreiros famosos on embarxadores de poténcias longinguas, todos paramentados # mada dos selvagens do Brasil, com grandes topetes de penas. sabres de cavalaria ao lado. © escudo 1a trace. Nessa halhirdia. confundiam-se dancas nacionas. de didlogos entre pessoas. entre estas € 9 rei ou entre» rer ea rainha. combates simuladnc.e roda esnécie de cambalhowas dignas dos macacos mais exercitados. A coisa mais diverida 54 O documento de Francis de Castelnau, Informagdes sobre a Africa Central, reserva 20 leitor outros terrenos possiveis de investigagio. A classificacdo dos escravos baianos segundo as suas origens, por exemplo, ¢ uma das tentativas precursotas do género realizadas entre nds; os roteiros seguidos pelos escravos, em suas perambulagées africanas, as rotas intemas do trafico negreiro, a narrativa e as circunstancias do primeiro aprisionamento, indicardo possivelmente correntes e intercambios econdmicos efetivos do continente. Certas evocagdes da paisagem e fauna africanas, por vezes simples ¢ longas enumeragdes dos informantes, contém uma indisfargdvel carga emotiva, modificando o carter sumério, a impressdo de simples anota¢o que possui a prosa de afogadilho do naturalista-diplomata. Muitas dessas direedes potenciais de andlise tequerem, todavia, competéncias especificas ¢ ficam dadas assim como possibilidade. Em contrapartida, preocupou-me um tinico aspecto desse texto, que indiquei estar relacionado, simulando wm pouco de inocéncia, com a pouca curiosidade pelo africano escravo demonstrada por alguns dos viajantes que estiveram em nosso pais no século passado. Francis de Castelnau nio foi um compilador do folclore africano, tampouco um teérico de racismo cientifico, como o conde Gobineau, nem propriamente um estafermo crédulo (apesar de confessat que na meninice, talvez desde entdo, acrescentariamos. "as narrativas de Cook e Levaillant substituiram entre (suas) mios os contos de fada"). Naturalista, to s6, ele transportou para a pesquisa de campo, juntamente com o instrumental cientifico, as stias concepedes jé formadas, uma certa ordenago bem solidificada dos ‘grupos humanos. Castelnau acreditava estar obtendo dos fatos relatados indugdes indiscutiveis, que poderiam alterar o curso da ciéncia, embora 0s fatos, matreiramente, atestassem € repetissem aquilo que ele ja sabia’. O que poderia ter ele aprendido de novo, por exemplo, no decorrer de sua expedigdo, com as quase 18.000 mensuragdes, entre elas as craniométricas, efetuadas junto aos indios Apinajé da ilha do Bananal? Nao ¢ por ser um mau antropélago, unicamente, ou anatomista amador, que Francis de Castelnau transformou a lenda dos Niam-Niams coletada na Bahia em descoberta cientifica, Manuel e os demais informantes baianos permitiram ilustrar as conclusées previamente preparadas do viajante europeu: nem escuta, nem didlogo. mas confirmacdo, apenas. Inutilmente debrucado sobre a cartografia incerta dos negros baianos, Francis de Castelnau perseguia em regides desconhecidas monstros em tudo semelhantes a monstruosidade de que a sua ciéncia ja estava assombrada. era porém um preto mascarado de branco, e vestido 2om a farda vermelha do soldado inglés: trazia um violfo e era acompanhado por uma orquestra, por assim dizer, nacional. A escutidio acabou por encobrir estes personagens. que nfo poderiam querer mais do que nela se confundis*. op. cit. tomo 1. pgs.170/172 Cf, Expédition... op. ett. voll. “Introgucao”. p.3 “\ A dificuldade, para toda ciéncia, de separar o contexto cultural da verdade objetiva é analisada por Stephen Sey Gould em A falsa medida de homem, trad. de Valter Lelis Siqueira, Sio Paulo, Martins Fontes, 1991, com especial interesse pelo ractsmo cientifico. Tomei emprestado de um dos capitulos do livro, "Dois estudos sobre 0 cardter simiesco dos indeseiaveis". 0 sub-ttulo de meu artigo. 35

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