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O Manifesto das espécies companheiras - caes, pessoas e alteridade significante [fragmento] Donna. Haraway: Naturezasculturas' emergentes De “Notas da Filha de um Cronista Esportivo”: G, &. Cayenne Pepper continua a colonizar todas as minhas células - um caso tipico daquilo que o bidlogo Lynn Margulis denomina simbiogénese. Aposto que se vocé examinasse nosso DNA, encontraria algumas fortes transfecgoes entre nds. Sua saliva deve ter os vetores virais. Certamente, seus beijos de lingua dardejante sao irresistiveis. Apesar de compartilharmos uma colocagao no filo dos vertebrados, habitamos nao apenas géneros diferentes e familias divergentes, como também ordens completamente distintas. Como definiriamos as coisas? Canideo, hominideo; animal de estimagao, professora; cadela, mulher; animal, humano; atleta, treinadora. Uma de nos duas possui um microchip injetado sob a pele do pescoco para identificacao; a outra tem uma fotografia de identificacgdo em carteira de motorista da California. Uma de nés possui registro escrito com seus ancestrais em vinte geracoes; uma de nés nao sabe os nomes das/os avés. Uma de nds, produto de uma imensa mistura genética, é chamada “de raga pura”. Uma de nés, igualmente produto de uma vasta mistura, € chamada de “branca”. Cada uma dessas denominagées designa um discurso racial; e ambas herdamos suas consequéncias em nossa carne. Uma de nés esta em pleno apogeu fisico, vicoso e juvenil; estd no fim da linha. E fazemos um a outra é ardente, mas j "N. da Tz No original “Naturecultures”, neologismo criado por Haraway para sugerir a indissociabilidade entre natureza e cultura. 722 | el reno | fey Covalent | Cli de Lina Cost | An Ces Ao ne esporte de equipe chamado agilidade na mesma terra expropriada dos Nativos, onde os ancestrais de Cayenne pastorearam ovelhas merino. Esses ovinos foram importados da Australia,ouma. economia pastoral ja colonial, para alimentarem os participes da Corrida do Ouro de 49 na California. Em camadas dé historia, camadas de biologia, camadas de naturezasculturas, complexidade &0 nome do nosso jogo. Somos ambas descendentes da conquista, famintas por liberdade; produtos das colénias de imigrantes brancos, saltando sobre obstaculos e arrastando-nos pelos tineis de um campo de esporte. Tenho certeza de que nossos genomas sao mais parecidos do que deveriam. Deve haver algum_ registro molecular do nosso contato nos codigos de vida que deixara tragos no mundo, independentemente do fato de sermos fémeas silenciadas em se tratando de reproducao; uma pela idade, outra por intervencao cirtirgica. Sua lingua agil e flexivel de cio pastor australiano red merle untou os tecidos de minhas amidalas com todos os seus avidos receptores do sistema imunoldgico. Quem sabe para onde Os meus receptores quimicos transportaram suas mensagens, ou 0 que ela retirou do meu sistema celular para distinguir o self do outro e para unir o exterior ao interior? Tivemos conversas sigilosas; tivemos interagdes orais; apegamo-nos ao contarmos histéria apds historia partindo de nada além dos fatos. Estamos em treinamento muituo em atos de comunicacao que entendemos precariamente. Somos, constitutivamente, espécies companheiras. Inventamo-nos uma a outra, na carne. Significantemente outras para nds mesmas, em diferenga especifica, damos sentido com a nossa prépria carne a uma terrivel infecgéo em desenvolvimento chamada amor. Este amor é uma aberracao histérica e um legado naturalcultural. Este manifesto explora duas questdes que fluem desta aberragao e deste legado: 1) como se pode aprender uma ética e uma politica comprometidas com a alteridade significante ao se considerar seriamente as relagdes canino- humanas; e 2) de que forma as histérias sobre os mundos caninos-humanos poderiam, finalmente, convencer norte- TRADUGOES DA CUTURA - Perspectvas eres femistas (1970-2010) | 723 americanas/os estadunidenses com lesdes__ cerebrais, e, talvez, outras pessoas historicamente com menos dificuldades, que a histéria importa’ nas naturezaScultyitas? O Manifesto das espécies companheiras&, porsprincipio, um documento pessoal, uma_ incurSao,.a¢adémica” em muitos territérios conhecidos pela metade; um, ato. politic ‘0 de esperanca num mundo a beira de guerfasglobal’e um trabalho permanentemente em curso. Ofereg6 provocagdes roidas por caes* e argumentos meio-treinados para reformular algumas historias com as quais eu muito me importo, como académica e como pessoa do meu tempo e lugar. A historia, aqui, ¢, principalmente, sobre caes. Envolvida de forma passional com essas narrativas, espero trazer minhas leitoras e leitores para o canil por toda a vida. Mas espero, também, que, mesmo as pessoas cindfobas — ou aquelas cujas mentes estao tomadas por assuntos mais elevados -, possam encontrar argumentos e historias que importem nos mundos em que ainda habitamos. As praticas e agentes dos mundos caninos, humanos e nao humanos igualmente devem ser preocupagoes centrais para os estudos da tecnociéncia. De forma ainda mais proxima ao meu coragao, quero que minhas leitoras e leitores percebam por que considero a escrita sobre caes um ramo da teoria feminista, ou o contrario. Este nao é 0 meu primeiro manifesto; em 1985, publiquei “O manifesto ciborgue”* para tentar dar um =N. da T.: O uso da expressio “history matters” também evoca um forte sentido de materialidade, uma vez que “matter” significa “matéria” (além do verbo “importar”, ou “ter importancia”), o que se perde na tradugio para a lingua portuguesa 2 N. da T: “Dogreaten props”, do texto original, refere-se aos objetos usados como estimulo no treinamento de cies. O texto de Haraway explora o potencial metaforico de termo, pois “props” significa também elementos de escora ou sustentagao; aderegos ou acessdrios teatrais relevantes para uma composigio cénica; e as pegas de um jogo. © N. da T: Haraway faz referencia ao ensaio ja classic para 0 feminismo "Manifesto for cyborgs: science, technology, and socialist feminism in the 1980's", originalmente publicado em 1985 em Socialist Review, n. 80, incorporado em duas coletaneas da propria Haraway: Simians, Cyborgs, and Wonten ~ The Reinvention of Nature (1991, com al acréscimos e uma leve mudanga no titulo: “A cyborg manifesto: science, technology, and socialist-feminism in the late twentieth century”) e The Haraway Reader (2004, retoman nesta tiltima, 0 formato da publicagao inicial) ¢ republicado em muitas outras antologios 724 | Wabel Branddo | Wdney Cavaleanui | Claudia de Uma Coste | Ans Cesta Acoli Lima sentido feminista as implosoes da vida contemporanea na tecnociéncia. Ciborgues sao “organismos cibernéticos” nomeados em 1960 no contexto da corrida espacial, da guerra fria e das fantasias imperialistas’ de“ um tecnohumanismo, incorporados em projetos politicos"€ de pesquisa. Tentei habitar os ciborgues criticamente, quero dizer, nem em celebragdo e nem em condenagao, mas num espirito de apropriacao irénica voltado para fins nunca vislumbrados pelos guerreiros espaciais. Narrando uma histéria de coabitagao, coevolucao e sociabilidade corporificada interespécies, o presente manifesto interroga qual das duas figuras consideradas juntas — ciborgues e espécies companheiras — podera informar, de modo mais frutifero, politicas e ontologias vidveis nos mundos atuais onde ha vida. E: as figuras raramente constituem polos opostos. Cada uma delas, ciborgues e espécies companheiras, une, sob formas inesperadas, 0 humano e 0 nao humano, 0 organico e o tecnolégico, carbono e silicone, liberdade e estrutura, historia e mito, os ricos e os pobres, 0 estado e o sujeito, diversidade e deplecgado, modernidade e pos-modernidade, e natureza e cultura. Além disso, nem um ciborgue e nem um animal companheiro agrada as/ aos puras/os de coragao, que anseiam por fronteiras mais bem protegidas entre as espécies e pela esterilizagao dos seres desviantes em relacdo as categorias. Nao obstante, importam as diferengas entre o ciborgue mais politicamente correto € 0 cao ou cadela comum. Apropriei-me dos ciborgues para executarem trabalho feminista nos tempos de Guerras nas Estrelas, de Reagan, feministas. Trata-se, sem duivida, de um dos ensaios feministas de maior impacto ¢ circulagao no século XX, que recebeu duas tradugdes para o portugués: por Francisco Caetano Lopes Jr, “Um manifesto para os cyborgs: ciéncia, tecnologia e feminismo socialista na década de 80", na coletinea organizada por Heloisa Buarque de Holanda, Tendéncias ¢ Impasses © feminismo como critica da cultura (1994); e por Tomaz Tadeu, “Manifesto ciborgue: ciéncia, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”, em edigao organizada pelo proprio Tadeu, Antropologia do Ciborgue ~ as vertigens do pos-humano (2009). Conforme fica claro pelos titulos, estas tradugdes baseiam-se nas diferentes versoes, TRADUGOES DA CULTURA - Perspectives criticas feministas (1970-2010) | 725 em meados dos anos 1980. No final do milénio, os ciborgues nao eram mais capazes de realizar o trabalho, proprio de um cao pastor, de conectar os fios para a invéstigagao critica. Entéo, vou muito alegremente aos gachorros’ para, explorar 0 nascimento do canil com o:6bjetiv6.de ajudar a construir ferramentas para os estudos’.das ciénciase para a teoria feminista em nosso tempo, quando»Bushes secundarios ameagam substituir o antigo.crescimento de naturezasculturas mais vivificantes na polititadrgamentaria do carbono em se tratando de uma vida completamente dependente de agua na Terra. Tendo exibido, em letras escarlates,’ “Ciborgues pela sobrevivéncia no planeta!’ durante tempo suficiente, rotulo-me agora com um slogati que s6 as mulheres familiarizadas com o treino Schutghund, dentre os demais esportes caninos, poderiam ter inventado, quando até mesmo uma primeira mordedura pode resultar numa sentenga de morte: “Corra velozmente; morda com forga!”. Esta é uma historia de biopoder e biossocialidade, bem como de tecnociéncia. Como qualquer boa darwinista, narro uma historia de evolucao. Ao modo do milenialismo acido (nucleico), conto uma historia de diferencas moleculares, mas uma menos enraizada na Eva Mitocondrial de uma Out of Africa (A fazenda africana’) neocolonial e mais arraigada que, ao utilizar a expresso “go to the dogs” (que significa “arruinar * N. da T.: Note. se”; “ir 4 ruina”) no original, Haraway explora as metaforas da lingua inglesa, jogando com seus limites e suas possibilidades, e, as vezes, como é 0 caso, aqui, virando-as pelo avesso. © N. da T: Haraway faz referéncia & obra canénica na literatura norte-americana Thc Scarlet Letter (A letra escarlate), publicada em 1850, de Nathaniel Hawthorne, em cujo enredo a protagonista 6 imposto o uso de um A bordado em escarlate por cima de seus trajes, assinalando o seu adultério e marcando-a como desviante, numa pratica de condenagio pelo ato que era considerado crime. Por extensio, a expressao vem sendo usada como metafora para a demonstragao piiblica de alguma falha individual. Novos significados sao aqui ironicamente ativados pela autora, por meio de uma ressignificagio positiva da expressdo a partir de sua perspectiva feminista. 7 N, da T.: E feita, aqui, uma sugestiva referéncia & obra Out of Africa, da escritora dinamarquesa Karen von Blixen-Finecke (sob pseudonimo de Isak Dinesen), publicada originalmente em inglés em 1937, que apresenta um relato autobiogrifico, de cunho fortemente etnografico, centrado em parte de sua vida em que testemunhou a realidade do colonialismo britanico nas fazendas de café da Africa Oriental. Foi traduzida para © 726 | teabel Brandi | tdney Cavalcanti | Claudia de ima Costa | Ana Cecilia Aco Lima naquelas primeiras cadelas mitocondriais que cruzaram ocaminho do homem, construindo a si mesmo mais uma vez, na Maior Historia J4 Contada. Em vez disso, aquélas cadelas insistiam na historia de espécies companheiras, um tipo de conto bastante mundano e em curso, repleto'de mal entendidos, resultados, crimes e esperancas renovadas, A minha é uma historia contada por uma estudante das ciéncias e uma feminista de uma certa geracao que foi aos cachorros,* literalmente. Em sua complexidade historica, caes importam aqui. Caes nao sao um Alibi para outros temas; cies sao presencas semidticas e materiais, em carne € 08s0, no corpo da tecnociéncia. Caes nao sao substitutos para a teoria; nao estao aqui apenas para termos no que pensar. Estaéo aqui para termos com quem viver. Parceiros no crime da evolucgdo humana, estdo no jardim desde o inicio, astutos como 0 Coiote.’ Preensdes Muitas verses das filosofias processuais ajudam-me @ passear com os meus caes neste manifesto. Por exemplo, Alfred North Whitehead descreveu “o concreto” como uma “concrescéncia de preensGes”. Para ele, “o concreto” significava uma “ocasiao atual”. A realidade 6 um verbo ativo, e todos os substantivos parecem ser gerundios com mais apéndices do que um polvo. Por meio de seu alcance em relagéo ao outro, por meio de suas “preensdes” ou agarramentos, os seres constituem-se entre si. Seres nao pré- existem as suas relacées. “Preensdes” tém consequéncias. O mundo é um né em movimento. Os determinismos Portugués por Claudio Marcondes, sob o titulo A fitzenda africana, e publicada pela Cosac Naif. A narrativa ganhou fama mundial apés sua adaptagao para o cinema, em 1985, por Sidney Pollack, com o filme homénimo, Entre dois amores em portugués. N. da'T.: Cf. a nota 4. N. da Ts A tradugao para o portugués da expressio “wily as Coyote” enfraquece a alusao a Wile E. Coyote, personagem de desenho animado da Looney Tunes, criado em 1949 por Chuck Jones, que cai no gosto simpatia do publico por sua criatividade persisténcia, Além disso, o coiote & um animal recorrente neste manifesto também por sua associacdo ao imagindrio dos povos nativos norte-americanos. TRADUGOES DA CUTURA -Perspectias tia fennisas (1970-2010) | 727 biolégico e cultural sio ambos instancias de concretudes mal colocadas - i.e. 0 equivoco de, primeiramente, tomar por mundiais abstrag6es categoriais provisdrias e locais, tais como “natureza” e “cultura”; e, em segundo. lugar, 0 equivoco de se tomar consequéncias potentes por fundagdes pré-existentes. Nao ha sujeitos ec objetos pré-constituidos, e nenhuma fonte unica, agente tinico ou fim ultimo. Nos termos de Judith Butler, ha apenas “fundagées contingentes”; corpos que importam" sao o resultado. Um bestidrio de agéncias, tipos de relagdes e contagens temporais superam as imaginagGes até mesmo dos cosmologistas mais barrocos. Para mim, isto 6 o que significa espécie companheira. Meu amor por Whitehead esta enraizado na biologia, porém, mais ainda na pratica da teoria feminista conforme a tenho experimentado. Em sua recusa ao pensamento tipolégico, aos dualismos binarios e a ambos os relativismos e universalismos de varios sabores, tal teoria feminista contribui com um rico leque de abordagens a emergéncia, processo, historicidade, diferenca, especificidade, coabitagao, coconstituigao e contingéncia. Duzias de escritoras/es feministas tém rejeitado tanto o relativismo quanto o universalismo. Sujeitos, objetos, tipos, ragas, espécies e géneros'' séo produtos de suas relagdes. Nada, neste trabalho, diz respeito 4 busca de mundos doces e belos — “femininos” — e de saberes livres das devastagdes e produtividades do poder. Em vez disso, a investigacao feminista @ sobre a compreensao de como as coisas 4 em acao, 0 que pode ser possivel e operam, quem es 1 “Bodies that matter”, expresso utilizada no original, faz uma alusio ao ensaio de Judith Butler, Bodies that Matter ~ on the discursive limits of “sex” (1993), obra em que a fildsofa problematiza a ligagao entre a materialidade do corpo e a performatividade de género, Chamamos a atengao para a ambiguidade do titulo meticulosamente escolhido, uma vez que a palavra “matter” significa matéria (no sentido fisico) e também assunto, além de ser o verbo “importar”, “ter importancia” 2.N, da T:: No original, so empregados os termos “genres and genders”, que indicam separadamente, as categorias das classificagoes biolégicas e as construgbes culturais de diferengas identitarias, respectivamente. 728 | robe Grandin | ney Cavleari | Couci de Lina Coste | Ana Ca Aik Lina como agentes mundanos poderiam, de alguma forma, ser responsabilizados e amar uns aos outros de forma menos violenta. Por exemplo, ao estudar salas de aula do’ ensino fundamental com aprendizes falantes de iorubé e de inglés na Nigéria po: independéncia e participarde projetos de povos aborigenes australianos relacionados ao ensino de matematica e as politicas ambientalistas, Helen Verran identifica “ontologias emergentes”. Verran levanta questdes “simples”: Como podem os povos enraizados em diferentes praticas de conhecimento “conviver bem juntos”, especialmente quando um relativismo cultural muito facil nao 6 uma op¢ao politica, epistemolégica e nem moral? Como pode um conhecimento geral ser alimentado em mundos pés-coloniais engajados em considerar seriamente a diferenga? Respostas a tais perguntas sé podem ser colocadas em praticas emergentes; i.e. no trabalho vulneravel e de base que retina agéncias nao harmoniosas e formas de viver que sejam responsaveis tanto pelas suas diferentes histérias herdadas quanto pelos seus futuros em convivéncia, pos iveis de forma muito ténue, mas absolutamente necessarios. Para mim, este é 0 sentido de alteridade significante. Estudando praticas de Quénia, Charis (Cussins) Thompson sugeriu o termo “coreografias ontologicas”. A composigao do script da danca do ser é mais do que uma metafora; corpos, humanos e nao humanos, sio separados e reunidos em processos que fazem da autoafirmacao e da ideologia humanista ou organicista mas diretrizes para a ética e a politica, e piores ainda para a experiéncia pessoal. Finalmente, Marilyn Strathern, com base em décadas de estudos sobre as histérias e politicas de Papua Nova Guiné, bem como em sua investigacdo dos habitos de reconhecimento de parentesco dos ingleses, nos ensinou por que é tolice conceber a “natureza” e a “cultura” tanto como polos opostos quanto como categorias universais. TRADUQOFS DA CULTURA -Perspctivs cas feinstas (1870-2010) | 729 Uma etnégrafa das categorias relacionais, ela demonstrou como pensar por meio de outras topologias. EmeVez»de opostos, temos a disposicgao 0 bloco de desenho completo da mente efervescente da/o geémetra moderna/o para desenharmos a relacionalidade. Strathern:pensa em.termos de “conexées parciais”; i.e. padrdes dentro dos:quais as/os jogadoras/es nao sao nem todos e nem partes.‘ Denomino tais padrées como relagées de alteridade significante. Penso em Strathern como uma etnografa de naturezasculturas; ela nao se importara se eu convida-la a adentrar o canil para uma conversa interespécies. Para tedricas/os feministas, quem e 0 que esta no mundo é€ precisamente 0 que esta em jogo. Esta é uma isca filoséfica bastante promissora para treinar todas/os nos para entendermos as espécies companheiras tanto em seu tempo profundamente historiado, que esta quimicamente gravado no DNA de cada célula, quanto em seus feitos recentes, que deixam tracos mais odoriferos. Em termos fora de moda, o Manifesto para as espécies companheiras é um chamamento ao parentesco, tornado possivel pela concrescéncia de preensoes de muitas ocasides atuais. Espécies companheiras apoiam-se em fundagoes contingentes. E, assim como as produgées de uma/um jardineira/o decadente que nao pode distinguir claramente naturezas e culturas, 0 formato das minhas malhas de parentesco assemelha-se mais a uma treliga, ou a uma espaldeira, do que a uma 4rvore. Vocé nao pode distinguir a parte de cima da de baixo e tudo parece ir para os lados. Este trafico serpenteante, em curvas laterais, 6 um dos meus temas. Meu jardim é cheio de cobras, cheio de treligas, cheio de indiregées. Instruida por bidlogos evolucionistas populacionais e bioantropdlogos, sei que aquele fluxo genético multidirecional — fluxos multidirecionais de corpos e valores — é e sempre foi 0 nome do jogo da vida na Terra. E, certamente, 0 caminho para 0 canil. O que mais pode ilustrar humanos e cdes é que estes companheiros 730 | tel Brann | ney Cavan | Cau de Lima Costa | Ava Cena Aci Lina de viagem, possuidores de grandes corpos, distribuidos globalmente, ecologicamente oportunistas, gregariamente sociais, mamiferos, tem escrito em seus genomas um registro de cruzamentos e trocas infecciosas que travariam os dentes mesmo do comerciante autonomo mais sério. Até nas Ilhas Galapagos dos sonhos do moderno cao de-ra¢a pura - onde 0 esforco para isolar e fragmentar populagdes em acasalamento e esgotar suas herancas de diversidade pode parecer com experimentos-modelo para simular os desastres naturais de estrangulamento populacional e doenga epidémica -, a exuberancia inquieta do fluxo dos genes nao pode ser silenciada. Impressionada por este trafico, arrisco alienar meu velho duplo, o ciborgue, para tentar convencer as leitoras e leitores de que os caes podem ser os melhores guias pelos matagais da tecnobiopolitica no Terceiro Milénio da Corrente Era. Companheiras No “Manifesto ciborgue”, tentei escrever um acordo de procuragao, um tropo, uma figura para se vivenciar por dentro e honrar as habilidades e praticas da tecnocultura contemporanea, sem perder contato com o permanente aparato de guerra de um mundo p6s-nuclear, nao opcional, © suas mentiras transcendentes e bastante materiais. Ciborgues podem ser figuras para serem vividas em contradigGes, atentas as naturezasculturas das praticas mundanas, opostas aos mitos sinistros de autonascimentos, abracando a mortalidade como a condigao da vida, e alertas aos hibridismos histéricos emergentes, que, efetivamente, populam o mundo, em todas as suas escalas contingentes. Contudo, as reconfiguragées do ciborgue nem chegam perto de exaurir 0 trabalho tropoldgico necessdrio para a coreografia ontoldégica na tecnociéncia. Vim perceber os ciborgues como irmaos mais novos na familia muito mais TRADUQOES DA CULTURA Perspect ets feria 19702010) | 734 abrangente e queer das espécies companheiras, nas quais as biotecnopoliticas sao geralmente uma surpresa, as vezes até uma agradavel surpresa. Sei que uma mulher.btanca; estadunidense, de meia-idade, com um cao, jogando“unny esporte de habilidade, nao oferece pareo para os gtierreiros automatizados, terroristas e seus pares transgénicos nos anais da investigagao filosofica ou da etnografia das naturezasculturas. Além disso, 1) autofiguragaéo nao é a minha tarefa; 2) transgénicos nao sao o inimigo; e 3) de forma contraria a muitas projegdes perigosas e antiéticas no mundo ocidental que fazem dos canideos domésticos criancas peludas, ces nao sao sobre nds mesmas/os. Na verdade, esta é a beleza dos caes. Eles nao sao uma projecao, nem a realizacao de uma intengao, nem 0 felos de nada. Eles sao cies; i.e, uma espécie em relacionamento obrigatorio, constitutivo, histérico, imprevisivel com os seres humanos O relacionamento nao é especialmente agradavel; ¢ cheio de residuos, crueldade, indiferenga, ignorancia e perda, bem como de alegria, invengao, trabalho, inteligéncia e jogo. Quero aprender como narrar esta co-histdria e como herdar as consequéncias da coevolugao na naturezacultura Nao pode haver apenas uma espécie companheira; deve haver pelo menos duas para compor uma. Esta na sintaxe. Esta na carne. C sao sobre a inescapavel e contraditoria historia de relacionamentos—relacionamentos coconstitutivos, nenhum/a dos/as parceiros/as_ pré-existe a relagao; e a relagao nunca se faz de uma vez por todas. A especificidade histérica e a mutabilidade contingente ditam a regra 0 tempo todo, na natureza e na cultura, nas naturezasculturas. Nao ha fundacado, ha apenas elefantes sustentando elefantes em diregdo descendente e infinitamente.”” 2 N, da T: Optamos por manter o termo queer, considerando que tem sido utiliza 4 no contexto das discussdes feministas e de género. Para um a em lingua portug esclarecimento sobre seus sentidos, ver 0 ensaio de Annamarie Jagose, nesta coletan © N. da T. Ao utilizar a oragao “[t}here are only elephants supporting elephant 732 | abel Brands | Winey Caveleat | Claudia de La Coste | Ana Cee Ask La Animais de companhia compreendem apenas um tipo das espécies companheiras, e nenhuma destas categorias &, muito antiga em inglés norte-americano. Na variante‘do inglés estadunidense, 0 termo “animal de companhia” surge no trabalho médico e psicossociolégico eméscolas veterinarias e sitios relacionados a partir de meados:da década de 1970. Tal pesquisa nos informou que, excetuando aquelas/es poucas/os nova-iorquinas/os nao amantes de caes que ficam obcecados pelo cocé de cachorro nao recolhido nas ruas, ter um cao baixa a Pressdo sanguinea das pessoas eaumenta suas chances de sobreviver a infancia, cirurgias e divorcio. Certamente, referéncias, em linguas europeias, a animais que servem como companhia, em vez de serem caes para o trabalho ou para © esporte, antecedem em séculos esta literatura biomédica e tecnocientifica dos Estados Unidos. Além disso, na China, México, bem como em outros lugares, no mundo antigo e contemporaneo, sao fortes as evidéncias documentais, arqueoldgicas e orais de cées na funcdo de animais de estimacdo, a qual se somam outras tarefas. Nas Américas dos primordios, caes ajudavam varios PoOvos no transporte, na caga € no pastoreio. Especialistas em ces costumam esquecer que eles também foram armas letais controladas e instrumentos de terror na conquista europeia das Américas, bem como nas viagens imperiais e definidoras de paradigmas de Alexandre, 0 Grande. Com histéria de combate no Vietna, como oficial dos marines nos Estados Unidos, John Cargill, um criador da raga Akita e escritor sobre caes, lembra-nos que, antes do combate ciborgue, caes treinados estavam entre os the way down", Haraway reutiliza e adapta um mito origindrio da China, da India e de algumas regiGes amerindias, uma das metiforas mais recorrentes em seus escritos: “it’s turtles all the way down”. Trata-se de imagens de animais cosmogénicos e, no aso da tartaruga, bastante presentes no imaginario anglo-americano (especialmente no cientifico, mas também no popular), que vim sendo recicladas sob formas levemente modificadas e sugerem © paradoxo da infinita regressdo e a auséncia de uma situagio primordial TRADUGOES DA CULTURA -Perspectiasericsfeninstas (1970-2010) | 733 melhores sistemas de armas inteligentes. E caes farejadores aterrorizavam escravos e prisioneiros, como também resgatavam criangas perdidas e vitimas de terremotos. Listar tais fungdes mal comegaa tragar um aprendizado, sobre a historia heterogénea dos caes, coma simbolo'e- como narrativa ao redor do mundo. A lista de tarefas. também nao nos diz como os caes eram tratados ou'dé.que forma eles consideravam seus associados humanos. Em A History of Dogs in the Early Americas (Uma historia dos cdes no inicio das Américas) (YALE, 1977), Marion Schwartz escreve que alguns cdes de caca amerindios participavam de rituais de preparacao semelhantes aqueles pelos quais passavam seus humanos, incluindo, entre os Achuar da América do Sul, a ingestao de um alucindgeno. Em In the Company of Animals (Na companhia de animais) (Cambridge, 1986), James Serpell relata que, para os Comanches das Grandes Planicies no século XIX, os cavalos tinham grande valor pratico. Mas eles eram tratados de forma utilitaria; enquanto os caes, mantidos como animais de estimagao, eram merecedores de histérias afetuosas e os guerreiros entravam em luto com suas mortes. Alguns caes foram e sao bichos; outros foram e sao sepultados como pessoas. Caes pastores, na cultura Navaho contemporanea, relacionam-se com sua paisagem, seus rebanhos, suas pessoas, coiotes e caes ou pessoas estranhas em formas historicamente especificas. Nas cidades, nas vilas e nas zonas rurais em todo 0 mundo, muitos cies levam vidas paralelas entre pessoas, sendo mais ou menos tolerados, as vezes usados e as vezes abusados. Nao ha termo unico que possa fazer jus a esta historia Contudo, 0 termo “animal de companhia” entra na tecnocultura dos Estados Unidos por meio de instituigoes académicas em terrenos cedidos pos-Guerra Civil, as quais abrigam as escolas veterindrias. Em outras palavras, 0 “animal de companhia” tem o pedigree do cruzamento entre a expertise tecnocientifica e os costumes de se possuir animal de estimacao caracteristicos das praticas da fase industrial 734 | i Brand | einey Carlen | Cauda de ia Costa | Ana Cet Aik Lima tardia, com suas mas: as democraticas apaixonadas por seus parceiros domésticos, ao menos pelos nao humanos. Animais de companhia podem ser cavalos, caes, gatos;ou uma variedade de outros seres desejosos em dar o salto.em direcao biossocialidade dos caes de servigo, membros da familia ou membros de times nos esportes interespécies. Falando de modo geral, as pessoas nao comem seus animais de companhia (nem sao comidas por eles); e tém sérias_ dificuldades para abalar atitudes colonialistas, etnocéntricas e a-histéricas naquelas que o fazem (comem ou sao comidas). Espécies “Espécie companheira” é uma categoria mais ampla e heterogénea do que animal de companhia, e nao apenas porque deva incluir seres organicos tais como arroz, abelhas, tulipas e flora intestinal, todos que possibilitam a vida para os humanos tal como ela 6 — e vice-versa. Desejo escrever 0 verbete para “espécie companheira” e insistir em quatro tons simultaneamente soando na caixa de ressonancia'* linguistica e histérica que nos permite produzir tal termo. Em primeiro lugar, como filha complacente de Darwin,'* insisto nos tons da histéria e da biologia evolutiva, com suas categorias de populagées, indices de fluxo genético, variagdo, selecao e espécies bioldgicas. Os debates dos ultimos 150 anos sobre se a categoria “espécie” denota uma entidade bioldgica real ou se meramente faz ressoar, numa caixa de som taxonémica conveniente, os niveis de tons superiores e inferiores. Espécie é sobre tipo bioldgico N. da T: A autora utiliza “voice box", cujos significados incluem tanto 0 aparelho fonador, i.e, a laringe como principal rgao do aparelho responsavel pela produgio da vor nos mamiferos, quanto varios outros sentidos surgidos por extensio, como, por exemplo, equipamentos eletrOnicos para registro e reprodugao de voz e para produgio de efeitos especiais em gravagdes sonoras. E bastante sugestivo o emprego desta metéfora, que evoca a interface entre o animal e a maquina N. da T: O original faz alusao ao titulo da obra memorial de Simone de Beauvoir, Mémoires dune Jeune Fille Rangé (1958), traduzido para o inglés como Memoirs of a Dutiful Daughter; em portugues, Memérias de soma moca bem-comportada, TRADUCOES DA CULTURA - Perspectivas critiess feministas (1970-2010) | 739, a e expertise cientifica 6 necessaria para este tipo de realidade: Em tempos pés-ciborgue, 0 que conta como tipo biglégico problematiza categorias anteriores do orgariismo: O mecdnico e o textual sao internos ao organicd, evice-versa, de modos irreversiveis. . vo Em segundo lugar, tendo estudado Tomas'de Aquino e outros aristotélicos, permanego atenta a@.espécié como tipo e categoria filos6fica. Espécie € sobre a definicgao de diferenca, enraizada nas fugas polivocais das doutrinas de causa. Terceiro, em minha alma indelevelmente marcada por uma formagao catélica, ougo, em espécie, a doutrina da Real Presenca sob ambas as espécies, 0 pao e 0 vinho, os sinais transubstanciados da carne. Espécie é sobre a fusao corporea do material e do semistico de maneiras inaceitaveis as sensibilidades protestantes seculares da academia norte- americana e a maioria das versGes da ciéncia humana da semiotica. Quarto, convertida por Marx e Freud, e avida por etimologias dubias, ougo, em espécie, sordida ganancia, moeda,'® ouro, fezes, sujeira, riqueza. Em Love's Body (Corpo do amor), Norman O. Brown ensinou-me sobre a uniao de Marx e Freud em merda e ouro, nos excrementos primitivos e no metal civilizado em espécie. Deparei-me com esta fuséo novamente na moderna cultura canina estadunidense, com sua exuberante cultura de consumo; suas praticas vibrantes de amor e desejo; suas estruturas que unem 0 estado, a sociedade civil e 0 individuo liberal; suas tecnologias hibridas” para construir sujeitos e objetos de raga pura. Enquanto enluvo a minha mao com filme plastico — cortesia dos impérios de pesquisa da industria quimica — que protege 0 meu New York Times matinal "ON. da T: A autora emprega “specie”, que também significa “especies”, no sentido de “dinheiro corrente” YN, da T: O termo aqui utilizado é “mongrel”, que faz referencia aos cies sem raga determinada (SRD), de raga mestiga, ou vira-latas. 736 | tebe Bron | ney Cavaleart | Cauda de Uma Costa | Ana Ceca Roo Lina para recolher os ecossistemas microscépicos, chamados fezes, produzidos a cada dia pelos meus caes, considero as coletores de fezes caninas uma verdadeira piada, que me transporta de volta as histérias de encarnacao, economia politica, tecnociéncia e biologia. Em suma, “espécies companheiras” é sobre’ uma composigéo de quatro partes, na qual coconstitui¢gao, impureza, historicidade e complexidade sao 0 que existe. O Manifesto das espécies companheiras 6, entao, sobre a implosao da natureza e da cultura nas vidas entrelagadas, incessante e historicamente especificas, de cies e de pessoas, que sao ligadas em alteridade significante. Muitas/ 0s sao interpeladas/os nessa histéria, e o conto é instrutivo, também, para aquelas/es que tentam manter uma distancia higiénica. Quero convencer minhas leitoras e leitores de que, habitantes da tecnocultura, tornamo-nos quem somos nos tecidos simbiogenéticos de naturezasculturas, na historia e no fato. Utilizo “interpelagao” a partir da teorizagao do fildsofo pés-estruturalista e marxista Louis Althusser sobre como sujeitos sao constituidos, de individuos concretos a “eleitos” pela ideologia a ocuparem suas posigGes no estado moderno. Hoje, pelas nossas narrativas ideologicamente carregadas sobre suas vidas, os animais “elegem-nos” para relatar os regimes nos quais eles e nds devemos viver. “Elegemo-los” em nossos constructos de natureza e cultura, com consequéncias importantes de vida e morte, satide e doenga, longevidade e extingao. Também compartilhamos nossas vivéncias na carne de formas nao exauridas pelas nossas ideologias. Histérias sao bem mais abrangentes do que ideologias. Nisto repousa nossa esperanga. Nesta longa introdugao filoséfica, estou violando uma regra principal das “Notas da filha de um cronista esportivo”, minhas garatujas caninas em homenagem ao meu pai, jornalista esportivo, que apimentam este manifesto. As notas exigem que nao haja desvio das histérias animais TRADUGOES DA CULTURA - Perspect rts femintas (1970-2010) | 737 em si. As ligdes tém que ser inextricavelmente parte da hist6ria; trata-se de uma regra de verdade para aquelas/es dentre nds — catélicas/os praticantes, e prescritas/os.eSuas/* seus companheiras/os de viagem — que creem que 0 signo e a carne sejam unos. e Ao relatar 0s fatos, contando uma histériaverdadeita, componho as “Notas da filha de um cronistasesportivo”. A tarefa de um jornalista esportivo é, ou pélo menos era, narrar a histéria do jogo. Sei disso porque, quando crianga, sentava-me no camarote de imprensa do clube de baseball da liga AAA, no estadio do Denver Bears, tarde da noite, observando 0 meu pai escrever e arquivar suas historias de jogo. Talvez mais do que demais repérteres, a/o cronista de esporte tem uma tarefa curiosa ~ relatar 0 que aconteceu ao tecer uma histéria que contenha apenas os fatos. Quanto mais vivida a prosa, melhor; na verdade, se elaborada fielmente, quanto mais potentes os tropos, mais verdadeira é a historia. Meu pai nao quis ter uma coluna de esportes, uma atividade de maior prestigio no ramo dos jornais. Ele quis escrever as historias dos jogos, permanecer proximo a acao, contd-la como ¢, nao procurar pelos escandalos e pelos angulos para a meta-historia, a coluna. A fé do meu pai permaneceu no jogo, onde coabitam fato e historia Cresci no seio de duas grandes instituigdes que se opoem a crenga modernista no divorcio sem a consideracao da culpa, com base nas diferengas irrevogaveis entre historia e fato. Ambas as instituigdes — a Igreja e a Imprensa — sao, como ja se sabe, corrompidas, também como ja se sabe, desdenhadas (se bem que constantemente usadas) pela Ciéncia; todavia, indispensaveis no cultivo da fome insacidvel de um povo pela verdade. Signo e carne; historia e fato. Em minha casa natal, os cénjuges genitores nao poderiam separar-se. Permaneciam, em linguajar canino baixo e sujo, encoleirados. Nao é de se admirar que a natureza e a cultura tenham implodido para mim quando adulta. E em lugar nenhum aquela implosaéo tem mais forca 738 | Wzabel Brandéo | Wey Cavalcanti | Claudia de Lima Costa | Ane Ceca Ano La do que na vivéncia da relagao e na articulacdo do verbo que passa por um nome: espécies companheiras. E isso 0 que Joao quis dizer ao pronunciar, “O Verbo se fez carne”? Ao final da nona entrada, os Bears perdendo em duas jogadas, com trés a frente, dois fora e dois arremessos, com 0 prazo limite para arquivar a historia vencendo em cinco minutos? Também cresci na casa da Ciéncia e aprendi,’ na época em que surgiram meus mamilos, sobre quantas passagens subterraneas ha interligando as Propriedades € quantas combinagoes"* unem signo e carne, historia e fato, nos palacios do conhecimento positivo, das hipoteses falsificaveis e das teorias sintetizadoras. Por minha ciéncia ter sido a biologia, aprendi logo cedo que dar conta da evolugao, desenvolvimento, fungao celular, complexidade gendmica, a modelagem da forma no tempo, ecologia comportamental, sistemas comunicacionais, cognigado — em suma, dar conta de qualquer coisa digna de ser denominada biologia — nao era tao diferente assim de conseguir arquivar uma histéria de jogo ou de viver com os enigmas da encarnagao. Para fazer biologia com algum tipo de fidelidade, a/o praticante deve contar uma histéria, deve chegar aos fatos e deve ter a coragem de permanecer faminta/o pela verdade e abandonar uma histéria favorita, um fato favorito, que parece estar de alguma forma equivocado." A/O praticante deve, também, ter a coragem de manter uma historia de forma inabalavel, herdar suas ressonancias discordantes, viver suas contradigdes quando tal historia atinge uma verdade sobre a vida que importe. Nao foi este tipo de fidelidade que fez com que a ciéncia da biologia evolutiva florescesse e alimentasse a fome “ N. da T: “Couplings”, usado no original, tem uma carga semantica bastante ampla € sugestiva, sendo de uso corrente na biologia ¢ na fisica. Pode referir-se, de modo mais geral, 2 uniao em pares; e, mais especificamente, ao ato sexual em si, & fusdo entre gametas, a uma interagao fisica em campo eletromagnético ete. YN. da Ts "Off the mark”, no original, faz alusdo a tirinha homénima criada por Mark Parisi em 1987, ainda bastante popular em varios jornais, que explora um tipo de humor cotidiano com refinada ironia, bem ao gosto da autora. TRADUGOES DA CULTURA - Perspectias cries feminists 1970-2010) | 739 corpérea de conhecimento do meu povo nos tiltimos cento e cinquenta anos? Etimologicamente, fatos referem-se.a performanc® acao, feitos empreendidos — facanhas, em resumo. Um a é um passado participio, uma coisa realizada, terminac’ fixada, mostrada, executada, consumada.~ | OS fi es cumpriram 0 prazo para entrada na proxima edigao jomnal. A ficcdo é etimologicamente muito proxima, ma difere em fungo gramatical e tempo. Assim como 05 fatos, ficgdo refere-se A acdo, masa ficcfio é sobre o ato de model a formar, inventar, bem como 0 fingimento ou 0 subterfig’® Flexionada no Participio presente, a ficcao esta em process € ainda em jogo, ainda tendenciosa a emaranhar 08 ae contudo, também suscetivel de mostrar algo que 7 nao saibamos ser verdade, mas que saberemos- ee com 0s animais, habitar suas/nossas historias, tentat oa a verdade sobre 0 relacionamento, coabitar uma Lae ativa: este 6 0 trabalho das espécies companheiras, P* quem a “relago” é a menor unidade possivel de anaes Assim, arquivo histérias de cées para sustento ae tempos. Todas as histérias transitam por meio de toP ae a figuras de linguagem necessarias para se dizer pees coisa. Tropo (grego: tropés) significa desviar OU Cores, Toda a lingua desvia e tropega; nunca ha sentido ore apenas as/os dogmaticas/os acham quea comunicasa° ri dos tropos seja a nossa provincia. Meu tropo favorito : ica Os contos caninos 6 9 “metaplasmo”. Metaplasm° ee tats uma mudanganuma palavra, porexemplo, aose acrescen omitir, inverter ou transpor suas letras, silabas OU ae Jar termo deriva do srego metaplasmos, que significa emOcs es ou reformar. Metaplasmo é um termo genérico pa aaa qualquer tipo de alteracdo, intencional ou 14° da palavra. Uso metaplasmo para significar a remodelage™ ni carne canina e humana, reformando os cddigos d€ ee historia da relacao espécies-companheiras. 740 | ‘ede Brando | taney Coven | Clause Lina Costa | Ana Coca Acoli Lima , Com “neoplasms on contraste “protoplasma”, “citoplasma”, Tetaplasmo” germoplasma”. Ha um sabor bioldgico em Palavras, Carne exatamenteoque aprecioem palavras sobre matndos: con significante, corpos e palavras, histérias vg Plasmo a ee unidos em naturezasculturas, Oo rhe trabalho ae my significar um equivoco, um tropego, ian tiene a S610 que faz uma diferensa carnal: Por lo nucleico coe numa sequéncia de bases num lo de um pode ser um metaplasmo, modificando o si a Pratica eae e alterando o curso de uma vida. Ou, ‘i como faze modelada entre as/os criadoré s/es de cies, iw tipo line eer cruzamentos do tipo outcro: a los nee ne proximos poderia mesulter dos i iversidade” los de uma palavra como “populagao” y Conta iaiea = Inverter significados; transpor © Corpo Verdade: co; remoldar, remodelar; desvios que dizem Auay, : conto histérias sobre historias, infinitamente.” e menos nics; *elacdo Aol aaes este manifesto é sobre mais do que a Verso, C] cies e pessoas. Caes & pessoas figuram um © mecani aramente, ciborgues — com suas consolidagdes 8 quais core do organico nos codigos de jnformagao, ue ag g 0s limites dizem menos respeito 4 pele do "ido Soa estatisticamente definidas de sinal e fuer ieee aa pe taxonomia das espécies companheiras. lis Srias, , os ciborgues suscitam todas as quest6es das &pansig Lee e ética que os caes exigem- Cuidado, ‘atores mn iferengas no poder, escalas de tempo ~ tais tipo de oe para os ciborgues. Por exemplo, que e ttabaih« onamento temporal poderia modelar sistemas nsumo eee de investimento ¢ padroes de le ine quais os tempos de geragao das maquinas Gao se tornasse compativel com 0S tempos de > Noda Pref feri 1 the way down", que ecoa uma das metiforas Tt das i. expressio usada é autora, comentada na nota 12, acima spaouges oa cus - Popes etiam (97? zoo | 741

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