Você está na página 1de 216

DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO

DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Cristiane Carvalho de Paula Brito


Guilherme Figueira-Borges
Thyago Madeira França
(Organizadores)
Copyright © 2022 – Dos organizadoradores representantes dos colaboradores
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Revisão: Cibele Ferreira
Editoração e capa: Vinnie Graciano

PARECER E REVISÃO POR PARES


Os capítulos que compõem esta obra foram submetidos para avaliação e revisados por pares.

CONSELHO EDITORIAL:

Angela B. Kleiman
(Unicamp - Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR - Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA - Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP - Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp - Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève - Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UNB - Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UNB - Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ - Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL - Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG - Belo Horizonte)

PONTES EDITORES
Rua Dr. Miguel Penteado, 1038 – Jd. Chapadão
Campinas - SP – 13070-118
Fone 19 3252.6011
ponteseditores@ponteseditores.com.br
www.ponteseditores.com.br
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO
DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Cristiane Carvalho de Paula Brito


Guilherme Figueira-Borges
Thyago Madeira França
(Organizadores)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B862d Brito, Cristiane Carvalho de Paula; Figueira-Borges, Guilherme; França,


Thyago Madeira (org.).
Diálogos entre Análise do Discurso e Linguística Aplicada /
Organizadores: Cristiane Carvalho de Paula Brito, Guilherme
Figueira-Borges e Thyago Madeira França. – 1. ed. – Campinas, SP :
Pontes Editores, 2022.
quadros.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-381-2.

1. Análise do Discurso. 2. Ensino de Línguas. 3. Linguística Aplicada.


4. Prática Pedagógica. I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Didática - Métodos de ensino instrução e estudo– Pedagogia. 371.3


2. Análise do discurso. 401.41
3. Linguagem, Línguas – Estudo e ensino. 418.007
4. Linguística aplicada. 468
SUMÁRIO

DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA: UMA


INTRODUÇÃO 7
Cristiane Carvalho de Paula Brito
Guilherme Figueira-Borges
Thyago Madeira França

DIÁLOGOS SOBRE EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA EM CONTEXTOS ESPECÍFICOS

A CONCEPÇÃO HEGEMÔNICA QUE INTERDITA A EDUCAÇÃO DO CAMPO 16


Patrícia Afonso Ferreira
UM OLHAR LINGUÍSTICO-DISCURSIVO ACERCA DO PROCESSO DE ENSINO-
APRENDIZAGEM EM CONTEXTO DE EDUCAÇÃO PRISIONAL 36
Walkiria Felix Dias
UMA PROPOSTA ENUNCIATIVO-DISCURSIVA DE ENSINO DE GRAMÁTICA NO
CONTEXTO DO IDIOMAS SEM FRONTEIRAS 51
Jéssica Sousa Borges
Cristiane Carvalho de Paula Brito
“É UMA DIFERENÇA GRITANTE”: DISCURSIVIDADE DE PROFESSORES DE
INGLÊS SOBRE A EJA 74
Mariana Ruiz Nascimento
Cristiane Carvalho de Paula Brito

DIÁLOGOS SOBRE PERCURSOS METODOLÓGICO-ANALÍTICOS

A CONSTRUÇÃO DO CORPUS E DO DISPOSITIVO DE ANÁLISE: QUESTÕES


METODOLÓGICAS DA TEORIA DO DISCURSO 91
Luís Fernando Bulhões Figueira
POR UMA LITERATURA ALÉM DO CÂNONE: UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE O
ALQUIMISTA, DE PAULO COELHO 113
Ivi Furloni
DIÁLOGOS SOBRE A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA(GENS)

DISCUTINDO INSCRIÇÕES DISCURSIVAS EM REPRESENTAÇÕES DE


APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA 140
Evelyn Cristine Vieira
REFLEXÕES SOBRE LETRAMENTO DIGITAL E ENSINO REMOTO: CAMINHOS
TRANSGRESSIVOS 163
Marcela Henrique de Freitas
PERSPECTIVAS DISCURSIVAS PARA UMA DECOLONIZAÇÃO DO ENSINO E DA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LITERATURA 176
Thyago Madeira França

DIÁLOGOS SOBRE O ENSINO NA EDUCAÇÃO BÁSICA

BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR (BNCC) E ENSINO DE LÍNGUA


INGLESA: NOTAS SOBRE CONSTITUIÇÃO DE SUJEITOS A PARTIR DO CUIDADO
DE SI 189
Wânia Gomes Mariano Vieira
Guilherme Figueira-Borges
ECOS TRANSGRESSIVOS DOS DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E
LINGUÍSTICA APLICADA NO ENSINO MÉDIO INTEGRADO 202
Edilson Pimenta Ferreira

SOBRE OS AUTORES 213


DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO


E LINGUÍSTICA APLICADA:
UMA INTRODUÇÃO

Cristiane Carvalho de Paula Brito


Guilherme Figueira-Borges
Thyago Madeira França

Qualquer projeto crítico necessita tanto de uma agenda política crítica como
de uma preparação para questionar os conceitos com os quais ela lida.

Alastair Pennycook

Fruto da VII Jornada Acadêmica do Laboratório de Estudos Polifônicos (VII JEP), realizada no
dia 31 agosto de 2018, na Universidade Estadual de Goiás - Campus Morrinhos, este livro propõe/
apresenta diálogos por vezes vistos como impertinentes. Isto porque são reunidas pesquisas
responsivas e responsáveis que, no ensino-aprendizagem de línguas (materna e estrangeira), buscam
romper com as bordas/limites/barreiras disciplinares. Assim, para além de abordar temas caros à
Linguística Aplicada (LA) e à Análise do Discurso (AD), sob perspectivas teórico-metodológico-
analíticas da língua(gem), os trabalhos aqui organizados visam ensejar sobretudo algumas (im)
possibilidades de enlaces epistemológicos entre a LA e os estudos do discurso.

Voltada a uma agenda de pesquisa cada vez mais comprometida com uma noção situada de
linguagem, a LA e a AD - tal como praticadas no cenário brasileiro - trazem, para o bojo de suas
discussões o “sujeito” inscrito em práticas de língua(gem), interessando-se por investigações sobre

7
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

a materialidade do corpo, interseccionando construções identitárias de gênero, de sexualidade,


de raça e de classe, a partir de abordagens que envolvam multiletramentos, translinguagem,
decolonialidade, dentre outras. Tais investigações apontam para a proeminência de olhares sobre o
marginal e o periférico, abrindo espaço para a configuração de uma LA e de uma AD que resistem a
pautas homogeneizantes e universalizantes da produção científica e acadêmica, as quais “não lidam
muito bem com a diversidade, a mudança e a renovação epistemológica e, portanto, não abrem
espaço para novos paradigmas e sistemas de conhecimentos produzidos dentro ou fora da academia”
(KLEIMAN, 2013, p. 45).

Szundy e Fabrício (2019) afirmam que “a vertente indisciplinar da LA vem se opondo de


forma radical a quaisquer perspectivas epistemológicas que busquem se eximir de e/ou neutralizar
questões políticas e ideológicas em pesquisas sobre línguas(gens)” (SZUNDY, FABRÍCIO, 2019, p.
70). Nesse sentido, o escopo teórico-metodológico das perspectivas discursivas aqui discutidas se
alinham à visão de uma LA indisciplinar, mestiça, ética e transgressiva (MOITA LOPES, 2006), ao
colocarem em cena a noção de linguagem como materialidade simbólica constitutiva dos sujeitos,
como base material na qual se desenvolvem os processos discursivos. O diálogo com os estudos
da Análise do Discurso pecheutiana e da Análise Dialógica do Discurso, a partir dos trabalhos do
Círculo de Bakhtin, empreendidos pelos pesquisadores da coletânea em tela exploram a incidência
de discursividades nos processos de ensino-aprendizagem de línguas e de formação de professores e
apontam potencialidades metodológicas a serem exploradas no âmbito da LA.

Trata-se de investigações que reconhecem a linguagem como tendo um papel constitutivo


na construção dos saberes, nas configurações identitárias e nas diversas representações de sujeito
que se insinuam na realidade cotidiana. Desta percepção, emerge um latente desejo de se lançar
gestos de pesquisa e análise que contemplem “as vozes do Sul” e que se posicionem, como propõe
Kleiman (2013), numa vocação metodológica interventiva, preocupada com a visibilidade e com os
modos de apropriação dos saberes por parte dos grupos de periferia. Desse modo, ao se inscreverem
em uma tessitura teórica em que são caras as noções de heterogeneidade, alteridade, dialogia,
contradição, memória, resistência, dentre outras, as propostas contribuem para a problematização
de sentidos sedimentados acerca, por exemplo: do lugar da educação em contextos marginalizados,
dos processos de formação de professores, de práticas de ensino de línguas materna e estrangeira e
da abordagem do texto literário.

Corroborando a discussão, Pennycook (2006, p. 71) afirma que “sempre precisamos de Foucault
e de um ceticismo constante em relação a conceitos e modos de pensamento que nos são próximos”.

8
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Ceticismo esse que visa solapar o terreno no qual as verdades sobre o funcionamento da língua(gem)
encontram-se assentadas, adquirindo, por isso, um caráter ilusório de universalidade. Nesse sentido,
faz-se necessário estabelecer um questionamento de “categorias compreendidas como naturais tais
como homem, mulher, classe, raça, etnia, nação, identidade, consciência, emancipação, linguagem
e poder” que devem ser entendidas “como contingentes, dinâmicas e produzidas no particular”
(PENNYCOOK, 2006, p. 71). Como se pode perceber o que aproxima LA e AD é o desejo de pensar,
por um lado, as condições nas quais os sujeitos se constituíram na história; e, por outro lado, é
mostrar, sobretudo, que não é natural os modos como amam/trabalham/ensinam e que, no exercício
da resistência, os sujeitos podem rabiscar outras práticas de/para si nas páginas incertas da vida.

Não podemos deixar de citar também Coracini (2021, p. 169) que não cessou, ao longo de sua
trajetória como pesquisadora, de fazer pulsar a relação entre LA e AD, e pontuou que “Foucault
foi professor de Derrida e que Lacan convidou Foucault para seus seminários; que os três foram
contemporâneos”. Segundo a autora, notadamente, por esta proximidade, eles “compartilhavam,
dentre outras, noções como sujeito - cindido, descentrado, incompleto, sujeito do inconsciente -,
linguagem – opaca, equívoca, faltosa -, verdade dependente do momento histórico-social e do espaço
geográfico determinantes para a constituição da cultura” (CORACINI, 2021, p. 169, grifos da autora).
A partir do gesto dialógico, instaurado pela autora, da LA com a AD, percebemos a possibilidades de
convergências de noções-conceitos entre os campos do saber.

Na interpretação do funcionamento sócio-histórico da língua(gem), outra noção que foi bastante


mobilizada nos diálogos entre a LA e AD aqui apresentados é de representação discursiva, pensada
a partir das formações ideológicas que constituem os sujeitos. Segundo Pêcheux e Fuchs (1997, p.
166), a “formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e representações que não
são nem ‘individuais’ nem ‘universais’, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de
classes em conflito umas com as outras”. Nesse sentido, consideramos que as representações devem
ser relacionadas às atitudes, ou seja, as práticas corporais dos sujeitos devem ser pensadas a partir
de um jogo complexo de representações que incidem sobre os gestos (movência de mão praticadas
por alguns professores de idiomas), sobre a pronúncia (acento americano, britânico ou outros), a
avaliação (como produto ou como processo), dentre outros.

Ainda sobre a ideia de representação em Pêcheux, Orlandi (1983, p. 19) aponta que há nos
mecanismos de toda “formação social regras de projeção que estabelecem a relação entre as
situações concretas e as representações dessas situações no interior do discurso”. Assim, o lugar
social é espaço que contempla tais representações e deve ser considerado como constitutivo da

9
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

significação discursiva e, por conseguinte, das análises discursivas. Orlandi ainda reforça que é parte
da “estratégia discursiva prever e situar-se no lugar do ouvinte (antecipação das representações),
a partir de seu próprio lugar de locutor, o que regula a possibilidade de respostas, o escopo do
discurso”. (ORLANDI, 1983, p. 19), o que dialoga com vários dos estudos aqui revelados, nos quais
os pesquisadores lançam olhares analíticos para as representações que se configuram e emergem de
situações de formação e ensino-aprendizagem, revelando efeitos de sentidos que incidem sobre os
dizeres de sujeitos e suas inscrições nos lugares sociais.

Pauta-se, nesse sentido, que os contextos de ensino-aprendizagem de línguas (materna


e estrangeira) são espaços políticos nos quais se deve instaurar, na resistência, movimentos
desestruturação-reestruturação para as redes de memória e para os lugares sociais. Lançando o
olhar para os jogos de representação, como aponta Guilherme (2017, p. 23), podemos “pensar alunos,
professores e formadores inscritos em formações discursivo-ideológicas, trans-formando-se pela
forma como realizam uma clivagem do mundo, re-significando sentidos”; delimitando “sujeitos que
em sua heterogeneidade são contemplados com uma formação política que lhes permita tomar uma
posição diante do processo de ensino-aprendizagem e de formação”. Portanto, nos encontros entre
a LA e a AD, evidencia-se que ensinar e aprender são atos políticos sócio-historicamente situados.

Na esteira dessas considerações, os trabalhos que compõem esta coletânea se organizam em


quatro grandes eixos, que aqui os separamos por questões didáticas, uma vez que se interpenetram
em suas propostas temáticas e por suas escolhas téorico- metodológicas e analíticas. Tal organização
levou em consideração diálogos estabelecidos pelos pesquisadores no que concerne: i) à educação
linguística em contextos específicos; ii) aos percursos metodológico-analíticos; iii) à formação
de professores de língua(gens); e iv) ao ensino na educação básica. Passamos, pois, a uma breve
contextualização dos estudos em tela.

O primeiro eixo, voltado a contextos específicos de ensino de línguas, conta com quatro
capítulos, sendo o primeiro intitulado A Concepção hegemônica que interdita a educação no campo,
Ferreira, a partir de sua experiência como professora de inglês na rede pública na zona rural, investiga
dizeres de professores de língua portuguesa e inglesa, a fim de analisar as diversas vozes que incidem
sobre o ensino de gêneros discursivos nesse contexto. Com base em uma perspectiva bakhtiniana de
linguagem, a autora parte da hipótese de que as vozes desses sujeitos se constituem em um embate
marcado por apagamentos, esquecimentos, contradições e denegações. Os dizeres dos professores
acenam para uma relação tenso-conflitiva com o ensino do gênero, sendo este discursivizado de
maneira esvaziada e com pouco espaço na sala de aula.

10
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Dias, em Um olhar linguístico-discursivo acerca do processo de ensino-aprendizagem em contexto


de educação prisional, identifica e analisa representações discursivas sobre o ensino-aprendizagem
de línguas, a partir do depoimento de professores que atuam em contexto de educação prisional.
A autora faz uma releitura do corpus de sua dissertação de mestrado de forma a dialogar com o
momento atual de ensino remoto imposto pela pandemia de Covid-19 e lançar luz a um contexto de
ensino comumente invisibilizado em cursos de formação de professores.

No capítulo intitulado Uma proposta enunciativo-discursiva de ensino de gramática no contexto


do idiomas sem fronteiras, Borges e Brito problematizam uma proposta enunciativo-discursiva de
ensino de gramática com foco em fins acadêmicos, implementada pela primeira autora em um
projeto de iniciação científica. As autoras discutem as bases epistemológicas em que se fundamenta
o English for Academic Purposes (EAP) para então apresentar algumas atividades pedagógicas que,
pautadas em concepções bakhtinianas de linguagem, podem contribuir para um EAP que refute
visões tecnicistas de ensino.

Nascimento e Brito, por sua vez, em “É uma diferença gritante”: discursividade de professores
de inglês sobre a EJA, analisam representações discursivas de professores que atuam ou já atuaram
na Educação de Jovens e Adultos. O trabalho consiste em um recorte da dissertação de mestrado
da primeira autora, a qual utilizou a proposta AREDA (Análise de Ressonâncias Discursivas em
Depoimentos Abertos), elaborada por Serrani-Infante (1998), como ferramenta de constituição e
análise do corpus da pesquisa. Discursivizada no embate com a memória de ensino regular, à EJA
se agregam sentidos de desvalorização que incidem nos processos de se ensinar-aprender nesse
contexto.

Dois capítulos voltam-se, especificamente, para o eixo de percursos metodológico-analíticos


em AD. No primeiro, A construção do corpus e do dispositivo de análise: questões metodológicas da
teoria do discurso, Figueira constrói reflexões sobre o percurso metodológico para o desenvolvimento
de pesquisas em AD. A partir dos fundamentos epistemológicos e teóricos do campo, o autor traz
importantes contribuições a respeito das questões metodológicas que envolvem o fazer do analista
de discurso, tanto no que diz respeito à organização do corpus, quanto à elaboração de dispositivo
de análise.

Em Por uma Literatura além do cânone: uma proposta de análise da obra de Paulo Coelho, Furloni
problematiza os processos de cristalização que alicerçam a Literatura e o cânone literário, por meio
de uma análise discursiva de O Alquimista, de Paulo Coelho. Com base em Pêcheux e Bakhtin, a
autora também defende que os estudos do discurso podem funcionar como uma tomada de posição

11
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

para a leitura e análise de uma obra literária, bem como para se pensar a formação tradicionalmente
canônica do leitor literário no ambiente escolar.

Inaugurando a seção de trabalhos voltados para o eixo de formação de professores de línguas,


Vieira, em Discutindo inscrições discursivas em representações de aprendizagem de língua inglesa,
investiga as representações sobre o processo de ensino-aprendizagem de língua inglesa em diferentes
instâncias enunciativas pedagógico-educacionais. Inscrita em uma interface teórico-metodológica
entre a LA e os estudos do discurso, a autora demonstra como as vozes que emanam dessas instâncias
instauram uma dialogicidade e uma convergência de sentidos sobre a representação do ensino-
aprendizagem de língua inglesa.

Freitas, em Reflexões sobre letramento digital e ensino remoto: caminhos transgressivos, reflete
sobre as tensões que emergem do embate entre o ensino tradicional e presencial e o formato remoto
emergencial instaurado com a pandemia de Covid-19. No capítulo, a autora remonta sua dissertação
de mestrado em que analisa as discursividades construídas por professores de língua estrangeira
acerca do ensino-aprendizagem da língua inglesa em um curso de Letras, de forma a estabelecer
relações dialógicas com as contradições que se instauram entre o conceito de letramento digital e
contexto de ensino remoto emergencial instaurado em 2020.

No capítulo seguinte, França, em Perspectivas discursivas para uma decolonização do ensino e da


formação e da formação de professores de literatura, coloca em diálogo os estudos sobre colonialidade,
a Linguística Aplicada crítica e perspectivas discursivas de linguagem para refletir sobre o processo
de formação de professores e o ensino de literatura. O autor defende uma educação literária ética
e decolonizante nos cursos de Letras e na escola, com vistas a refutar concepções hegemônicas em
prol do desenvolvimento de um letramento literário que (de)forme e considere possibilidades de
transformação de práticas sociais e discursivas por meio de um ensino responsivo, responsável e
humanizador.

Por fim, dois capítulos compõem o eixo da discussão em torno do ensino de língua na educação
básica. Vieira e Figueira-Borges, em Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e Ensino de Língua
Inglesa: notas sobre constituição de sujeitos a partir do cuidado de si, partem dos estudos foucaultianos
para discutir discursividades sobre o cuidado de si instauradas em enunciados da BNCC para o
ensino de língua inglesa. Os autores analisam algumas habilidades apresentadas nesse documento e
apontam a emergência de sentidos que tendem a uniformizar o ensino por meio da homogeneização
de práticas discursivas que visam a construção de um sujeito direcionado quanto à percepção de si
e do outro.

12
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

No capítulo Ecos transgressivos dos diálogos entre Análise do Discurso e Linguística Aplicada no
Ensino Médio Integrado, Ferreira busca problematizar possíveis efeitos positivos que as concepções
apregoadas pela Análise do Discurso e pela Linguística Aplicada, mais precisamente pelos estudos
de Bakhtin e Pêcheux, em interface com os de Pennycook, em uma abordagem inter/transdisciplinar,
podem promover em aulas de língua inglesa no Ensino Médio. Segundo o autor, tal discussão parece
acenar para formas profícuas de realizar práticas problematizadoras nas aulas de língua inglesa, o
que pode favorecer a desestabilização de discursos hegemônicos e totalitários em sala de aula.

A partir dos capítulos desta obra, convidamos pesquisadores das áreas de Análise do Discurso,
de Análise Dialógica do Discurso e da Linguística Aplicada a travar diálogos que busquem, na
contemporaneidade, pensar a constituição de sujeitos (alunos, professores, escritores, leitores,
dentre outros) em contextos de ensino-aprendizagem e por meio de discursividades que emanam do
funcionamento singular da língua (materna e estrangeira).

Agradecemos, por um lado, à Universidade Estadual de Goiás - Campus Morrinhos (UEG) e à


Universidade Federal de Uberlândia (UFU) pelos suportes destinados à realização da VII Jornada de
Estudos Polifônicos (JEP); e ao Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), por outro
lado, pelo fomento destinado à realização da VII JEP e a materialização desta obra com os textos das
palestras e conferências.

Referências

CORACINI, Maria José. Funcionamentos discursivos de livros didáticos e materiais didáticos: entrevista
com Maria José Coracini. Dossiê Funcionamentos discursivos de livros didáticos e de materiais didáticos:
possibilidades de análise e de trabalho. In: Cadernos Discursivos, Catalão-GO, v. 1, n. 1, p. 166-177, 2021.

GUILHERME, M. F. F. Línguas Estrangeiras: Ensino-aprendizagem e formação política de professores. In:


FIGUEIRA-BORGES, G.; SILVA, M. A. Ensino de línguas em diferentes contextos. São Paulo: Pontes Editores,
2017, p. 15-28.

KLEIMAN, Ângela Bezerra. Agenda de pesquisa e ação em Linguística Aplicada: problematizações. In: MOITA
LOPES, Luiz Paulo da. (Org.) Linguística Aplicada na Modernidade Recente. São Paulo: Parábola Editorial,
2013. p. 39-58.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. São Paulo: Brasiliense,
1983.

13
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. A Propósito da Análise Automática do Discurso: Atualização e Perspectivas (1975). In:
GADET, F. & HAK, T. Por uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux.
Campinas: Ed. da UNICAMP, 1997, p. 163-252.

PENNYCOOK, A. Uma Linguística Aplicada Transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. Por uma Linguística
Aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 67-84.

SZUNDY, P. T. C.; FABRÍCIO, B. F. Linguística Aplicada e indisciplinaridade no Brasil: promovendo diálogos,


dissipando brumas e projetando desafios epistemológicos. In: SZUNDY, P. T. C.; TÍLIO, R.; MELO, G. C. V.
de. (Orgs.). Inovações e desafios epistemológicos em linguística aplicada: perspectivas sul-americanas.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2019. p. 63-89.

14
DIÁLOGOS SOBRE
EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA EM
CONTEXTOS ESPECÍFICOS
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

A CONCEPÇÃO HEGEMÔNICA QUE


INTERDITA A EDUCAÇÃO DO CAMPO

Patrícia Afonso Ferreira

O desenvolvimento rural deve ser integrado, ou seja, assentar na


interdependência dos diversos setores do desenvolvimento, quer dizer,
não apenas na agricultura e na indústria (extrativa), mas também nos
transportes, no comércio, na saúde, na educação, na cultura, nos deportes e
no lazer. (RAKOTOMALALA, Pierre, 1976)

Introdução

O interesse pelo tema Educação do campo se constituiu, por meio de depoimentos obtidos
na minha pesquisa de mestrado intitulada: “Dizeres e não dizeres de professores de escolas rurais
do município de Uberlândia sobre gêneros e ensino de línguas”, realizada na Universidade Federal
de Uberlândia (UFU), sob a orientação da Dra. Maria de Fátima Fonseca Guilherme. O trabalho foi
defendido em abril de 2016 e mostrou o apagamento tanto da teoria dos gêneros, quanto dos saberes
locais da zona rural e a inscrição de muitos professores apenas no processo de cidadania para ensinar
línguas1.

Inicialmente, é importante destacar que o meio rural faz parte de nossa historicidade porque
foi o ambiente escolar onde estudamos desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental.

1 A dissertação pode ser acessada pelo link: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/17983/3/DizeresN%-


C3%A3oDizeresProfessores.pdf

16
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Mas, o princípio de nossas inquietações ocorreu durante a Graduação em Letras na UFU, quando,
neste espaço enunciamos a nossa incompletude, pois não foi disponibilizada nenhuma formação
direcionada para a Educação do Campo. Em continuidade a nossa trajetória, ocupamos um lugar de
professora de inglês na rede pública na zona rural na cidade de Indianópolis- MG desde 2009.

Como enunciadora, inscrevemo-nos em diferentes lugares discursivos, ou seja, aqui enunciamos


nossa incompletude ora como ex-aluna da zona rural, ora como professora da zona rural e também
como pesquisadora que busca compreender/ problematizar o ensino, em especial da zona rural, pelo
viés da Linguística Aplicada (LA) com a finalidade de buscar outras possibilidades para o ensino e a
extensão.

Fundamentação Teórica

A LA e a Análise Dialógica do Discurso, com os pressupostos teóricos do Círculo de Bakhtin


e de sua filosofia da linguagem, balizaram esta investigação. Para tanto, colocamos em uma área
discursiva as várias vozes oriundas da prática escolar e das políticas públicas para o ensino na zona
rural.

A linguagem é entendida por Bakhtin de tal modo que o sujeito passa a ocupar papel de
suma importância em qualquer situação de interação, pois é a partir dele que se torna possível a
compreensão das diversas relações sócio-históricas que qualificam uma sociedade.

Esse sujeito histórico produz enunciados, que, na verdade, são


acontecimentos que exigem i) uma determinada situação histórica; ii) a
identificação dos atores sociais; iii) o compartilhamento de uma mesma
cultura; iv) o estabelecimento de um diálogo. De acordo com essa visão da
linguagem, o autor desenvolve o conceito de dialogismo, a partir do qual
afirma que todo dizer é, irremediavelmente, perpassado por outros dizeres,
que nossa voz é sempre também a voz do outro e que todos os enunciados
se constituem a partir de outros. O dialogismo, ou relação dialógica entre
textos, é, portanto, intrínseco à linguagem. (DIAS et al., 2011, p. 144)

Nesse sentido, ao se trabalhar com a linguagem, deve-se abordar inicialmente as instâncias


sociais, ou seja,

17
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

os aspectos sócio históricos da situação enunciativa, privilegiando,


sobretudo, a vontade enunciativa do locutor – isto é, sua finalidade, e
principalmente sua apreciação valorativa sobre seu(s) interlocutor(es)
e tema(s) discursivos – e, a partir desta análise, as marcas linguísticas
(formas de texto enunciado e da língua – composição e estilo) que refletem
no enunciado/texto, esses aspectos da situação. (ROJO, 2005, p. 196)

Dessa forma, cada gênero está relacionado a uma situação social de interação típica, dentro de
uma esfera social.

É de suma importância que o aluno e professor inseridos na Educação do campo contribuam


para novas políticas rurais que não sirvam para possibilitar ao aluno somente migrar da zona rural
com o objetivo de ingressar em Universidade ou morar na zona urbana em busca de emprego.
Ademais, entende-se que é papel do professor da zona rural colaborar para a formação discursiva
dos alunos de forma que eles reforcem o sentimento de pertença pela zona rural, busquem tentativas
de fortalecer a classe independentemente de permanecerem ou não morando no campo.

A concepção hegemônica que interdita o rural é percebida quando os professores utilizam os


mesmos planejamentos anuais, bem como aulas elaboradas de forma idêntica para a zona urbana e
para a zona rural, sem considerar a noção de sujeito e consequentemente as avaliações e projetos de
curso também iguais para o campo e cidade. Diante disso é possível apontar várias hipóteses para
que isso ocorra, ou seja, primeiramente porque os professores são mal remunerados e trabalham
carga horária dobrada em duas ou mais escolas, somada à questão que o deslocamento da cidade
para o campo requer tempo e causa muito desgaste físico, emocional, prejudicando a possibilidade
de um planejamento de qualidade, sem tempo adequado, incentivo financeiros e condições de
produção, por exemplo. Até mesmo formação continuada direcionada para educação do campo, os
professores usam as mesmas aulas que planejam para a zona urbana, na zona rural, sem considerar a
riqueza dos saberes locais que podem existir quando a educação do campo é trabalhada valorizando
o conhecimento local dos sujeitos, olhando para as vivências existentes, a historicidade dos
envolvidos neste processo de ensino, além das dificuldades tais como o calendário que precisaria
ser diferenciado, por exemplo. considerando o período da colheita, quando os estudantes trabalham
muito ajudando os pais ou chefes e isso prejudica a aprendizagem, sobretudo as avaliações. Dessa
forma, coincide de a avaliação ser nos mesmos períodos que as colheitas, muitas vezes isso pode
prejudicar os resultados dos estudantes.

18
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Ademais, ainda existem professores que enunciam sobre o aluno da zona rural a partir de um
lugar discursivo que o toma como inferior perante os estudantes da zona urbana, por reproduzirem
discursos ultrapassados como o de que o aluno do campo é desprovido de recursos com pouca
informação, sem acesso à energia, internet e recursos tecnológicos conforme acontecia há muitos
anos. Porém, com a globalização o campo evoluiu muito e já são diversas as tecnologias existentes
no meio rural, elas são além de telefone, internet e energia. Há também os implementos agrícolas
de última geração, tais como trator com ar-condicionado e tecnologias diversas que só um cidadão
letrado consegue utilizar. Em continuidade, a hegemonia principal é quando afirmam que os alunos
da zona rural são como os estudantes da zona urbana porque querem ser aprovados em processos
seletivos e ingressar na Universidade, o que representa um erro tentar igualar alunos da zona rural e
da zona urbana utilizando este argumento.

Afinal, é notório que o ingresso na vida acadêmica não é o objetivo de todos os alunos, mesmo
os que estudam na zona urbana. Assim, pode ser também com os estudantes da zona rural. Com isso,
é possível destacar que nem todos os estudantes querem seguir a vida acadêmica, ou cursar um curso
superior, muitos desejam continuar na fazenda e trabalhar no campo, porém a escola, diversas vezes
por meio dos dizeres dos professores, apaga essas inscrições do ser produtor rural ou empreendedor
no campo, inscrevendo-se apenas no processo de cidadania ou no ingresso em Universidades para o
curso superior.

Ademais, o problema é o apagamento dos saberes locais, ou seja, muitos alunos do campo são
trabalhadores em diversos setores da zona rural, ocupam o lugar social de agricultores, cozinheiros,
motoristas de máquinas diversas, tais como trator, colheitadeiras, plantadeiras e outras. Alguns são
técnicos em agropecuária, sem cursar um curso técnico formalmente, mas com conhecimento da
teoria e prática por terem aprendido com os pais, avós ou chefes. Podemos considerar como saber local
toda a cultura constituída no campo por meio das festividades regionais, trabalhos desenvolvidos
rurais e artesanais, algumas culturas religiosas tal como a Folia de Reis, músicas e rituais ensinados
e vividos por esses povos. Isso é de uma riqueza grandiosa, muitas vezes apagada por professores.

Portanto, a necessidade dos saberes locais na Educação do Campo se faz para tornar mais
significativo o ensino e dar vozes a esses povos muitas vezes excluídos e marginalizados de diversas
formas. Por exemplo, uma das piores maneiras de exclusão é quando uma escola do campo é fechada
e os alunos são obrigados a se deslocarem para a cidade em transportes públicos para percorrem
caminhos desgastantes e perigosos em busca de educação.

19
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

É sabido que, quando uma escola do campo fecha, são negados vários direitos para os alunos, pois
muitos desistem diante da dificuldade de ir para cidade, pois eles passam por trajetos complicados
até chegar à escola, os horários também são difíceis, pois os alunos têm que acordar de madrugada
para conseguir chegar à cidade próxima. Outra questão relevante é que a escola do campo é um
espaço de estabelecer relações dos diversos tipos, tais como clube de mães, espaços para cursos
temporários oferecidos por empresas para a formação do homem do campo. Além disso, a quadra é
um espaço físico usado para a comunidade com finalidade de lazer.

Dessa maneira, fechar escolas rurais, como vem acontecendo, é tirar a voz do homem do campo
e promover um esvaziamento desses povos tão ricos de cultura que ocupam também uma função
significativa no desenvolvimento econômico do Brasil. Por isso faz sentido este estudo ser inscrito
na LA, pois esta é uma ciência que atua ativamente no funcionamento da sociedade pelo viés da
língua, das políticas educacionais, tentando subverter em busca de manter e desenvolver um locus
que favoreça a polifonia e emancipe as vozes desses sujeitos marginalizados, tais como os homem
do campo, apagados de suma maneira. Para repensar o uso das produções hegemônicas é importante
destacar a análise de Kleiman (2013):

Defendo, neste trabalho, uma Linguística Aplicada crítica com uma agenda
que, em consonância com sua vocação metodológica interventiva, rompa
o monopólio do saber das universidades e outras instituições que reúnem
grupos de pesquisadores e intelectuais e toma como um de seus objetivos a
elaboração de currículos que favoreçam, por um lado, a apropriação desses
saberes por grupos na periferia dos centros hegemônicos e, por outro a
legitimação dos saberes produzidos por estes grupos. (KLEIMAN, 2013, p.
41-42)

Assim como a zona urbana tem um papel significativo para o desenvolvimento econômico do
país, não podemos ignorar o quanto a produção leiteira, agropecuária, bovina, suína vinda do campo
são imprescindíveis não apenas para alimentar o mercado interno, mas também para a exportação
e movimentação no mercado financeiro brasileiro. É inegável que os fazendeiros têm o mesmo
compromisso fiscal que os demais moradores da zona urbana, portanto os inúmeros impostos pagos
ao governo devem ser investidos na população rural e principalmente na Educação.

Diante disso, o ensino na zona rural foi pesquisado por meio dos dizeres dos professores atuantes
no Campo e assim demos vozes a uma minoria que está inserida nesse contexto. Em segundo lugar,

20
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

foi uma tentativa de contribuir para a formação dos professores visto que, enquanto participaram da
pesquisa, tiveram possibilidade de refletir sobre as suas concepções de gêneros no ensino de línguas
bem como sobre as suas inscrições na Educação do campo.

Vale pontuar que alguns autores da LA, como Guilherme (2012), numa perspectiva bakhtiniana,
afirmam que

Ao refletir sobre o efeito da linguagem que seria, em nosso entendimento


esse discurso que se constitui pelo outro que é ensinada e aprendida na
escola, Bakhtin (1960/2004) defende que ele tem um efeito poderoso no
pensamento da pessoa que a gera e constrói. Segundo ele o pensamento
criativo, original, exploratório que está em contato com a riqueza e com a
complexidade da vida não pode se desenvolver em substrato constituído
por formas de línguas despersonalizadas, estereotipadas, abstratas e
livrescas. Para ele, o destino do potencial criativo de um aluno, em grande
parte, depende da linguagem que ele leva consigo para fora da escola. E isso
é responsabilidade do professor. (GUILHERME, 2012, p. 68)

Assim, buscamos analisar como os professores enunciam sobre a sua formação, como a questão
dos “gêneros” aparece ou não em seus dizeres, qual o lugar discursivo que o professor ocupa no
ensino de línguas na zona rural, entre outras questões. Em relação à explosão de pesquisas que
tomam por base teórica a teoria dos gêneros, Rojo (2005) compreende que existe sugestão explícita
nos PCN de língua portuguesa e de línguas estrangeiras quanto à relevância de se considerar o uso
dos gêneros para o desenvolvimento da leitura e da produção de textos.

É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de


todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam,
que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para
sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o
meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças
que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e
acabada. (BAKHTIN, 2009, p. 42)

Os alunos precisam ser orientados para usar a língua materna bem como a língua estrangeira
de maneira que atenda à contemporaneidade e por isso o ensino de línguas necessita ser repensado

21
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

para que a língua se estabeleça na comunicação verbal concreta. Por isso, norteamo-nos pelos
gêneros discursivos e o método proposto pelo Círculo de Bakhtin, um grupo multidisciplinar de
estudiosos russos que se encontravam frequentemente entre 1919 e 1929, interessados nas formas
de estudar a linguagem, a arte e a literatura. Entre eles podem-se destacar Mikhail Bakhtin (1895-
975), o teórico literário Pavel Medvedev (1891-1938) e o linguista Valentin Volochínov (1895- 1836).

A comunicação verbal concreta pode ser realizada considerando suas condições reais de uso
no estudo da língua, já que “um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também
reflete e refrata outra” (BAKHTIN, 2009, p 32). Ele pode modificar essa realidade ou reproduzi-la de
maneira igual, pois, qualquer signo pode sofrer apreciação ideológica.

A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser
explicitada a partir do meio ideológico e social. Para Bakhtin:

Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos


socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão
pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização
social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece.
(BAKHTIN, 2009, p 45)

Rojo (2005) afirma que é necessário explorar as características das situações de enunciação, pois
a existência de toda enunciação é determinada por uma situação de interação. Vale salientar que nem
todos os teóricos diferenciam gêneros discursivos e gêneros textuais. Diante disso, a nomenclatura
“gêneros do discurso ou discursivos” é adotada por autores bakhtinianos, que centram seus estudos
nos elementos da situação de produção dos enunciados/textos, pois, para Bakhtin, os gêneros e
os enunciados a eles pertencentes não podem ser compreendidos, produzidos ou conhecidos sem
referência ao contexto sócio-histórico de enunciação.

Podemos relacionar essa perspectiva com a base teórica da “Análise Dialógica do Discurso”
(BRAIT, 2006), pois o dialogismo é o cânone que norteia os estudos do Círculo de Bakhtin. Para
os intelectuais do Círculo, a linguagem é essencialmente dialógica, o que aponta que só é possível
concebê-la em sua unidade viva.

Os gêneros estão vinculados à situação social de interação e, por isso, como os enunciados
individuais são constituídos de duas partes inextricáveis, a sua dimensão linguístico-textual e a sua

22
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

dimensão social: cada gênero está vinculado a uma situação social de interação típica, dentro de
uma esfera social; tem sua finalidade discursiva, sua própria concepção de autor e destinatário.

O ensino/aprendizagem de língua compõe-se de toda uma multiplicidade de elementos e de


condições, sendo inviável para o ensino usar teorias que possam resolver “problemas” da prática.
Vejamos o que afirma Pennycook (1998):

Na minha visão, as sociedades são desigualmente estruturadas e são


dominadas por culturas e ideologias hegemônicas que limitam as
possibilidades de refletirmos sobre o mundo e, consequentemente, sobre
as possibilidades de mudarmos esse mundo. Também, estou convencido de
que a aprendizagem de línguas está intimamente ligada tanto à manutenção
dessas iniquidades quanto às condições que possibilitam mudá-las. Assim, é
dever da Linguística Aplicada examinar a base ideológica do conhecimento
que produzimos. (PENNYCOOK, 1998, p. 24)

Um trabalho na contramão dessa dominação precisa ser embasado por leis que respaldem a
educação do campo, bem como por cursos de formação que preparem o professor para aproveitar os
saberes locais dos povos do campo. Além disso, o professor necessita ser incentivado financeiramente
para conseguir desenvolver um trabalho no campo, uma vez que o desgaste do professor na Educação
do campo é muito maior, já que gasta mais tempo no percurso.

Em seu artigo intitulado Bakhtin e Linguística Aplicada: Ações Metodológicas na construção do


Ensino da Língua Portuguesa, Valadares e Bragança (2012) destacam as contribuições de Bakhtin para
o ensino:

Inscrito nas filosofias da existência, para Bakhtin, o pensamento não pode ser
considerado anterior à existência nem dela estar separado. Por isso, o mundo
da cognição e o mundo da vida estão inscritos um no outro e influenciam-se
mutuamente. Esses postulados são de fundamental relevância porque deles
derivam vários outros. O primeiro é o de o pensamento ser radicalmente
histórico, o que significa dizer que nosso pensamento se funda num
tempo, numa cultura e em relações sociais concretas. O segundo postulado
nodal de Bakhtin é a filosofia do dialogismo, em que diálogo é tomado
como o simpósio universal que define o existir humano. (VALADARES E
BRAGANÇA, 2012, p. 32)

23
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

As relações dialógicas são definidas como encontros de enunciados. Todavia, esses enunciados
carregam sempre índices sociais de valores, sendo a lógica das relações dialógicas não a natureza
linguística dos enunciados, mas a defrontação de axiologias.

Pontuam, os autores que, se o pensamento é constituído no fluxo concreto da história do


indivíduo, à medida que ele compreende uma determinada atividade humana, posicionando-se
axiologicamente e, com isso, sendo responsivo frente a tal evento, há sempre a necessidade do
outro para a constituição de um indivíduo. Portanto, este é mais um relevante conceito filosófico
de Bakhtin, ou seja, o de alteridade, o do que somos efeito da alteridade, isso significa conviver,
afinal quando olhamos para dentro de nós, olhamos para os olhos do outro ou com os olhos do outro
(BAKHTIN, 2003, p. 341).

Dessa forma, a dialogia proposta pelos estudos bakhtinianos é condição para viver; é de suma
importância para o nosso ser no mundo e para a nossa consciência, o que significa dizer que a
nossa consciência não é individual, mas sempre coletiva, constituída por diversas vozes. Portanto, a
orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação
natural de qualquer discurso vivo. Em todos os caminhos até o seu objeto, em todas as direções, o
discurso se encontra com o discurso de outro, numa interação viva e tensa.

Além disso, o conjunto das obras do Círculo de Bakhtin motivou o nascimento de uma análise/
teoria dialógica do discurso, intitulada Análise Dialógica do Discurso, mencionada anteriormente.
Essa, “contribui para o reconhecimento do constitutivo papel da linguagem nas atividades humanas
e, portanto, nas diferentes ciências que têm o sujeito e sua alteridade como objeto de estudos”
(GUILHERME, 2008, p. 66)

A Análise Dialógica do Discurso será utilizada como referência teórica para a análise dos
dados coletados pelos depoimentos dos professores da rede pública municipal de Uberlândia. A
pertinência de uma pesquisa dialógica se deu, neste trabalho, na medida em que busquei analisar as
especificidades discursivas constitutivas nos dizeres de professores de escolas rurais sobre gêneros
e ensino de línguas. Afinal, entendo que, no depoimento de um professor participante da pesquisa,
perpassam vozes de diversos outros sujeitos participantes ou não da pesquisa.

Em Marxismo e Filosofia da linguagem, Bakhtin (2009) dá um novo significado à noção de gêneros


do discurso, pois a retira apenas do comando da arte e de uma abordagem formal para inseri-la nas
relações sociais e associá-la às situações de interações sociais às diferentes fontes de comunicação.

24
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Bakhtin define os gêneros como tipos de enunciados, relativamente estáveis, que estão
vinculados a situações típicas da comunicação social. Essa é a condição verbal comum dos gêneros a
que o autor alude, ou seja, a relação intrínseca dos gêneros com os enunciados e não apenas com uma
dimensão linguística ou formal simplesmente separada da atividade social dos gêneros. Portanto,
essa é a natureza socioideológica e discursiva dos gêneros. Como tipos estilísticos, composicionais e
sistemáticos dos enunciados individuais, os gêneros se constituem historicamente a partir de novas
situações de interação verbal da vida social que vão se consolidando, no interior das diferentes
esferas sociais.

Partindo dessas considerações, passamos a explicitar o percurso metodológico e analítico da


pesquisa.

Percurso Metodológico e Analítico

Na perspectiva teórico-metodológica bakhtiniana, uma pesquisa sobre um determinado


gênero não pode ser simplesmente concebida como uma elaboração de uma “descrição” desse
gênero, procedimento mais próprio das ciências naturais. As formas e os tipos de interação verbal
estão relacionados às condições concretas em que se realizam, isto é, as categorias dos atos de fala
gêneros do discurso na vida e na criação ideológica que se presta a uma determinação pela interação
verbal, estudo dos enunciados, em ligação com os seus gêneros, da esfera cotidiana e das ideologias
formalizadas (BAKHTIN, 2009, p. 124). Assim, consideramos que os dizeres de um pode representar
a voz de um grupo, revelar as condições de produção, os apagamentos, as inscrições ideológicas e até
mesmo as contradições e tensões que marcam os professores no processo de ensino e aprendizagem.

A Análise de Ressonâncias Discursivas em Depoimentos Abertos - AREDA – (SERRANI, 1998) foi


utilizada como suporte teórico-metodológico para a coleta de dados. Em nossa análise, consideramos
as condições de produção e as vozes que constituem 03 professores de Língua Portuguesa (LP) e
de 03 professores de Língua Inglesa (LI), pois acreditamos que, por meio dos dizeres dos sujeitos-
professores, foi possível analisar as diversas vozes que incidem sobre o ensino de gêneros na zona
rural. A partir de sequências discursivas selecionadas, algumas noções como ressonância discursiva,
entre outras, foram mobilizadas durante a análise.

Partimos da hipótese de que há um embate de vozes perpassado por apagamentos,


esquecimentos, contradições e denegações que se deixa revelar por parte dos professores ao
enunciarem sobre gênero e a relação com o ensino. Para confirmar ou refutar esta questão, algumas
perguntas foram delineadas, a saber: i) Quais são as vozes que os sujeitos-professores de LI e LP do

25
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

ensino público da zona rural evocam ao enunciarem sobre os processos discursivos instaurados no
ensino de línguas na zona rural?; ii) Quais são as discursividades construídas por professores de
LI e LP de escolas rurais acerca dos processos de ensino-aprendizagem e de sua formação, no que
tange à questão do ensino de gêneros?; e iii) Quais inscrições discursivas perpassam os dizeres dos
sujeitos, no ensino na zona rural, quando enunciam sobre gêneros? Para responder essas questões
recorremos à concepção de gênero na perspectiva de Bakhtin.

O percurso metodológico-analítico foi feito por meio da análise dos dizeres dos professores de
línguas da zona rural que gravaram sozinhos, eles tiveram autonomia para responder as perguntas
que quisessem na ordem que eles escolheram responder, sem tempo determinado. A análise foi
feita por meio dos dizeres e, também, dos não dizeres, isto é, daquilo que não falaram por falta de
conhecimento ou também por tensão para responder determinadas perguntas. Analisamos também
as repetições, contradições e outros, buscando delinear o lugar que o sujeito professor ocupa na
educação do campo.

O participante gravou e regravou as suas respostas quantas vezes foram necessárias, entretanto
não fiz nenhuma intervenção na formação das respostas. É importante destacar que nomes fictícios
foram utilizados a fim de resguardar a identidade dos professores participantes da pesquisa.
Posteriormente, os depoimentos foram transcritos, conforme as Convenções de Transcrição, tais
como elaboradas por Guilherme (2008).

Após a transcrição, a análise começou mostrando as vozes que repetiam os mesmos dizeres de
todas as professoras sobre a mesma pergunta, mas com palavras diferentes. Por exemplo, todas elas
afirmaram que não estudaram gênero na faculdade, porém as mesmas destacam que usam gênero
na sala de aula. Essa contradição na análise foi chamada de tensão, uma vez que elas não se sentem
confortáveis em afirmar que não usam o gênero, porque dizer que não usa gênero em tempos que
esta prática é tão falada tantos nos documentos, tais como PCN e outros, seria afirmar que estão
ensinando de maneira “errada” do que recomendam os documentos oficiais. Lembrando que este
trabalho aponta para a tensão que o professor demonstra quando se sente interpelado a falar de um
assunto que não domina ou até mesmo se filiar a uma teoria que desconheça só para estar de acordo
com as novas propostas de ensino e aprendizagem.

Os gestos analíticos podem ser introduzidos nas sequências discursivas (SD) abaixo:

A falta do gênero: a lacuna na formação: “Eu não me lembro de é de ouvir na minha, na minha
graduação em si a palavra isso de gêneros.” Vejamos as sequências a seguir:

26
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

(SD01) Aline: “Eu não me lembro de é de ouvir na minha, na minha graduação em si a palavra isso
de gêneros eu sei que teve (risos) isso aí eu tenho certeza que teve “masss” é essa conceituação de
gêneros ela não não me vem à memória.”
(SD02) Aline: “Como o conceito de gênero foi abordado na sua formação universitária? Eu não me
lembro de como né?”
(SD03) Aline: “Existe diferença de como você aprendeu gênero na graduação e na pós-graduação?
Mas não fiz pós-graduação. No curso de formação de professores eu não tenho como falar também
porque eu fiz alguns cursos, mas nenhum abordando o gênero.”
(SD04) Neusa: “O conceito de gênero ele foi abordado de maneira meio que superficial não foi
muito (pausa) falado apesar de a gente ter trabalhado diferentes tipos de gêneros na formação, mas
não foi passado de maneira tão separadinha digamos assim tão é (pausa) conceitual.”
(SD05) Neusa: “Após a conclusão do meu curso eu fiz já uma pós-graduação em supervisão e
inspeção e essa temática não foi muito abordada nessa pós-graduação não.”
(SD06) Aline: “Para você o gênero é uma estrutura fixa ou mutável? Comente. Eu sinceramente não
sei responder essa pergunta. Pausa. Eu acho, eu acho que o gênero é mutável, ele pode ter variações
sim. Mas, não sei aprofundar sobre isso.”

Pudemos observar, na análise do corpus, que os professores de LI e LP, ao enunciarem sobre


gêneros, deixam vir à tona discursos que os constituem, sem que eles tenham controle sobre
o que dizem. A negação do sujeito em relação ao conceito de gêneros está sempre presente nas
vozes e, ao examiná-las, procuramos compreender como elas se entrecruzam e se constituem
interdiscursivamente e dialogam.

Há, frequentemente, em seus dizeres, uma tentativa de reafirmar o quanto a teoria dos gêneros
é positiva para o ensino, mas, quando analisamos os dizeres, o resultado é um silenciamento do que
eles entendem por gênero. Trata-se de dizeres contraditórios e não dizeres que possam revelar a
incompletude do sujeito no que tange aos conceitos da teoria dos gêneros no ensino de línguas, o
que pode acenar para possíveis práticas lacunares na sala de aula.

Podemos perceber a formação lacunar nas SDs 01, 02, 03, 05, em que as professoras afirmam
que não receberam formação nenhuma sobre gêneros em três momentos da sua vida profissional: na
graduação elas não se lembram, posteriormente não fizeram pós-graduação e em outros cursos de
formação nenhum abordou teorias sobre gêneros. Ainda na sequência 06 é possível notar o quanto
é angustiante para esta professora falar sobre gêneros quando ela afirma: “Eu sinceramente não sei

27
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

responder essa pergunta. Pausa”. Mas não consegue deixar de responder e prefere dizer o que ela acha
sobre se gênero é mutável ou não.

Mesmo que não possamos afirmar como é a prática do professor na sala de aula apenas por
depoimentos coletados, podemos acenar que, quando o professor escolhe se inscrever em uma
descrição mais superficial sobre os gêneros, isso não é simplesmente uma insegurança em relação à
parte conceitual do gênero, mas um silenciamento que revela vozes lacunares na formação.

Nesse sentido, o lugar discursivo que os professores se inscrevem para falar sobre gêneros é de
negação, ou seja, para se protegerem de um possível equívoco sobre a teoria de gêneros, declaram
e repetem que não receberam formação. As pausas também são comprometedoras, pois o professor
pensa e tenta construir uma resposta, mas ao final a palavra “acho”, ao conceituar gênero, conclui
direcionamento de sentido de incerteza desses professores. Questionamo-nos se, sendo tenso para
os professores conceituar gênero, não é ainda mais complicado preparar uma aula para ensinar
línguas usando os gêneros.

Os não dizeres sobre a teoria dos gêneros no ensino de língua portuguesa e língua
inglesa: “Fale porque usa o gênero, porque ele é um facilitador.”

(SD07) Aline: “Em sua opinião o que o uso de gêneros implicará para o ensino de línguas? Acredito
que um ensino mais contextualizado. Claro que vai depender de como cada professor vai trabalhar
o gênero. Mas, eu acredito que sim.”
(SD08) Aline: “O ensino de gêneros e citado nos PCN´s? Sim. Comente. Ishi. Teria que pegar os
PCN´S agora para ver né. Mas, que eu me lembre se eu não estou enganada. Os gêneros são citados
nos PCN´S como facilitador do aprendizado dos alunos. Como parte importante do aprendizado.”
(SD09) Aline: “Se você é um professor de língua inglesa, como defenderia usar gêneros nas aulas
de língua inglesa, ah eu defino como um meio muito bom. É que facilita bastante o entendimento
dos alunos.”
(SD10) Aline: “Fale porque usa o gênero, porque ele é um facilitador.”
(SD11) Neusa: “Em minha opinião o gênero é (pausa) vai implicar num maior aprendizado, num
leque maior de aprendizado desse aluno, é de extrema importância.”
(SD 12) Neusa: “O aluno com certeza precisa usar os gêneros na aquisição de uma língua, de uma
segunda língua ou até mesmo para o aprimoramento da língua portuguesa.”

28
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Questionamo-nos em que medida o fato de ser tão confuso para os professores se inscreverem
em um lugar que eles não conhecem para falar sobre a teoria dos gêneros pode ser desastroso para
os alunos aprenderem línguas por meio do uso desta teoria. Afinal, é possível perceber que palavras
tais como “facilitador”, “maior aprendizado”, “ensino mais contextualizado” são usadas apenas para
justificar que ensinam de acordo com os discursos e teorias mais modernas de ensino e aprendizagem
reproduzidas em documentos oficiais, tais como os PCN, mas estão esvaziadas de sentido, uma vez
que as professoras não explicam como será facilitado e o que elas irão fazer para contextualizar
realmente este ensino por meio dos gêneros. Portanto, elas querem se inscrever nessa teoria, mas
não conseguem nem falar de maneira mais completa sobre o assunto.

A tensão em relação à concepção de gêneros discursivos e/ou textuais: “Eu sinceramente


não sei responder essa pergunta”.

Percebe-se a inscrição na contradição pelo mecanismo enunciativo da denegação: “Não! Foi


decisão própria, não teve exigência não, apesar de que os materiais didáticos tentam de alguma forma
colocar isso”. Os gêneros são desafios para os professores na contemporaneidade e isso acompanha a
prática profissional do sujeito, dessa forma eles se sentem obrigados a filiar-se ao discurso promovido
pela teoria dos gêneros para ensinar línguas, tanto que a professora afirma que aderiu à teoria dos
gêneros por decisão própria. Porém, muitas vezes, algumas contradições escapam nos seus dizeres,
por exemplo, quando revelam que de certa forma os livros didáticos estão caminhando para essa
prática, o que demonstra um discurso de certa forma impositivo por parte dos materiais didáticos,
por exemplo, na SD13.

(SD13) Aline: “Inicialmente você usou ensino de gêneros por iniciativa própria ou foi exigência
de alguma escola? Não! Foi decisão própria, não teve exigência não, apesar de que os materiais
didáticos tentam de alguma forma colocar isso.”
(SD14) Aline: “Então a gente tem primeiro assim que ver essa contextualização assim. Os alunos
têm muita dificuldade, muita dificuldade de leitura, muita dificuldade e eu penso que o papel, como
se configura, vai de professor para professor, eu, por exemplo, eu procuro trabalhar os gêneros até
mesmo porque o gênero é aquilo que vai ser o aluno.”
(SD15) Aline: “Que lugar o gênero ocupa na sua prática. Eu acho que é pouco, muito pouco por
causa dessa sistematização que eu acredito que eu tenho que fazer.”

29
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

(SD16) Aline: “Caso você trabalhe com gêneros quais gêneros você mais utiliza? Eu acredito que
eu utilize mais a carta, biografia, ah (pausa) porque aí trabalha o passado né. Folheto de viagem né,
folheto turístico, é essas coisas. Esses.”
(SD17) Aline: “Para finalizar, você gostaria de receber um curso de formação em relação aos usos
dos gêneros? Sim porque foi uma coisa que despertou a meu interesse a partir dessa pesquisa e eu
acho que é uma coisa que pode contribuir para a minha prática e para os meus alunos

Destaco a questão que os professores responderam às perguntas do questionário AREDA sobre


gêneros sozinhos com os seus gravadores, então perguntas, como por exemplo: “tem que fazer um
sentido para ele, não é?” ou “não vou usar gêneros pra isso, não é?”, durante as respostas são compostas
de significações, ou seja, o sujeito revela a voz da insegurança no que tange à teoria dos gêneros.

A partir dos questionários analisados, vê-se o livro didático como o lugar do não, da falta, ou seja,
em vez do livro ser um apoio para o professor no ensino de língua, é um recurso descontextualizado.

(SD18) Aline: “Porque ele não está adaptado à realidade do aluno. Nem o da zona urbana e muito
menos os da zona rural.”
(SD19) Neusa: “Eu particularmente não vejo grande diferença é entre os gêneros usados nas zona
rural e urbana não.”
(SD20) Ana: “Não há diferença de ensino por ser zona rural ou zona urbana. Eu trabalho com os
mesmo gêneros no mesmo ambiente.”
(SD21) Neusa: “Eu procuro trabalhar os gêneros quase que da mesma maneira da zona urbana,
apesar de que, uma alteração outra tem que ter, com relação à por exemplo a textos trazer
algumas realidades é produção de textos baseado na vivência desse aluno, da família, no trabalho,
normalmente o trabalho é diferente da zona urbana.”
(SD22) Aline: “Existe diferença de gêneros para serem ensinados no ensino de língua da zona
rural e da zona urbana? Aí a gente chega num ponto interessante. Por quê? Porque que eu vou
diferenciar os meninos da zona urbana da zona rural? E aí a gente tem que saber o motivo real da
gente diferenciar. Eu não posso diferenciar menosprezando os meninos.”

Nas SDs 18, 19, 20, 21 e 22, os professores negam as diferenças existentes entre o ensino na
zona urbana e na zona rural. Percebemos que essa voz ressoa em vários momentos, como se tivesse
receio de menosprezar o aluno da zona rural, então ele coloca o aluno em um padrão de igualdade
com o estudante da zona urbana. Porém, sabemos que as condições de produção são diferentes, ou
seja, a própria organização social e física é distinta e a forma de se relacionar com o meio também.

30
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Embora os dizeres das professoras apontem para uma inscrição de igualdade entre o ensino na
zona rural e o na zona urbana, percebemos que isso se dá pelo desejo do professor buscar um ensino
público com as mesmas condições físicas e pedagógicas entre a Educação do Campo e do ensino na
cidade (SD 22:?: Por quê? Porque que eu vou diferenciar os meninos da zona urbana da zona rural? E
aí a gente tem que saber o motivo real da gente diferenciar. Eu não posso diferenciar menosprezando os
meninos), mas problematizamos a questão de o professor assumir para ele a responsabilidade de
promover essa igualdade, sendo que as condições de produção não são as mesmas.

O professor se inscreve na ilusão de que, se ele ensinar nos mesmos moldes da zona urbana,
conseguirá os mesmos resultados na zona rural, porém ignora os saberes locais dos alunos e em
momento algum considera a possibilidade de o estudante escolher permanecer na zona rural.
Problematizamos, pois, o apagamento da constituição familiar, cultural, financeira que o aluno
constrói no campo, sendo que sabemos o quanto é importante também motivá-lo a permanecer e
transformar a zona rural.

Além disso, identificamos também a inscrição em um processo de cidadania no ensino


na zona rural: “Ensinar na zona rural é gratificante a partir daí percebemos a luta dos
alunos em acordarem mais cedo”.

Ao analisar a discursividade acerca do conceito de gênero no ensino de línguas nos depoimentos


dos professores de LP e LI, observamos a inscrição em lugares discursivos outros para se constituir
professor da zona rural. Discursos que perpassam o ensino de línguas e seus dizeres coexistem com
outros discursos, por exemplo, o discurso de promover a cidadania enquanto professores na zona
rural. Vejamos as sequências discursivas a seguir:

(SD23) Aline: “O que me motivou a princípio de ir para a zona rural é, era o transporte porque na
época eu não tinha carro e então eu achava que o transporte era um facilitador. Em segundo lugar
o número pequeno de alunos por turma... Né uma população que eu tenho uma identificação que é
o pessoal da zona rural.”
(SD24) Ana: “Fui então à remoção a procura de uma escola que fosse mais perto e a que tinha lá
é essa da zona rural.”
(SD25) Neusa: “O que me motivou a trabalhar na zona rural foi o público né, os alunos que eu acho
que é uma clientela de fácil relacionamento. Mais fácil que o da cidade, é, porque eu gosto também
de estar, é, em regiões na zona rural porque questões pessoal mesmo, eu acho mais motivador,
interessante e tudo mais.”

31
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

(SD26) Cárita: “Ainda na questão um, eu ingressei na zona rural há quatro anos, ingressei, fui
substituir uma professora que estava de licença e gostei muito do trabalho na zona rural pelo
tamanho do grupo, pela escola, pela resolução de problemas e isso me motivou a ir para lá trabalhar
na zona rural com a língua portuguesa.”
(SD27) Marina: “Então no começo eu estranhei bastante porque eu estava acostumada com aquele
ritmo na cidade, não é, mas hoje eu posso dizer assim que eu estou, eu me adaptei bem, que eu estou
bastante adaptada e que tanto é que eu não me vejo dando aula na cidade mais, né, não me vejo
mais numa sala com mais de trinta alunos na cidade.”
(SD28) Aline: “Além do papel social né também dos alunos porque a maioria deles vê a escola né
como um lugar um lugar onde eles se encontram como os amigos né e acaba que você também se
torna amigo desses desse alunos. Então para mim ensinar na Zona Rural tem todo esse contexto,
significa muito para os alunos e significa muito para nós também, é muito enriquecedor.”
(SD29) Ana: “Ensinar na zona rural é gratificante a partir daí percebemos a luta dos alunos em
acordarem mais cedo, a lida dos pais, as dificuldades encontradas por eles. ”
(SD30) Neusa: “Pra mim ensinar na zona rural é (pausa) bem importante porque(pausa, suspiro)
os alunos normalmente são bem (pausa) desprovidos de entretenimento de (pausa) muitas vezes a
situação deles é mais difícil que o pessoal da zona urbana. Normalmente são pessoas de famílias
mais simples.”
(SD31) Marina: “Eles não tem acesso a eventos culturais, e mais difícil para eles ter que vir na
cidade, é longe, não é? Áreas de lazer também pra eles assim, uma quadra uma pista de skate, é, não
tem, eles não tem. Então acaba que esses espaços eles encontram na escola.

Ademais, pelos dizeres, percebemos que também é tenso falar dos alunos na zona rural, uma
vez que o professor ainda possui a visão ultrapassada do aluno excluído da sociedade. Porém,
apesar das dificuldades ainda sofridas pelos alunos da zona rural, é possível afirmar que, com as
novas tecnologias para plantio e colheita, por exemplo, e a globalização muitas comunidades estão
deixando a representação de inferioridade e exclusão e caminhando para outros no contexto de
ensino-aprendizagem. Diante disso, o professor também precisa sair desse lugar e não colocar mais
o aluno da zona rural em igualdade com o da zona urbana, mas pesquisar os saberes locais, construir
um planejamento ou preparar aulas que aproveitem as especificidades da zona rural.

Diante disto, as repetições são recorrentes e muitas vezes as fugas das perguntas também, o que
resulta em contradições, pois o professor afirma algo e em seguida nega, uma resposta é dada e logo
depois é contradita. As dificuldades sofridas pelos alunos são até citadas quando eles se inscrevem
em um processo de cidadania e identificação pela educação do campo, porém, quando falam na

32
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

teoria dos gêneros, como, por exemplo, ao preparar aulas e outras questões pontuais que tangem ao
processo de ensino e aprendizagem, há um apagamento nos saberes locais dos alunos.

Por outro lado, quando se trata do processo de ensino e aprendizagem de línguas e a teoria dos
gêneros, o professor nega as diferenças em seus dizeres e destaca que não há distinção entre preparar
uma aula sobre gêneros na zona rural e na zona urbana. Mas, negar essas diferenças significa denegar
os saberes locais dos alunos da zona rural, bem como denegar os gêneros circulantes na educação do
campo e as suas particularidades. Afinal, nos dizeres, percebemos que os professores consideram o
ensino na zona rural meramente como uma passagem rumo ao ingresso no ensino na zona urbana e
não pelo viés de transformar a Educação do campo e fortalecer as relações instauradas no meio rural.

Considerações Finais

As inscrições discursivas em um processo de afetividade e da cidadania é o que perpassa os


dizeres dos sujeitos quando enunciam sobre gêneros e ensino de línguas na zona rural. Finalmente,
o discurso assistencialista do professor como fonte de conhecimento que se constrói e reconstrói
quando acompanha o sofrimento do aluno da zona rural. Os não dizeres são as vozes preponderantes
na discursividade que eles constroem quando falam de ensino na Zona Rural. Dessa forma, o gênero
é concebido nos dizeres de professores de LP e LI de maneira esvaziada e, por vezes, tensa, como
se o professor se sentisse na obrigação de conceber os gêneros como parte integrante do ensino e
aprendizagem, mas sem domínio em relação às concepções de gênero ou as maneiras de colocarem
essa teoria na prática.

Portanto, existe uma relação de alteridade entre os sujeitos envolvidos no processo de


ensino e aprendizagem de línguas, mediada pela palavra, que leva o professor a compreender a
sua subjetividade a partir do olhar do outro. Assim, ao enunciarem sobre os processos discursivos
instaurados no ensino de línguas na Educação no campo, as vozes que os sujeitos professores de LI e
LP do ensino público da zona rural evocam são construídas pelo movimento de inscrição dos sujeitos
em processos de cidadania no ensino na zona rural.

Assim, os dizeres dos sujeitos quando enunciam sobre gêneros e a relação com o ensino na
zona rural são perpassados por um embate de vozes constituído de apagamentos, esquecimentos,
contradições e denegações. Pois, muitas vezes, o professor atua em uma rotina na sala de aula
perpassada por diversos desafios tais como baixos salários, falta de estrutura física, em especial
o professor que trabalha no campo frequentemente chega cansado na escola porque enfrenta um
percurso longo e perigoso para ir ao trabalho que envolve rodovia, estradas com buraco, poeira,
atolamento no período de chuvas.

33
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Isso faz com que o professor não consiga visualizar a “flor” do ensino, como cita Cavalcanti (1999)
que, neste caso, pode ser entendida como os saberes locais, bem como não percebe os apagamentos
que comete, entre outros erros que muitas vezes são “pedras” para o ensino e aprendizagem de
línguas.

No dia-a-dia da sala de aula (de línguas) há tantas questões urgentes e


emergentes que o professor, geralmente, não tem tempo para observar o que
acontece e muito menos a sua prática. Problemas surgem, são contornados
da melhor forma possível, nada é registrado e a vida segue.

É como caminhar todos os dias na mesma rua. Acabo não vendo a flor que
acabou de nascer, e só me dou conta da pedra no meu caminho quando
tropeço e, quem sabe, caio. (CAVALCANTI, 1999, p. 180)

Retomo aqui as palavras de Rakotomalala (1976) para endossar este trabalho: “O jovem no
meio rural só quererá continuar na terra se os rendimentos aumentarem, numa palavra, tornando-o
apto a responder às legítimas aspirações da juventude”. Diante disso, reforço o nosso sentimento de
incompletude e o nosso desejo de que esta pesquisa sirva para incentivar novos estudos na Educação
do Campo. E, como nos lembra Moita Lopes (2006), um pouco de utopia faz bem. Afinal, é necessário
idealizar um ensino-aprendizagem de qualidade no qual os alunos e professores da zona rural sejam
ouvidos, valorizados e respeitados, minimizando, assim, a marginalização e exclusão social dos
sujeitos que vivem no campo.

Referências

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência


da Linguagem. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

CALDART, R. et al. (Org.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica
Joaquim Venâncio, Expressão Popular. 2012.

CAVALCANTI, M. C. Reflexões sobre a prática como fonte de temas para projetos de pesquisa para a formação
de professores de LE. In: ALMEIDA FILHO, J. C. P. (Org.). O professor de língua estrangeira em formação.
Campinas: Pontes, 1999.

CELANI, M. A. A. A relevância da Linguística Aplicada na formulação de uma política educacional brasileira. In:
FORTCAMP, M.B.M. & TOMTCH, L. (Ed.) Aspectos da Linguística Aplicada. Florianópolis: Insultar, p. 17- 32.

34
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

COOK-GUMPERZ, J. Toward a sociolinguistics of education. University of California, Bekerley (mimeo), 1987.

DIAS, et al. (Org.). Gêneros textuais e(ou) Gêneros discursivos: uma questão de nomenclatura? Instituto
de Educação, Universidade de Lisboa, Portugal. INTERACÇÕES. NO. 19, PP. 142-155 (2011). ISSN: 1646-2335.
http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/viewFile/475/429

GUILHERME, M. F. F. Competência oral-enunciativa em língua estrangeira

(inglês): fronteiras e limites. Tese de Doutorado. PUC – São Paulo, 2008.

GUILHERME, M. F. F. Bakhtin e os Estudos em Linguística Aplicada. In: STAFUZZA, G. (Org.). Slovo – O Círculo
de Bakhtin no contexto dos Estudos Discursivos. Curitiba: Editora Prismas, 2012, p. 59-78.

KLEIMAN, A. Agenda de pesquisa e ação em Linguística Aplicada: problematizações. In: MOITA LOPES, L. P.
(Org.). Linguística Aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola,
2013, p. 39 - 58.

MOITA LOPES, L. P. Afinal, o que é Linguística Aplicada? In: MOITA LOPES, L. P. Oficina de Linguística
Aplicada: A natureza social e educacional dos processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas:
Mercado de Letras, 1996, p. 17-25.

PENYCOOK, A. A Linguística Aplicada dos anos 90: em defesa de uma abordagem crítica. In: SIGNORINI, I.;
CAVALCANTI, M (Orgs.). Linguística Aplicada e Transdisciplinaridade. Campinas: Mercado da Letras, 1998.

Rakotomalala, P. in A Educação no Meio Rural. Moraes Editores, Lisboa, Portugal: 1976.

RODRIGUES, R. H. Os gêneros do discurso nas aulas de Língua Portuguesa: (re) discutindo o tema. In:
NASCIMENTO, E. L.; ROJO, R. (Orgs.). Gêneros de texto/discurso e os desafios da contemporaneidade. Campinas:
Pontes Editores, 2014. p. 35-54.

RODRIGUES, R. H. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem: a abordagem de Bakhtin. In:


MEURER, J. L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (Org.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola,
2005. p. 153-183.

ROJO, R. Materiais didáticos no ensino de línguas. In: MOITA LOPES, L. P. da. (Org.). Linguística Aplicada na
Modernidade Recente - Festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. p. 163-196.

ROJO, R. Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas. In: MEURER, J. L.; BONINI, A.;
MOTTA-ROTH, D. (Org.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola, 2005.

SERRANI-INFANTE, S.M. Abordagem transdisciplinar da enunciação em segunda língua: a proposta AREDA.


In: SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. C. (Orgs.). Linguística Aplicada e Transdisciplinaridade. Campinas:
Mercado de Letras, 1998. p. 143-167

VALADARES, F. B.; BRAGANÇA., M. L. L. Bakhtin e Linguística Aplicada: ações metodológicas na construção do


ensino de língua portuguesa. Revista Percursos Linguísticos, v. 2, n.6, 2012, p. 29-75.

35
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

UM OLHAR LINGUÍSTICO-DISCURSIVO
ACERCA DO PROCESSO DE ENSINO-
APRENDIZAGEM EM CONTEXTO DE
EDUCAÇÃO PRISIONAL

Walkiria Felix Dias

Introdução

Na data em que este trabalho é escrito, o mundo enfrenta um dos maiores desafios da
modernidade: a pandemia causada pela Covid-19. Até o momento, já houve mais de 100.000 óbitos
causados pelo vírus. Até o momento, o isolamento social é o único método eficaz para conter a
disseminação da doença e, por isso, atividades antes realizadas presencialmente, como aulas,
estão suspensas ou acontecendo remotamente, através de mídias digitais. Por isso, proponho neste
capítulo, discutir, por um viés linguístico-discursivo, algumas das representações1 acerca do que
seja ensinar e aprender em contexto de educação prisional (EP), tendo em vista que, tratar dessa
modalidade educacional, em uma época em que ela está interrompida, é indispensável para que sua
importância não seja esquecida.

O encarceramento no Brasil

Historicamente, o Brasil é um dos países que mais utiliza o encarceramento, como forma de
abafar conflitos sociais internos. Somos hoje, a terceira maior população carcerária do mundo.

1 Presentes na pesquisa descrita em Dias (2020), “Representações discursivas de professores de línguas sobre o ensino-
-aprendizagem em contexto de educação prisional”.

36
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) do ano de 2019, há cerca


de 755.274 pessoas presas. Esse dado considera os regimes: provisório, fechado, aberto, semiaberto
e também as medidas de segurança e os sentenciados em tratamento ambulatorial. Entretanto,
temos ainda, instituições socioeducativas de privação de liberdade destinadas aos jovens infratores
e indivíduos cumprindo pena em abrigos ou internados em clínicas de reabilitação. Sendo assim,
é possível afirmar que existem quase um milhão de pessoas privadas de liberdade no país. Em um
contexto de necessário isolamento social para a proteção da vida, essa situação se agrava, tendo
em vista que segundo o mesmo levantamento, havia em dezembro de 2019, apenas 442.349 vagas2.
Dessa forma, antes que houvesse a crise mundial sanitária, tais instituições já não eram capazes de
oferecer dignidade às pessoas encarceradas durante o cumprimento de suas penas.

Como alternativa ao déficit de vagas e devido à necessidade de que fossem elaborados planos
para conter a disseminação da doença dentro dos presídios, foi proposta, no início deste ano, a PL-
2351/20203. O projeto de lei sugeria a utilização de contêineres para separar presos contaminados
e que fossem do grupo de risco, do restante da população carcerária. Entretanto, diversos4 órgãos
e entidades nacionais se manifestaram contra a medida, tendo em vista a ineficiência dessas
estruturas quanto a garantia de ventilação e temperatura adequada, água corrente acessível em
tempo integral e do cumprimento da recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre
o distanciamento social mínimo de dois metros entre os custodiados que estariam reclusos nesse
ambiente. Essa viabilidade também foi repudiada através de uma nota5 assinada por ex-ministros
de Estado da Justiça e ex-presidentes do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
(CNPCP). A medida, considerada por esses especialistas como uma nova forma de tortura dentro das
instituições penais, não foi aprovada na ocasião, mas é o primeiro indício no trabalho aqui proposto,
da importância dos estudos da linguagem para a manutenção da dignidade humana.

De acordo com Celani (2008), a linguagem atravessa todos os setores sociais, políticos e
econômicos e tem papel instrumental nas relações humanas. Dessa forma, são as construções
linguísticas acerca do encarceramento que possibilitam, tanto a existência de tal proposta, quanto
seu veto. Ainda, é importante salientar que, segundo Bakhtin (1929/2002), a palavra é um signo
ideológico, nunca neutro, quando enunciada e, por isso, compreender as representações discursivas

2 Considerando apenas os regimes provisório, fechado, aberto e semiaberto. Outras modalidades de encarceramento não
fizeram parte do Infopen/2019, tendo em vista que esse é um levantamento apenas de informações penitenciárias.
3 https://www.camara.leg.br/noticias/660453-projeto-preve-instalacao-de-conteineres-em-presidios-para-separar-
-grupo-de-risco/
4 Entre eles estão a Defensoria Pública da União e de diversos Estados, o IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Cri-
minais, o IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa e a Comissão de Política Criminal e Penitenciária da OAB/SP.
5 https://www.conjur.com.br/dl/oficio-defensorias-cnpc-conteiner.pdf

37
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

sobre determinado contexto, pode contribuir para que entendamos o que legitima projetos em
desacordo com o cumprimento dos direitos humanos, como o sugerido pela PL-2351/2020, que
visava a utilização da estrutura de contêineres.

Conforme o relatório “Tortura em tempos de encarceramento em massa” realizado pela


Pastoral Carcerária em 2018, o sistema penal brasileiro é a principal máquina responsável pela
institucionalização da tortura e do genocídio, funcionando a partir de uma lógica racista e patriarcal,
enquanto tentativa de amenizar as consequências da profunda desigualdade social no país. O
documento também denuncia as penitenciárias enquanto instituições em defesa dos interesses de
uma elite brasileira que se apropria da mão de obra barata e precarizada dessas pessoas reclusas.

Ainda sobre o encarceramento em massa de pessoas em situação de vulnerabilidade, promovido


pelo Estado brasileiro, cabe ressaltar que esse não é um problema da atualidade. O trabalho de
Arbex (2013), importante referência para a luta antimanicomial, remonta a história da cidade de
Barbacena, onde mais de 60.000 pessoas morreram e outras milhares foram torturadas. Segundo
a autora, no contexto em questão, a morte se transformou em lucro, uma vez que os corpos eram
vendidos para universidades brasileiras desenvolverem pesquisas. De acordo com a pesquisadora,
apesar de se tratar de uma instituição construída para lidar com pessoas diagnosticadas com
doenças mentais, cerca de 70% dos internos não tinham transtornos psíquicos. Eram, na verdade,
uma parcela da população que não se encaixava nos padrões sociais da época, como alcoólatras,
prostitutas, homossexuais, mulheres violentadas, pessoas tímidas, crianças e inclusive, pessoas que
incomodavam outras com maior poder. Os internos, em sua maioria, eram obrigados a ficar nus e
submetidos a condições precárias de sobrevivência como a falta de alimento, superlotação, trabalho
forçado, acorrentamento, dentre diversos outros tipos de tortura.

O projeto político de encarceramento, responsável pelo que aconteceu e ainda acontece no


Brasil, é reforçado por representações sociais que ecoam e legitimam essa histórica prática do Estado
brasileiro de privar de liberdade e de humanidade, pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Nesse contexto, segundo Dias (2020), a educação prisional surge como contraponto à essa realidade,
na medida em que, a partir de conteúdos educacionais, os professores envolvidos tentam devolver
a dignidade a essas pessoas e prepará-las para uma possível futura reinserção na sociedade. Dessa
forma, discutir e problematizar algumas representações sobre essa modalidade educacional, aqui
neste trabalho especificamente sobre os processos de ensino-aprendizagem na EP, é uma das formas
em que nós, Linguistas Aplicados filiados ao Discurso, podemos contribuir para com a defesa dos
direitos humanos.

38
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Afinal, quem está envolvido na educação prisional?

De acordo com Dias (2020), menos de 40% da população carcerária já concluiu o período escolar
básico e isso é problemático, na medida em que a escola é o espaço legitimado para a formação
cidadã e apenas cerca de 10% desses indivíduos participam de atividades educacionais dentro
das instituições prisionais. Segundo o mesmo estudo, os professores que atuam no contexto, são
vinculados às escolas penitenciárias por meio de contratos de trabalho, sem garantia de estabilidade
ou planos de carreira, podendo ser dispensados a qualquer momento. Tal conjuntura inviabiliza
não apenas que a educação prisional possa efetivamente auxiliar na formação cidadã, reabilitação e
possível futura ressocialização das pessoas presas, mas também a possibilidade de que professores
especializados atuem na EP.

Algumas contribuições da Linguística Aplicada

A Linguística Aplicada (LA) é uma área de estudos eminentemente inserida no contexto social
e preocupa-se com o papel da linguagem em seus diversos contextos, sejam eles institucionais,
sociais, econômicos ou educacionais. Dessa forma, Celani (2008) postula que essa disciplina articula
várias áreas do saber que se preocupam com a linguagem. Já Rojo (2006) postula que, neste campo
de pesquisa,

Há uma insistência discursiva no tema da solução de problemas


contextualizados, socialmente relevantes, ligados ao uso da linguagem
e ao discurso, e na elaboração de resultados pertinentes e relevantes, de
conhecimento útil a participantes sociais em um contexto de aplicação
(escolar ou não escolar). (ROJO, 2006, p. 258)

No mesmo sentido, autores como Pennycook (2003) e Moita Lopes (2006) defendem que a
LA deve se esforçar para desnaturalizar conceitos socialmente cristalizados, para que não apenas
compreendamos o mundo ao nosso redor, mas também possamos revigorá-lo. Para Moita Lopes
(2006), essa necessária (re)invenção da realidade é possível quando nos atentamos às vozes que
são socialmente silenciadas por se encontrarem no “Sul”, à margem da sociedade. Sendo elas,
provenientes de pessoas que sofrem da falta de liberdade, igualdade e solidariedade, como, conforme
Dias (2020), é o caso dos professores da EP e das pessoas privadas de liberdade.

39
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Cabe complementar que, de acordo com Bohn (2005), a linguagem é responsável pela construção
de identidades sociais e pela demarcação da desigualdade social. Sendo assim, compreender os
discursos que constituem essas vozes, é fundamental para construção de uma sociedade que preze
pela justiça social.

Além disso, o estudo aqui realizado tem como base uma articulação entre a LA e a AD, amparado
em Brito e Guilherme (2013). Conforme as autoras, esse entrelaçamento teórico possibilita a adoção
de uma postura inter/transdisciplinar que pode auxiliar na promoção de “diálogos, confrontos,
deslocamentos e ressignificações em ambas as áreas” (BRITO E GUILHERME, 2013, p. 26).

O olhar discursivo que fundamenta a discussão

Neste trabalho, o discurso ao qual me refiro está atrelado à Análise do Discurso (AD) advinda
tanto do estudo das teorias do Círculo de Bakhtin, quanto do estudo das teorias formuladas por
Michel Pêcheux. Guilherme (2008) aponta a possibilidade da articulação de tais perspectivas, posto
que se relacionam no que diz respeito a uma concepção de língua enquanto instituição social e
que por se tratar de um sistema, é passível de deslizamentos. Além disso, ainda de acordo com os
autores, essa língua só é devidamente abordada, se considerada sua heterogeneidade.

O enunciado também é um importante conceito para os estudos em AD. Guilherme (2008) a


esse respeito, reconhece convergências entre esses teóricos ao conceituá-lo:

A enunciação, em Bakhtin/Volochinov (1929/1995), é a unidade de base


da língua, é compreendida como uma réplica do diálogo social, ou seja,
é concebida como uma relação que se instaura entre os interlocutores
no contexto situacional, o que pode ser percebido, nas palavras do autor,
quando afirma que a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos
socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este
pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual
pertence o locutor. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/1995:112)17. A noção
de enunciação em Pêcheux, como já visto anteriormente, é concebida
como a realização linguageira permeada por condições de produção sócio-
histórica-ideológicas. Dessa forma, o ‘social’ está embutido nas percepções
teóricas de ambos em relação ao conceito de enunciação. (GUILHERME,
2008, p. 61)

40
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Sendo assim, o conceito de enunciado presente nos trabalhos destes autores nos permite
afirmar que não há neutralidade no discurso, tendo em vista que o que é enunciado, depende não
apenas dos falantes, mas também das condições de produção. Essas que balizam o que pode ou não
ser dito em dado momento e são constituídas pelo que já atravessou linguisticamente determinado
contexto sócio-histórico-ideológico.

De acordo com Dias (2020), considerar os estudos discursivos demonstra a necessidade de se


(re)pensar e aprimorar práticas escolares, a exemplo, a EP, posto que, segundo tais concepções, uma
vida em sociedade requer não apenas a tomada de posição, mas também marca a necessidade de
que as pessoas pensem sempre em seus papéis em relação ao que acontece ao seu redor. Reflexões
fundamentais a um contexto que lida com pessoas encarceradas.

A origem dos dados

Para discutir o ensino-aprendizagem na educação prisional por um viés linguístico-discursivo,


utilizarei algumas representações presentes nos depoimentos de três professores que já atuaram no
contexto prisional. Eles serão chamados de Antônio, Luciana e Ana, para que suas identidades sejam
preservadas.

Os dizeres foram coletados por Dias (2020), por meio da proposta AREDA6. No contexto em
questão, os professores de pesquisa receberam várias perguntas relacionadas à EP e a partir da
análise de suas respostas, que foram separadas em sequências discursivas (SD) e com base em meus
gestos de interpretação, advindos de uma articulação teórica entre a LA e a AD, foram delineadas as
representações aqui apresentadas e discutidas.

Algumas representações sobre o ensino-aprendizagem de línguas na EP

Em Dias (2020), o ensino-aprendizagem de línguas na EP é representado a partir do


questionamento da utilidade dessa modalidade de ensino, da possibilidade de que ela colabore para
a construção cidadã e de que a escolarização possa contribuir para uma possível reinserção social dos
alunos. O trabalho reconhece que existem algumas questões que atravessam essas representações,
como o discurso neoliberal, produtivista e capitalista e também o modelo de escola conteudista, que
emerge de uma sociedade inscrita nesses discursos. Ainda, aponta a necessidade de uma educação
e ensino de línguas que considere e respeite a pluralidade e diversidade brasileira, reafirmando a

6 Análise de Ressonâncias Discursivas em Depoimentos Abertos, proposta em Serrani-Infante (1998).

41
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

importância das ciências humanas para que compreendamos e possamos traçar possíveis resoluções
para problemas sociais.

Nos depoimentos coletados há uma representação de que o ensino-aprendizagem de línguas


precisa ser útil e rapidamente palpável, o que é uma das características problemáticas de escolas
inseridas no contexto do neoliberalismo. Os professores também representam esse processo,
como uma forma de amenizar as consequências das diferenças sociais. Além disso, alguns aspectos
presentes no corpus apontam para o fato de que condições históricas e sociais ocasionam uma
sensação de não pertencimento do aluno da EP, mesmo no que diz respeito à sua própria língua
materna e, por isso, não se consideram aptos ou dignos de aprender uma LE. Isso pode ser observado
a partir das (SD1-3, 19-21), em trechos como “não se veem saindo do país (...) perdem imediatamente
esse interesse em relação à língua inglesa” e “pela baixa auto-estima (...) e a crença de que eles vão
conseguir aprender”. A representação também pode ser percebida na fala da professora Ana, SD4,
que, ao falar de sua formação e opção por habilitação no curso de Letras, enuncia: “não fazia muito
sentido estudar uma outra língua, sem conhecer de fato a minha língua”.

SD1: Dentro desse contexto, as pessoas .. têm uma imagem do inglês, extremamente
imperialista, de que .. eles precisam aprender inglês para .. para sair do país .. ou seja, se eles
não se veem saindo do país, eles perdem imediatamente esse interesse em relação a
língua inglesa. (Antônio)
SD2: Eles nem tentam .. trazer esse entendimento, tanto pela pelo pensamento da falta de
necessidade de aprender a matéria, quanto pela, pela , ... , pela baixa auto-estima de .. e
a crença de que eles vão conseguir aprender, porque é algo muito complexo e porque é algo
difícil de ser falado. (Antônio)
SD3: Eu sinto que tem muito a ver com essa baixa autoestima dos alunos em relação a
aprender um outro idioma e deles acharem que a aprendizagem de línguas é algo comercial
e ponto. Não algo que pode trazer uma desenvoltura social, uma desenvoltura cultural, uma
desenvoltura .. geral, sabe? Uma nova visão de mundo. (Antônio)
SD4: Eu acabei optando por a língua portuguesa, porque para mim, não fazia muito sentido
estudar uma outra língua, ((...)), sem conhecer de fato a ! minha língua né? pelo menos,
na minha cabeça. (Ana)
SD5: O que eu mais escutei lá.. “Ai, eu sou a professora de inglês” ... “Credo professora, mas eu
não sei falar nem português eu vou saber falar inglês. (Luciana)
SD6: Eles já se colocam tão inferiores que .. que o português, que eles nem sabem falar o
português, que se coloca numa situação tão, assim, inferior às outras pessoas, que eles

42
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

acham que é uma ilusão, uma grande, tipo uma prepotência mesmo eles quererem aprender
uma língua estrangeira , … , sendo que eles não sabem de nada” (Luciana)

Sendo assim, tanto os professores, quanto os alunos revozeados por eles, vinculam o ensino-
aprendizado de línguas a uma representação de (des)pertencimento (SD1–3, 9, 11 e 13). Ora
professores de línguas escolhem sua profissão devido às suas identificações culturais, ora alunos
não se sentem aptos às discussões que podem ser proporcionadas em uma sala de LE, uma vez que
não se identificam com a linguagem legitimada e padrão, mesmo que essa seja pertencente à suas
línguas maternas.

Já na SD3, através do depoimento de Antônio, é possível pensar a necessidade da discussão


acerca das razões pelas quais é importante que todas as pessoas tenham a oportunidade de aprender
línguas estrangeiras (LE). A aprendizagem de línguas é muitas vezes representada como um
produto elitizado, que serviria tanto a um mercado turístico, quanto para que a pessoa consiga
trabalho. Pouco se fala do papel transformador que o contato com a LE proporciona e a falta desse
debate legitima a sensação de não pertencimento dos alunos ao lidar com o ensino-aprendizagem
de outros idiomas, sensação essa marcada pelo professor através da utilização da expressão “baixa
autoestima”. A falta desse debate é uma lacuna característica não apenas nas celas7 de aula, mas em
grande parte dos espaços de ensino-aprendizagem de línguas.

Outra questão levantada a partir da análise do depoimento desses professores é que, por
estarem inseridos em um mundo que demanda produtividade, tanto professores quanto alunos
reproduzem discursos que questionam a utilidade (SD4, 1, 5, 17 e 20) do conhecimento linguístico. A
representação de que a língua precisa ser útil pode ser interpretada a partir de excertos presentes
nas SD1–3, como: “aprender inglês para sair do país”, “se eles não se veem saindo do país, eles perdem
(...) interesse”, “falta de necessidade de aprender a matéria”, “deles acharem que a aprendizagem de
línguas é algo comercial e ponto”.

SD7: Porque se eles não .. não frequentam, a escola as aulas, eles perdem pontos e chance
de sair antes. Então para ele, a escola tem somente esse fim e nada na questão assim de
aprender alguma coisa e AINDA MAIS a língua estrangeira. (Luciana)

Dessa forma, é possível supor que a falta de discussão acerca das razões pelas quais aprender
uma LE é necessário não apenas legitima a representação do não pertencimento, mas também

7 Os professores participantes da pesquisa descrita em Dias (2020), nomeiam as salas de aula da EP como “celas” de aula.

43
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

legitima a representação de que a LE não é útil no contexto da EP. Essa que desconsidera a concepção
de que o contato com diferentes línguas pode oportunizar a tomada de consciência de si e do outro
dentro do mundo e melhorar a percepção e entendimento para com as diferenças. Diferenças
essas que, quando conhecidas, podem se desvincular do estranhamento e do incômodo advindo do
contato com o desconhecido e isso talvez possibilite a construção de uma sociedade mais tolerante e
que respeite a pluralidade. Por essa razão, o ensino-aprendizagem de línguas é imprescindível, não
apenas para o contexto de pessoas encarceradas, mas para toda a sociedade.

SD8: Eu acredito que , ... , a gente, a gente ainda vive um momento muito tradicional , ... , de
acreditar que a nossa consciência é a mesma consciência de todos .. a nossa percepção .. é
a mesma percepção de todos e que essa percepção uma coisa muito única. E eu acredito que
quando a gente só possui uma língua, essa percepção, ela se torna muito mais nítida
sabe. (Antônio)
SD9: Aprendizado de uma língua, seja a língua materna ou a língua estrangeira, é um exercício
de cidadania né. (Ana)
SD10: É um exercitar a mente né? Quando ele aprende a língua materna, ele entende melhor
as relações da língua portuguesa ou a língua estrangeira, também é importante né? (Ana)

Para além do debate sobre a utilidade, nas SD8 – 10, há um indício de que esses professores
acreditam que o aprendizado de uma segunda língua pode contribuir para que o sujeito compreenda
conceitos de civilidade, como em: “é um exercício de cidadania né”. Sendo assim, o ensino-
aprendizagem de línguas na EP é, então, representado por esses professores enquanto ponte para
um senso de civilidade.

SD11: Eles reproduziam um seguinte discurso: “aí, eu não sei nem falar português, vou saber
falar inglês” então eles achavam que, que já que eles não falavam de acordo .. com a norma
culta do português, eles não conseguiriam aprender uma outra língua, então eles já, já
começavam a aula .. com essa, com esse pensamento, que eles não iam conseguir aprender
outra, outra língua. (Luciana)
SD12: A relação que os meninos têm com a língua estrangeira, de ser algo totalmente distante
da , … , eles aprenderem, de eles acharem, assim, que não tem importância que eles não
precisam daquilo, que eles não conseguem. (Luciana)
SD13: Às vezes você entra na expectativa de dar uma aula super legal que ... que a troca
seja super bacana, mas eles estão totalmente chateados, bravos e irritados! e a última coisa

44
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

que eles querem naquele dia , … , é aprender qualquer outra coisa, ainda mais uma língua
estrangeira. (Luciana)
SD14: Também é importante, por trazer uma nova visão, através de um , ... , de uma explicação
da língua através de mostrar que .. a vida, ela é feita de sistemas e que dentro de uma sala
de aula, uma escola, ela é um, um sistema , ... , que você aprende, uma língua através de
um sistema! que você desenvolve .. você aprende a matemática que também é um sistema.
(Antônio)
SD15: Tanto a língua materna, quanto a língua estrangeira, a gente não se limita nela
mesma, ou seja, éh , ... , o Português, ele não vai falar só sobre gramática, Inglês não vai
falar só sobre a gramática da língua inglesa. A gente vai sempre falar sobre outros textos
.. a gente em língua portuguesa a gente pode trabalhar um texto falando sobre reprodução
de abelhas, então quando a gente ensina uma língua a gente mostra a... as várias relações
que existem entre as várias coisas, a gente causa uma interpelação no sujeito. (Antônio)

Além disso, os docentes parecem (SD1, 4, 14 e 15) estar em constante conflito com o
questionamento acerca do “lugar” dessa língua em suas vidas, ou o próprio lugar que ocupam a
partir dessas línguas. E ainda parecem se questionar sobre como a língua pode possibilitar que eles
ajudem seus alunos a encontrar espaço dentro da totalidade.

Já quando enunciam sobre a relevância do ensino de línguas, no contexto de EP, fazem projeções
quanto ao futuro do aluno da EP (SD16), já em liberdade, tendo uma certa ilusão sobre o controle dos
acontecimentos pós EP.

Há também a representação de que as temáticas das aulas precisam estar contextualizadas


com a EP:

SD16: É extremamente importante, porque é a questão mesmo da comunicação! dele saber


.. escrever, uma coisa que é importante para ele entendeu, dele conhecer gêneros, dele saber
como utilizar isso e até mesmo a língua, para ele poder falar né? de maneira que ele não vai
ser tão julgado ... por outras pessoas né ? porque eles têm que conversar com os agentes,
têm que conversar às vezes com diretores, advogados e esse tipo de coisa. (Ana)
SD17: Eu acho que é importante, porque entra como uma forma de novos! conhecimentos
entendeu ? é muitos se interessam realmente .. é a própria língua portuguesa também, se a
gente pensar numa aula .. que seja bacana, que seja dinâmica, que fuja daquele esquema né, de
cópia e responde só, essa coisa só de caderno! Caderno! Caderno! caderno, eu acho que pode ser
muito, eu acho que não, eu tenho certeza que é muito interessante e importante para aquele
aluno TAMBÉM. (Ana)

45
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

SD18: Você começa observar muita das vezes o medo .. no olhar desse aluno. A dúvida em
relação ao mundo, em relação à cultura onde ele nasceu, e muita das vezes você vê ou ele
afirmando demais ((...)) a cultura da onde ele veio, por uma questão de, de .. saudade, por
uma questão de lembrança, para meio que fugir do lugar onde eles estão. Quando você leva
uma língua, você ((...)) meio que mostra uma coisa diferente para eles, um modo diferente
de ver. (Antônio)
SD19: Porque, sei lá! eu acho muito bizarro, a gente falar, por exemplo, ensinar vocabulário
de viagem, sendo que você não ensinou, por exemplo, como você vai falar, pensando a língua
estrangeira, no caso né, como você chega no hospital, como você vai a uma farmácia, é,
mas é a minha opinião né?” (Ana)
SD20: Eu entendi a duras penas .. já! na prática .. que não adianta ficar ensinando meu aluno
conjugar verbo, verbo, verbo, verbo, verbo!, porque muitas vezes ele não ia usar aquilo de
maneira prática e muitas vezes ele não fazia noção não sabia direito escrever um bilhete!
ele não sabia direito escrever uma carta, entendeu? São coisas que eles vão usar, por
exemplo, carta! eles vão mandar para família. (Ana)

Uma outra representação que pôde ser percebida através dos depoimentos de Ana, Antônio e
Luciana é a de que a língua inglesa, enquanto habilidade extra, poderia ajudar esses sujeitos a se
reabilitarem e se prepararem para uma ressocialização (SD21). Isso talvez poderia acontecer tanto a
partir do preparo para questões linguísticas em provas de vestibulares, quanto como uma habilidade
a mais em seus currículos, que os auxiliaria a conseguir um emprego. Sendo essa entrada no mercado
de trabalho fator importante para que essas pessoas possam estar inseridas socialmente. O ensino-
aprendizagem de línguas na EP é, então, também representado por esses professores enquanto uma
ponte para a reinserção social, na medida em que, de acordo com Dias (2020), ela pode ajudar o
sujeito a tomar consciência de si no mundo e de sua própria subjetividade e, dessa forma, esse aluno
estará mais preparado para ocupar espaços na coletividade.

SD21: A relevância do ensino de línguas no sistema prisional, na minha opinião, primeiro que
eles têm que ir prestar o ENEM. (Luciana)

Aqui cabe pontuar que, segundo os depoimentos, o ensino-aprendizagem de línguas na EP não


é entendido por esses docentes enquanto um ensino de línguas com um fim em si mesma, o foco é
no emprego, na possibilidade de entrar em uma universidade, no contato com a pluralidade e não
na estrutura do idioma. Nos depoimentos de Antônio e Luciana, a língua aparece enquanto ponte
para um contato com as diferenças (SD22 - 24), mas, em um dos exemplos apresentados (SD22),

46
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

esse contato não acontece através de uma discussão aprofundada, e sim apenas por uma comparação
vocabular, diferenciando-se de Antônio, que aponta a necessidade de que os conteúdos da EP sejam
permeados por reflexões acerca das relações sociais no uso da língua (SD22 – 24).

SD22: Então falar ah, então essas palavras, elas vêm dessa língua que também tem outras
palavras acho que apresentar um outro mundo com outras possibilidades. (Luciana)
SD23: A relevância do ensino de língua nesse contexto é que você pode levar para o aluno,
uma perspectiva de vida completamente diferente, não uma perspectiva de vida, mas uma
forma de ver a vida, completamente diferente da que ele tinha, trazendo uma nova cultura
para ele e não uma .. e não de uma forma que você vai levar para ele abraçar essa cultura. Mas
que ele vai ver essa cultura e vai conseguir contrastar com a dele vai começar a entender
que existem diferentes culturas. (Antônio)
SD24: Partindo para o sentido realmente de educação libertadora, que ele consiga .. criar
sua própria língua, não verbalmente falando, mas esteticamente falando em relação à visão
do mundo. E isso é importante para um indivíduo que está dentro de do sistema prisional,
porque é nítido que tudo que as pessoas falam para uma pessoa que está nesse contexto,
faz total diferença. Porque ((...)) quando você, você vê um aluno, você sabe que na cabeça dele,
ele acredita que ele tá sozinho no meio daquilo tudo e ele começa a se ver enquanto algo
individual, algo longe do todo, algo que no meio de ((...)) de um todo, ele é algo realmente
único. (Antônio)

Em “tudo que as pessoas falam para uma pessoa que está nesse contexto, faz total diferença”, na
SD24, é possível perceber que as representações sociais e os discursos que atravessam o contexto
afetam o processo de ensino-aprendizagem na EP. Conforme Antônio, talvez levantar discussões,
na cela de aula, acerca das representações sociais que circulam sobre o contexto e como isso o afeta,
possa contribuir para que os alunos se desloquem do estado de exclusão social em que se encontram.

Tal exclusão parece também ser uma realidade prévia ao encarceramento. Luciana e Antônio,
ao enunciarem sobre o contato de seus alunos com a língua inglesa (SD25 e 26), deixam escapar o
contexto de seus alunos e de onde vieram, antes que fossem privados de liberdade. Essa condição
prévia é marcada através escolha lexical do termo “favela”, assim como a escolha de expressões
como “qualquer barraca”.

SD25: A gente tá no mundo globalizado em que em qualquer lugar em qualquer canto,


qualquer barraca, qualquer favela, chegam expressões em inglês, o nome de marcas diferentes
que eles se conhecem que não são do português, então porque , … , privar essas pessoas desse
contato. (Luciana)

47
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

SD26: A gente percebe as diferentes realidades dentro da sala de aula. E porque o contrário
do que as pessoas pensam, dentro de uma cela de aula, a gente não tem só as pessoas da
“favela”, gente , ... , tem pessoas de lugares diferentes. Então , ... , a gente tem que aprender
que cada aluno é um aluno e que cada .. um desses alunos tem uma maneira de se comportar
em relação ao que a gente tá ensinando. (Antônio)

Ainda, a SD25 aborda a globalização enquanto algo positivo. Conforme Dias (2020), nela,
Luciana representa esse processo enquanto responsável pela grande circulação de informações. Na
mesma SD, há a representação de que a EP pode contribuir para que, em certa medida, os alunos não
sejam privados, para além da liberdade, do acesso à informação. Porém, de acordo com Marinho et al.
(2016), através dos movimentos advindos da globalização, o Brasil passou a funcionar por uma ótica
neoliberal que “de um modo geral, [...] agrava a má distribuição de renda, causando efeitos perversos
e negativos no cenário social brasileiro” (MARINHO et al., 2016, p. 1). Os autores também afirmam
que tal política contribui para a intensificação das desigualdades sociais, na medida em que o estado
se abstém do investimento e interferências em setores que poderiam contribuir para a atenuação
dessas assimetrias, como a educação, o mercado de trabalho e a saúde. Instâncias que, quando
precarizadas e desassistidas, contribuem com a manutenção da falta de justiça social e também com
o aumento da violência.

Dessa forma, cabe avaliar que o neoliberalismo é um dos responsáveis pelo encarceramento
em massa que assola o Brasil. Essa política, também tem seu papel na questão da falta de acesso e
permanência na educação básica, realidade da grande maioria dos sujeitos privados de liberdade. E
por isso, discutir essa formação lacunar, em contexto de EP, é tão importante, tendo em vista que a
escola é o lugar legitimado da formação cidadã.

Afinal, como o ensino-aprendizagem na EP é representado por esses professores?

Conforme análise dos depoimentos dos três docentes e a revisão do trabalho descrito em Dias
(2020), algumas representações sobre o ensino-aprendizagem de línguas em contexto de EP são
relacionadas à possibilidade de que esse processo escolar provoque movimento, como em:

O ensino-aprendizagem de línguas enquanto,

a) ponte para um senso de civilidade;

b) ponte para a reinserção social;

c) ponte para o contato com as diferenças.

48
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Além disso, houve representações quanto à sensação de (des)pertencimento vivenciada por


esses alunos privados de liberdade, tendo em vista que não se sentem suficientemente legitimados
para ocupar os espaços do “saber a língua”. Tal questão, se relaciona também com outra representação,
a de que a língua é um “produto elitizado”. Por fim, há a representação de que, para a EP realmente
desempenhar um papel eficaz na formação civil desses alunos, os conteúdos precisam ser mais
contextualizados com as vivências dos alunos e não uma mera repetição de atividades, temáticas,
sistemas e conteúdo de escolas regulares.

Considerações Finais

A discussão aqui proposta foi realizada com base na contextualização do encarceramento no


Brasil e da EP e também nas articulações entre a Análise Dialógica do Discurso (ADD), advinda dos
estudos das teorias do círculo de Bakhtin, a Análise do Discurso de Linha Francesa (ADF), proposta
por Michel Pêcheux e a LA transgressiva e indisciplinar, sustentada em autores como Pennycook
(2003), Moita Lopes (2006), Rojo (2006) e Celani (2008). Tais entrelaçamentos teóricos foram
necessários, tendo em vista que houve a intenção de abordar e discutir, por um olhar linguístico-
discursivo, os processos de ensino-aprendizagem de línguas na EP.

Apesar de sua relevância e impacto social frente à realidade desigual de nosso país, ainda são
poucos os trabalhos que abordam o contexto. As aulas seguem suspensas devido à crise sanitária
que o mundo enfrenta no momento. Por isso, é fundamental que a importância da EP seja sempre
evidenciada e discutida. Dessa forma, podemos contribuir para que ela não apenas resista, mas
também para possibilitar a construção de materiais que ofereçam suporte teórico-metodológico aos
professores da área.

Referências

ARBEX, D. 1973. Holocausto brasileiro. 1. Ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013. ISBN 978-85-8130-156-3

ASAAC, Pastoral Carcerária. Relatório. Tortura em tempos de encarceramento em massa. São Paulo, CNBB,
2018.

BAKHTIN. M. 1929. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do Método Sociológico na


Ciência da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9. Ed. São Paulo: Hucitex. 2002.

BOHN, H. As exigências da pós-modernidade sobre a pesquisa em linguística aplicada no Brasil. In: FREIRE, M.;
ABRAHÃO, M. H. V. & BARCELOS, A. M. F. (Orgs.) Lingüística Aplicada e Contemporaneidade. Campinas:
Pontes. ALAB, 2005. p. 11- 23.

49
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

BRITO, C. C. de P.; GUILHERME, M. de F. F. Linguística Aplicada e Análise do Discurso: possíveis entrelaçamentos


para a constituição de uma epistemologia. Cadernos Discursivos, Catalão-GO, v.1, n. 1, p. 17-40, ago./dez.
2013. (ISSN 2317-1006 – online).

CELANI, M. A. A. A relevância da Linguística Aplicada na Formulação de uma Política Educacional Brasileira.


In: Aspectos da Linguística Aplicada: estudos em homenagem ao professor Hilário Inácio Bohn. 2 ed.
Florianópolis: Insular, 2008.

DEPEN, Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias.


Brasília, Ministério da Justiça e Segurança Pública. 2019.

DIAS, W. F. Representações discursivas de professores de línguas sobre o ensino-aprendizagem em


contexto de educação prisional. 2020. 145 p. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) - Universidade
Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2020. DOI http://doi.org/10.14393/ufu.di.2020.5. Disponível em: https://
repositorio.ufu.br/handle/123456789/29312. Acesso em: 16 ago. 2020.

MARINHO, A. et al. Aspectos e influências do neoliberalismo e da globalização no Brasil: seletividade de


classes. Repositório Institucional Uniceub, Brasília, 2016. Disponível em: https://repositorio.uniceub.br/jspui/
handle/235/8849. Acesso em: 9 jan. 2020.

MOITA LOPES, L. P. Lingüística Aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm
orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. Por uma Lingüística Aplicada indisciplinar. São Paulo:
Parábola, 2006. pp. 85-107.

PENNYCOOK, A. Linguística Aplicada pós-ocidental. In: CORACINI, Maria José; BERTOLDO, E. S. O Desejo da
teoria e a contingência da prática. 1. ed. Campinas: Mercado das Letras, 2003. p. 21-59.

ROJO, R. H. R. Fazer Lingüística Aplicada em perspectiva sócio-histórica: privação sofrida e leveza de


pensamento. In: MOITA-LOPES, L. P. (Org.) Por uma Lingüística Aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola,
2006a. pp. 253-276.

SERRANI-INFANTE. Abordagem Transdisciplinar da enunciação em segunda língua: a proposta AREDA. In:


SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. C. (Org.), Linguística Aplicada e Transdisciplinaridade. Campinas: Mercado
de Letras, p. 143-167, 1998b.

50
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

UMA PROPOSTA ENUNCIATIVO-


DISCURSIVA DE ENSINO DE GRAMÁTICA
NO CONTEXTO DO IDIOMAS SEM
FRONTEIRAS

Jéssica Sousa Borges


Cristiane Carvalho de Paula Brito

Introdução

O Programa Idiomas sem Fronteiras (IsF) foi criado pelo MEC em 2012, a fim de preparar
linguisticamente estudantes e servidores de universidades públicas brasileiras para participar de
ações de mobilidade. Os professores em formação, participantes do programa, oferecem cursos de
idiomas para fins acadêmicos, que são planejados e desenvolvidos com foco em uma habilidade
linguística ou gêneros discursivos (comunicações acadêmicas, escrita de parágrafos, estratégias
de leituras, entrevistas, compreensão escrita de artigos, dentre outros) voltados para o contexto
acadêmico. Dessa forma, o programa pretende contribuir para o processo de internacionalização e,
por consequência, para a consolidação de uma política linguística no ensino superior público.

Além disso, o IsF tem desempenhado importante papel na formação de futuros professores de
línguas estrangeiras, os quais dispõem de um ambiente de trabalho propício ao seu desenvolvimento
profissional. Ao discutir atividades desenvolvidas pelas coordenadoras pedagógicas com o grupo de
professores bolsistas de inglês no NucLi1-IsF de uma universidade pública mineira, defendemos a
relevância do IsF como espaço de residência pedagógica para o professor de línguas, pelo fato de
1 Núcleo de línguas.

51
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

i) permitir a revisitação e problematização das teorias e metodologias


estudadas na graduação; ii) encorajar os professores a não dicotomizar a
relação teoria-prática; iii) promover um ensino de línguas que respondesse
a demandas locais, ao mesmo tempo em que considera as implicações
globais de se falar inglês; iv) propiciar a produção de planos de aula e
material didático de forma individual e colaborativa; v) oportunizar o
desenvolvimento da competência enunciativa-discursiva sobre a/na língua
estrangeira; vi) propiciar a resolução de problemas de natureza diversa;
vii) oportunizar o gerenciamento de conflitos (como as relações de poder
assimétricas em sala de aula); viii) contribuir para o desenvolvimento de
relações interpessoais; e ix) responder às especificidades de um campo de
atuação para o professor de línguas. Há de se ressaltar ainda a contribuição
do programa no sentido de redimensionar no Brasil o ensino de línguas
para fins acadêmicos, por meio do oferecimento de uma variedade de cursos
voltados para a capacitação linguística da comunidade acadêmica. (BRITO;
CÓRDULA, 2020, p. 46)

Enquanto um programa que colabora com a democratização do ensino de língua estrangeira


dentro da universidade, o IsF oferece cursos de língua inglesa (LI) para toda a comunidade acadêmica
e conta com diferentes perfis de estudantes das mais diversas áreas científicas. Dessa forma, há, no
geral, um coro muito diverso de estudantes de graduação ou pós-graduação, com conhecimentos e
experiências diferentes, que são agrupados conforme o nível de proficiência de acordo com o Quadro
Europeu Comum de Referência para Línguas (QECR), nas salas de aula do IsF.

Este capítulo corrobora as considerações de Brito e Córdula (2020), ao discutir resultados de


uma pesquisa de iniciação científica desenvolvida no contexto de ensino-aprendizagem de LI, no IsF.
A pesquisa teve como objetivo geral refletir sobre o ensino de gramática no contexto de English for
Academic Purposes (EAP), com base em uma perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem. Mais
especificamente, propusemo-nos a: i) discutir uma proposta enunciativo-discursiva de ensino de
gramática no contexto de EAP; ii) desenvolver e implementar uma proposta enunciativo-discursiva
para o ensino de gramática nesse contexto; e iii) analisar e problematizar a referida proposta. A
investigação foi desenvolvida pela primeira autora (professora bolsista do programa na época), sob
a supervisão da segunda (coordenadora pedagógica no IsF).

A escolha do tema da pesquisa adveio da necessidade de se contemplar aspectos linguísticos nos


cursos ministrados no IsF e de se considerar o ensino sob uma perspectiva que não se esgotasse no

52
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

estudo da língua como um fim em si mesma, mas que a considerasse como materialidade discursiva,
heterogênea, constitutiva dos sujeitos e marcada pela incompletude. Nesse sentido, diríamos, pois,
que a proposta intenta resistir a discursos hegemônicos, sobretudo no âmbito do ensino de línguas
para fins específicos, o qual é, tradicionalmente, marcado por um viés instrumentalista.

Em termos de organização, iniciamos com a discussão sobre as bases conceituais do EAP. Em


seguida, discutimos a concepção de língua(gem) e gramática que fundamenta a presente pesquisa.
Na próxima seção, explicitamos os percursos metodológicos do estudo, apresentamos as análises e
discutimos os resultados. Finalizamos com algumas considerações sobre possíveis desdobramentos
da investigação realizada.

English for Academic Purposes: bases conceituais

Antes de abordarmos algumas bases conceituais do EAP, cumpre-nos fazer uma breve
contextualização sobre o English for Specific Purposes (ESP), campo do qual deriva o EAP. A
consolidação do ESP como disciplina na área de ensino de línguas estrangeiras se dá por volta dos
anos 70, em razão de três principais fatores, conforme apontam Hutchinson e Waters (1987)2. O
primeiro se refere ao desenvolvimento da economia mundial nos anos 1950 e 1960, que contribui para
o crescimento da ciência e tecnologia, demandando o conhecimento de uma língua internacional.
Nas palavras dos autores:

O conhecimento de uma língua estrangeira era geralmente considerado como


indício de uma educação integral, mas poucos realmente questionaram por
que ele era necessário. Aprender uma língua era, por assim dizer, sua própria
justificativa. Mas, à medida que o inglês se tornou a língua internacional
aceita da tecnologia e comércio, criou-se uma nova geração de alunos que
sabiam especificamente por que estavam aprendendo um idioma - homens
de negócios e - mulheres que queriam vender seus produtos, mecânicos que
tinham que ler manuais de instrução, médicos que precisavam acompanhar
os desenvolvimentos em sua área e toda uma gama de alunos cujos cursos
incluíam livros e periódicos disponíveis apenas em inglês. Todos esses e

2 Para uma discussão sobre a consolidação do ESP no Brasil, sugerimos o texto ESP in Brazil: history, new trends and
challenges (RAMOS, 2008).

53
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

muitos outros precisavam do inglês e, o mais importante, eles sabiam por


que precisavam3. (HUTCHINSON; WATERS, 1987, p. 6)

O segundo fator diz respeito ao deslocamento de um foco mais descritivo nas pesquisas
em Linguística para um centrado na comunicação e, portanto, no uso da língua em contextos
específicos. O último fator se refere aos desenvolvimentos na psicologia educacional, a qual ressalta
a importância dos aprendizes (com suas diferentes necessidades e interesses) e suas atitudes para
com a aprendizagem.

Hutchinson e Waters (1987) argumentam que o ESP não consiste no ensino de variedades
especializadas de inglês e deve ser visto como uma abordagem de ensino de línguas centrada nas
necessidades do aprendiz. Dudley-Evans e St John (1998), por sua vez, apontam características
absolutas e variáveis para definir o ESP. Como características absolutas, eles destacam que o ESP: é
desenhado para atender às necessidades do aprendiz; utiliza a metodologia e atividades subjacentes
às disciplinas que atende; e está centrado na língua, habilidades e gêneros apropriados a essas
atividades. Quanto às características variáveis, os autores afirmam que o ESP pode estar relacionado
a disciplinas específicas; pode usar uma metodologia distinta da utilizada no ensino de inglês para
fins gerais; tende a ser desenhado para aprendizes adultos e em nível intermediário ou avançado.
Dudley-Evans e St John (1998) também salientam que a interação professor-estudante tende a ser
diferente da que se configura em aulas de inglês para fins gerais. E, em termos da especificidade dos
cursos ESP, eles defendem que se considere um continuum dos cursos mais gerais aos mais específicos.

Quanto ao EAP, propriamente dito, pode-se afirmar que ele é tradicionalmente visto como uma
das duas principais áreas do ESP, sendo a outra o EOP (English for Occupational Purposes). Hyland
(2006) salienta que o termo English for Academic Purposes apareceu pela primeira vez em uma
coletânea de estudos editados por Cowie and Heaton em 1977, após ter sido cunhado por Tim Johns
em 1974. O crescimento dos mercados globais, a expansão do inglês como língua de divulgação
científica, bem como a internacionalização e globalização das instituições de ensino superior são
fatores que incidiram na consolidação do EAP.

3 Nossa tradução do original: “A knowledge of a foreign language had been generally regarded as a sign of a well rou-
nded education, but few had really questioned why it was necessary. Learning a language was, so to speak, its own
justification. But as English became the accepted international language of technology and commerce, it created a
new generation of learners who knew specifically why they were learning a language – businessmen and – women who
wanted to sell their products, mechanics who had to read instruction manuals, doctors who needed to keep up with
developments in their field and a whole range of students whose course of study included textbooks and journals only
available in English. All these and many others needed English and, most importantly, they knew why they needed it”
(HUTCHINSON; WATERS, 1987, p. 6).

54
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

No Brasil, há que se ressaltar a contribuição do Programa Idiomas sem Fronteiras para a expansão
do EAP, por meio: do oferecimento de cursos para fins acadêmicos em várias línguas estrangeiras
para a comunidade universitária e externa; da ministração de exames gratuitos de proficiência
linguística à comunidade universitária, da realização de inúmeros seminários e congressos; do
desenvolvimento de pesquisas em diferentes níveis; da publicação acadêmica; do aperfeiçoamento
e valorização de professores em formação para atuar no ensino de línguas para fins específicos; da
produção de material didático; da realização de intercâmbios com instituições internacionais de
ensino; e da consolidação de políticas linguísticas nas instituições de nível superior participantes
do programa4.

No que diz respeito às especificidades do EAP, Ding e Bruce (2017) apontam cinco campos de
pesquisa que contribuíram para o desenvolvimento do escopo teórico do EAP e influenciaram o
desenvolvimento de currículos, materiais didáticos e práticas pedagógicas dentro da área. São elas:
Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), Teoria dos Gêneros, Linguística de Corpus (LC), Letramentos
Acadêmicos e EAP Crítico. Passamos a uma breve descrição das contribuições de cada linha, no
sentido de explicitar como elas têm informado o EAP.

A LSF, desenvolvida por Michael Halliday, concebe a língua como um sistema semiótico que
produz sentidos e prioriza o seu uso social em contextos. Segundo Ding e Bruce (2017), a LSF
pode contribuir com o EAP ao fornecer análises refinadas sobre características linguísticas em
contextos sociais ou disciplinares específicos, que, por sua vez, podem, por exemplo, auxiliar no
desenvolvimento da competência textual.

A Teoria dos Gêneros se configura como a mais influente linha de pesquisa na constituição de
uma base teórico-metodológica para o EAP. Apesar de compreender diferentes compreensões do que
seja gênero e apresentar distintas abordagens de análise e categorização dos textos, ao investigar
como os gêneros textuais funcionam, em determinados contextos, em termos de seus propósitos
comunicativos, essa teoria pode contribuir para o desenvolvimento da competência discursiva dos
sujeitos.

A LC se trata de uma metodologia de coleta e análise de dados linguísticos produzidos por


falantes reais, em situações comunicativas autênticas (isto é, não produzidas para fins de análise).
Ding e Bruce (2017) destacam a contribuição da LC para o EAP no que diz respeito às pesquisas
com o léxico em contexto acadêmico, apontando, por exemplo, a frequência de ocorrência de

4 Informações detalhadas sobre o histórico, produções e pesquisas do programa podem ser encontradas em http://isf.
mec.gov.br/historico-botoes/pesquisas-e-relatorios. Atualmente o IsF passa por reconfigurações em sua forma de fun-
cionamento, devido à suspensão das bolsas CAPES, pelo governo federal, em 2019.

55
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

itens linguísticos específicos ou os tipos de colocação mais comuns, no caso das pesquisas sobre
concordância.

Os Letramentos Acadêmicos investigam os efeitos das relações de poder, das convenções (tidas
como naturalizadas) e das questões identitárias nas práticas de escrita acadêmica. Nesse sentido,
esses estudos contribuem para a problematização das práticas de leitura e escrita, de forma ampla,
trazendo, por exemplo, para o bojo das discussões, as políticas acadêmico-institucionais, com suas
hierarquias, culturas de aprendizagem e demandas.

Finalmente, o EAP Crítico considera as configurações hierárquicas nas sociedades e instituições,


problematizando como questões raciais, de gênero sexual, de classe, religiosas, étnicas incidem nas
práticas de linguagem e posicionam, por meio destas, os sujeitos em determinados lugares e de
determinadas formas. Suas contribuições para o EAP residem no desenvolvimento da competência
discursiva, por meio da compreensão do funcionamento de questões ideológicas e das relações de
poder constitutivas dos contextos acadêmicos.

Benesch (2001) corrobora a posição de Ding e Bruce (2017), ao apontar que o EAP tem sido
teoricamente influenciado por linguistas, linguistas aplicados, sociolinguistas, bem como pela
abordagem comunicativa, a teoria da aprendizagem e os estudos do gênero, sendo, todavia, o
currículo e a instrução as grandes ênfases da área. Segundo a autora, tais preocupações tornaram
o EAP responsivo às complexidades das instituições e dos processos de ensino-aprendizagem em
âmbito local. Assim, ainda que o EAP tenha se voltado, nos anos iniciais, para o ensino de itens
lexicais e tipos de textos presentes em contextos acadêmicos, recentemente seu foco se deslocou
para a consideração dos múltiplos sentidos atrelados aos diferentes contextos sociais.

No que tange ao currículo de cursos EAP, Flowerdew e Peacock (2001) apontam como
fundamentais os seguintes aspectos: análise de necessidades, planejamento, design curricular,
metodologia, ensino de diferentes habilidades e avaliação. Para o escopo deste trabalho, interessa-
nos fazer algumas considerações sobre os materiais didáticos e os papéis de professores e estudantes
– contemplados dentro do design curricular – e questões metodológicas.

Conforme ressaltam os autores, escolher entre materiais publicados ou feitos especificamente


para um determinado curso EAP não é tarefa fácil, todavia pode-se optar por uma alternativa híbrida,
em que os materiais são selecionados de acordo com sua pertinência com as propostas das aulas.
Outra escolha diz respeito ao uso de material autêntico ou não, o que, a nosso ver, pode ser definido
com base no argumento anterior. Em qualquer caso, a escolha do material precisa responder ao
contexto em que serão utilizados (FLOWERDEW; PEACOCK, 2001, p.182).

56
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Outro aspecto importante, no desenho curricular de um curso EAP, refere-se aos papéis de
professores e estudantes. Ao mesmo tempo em que se espera que os professores adaptem suas
propostas pedagógicas às necessidades dos alunos e se tornem mais familiarizados com a linguagem
das disciplinas destes, espera-se que os aprendizes desenvolvam autonomia no processo de
aprendizagem, o que é feito ao se solicitar que os estudantes assumam a responsabilidade por sua
aprendizagem, investigando, por exemplo, os recursos que lhes estão disponíveis dentro e fora da
academia (FLOWERDEW; PEACOCK, 2001, p.182).

No que diz respeito à metodologia do EAP, apesar da recusa de uma metodologia específica –
como se nota na literatura da área de ESP – pode-se observar o uso de metodologias frequentemente
inovadoras ou especializadas nos contextos ESP/EAP. Flowerdew e Peacock (2001) afirmam que

Os profissionais de EAP estão preocupados com o fato de que os objetivos


de aprendizagem e as atividades em que seus aprendizes se engajam sejam
significativos em relação ao objetivo específico de sua disciplina alvo. Isso
tem resultado em uma ênfase em vários tipos de aprendizagem baseada em
tarefas e no uso de materiais autênticos5. (FLOWERDEW; PEACOCK, 2001,
p. 183)

Uma importante distinção dentro do EAP é a que diz respeito à especificidade dos cursos, ou
seja, quando se trata de cursos mais gerais de EAP (conhecidos como English for General Academic
Purposes) ou mais específicos (os chamados English for Specific Academic Purposes).

Hyland (2006) destaca que, numa abordagem mais geral, os professores tendem a isolar
habilidades, formas linguísticas e atividades de estudo comuns às disciplinas, tais como: assistir
palestras, participar de seminários, ler artigos, escrever ensaios e dissertações, a escrita de resumos,
apresentações, dentre outras. Por outro lado, em uma abordagem mais específica de EAP, assume-se
que as convenções e habilidades entre diferentes disciplinas sejam maiores que suas semelhanças e
que é preciso atender às distintas demandas. Nesse sentido,

A questão da especificidade, portanto, desafia os professores de EAP a se


posicionarem acerca de como concebem a linguagem e sua aprendizagem

5 Nossa tradução do original: “EAP practitioners are concerned that the learning goals and activities that their learners
engage in are meaningful in relation to the specific purpose of their target discipline. This has resulted in an emphasis
on various types of task-based learning and the use of authentic materials” (FLOWERDEW; PEACOCK, 2001, p.183).

57
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

e a examinarem seus cursos à luz desse posicionamento. Isso nos força a


indagar se existem habilidades e características da linguagem que sejam
transferíveis em diferentes disciplinas ou se devemos nos concentrar nos
textos, habilidades e formas necessários para os alunos em disciplinas
distintas6. (HYLAND, 2006, p. 9)

Na próxima seção, discutimos a concepção de língua(gem) e de gramática que fundamenta a


proposta desenvolvida no projeto de iniciação científica e que, a nosso ver, faz coro com as tendências
que abandonam perspectivas meramente instrumentalistas de EAP. Em seguida, discutimos a
proposta desenvolvida para dois cursos ministrados no âmbito do IsF.

Concepção enunciativo-discursiva de gramática

Travaglia (2005), na conhecida obra Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de
gramática no 1º e 2º graus, aponta três concepções de gramática, a saber: gramática normativa,
gramática descritiva e gramática internalizada. A primeira é tida como um manual de regras a serem
seguidas pelos que desejam se expressar de forma adequada. Trata-se de uma visão pautada na
prescrição e que opera com os conceitos restritos de ‘certo’ e ‘errado’, sendo a gramática concebida
de forma estática, “como algo definitivo e absoluto” (p. 26). A segunda, afastando-se da noção de
erro, centra-se na descrição dos fatos da língua, considerando agramatical como aquilo que não é
contemplado por alguma variedade linguística. Nessa acepção, sabe gramática quem “é capaz de
distinguir, nas expressões de uma língua, as categorias, as funções e as relações que entram em
sua construção, descrevendo com elas a estrutura interna e avaliando sua gramaticalidade” (p. 27).
A última concepção, por sua vez, considera a gramática como as regras que o falante lança mão
nas situações comunicativas, ela “corresponde ao saber linguístico que o falante de uma língua
desenvolve dentro de certos limites impostos pela sua própria dotação genética humana, em
condições apropriadas de natureza social e antropológica” (TRAVAGLIA, 2005, p. 28).

Travaglia (2005) argumenta, com base em Halliday, McIntosh e Strevens (1974), que o ensino
de gramática pode se dar a partir de três tipos principais: i) o prescritivo, cujo objetivo é promover
a substituição dos padrões de atividade linguística do aluno por aqueles considerados aceitáveis;
ii) o descritivo, que visa explorar o funcionamento da língua, considerando-a em suas variedades; e

6 Nossa tradução do original: “The issue of specificity therefore challenges EAP teachers to take a stance on how they
view language and learning and to examine their courses in the light of this stance. It forces us to ask the question
whether there are skills and features of language that are transferable across different disciplines or whether we should
focus on the texts, skills and forms needed by learners in distinct disciplines” (HYLAND, 2006, p. 9).

58
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

iii) o produtivo, que almeja ampliar os recursos linguísticos que o aluno possui, desenvolvendo sua
competência comunicativa. Apesar de o trabalho de Travaglia (2005) estar voltado ao ensino da língua
materna, suas considerações são válidas também para se pensar o ensino de uma língua estrangeira,
cuja abordagem da gramática pode se dar em um continuum de um ensino mais prescritivo a um mais
produtivo.

Contudo, ao defendermos uma concepção enunciativo-discursiva de ensino de gramática,


refutamos uma visão meramente instrumentalista ou comunicativista de língua no intuito de
abranger as relações de poder que se (des)velam na tomada da palavra e que engendram o tecido
discursivo. Ademais, compreendemos que enunciar é se implicar em processos de alteridade, na
impossibilidade mesma de dizer(-se) sem o(s) outro(s).

Para Bakhtin, “as relações dialógicas são absolutamente impossíveis sem relação lógico-
semântica, mas não são irredutíveis a estas e têm especificidade própria” (BAKHTIN, 1963/2008, p.
10). Tal afirmação adquire sentido dentro de uma complexa teia teórica que relaciona noções como
dialogismo, polifonia, sentido, alteridade, ideologia, compreensão responsiva-ativa, dentre inúmeras
outras, que sustentam uma visão de língua(gem) como prática social, constituída e constituinte por/
de sujeitos sócio-histórico e ideologicamente situados. É nessa teia que se situa nossa compreensão
de gramática. Entendemos, pois, que reduzir a língua(gem) a um conjunto de regras abstratas ou a
recursos semióticos que transmitem mensagens é ignorar a constituição do próprio sujeito como
instância heterogênea, inconclusa e polifônica.

Nesse sentido, nossa proposta advoga por um ensino de gramática, nos cursos de EAP, que
considere sua potencialidade enquanto mecanismo que cria possibilidades enunciativas e produz
efeitos de sentidos. A gramática, nessa perspectiva, mobiliza, pois, as relações dialógicas, a rede de
discursos já-ditos, escamoteando-os, problematizando-os, corroborando-os.

Pois todo discurso concreto (enunciação) encontra aquele objeto para o


qual está voltado sempre, por assim dizer, já desacreditado, contestado,
avaliado, envolvido por sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado
pelos discursos de outrem que já falaram sobre ele. O objeto está amarrado
e penetrado por ideias gerais, por pontos de vista, por apreciações de
outros e por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra
neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem,
de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações
complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com

59
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar


em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão,
influenciar todo o aspecto estilístico. (BAKHTIN, 2010, p. 86)

Ilustremos essa citação de Bakhtin (2010) com um breve gesto de análise sobre o uso da voz
passiva em uma manchete no site do jornal The New York Times, em junho de 2020, a qual reporta
um caso de violência contra um homem negro que aconteceu na Dinamarca, como se vê na Fig. 1:

Figura 1- Manchete The New York Times.

Fonte: https://www.nytimes.com/2020/06/30/world/europe/denmark-bornholm-race.html. Acesso em: 14 de


agosto de 2020.

Na notícia, podemos observar que o homem negro (black man), ocupando sintaticamente o
lugar de sujeito paciente, é evidenciado em detrimento do apagamento do agente da violência,
no caso, um homem branco. A voz passiva é usada para enfatizar o que aconteceu com a vítima
negra, tirando da equação o agente da ação, o agressor branco. O enunciado The police insist it wasn’t
about race (a polícia insiste de que não se trata de raça), todavia, estabelece uma tensão de vozes na
manchete, pois perturba (porque põe em cena) toda a rede de relações dialógicas que o enunciado it
wasn’t about race evoca e que não se restringe ao que foi dito pela instituição militar acerca do caso
em questão. O enunciado funciona, pois, dialogicamente com outros que poderiam ser formulados
como This time it wasn’t about race (Dessa vez não foi pela questão da raça) ou Some people say it
was about race, but it wasn’t (Algumas pessoas dizem isso, mas não foi pela questão da raça). Nesse
sentido, o enunciado na negativa dá mais força ao enunciado na voz passiva ao tentar apagar, no fio
do discurso, a violência sofrida (mais uma vez) por um homem negro pelo uso da força de um homem
branco.

60
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

É preciso ressaltar que não se trata aqui de procurar a verdade do episódio ocorrido, mas
de considerar as implicações sociais que as possibilidades de certas formas de dizer mobilizam.
Frequentemente, o ensino da voz passiva se restringe à explicação sobre a inversão do objeto direto
com o sujeito e sobre a mudança verbal requerida, sem explorar, entretanto, os efeitos de sentido e
o funcionamento dialógico dessa estrutura gramatical.

No âmbito de cursos EAP, isso tende a se acirrar haja vista o desejo de impessoalidade e
objetividade que perpassa, por exemplo, discursividades sobre a escrita acadêmica. Contudo, uma
concepção enunciativo-discursiva de gramática rejeita quaisquer pretensões de neutralidade nos
processos de interação verbal, uma vez que enunciar implica em nos posicionarmos em relação ao
outro, bem como posicioná-lo em relação a nós. Nas palavras de Molon e Viana (2012),

/.../ se um enunciado concreto sempre é resposta a outro anterior e abre-se


para respostas de outros enunciados futuros, ele, como resposta, sempre
está marcado por uma atitude valorativa do enunciador. É a isso que se pode
compreender por posicionamento. Sem se posicionar, o enunciador não está
apto a responder coisa alguma. E como a responsividade é fundamental na
teoria do Círculo, logo o posicionamento é compulsório – consciente ou
não. (MOLON; VIANNA, 2012, p. 157)

Os efeitos de sentidos evocados pelos enunciados não se dão apenas pelo entendimento da
forma com que estes se organizam gramaticalmente, mas pelo lugar que se situam, isto é, a interação
verbal na qual existem. Ademais, entendemos que as escolhas gramaticais e lexicais são feitas a partir
dessa situação social imediata que o locutor se encontra e não fora/apesar dela, não sendo, pois,
interessante analisá-las isoladamente. É na interação verbal – na concretude da enunciação – que se
podem analisar as escolhas gramaticais e lexicais feitas pelos falantes e, portanto, compreender seus
posicionamentos. Essa escolha, todavia, não é sinônimo de controle do dizer pelo sujeito, não apenas
porque os sentidos têm sempre a possibilidade do deslize, mas também porque as escolhas dos
falantes (conscientes ou não) apontam para discursos, enunciados ditos antes e que são mobilizados
na interpretação. Nas palavras de Puzzo (2012):

/.../ os enunciados podem ser semelhantes, mas nunca se repetem em


função das novas circunstâncias e do interlocutor a que se destinam e, por
isso, o enunciador encontra-se sintonizado com o momento sócio-histórico

61
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

de sua enunciação, aguardando respostas de seu interlocutor. (PUZZO,


2012, p. 164)

No nosso entendimento, as escolhas gramaticais e lexicais que são feitas pelos falantes estão
condicionadas ao meio social e, portanto, são sensíveis a transformações. Dessa forma, através do
fenômeno da interação verbal, com todos os seus conflitos ideológicos e sócio-históricos, podemos
analisar um sistema gramatical que compõe, em sua materialidade linguística, um enunciado único
e irreproduzível, uma vez que só através da enunciação é possível enxergar a concretude vida da
língua. Além disso, por estas escolhas estarem suscetíveis a transformação, seus efeitos de sentido
são “irredutíveis a uma só possibilidade, apesar de em determinados contextos enunciativos haver
sentidos predominantes” nas construções discursivas (DI FANTI, 2003, p. 98).

Há ainda de se considerar, para o escopo deste trabalho, que o sujeito-aprendente de uma


língua estrangeira já se constitui sujeito na/pela língua materna, cujos modos de (se)dizer não
encontram correspondência unívoca na língua outra. Assim, aprender uma língua estrangeira é
sempre um processo de encontro-confronto e uma forma de se tornar outro. Concordamos com Aiub
e Rodrigues (2019), ao afirmarem que

/.../ a língua estrangeira não surge ao sujeito como totalmente nova (mas
pode dar a ele este efeito), tampouco é apenas um redizer da língua materna
(como se fosse apenas uma substituição lexical). A língua estrangeira é
o lugar do qual o sujeito diz estabelecendo outras redes de significação
(semelhantes ou não às da língua materna), transformando seus modos de
dizer. Assim, parte-se do pressuposto de que existe um conjunto de modos
de dizer do sujeito que são constituídos a partir da inscrição deste sujeito
em uma língua primeira. (AIUB; RODRIGUES, 2019, p. 197)

Apesar do efeito de objetividade produzido, sobretudo por práticas de escrita acadêmica,


entendemos que é preciso que o estudante compreenda que tomar a palavra em uma língua
estrangeira implica em filiar-se a certas discursividades e em representar-se a si e ao outro pela
língua(gem), sendo os processos de significação sempre opacos e sujeitos ao equívoco.

Feitas essas considerações, passamos, agora, a discutir nossa proposta enunciativo-discursiva


de gramática.

62
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Por uma proposta enunciativo-discursiva de ensino de gramática

Esta pesquisa teve caráter qualitativo-intervencionista, uma vez que, além de propor uma
discussão sobre o ensino de gramática no contexto de EAP, também contemplou o desenvolvimento
de uma proposta enunciativo-discursiva de ensino de gramática para cursos de EAP, ministrados
pela professora-pesquisadora no IsF. Em um primeiro momento, foram feitas discussões teóricas no
que tange à perspectiva enunciativa-discursiva de linguagem e ensino de linguagem, bem como os
pressupostos teóricos de ensino de gramática, seguidos pela elaboração de material que condissesse
com a perspectiva adotada.

O corpus da pesquisa foi constituído de: (i) propostas de ensino de EAP elaboradas pela
professora-pesquisadora; (ii) planos das aulas ministradas e materiais complementares, e (iii)
diários de campo das aulas ministradas. Para análise e problematização das atividades pedagógicas
propostas pela professora-pesquisadora em formação, foi feito o cotejamento entre o corpus
mencionado e a fundamentação teórica que embasa nosso olhar para essa pesquisa.

A partir dos objetivos elencados pela ementa dos cursos, desenvolvemos uma proposta de
ensino de hedging language, ou cautious language, que, no contexto acadêmico, consiste no uso de
uma linguagem mais cautelosa que preserva a imagem do pesquisador, falante ou escritor, e atenua
discursos feitos no âmbito da academia. Através do uso de hedging, o sujeito modaliza seu discurso a
fim de conseguir mais credibilidade e aceitação dos seus interlocutores. Briz descreve hedging como

um mecanismo retórico para convencer, conseguir um benefício, persuadir


e, ao mesmo tempo, para cuidar das relações interpessoais e sociais ou
evitar que estas sofram algum tipo de menoscabo. Mais concretamente, a
mencionada estratégia consiste linguisticamente em diminuir, minimizar,
mitigar, debilitar a ação e a intenção ou o efeito que estas possam ter ou ter
tido na interação, debilitação argumentativa, portanto, e em tal estratégia
estão envolvidos os falantes, os ouvintes e, inclusive, terceiros (presentes
ou ausentes). (BRIZ, 2013, p. 285)

Há de se ressaltar ainda que artigos científicos e ensaios, por se tratar de gêneros escritos,
não contam com uma imediatez comunicativa, isto é, não estão inseridos em um contexto no qual
locutor e interlocutor podem, de forma simultânea, dialogar sobre o que está sendo dito. Sendo assim,
pesquisadores usam hedging language em textos acadêmicos como uma forma de autoproteção, ao

63
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

minimizar o peso ilocutório, o papel dos interlocutores e do que foi dito e não dito, além de buscar
a aprovação do leitor.

A fim de ilustrar melhor as características desse tipo de linguagem, analisamos dois exemplos.
No primeiro caso, há o uso de hedging language em um trecho de um artigo científico da área da
Psicologia e, no segundo caso, tomamos a liberdade de usar o mesmo excerto, porém omitindo as
expressões de hedging:

Quadro 1- Exemplo de hedging language.

Growing evidence suggests that experiences of childhood maltreatment can have a profound
effect on the developing brain, leading to impaired cognitive, behavioral, affective, academic, and
social functioning.
Evidências crescentes sugerem que experiências de maus-tratos infantis podem ter um efeito
profundo no desenvolvimento do cérebro, levando a um funcionamento cognitivo, comportamental,
afetivo, acadêmico, e social comprometido. (Nossa tradução do original)
Fonte: Vasilevski; Tucker (2015)
Quadro 2- Exemplo sem o uso de hedging language.

Experiences of childhood maltreatment have a profound effect on the developing brain, leading to
impaired cognitive, behavioral, affective, academic, and social functioning. (Original modificado)
Experiências de maus-tratos infantis têm um efeito profundo no desenvolvimento do cérebro,
levando a um funcionamento cognitivo, comportamental, afetivo, acadêmico, e social
comprometido. (Nossa tradução do original modificado)
Fonte: Adaptado de Vasilevski; Tucker (2015)

Ao analisar o primeiro exemplo (Quadro 1), percebemos o uso do verbo suggests (sugere) e
do verbo modal can (pode), ao passo que no segundo exemplo há a omissão dessas duas palavras
e dos termos que as acompanham. O uso das expressões “suggests” e “can” moderam o peso da
afirmação feita pelo locutor ao deixar explícito que se trata de uma possibilidade, uma sugestão feita
a partir do contexto em que a pesquisa foi realizada, respeitando, assim, o lugar do outro ao não
fazer afirmações que possam, potencialmente, invadir territórios que fujam da alçada do locutor.

Ao estrategicamente usar as duas expressões, como mostra o exemplo do Quadro 1, o autor


atenua a afirmação e, consequentemente, consegue criar um acordo entre ele e o interlocutor
ao minimizar o efeito categórico do dizer produzido naquela interação. Sendo assim, é possível

64
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

perceber que o uso destes mecanismos linguísticos interfere diretamente na interação, portando-
se não apenas como uma atividade linguística, mas também como parte de uma atividade social,
uma vez que distancia o locutor da mensagem ao passo que o aproxima de seu interlocutor. Dessa
forma, entendemos que o autor escolhe usar uma linguagem mais cautelosa a fim de relativizar suas
considerações e soar, de certa forma, mais impessoal ao se esquivar da posição de alguém que tenha
verdades absolutas e assumir o papel de um pesquisador que tem sugestões e resultados ao invés de
verdades. Considerando que

[...] através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última


análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada
entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na
outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum
do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/2002, p. 113)

Podemos dizer que é, antes de tudo, uma representação de mim e do outro que se coloca em
cena na tomada da palavra. Mais do que uma função referencial (sobre a verdade ou não de uma
determinada pesquisa acadêmica, por exemplo), a palavra mobiliza identificações, reflete e refrata a
realidade. No caso de hedging language, sugerimos que o seu uso, ao resguardar locutor e interlocutor
de se posicionarem categoricamente em seus dizeres, pode contribuir para amenizar conflitos e
tensões no processo enunciativo, o que não significa a neutralidade da significação.

No exemplo do Quadro 2, por outro lado, percebemos que a forma como o enunciado se organiza
dá a entender que todas as pessoas que sofreram maus tratos durante a infância tiveram (ou terão
em algum momento) seu funcionamento cognitivo, comportamental, afetivo, acadêmico e social
comprometidos. Quando no segundo exemplo há a omissão das expressões atenuadoras “suggests”
e “can”, a interação entre locutor e interlocutor fica mais sujeita a conflitos e tensões, uma vez que
não há qualquer tipo de modalização do que está sendo afirmado ou autopreservação do autor, que
assume total responsabilidade do conteúdo do enunciado, tampouco há a aproximação entre locutor
e interlocutor. Neste tipo de afirmação, o acordo entre os sujeitos pertencentes à interação é desfeito
e não há a tentativa de negociação de sentidos entre as partes e, como resultado, o autor transpassa
seu território discursivo e invade o espaço do outro. Além do mais, fazer uma afirmação desse teor
pode fazer com que a discussão do texto perca a credibilidade, uma vez que, neste caso, a afirmação
muito provavelmente não condiga com a realidade e requeira uma série de evidências concretas para
que consiga se sustentar.

65
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Nesse sentido, podemos apontar, de acordo com Salager-Meyer (2005), que o uso de hedging
funciona como uma forma de preservar as características essenciais da ciência moderna: a incerteza,
a dúvida e o ceticismo. Ao evitarem fazer afirmações categóricas e que, dificilmente, podem ser
comprovadas, pesquisadores conseguem discutir propostas e resultados mais condizentes, por
exemplo, com o caráter mutável do conhecimento científico.

No que tange ao ensino de EAP, fazem-se necessários a discussão e desenvolvimento de um


programa de estudos que consiga, dentro de suas possibilidades, preparar estudantes e professores
do ensino superior para que consigam interagir criticamente com produções científicas estrangeiras.
Dessa forma, nossa proposta enunciativo-discursiva de ensino de hedging nos cursos IsF se justificou
pelo fato de que este tipo de linguagem incide nas interações entre escritor e leitor, além de ser um
mecanismo linguístico-discursivo que produz efeitos de credibilidade. Ademais, o uso de hedging
language dá ao autor a possibilidade de se resguardar e antecipar possíveis oposições às suas
afirmações ao evitar assumir total responsabilidade, preservando, assim, sua reputação enquanto
cientista e limitando, de certa forma, a culpabilização do autor que pode acontecer em caso de erros,
por exemplo.

Como discutimos anteriormente, o universo científico é mutável e está em constante


transformação. Portanto, no âmbito acadêmico, principalmente em áreas que são caracterizadas
pela ressignificação e reformulação (por exemplo, o ensino de EAP), há muitos riscos em se fazer
afirmações que soem como conhecimentos já adquiridos quando, muito provavelmente, fazem parte
de uma discussão que ainda está em andamento, ou que não são passíveis de comprovação em sua
totalidade.

Assim, percebemos que a linguagem tem um papel crucial no desenvolvimento do conhecimento


científico, uma vez que é na/pela linguagem que diferentes produções científicas são produzidas
e dialogam entre si e, consequentemente, também é pela linguagem que pesquisadores assumem
riscos e preservam suas próprias reputações no meio acadêmico.

A partir do uso de hedging language em gêneros escritos acadêmicos, sujeitos-pesquisadores


podem, por exemplo, evitar assumir responsabilidades maiores do que podem sustentar. Ademais,
através desse tipo de linguagem, é possível construir uma relação de cooperação e negociação
com o interlocutor (leitor) que acreditamos ser essencial nas interações verbais, uma vez que, de
acordo com Bakhtin/Volochinov, todo indivíduo tem um auditório social (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
1929/2002) e é a partir dele que o sujeito constrói enunciados.

66
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Essa orientação da palavra em função do interlocutor tem uma importância


muito grande. Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é
determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de
que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação
do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao
outro. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/2002, p. 113. Grifos do autor)

Portanto, filiadas à teoria da enunciação do Círculo de Bakhtin, passamos a discutir uma


proposta enunciativo-discursiva de ensino de hedging language, para cursos de escrita e leitura
acadêmica.

It appears to be likely that: ensino de hedging e escrita acadêmica

A proposta de ensino de gramática foi por nós desenvolvida para os cursos de Compreensão
Escrita: Artigos Científicos, para estudantes de nível B2 de acordo com o Quadro Comum Europeu de
Referência para Línguas (QCE), e Produção Escrita: parágrafos, para estudantes de nível A2 de acordo
com o QCE, que aconteceram no âmbito do Nucli-IsF de inglês no ano de 2018, na Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Os cursos tiveram duração de 16 horas e foram ministrados entre os
meses de agosto e setembro. Entre os inscritos nos cursos, havia estudantes de graduação e pós-
graduação de diferentes áreas do conhecimento e um professor da referida instituição de ensino
superior.

Ambos os cursos tinham como objetivo principal desenvolver um programa de estudos que
possibilitasse ao estudante reconhecer as características discursivas e léxico-semânticas de
gêneros acadêmicos, além de contar com materiais de diversas áreas do conhecimento a fim de
promover análises contrastivas de diferentes tipos de textos que compõem o universo científico.
Sendo assim, a existência desses cursos se justifica pela necessidade que há dentro da comunidade
acadêmica de criar uma política linguística que permita o diálogo com universidades estrangeiras
e, consequentemente, a troca de saberes e experiências, o que pode corroborar o enriquecimento da
ciência produzida na instituição, estreitar parcerias com instituições de outros países e auxiliar na
disseminação da pesquisa brasileira internacionalmente.

A partir das discussões feitas ao longo deste capítulo, selecionamos um conjunto de atividades
sobre hedging desenvolvido para esses cursos. A justificativa para termos usado o mesmo conjunto
de atividades para cursos de níveis diferentes se dá porque acreditamos que o estudo de hedging

67
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

language é necessário desde os estágios iniciais do ensino de EAP, uma vez que há estudos que
sugerem que falantes de inglês como segunda língua frequentemente tendem a ter dificuldade ao
diferenciar discursos com o uso de modalizações e sem o uso de modalizações, bem como usá-las
em suas próprias produções na língua alvo (MARKKANEN; SCHRÖDER, 1997). Como consequência,
esses aprendizes geralmente atribuem sentidos similares aos dois tipos de texto, o que acreditamos
ser um problema, já que o público de cursos de EAP é formado, em sua grande maioria, por sujeitos
que querem dialogar com produções científicas estrangeiras.

Todavia, o estudo de hedging é composto, também, por estruturas gramaticais que,


frequentemente, são ligadas ao ensino de inglês para níveis mais avançados (como verbos modais
e if clauses), o que pode afastar propostas de ensino de hedging de cursos de EAP para iniciantes.
Contudo, concordamos com Nunan (1998) no que diz respeito à crítica que o autor faz ao ensino de
gramática de forma linear e descontextualizada, como frequentemente vemos em materiais didáticos
de língua inglesa, na qual as estruturas sintáticas têm um momento certo para aparecer durante a
aprendizagem do estudante, como se nós, sujeitos de linguagem, pudéssemos controlar a incidência
de estruturas mais ou menos complexas no nosso dia a dia de acordo com o nível de proficiência
que nos foi designado. Pelo contrário, entendemos que as escolhas gramaticais são colocadas em
funcionamento na interação verbal e produzem sentidos nos processos enunciativos nos quais
se engajam sujeitos sócio-histórico e ideologicamente situados. Acreditamos que a língua(gem)
deve, portanto, ser estudada de forma contextualizada pela análise/produção de enunciados que se
constituem em interações verbais concretas.

Há de se ressaltar que as atividades aqui propostas foram divididas entre dois dias de aula, cada
dia com duas horas seguidas, totalizando, então, quatro horas de planejamento. Como objetivos
principais da proposta didática, era esperado que os estudantes, ao final das atividades, pudessem:

1. discutir as diferenças de efeitos de sentido entre textos com e sem hedging;

2. identificar o uso de expressões frequentemente ligadas a esse tipo de linguagem e justificar


o uso dessas expressões;

3. usar expressões de hedging para modalizar discursos acadêmicos de diferentes áreas do


conhecimento.

Na aula anterior ao primeiro dia de planejamento, pedimos como atividade extraclasse que
os estudantes procurassem um artigo científico de até 15 páginas sobre um assunto do interesse
deles, acerca do qual tivessem certo conhecimento e nos enviassem via e-mail dois dias antes da

68
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

próxima aula (que seria a primeira aula sobre hedging). Para os estudantes nível A2, sugerimos que
escolhessem produções que eles já tinham lido antes, ao passo que para os estudantes nível B2
sugerimos que selecionassem um material que fosse novo para eles. Esse artigo seria usado como
parte da atividade final da proposta.

No primeiro dia, propusemos um exercício de leitura contrastiva entre fragmentos de textos


acadêmicos com o uso de hedging e os mesmos fragmentos editados sem o uso das expressões
modalizadoras. Neste exercício, os estudantes leram os excertos, com e sem hedge, e discutiram se
havia alguma diferença de sentido entre eles. Durante a discussão, os estudantes não só conseguiram
perceber as diferenças de sentido entre o uso e o não uso de hedges, como também identificaram
quais partes dos fragmentos eram responsáveis por essas diferenças.

Após a análise dos fragmentos, promovemos uma discussão guiada por três perguntas
principais: 1) Have you ever seen these kind of language in academic texts from your field of study? (Você
já viu esse tipo de linguagem em textos acadêmicos da sua área?); 2) In your opinion, why do some
researchers use this kind of language? (Na sua opinião, por que alguns pesquisadores usam esse tipo
de linguagem?); 3) From your perspective, are there any advantages and/or disadvantages of using this
kind of language? (Na sua perspectiva, existe alguma vantagem e/ou desvantagem no uso desse tipo
de linguagem?).

No que diz respeito à recorrência do uso de hedging nas áreas de estudo dos estudantes, todos
compartilharam que já haviam visto o uso de modalizações nos trabalhos dos seus campos de
estudo. Contudo, a grande maioria apontou que, dependendo da natureza da pesquisa, o uso de
hedging pode ser reduzido ou inexistente, como, por exemplo, em alguns campos de pesquisa das
ciências da natureza, como Física, Química e Biotecnologia, ou ciências exatas, como Engenharias,
Matemática e Ciências Contábeis. Contudo, apontaram que em áreas do conhecimento como
Psicologia, Pedagogia, Ciências Sociais, Linguística e Literatura, percebe-se uso de hedging como,
majoritariamente, intrínseco à maior parte das pesquisas. Como justificativa para essa distinção, os
estudantes citaram a natureza subjetiva da maioria das pesquisas desenvolvidas pelo segundo grupo,
que resulta na necessidade de modalizar o discurso a fim de não fazer suposições generalizadoras
e, como consequência, que não podem se sustentar. Já no primeiro grupo, existem muitas pesquisas
com resultados, na medida do possível, mais controlados e exatos uma vez que são obtidos através
do estudo de objetos, de certa forma, manipuláveis (como composições químicas) e que podem se
comportar, até certo ponto, previsivelmente, ao passo que, no segundo grupo, os objetos de estudo

69
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

são de difícil manipulação e previsão (como a linguagem), o que dificulta afirmações categóricas e
resultados conclusivos demais.

Sobre os possíveis motivos para o uso de hedging language e vantagens ou desvantagens que
dele possam resultar, a turma apontou o discurso modalizado como menos arrogante e próximo da
realidade, além de ser uma linguagem que distancia o autor das suas proposições e protege o autor de
erros que possam vir a ser cometidos. Contudo, alguns estudantes indicaram o uso de hedging como
um mecanismo que interfere na autenticidade do discurso por meio da relativização da discussão,
chegando a ser, segundo eles, um discurso que parece não chegar a uma conclusão de fato feita por
pesquisadores, já que não se toma partido de forma incisiva na discussão. Em contrapartida, outros
estudantes discordaram ao dizer que, para eles, a não modalização do discurso em certas pesquisas o
descredibiliza e, mais do que isso, afirmaram que evitam usar como referência bibliográfica trabalhos
deste cunho, pois acreditam que produções científicas pautadas na certeza em detrimento da dúvida
e/ou sugestão podem ser fadadas ao erro e, em alguns casos, descartadas.

A discussão levantada nos permitiu problematizar a não transparência da linguagem e, mais


especificamente, de uma estrutura gramatical, apresentando o hedging como efeito e não como
suposto controle de um dizer. O que se produz ao modalizar certos enunciados é um efeito de
imparcialidade, de distanciamento, o qual pode ser mais ou menos aceito por certas áreas do saber.
O “querer ou não tomar partido”, em um contexto acadêmico-científico, refere-se mais às relações
de poder aí engendradas do que à natureza do saber, propriamente dito.

Após a discussão, distribuímos aos estudantes um material com trechos de artigos científicos
de diferentes áreas e pedimos para que eles lessem e classificassem os trechos como modalizado
ou não modalizado e, quando modalizado, identificassem as expressões modalizadoras, bem
como justificassem o uso das expressões no excerto. Depois, pedimos para que os estudantes
compartilhassem as expressões de hedge que apareceram nos trechos e, juntos, classificamos as
expressões conforme a forma como elas se portavam no texto (indicação de possibilidade, sugestão,
condição, frequência etc.). Com essa atividade, pudemos, em colaboração com os estudantes, separar
as expressões de acordo com os possíveis efeitos de sentido que elas evocam no interlocutor, a fim de
buscar não um padrão, mas sim a recorrência de certas regularidades em seu uso.

Em seguida, propusemos uma atividade escrita na qual os estudantes receberam alguns trechos
de textos acadêmicos que foram adaptados com a omissão de expressões de hedging. Entre os trechos,
existiam também alguns que, além das partes adaptadas, continham afirmações de conhecimentos já
adquiridos, portanto, sem necessidade de modalização. Pedimos para que eles analisassem os trechos

70
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

e, quando necessário, os editassem usando hedging language e, além disso, justificassem as alterações
feitas. Como finalização desta atividade, entregamos à turma os trechos originais e pedimos para que
comparassem a versão deles com as originais. A partir desta atividade, os estudantes puderam não só
analisar a necessidade das expressões de hedging, mas também posicioná-las junto às informações já
presentes no excerto, a fim de mobilizá-las de uma forma mais modalizada e cuidadosa.

No final do primeiro dia, entregamos os artigos que eles previamente tinham selecionado e
nos enviado impressos sem a parte da conclusão/considerações finais. Pedimos, como atividade
extraclasse, que lessem o artigo, fazendo marcações e anotações que achassem necessárias, e
trouxessem o texto lido na próxima aula.

No segundo dia, todos os estudantes trouxeram os artigos, apesar de alguns não terem preparado
a leitura de antemão, e, como atividade final, pedimos para que eles escrevessem as considerações
finais do artigo selecionado de acordo com as discussões feitas ao longo do texto. Para fazer essa
atividade, os estudantes teriam que analisar a discussão do texto e identificar o tom do(s) autor(es)
e mobilizar essas informações para compor uma conclusão que fosse condizente com a proposta do
texto. Dessa forma, se o texto tinha um tom menos modalizador ou mais modalizador, a conclusão
também deveria seguir os mesmos padrões.

De forma geral, as conclusões escritas pelos estudantes foram coerentes no que diz respeito às
discussões feitas nas outras seções dos textos. Contudo, foi uma atividade que necessitou de muita
orientação por parte da professora, uma vez que os objetivos da atividade eram muito específicos.
Portanto, esse apoio do professor é essencial para evitar, na medida do possível, que as produções
tomem um rumo diferente do proposto. Como resultado a longo prazo da atividade, de acordo com
as aulas seguintes, percebemos que os estudantes conseguiram mobilizar melhor as informações de
produções acadêmicas e passaram a ser mais cautelosos ao fazer considerações.

Sendo assim, consideramos esse conjunto de atividades como uma proposta válida de ensino de
hedging na medida em que permitiu, por meio de enunciados, o estudo deste mecanismo linguístico
como um recurso de atenuação e preservação do pesquisador e do conhecimento científico, que
dialoga e coopera com o interlocutor, bem como evoca e negocia efeitos de sentidos.

Considerações Finais

A proposta aqui discutida visou apresentar uma possibilidade de explorar a gramática em


cursos de EAP, a partir de uma perspectiva enunciativo-discursiva, de forma a refutar concepções

71
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

homogeneizantes de língua(gem) ou de ensino de escrita acadêmica como mera aquisição de


técnicas. Abordar a gramática para além de uma noção funcionalista ou meramente comunicativa foi
o que nos interpelou a esboçar essa proposta, na tentativa de explorar, na materialidade linguística,
marcada pela aparente estabilidade dos sentidos, o (des)arranjo dos dizeres e o (re)posicionamento
dos sujeitos.

Ao trazer para o bojo das discussões a natureza equívoca dos processos de significação, em sala
de aula, bem como ressaltar a importância de se considerar a língua em movimento, na interação
verbal, e a impossibilidade de neutralidade dos sentidos (a não ser enquanto efeito), esperamos
contribuir para os estudos e pesquisas na área de ensino de línguas estrangeiras no contexto
acadêmico.

Finalmente, é preciso salientar que nossa proposta se constitui como um gesto de interpretação
do ensino de gramática. Trata-se, pois, de uma tomada de posição em relação à incompletude da
linguagem, possibilitada por nossa iniciação nos estudos discursivos e dialógicos.

Referências

AIUB, G. F.; RODRIGUES, C. Z. O sujeito em movimento: processos de identificação, língua materna e língua
estrangeira. Linguagem em (Dis)curso, v. 19, n. 1, p. 193-208, 2019.

BAKHTIN, M. (VOLOSCHINOV). (1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem. 9 ed. Tradução Michel Lahud;
Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2002.

BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: Questões de literatura e de estética: teoria do romance. Trad.
Aurora F. Bernardini et alii. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 2010.

BAKHTIN, M. (1963). Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. ampliada. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2008.

BENESCH, S. Critical English for Academic Purposes: Theory, Politics, and Practice. London: Lawrence
Erlbaum Associates Publishers, 2001.

BRITO, C. C. P.; CÓRDULA, M. S. M. Desenvolvimento profissional na formação do professor de línguas: IsF


como espaço de residência pedagógica. Revista do GEL, v. 17, n. 1, p. 29-49, 2020.

BRIZ, A. et al. A atenuação e os atenuadores: estratégias e táticas. Linha d’água, v. 26, n. 2, p. 281-314, 2013.

DI FANTI, M. G. C. A linguagem em Bakhtin: pontos e pespontos. Veredas – Revista de Estudos Linguísticos,


v.7, n.1 e n. 2, p. 95-111, 2003.

72
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

DING, A.; BRUCE, I. The English for Academic Purposes Practitioner - Operating on the Edge of Academia.
Switzerland: Palgrave Macmillan, 2017.

DUDLEY-EVANS, T.; ST JOHN, M. J. Developments in English for specific purposes: a multi-disciplinary


approach. United Kingdom: Cambridge University Press, 1998.

FLOWERDEW, J.; PEACOCK, M. (Eds.). The EAP curriculum: Issues, methods, and challenges. In: FLOWERDEW,
J.; PEACOCK, M. Research Perspectives on English for Academic Purposes. Cambridge: Cambridge
University Press, 2001. p. 177-194.

HALLIDAY, M. A. K; McINTOSH, A.; STREVENS, P. As ciências linguísticas e o ensino de línguas. Petrópolis:


Vozes, 1974.

HYLAND, K. English for academic purposes: an advanced resource book. USA and Canada: Routledge, 2006.

HUTCHINSON, T., WATERS, A. English for Specific Purposes - a learning-centred approach. Cambridge:
Cambridge University Press, 1987.

MARKKANEN, R; SCHRÖDER, H. (Eds.). Hedging and discourse: Approaches to the analysis of a pragmatic
phenomenon in academic texts. Berlin: Walter De Gruyter & Co, 1997.

MOLON; N. D.; VIANNA, M. R. O Círculo de Bakhtin e a Linguística Aplicada. Bakhtiniana, v. 7, n. 2, p. 142-165,


2012.

NUNAN, D. Teaching grammar in context. ELT Journal, v. 52, n. 2, p. 101-109, 1998.

PUZZO, M. B. Revisitando questões de gramática e de ensino de um ponto de vista bakhtiniano. Bakhtiniana,


v. 7, n. 1, p. 161-177, 2012.

RAMOS, R. C. G. ESP in Brazil: history, new trends and challenges. In: KRZANOWSKI, M. (Ed.). ESP and EAP in
Developing and in Least Developing Countries. IATEFL, 2008. p. 68-83.

SALAGER-MEYER, F. I Think That Perhaps You Should: A Study of Hedges in Written Scientific Discourse. In:
MILLER, T. (Org.). Functional Approaches to Written Text: Classroom Applications. 2 ed. Washington: Office
of English Language Programs, 2005. p. 105-118.

TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: Uma proposta para o ensino de gramática. 10 ed. São Paulo: Cortez,
2005.

VASILEVSKI, V.; TUCKER, A. Wide-Ranging Cognitive Deficits in Adolescents Following Early Life Maltreatment.
Neuropsychology. Advance online publication, 2015. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1037/neu0000215.
Acesso em: 17 de agosto de 2020.

73
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

“É UMA DIFERENÇA GRITANTE”:


DISCURSIVIDADE DE PROFESSORES DE
INGLÊS SOBRE A EJA1

Mariana Ruiz Nascimento


Cristiane Carvalho de Paula Brito

Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser.
Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais
fora dela. Estar longe ou, pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é
uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro
treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no
exercício educativo: o seu caráter formador. (FREIRE, 2014, p. 34)

Introdução

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) geralmente é compreendida como uma modalidade de


ensino destinada àqueles que não puderam frequentar ou finalizar os estudos na escola regular na
idade proposta. Para Soares (2007), ela também é um campo político, carregado de complexidades,
sem definições e posicionamentos claros, em que professores e alunos se encontram em meio a lutas,
tensões, organizações, práticas e movimentos sociais. Em outras palavras, ela está comprometida

1 A dissertação de mestrado, intitulada “Discursividade de professores de língua inglesa sobre o ensino-aprendizagem


na Educação de Jovens e Adultos”, teve o fomento da Fapemig e foi orientada pela segunda autora deste trabalho (NAS-
CIMENTO, 2020).

74
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

com a educação das camadas populares e com a superação das diferentes formas de exclusão e
discriminação na sociedade, que podem ser encontradas tanto nos processos educativos escolares
quanto nos não escolares (SOARES, 2007).

Ao analisar o panorama histórico da EJA, notamos que ela é evidenciada como o resultado da
ineficácia do Estado em ofertar e garantir a permanência da criança e do adolescente na escola. É
uma história permeada pelo abandono do poder público e uma marginalização dessa modalidade
e dos sujeitos que a ela recorrem (DIONISIO, 2009). Percebemos, também, que todas as práticas
pedagógicas e programas descontinuados e fragmentados, apontados ao longo de sua história,
dificultaram a constituição de sua identidade; e que a maior parte das iniciativas da EJA e a busca
pela erradicação do analfabetismo surgiram com a finalidade de prestar contas à comunidade
internacional e de preparar a população para o trabalho.

Neste estudo, fazemos um recorte de nossa dissertação de mestrado, em que investigamos a


discursividade de professores de inglês sobre a EJA, de modo a delinear algumas representações
discursivas desses sujeitos quando enunciam sobre essa modalidade de ensino.

O ensino supletivo foi regularizado com a Lei n° 5.692 (BRASIL, 1971) e ainda existem muitas
lacunas em pesquisas na área de Linguística Aplicada (LA) voltadas para o ensino de línguas
estrangeiras nessa modalidade, principalmente no que concerne à formação de professores. Além
disso, os currículos dos cursos de Letras raramente abordam esse contexto (LEITE; NEVES, 2016),
e, ao se verem diante da oportunidade de atuar na EJA, é possível que os professores vivenciem um
estranhamento e conflito ao tratar de questões de ensino-aprendizagem nesse contexto.

Desse modo, o discurso dos professores de inglês é constituído de constantes batimentos entre
o que significa dar aula na EJA e em outros espaços de aprendizagem que chamamos aqui de ‘não-
EJA’. Assim, nossa investigação parte da hipótese de que os discursos dos professores se constituem
como um acontecimento tenso-conflitivo que revela embates sobre os processos de ensinar e
aprender nesse contexto. Interessa-nos, pois, analisar as inscrições discursivas que constituem as
representações desses professores e problematizar as vozes que as sustentam.

Em termos de organização, além desta introdução e das considerações finais, discutimos,


primeiramente, o quadro teórico-metodológico no qual a pesquisa se ancora e, em seguida, passamos
à explanação de nosso gesto de análise.

Escopo Teórico-Metodológico

75
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Para fundamentar a pesquisa, realizamos um entrelaçamento entre os estudos da Linguística


Aplicada (LA), alguns conceitos da Análise do Discurso Francesa (ADF) e da Análise Dialógica do
Discurso (ADD). Essa escolha teórica se justifica por entendermos que o sujeito está inscrito em
discursos que são constituídos sócio-historicamente, identificando-se com determinadas memórias
discursivas (BRITO; GUILHERME, 2013).

Por entender a LA como uma área de estudos da linguagem que é responsiva a uma demanda
social, alinhamo-nos a uma LA transgressiva e inter/transdisciplinar (MOITA LOPES, 2006;
PENNYCOOK, 2006) que convoca outros conceitos e estabelece diálogos com diferentes domínios
científicos (CELANI, 1992; SIGNORINI, 2006). Neste trabalho, são articuladas questões referentes
ao ensino e formação de professores na modalidade EJA, contemplando aspectos educacionais,
políticos, históricos, sociais e identitários.

Nesse caso, investigar e problematizar a formação de professores em uma perspectiva discursiva


dentro da LA significa considerar as discursividades que circulam sobre esses processos e investigar a
inserção histórico-ideológica das práticas enunciativas de professores. Ao questionar os professores
sobre a sua prática e analisar as suas posições e representações, tentamos compreender como elas
têm sido construídas e suas possíveis implicações no ensino.

A discursividade, aqui, é entendida como um “processo que explicita, em seu caráter sócio-
histórico-cultural e ideológico, a dinâmica de produção de sentidos para contemplar as ações de
ensino-aprendizagem” (GUILHERME, 2017, p. 16). Assim, o discurso é a unidade de análise, enquanto
a discursividade é um conceito mais amplo que se refere ao processo de produção de sentidos.

Para coletar os dados, utilizamos a proposta de Análise de Ressonâncias Discursivas em


Depoimentos Abertos (AREDA), elaborada por Serrani-Infante (1998a), e o corpus foi composto por
seis depoimentos de professores de inglês de Uberlândia-MG que atuam ou já atuaram na EJA por no
mínimo um semestre. Foi elaborada uma lista com 21 perguntas para que os professores pudessem
gravar os seus depoimentos em forma de áudio. A lista incluiu perguntas sobre a forma com que eles
aprenderam a língua inglesa, a sua formação e atuação como professores de inglês, de forma que
fosse possível delinear e analisar as representações discursivas desses professores quando enunciam
sobre a EJA e o processo de ensino-aprendizagem da língua inglesa. Depois disso, os áudios foram
transcritos para realizar a análise2.

O objetivo desse instrumento é analisar o “funcionamento de ressonâncias discursivas na


construção de representações de processos identificatórios em jogo no processo de enunciação
2 Ao total, os áudios somaram 5 horas, 39 minutos e 18 segundos de áudio.

76
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

em segunda língua” (SERRANI-INFANTE, 1998a, p. 151), que permite compreender a incidência de


fatores discursivos no processo de enunciação em língua estrangeira ou sobre ela.

Serrani-Infante (1998a) afirma que quando se toma a palavra, toma-se uma posição enunciativa
que diz respeito às relações de poder e processos identificatórios, e é essa tomada da palavra que
afeta e transforma o sujeito – se considerarmos que a linguagem e a constituição subjetiva estão
sempre ligadas. Como aponta a autora, “o termo enunciar remete ao fato de que o que está em
questão é produzir (e compreender/atribuir) efeitos de sentido” (SERRANI-INFANTE, 1998a, p. 150).
Para ela, toda escolha lexical e morfossintática apresenta uma dimensão consciente e inconsciente,
a qual escapa ao controle do sujeito ao depender de fatores além da ordem cognitiva.

A proposta AREDA, ao considerar o intradiscurso e o interdiscurso, permite que o analista do


discurso, por meio de seu gesto de interpretação, detecte “momentos de interpretação como atos
de tomada de posição do sujeito de enunciação, no tocante à relação com a(s) segunda(s) língua(s)”
(SERRANI-INFANTE, 1998a, p. 157) e, consequentemente, em relação às suas práticas pedagógicas
voltadas para o ensino de língua.

Para realizar a análise, consideramos os conceitos de ressonância discursiva e alteridade


discursiva. Para Serrani-Infante (1999), o primeiro se refere a uma ligação entre unidades específicas
(itens lexicais, frases nominais) e modos de dizer (construções indeterminadoras, de tom casual etc.),
produzindo o efeito de vibração semântica e que constrói a realidade (imaginária) de um sentido.
Já a noção de alteridade discursiva considera que a subjetividade é “o espaço do sujeito afetado pelo
pré-construído e pelo discurso transverso, sujeito do inconsciente, efeito de linguagem, falante, ser
em línguas, pego na ordem simbólica que o produz enquanto sujeito” (SERRANI-INFANTE, 1998b, p.
245). Em outras palavras, o falante não utiliza a linguagem como um instrumento para se comunicar
– se assim fosse, não teríamos mal-entendidos, ou sentidos ambíguos, já que o falante poderia usar
a língua para falar o que deseja de forma eficaz.

Considerar essas noções implica olhar o corpus entendendo que o sujeito não é a origem do seu
dizer – há vozes em seus dizeres que ressoam a partir de discursos anteriores ao dele – e que haverá
sentidos que escapam do seu controle ou que são construídos sem que ele tenha consciência disso.

Na perspectiva discursiva adotada neste trabalho, os dizeres dos professores são considerados
enunciados situados sócio-historicamente, perpassados por inscrições ideológicas e por relações de
poder. E, de acordo com a noção de sujeito de Pêcheux (2009), ele não é autônomo e livre em seu dizer,
pois antes mobiliza memórias que o constitui ao assumir a posição de professor. Na perspectiva da
ADD (BAKHTIN, 1993, 2016), esse sujeito é responsável e responsivo, incompleto e inacabado.

77
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Gestos de Análise

Dentre os seis participantes de pesquisa que aceitaram gravar seus depoimentos, quatro eram
mulheres e dois eram homens. Mônica3 começou a ministrar aulas de inglês na EJA a partir de 2003
e atuou nessa modalidade por cerca de 4 anos; Magali atuou como professora de inglês na EJA de
2010 a 2018 por cerca de 5 anos e meio; Marina e Denise atuaram por 1 semestre (6 meses); Cascão
trabalhou na EJA por um ano, em 2012; e Cebolinha por 3 anos, de 2016 a 2018.

Para o escopo deste trabalho, discutiremos duas representações discursivas, a saber: i) “o


aluno da EJA é diferente do aluno do ensino regular” e ii) “ministrar aula na EJA é mais fácil”.
Salientamos que aqui as separamos por razões de análise, todavia entendemos que elas funcionam
dialogicamente, colocando em cena vozes que se complementam, refutam, divergem e convergem
de forma a atualizar, no acontecimento discursivo, memórias sobre o ensinar-aprender no contexto
da EJA.

“O aluno da EJA é diferente do aluno do ensino regular”

Ao verificar os dizeres dos professores quando remetem à EJA, é possível perceber um movimento
de comparação: ao falar sobre a EJA, eles a comparam constantemente com o ensino regular. Isso
indica que a EJA se configura como um espaço outro, diferente daquele no qual o professor está
acostumado a atuar, entretanto, ao se referir a esse espaço, os professores o enxergam a partir da
óptica do ensino regular. Isso pode ser observado na SDs abaixo:

SD01: Eles respeitam muito o professor, aí é uma diferença gritante do, com o adolescente do
ensino fundamental, que tá naquela fase de querer te enfrentar, né, que tá naquela fase de, de
desobediência total, o aluno EJA ele cumpre as suas obrigações, é, ele faz tudo aquilo que
você pede, então, é uma experiência única, singular, né? (Mônica).
SD02: Eu falo que não tem comparação você dar aula para os jovens e adultos e os nossos
adolescentes insatisfeitos, mal-humorados, um bando de garotos e garotas enxaqueca. Por
que? Os nossos adolescentes eles têm todas as oportunidades éh-ao redor deles (Magali).
SD03: E eu acho que eram alunos que... esses alunos que optam por fazer um curso no EJA,
eram alunos que não tiveram as mesmas oportunidades que uma pessoa normal, não-não

3 Os nomes fictícios escolhidos são de personagens da Turma da Mônica, criada por Maurício de Souza, por ser uma série
de histórias em quadrinhos popular da cultura brasileira e que transcende gerações, sendo conhecida tanto por jovens
quanto por adultos no Brasil.

78
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

tinha... não tinha... muita gente privilegiada. É totalmente ao contrário de uma escola que eu
trabalho recentemente (Denise).
SD04: Não tem como você ficar passando, muita coisa, escrevendo muita coisa no quadro,
porque eles vão demorar, sem dúvida, pra escrever. Né. Eles têm muito essa dificuldade. De
olhar no quadro, e copiar. É um trabalho bem lento. Aquilo que os alunos da manhã não,
não têm dificuldade alguma, são super rápidos, né, super ligeiros, os alunos da EJA eles
têm essa dificuldade sim. E aí é por uma série de fatores, né? Por conta da idade, por conta
do-a mente já tá cansada né, a dificuldade mesmo, voltando a estudar depois de muito tempo
parado (Mônica).
SD05: ... é incrível o quanto, as pessoas que fazem pa-parte do EJA, as pessoas que estudam lá,
até as pessoas que trabalham, sabe? É incrível o quanto é diferente da realidade que a gente
tem nas universidades, na realidade que, das pessoas que a gente convive, sabe? [...] é uma
realidade totalmente diferente, e-e até a-as coisas que-que fazem a pessoa feliz no EJA...
não sei explicar (Marina).
SD06: é um momento também de você se enxergar como pessoa, por conta desse contato que
você tem com essas diferentes realidades, têm algumas histórias de vida ali que são muito
tristes, muito pesadas, então é preciso até que se tenha, um preparo emocional pra você
enfrentar, é, turmas da EJA. (Mônica)

É relevante apontar que, em algumas SDs acima, os professores realizam comparações entre a
EJA e o ensino regular ao responderem perguntas que não são especificamente sobre as diferenças
entre essas duas modalidades, ou seja, são dizeres que escapam e fogem do controle de seus
enunciadores.

Ao se referirem à EJA como um contexto cuja diferença é gritante (SD01), que não tem comparação
(SD02), que é totalmente ao contrário (SD03), com uma realidade totalmente diferente (SD05), em
que os alunos têm muito essa dificuldade (SD04), os professores instauram, no fio discursivo, uma
relação dicotômica entre o aluno da EJA/aluno do não-EJA, deixando os primeiros em uma situação
de inferioridade no que se refere à aprendizagem.

Apesar de reconhecerem a diferença dos alunos da EJA, observa-se que esta só funciona em sua
relação com o aluno não-EJA. Isto é, a diferença é pautada numa concepção estática e homogênea
de identidade, pela qual os sujeitos são vistos por meio dessas duas grandes categorias: ou se é um
aluno EJA (aqueles que não tiveram as mesmas oportunidades que uma pessoa normal (SD03), que têm
essa dificuldade sim (SD04)) ou se é um aluno não-EJA (adolescentes insatisfeitos, mal-humorados, um
bando de garotos e garotas enxaqueca (SD02), mas que são super rápidos, né, super ligeiros (SD04)).

79
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Os professores inscrevem-se, pois, em um imaginário que evoca sentidos cristalizados e


naturalizados sobre o aluno EJA. A diferença a eles atribuída parece corroborar esse lugar à margem
(das práticas de letramento hegemônicas) em que foram sócio-historicamente colocados: a EJA (e
seus atores) pertence a uma realidade totalmente diferente da que se vê nas universidades e na vida
cotidiana (das pessoas que a gente convive). Para Marina (SD05), a diferença, apesar de perceptível,
é quase da ordem do não enunciável (não sei explicar), o que acena para um já-dito que irrompe no
dizer, de forma a atualizar uma memória que a constitui.

A referência ao aluno da EJA como um aluno que não é uma ‘pessoa normal’ (SD02) parece indicar
que ser uma pessoa normal significa possuir uma formação de ensino regular. Isso foi observado na
pesquisa de Leite e Neves (2016), ao verificarem que os alunos são percebidos pelos professores
como “anormais” ou “cognitivamente comprometidos”, além de indícios que caracterizam a EJA
como um espaço periférico.

Temos, portanto, a representação de que o aluno da EJA é diferente do aluno do ensino regular.
Essa diferenciação evidencia a especificidade da EJA que, de acordo com os professores, gira em
torno da idade, da relação com a língua, de questões cognitivas, condições financeiras, relação com
a família, entre outros. Trata-se, pois, de uma diferença gritante (SD01), que demanda do professor
não apenas competência profissional, mas também preparo emocional para enfrentar, é, turmas da
EJA (SD06). E, aqui, chamamos a atenção para o uso do verbo “enfrentar” que mobiliza sentidos de
tensão e conflito.

Há sentidos dessa representação que entram em contradição: o aluno da EJA é diferente por ser
mais interessado, disciplinado, mais afetuoso, mais grato e mais motivado, entretanto ele também
é diferente por ter menos tempo, menos leitura, menos acesso, menos presença nas aulas, e menos
facilidade ao realizar os exercícios. Mesmo sendo enunciado como um “aluno mais” (mais motivado,
mais interessado, mais responsável etc.), os alunos da EJA não deixam de ocupar uma posição
marginalizada, como vemos na SD07:

SD07: A minha opinião sobre a educação dos jovens e adultos no Brasil é que ela é pouquíssimo
investida, pouquíssimas pesquisas, né? É, pouco se considera a educação de jovens e
adultos no Brasil, há pouca, poucos artigos, há pouca teoria, né, há poucos trabalhos
acadêmicos em que a gente pode se basear pra de repente a gente trocar experiências, então eu
acho que é algo assim, é uma modalidade que tem, que fica meio de-de lado, meio, escanteada,
né? É, infelizmente (Mônica).

80
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Ao falarem sobre as especificidades da EJA, os professores (d)enunciam as condições nas quais


ela ocorre, mencionando a falta de investimentos, as pouquíssimas pesquisas, os poucos trabalhos
acadêmicos (SD07), o que reforça, a nosso ver, a manutenção dos discursos homogeneizantes e que
pouco contribuem para a reconfiguração dos processos de ensino-aprendizagem nesse contexto.
Como a modalidade que fica meio de-de lado, meio, escanteada (SD07), também os professores da EJA
se veem à margem, com poucas possibilidades de interlocução sobre sua prática pedagógica.

A especificidade da EJA, apontada quando os professores afirmam que se trata de um aluno


diferente, também se manifesta quando falam sobre a elaboração de materiais:

SD08: A gente não adota livro nem apostila. É, eu vou selecionando materiais de internet,
materiais ou mesmo de livros didáticos, eu vou montando, trabalho com música também, então
não há atividade pronta [...] Esses materiais eles são totalmente voltados para o aluno EJA,
apesar de na internet não tá lá: para alunos EJA. Ou então eu tenho que fazer adaptações, corto
algumas coisas, incluo outras. Então assim, é um material diferenciado sim. No sentido de
que ele é mais, bem, elaborado, no sentido de que, é, eu não posso dificultar muito (Mônica).
SD09: Então é um aluno sim diferenciado, e por isso que as suas atividades propostas elas
devem ser, totalmente elaboradas praquela turma, praquele perfil de aluno, que é um
perfil diferenciado (Mônica).

Os professores apresentam a necessidade de o material ser mais fácil (SD08: No sentido de que
ele é mais, bem, elaborado, no sentido de que, é, eu não posso dificultar muito) e diferente para atender
à especificidade dessa modalidade (é um material diferenciado sim (SD08) e as suas atividades
propostas elas devem ser, totalmente elaboradas praquela turma, praquele perfil de aluno (SD09)).
Todavia, se, por um lado, o uso de um material específico para alunos em um contexto particular
pareça ser algo desejável, mostrando sensibilidade do professor quanto ao seu locus de atuação;
por outro, o seu “diferencial”, o fato de serem totalmente voltados para o aluno EJA (SD08), parece se
ancorar na memória de inferiorização atrelada à EJA, como veremos na próxima representação ao
focarmos nos dizeres sobre as aulas em si.

Assim, o que nos interessa, enquanto analistas do discurso e linguistas aplicadas, é apontar
como esse dizer é produzido e seus possíveis desdobramentos na sala de aula. Como mostrado
anteriormente, esse sentido é construído a partir de uma comparação entre as aulas e os alunos do
ensino regular, em que o professor aponta o que falta a esse aluno da EJA – tudo aquilo que não o
faz se enquadrar na memória do que seria um aluno regular. Desse modo, a identidade do aluno da

81
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

EJA é discursivizada de forma a retomar sempre o que ele deveria ser, mas não é. Os alunos são, pois,
perpassados pelo sentimento de incapacidade e baixa autoestima, e pela exigência em atender a um
padrão pré-estabelecido – uma pressão que é exposta de diferentes maneiras pelos professores, por
meio de seu dizeres e práticas.

Passemos à segunda representação.

“Ministrar aula na EJA é mais fácil”

Ao falar sobre as aulas na EJA, Marina, Mônica e Cebolinha falam que é algo tranquilo, objetivo,
simplificado. Esses dizeres estabelecem uma representação de que ministrar aula na EJA é mais
fácil porque não se pode exigir muito dos alunos. Essa representação funciona dialogicamente com
a anterior, corroborando o imaginário de que o aluno da EJA é diferente do aluno regular e, como
consequência disso, faz-se necessário facilitar as atividades, abdicando, pois, de certo rigor no ensino.
Uma análise similar foi feita na pesquisa de Leite e Neves (2016), em que um participante mostrou
que a aula na EJA pode ser sem pressão e mais tranquila, e que se torna o lugar da despreocupação.
Vejamos as SDs:

SD10: E, e também porque eram adultos. Eu pensei que seria um pouco mais tranquilo trabalhar
com adultos, e realmente foi (Marina).
SD11: Eu acho que, a minha experiência de ensinar inglês na EJA é uma experiência assim, eu
considero muito boa, e, como eu não exijo muito no sentido assim, eu, eu não tenho aquela
pretensão de que meu aluno vai sair fluente, de que meu aluno vai aprender tudo no
inglês, então é muito tranquilo pra mim, eu traçar aqueles objetivos bem iniciais que pra
mim são assim esse contato inicial com a língua. (Mônica).
SD12: Então a experiência, assim, como eu vou pra esse lado, eu não tenho grandes pretensões
instrumentais com os meus alunos, eu acho que eu geralmente eu sou, é, bem sucedida,
porque eu percebo que eles, conseguem se entusiasmar, e eu sempre incentivo, eu deixo bem
claro pra eles que o meu tempo com eles é muito curto /.../ (Mônica).
SD13: As provas são todas com consulta, eu não quero nada decorado, sabe, então assim... é,
é, são provas, muito diferenciadas mesmo, sabe? (Mônica).
SD14: Esses materiais eles são totalmente voltados para o aluno EJA, apesar de na internet
não tá lá: para alunos EJA. Ou então eu tenho que fazer adaptações, corto algumas coisas,
incluo outras. Então assim, é um material diferenciado sim. No sentido de que ele é mais, bem,
elaborado, no sentido de que, é, eu não posso dificultar muito (Mônica).

82
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

SD15: Aliás, é um aluno... é, se há, se é que, se pode falar numa avaliação em processo, que
hoje muito se fala, é uma avaliação formativa, né? Que é o processo, você tem que avaliar, o
seu aluno no processo. Isso no ensino fundamental eu acho menos real. Agora no aluno
EJA isso é muito mais fácil de fazer. Né (Mônica).
SD16: A-a os enunciados das-dos-das atividades geralmente elas são em português, ou se não
são em português eu escrevo em inglês e eu coloco a tradução na frente... não há porquê
f-dificultar, sabe? (Mônica).
SD17: Eu acho que é um aluno que, ele não precisa disso, ele não precisa provar nada pra
ninguém. Acho que é essa a grande diferença. O aluno da manhã ele precisa me provar
que ele aprendeu aquele conteúdo ali, aquelas perguntinhas. Na prova oral ele vai ter que
responder as perguntas que eu fizer, então ele tem que me provar que ele aprendeu. O aluno
da EJA, eu acho que a gente não pode levar pra esse lado, pelo menos é uma opinião minha,
não sei, agora que eu tô pensando nisso. A gente não pode, pensar que o aluno EJA ele
tem que me provar alguma coisa (Mônica).
SD18: Hoje em dia, eu faria algumas coisas diferentes, por exemplo... não que, não subestimar
os alunos, mas começar de coisas mais simples. Porque eu levava textos que eram do
interesse deles, mas eu levava textos muito complexos. Naquela coisa de ah, vou sempre
ficar num texto autêntico, e talvez eu poderia ter simplificado um pouco mais as coisas, até
pra-pra deixar eles mais tranquilos (Marina).
SD19: Muitos meninos como sempre têm resistência pra aprender. Então a questão de sim-
simplificar o máximo possível foi feito. (Cebolinha)
SD20: Então como os meninos trabalho-trabalhavam, exerciam suas funções durante o dia
não era interessante eu passar trabalhos pra eles. [...] Então não havia muitas atividades,
então eram mais, como é o bimestre, então oito a dez atividades por bimestre. Então é uma
coisa bem resumida, bem objetiva (Cebolinha).
SD21: As aulas preparadas também levava em consideração que os meninos tinham
pouco conhecimento, então os exercícios eram geralmente trabalhados pra revisar conteúdo
ou revisar alguma coisa gramatical. O tempo era curto, então a gente conseguia, vamo
dizer assim, não eram trabalhados, não eram trabalhadas as questões de textos longos
e também... textos eram trabalhados de maneira separada, então não tinha, vamos dizer
assim, a necessidade de um conteúdo anterior ou posterior precisar do conteúdo atual
(Cebolinha).
SD22: Os professores que atuam na área geralmente utilizam como eu disse atividades
simples, a interpretação de textos pequenos, enfim (Cebolinha).

83
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Os dizeres enunciados pelos professores costuram uma teia discursiva que aponta para sentidos
de simplificação do ensino na EJA, desqualificando-o como espaço legítimo de aprendizagem: eu
não exijo muito (SD11), eu não tenho grandes pretensões instrumentais com os meus alunos (SD12),
provas são todas com consulta (SD13), não há porquê f-dificultar (SD16), sim-simplificar o máximo
possível (SD19), interpretação de textos pequenos (SD22). Se o aluno EJA é “diferente”, pelas faltas de
oportunidade (SD03), pela não familiarização com as práticas escolares (SD04) e por suas histórias
de vida (SD05, SD06), por que seria mais fácil ensiná-lo? O quê, afinal, é mais fácil ensiná-lo? A
nosso ver, o enunciado “é mais fácil ensinar na EJA” é sustentado por uma concepção de ensino
meramente linguístico (em que a língua se apresenta como código neutro) e de educação bancária
(em que o aluno não é visto como um sujeito sócio-historicamente situado).

Mônica, por exemplo, evoca a memória discursiva de que saber inglês é falar fluentemente
(como um nativo?), isto é, “dominar” a língua em sua modalidade oral (BRITO; GUILHERME, 2014).
Ao dizer que não espera que o aluno da EJA saia fluente, sabendo tudo no inglês (SD11), ela corrobora
o imaginário de completude sobre a língua, como se houvesse sobre esta um saber “pronto” e total a
ser adquirido pelo falante. Dada à impossibilidade de tal saber ser apropriado pelo aluno da EJA, só
lhe resta oferecer ao aluno um contato inicial com a língua.

Tais dizeres nos interpelam a questionar a representação do papel do ensino da língua inglesa
na EJA. A recorrência de enunciados acerca da simplificação do ensino parece corroborar o imaginário
de que não se aprende inglês na escola pública o que se potencializaria no contexto específico da
EJA, já que aí o tempo com eles é muito curto (SD12), não sendo interessante eu passar trabalhos pra
eles, daí não haver muitas atividade (SD20), enfim não há porquê f-dificultar (SD16).

Os professores enunciam sobre a necessidade de fazer adaptações nos materiais (como se isto
não precisasse ocorrer em outros contextos de ensino, sensíveis à realidade, demandas, interesses
dos alunos), de forma a torná-los mais simples, de não dificultar muito (SD14). Inquieta-nos, todavia,
a recorrência, no intradiscurso, dos termos ‘simples e fácil’, os quais apontam para os sentidos de
deslegitimação atribuídos aos sujeitos da EJA e que se deixam (des)velar em enunciados como: não
subestimar os alunos, mas começar de coisas mais simples (SD18) e as aulas preparadas também levava
em consideração que os meninos tinham pouco conhecimento (SD21). Assim, mais do que fazer meras
adaptações nos materiais didáticos e nas aulas para oferecer um conhecimento linguístico condizente
com o nível da turma, tais enunciados põem em cena a imagem de incapacidade atribuída aos alunos
da EJA.

84
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Desse modo, o sentido de ‘simples’ parece deslizar para o de ‘simplista’. Contudo, o fato de o
professor de inglês na EJA ter que trabalhar com a interpretação de textos pequenos (SD22), ter de
colocar a tradução na frente (SD16) ou de as provas serem todas com consulta (SD13) não implica,
por si só, na simplificação desse processo de ensino-aprendizagem. Em outras palavras, entendemos
ser possível ensejar momentos para que a ‘palavra geradora’ (FREIRE, 1987), capaz de afetar e
deslocar o sujeito em sua relação com o saber, seja mobilizada. Se o ensino da língua inglesa não
tem, no contexto da EJA, o apelo pragmático e utilitarista frequentemente invocado em instâncias
midiáticas, sociais e mesmo educacionais, nem por isso deixa de se constituir como possibilidade
de (re)posicionamentos discursivos e de exercício da cidadania, ao promover práticas de letramento
que priorizem a língua em seus aspectos culturais, sociais, históricos e políticos.

Tal perspectiva vai de encontro a uma concepção bancária de educação, cuja memória se deixa
capturar, sobretudo, nos enunciados que apontam para práticas de avaliação recorrentes no contexto
escolar. Os dizeres de Mônica, na SD17, são bastante elucidativos a esse respeito: o aluno da EJA
não precisa provar nada pra ninguém, ao contrário do aluno da manhã que precisa me provar que ele
aprendeu aquele conteúdo ali, aquelas perguntinhas. Aliás, interessante notar que, na SD15, Mônica
menciona a impossibilidade de avaliações formativas no ensino fundamental. Por que seriam elas
muito mais fácil de fazer na EJA? Por não serem vistas como avaliações “sérias” e que realmente “põem
à prova” os alunos? Vê-se, pois, que o que parece estar em jogo é a “devolutiva” de um conhecimento
pelo aluno que deve ser aprovado pelo professor. O ensino se restringe, assim, à transmissão de
conteúdo, obliterando aquilo que Paulo Freire chama de “consciência do inacabamento”. Em suas
palavras,

É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação


como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na
medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez
mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que
gerou sua educabilidade. (FREIRE, 2014, p. 57)

As considerações de Freire nos encorajam a pensar o ensino na EJA como espaço de


formação, ressignificação, enfim de reposicionamentos subjetivos. Entendemos ser fundamental a
problematização de tais questões nos cursos de formação de professores de línguas, nos quais as
discussões sobre a EJA tendem a ser apagadas. Assim, é preciso questionar dizeres que reforcem

85
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

uma prática de ensino de língua que opta pelo reducionismo e superficialidade de atividades que
inicialmente são elaboradas para uma outra modalidade, ao invés de criar caminhos outros.

O fato de os professores levarem os seus alunos em consideração ao elaborar o material nos


parece ser uma atitude viável para o seu contexto de ensino, pois não impõe um conteúdo ou um
livro elaborado para uma outra modalidade de ensino. A nosso ver, o problema não está no uso de
atividades rápidas ou fáceis ou de uma coisa bem resumida, bem objetiva (SD20), mas no recorrer a elas
na expectativa de minimizar o estranhamento e o conflito com o saber ou com o ato de ensinar um
público que é heterogêneo. Esperar que os alunos da EJA tenham o mesmo desempenho, realizem as
atividades da mesma forma e cheguem ao mesmo resultado é preocupante porque prioriza o facilitar
antes de considerar a possibilidade de criar.

Considerações Finais

Considerando o embasamento teórico adotado, entendemos que os professores de inglês da EJA


são perpassados por inúmeros discursos, e que a discursividade na qual se inscrevem é constituída
por múltiplos enunciados sobre a EJA que antecedem os seus dizeres, que certamente já foram ditos
por outros professores, alunos e outras instâncias.

Os movimentos políticos e sociais que edificaram a EJA no Brasil também produzem dizeres que
constroem as discursividades sobre a EJA e incidem sobre os processos de constituição identitária
dos professores, que raramente destoam das redes de memória que gravitam em torno do ensino na
EJA. Em outras palavras, o que os participantes da pesquisa falam sobre a EJA já foi dito por outro
alguém, e seu dizer coexiste com outros discursos que advêm de um entrelaçamento com outro
discurso e que é formado a partir da interação com o outro. É nesse entrelaçamento e interação que
ocorrem as contradições e conflitos – como seus dizeres se constituem de outros dizeres, eles podem
entrar em contradição (GUILHERME, 2008).

Apresentamos aqui um recorte de nossa investigação sobre a discursividade dos professores de


inglês quando enunciam sobre a EJA, mais especificamente na relação entre a representação sobre
a diferença entre o aluno regular e o aluno da EJA (“o aluno da EJA é diferente do aluno do ensino
regular”), e como essa diferença pode tornar o ensino menos rigoroso (“ministrar aula na EJA é mais
fácil”). A nossa principal contribuição se deu na análise de como esses sentidos são construídos, e em
uma reflexão sobre as implicações de algumas dessas representações nas salas de aula brasileiras,
em uma tentativa de desestabilizar a prática e produzir outros sentidos sobre a EJA e o ensino de LI
nesse contexto.

86
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

A partir das representações expostas e do gesto de interpretação apresentado, entendemos


que é possível que o discurso do professor de inglês da EJA se constitua como um acontecimento
tenso-conflitivo porque ele espera que o aluno da EJA, um aluno colocado como diferente, siga o
mesmo padrão de ensino imposto no ensino regular e alcance os mesmos resultados. Além disso,
a simplificação do ensino corrobora o imaginário de que não se aprende inglês na EJA, fazendo-os
questionar o seu papel como professores dessa modalidade.

Infelizmente, a EJA ainda é vista mais como um campo de “reparo” voltado aos “atrasados” e
“menos capazes” e a circulação e repetição dessa discursividade faz com que cada vez mais o aluno
da EJA não se veja como um cidadão dotado do direito à educação e pertencente àquele espaço
escolar, retirando a escola de suas perspectivas para o futuro. Em vários momentos, os próprios
professores e a própria instituição reforçam esse dizer por meio da repetição do discurso.

Em relação à prática de ensino, acreditamos ser pertinente considerar o aluno da EJA fora do
“modelo” do aluno do ensino regular, e não tratar esse contexto como um espaço em que se praticam
adaptações ou facilitações de tudo aquilo que é proposto no ensino regular, mas como um campo de
implementação de um modelo pedagógico diferente.

Quanto à formação de professores, diante do que foi apresentado, entendemos ser necessário
promover discussões voltadas à EJA no curso de Letras com vistas a permitir que os licenciandos
se familiarizem com questões relacionadas à EJA e pensem em outras práticas de ensino de língua,
evitando a reprodução de atividades simplistas ou infantilizadas que pouco afetam e movem os
sujeitos.

Por fim, é relevante destacar que esse trabalho apresentou um dentre tantos outros possíveis
gestos de interpretação. Considerando que o objeto de estudo é o discurso, há uma limitação na análise
já que algumas materialidades linguísticas e aspectos fora dessa materialidade inevitavelmente
escapam ao nosso olhar.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Gêneros do Discurso. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2016.

BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato (1919/1921). Toward a philosophy of the act. Austin: University
of Texas Press, 1993.

BRASIL. Lei nº 5.692/71 de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá
outras providências. Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/republica.

87
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

BRITO, Cristiane Carvalho de Paula; GUILHERME, Maria de Fátima Fonseca. Linguística Aplicada e Análise
do Discurso: possíveis entrelaçamentos para a constituição de uma epistemologia. Cadernos Discursivos,
Catalão, v.1, n. 1, p. 17-40, ago./dez. 2013.

BRITO, Cristiane Carvalho de Paula; GUILHERME, Maria de Fátima Fonseca. Memorial de aprendizagem e a
formação do professor: vozes constitutivas da relação aprender/ensinar línguas estrangeiras. Revista Brasileira
de Linguística Aplicada, v. 14, n. 3, p. 511-532, 2014.

CELANI, Maria Antonieta Albani. Afinal, o que é linguística aplicada. In: ZANOTTO, M. S.; CELANI, Maria
Antonieta Albani (Org.). Linguística aplicada, da aplicação da linguística à linguística transdisciplinar.
São Paulo: EDUC, 1992.

DIONISIO, Suely Kuasne. “Eles não falam nem português”: questões ideológicas que influenciam a
aprendizagem de inglês na EJA. Monografia (Especialização em Educação de Jovens e Adultos) – UNICAMP,
Campinas, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 49. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2014.

GUILHERME, Maria de Fátima Fonseca. Línguas estrangeiras, ensino-aprendizagem e formação política de


professores. In: FIGUEIRA-BORGES, Guilherme; SILVA, Márcia Aparecida. Ensino de Línguas em Diferentes
Contextos. Campinas: Pontes, 2017, p.15-28.

LEITE, Natália Costa; NEVES, Maralice de Souza. Formações discursivas na EJA: posicionamentos discursivos
de professores de língua inglesa. Horizontes, v. 34, número temático, p. 59-71, 2016. https://doi.org/10.24933/
horizontes.v34i3.369

MOITA LOPES, Luiz Paulo. Linguística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que
têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo (Org.). Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar.
São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 85-107.

NASCIMENTO, Mariana Ruiz. Discursividade de professores de língua inglesa sobre o ensino-aprendizagem


na Educação de Jovens e Adultos. 2020. 150 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) - Universidade
Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2020. Disponível em: http://doi.org/10.14393/ufu.di.2019.2581.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso. 4 ed. Campinas: Unicamp, 2009.

PENNYCOOK, Alastair. Uma Linguística Aplicada Transgressiva. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da (Org.). Por
uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p.67-84.

SERRANI-INFANTE, Silvana. Abordagem Transdisciplinar da Enunciação em Segunda Língua: A Proposta


AREDA. In: SIGNORINI, Inês; CAVALCANTI, M. (Orgs.). Lingüística Aplicada e Transdisciplinaridade.
Campinas: Mercado de Letras, 1998a.

88
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

SERRANI-INFANTE, Silvana. Identidade e segundas línguas: as identificações no discurso. In: SIGNORINI, Inês
(Orgs.). Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. São Paulo: Mercado de
Letras, 1998b.

SERRANI-INFANTE, Silvana. Discurso e Aquisição de Segundas Línguas: Proposta AREDA de Abordagem. In:
INDURSKY, Freda; LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. (Orgs.) Os Múltiplos Territórios da Análise do
Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999.

SIGNORINI, Inês. A questão da língua legítima na sociedade democrática: um desafio para a linguística aplicada
contemporânea. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo (Org.). Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006. p. 167-190.

SOARES, Leôncio. Do direito à educação à formação do educador de Jovens e Adultos. In: SOARES, Leôncio;
GIOVANETTI, Maria Amélia; GOMES, Nilma Lino. Diálogos na Educação de Jovens e Adultos. Belo Horizonte,
Autêntica Editora, 2007.

89
DIÁLOGOS SOBRE PERCURSOS
METODOLÓGICO-ANALÍTICOS
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

A CONSTRUÇÃO DO CORPUS E DO
DISPOSITIVO DE ANÁLISE: QUESTÕES
METODOLÓGICAS DA TEORIA DO
DISCURSO1

Luís Fernando Bulhões Figueira

Introdução

No campo da Análise do discurso de linha francesa, conhecido também como Análise


materialista do discurso, é comum e mesmo natural a afirmação de que não existe uma metodologia
de análise única, definida de antemão para a abordagem das materialidades discursivas nas análises
de corpora.

Isso se deve ao fato da própria singularidade epistemológica do campo do discurso, que, para
sua constituição como teoria autônoma nos estudos da linguagem, efetuou em seu gesto de fundação
uma série de rupturas com as concepções tradicionais dos estudos linguísticos acerca das noções de
língua, sentido, sujeito, texto etc., conforme atesta Possenti (2004).

Desse ponto de vista epistemológico, as materialidades discursivas são compreendidas como


elementos marcados pela incompletude2, pela equivocidade, pela heterogeneidade, em suma, pelo

1 Agradeço à Profa. Dra. Mara Glozman pelas reflexões empreendidas conjuntamente durante meu estágio de pesquisa
na Universidad de Buenos Aires no ano de 2019. Todo e qualquer equívoco ou imprecisão neste texto são, evidentemen-
te, de minha inteira e exclusiva responsabilidade.
2 “a incompletude é a condição da linguagem” (ORLANDI, 1984, p.16).

91
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

caráter de acontecimento que coloca como pressuposto inalienável a imprevisibilidade dos efeitos
de sentido que podem emergir das/nas discursividades.

Em função desse caráter singular e evenemencial do objeto discurso, torna-se impossível


estabelecer-se uma metodologia de análise de corpora que possa ser aplicada e replicada para
todo e qualquer caso, recobrindo diferentes tipos de materialidade, com suas características muito
particulares. Uma tentativa como essa, de constituir uma espécie de “manual de instruções” sobre
como proceder às análises discursivas, resultaria, dada a natureza do objeto de estudo, certamente
em desconsiderar uma série de dimensões que, no entanto, seriam relevantes para cada investigação
em particular, com suas próprias hipóteses e questões de pesquisa, também sempre singulares.

Apesar de concordar com essa posição epistemológica, uma vez que cada analista de discurso
deve ser capaz de construir o seu próprio dispositivo teórico-metodológico de análise, adequado a
seu objeto e suas questões de pesquisa, deparamo-nos no dia a dia com vários analistas de discurso
em formação que enfrentam sérias dificuldades na construção de seus dispositivos. Não é uma tarefa
fácil. Muitos que se encontram pela primeira vez diante do desafio experimentam a angústia de ter
que superar tal obstáculo sem poderem apoiar-se num manual de instruções que lhes indique como
fazer.

Considerando, pois, tais condições e dificuldades, propomos neste texto a realizar reflexões e
construir uma espécie de percurso que poderão nortear o desenvolvimento metodológico de outras
pesquisas em AD. Longe de almejar a impossível missão de apresentar uma receita ou um manual
de como fazer, nosso intuito será o de partir dos fundamentos epistemológicos e teóricos do campo,
que definem as condições de possibilidade para o estabelecimento de uma metodologia discursiva
de pesquisa. A partir do delineamento dos fundamentos, traremos contribuições de outros autores a
respeito das questões metodológicas que envolvem o fazer do analista de discurso. Vamos dialogar
com esses autores, demonstrando a contribuição que cada um traz para a construção de um percurso
metodológico e de um dispositivo de análise discursiva. Por fim, buscaremos reunir as linhas
principais do que discutiremos, para que possam funcionar como um guia ou roteiro do percurso
singular que cabe a cada pesquisador descobrir em sua jornada investigativa.

Fundamentos teórico-epistemológicos

Conforme Pêcheux (2010 [1969]) e Orlandi (2013), o discurso é definido como “efeito de
sentidos”. Sendo um “efeito”, o discurso é algo que emerge da linguagem, é algo que acontece,
não é uma propriedade pertencente, tampouco identificável, nem na língua nem no texto; é um

92
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

acontecimento, que depende da materialidade da linguagem para se concretizar, mas que depende
da historicidade para que ocorra a produção de sentidos.

Assim, o estudo do discurso nos obriga a compreender o que chamamos de “processo discursivo”
(PÊCHEUX, 1997) ou processo de produção de sentidos. Enquanto processo histórico, que produz
como efeito de sentidos, o processo discursivo é determinado pelas ideologias em disputa na
sociedade.

A tese maior da AD materialista é a de que o sentido dos enunciados varia conforme a posição
ideológica sustentada pelos sujeitos que enunciam. Nesse sentido, concordamos com Orlandi (1994
e 2013) que, mais do que interpretação (atribuir sentidos aos textos), cabe ao analista a tarefa da
compreensão, que a autora considera ser a tarefa do analista de explicar como ocorreu a produção de
sentidos num dado discurso. Para o analista, não basta interpretar e dizer o sentido que entendeu
a partir de uma dada materialidade linguística; é preciso explicitar os mecanismos linguísticos-
enunciativos, bem como os funcionamentos históricos-ideológicos, para que se possa explicar
como um determinado texto pode apresentar certos efeitos de sentido e não outros em seu lugar
(FOUCAULT, 2005 [1969]).

Dessa forma, um primeiro princípio metodológico se impõe: não é possível analisar um texto
em si mesmo, sem colocá-lo em relação com outros textos. Como diz Foucault (2005 [1969]), o
enunciado é um nó em uma rede. É parte do trabalho do analista (re)constituir essa rede de relações
entre enunciados que se sobredeterminam, de modo a estabelecer a historicidade dos dizeres em
exame.

Daí advém talvez a primeira dificuldade do pesquisador: como reconstituir essa rede
de enunciados? Como construir o corpus de análise? Que limites estabelecer? Que séries de
acontecimentos discursivos instaurar? Quais relações de sentido ou de filiação privilegiar? O que se
deve integrar ao corpus de análise, e o que deixar de fora? Como é possível determinar se um corpus é
legitimamente representativo para as questões que se deseja responder? Essas são algumas questões
que costumam angustiar os pesquisadores.

Para começar a tentar respondê-las, devemos nos remeter aos princípios epistemológicos
fundamentais da AD materialista. Estamos nos referindo a seu caráter perspectivista, isto é, sua
posição epistemológica de que o conhecimento é sempre parcial, como defende Zizek, nos dois
sentidos da palavra: parcial como não total; e parcial como produzido a partir de um dado lugar,
de uma tomada de posição, de partido. “Em vez de pronunciar um julgamento imparcial, este livro

93
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

oferecerá uma leitura partidária – é parte da teoria lacaniana que toda verdade é parcial” (ZIZEK,
2010, p.12 - destaque nosso).

O que Zizek atribui à psicanálise, nós também atribuímos à AD materialista, ou seja, a concepção
de que o conhecimento é produzido por sujeitos, históricos, ideológicos, a partir de um do ponto de
vista, e que, portanto, o saber resulta necessariamente incompleto, construído desde um ângulo de
visão. A esse respeito, Guilhaumou (2002, p.12) nos diz: “o ponto de vista do pesquisador é um dos
dados mais relevantes da construção desses corpora”; “Com efeito, o pesquisador é confrontado
ele mesmo com sua própria responsabilidade em matéria de busca de autonomia. (...) Seu ponto
de vista é, então, parte integrante do corpus analisado, e não necessita, pois, da construção de um
observatório separado”. Não flertamos, pois, nem com a ideia de absoluto nem com a de (ilusão de)
completude. Conforme nos orienta Foucault (2005 [1969], p.17), devemos “colocar (...) em questão
as teleologias e as totalizações”.

Contudo, se por um lado, a AD materialista não entende como problema a presença incontornável
da subjetividade na produção do saber, por outro lado, pode-se correr o risco de que as análises e
seus resultados fiquem reduzidas a mero espelhamento das vontades, desejos, pré-construídos e
crenças do pesquisador. Como evitar cair nesse círculo vicioso?

Pêcheux (2014) nos alerta para esse perigo num texto em que realiza uma (auto)crítica
contundente à certa postura nos estudos discursivos em que os resultados das análises já estariam
de certo modo pré-determinados a coincidir com os desígnios político-ideológico-partidários
dos pesquisadores. Pêcheux exorta-nos a reconhecer o estatuto interessado do pesquisador e,
ao mesmo tempo, a responder responsavelmente a esse desafio de honestidade intelectual que é
fazer pesquisa, ainda que os resultados e as conclusões nos sejam desagradáveis sob o ponto de
vista de nossas inscrições ideológicas. Para tanto, Pêcheux nos lembra do caráter de contradição
e de heterogeneidade do discurso, combatendo as falsas noções de identidade (permanente) e de
homogeneidade. Assim, o sujeito-analista precisa reconhecer e aceitar que os materiais discursivos
com os quais trabalha podem contradizer seus pressupostos ideológicos, indo mesmo de encontro
a seus pré-construídos e seu imaginário. Concluímos, então, que na análise discursiva, é preciso
sempre estar atento para o real da língua (a materialidade a ser descrita, com suas equivocidades) e
a para o real da história, sempre aberto, mutável, num devir constante, fazendo com que as filiações
e posições ideológicas possam ser outras, inclusive diferentes daquela identidade que o sujeito
analista supõe em seu imaginário, anterior à pesquisa. Recusa-se, pois, toda e qualquer concepção

94
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

taxionômico-classificatória dos discursos, como se os mesmos fossem objetos estanques que


poderiam ser rotulados e guardados cada um em suas respectivas gavetas.

Tomadas essas precauções epistêmico-metodológicas, torna-se possível ao pesquisador


construir seu corpus de análise, considerando seus objetivos e suas hipóteses, a fim de constituir uma
rede significativa de enunciados, relevante o suficiente para responder a suas questões de pesquisa.

Pêcheux nos indica também em outro texto a necessidade de, na análise, “dar o primado
aos gestos de descrição das materialidades discursivas” (2006, p. 50). Essa fidelidade ao material
discursivo, àquilo que é dito é fundamental. A partir daí, é necessário buscar as “filiações sócio-
históricas de identificação” ou as posições, inscrições, formações ideológicas que nos ajudem a
compreender como tais efeitos de sentido foram produzidos numa dada materialidade. Nesse
movimento de compreensão, isto é, de explicitar as causas que explicam a produção dos efeitos de
sentidos interpretados, o analista pode perceber a necessidade de alterar o corpus de análise, seja
porque o que procura (seu objetivo) não foi encontrado naquele primeiro material selecionado, seja
porque os sentidos e as relações ideológicas encontradas remetem a problemática a um outro nível
ou escala de correlações, tornando-se necessário ampliar o foco de investigação.

Se, para Pêcheux, a análise discursiva se constitui num movimento de alternância (um
batimento) entre descrição e interpretação, para nós, esse mesmo movimento se dá no gesto de
construção do corpus pelo analista: trata-se de um vai e vem (des)contínuo na busca pelos materiais
relevantes às respostas que buscamos na investigação. Estamos aqui fazendo coro à concepção
apresentada pelo historiador J. Guilhaumou (2002, p. 2), a respeito da noção de “momentos de corpus”
(“caracterizados no interior de vastos trajetos temáticos onde se entremeiam evoluções conceituais,
emergências de sujeitos da enunciação e acontecimentos discursivos”3), refutando a ideia de “corpus
fechado”: “a virada interpretativa” da análise de discurso revoga o corpus fechado, repõe em causa o
confronto entre o corpus e o fora-do-corpus, recusa enfim a apresentação referencial das condições
de produção, em proveito de uma descrição da reflexividade do discurso”4 (GUILHAUMOU, 2002, p.
2); “a exigência inicial de um corpus estável, homogêneo e fechado foi abandonada”5 (GUILHAUMOU,
2002, p.10).

3 Tradução nossa do francês: « moments de corpus » caractérisés à l’intérieur de vastes trajets thématiques où s’entre-
mêlent des évolutions conceptuelles, des émergences de sujets d’énonciation et des événements discursifs
4 Tradução nossa do francês: « le tournant interprétatif » de l’analyse de discours révoque le corpus clos, remet en cause
la confrontation entre le corpus et le hors-corpus, refuse enfin la présentation référentielle des conditions de produc-
tion, au profit d’une description de la réflexivité du discours
5 Tradução nossa do francês: l’exigence initiale d’un corpus stable, homogène et clos a été abandonnée

95
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Desse modo, as próprias condições históricas de produção do discurso podem ser reconsideradas
e reconfiguradas a partir do contato e da análise inicial de um corpus; se tal material contiver
evidências de que a concepção das condições de produção (CP) pelo pesquisador não condiz com o
que se observa nos enunciados sob escrutínio, então será necessário rever e redefinir as condições
de produção, pois elas tampouco são estáveis. Não se pode definir as CP aprioristicamente, rejeita-
se uma concepção referencial das CP; elas também são reconstituídas pelo pesquisador a partir
do trabalho com os materiais discursivos disponíveis: “Quanto à noção de condições de produção,
ela designava então menos a realidade estável da situação de comunicação que um trabalho
sobre os efeitos de conjuntura, do efeito-sujeito ao efeito-aparelho passando pelo efeito maior do
acontecimento”6 (GUILHAUMOU, 2002, p. 5).

Verifica-se então um ir e vir do pesquisador entre o corpus (material sob análise) e o fora-do-
corpus (condições de produção (CP) e materiais [ainda] não incluídos no corpus). Esse movimento pode
fazer com que as fronteiras entre interior e exterior sejam remanejadas: tanto a análise preliminar
do corpus pode indicar a necessidade de modificá-lo, com a inserção de novos materiais, como pode
indicar um pré-construído equivocado do pesquisador acerca das CP, levando à necessidade de
reexaminá-las e reinterpretá-las, na medida em que se apresentam como elemento constitutivo das
significações.

Um terceiro nível em que se dá esse movimento de alternância é o da relação entre teoria e


análise. Num projeto de investigação, o autor constrói seus objetivos e hipóteses (ou questões),
delineia sua filiação teórica bem como as categorias analíticas que supõe utilizar na abordagem
do corpus. A teoria, com seus pressupostos e conceitos, determinará o ponto de vista de partida,
que condiciona o olhar-pesquisador para os materiais discursivos que serão reunidos. Definem-se
preliminarmente as categorias analíticas que se pretende empregar na abordagem dos materiais.
Esboça-se uma primeira configuração do corpus. A partir do momento em que se iniciam as análises
(descrição-interpretação dos materiais), os resultados preliminares podem apontar a necessidade de
retornar à teoria e rever as categorias analíticas a serem empregadas. A depender das características
singulares dos corpora, o pesquisador pode se ver forçado a redefinir as categorias previamente
estabelecidas, na medida em que estas podem não se mostrar produtivas para aquele material
discursivo específico que foi selecionado. Nesse sentido é que dizemos o corpus “pede” determinadas
categorias.

6 Tradução nossa do francês: Quant à la notion de conditions de production, elle désignait alors moins la réalité stable de
la situation de communication qu’un travail sur les effets de conjoncture, de l’effet-sujet à l’effet-appareil en passant
par l’effet majeur de l’événement

96
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Em outras palavras, a natureza singular do corpus (sua unicidade), quando


colocada em interação com a visão particular do sujeito analista, clivada
por suas questões de pesquisa, hipóteses e objetivos de investigação,
impõe, frequentemente, a necessidade de que o sujeito-pesquisador efetue
movências e deslocamentos na rede conceptual pré-construída da teoria
(discurso teórico) em que se inscreve, de modo a possibilitar o exame de
determinados aspectos pontuais da discursividade em questão. (FIGUEIRA,
2015, p. 28)

É somente no conhecimento pelo contato direto com os materiais discursivos, que o analista
poderá retornar à teoria e decidir as melhores “ferramentas” para realizar o seu trabalho analítico-
interpretativo. Desse modo, isto é, de posse de novas categorias selecionadas entre os conceitos
teóricos, o pesquisador retorna ao trabalho de análise com o corpus, produzindo outros resultados.

Cumpre acrescentar que essa dinamicidade de movimentos de alternância nos três níveis já
referenciados (descrição-interpretação; corpus-exterioridade; teoria-análise) é mais do que um ir-e-
vir, assemelha-se mais a um movimento em espiral, na medida em que, a cada retorno, produzem-se
avanços em direção aos propósitos investigativos:

o processo de construção do corpus é então motivado pela associação da


exigência formalista a um gesto de leitura efetuado no interior de universos
discursivos não estabilizados logicamente. Ele diz respeito à constituição de
“máquinas paradoxais” que proíbem toda construção do corpus por etapas
e em ordem fixa. Uma vez compreendido, sem conotação intencionalista,
que é do interior do campo discursivo, na imensa circulação de enunciados,
que a questão do corpus é doravante colocada, a interação de momentos da
análise linguística e da análise discursiva diz respeito à produção em espiral
de reconfigurações de corpus (Pêcheux, 1990).7 (GUILHAUMOU, 2002, p. 9)

7 Tradução nossa do francês: le processus de construction du corpus est alors motivé par l’association de l’exigence
formaliste à un geste de lecture effectué au sein d’univers discursifs non stabilisés logiquement. Il relève de la cons-
titution de « machines paradoxales » qui interdisent toute construction du corpus par étapes et à ordre fixe. Une fois
acquis, sans connotation intentionaliste, que c’est de l’intérieur du champ discursif, dans l’immense circulation des
énoncés, que la question du corpus est désormais posée, l’interaction de moments de l’analyse linguistique et de
l’analyse discursive releve de la production en spirales de reconfigurations de corpus (PÊCHEUX, 1990).

97
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Expostas essas concepções de princípios e fundamentos de nossa visão sobre a análise


discursiva materialista, passaremos a esmiuçar um pouco mais alguns detalhes a respeito das etapas
de construção do corpus e do estabelecimento do dispositivo de análise.

Construção do Corpus

A construção do corpus na AD materialista será sempre condicionada pelo ponto de vista


epistemológico do campo. Isso significa dizer, por exemplo, que, como a AD materialista concebe
o sujeito como constituído pelo inconsciente, não caberá considerar como critério relevante para a
construção do corpus uma noção como a de intencionalidade, dado que o sujeito do inconsciente não
controla plenamente os sentidos do que enuncia. Nesse sentido, Glozman (no prelo, p. 4) pontua que
“esta perspectiva opera com uma concepção não voluntarista nem racionalista do sujeito: a análise
permite observar traços e formas significantes que se inscrevem no discurso para além da intenção
e da capacidade retórico-argumentativa do falante”8.

Da mesma forma, para dar outro exemplo, se concebemos o processo discursivo como processo
histórico-ideológico de produção de sentidos, necessariamente o corpus a ser construído não poderá
se limitar a um único enunciado, uma vez que todo enunciado faz parte de uma rede de correlações, de
filiações sócio-históricas, de percursos ideológicos, tornando obrigatório o confronto do enunciado
em análise com outros que devem ser recuperados a partir da memória discursiva, do interdiscurso,
das condições sócio-históricas de produção. Sobre isso, Orlandi (1984, p.16) esclarece que

“O espaço do texto não é fechado em si mesmo, tem relação com o contexto


de situação e com outros textos. É intervalar, assim como o sentido é
intervalar: não está em nenhum dos interlocutores especificamente, mas
no espaço discursivo constituído pelos/nos dois interlocutores.

De qualquer forma, os procedimentos de construção de corpora sempre exigirão que o


pesquisador efetue escolhas, selecione os materiais, separando o que comporá o corpus e o que
ficará de fora. Naturalmente os objetivos e questões de pesquisa (ou hipóteses) serão os norteadores
dessas escolhas. Porém, mais do que isso, é imprescindível fundamentar tais escolhas conforme
os pressupostos teórico-epistemológicos do campo. Nesse sentido, a noção de recorte, tal como

8 Tradução nossa do espanhol: “esta perspectiva opera con una concepción no voluntarista ni racionalista del sujeto: el
análisis permite observar trazos y formas significantes que se inscriben en el discurso más allá de la intención y de la
capacidad retórico-argumentativa del hablante.”

98
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

proposta por Orlandi, demonstra-se bastante útil, na medida em que a autora nos explica que “O
recorte é uma unidade discursiva. Por unidade discursiva entendemos fragmentos correlacionados de
linguagem-e-situação. Assim, um recorte é um fragmento da situação discursiva” (ORLANDI, 1984,
p.14). Desta feita, a noção de recorte esclarece ao pesquisador que o corpus não será formado tão
somente por enunciados linguísticos (ou de outras materialidades simbólicas), mas pelo enunciado-
na-história, ou seja, fragmentos da enunciação contendo a materialidade linguística e histórica, o que
Orlandi (2013) chama de “forma material” e que confere especificidade ao discursivo. De maneira
que, para julgarmos um recorte como pertinente, não podemos nos restringir a analisá-lo apenas
sob o ponto de vista das categorias linguísticas, ou mesmo enunciativas; será preciso considerar,
invariavelmente, os aspectos histórico-ideológicos que um dado recorte pressupõe.

Dada a natureza heterogênea do objeto discurso, isto é, o fato de que materializa os


antagonismos sociais por meio das contradições e da dispersão, torna-se coerente abandonar
certos critérios pressupostos para a montagem do corpus, critérios já estabelecidos em outras
tradições de pesquisa, inclusive no próprio campo da Linguística, e que não passam de evidências
que devem ser desnaturalizadas. Estamos considerando como ponto de partida para esta reflexão
os critérios habituais de “exaustividade, de representatividade e de homogeneidade”, conforme
Gardin e Marcellesi (apud COURTINE, 2014, p. 56). A esse respeito, Courtine (2014, p. 56) explicita
que “é a partir das exigências próprias à análise da língua que os princípios de exaustividade, de
representatividade e de homogeneidade se encontram definidos.” Porém, quando se trata de
analisar discurso, e não apenas a língua, o postulado da homogeneidade, por exemplo, coloca sérios
obstáculos à investigação, na medida em que sacrifica justamente o elemento da heterogeneidade e
das contradições, inerentes à natureza do objeto discurso.

A nosso ver, também a exaustividade (que “prescreve que não se deixe na sombra nenhum
fato discursivo que pertença ao corpus” (COURTINE, 2014, p.56)), torna-se problemática numa
investigação de caráter discursivo, que admite como um de seus princípios epistemológicos a
incompletude da linguagem, simbolizada tanto pela abertura de sentidos, imprevisibilidade de
significações, quanto pela infinidade de relações histórico-ideológicas que se podem estabelecer
entre os enunciados no universo interdiscursivo.

De um modo ou de outro, o pesquisador sempre precisará efetuar escolhas, definir o espaço


discursivo pertinente para sua investigação (questões e objetivo), a partir das hipóteses calcadas
sobre seu saber de especialista9 bem como sobre os conhecimentos já produzidos e acumulados

9 O que Guilhaumou e Maldidier (2016a, p. 97) chamam de “julgamentos de saber”: “É impossível ignorar que a seleção
desses termos repousa sobre um saber histórico.”

99
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

pela literatura da área em relação ao tópico da pesquisa em questão. Nesse ponto é que reside a
responsabilidade do pesquisador, considerando o critério da representatividade, segundo o qual “não
se deve tirar uma lei geral de um fato constatado uma única vez” (GARDIN e MARCELLESI, apud
COURTINE, 2014, p. 56). Defendemos que a pesquisa em AD materialista resulta um gesto de leitura
do sujeito-analista que, com base no saber acumulado por ele, pelo campo de conhecimento a que se
vincula, munido das bases teóricas e do rigor metodológico necessário, constrói uma visão particular
sobre o objeto de análise observado, sem a preocupação com a generalização, pois é da natureza do
discurso o seu caráter de unicidade:

entendida aqui como a singularidade (do sujeito, da significação, do


acontecimento discursivo) constituída historicamente: o único que é
singular na medida em que é constituído pelo Outro (do inconsciente,
da linguagem) e pelos outros (sociais, ideológicos). (...) a unicidade é o
princípio que permite compreender o discurso em sua natureza ambígua
e contraditória de ser ao mesmo tempo estrutura (sistema linguístico,
regularidade, historicidade, memória), e acontecimento (descontinuidade,
deslocamento, deriva, devir) no entroncamento do real da história, da
língua e do inconsciente. (FIGUEIRA, 2015, p. 77)

Jamais o trabalho do analista de discurso será absoluto, generalizante, totalizante ou totalitário,


mas ele pode e deve ser significativo, relevante, abrangente e profundo, no sentido que nos dá
Orlandi (1984, p. 24):

não se trata de analisar um maior número de fatos, ou de pegar no foco


“explicativo” da teoria um maior número de fenômenos. Trata-se de ir mais
fundo na natureza da linguagem. (...)

Um estudo mais abrangente, a essa altura dos estudos da linguagem, é


aquele que vai mais fundo na sua natureza, é aquele que perde menos de
sua multiplicidade, de sua complexidade. É aquele que ousa aceitar que não
há hierarquias, não há categorias estritas, ou níveis que possam servir de
suporte para explicitar o que não dá para explicitar, nem simplificar o que
não dá para simplificar, ou clarear o que, por natureza, se faz obscuro. A
ideia de movimento, a de fragmento, a de múltiplo, a de fugaz, não devem
meter medo.

100
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Portanto, a opacidade do discurso, sua heterogeneidade constitutiva e constituída por


antagonismos, contradições, atravessamentos, além do dinamismo de seu estatuto histórico, nos
impelem à montagem de corpora que permitam ir fundo não apenas nas regularidades, mas também
na dispersão, não apenas na estabilidade, mas sobretudo nas falhas, não apenas na repetição/
reprodução do mesmo sentido parafrástico, mas principalmente na emergência/ruptura de sentidos
outros, polissêmicos e polêmicos.

Dessa maneira, recorremos agora aos trabalhos de Foucault (2005), Courtine (2014), Glozman
et al. (2014) e Maingueneau (2008a e 2008b) para nos fundamentar numa metodologia de montagem
de corpora (ou arquivos10) que possibilite acolher as idiossincrasias do objeto discurso.

Foucault (2005, p. 6) empreende uma revolução metodológica, na medida em que problematiza


as unidades comumente utilizadas nas pesquisas: “Através de que critérios isolar as unidades com
que nos relacionamos: O que é uma ciência? O que é uma obra? O que é uma teoria? O que é um
conceito? O que é um texto?”. Percebemos a ênfase dada pelo autor ao artigo indefinido (um, uma),
que podemos compreender também como numeral, na medida em que Foucault questiona justamente
a ilusão de homogeneidade que tais unidades induzem. Ao invés da busca usual por unidade,
homogeneidade, coerência e continuidade nas explicações e procedimentos heurísticos, Foucault
coloca a necessidade de ênfase na dispersão: “Uma descrição global cinge todos os fenômenos em
torno de um centro único – princípio, significação, espírito, visão do mundo, forma de conjunto;
uma história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de uma dispersão” (FOUCAULT, 2005, p.12).
A insistência na ideia de dispersão é necessária para desmobilizar as práticas habituais que, via
de regra, procuram produzir explicações uniformizantes, generalizantes, totalizadoras. Contudo,
Foucault também sabe que existem as regularidades – “Será preciso abandonar essa dispersão à
aparência de sua desordem?” (FOUCAULT, 2005, p. 62) – e com isso, propõe a noção de formação
discursiva, que estabelece a paradoxal concepção de um “sistema de dispersão”:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,


semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os
tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir
uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
10 “O arquivo, no sentido que Michel Foucault dá a esse termo, não é o conjunto dos textos que uma sociedade deixou,
(...), é um dispositivo não fortuito que constitui figuras distintas, no sentido de que cada dispositivo de arquivo esta-
belece sua própria ordenação. Assim, do lado do arquivo, o sentido é convocado a partir de uma diversidade máxima
de textos, de dispositivos de arquivo específicos sobre um tema, um acontecimento, um itinerário” (GUILHAUMOU;
MALDIDIER, 2016b, p. 238).

101
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições


e conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante sistema de
dispersão, tais como ‘ciência’, ou ‘ideologia’, ou ‘teoria’, ou ‘domínio de
objetividade’. (FOUCAULT, 2005, p. 43)

Desse modo, Foucault busca “restituir ao enunciado sua singularidade de acontecimento”,


ou seja, compreender o enunciado não apenas como espaço de repetição, de reprodução do
sentido parafrástico, mas também como lócus de emergências de rupturas, de dissensões, tensões,
contestações, polissemias que instauram outros sentidos diferentes daqueles comumente esperados.

Glozman (no prelo, p. 5) nos explica a razão para a necessidade de desnaturalizar as unidades
evidentes que Foucault problematiza em seu método arqueológico:

A noção de formações discursivas surge em Foucault (2002) para (pr)opor


ao funcionamento espontâneo das unidades evidentes, dadas de antemão,
unidades tais como autor, disciplina, instituição, período, corrente,
agregaríamos “estilo” (romantismo, por exemplo), gênero discursivo,
entre outras. Isto é, formas de organização dos discursos cuja unidade e
estabilidade/delimitação se supõe, se dá por existente de antemão. A
noção de FD surge, justamente, para desarticular, desnaturalizar, desarmar
esse modo espontâneo de reprodução das unidades evidentes. O trabalho
descritivo, o trabalho analítico, lança outras “unidades”, outras séries.11

A autora avança, na esteira metodológica da arqueologia foucaultiana, a tese de que o corpus


não preexiste ao trabalho de análise, mas também é fruto desse trabalho analítico, é produzido por ele:

O que estamos propondo, assim, é que a investigação produz arquivos; é,


portanto, performativa no sentido austiniano (Austin, 1998), não descritiva
(não constativa). É o ato performativo o que faz de um material uma fonte,
nada há em si, em sua estrutura ou suposta natureza que a diferencie de

11 Tradução nossa: La noción de formaciones discursivas surge en Foucault (2002) para (pr)oponer al funcionamiento
espontáneo de las unidades evidentes, dadas de antemano, unidades tales como autor, disciplina, institución, período,
corriente, agregaríamos “estilo” (romanticismo, por caso), género discurso, entre otras. Es decir, formas de organiza-
ción de los discursos cuya unidad y estabilidad/delimitación [s]e supone, se da por existente de antemano. La noción
de FD surge, justamente, para desarticular, desnaturalizar, desarmar ese modo espontáneo de reproducción de las
unidades evidentes. El trabajo descriptivo, el trabajo analítico, arroja otras “unidades”, otras series.

102
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

antemão enquanto material válido para uma pesquisa. (GLOZMAN, no


prelo, p. 7-8)12

Assim, Glozman nos convida a trabalhar com a noção foucaultiana de série, para que possamos
atravessar as unidades evidentes e alcançar “as pistas que resultam “socialmente transversais””13
(p.1). Se o discurso não é o texto, mas a materialização da ideologia na linguagem, e esta materialização
é um processo histórico, o discurso pode estar disperso numa amplitude de materiais de natureza
muito distinta. A montagem das séries consiste justamente em um dos desafios da pesquisa: (re)
construir esses trajetos, percursos, filiações sócio-histórico-ideológicas que se disseminam em
meio a uma diversidade de materialidades simbólicas. Daí a necessidade de um “Trabalho com
uma heterogeneidade de materiais textuais”14 (GLOZMAN, no prelo, p. 2). A montagem do corpus
(ou arquivo) é inseparável do próprio trabalho de análise; não se monta o corpus primeiro, para só
depois analisá-lo: a própria montagem já se configura como gesto analítico: “Organizamos séries
que são resultado de processos analíticos, séries cuja forma é analítica”15 (GLOZMAN, no prelo, p.
2). Do conjunto de séries construídas, montadas pelo pesquisador, resultará o arquivo (corpus) da
investigação, cuja forma (configuração) já apontará para um dado gesto de leitura desse material.
O que se está problematizando é o próprio estatuto do corpus como pré-existente à análise: “a
evidência que queremos problematizar: o corpus como ponto de partida do trabalho de investigação”16
(GLOZMAN et al., 2014, p. 37).

Outro autor em que nos pautamos para consolidar uma metodologia discursiva e materialista
para a montagem do corpus é Maingueneau (2008a). Ele estabelece para os materiais uma distinção
entre unidades discursivas tópicas e não-tópicas. As unidades tópicas correspondem, em geral,
aos gêneros de discurso em sua relação de estabilidade com seus respectivos campos discursivos
(político, literário, filosófico, jornalístico, pedagógico, publicitário etc.). Já as unidades não-tópicas

não são estabilizadas por propriedades que definem fronteiras pré-


formatadas (qualquer que seja a origem dessa formatação); o princípio

12 Tradução nossa: Lo que estamos planteando, así, es que la investigación produce archivos; es, por tanto, realizativa en
el sentido austiniano (Austin 1998), no descriptiva (no constatativa). Es el acto realizativo el que hace de un material
una fuente, nada hay en sí, en su estructura o supuesta naturaleza que la diferencie de antemano en tanto material
válido para una pesquisa.
13 Tradução nossa: las huellas que resultan “socialmente transversales”
14 Tradução nossa: Trabajo con una heterogeneidad de materiales textuales
15 Tradução nossa: Organizamos series que son resultado de procesos analíticos, series cuya forma es analítica
16 Tradução nossa: la evidencia que queremos problematizar: el corpus como un punto de partida del trabajo de investiga-
ción

103
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

que as reagrupa é necessariamente de responsabilidade do analista.


São construídas pelos pesquisadores independentemente das fronteiras
estabelecidas e reagrupam enunciados marcadamente inscritos na história.
Assim, unidades como ‘o discurso racista’ ou ‘o discurso colonial’, por
exemplo, apenas podem ser delimitadas pelas outras fronteiras impostas
pelo pesquisador. Os corpora aos quais correspondem podem conter
um conjunto aberto de tipos e de gêneros de discurso, de campos e de
posicionamentos, de registros enunciativos ou comunicacionais. [...] É para
esse tipo de unidade que propus reservar o termo ‘formação discursiva’.
(MAINGUENEAU, 2008a, p. 87)

Compreendemos, pois, com Maingueneau, que o analista de discurso pode se valer das mais
diversas fontes e tipos de materiais quando se trata de constituir as formações discursivas, que são
sistemas de dispersão, conforme vimos em Foucault, e contraditórias e heterogêneas a si mesmas,
conforme Pêcheux:

caracterizar uma formação discursiva classificando-a entre outras por


qualquer tipo de tipologia torna-se estritamente impossível; é preciso,
ao contrário, definir a relação interna que ela entretém com seu exterior
discursivo específico, enfim, determinar as invasões constitutivas pelas
quais uma pluralidade contraditória, desigual e internamente subordinada
de formações discursivas se organiza em função dos interesses que a luta
ideológica de classes coloca em jogo17 (PÊCHEUX, 1990, p. 259)

Maingueneau atesta também o papel central do analista, com seus saberes e suas questões/
questionamentos, no agenciamento produtivo do corpus de análise, quando se trata de pensar as
formações discursivas como unidades não-tópicas:

É então necessário ressaltar o caráter dinâmico e agentivo do termo


“formação” em “formação” discursiva. Em vez de considerá-lo
em uma perspectiva puramente estática como referindo-se a uma

17 Tradução nossa: caractériser une formation discursive en la classant parmi d’autres par quelque typologie que ce soit
devient strictement impossible: il faut au contraire definir le rapport interne qu’elle entretient avec son extérieur
discursif spécifique, bref déterminer les empiètements constitutifs par lesquels une pluralité contradictoire, inégale
et intérieurement subordonnée de formations discursives s’organise en fonction des intérêts que met en jeu la lutte
idéologique de classes.

104
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

entidade já existente, o analista, em função de sua pesquisa, dá forma


a uma configuração original. Isso permite o afastamento de uma
concepção “especular” da construção de corpus. Frequentemente,
com efeito, considera-se o corpus como uma espécie de condensado,
de espelho de um conjunto de textos cuja unidade seria dada de
antemão; daí as discussões acirradas para saber se o corpus é
suficientemente “representativo”. A questão da representatividade
é, sem dúvida, fundamental, mas não deve permitir que se esqueçam
as operações que permitem instaurar esse corpus. (MAINGUENEAU,
2008b, p. 21-22)

Desse modo, é possível então conceber a formação discursiva como “unidade dividida”,
conforme a proposição de Courtine (2014, p.65), pensando os “efeitos das contradições ideológicas de
classe” no interior de cada discurso, na medida em que “todo discurso (discurso comunista, discurso
socialista...) deve ser pensado como uma unidade dividida numa heterogeneidade em relação a ele
mesmo” (COURTINE, 2014, p. 65).

Courtine também acompanha os demais autores aqui citados tanto no que se refere à implicação
do pesquisador no gesto de construção do corpus, quanto no que diz respeito ao caráter aberto e
provisório das séries montadas e do arquivo instaurado pelo analista. Vejamos:

o problema que se levanta em AD, no que concerne a realização material de


um corpus discursivo que seja adequado à elaboração teórica do conceito
de FD [formação discursiva], somente poderá ser resolvido pelo tratamento
de um campo de arquivo como dispositivo experimental. Isso significa afirmar
o caráter necessariamente construído de uma experimentação como
realização de hipóteses teóricas. (COURTINE, 2014, p. 80)

Em outras palavras, o autor reconhece o corpus como fruto de um trabalho do analista, não
como algo dado de antemão, e sinaliza para a natureza experimental desse procedimento, no sentido
que se trata de um trabalho com hipóteses18, que poderão ser confirmadas ou não. Dado o caráter
experimental e hipotético do procedimento, aponta-se para “uma concepção dinâmica do trabalho
sobre corpus” (COURTINE, 2014, p.115):

18 “O discurso, sempre construído a partir de hipóteses histórico-sociais, não pode ser confundido nem com a evidência
dos dados empíricos, nem com o texto” (MALDIDIER, 2016, p. 217).

105
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Tal concepção não considerará um corpus discursivo como um conjunto


fechado de dados dependente de uma certa organização; fará, ao contrário,
do corpus discursivo um conjunto aberto de articulações cuja construção
não é efetuada de uma vez por todas no início do procedimento de análise:
conceberemos aqui um procedimento de AD como um procedimento de
interrogação regulado por dados discursivos, que prevê as etapas sucessivas
de um trabalho sobre corpus ao longo do próprio procedimento.

Concluímos, pois, que a construção do corpus significa um procedimento instaurado pelo


analista de discurso, apoiado em seus julgamentos de saber, a partir de hipóteses históricas. O corpus,
então, jamais é dado de antemão, a partir de categorias estáveis e homogêneas; ao contrário, devido
ao caráter contraditório, heterogêneo e disperso do discurso, procede-se à montagem de séries
que possam desestabilizar as unidades evidentes, a fim de constituir um arquivo de materialidades
simbólicas, restituídas/instituídas a partir dos traços/pistas dos materiais que são colocados em
relação/articulados pelo pesquisador, sempre numa dinâmica provisória, experimental e aberta
de momentos de corpus, recompostos a cada novo gesto analítico no movimento em espiral entre
descrição e interpretação, intradiscurso e interdiscurso, formulação e memória, teoria e análise.

Na próxima seção, nos dedicaremos a caracterizar as linhas gerais da constituição de dispositivos


de análise pelo viés discursivo.

Dispositivos de Análise

Conforme já dito anteriormente, a AD não possui uma metodologia de análise estável, um


método pronto que bastaria ser aplicado aos diversos corpora. Dada a singularidade do objeto
teórico discurso e a unicidade do objeto de análise que cada pesquisa elege, considerando também as
especificidades dos objetivos e hipóteses (ou questões) levantadas em cada trabalho, cada pesquisador
deve, a partir do arcabouço teórico de conceitos disponíveis neste campo do conhecimento, construir
o seu próprio dispositivo de análise, adequando-o aos elementos que acabamos de citar.

Segundo Orlandi (2013, p. 27),

Distinguimos entre o dispositivo teórico da interpretação (...) e o


dispositivo analítico construído pelo analista a cada análise. Embora o
dispositivo teórico encampe o dispositivo analítico, o inclua, quando nos
referimos ao dispositivo analítico, estamos pensando no dispositivo teórico

106
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

já “individualizado” pelo analista em uma análise específica. Daí dizermos


que o dispositivo teórico é o mesmo, mas os dispositivos analíticos, não. O
que define a forma do dispositivo analítico é a questão posta pelo analista,
a natureza do material que analisa e a finalidade da análise.

Dito isso, como nortear novos analistas de discurso em formação, que terão de elaborar pela
primeira vez seus próprios dispositivos de análise? Se não há modelo, nem manual de instruções,
como fazer? Vamos ensaiar algumas tentativas de resposta.

Em nossa visão, a primeira coisa a fazer é proceder à leitura do corpus, apenas para realizar uma
primeira interpretação do material. Feita essa leitura, o analista deve tentar buscar compreender
como foram produzidos os efeitos de sentido que aconteceram na sua interpretação. Isto é, a partir
dos efeitos de sentido suscitados, deve-se buscar recompor o processo de produção de sentidos, o
processo discursivo, que é um processo histórico-ideológico: “O dizer tem história. Os sentidos não
se esgotam no imediato” (ORLANDI, 2013, p. 50).

Assim, pode-se colocar algumas questões na busca pela elucidação do funcionamento


discursivo envolvido naquela produção de sentidos. Quanto à historicidade, perguntamos: a quais
outros enunciados (não presentes no texto) o dizer faz referência, com quais enunciados da memória
discursiva ele se relaciona; de que regiões do interdiscurso provêm tais enunciados, quais suas
filiações histórico-ideológicas, com quais formações discursivas ele se liga ou de quais ele se afasta,
quais posicionamentos atualiza, quais recusa/rejeita?

Do mesmo modo, deve-se ter atenção permanente a respeito da relação entre o dito e o não-
dito: “Esses sentidos têm a ver com o que é dito ali, mas também em outros lugares, assim como
com o que não é dito, e com o que poderia ser dito e não foi” (ORLANDI, 2013, p. 30). Dessa maneira,
é preciso colocar em ação a grande pergunta metodológica da arqueologia foucaultiana “como
apareceu um determinando enunciado, e não outro em seu lugar?” (FOUCAULT, 2005, p. 30). Assim,
é possível (se) perguntar acerca da forma do dizer: por que foi dito desse modo e não de outro?
Poderia ter sido dito de uma forma diferente? Essa substituição por outra forma faria diferença no
efeito de sentido suscitado? Quais formas foram preteridas (silenciadas) em benefício daquela que
o sujeito empregou? Que diferentes efeitos de sentido são mobilizados quando se opta por uma ou
por outra forma de enunciar algo? Há algo que podemos considerar como omissão, isto é, algo que
deveria ter sido dito, ou ao menos se esperaria que fosse dito, mas não o foi? Por que ocorre essa
omissão, esse apagamento?

107
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Com tais questionamentos, torna-se possível pensar se as diferenças no nível da forma estão
ou não associadas a diferenças no campo dos posicionamentos ideológicos, no nível das filiações
históricas.

Em seguida (mas não necessariamente numa ordem pré-determinada), podem ser lançados
questionamentos concernentes à opacidade da linguagem. Desse modo, poder-se-ia perguntar: Quais
são os pontos ambíguos, equívocos, polissêmicos do texto? Por que ocorrem tais equivocidades?
Quais as diferentes filiações estão em jogo, produzindo o equívoco, a polissemia? Que elemento(s)
linguístico(s) é(são) responsável(is) pela abertura de sentidos identificada? Em resumo, trata-se
de permanecer atento ao que Pêcheux (2006, p. 53) chama de “pontos de deriva”, espaço por onde
o sentido pode desviar, escapar, pode se deslocar, se transformar, ficar na indecidibilidade, num
espaço intervalar entre diferentes posições ideológicas que lutam e disputam a significação mais
conveniente a seus propósitos e interesses políticos.

Nesse nível de análise, compreendemos que o trabalho do analista de discurso se assemelha


muito ao que Ípola (2012, p. 8) considera o método althusseriano de interpretação de textos, a leitura
sintomal:

Althusser entendia por “leitura sintomal” um tipo de leitura comparável


ao que os psicanalistas chamam, falando da escuta analítica, a regra da
“atenção livremente flutuante”, isto é, a regra que recomenda a ficar alerta e
atento às lacunas, às perguntas sem respostas, às respostas sem perguntas,
às torções que poderia sofrer uma frase ou uma palavra, às repetições, às
metáforas (...). Essa regra aconselhava igualmente a prestar uma atenção
muito particular aos esquecimentos, às contradições, às dúvidas, e aos
lapsos do texto submetido à leitura.19

A nosso ver, a proposta althusseriana da leitura sintomal, de clara inspiração psicanalítica,


coloca ao analista de discurso a necessidade da “atenção livremente flutuante”, que consiste em
estar alerta a todo e qualquer sinal, traço, vestígio (por menor que seja, ou por mais ínfimo que
pareça), pois tal elemento pode se revelar um ponto de entrada para a análise e para a interpretação,

19 Tradução nossa: « Althusser entendait par « lecture symptomale » un type de lecture comparable à ce que les psycha-
nalystes appellent, en parlant de l’écoute analytique, la règle de l’ « attention librement flottante », c’est-à-dire la règle
qui recommande de rester alerte et attentif aux lacunes, aux questions sans réponses, aux réponses sans questions,
aux torsions que pourrait subir une phrase ou un mot, aux répétitions, aux métaphores (...). Cette règle conseillait
également de prêter une attention toute particulière aux oublis, aux contradictions, aux doutes et aux lapsus du texte
soumis à la lecture. ».

108
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

na medida em que pode se mostrar a ponta de um fio transversal, que atravessa o texto na relação
com outros textos, outros dizeres, outros enunciados, remetendo à filiação histórico-ideológica que
caracteriza um dado discurso, afinal de contas, Orlandi (2013) nos esclarece que “o discurso é uma
dispersão de textos” (p.70) e “a análise do discurso não está interessada no texto em si como objeto
final de sua explicação, mas como unidade que lhe permite ter acesso ao discurso” (p.72).

Para ter acesso ao discurso, ao processo histórico-ideológico de produção de efeitos de sentido,


que caracteriza o processo discursivo, é preciso então estar atento a todas as formas de manifestação
que a linguagem pode assumir numa textualidade (seja ela oral, escrita, multimodal etc.), tomar
os elementos linguísticos (morfológicos, lexicais, sintáticos, enunciativos) como pontos de partida,
como sintomas da materialização da ideologia na linguagem.

Nesse aspecto, enxergamos certa semelhança dos procedimentos heurísticos da AD com o


paradigma indiciário praticado pelo historiador Carlo Ginzburg. Inspirado também na psicanálise
freudiana (assim como a AD), bem como em outras tradições de investigação (medicina, semiótica,
história da arte/pintura), Ginzburg (2013) constrói uma proposta metodológica para as pesquisas
históricas, nas quais se deve ter por hábito metódico considerar os elementos menores – geralmente
os mais desprezados, aqueles supostamente insignificantes – como relevantes para o trabalho de
investigação, na medida em que podem se mostrar como pistas, traços, rastros, sinais, indícios
reveladores de processos ou fenômenos muito mais amplos:

A proposta de um método interpretativo centrado nos detalhes,


nos dados marginais, considerados como reveladores. De tal
modo, detalhes que frequentemente eram considerados como sem
importância, ou triviais, “baixos”, davam a chave para aceder aos
produtos mais elevados do espírito humano.20 (GINZBURG, 2013,
p.180)

Coincidentemente (ou não), Ginzburg assenta seu método indiciário sobre “a noção decisiva de
sintoma (semeion)”21 (GINZBURG, 2013, p.187), empregada pela psicanálise, bem como pelo método
althusseriano da leitura sintomal, que inspirou a teoria pecheutiana da AD. Não por acaso, Pêcheux

20 Tradução nossa do espanhol: ““la propuesta de un método interpretativo centrado en los descartes, en los datos mar-
ginales, considerados como reveladores. De tal modo, detalles que a menudo eran considerados como sin importancia,
o triviales, “bajos”, daban la clave para acceder a los productos más elevados des espíritu humano”
21 Tradução nossa do espanhol: “la noción decisiva de síntoma (semeion)”

109
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

cita Ginzburg na passagem a seguir, demonstrando toda a afinidade entre as propostas da análise de
discurso e do paradigma indiciário:

As noções de “ideologias” ou de “universo de representações e de crenças”


designam, sob modalidades evidentemente bem diversas, as tais redes
de “signos, traços, e pistas”, quando se retomam os termos empregados
por Carlo Ginzburg dentro da reflexão sobre o paradigma do indício.”
(PÊCHEUX, 2011, p. 142)

O paradigma indiciário atende bem aos pressupostos teóricos e propósitos da AD na medida


em que compartilha com ela a importância que é concedida à singularidade, ao primado que se
dá à descrição dos materiais concretos (sem desconsiderar sua espessura e opacidade), à recusa
em antecipar e reproduzir leituras consagradas e totalizantes, questionando as fáceis e óbvias
interpretações oferecidas ao olhar ingênuo que confia na evidência da realidade: “Nesta negação
da transparência da realidade encontrava uma legitimação implícita, um paradigma indiciário”22
(GINZBURG, 2013, p. 187). Ademais, a noção de sintoma remete à manifestação ou materialização
de algo inconsciente, involuntário, que escapa à intencionalidade ou ao controle do projeto de dizer
do sujeito locutor, tal como se concebe a relação entre sujeito, linguagem e sentido na AD.

Devemos, pois, conceber os textos como rede de traços que nos remetem à dispersão de fios
discursivos e de filiações histórico-ideológicas. Cada pequeno e aparentemente ínfimo detalhe
da materialidade simbólica conta, pois pode representar um indício ou sintoma de um processo
discursivo mais amplo. Partindo dos efeitos de sentido suscitados na interpretação, o analista
de discurso descreve atenta e pormenorizadamente seu material em seus aspectos linguísticos
(ou multimodais), com vistas a estabelecer o funcionamento pelo qual a ideologia e a história se
inscrevem na linguagem: “Quando as causas não são reproduzíveis, não existe outro caminho a não
ser inferi-las a partir de seus efeitos”23 (GINZBURG, 2013, p. 208).

Considerações Finais

Neste trabalho, procuramos indicar alguns caminhos metodológicos para a análise de


discursos, tanto no que diz respeito à construção e montagem do corpus, quanto em relação à
elaboração do dispositivo de análise. Para alcançar tais objetivos, primeiramente nos foi necessário
22 “En esta negación de la transparencia de la realidad encontraba una legitimación implícita, un paradigma indiciario”
23 “Cuando las causas no son reproducibles, no existe otro camino que inferirlas a partir de sus efectos”

110
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

realizar uma reflexão sobre os princípios epistemológicos e pressupostos teóricos da AD, a fim de
explicitar sobre quais bases de cientificidade se assenta tanto a justificativa para o fato de que não
é possível trabalhar com um modelo metodológico único e pré-definido, quanto as sugestões de
possíveis percursos analíticos que apresentem consistência em relação à perspectiva heurística de
viés discursivo. Diante da impossibilidade de se definir um manual de instruções ou um modelo
metodológico replicável a qualquer contexto analítico, escolhemos o caminho de trilhar uma reflexão
epistêmica, que contemplasse diversos autores do campo, fazendo um diálogo frutífero, na busca por
encaminhamentos que possam ser úteis sobretudo a novos pesquisadores/analistas de discurso em
formação.

Referências

FIGUEIRA, L. F. B. O althusserianismo em linguística: a teoria do discurso de Michel Pêcheux. Jundiaí: Paco


editorial, 2015.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

GINZBURG, C. Mitos, emblemas, indícios: morfología e história. Buenos Aires: Prometeo libros, 2013.

GLOZMAN, M. et al. Qué es un corpus? In: Entramados y perspectivas. Revista de la carrera de sociología. Vol.
4. N. 4. 2014

GLOZMAN, M. La forma del archivo: Sobre las modalidades de trabajo en los procesos de investigación con
materiales discursivos. No prelo.

GUILHAUMOU, J. Le corpus en analyse de discours: perspective historique. In: Corpus, n. 1, 2002.

GUILHAUMOU, J; MALDIDIER, D. Breve crítica para uma longa história. In: GUILAUMOU, J.; MALDIDIER, D.;
ROBIN, R. Discurso e Arquivo: experimentações em análise do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 2016a.

GUILHAUMOU, J; MALDIDIER, D. Novos gestos de leitura ou o ponto de vista da Análise de Discurso sobre o
sentido. In: GUILAUMOU, J.; MALDIDIER, D.; ROBIN, R. Discurso e Arquivo: experimentações em análise do
discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 2016b.

ÍPOLA, E. de. Althusser, l’adieu infini. Paris: Presses Universitaires de France, 2012

MAINGUENEAU, D. Michel Pêcheux: três figuras. In: BARONAS, R. e KOMESU, F. (Orgs.) Homenagem a Michel
Pêcheux: 25 anos de presença na análise do discurso. Campinas, SP: Mercado das letras, 2008a.

MAINGUENEAU, D. Unidades tópicas e não tópicas. In: Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola, 2008b.

MALDIDIER, D. Elementos para uma história da Análise de discurso na França. In: GUILAUMOU, J.; MALDIDIER,
D.; ROBIN, R. Discurso e Arquivo: experimentações em análise do discurso. Campinas: Editora da Unicamp,
2016.

111
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 11ª ed. Campinas: Pontes, 2013.

ORLANDI, E. Discurso, imaginário social e conhecimento. In: Em Aberto, Brasília, ano 14, n.61, jan./mar. 1994.
pp. 53-59.

ORLANDI, E. Segmentar ou recortar? In: Linguística: questões e controvérsias. Série Estudos10. Uberaba: 1984.
pp. 09-26.

PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso – AAD 69. [1969] In: Gadet, F; HAK, T. Por uma análise
automática do discurso. 4ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

PÊCHEUX, M. Leitura e memória: projeto de pesquisa. In: ORLANDI, E. (Org.). Análise de discurso: Michel
Pêcheux. Campinas: Pontes, 2011

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. [1983]. 4ª ed. Campinas: Pontes, 2006.

PÊCHEUX, M. Remontons de Foucault à Spinoza. In: MALDIDIER, D. L’inquiétude du discours: textes de


Michel Pêcheux choisis et présentés par Denise Maldidier. Paris: Éditions des Cendres, 1990.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3ª ed. Campinas: Editora da
Unicamp,1997.

POSSENTI, S. Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In: BENTES, A. C.; MUSSALIM, F. Introdução
à linguística: fundamentos epistemológicos. Vol. 3. São Paulo: Cortez, 2004.

ZIZEK, S. Como ler Lacan. Rio de Janeiro. Zahar, 2010.

112
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

POR UMA LITERATURA ALÉM DO CÂNONE:


UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE O
ALQUIMISTA, DE PAULO COELHO

Ivi Furloni

Introdução

O que é boa literatura? Essa pergunta, ao que nos parece, é a que mais interessa a pesquisadores
e professores quando se pensa em que obra indicar para jovens leitores. A nosso ver, em se tratando
de formar leitores, a pergunta que colocamos no início não é a melhor porque existem diversos
fatores a serem considerados quando o objetivo principal é formar leitores.

Não é de hoje que críticos literários, ou o cânone, direcionam as escolhas de professores para
indicação de leitura nas séries do ensino fundamental e médio. No entanto, a crítica nem sempre
contempla as obras contemporâneas, e menos ainda leva em consideração a recepção, ou seja, o
interesse do público leitor, ainda mais quando esse público é formado por crianças e adolescentes.

No início do século XXI, em literatura, observamos o sucesso da saga do bruxo Harry Potter.
Com sete obras publicadas pela britânica J. K. Rowling, a série de romances narra a vida de um jovem
bruxo e as diversas peripécias pelas quais passa, inclusive, para seu autoconhecimento. A saga em
questão tem uma legião de fãs, e uma geração toda de leitores foi formada por essas obras.

No entanto, esse tipo de obra, que ainda não entrou para o escopo do cânone, não é considerada
em listas de livros a serem recomendados como leitura obrigatória pelas escolas. Ainda percebemos
uma forte influência dessa visão do que seria Literatura no momento de se montar uma lista de
livros que serão exigidos como leitura obrigatória em vestibular, por exemplo.

113
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Não questionamos a importância de a escola cobrar de seus alunos a leitura dos chamados
clássicos, visto que é obrigação da escola trabalhar determinados conteúdos, como a Literatura, além
de dar acesso aos alunos a esse tipo de leitura porque a escola é o único espaço em que muitos
desses alunos terão contato com as obras clássicas. O que pretendemos com esse artigo é discutir
a importância de se levar em consideração outras obras a serem utilizadas na formação do aluno
leitor, e não apenas aquelas que são ditadas pelo cânone. Isso porque, segundo Compagnon (2006)

Aquilo de que nos lembramos, aquilo que marcou nossas leituras da


infância, dizia Proust, afastando-se do moralismo ruskiano, não é o próprio
livro, mas o cenário no qual nós o lemos, as impressões que acompanharam
nossa leitura. A leitura tem a ver com empatia, projeção, identificação.
(COMPAGNON, 2006, p. 143) (o grifo é nosso)

Para Proust (1989), a obra nada mais é do que um instrumento oferecido ao leitor para que ele
veja coisas sobre si mesmo que talvez sem ela não pudesse perceber. O objetivo do leitor, então, não
é analisar e compreender a obra, mas sim analisar e compreender a si mesmo.

Seguindo essa lógica, para formar um leitor, para despertar o interesse de crianças e jovens pela
leitura, devemos partir do pressuposto de que literatura é um prazer, mas que é também instrução. E
para isso, devemos abrir nossos olhos para o que é Literatura e como a análise de um texto literário
deve ser feita de forma que o aluno não apenas tenha o prazer da leitura, mas que também seja
instruído por ela. Por isso, propomos uma discussão sobre Literatura e cânone, sobre a questão da
literariedade e da estética de um romance. Além disso, propomos uma análise da obra O Alquimista,
de Paulo Coelho, autor que, de certa forma, sofre preconceitos no meio acadêmico.

Assim, para mostrarmos a condição de literariedade na obra de Paulo Coelho, traçaremos um


panorama da crítica literária dita marginal pelo viés do relativismo moderado de Compagnon (2006).

Teoria da literatura e Crítica literária

Até a década de 1960, o que imperava em termos de crítica eram as noções estruturalistas/
formalistas. Essa vertente de crítica era mais pedagógica do que uma vertente de crítica literária, no
sentido de mostrar como uma obra literária deveria ser escrita, ou seja, que elementos ela deveria ter
para ser considerada uma obra literária. Segundo Compagnon (2006), a crítica não pode ser reduzida
à técnica ou a uma pedagogia, nem ser completamente metafísica; é preciso existir um meio termo.

114
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Assim, critica o formalismo, que criava manuais para análise da obra escrita para confirmar se ela
era ou não literatura.

Compagnon (2006) não nega a existência de uma teoria que proponha a análise da obra
literária. Ao contrário, para ele, essa crítica não deve existir por ela mesma, mas sim para gerar
polêmica enquanto crítica. A teoria é autêntica e pertinente quando promove “o combate feroz e
vivificante que empreende contra as idéias preconcebidas dos estudos literários, e pela resistência
igualmente determinada que as idéias preconcebidas lhe opõem” (COMPAGNON, 2006, p.16). Assim,
a construção da teoria não deve ser mera reprodução de modelos, como vinha sendo feito até a década
de 1960, pois, assim, nada se cria, apenas perpetuam-se paradigmas ou resíduos de outras escolas
de crítica. Para Compagnon (2006), a verdadeira crítica surge quando dogmas são questionados e
deixam de ser vistos como algo já consolidado, pois o pior que pode acontecer com a teoria é que ela
seja “transformada em método pela instituição acadêmica” (COMPAGNON, 2006, p. 18).

O problema começa com o fato de que toda teoria está sempre levantando a mesma questão:
o que é literatura? A pergunta é sempre a mesma e a resposta a essa pergunta frágil é contraditória.
Aparentemente, Platão e Aristóteles fizeram teoria da literatura ao categorizar elementos presentes
nas obras de seu tempo, como “os gêneros, as formas, os modos, as figuras” (COMPAGNON, 2006,
p.19). Mas, pensando na noção moderna, eles não fizeram teoria da literatura, visto que apenas
normalizaram essas categorias. O foco de Platão e Aristóteles era a literatura por ela mesma, não a
pesquisa literária.

Para Compagnon (2006), a teoria da literatura moderna é:

Descritiva, pois supõe a existência de estudos literários, instaurados no


século XIX, a partir do romantismo. Tem uma relação com a filosofia da
literatura como ramo da estética que reflete sobre a natureza e a função da
arte, a definição de belo e de valor. Mas a teoria da literatura não é filosofia
da literatura, não é especulativa nem abstrata, mas analítica ou tópica: seu
objeto são o/os discursos sobre a literatura, a crítica e a história literárias,
que ela questiona, problematiza, e cujas práticas organiza. A teoria da
literatura não é a polícia das letras, mas de certa forma sua epistemologia.
(COMPAGNON, 2006, p. 20)

E o que é a crítica literária? Compagnon (2006) entende a crítica literária como aquilo que é
dito/escrito sobre obras literárias para ajudar-nos na leitura, visto que a crítica “descreve, interpreta,
avalia o sentido e o efeito que as obras exercem sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores não

115
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

necessariamente cultos nem profissionais” (COMPAGNON, 2006, p. 22). Ela ocorre, num primeiro
momento, via boca a boca, em discussões de salão. Está voltada para apreciações e julgamentos, que
se dão por subjetivismo do crítico. Enquanto a crítica pode ser feita por qualquer leitor, a história
literária não, visto que esta está relacionada a fatores externos à literatura, como a criação e a
transmissão das obras. Esta faz parte do mundo acadêmico. Pode-se afirmar que a teoria é relativista
porque existem tantas teorias quanto teóricos, já que as teorias são “como doutrinas ou dogmas
críticos, ou ideologias” (COMPAGNON, 2006, p. 23), assim, cada um segue a sua.

Compagnon nos propõe então as seguintes perguntas:

Que hipóteses levantamos sobre a transformação, o movimento, a evolução


literária e sobre o valor, a originalidade, a pertinência literária? Ou ainda:
como compreendemos a tradição literária, tanto no seu aspecto dinâmico
(a história) quanto no seu aspecto estático (o valor)? (COMPAGNON, 2006,
p. 26)

A teoria da literatura é uma lição de relativismo, não de pluralismo: em


outras palavras, várias respostas são possíveis, não compossíveis; aceitáveis,
não compatíveis; ao invés de se somarem numa visão total e mais completa,
elas se excluem mutuamente, porque não chamam de literária a mesma
coisa; não visam a diferentes aspectos do mesmo objeto, mas a diferentes
objetos. (COMPAGNON, 2006, p. 26)

Assim, concluímos que há tantas teorias possíveis quanto são os teóricos existentes. Cada um
desenvolve a sua teoria. Não há a melhor, ou mais completa, lembrando que cada teoria enfoca
um determinado objeto. Por isso, é impossível comparar teorias, o que torna este campo aberto ao
pesquisador para que este escolha a que mais lhe apraz. Todo estudo literário, antes de mais nada,
deve definir seu objeto de estudo, ou seja, definir o que ele entende ou delimita por texto literário,
quais são as qualidades literárias que um texto deve ter para ser considerado literário. A pergunta,
então, não deveria ser o que é literatura, mas sim quando determinada escritura é literatura.

Segundo Foucault (1992), o valor de verdade esteve, por um tempo, ligado ao nome do autor.
Depois, passou-se a acreditar que todo texto pertencente a um conjunto ordenado (geralmente dos
discursos científicos) tinha valor de verdade. Para Foucault (1992), os discursos literários só recebem
valor de verdade se acompanhados da função autor. Parece ser inadmissível, nos dias atuais, um
discurso literário desprovido desta função, a ponto de se buscar sempre a função autor quando nos
deparamos com um discurso literário anônimo. É preciso saber quem o escreveu, quando, onde e por

116
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

quê. Mas, é preciso lembrar que Foucault (1992) retoma a função autor, que em nada se relaciona com
o nome próprio do autor, pois o nome próprio faz referência ao escritor. Ao designar, estamos falando
do autor, que se constitui pela e na escritura, por meio de outras características que constituem a
função autor. São elas: os outros, saberes, estética de si e historicidade. O valor de verdade está
ligado aos saberes que o autor põe em funcionamento por meio de sua obra1.

Compagnon (2006) nos diz que:

Evidentemente, identificar a literatura com o valor literário (os grandes


escritores) é, ao mesmo tempo, negar (de fato e direito) o valor do resto
dos romances, dramas e poemas, e, de modo mais geral, de outros gêneros
de verso e de prosa. Todo julgamento de valor repousa num atestado de
exclusão. Dizer que um texto é literário subentende sempre que um outro
não é. O estreitamento institucional da literatura no século XX ignora que,
para aquele que lê, o que ele lê é sempre literatura, seja Proust ou uma
fotonovela, e negligencia a complexidade dos níveis de literatura (como há
níveis de língua2) numa sociedade. A literatura, no sentido restrito, seria
somente a literatura culta, não a literatura popular (a Fiction das livrarias
britânicas). (COMPAGNON, 2006, p. 33-4)

No entanto, quando se trata dos grandes escritores, e do cânone, é preciso lembrar que não
há estabilidade. Os escritores que não eram considerados clássicos em determinado momento, são
redescobertos, e entram para o cânone, redefinindo a noção de literatura. Segundo Compagnon
(2006), existem outros critérios que ampliam o número de autores na contemporaneidade. Esses
critérios não estão ligados a valores literários e teóricos apenas, mas também a valores éticos,
sociais e ideológicos. Pensando, então, na função da literatura, segundo Aristóteles (s/d), ela deve
ser instrumento de instrução e, ao mesmo tempo, de prazer, ou seja, instruir enquanto agrada. Essa
instrução passada pela literatura é de cunho social, pois visa a regulação do comportamento humano
em sociedade.

Segundo os humanistas, é principalmente pela literatura que adquirimos um conhecimento de


mundo. Há um tipo de experiência passada quase que apenas pela literatura, como o desenvolvimento
de sentimentos. Esse pensamento está intimamente ligado ao surgimento da classe burguesa, que

1 Não vamos nos estender nessa discussão sobre a função autor, pois já o fizemos em um artigo publicado nos anais do
III SEMAD, intitulado “A Função Autor na obra O Alquimista de Paulo Coelho”.
2 Bakhtin (2002) diz que o romance é o gênero dominante no mundo contemporâneo exatamente porque não ignora a
existência de diversas línguas nacionais e diversas línguas dentro de uma mesma língua nacional (os dialetos), adotan-
do para si esse plurilinguismo.

117
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

deveria, pela literatura, se libertar, visto que, ao se tornar leitor, o indivíduo passa para o universal.
Esse idealismo humanista perdeu força por representar a visão de uma classe. A crítica de cunho
marxista, principalmente, não concorda com essa forma de conceber a literatura, pois, dessa forma,
ela serve para produzir um consenso social, sempre a partir de uma classe específica. A literatura
seria um objeto de divulgação ideológica.

Se a literatura pode servir de objeto de divulgação ideológica, ela poderia divulgar o pensamento
de qualquer classe. É o que acontece na segunda metade do século XIX, quando surgem poetas ditos
subversivos. Dessa forma, a literatura passa a trazer a ruptura, o novo, o jamais dito. O escritor seria
um visionário. Já com relação ao conteúdo, para Aristóteles (s/d), o mais importante na literatura
seria seu efeito mimético-ficcional.

Outra definição de literatura surge em meados do século XVIII: passa-se a ver a utilização
da linguagem pela literatura como seu fim, ou seja, a literatura seria definida como uma forma de
utilização estética da linguagem, em detrimento da linguagem cotidiana e vulgar. Para os românticos,
a literatura seria o único meio de se alcançar a plenitude de vida. Pela linguagem literária, cheia de
imagens e metáforas, é que se consegue escapar desse mundo e alcançar um estado puro de vivência.
A ideia da linguagem literária como sendo o belo continua vigorando, de certa forma, até hoje, pois
se separa a linguagem literária da linguagem comum, sendo a primeira mais singular, enquanto a
segunda é apenas útil. De acordo com a visão formalista da literatura, esta utiliza de forma plástica
a linguagem, mas sem uma utilidade prática.

Por um bom tempo, a literatura foi definida como a “arte verbal” (COMPAGNON, 2006, p. 40).
A esse uso literário da língua, que é o que distingue o texto literário do cotidiano, os formalistas
russos nomearam de literariedade. Sendo assim, para eles, o objeto de estudo não deveria ser a
literatura, mas sim a investigação dessa literariedade. Ao definir a literariedade como ponto a ser
buscado no estudo da teoria literária, os formalistas desejavam angariar autonomia para este campo
do saber, distanciando-o das vertentes históricas e psicologicistas. Assim, buscavam acentuar o
caráter de arte da linguagem como característica primeira da literatura, pois, para eles, “a linguagem
literária é motivada (e não arbitrária), autotélica (e não linear), auto-referencial (e não utilitária)”
(COMPAGNON, 2006, p. 41).

A linguagem literária, para os formalistas, cria literariedade por meio da desfamiliarização


da linguagem, pelo estranhamento provocado por ela. “A literatura, ou a arte em geral, renova a
sensibilidade linguística dos leitores através de procedimentos que desarranjam as formas habituais
e automáticas da sua percepção” (COMPAGNON, 2006, p. 41). Formalismo, então, porque essa
corrente de crítica busca nas obras aspectos formais de sua construção, aspectos esses apreensíveis
por meio de procedimentos analíticos. São esses aspectos formais que dariam a certas obras seu
caráter literário.

118
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Apesar de todas as outras vertentes da teoria literária, continuamos a buscar o literário por
meio de sua literariedade, esquecendo-nos de que a literatura, enquanto produção, mudou. Toda
essa confusão se dá, segundo Compagnon, pelo fato de Jakobson (1960), em seu texto “Lingüística e
Poética”, ter chamado de função poética a literariedade, dando à poesia esse caráter, e deixando de
lado as outras cinco funções na construção da literatura, afirmando ser a organização da mensagem
o foco da construção literária. Jakobson tentou se explicar posteriormente, dizendo que a função
poética é a dominante na literatura, mas não a única. Para ele, a poesia não tem por objetivo primeiro
informar (função referencial), pois seu foco deve ser a construção estética. Assim, a literariedade
surgiria de uma organização diferente da linguagem, pois a metáfora, por si só, não compõe a
literariedade de um texto, o que leva a necessidade de estabelecer uma construção metafórica mais
densa.

Mas e quanto aos textos que se constroem pela aproximação com a linguagem cotidiana? Para
Compagnon (2006), é exatamente esse traço de aproximação com a linguagem trivial que toma o
caráter de desfamiliarização com aquilo que, habitualmente, encontramos enquanto construção
linguística de um texto. E o que dizer de textos que trabalham a linguagem também de forma ímpar,
como o texto publicitário? A definição formalista de literariedade é falha no tocante à exclusão de
textos que são literários, mas que não tomam a linguagem como o ponto forte de sua construção. O
próprio Genette (1991) diria mais tarde que “o mais prudente é, pois, aparente e provisoriamente,
atribuir a cada um sua parte de verdade, isto é, uma porção do campo literário” (GENETTE, 1991, p.
44).

O que se pode dizer até aqui é que, como não chegamos à essência da literatura, devemos
aceitar como literário aquilo que a Academia (professores, críticos, editores) referenda como tal em
determinada época. Vale ressaltar que, como tudo que é mutável, o que se toma por literatura hoje
pode vir a perder esse prestígio posteriormente, e vice-versa. Seguindo o pensamento de Compagnon
(2006), acreditamos que se faz necessário estabelecer outros paradigmas que deem conta das outras
produções literárias, pois, como nos diz o estudioso citado, o pior que pode acontecer a uma teoria é
ela transformar-se num método pela academia.

Crítica Literária e Juízo de Valor

Se pensarmos em uma noção de crítica enquanto juízo de valor em uma obra literária, o público
leitor espera que os críticos digam o que é bom e o que é ruim em Literatura, ou seja, o que deve ser
lido e o que deve ser ignorado. No entanto, esse mesmo público que espera a crítica não se contenta
durante muito tempo com a crítica subjetiva de caráter opinativo e espera do crítico a explicitação
de argumentos que o levaram a tal juízo de valor. Mas, será que há realmente uma crítica que não é

119
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

subjetiva e solipsista? A crítica poderia ter um fundamento objetivo? Essas são perguntas colocadas
por Compagnon (2006), que muito nos incomodam.

A própria história literária tentou deixar a crítica de lado para não cair em erros. Passou-se
a “adotar o cânone herdado da tradição para evitar subjetividade e juízo de valor” (COMPAGNON,
2006, p. 225). E isso parece ser utilizado até hoje. Acredita-se que a “boa literatura” ou “verdadeira
literatura” é aquela que a academia anuncia como tal. No entanto, o que não é considerado pela
academia não deixa de ser lido, pelo contrário. Paulo Coelho é um exemplo vivo disso: mesmo não
sendo bem recebido nos meios acadêmicos, seus livros são muito bem aceitos por parte do público
leitor, não só no Brasil, mas em todo o mundo.

Cada obra é única, como cada leitor, por isso cada uma delas causará uma recepção em leitores
diferentes. Como diz Compagnon (2006),

a oposição entre objetividade (científica) e subjetividade (crítica) é


considerada pela teoria como um engodo, e mesmo a história literária
mais restrita, fixada unicamente nos fatos, repousa ainda em julgamentos
de valor, quando nada devido à decisão prévia, o mais das vezes tácita,
sobre o que constitui a literatura (o cânone, os grandes escritores). As
abordagens mais teóricas ou descritivas (formalista, estrutural, imanente),
queiram ou não, também não escapam da avaliação, que muitas vezes é aí,
fundamental. Toda teoria, pode-se dizer, envolve uma preferência, ainda
que seja pelos textos que seus conceitos descrevem melhor, textos pelos
quais ela foi provavelmente instigada (como ilustra a ligação entre os
formalistas russos e as vanguardas poéticas, ou entre a estética da recepção
e a tradição moderna). Assim, uma teoria erige suas preferências, ou seus
preconceitos, em universais. (COMPAGNON, 2001, p. 226)

Para T. S. Eliot (apud Compagnon, 2006), literatura e valor são duas instâncias distintas e por
isso devem ser tratadas como tal. Para estabelecer se determinado texto pertence à literatura (ou
seja, possui literariedade), é preciso levar em conta exclusivamente critérios estéticos. Porém,
esse valor tem sido dado por critérios não estéticos. Resumidamente: para ser literatura, uma obra
deve ser analisada pela sua forma; e para considerá-la boa ou má literatura, é preciso observar sua
significação.

Segundo Compagnon (2006, p.229), “a obra de valor é a obra que se continua a admirar, porque
ela contém uma pluralidade de níveis capazes de satisfazer uma variedade de leitores.” Para se

120
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

chegar a um apontamento como este, que leva em consideração o valor de uma obra literária, é
preciso também que o tempo aja e que várias épocas e vários leitores apreciem determinada obra.

Para Bourdieu (1996), se o artista triunfa no terreno econômico, consequentemente ele perderá
no quesito crítica (pelo menos no início) e vice-versa (pelo menos em longo prazo). Como nos
explica Compagnon (2006), num primeiro momento o “bom” escritor angariará poucos leitores, “e é
necessário cada vez mais tempo para que as obras, antes esotéricas, encontrem um público que lhes
imponha as normas de sua própria avaliação” (COMPAGNON, 2001, p. 238).

Com relação à obra de Paulo Coelho, percebemos que já houve avanços para a aceitação desse
autor enquanto produtor de literatura, se levarmos em consideração sua entrada para a Academia
Brasileira de Letras. É provável que muito dessa entrada se deva ao público de Paulo Coelho, que
cresce a cada ano. Assim, a academia não mais poderia simplesmente lhe fechar os olhos.

Em Genette (apud COMPAGNON, 2006), encontramos a seguinte posição:

Passados os entusiasmos superficiais da moda e as incompreensões


momentâneas, devidas às rupturas de hábitos as obras realmente belas [...]
acabam por impor-se, de modo que aquelas que vitoriosamente passaram
pela “prova do tempo” tiram dessa prova um selo incontestável e definido
de qualidade. (GENETTE, apud. Compagnon, 2006, p. 251)

Essas considerações podem nos levar a pensar que é ruim para uma obra ser aceita pelo grande
público logo de início. No entanto, queremos chegar a outro raciocínio. Os clássicos, como diz
Compagnon (2006), foram românticos em algum momento de sua produção, da mesma forma, aquilo
que é considerado moderno pode se tornar clássico amanhã.

Além desse fator temporal, que leva ao sucesso ou ao esquecimento de uma obra literária, o
espaço, ou melhor, a distância geográfica, também é um fator de distinção dos valores. Uma obra,
longe de seu lugar de nascimento, pode ser, mas não obrigatoriamente, lida com mais sagacidade
e menos preconceito, o que aconteceu com Proust, como ressalta Compagnon (2006), que foi mais
apreciado na Alemanha e nos Estados Unidos antes mesmo de ser lido na França. O mesmo se dá
com Paulo Coelho. Sua aceitação em países europeus, principalmente, é enorme. Inclusive tendo
suas obras sendo adotadas como leitura obrigatória em cursos de Literatura da Inglaterra e França.3

3 Fonte: site oficial de Paulo Coelho.

121
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Talvez essa falta de nacionalismo4, marca estética de vários autores, seja um dos fatores que tornam
Paulo Coelho pessoa não grata nos meios da crítica literária.

Compagnon (2006) nos impele, então, ao relativismo moderado: nem tanto ao cânone, nem
tanto à anarquia: não precisamos aceitar qualquer obra como sendo boa literatura, mas também não
podemos simplesmente renegar os clássicos. Um meio termo, segundo ele, é o ideal. A verdade é que
poucos autores enquanto vivos conseguiram aplausos da crítica. Camilo Castelo Branco, autor bem
aceito pelo público de sua época, também sofreu críticas por publicar mais de um livro por ano, pois
os críticos diziam ser impossível manter a qualidade estética desta forma. Jorge Amado, no início
de sua carreira, também sofreu com a crítica, embora isso não o tivesse impedido de fazer parte da
Academia Brasileira de Letras, nem de vender seus livros.

A Recepção

A recepção nunca esteve de todo fora da crítica literária. No entanto, no início, o que se via era
um enfoque na influência que determinada obra tinha sobre outras escritas posteriormente, e não
pela leitura dos fãs dessa obra. Atualmente, o que se tem em relação a recepção é a “maneira como
determinada obra afeta o leitor, um leitor ao mesmo tempo passivo e ativo, pois a paixão do livro
é também a ação de lê-lo. Disso conclui-se que o relevante nesta postura de análise é o efeito que
determinada obra gera no leitor. Essa linha de pensamento segue as ideias da fenomenologia. Para
Sartre (1948), por exemplo, a obra só existe de fato quando é lida, e sua existência dura o tempo que
leva a leitura, do que se conclui que a cada nova leitura, há uma nova forma de existência da obra.

Segundo Compagnon (2006), Roman Ingarden é, para os estudiosos da recepção, o fundador


dessa forma de pensar o leitor a partir da estética fenomenológica desenvolvida por ele no período
entreguerras. Seguindo essa corrente, o potencial do texto está no fato de que ele vai ser lido em
algum momento. Não que ele não exista sem a leitura. Ingarden (apud COMPAGNON, 2006) ressalta
a “existência dupla e heterogênea” (COMPAGNON, 2006, p.149) da literatura, pois ela existe nas
bibliotecas, mas só tem seu potencial realmente alcançado ao ser lida, visto que surge “pelo leitor, na
leitura, um processo que põe o texto em relação com normas e valores extraliterários, por intermédio
dos quais o leitor dá sentido à sua experiência do texto” (COMPAGNON, 2006, p. 148). Para Iser (apud
COMPAGNON, 2006), o leitor é um viajante, que consegue captar apenas partes do caminho, nunca o
todo, apesar de conseguir relatar todo o trajeto. Assim, a leitura seria um constante trabalho de ir e
vir: andar para frente, tendo contato com outros índices, e sempre olhando para trás, reinterpretando
os índices já vistos.
4 Tomamos como nacionalismo as obras em que autores enfocam o seu próprio país, dando margem a discussão de temas
recorrentes no seu país de origem. Paulo Coelho pode ser considerado um escritor não-nacionalista no sentido de que
aborda temáticas universais, além de utilizar paisagens de outros países, e não do Brasil.

122
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Além disso, Iser (apud COMPAGNON, 2006) aponta para o repertório, ou seja, a bagagem
trazida pelo leitor, como fatores sociais, históricos e culturais, essencial para a construção da sua
leitura. Internamente o texto também traz um repertório. Para que a leitura se construa de forma
satisfatória, é preciso que ambos os repertórios se ponham a funcionar. As obras modernas são menos
determinadas que as de outras escolas literárias, como o realismo, o que permite ao leitor real gozar
de maior liberdade na construção de sua leitura. Contudo, esse leitor ainda é muito parecido com o
leitor ideal, que tem um repertório muito próximo do repertório de críticos literários. Isso porque os
experimentos descritos por Iser (apud COMPAGNON, 2006, p. 154) utilizam um “leitor culto”.

Pensando na construção do romance moderno, ou pós-moderno, como queira, que é totalmente


desfragmentado, repleto de personagens sem solidez, enredos frouxos, como o leitor deve se
posicionar diante dele, se deve compará-lo com romances realistas, por exemplo? Para responder
essa questão, Iser (apud COMPAGNON, 2006) “relaciona o valor da experiência estética com as
mudanças que ela acarreta nos pressupostos do leitor sobre a realidade” (COMPAGNON, 2006, p.
154). No entanto, esse posicionamento se torna falho quando a experiência de leitura nega obras que
se tornaram, e se mantêm, como clássicas.

Em diálogo com a teoria sobre recepção de Iser (apud COMPAGNON, 2006), Fish (1980)
desenvolve a estílistica afetiva, que se motiva pelo total direito à subjetividade do leitor na construção
da significação de uma obra. O próprio Fish vai desconstruir sua teoria, negando a recepção ao retirar
do processo interpretativo tanto autor quanto leitor e texto. Isso porque, para ele, o leitor ideal
nada mais é do que outro nome para a intenção do autor. Além disso, Fish (1980) não concorda com
o fato de que os problemas que surgem na leitura não devem ser resolvidos, mas simplesmente
experimentados pelo leitor.

Não queremos dar todo poder ao leitor, mas também não podemos negar sua importância na
construção dos sentidos da obra literária. Quando pensamos no leitor, temos que levar em conta
a diversidade de repertório de cada indivíduo, não imaginar que todos os leitores apresentam o
mesmo tipo de conhecimento e quantidade de leituras, visto que não concordamos com a ideia de
que a leitura se empobrece por não ser o leitor um especialista em literatura. A leitura é um processo
subjetivo, um processo de identificação e desidentificação.

Pela subjetividade que perpassa a leitura, não podemos aceitar unicamente a opinião do
leitor. Ao estabelecer a sua posição diante da obra e construir a significação da mesma para si, o
leitor se identifica ou não com ela, e muito da sua opinião estará balizada nesse jogo afetivo. Há
que se estabelecer um meio termo. A crítica é necessária, porque é preciso recorrer a ela em vários
momentos, inclusive para propor significações para a obra, mas há que conjugar a ela a versão do
leitor. De fato, o que se percebe no decorrer da formulação do cânone é que, primeiramente, os leitores

123
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

apreciam a obra, o que nem sempre se dá com a crítica em primeiro contato, e posteriormente, sendo
reanalisada, a obra passa a compor cânone, como já foi discutido anteriormente.

O gênero na recepção

Ao se deparar com um texto, a primeira atitude do leitor é identificar seu gênero. Reconhecer
os gêneros é uma competência do leitor, ou antes, deveria ser. Isso porque, como já foi constatado
anteriormente, o leitor se coloca diante do texto e constrói sua leitura, a partir de seu repertório. Mas
o posicionamento do leitor diante do texto independe do leitor ser culto como um crítico, ou uma
pessoa comum. Depende do gênero que se põe a funcionar em sua frente, uma vez que ninguém se
coloca da mesma forma para leitura de um poema e de um romance, por exemplo.

De acordo com Compagnon (2006) “o gênero, como código literário, conjunto de normas, de
regras do jogo, informa o leitor sobre a maneira pela qual ele deverá abordar o texto, assegurando
desta forma a sua compreensão” (COMPAGNON, 2006, p. 158). Visto ser o gênero relevante para o
posicionamento do leitor perante a obra, faremos a seguir uma breve explanação sobre o gênero
romance, para então proceder a nossa leitura do romance O Alquimista. Adiantamos que abordaremos
a questão do gênero pelo viés bakhtiniano; não levaremos em consideração discussões mais recentes
sobre o gênero.

Sobre o gênero Romance

Visto que o corpus de análise se enquadra no gênero romance, faremos breves apontamentos
sobre esse gênero e sua construção, tomando como base o estudo proposto acerca desse gênero por
Mikhail Bakhtin (2002). Para o autor, existe certa dificuldade no estudo do gênero romance porque
este é o único gênero que ainda está em formação e, por isso, ainda inacabado, ao contrário dos
gêneros clássicos que se imortalizaram, como a epopéia e o drama.

Por estar em processo de formação, o gênero romanesco não faz parte do cânone, como outros
gêneros. Mas, ao mesmo tempo, por ser um gênero moderno, é o único que está adaptado à leitura.
Assim, estudar o romance é estudar algo vivo e aberto, pois não é possível ainda prever todas as
possibilidades plásticas desse gênero em construção. Concordamos com Bakhtin porque podemos
perceber que não existe uma linha clara que delimite a forma de se produzir um romance, por isso, a
todo o momento, surgem novas formas de romance, com novas formas de narrar.

Por nascer na era moderna, o romance é o gênero que melhor se adapta à modernidade, enquanto
os outros são recebidos como herança, sempre dentro de uma forma pronta, e adaptados aos dias
atuais. Ainda não há um estudo descritivo do romance que dê conta de todas as suas possibilidades

124
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

de variação e características. Aliás, como reforça Bakhtin (2002), “os pesquisadores não conseguiram
apontar nem um só traço característico do romance, invariável e fixo, sem qualquer reserva que o
anulasse por completo (BAKHTIN, 2002, p. 401). Há diversos prefácios5 que tentam definir o gênero
romance, porém acabam por defender um romance específico, não o gênero como um todo.

Bakhtin (2002) propõe, então, “descobrir as particularidades estruturais e fundamentais do mais


maleável dos gêneros” (BAKHTIN, 2002, p. 403). Segundo esse teórico, são três essas particularidades
do gênero romance: a) uma tridimensão estilística porque apresenta o plurilinguismo; b) a realização
temporal totalmente diferente daquela utilizada por gêneros clássicos e c) a imagem literária voltada
para o contato com o presente, no que a modernidade tem de inacabada.

O plurilinguismo diz respeito à consciência que se toma de que existem várias línguas, da mesma
forma que existem diversas culturas. Além das diversas línguas, há também, dentro da mesma língua
nacional, diversos tipos de “falas” diferentes, ou seja, os dialetos, todos coexistindo. Ao contrário dos
outros gêneros, o romance se abriu para esse plurilinguismo que marca a sociedade contemporânea,
“é por isso que o romance encabeçou o processo de desenvolvimento e renovação da literatura no
plano lingüístico e estilístico” (BAKHTIN, 2002, p. 405).

Os estudos voltados para a análise do gênero romance são recentes. Até o século XVIII, não se
considerava o romance como um gênero independente, mas sim um gênero misto, muito afetado,
principalmente, pelo lírico. Por isso não havia estudos sobre a estilística do romance. A partir do
século XIX nasceu o interesse pelo estudo do romance, mas nenhum estudo sobre a estética desse
gênero foi desenvolvido. Para Bakhtin (2002), abordou-se o romance a partir de diversos aspectos
sem, no entanto, alcançar uma abordagem que abrangesse a estilística do romance.

Bakhtin nos mostra que a primeira característica estilística do romance é que esse gênero se
abre para o que ele chama de Dialogismo. Para ele, é por meio da existência de um personagem, e
de um discurso desse personagem, que se trava um contato dialógico (diálogo) com o autor, isso
porque o autor autoriza o discurso do personagem e mantém com esse discurso uma posição de
múltiplas possibilidades, como: a polêmica, a contestação, a concordância, a interrogação e a escuta,
a ridicularização e a paródia.

O autor ainda coloca que um dos processos comuns à constituição do romance é o Dialogismo.
Enquanto os outros gêneros eram focados em apenas um discurso, o romance se abre à possibilidade
de diversos discursos, que se encontram e entrecruzam numa rede dialógica. Em O Alquimista,
percebemos essa rede dialógica por meio do interdiscurso, a manifestação inter-relacional do
discurso da autoajuda, do discurso religioso cristão e do discurso capitalista, todos esses discursos

5 Bakhtin (2002) cita como exemplo desses prefácios com definições normativas La Nouvelle Heloise, de Rousseau, o
prefácio de Agathon, por Wieland e o para Tobias Knaut, por Wetzel.

125
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

trabalhando para compor a conjuntura estética da obra. Isso comprova a atitude dialógica que se
mantém entre a linguagem do autor e a do personagem. O autor dá vez a diversas linguagens e, ao
mesmo tempo, fala por meio delas.

De acordo com Bakhtin (2002), a escolha vocabular do autor, presente em seu discurso direto,
não é aleatório, mas sim constituinte de “diferentes sistemas estilísticos do romance” (p. 369).
Sendo assim, “não existe uma linguagem e estilo únicos no romance. Ao mesmo tempo há um centro
lingüístico verbal-ideológico do romance” (BAKHTIN, 2002, p. 370).

Indo na contramão dos formalistas russos, Bakhtin (2002) assevera que:

a linguagem literária é apresentada no romance não como uma linguagem


única, inteiramente acabada e indiscutível, ela é apresentada justamente na
sua contradição expressiva, no seu devir e em sua renovação. A linguagem
do autor tende a superar a “literaturidade” superficial dos estilos que
envelhecem e se atrofiam e as linguagens das tendências literárias em
voga, renovando-se graças aos elementos existentes na linguagem popular.
(BAKHTIN, 2002, p. 370)

Dessa forma, o autor é apenas o organizador dessas linguagens. É por meio dessas linguagens,
enquanto portadoras de visões de mundo, que o autor abre espaço para a representação de pessoas
“que pensam, falam e atuam em condições históricas e sociais concretas” (BAKHTIN, 2002, p. 370).
Essas diferentes linguagens, no que concerne ao plano estilístico, mostram que, pelo dialogismo,
diversas linguagens de dada época são colocadas lado a lado, distanciando-se apenas da linguagem
do autor, visto como aquele que unifica essas linguagens. Vale ressaltar que a língua no romance não
apenas o representa, mas também é representada nele. E é primordialmente por esse aspecto que o
romance se distancia dos outros gêneros.

Bakhtin (2002) afirma que o romance

reflete na sua estrutura estilística o conflito das tendências centralizadoras


(unificadoras) e descentralizadoras (estratificantes) das línguas dos
povos europeus. O romance encontra-se no limite da linguagem literária
acabada e predominante e da contradição de linguagens extraliterárias
do plurilingüismo; ele tanto serve às tendências centralizadoras da
nova linguagem literária em formação (com suas normas gramaticais,
estilísticas e ideológicas) como, ao contrário, o romance luta pela

126
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

renovação da linguagem literária envelhecida, por conta daqueles estratos


da língua nacional, que permaneceram (mais ou menos) fora da influência
centralizadora e unificadora da norma artístico-ideológica da linguagem
literária dominante. (BAKHTIN, 2002, p. 384)

O romance tem por base estilística a mudança dos paradigmas no que concerne à língua
nacional, apresentando o passado e o presente de forma efetiva, e não mais apenas o mito nacional
como era enfocado nas epopeias. O romance agrega o velho e o novo, abrindo espaço para o novo
da linguagem literária, dando voz às línguas que não eram até então admitidas na construção da
obra literária, daí seu caráter plurilinguista. Bakhtin (2002) ressalva que essas mudanças na língua
nacional que se apresentam no romance não são aleatórias, mas reflexo de uma mudança social e
ideológica de uma sociedade e de um povo.

Além do plurilinguismo, o romance inova, com relação a epopeia, ao mudar a dimensão


temporal. Enquanto a epopeia representava o passado, o romance pode ser tido como o gênero sobre
o presente. No caso do romance, o autor, enquanto organizador dos discursos, fala do seu tempo
para seus contemporâneos. Enquanto a epopeia é criada pela memória, esta inclusive como a grande
característica da literatura antiga, o romance se define pela “experiência, o conhecimento e a prática
(o futuro)” (BAKHTIN, 2002, p. 407). A marca da epopeia é a lenda nacional: “a epopéia apóia-se
unicamente nesta lenda” (BAKHTIN, 2002, p. 408). Tanto a lenda quanto o passado absoluto são
imanentes à forma da epopeia. O mundo épico, por ser um passado absoluto, não permite que se
emita apreciações pessoais, visto não ser possível vivenciá-lo. Por ser lenda, exige uma atitude de
veneração. Por ser passado absoluto, não é possível aproximar-se dele.

O presente nunca pode servir de objeto de representação para os gêneros elevados porque
mantém as características da atualidade vigente, o que é tido como um nível inferior, quando
comparado ao passado épico absoluto. O presente, por não ter começo nem fim, é fluente, não está
concluído, e por isso não tem substância.

A idealização do passado nos gêneros elevados tem um caráter oficial. Todas


as manifestações exteriores da força e da verdade dominantes (de tudo que
está concluído) organizam-se dentro da categoria axiológica e temporal do
passado, em uma representação distanciada, longínqua (desde o gesto e o
vestuário até o estilo, tudo é símbolo de poder). Já o romance está ligado
aos elementos eternamente vivos da palavra e do pensamento não oficiais
(a forma festiva, o discurso familiar, a profanação). (BAKHTIN, 2002, p. 411)

127
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

O presente, tido como vulgar, era apenas objeto de representação para as camadas populares,
sempre em tom cômico. Essa produção cômica popular foi muito profícua para o discurso romanesco,
pois é nela que se encontram as raízes do romance. Para as camadas populares, o tempo presente
“o “eu próprio”, os “meus contemporâneos” e o “meu tempo”” (BAKHTIN, 2002, p. 412) serviram de
base para a criação cômica, a ridicularização que posteriormente veio a retomar a parodização e a
travestização de tudo aquilo presente nos gêneros clássicos. Os deuses e heróis são rebaixados, pela
paródia, ao “nível da atualidade, no ambiente dos costumes da época, na linguagem vulgar daquele
tempo” (BAKHTIN, 2002, p. 412).

Surgem novos gêneros, englobados sob a égide de sério-cômicos. São eles: os mimos, a poesia
bucólica, a fábula, as memórias, os panfletos, os diálogos socráticos etc. predecessores do gênero
romanesco. Alguns apresentam bem claramente o gérmen dos posteriores romances europeus.
Apesar de não possuírem as características do gênero romanesco moderno, é nesses gêneros sério-
cômicos que encontramos os pontos principais que levaram a evolução do romance moderno.

Enfocar o presente é o primeiro aspecto desses gêneros sério-cômicos que o aproximam do


romance. É pelo riso construído nesses gêneros (que apesar de sérios são também cômicos) que
se destrói a distância épica. A aproximação pelo riso torna o contato com o objeto ironizado mais
familiar. Essa familiarização por meio do riso e também da linguagem popular limpa o caminho
para o “conhecimento científico e para a criação artisticamente realista da humanidade européia”
(BAKHTIN, 2002, p. 414). A memória6 perde toda sua função aqui, pois se ridiculariza para esquecer.
Retira-se o objeto de um plano distante, trazendo-o para a proximidade, tornando-o familiar. O
objeto é visto por todos os seus ângulos, inclusive o seu interior, que não era focado nos gêneros
sérios, visto não ser interessante mostrá-lo.

Surge nos gêneros romanescos a utopia, que se deve ao fato do romance, por focar o presente, se
“sentir mais próximo do futuro do que do passado, começa a procurar neles os suportes de valores”
(BAKHTIN, 2002, p. 416). Por estar ligado ao presente inacabado é que o gênero romanesco não se
fecha. Surge, segundo Bakhtin, a figura da imagem do autor, que aparece também na representação,
fazendo referências à sua vida, ou entrando na conversa dos personagens, ou criando polêmicas com
seus inimigos literários. Aparecem no mesmo plano o discurso do autor e o discurso do personagem,
num processo dialógico. A distância épica fica para trás com essa nova forma de agir do autor, ou
seja, seu contato direto com o mundo representado no romance, característica esta fundamental do
gênero.

Mas o passado heróico não é desprezado de todo. Ele aparece em meio à contemporaneidade
e os valores e pontos de vista desta. Como o mundo não é mais fechado, é bastante comum que se

6 Memória, aqui, como processo mental de armazenamento de conteúdos.

128
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

busque e enfoque um herói estrangeiro. Esse passado, quando trazido para a modernidade, não é de
forma alguma modernizado, pois esse passado também é algo de singular que o presente não deve
explorar em profundidade, mantendo sua imagem autêntica.

O presente na obra literária de gênero romanesco adquire outro status. Esse presente, inacabado,
é infinito, se prolonga para um futuro que não tem fim.

Neste contexto inacabado perde-se o caráter de imutabilidade semântica


do objeto: o sentido e o seu significado se renovam e crescem à medida que
esse contexto se desenvolve posteriormente. Isto conduz a transformações
radicais na estrutura da representação literária que adquire uma atualidade
específica. Ela entra em relação –numa ou outra forma de medida –com
aquele acontecimento da vida que está se desenvolvendo agora, ao qual
também nós –autor e leitores –estamos ligados de maneira substancial.
Com isso, cria-se uma zona de estruturação de representações radicalmente
nova no romance, uma zona de contato máximo do objeto de representação
com o presente na sua imperfeição e, por conseguinte, também com o
futuro. (BAKHTIN, 2002, p. 420)

O romance, por enfocar o presente, permite-nos uma relação mais aberta de leitura do que a
epopeia. Podemos ler o gênero romanesco a partir das nossas visões de mundo e valores. No gênero
romanesco, ao contrário do épico, as noções de começo e fim são bem demarcadas. Não se pode
começar do nada, nem criar um fim que não responda às dúvidas dos leitores.

Outra característica do romance é que para a construção desse gênero não é obrigatória
a presença de uma problemática filosófica, sociopolítica ou psicológica. É o caso do romance
folhetinesco. Nesse caso específico, apesar de não tratar de problemas existenciais, há a ausência
de distância, pois esse tipo de discurso nos serve como válvula de escape para os nossos problemas
mundanos. O leitor pode participar das aventuras narradas e se identificar com os personagens.
Mas isso acaba por criar certo perigo: “é possível introduzir-se a si próprio no romance” (BAKHTIN,
2002, p. 421). O perigo está no fato de que se passa a ter atitudes e se levar uma vida tal qual a das
personagens, substituindo a vida real pela leitura compulsiva de romances.

Esse contato com o presente e a destruição do passado absoluto do gênero épico acarretou a
reestruturação da forma de representar o homem no gênero romanesco. Pelo cômico, acabou-se por
haver a familiarização da figura humana. O homem passou a ser desnudado. Passou-se a mostrar
que nem sempre o que se vê, é. O herói épico era acabado. Suas atitudes eram condizentes com

129
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

sua personalidade virtuosa. Já o homem-herói do romance tem uma constituição híbrida: não é
bem nem mal, é um representante do homem real. O homem romanesco dificilmente se encaixa
em seu destino ou situação. Ele não pode ter o que deseja, nem pode ser o que quer. “Sempre resta
um excedente de humanidade não realizado, sempre fica a necessidade de um futuro e de um lugar
indispensável para ele” (BAKHTIN, 2002, p. 426). O homem do romance não é acabado como o
homem épico. Aquele apresenta discrepância entre o que ele é e o que aparenta ser. Com isso, as
atitudes subjetivas do homem passam a ser representadas. Vale ressaltar que o homem romanesco
passa a ser visto por si mesmo e pelos outros.

Além disso, o homem do romance passa a ter atitude ideológica e linguística. Para Bakhtin, o
personagem do romance “é um ideólogo em maior ou menor grau” (BAKHTIN, 2002, p. 426). E o que
permite que o personagem do romance seja um ideólogo é que, pela relação dialógica estabelecida
entre autor e personagem, esse tem voz, não apenas reproduz a fala do autor.

Definir o que é Estética é algo bastante complexo, visto que muitos teóricos o fizeram, sem dar
a esse termo uma definição exata. Entende-se Estética como o estudo do Belo, da Beleza, dos objetos
tomados enquanto arte. Para entender a noção de estética, adotamos a posição de Bakhtin (2002)
sobre essa noção.

Questões de Estética

Em Questões de Estética e Literatura (2002), Bakhtin nos oferece uma profícua discussão acerca
da construção estética da literatura, promovendo um embate com os formalistas russos no tocante
a diferenciação e apreciação do conteúdo e da forma artística. Para os formalistas russos, a forma,
em arte, é mais relevante do que o conteúdo. Segundo essa corrente, para apreciar um determinado
objeto, e dar a ele caráter artístico, é preciso analisar sua forma.

Para Bakhtin (2002), quando se trata de uma obra de arte, o conteúdo deve estar acima da forma,
pois para esse teórico, a arte, e mais especificamente a literatura, deve ser analisada dentro de um
contexto cultural mais amplo. Bakhtin (2002) propõe um estudo estético da literatura que ultrapasse
os limites da forma, uma análise que faça emergir da obra literária os aspectos culturais que toda
obra literária traz em seu cerne. Assim, o caráter metalinguístico e o histórico que subjazem a toda
obra literária devem ser esmiuçados para se chegar a um veredicto sobre a esteticidade da mesma.

Fora da unidade cultural (BAKHTIN, 2002), os objetos não adquirem valor artístico, são apenas
objetos.

130
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

É somente nessa sua sistematização concreta, ou seja, no relacionamento


e na orientação direta para a unidade da cultura que o fenômeno deixa de
ser um mero fato, simplesmente existente, adquire significação, sentido,
transforma-se como que numa mônada que reflete tudo em si e que está
refletida em tudo. (BAKHTIN, 2002, p. 29)

Podemos concluir que sem ultrapassar essas fronteiras culturais não é possível analisar
esteticamente um objeto, pois sem a representação de um ato cultural, o objeto não adquire valor de
arte. Por isso a preocupação de Bakhtin (2002) com o conteúdo, e não com a forma. Bakhtin (2002)
entende o conteúdo como o elemento que corrobora a relação entre a ação humana e o mundo
em que ela está inserida e se desenvolve. Por meio do conhecimento, os homens interagem com o
mundo em que vivem; as ações advindas dessa interação é que interessam a Bakhtin (2002), pois
essas ações são respostas do homem ao ambiente em que vive.

Sendo assim, é impossível propor uma análise estética que se diga imanente, visto que a
esteticidade advém exatamente dessa atitude dialógica do homem com o mundo. A arte só adquire
esse caráter porque evidencia as relações homem/natureza. A arte não cria uma realidade nova, ela
“celebra, orna, evoca essa realidade preexistente do conhecimento e do ato” (BAKHTIN, 2002, p. 33).
A originalidade do ato artístico, conforme Bakhtin (2002) é exatamente essa reinvenção do já-dado,
e também por isso é que não há originalidade, por ser o conhecido a base da reinvenção.

Apesar de dar maior importância ao conteúdo, Bakhtin (2002) não nega a forma, pois admite
que é a forma que enreda o conteúdo, dando-lhe o suporte para sua concretização. Assim, apenas
pela análise do discurso7 é que se consegue atingir a relação responsiva entre o homem e o mundo
(cultural, biológico, social) que o cerca.

Após essa reflexão teórica, propomos uma análise da narrativa O Alquimista, com o intuito
de identificar a construção desse romance, de acordo com Bakhtin (2002), sobre a construção do
romance e analisar de que forma os discursos que atravessam essa narrativa compõem a estética do
romance.

A construção do romance O Alquimista

Como ressalta Bakhtin (2002), o romance apresenta três características que o diferenciam dos
gêneros clássicos e, ao mesmo tempo, o particulariza enquanto gênero. São elas: o plurilinguismo,

7 Não estamos nos referindo à Análise do Discurso enquanto campo teórico da Linguística, mas sim ao estudo do que
Bakhtin define como Discurso, que não pode ser entendido com o mesmo significado que este termo adquire em AD
francesa.

131
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

a inovação na construção temporal e o contato com o presente. Talvez a última particularidade


do romance explique a existência das outras duas, pois é devido a esse contato intrínseco com
o tempo presente que esse gênero tem se diversificado quanto ao uso da linguagem e a uma
construção temporal mais ampla. Por isso, começaremos a abordar a obra por essa característica de
contemporaneidade.

O romance, por ser um gênero moderno, enfoca aspectos do momento presente (em que é
escrito), trazendo à tona problemas da atualidade e as ideias e pensamentos do tempo presente. O
romance O Alquimista não é diferente. E, provavelmente por isso, essa obra seja tão atravessada pelo
discurso de autoajuda. Escrito no final do século XX, essa obra descreve a busca de um indivíduo
por sua realização pessoal ao concretizar seus sonhos. Este se refere à busca do homem moderno:
cindido em sua identidade, o homem moderno busca sua realização pessoal, mas, ao mesmo tempo,
precisa de que alguém o ensine a chegar a essa realização. Santiago, o herói, em várias passagens,
recebe a ajuda de outras pessoas, que surgem para lhe ensinar como chegar ao seu sonho, e também
incentivá-lo a não desistir, quando o rapaz fraqueja. O homem moderno busca auxílio no discurso
de autoajuda porque esse tipo de discursividade funciona como uma espécie de manual, indicando
caminhos.

Todos os enunciados de autoajuda que compõem a obra surgem em momentos decisivos da


vida de Santiago. Sempre que este se vê diante de uma dúvida, o rapaz encontra alguém que lhe
ajuda, ou se lembra de conversas que já teve de onde pode retirar ensinamentos. Mas, ao mesmo
tempo em que indica caminhos, esse tipo de discurso reforça a ideia de força interior, defendendo
que tudo o que conquistamos é por mérito próprio. Toda a força está em nós mesmo. Algumas vezes
nos esquecemos disso, por isso precisamos de outras pessoas que nos lembrem desse fato.

Ao encontrar o velho rei, Santiago está a ponto de desistir da venda de suas ovelhas. Então,
Melquisedec diz aparecer sempre para aqueles que estão vivendo sua lenda pessoal, que, segundo o
velho, é a função de cada um na terra, e para aqueles que passam por alguma dificuldade e pensam
em desistir. Podemos perceber que o discurso religioso aparece entremeado no discurso de autoajuda
que compõe a construção do romance. Segundo a ideologia cristã, todos têm uma função na terra,
um porquê de existir. É preciso viver de acordo com essa função se quisermos alcançar, após a morte,
o reino dos céus. Não podemos ignorar nossa lenda pessoal, pois assim corremos o risco de não obter
a salvação eterna.

Mas enquanto o discurso religioso reforça as vitórias pós-vida, o discurso da autoajuda é


atravessado pela ideologia capitalista e reforça a concretização de realizações e ganhos em vida. O
discurso religioso funciona como suporte para a validação de se buscar realizar sonhos. Ser vitorioso
não é ruim, pelo contrário. Santiago deseja encontrar um tesouro, assim terá uma vida mais plena.

132
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Dentro da sociedade capitalista em que vivemos. O estranho é abdicar de ganhos materiais. Nossa
sociedade não aceita aqueles que simplesmente não buscam enriquecer.

O trecho abaixo mostra como acabamos por dar mais atenção àquilo que as pessoas pensam
sobre nós e fazendo escolhas que não são nossas: Enfim, o que as pessoas pensam sobre pipoqueiros e
sobre pastores passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal (COELHO, 1995, p. 26).

Ao mesmo tempo em que opta por um tema muito comum ao homem moderno, o romance não
se passa em um tempo definido. Ao contrário do gênero épico que narrava fatos que aconteciam em
um passado bem definido e acabado, o romance apresenta uma construção temporal aberta, pois
permite que a narrativa aconteça num tempo indefinido, abrindo assim a leitura e identificação de
leitores de várias épocas. Podemos ler O Alquimista enquadrando-o em qualquer período de tempo.
Dessa forma, a não definição temporal do momento em que acontece a narrativa, o leitor pode trazer
aquele acontecimento para os seus dias, gerando assim o processo de identificação do leitor com o
herói. O objetivo desse processo de identificação é levar o leitor a perceber que, da mesma forma que
o herói sai vitorioso, ele também pode conquistar os seus sonhos e desejos.

A identificação também acontece por meio da linguagem utilizada na construção do romance,


que não se distancia daquele utilizada no dia a dia pelo leitor. Por abrir-se a essa diversidade de
línguas, o que Bakhtin (2002) chama de plurilinguismo, o autor do romance se aproxima do seu
leitor, sua narrativa faz parte do conjunto linguístico e cultural de seus leitores. O que também é
motivo de crítica, pode ser o motivo que leva a grande aceitação desse autor por parte dos leitores.

Por uma análise de interface

Apresentamos abaixo uma proposta de análise de uma cena da obra O Alquimista, de Paulo
Coelho. Para a construção dessa análise nos baseamos na interface entre a Literatura e a Análise
do Discurso, como base na proposta de Santos (2007). O acontecimento discursivo da narrativa se
concentra em torno das ações de Santiago, a personagem principal da narrativa. Suas ações são
estabelecidas de acordo com a interação com outros personagens. Esses contatos são imprescindíveis
para que haja o acontecimento discursivo da narrativa, visto que Santiago se sente encorajado a
buscar a realização de seus sonhos.

Cada um desses outros personagens que interagem com Santiago traz seus dizeres marcados
pelos ensinamentos que são difundidos pelo discurso da autoajuda. Sendo assim, se não fossem
esses personagens e seus dizeres motivadores, Santiago não empreenderia a viagem/peregrinação
que o levaria a encontrar o tesouro com o qual havia sonhado.

133
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Para analisar cada um desses encontros, elaboramos quadros, de acordo com Santos e Figueira8,
para uma análise de interface. Segundo essa a proposta, é preciso levar em consideração alguns
pontos que compõem a discursividade em questão. As cenas são divididas em três planos: plano
social, plano psicológico e plano político, formando um eixo vertical. Em um eixo horizontal, temos
a divisão em acontecimentos que se colocam em anterioridade e os acontecimentos que se colocam
em posterioridade.

A anterioridade se divide em situação, elementos de influência e causalidades circunstanciais.


A Situação se relaciona às ações e atitudes das personagens. Os elementos de influência estão
relacionados às posições sociais que regulam as ações narrativas e as atitudes das personagens.
As causalidades circunstanciais dizem respeito às relações entre as personagens de acordo com a
posição social que cada uma delas ocupa.

Dentro da posterioridade, encontramos o Fato consequente, o Acontecimento causativo, o


Desfecho de continuidade e a Causalidade histórica. O fato consequente revela a instauração de uma
estética por meio de imagens, dos sentimentos e das representações simbólicas. O acontecimento
causativo aponta para os elementos estéticos da narrativa, as emoções que geram ações e as relações
sociais contraditórias. O desfecho de continuidade aponta para a continuidade das relações entre
a situação/contexto, às relações derivadas das posições sociais e os sentimentos derivados dessas
relações. Já a causalidade histórica aponta para os fatores que contribuem para dado acontecimento
e para a manifestação de sentimentos, além da forma como se estabelecem as relações de poder.

Ligando a anterioridade a posterioridade, está a Sincronia Factual, retomando sentidos ocultos


(informações implícitas que subjazem as atitudes das personagens, suas falas, suas características
físicas, o espaço narrativo, o imaginário, o inconsciente etc.), as ações estéticas e as relações entre
poder/sentimento como movimento estético.

A partir dos elementos citados acima, descreveremos uma cena do romance O Alquimista, que
chamaremos de Cena do velho rei, retrata o encontro de Santiago com Melquisedec, um velho rei que
tem a função de alertar Santiago quanto à necessidade de cumprir a missão que lhe foi atribuída, ou
seja, seu destino.

A Cena do velho rei

Segue, abaixo, a construção das relações de anterioridade e posterioridade de acordo com os


planos social, psicológico e político para instauração de uma crítica de interface.

8 Apresentado por Santos e Figueira em minicurso intitulado Crítica Literária de Interface na I Semana de Letras do Pet
(julho de 2007).

134
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Anterioridade Posterioridade

Denominativo Acional Designativa Denominativo Acional Designativa

Elementos de Casualidades Sincronia Acontecimento Desfecho de Causalidade


Situação Fato conseqüente
Influência Circunstanciais factual Causativo continuidade histórica

- Santiago - Santiago: - Santiago havia - desejo de - o velho ter um - - Santiago - os reis serem

na praça rapaz que sonhado por realizar um medalhão demonstração decide vender considerados

pensando deseja realizar vezes seguida sonho de seu status suas ovelhas e pessoas
-o velho se dizer
na filha do um sonho com um tesouro social partir em busca sábias, pois
- receio um rei
comerciante enterrado do seu sonho representam
Plano Social - velho: perante o
sendo Deus na Terra
pessoa que vai novo
abordado por
incentivá-lo
um velho - ajuda de

“forças”

externas

- vontade de - Santiago - educação - a presença - o velho mostra- - - Santiago - insegurança

rever logo não dá herdada dos de dizeres que se mais sábio demonstração passa a dar
- correlação
a filha do credibilidade pais para remetem ao do que Santiago dos crédito ao
entre ser pobre
comerciante ao velho. respeitar os discurso de imaginava preconceitos velho rei
e ignorância
mais velhos auto-ajuda que norteiam
- Receio de - falta de - o velho saber
como forma as atitudes de
Santiago paciência de de coisas que
Plano de incentivar Santiago.
diante do Santiago só eram do
Psicológico Santiago
desconhecido conhecimento de
a buscar a
(buscar seu Santiago
realização de
sonho no
seu sonho - Santiago se
Egito)
admirar por um

rei conversar com

um simples pastor

- Segregação - aparência - segregação - elo factual - o velho pede - - Santiago - ajuda externa

de Santiago humilde do difundida na entre vontade a décima parte demonstração decide vender que propicia

com relação ao velho sociedade com de realizar um das ovelhas de dos suas ovelhas e conhecimento

Plano velho relação aos sonho+ medo Santiago para preconceitos partir em busca e força

Político andarilhos e de conquistá- ensiná-lo como que norteiam do seu sonho


- a palavra do
indigentes lo+ ajuda realizar seu sonho as atitudes de
rei, que por sua
externa Santiago.
posição, não é

questionada

135
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Santiago é um rapaz que deseja realizar um sonho. Na cena em questão, ele está sentado em
uma praça, pensando que vai reencontrar a filha de um comerciante e no sonho que teve sobre
um tesouro escondido no Egito, quando surge um velho, de aparência humilde, o que faz com que
Santiago julgue que ele seja um mendigo. O velho quer conversar com ele, mas esse, movido pelo
preconceito, não abre espaço para a conversa. De acordo com a educação dada por sua família, ele
não podia desrespeitar os mais velhos e, diante da insistência do velho, Santiago e ele começaram
a conversar. No entanto, o que move o personagem a conversar com o velho é o fato de que este
demonstra saber ler, quando pega o livro que Santiago carrega e diz já conhecer aquela história.

O velho diz ser o rei de Salem. Santiago não acredita, primeiro porque o velho está malvestido,
e o rapaz acredita que um rei estaria bem-vestido e cheio de ouro; segundo porque, segundo a visão
preconceituosa de Santiago, um rei não conversa com um pastor, ou seja, uma pessoa de classe
superior não interage com outras de classe inferior.

Santiago, então, julga que o velho é marido da cigana que havia acabado de visitar, e queria
tirar dinheiro dele, coisa que a cigana não conseguira fazer. Mas o velho demonstra que conhece
a vida de Santiago, escrevendo na areia da praça todos os fatos relevantes da vida do rapaz. Além
disso, quando o velho se abaixa para pegar um graveto, Santiago perceber pender de seu pescoço um
peitoral de ouro cravejado de pedras preciosas. Após a manifestação de um conhecimento superior
ao de Santiago e da posição social que o velho assume que Santiago passa a dar atenção ao que o
velho diz. Assim, os dizeres do velho só adquirem valor para Santiago pela posição social que o velho
ocupa. É por ser um rei que os dizeres do velho adquirem validade, e validade de dizer inquestionável,
pois Santiago passa a aceitar o que o velho lhe diz como verdades absolutas.

O velho diz a Santiago que ele deve seguir o sonho, pois essa é a missão do rapaz na Terra, e
que o rapaz não deve ter medo de nada, pois ele tem a força capaz de realizar seus sonhos. Ao ouvir
as palavras de um rei, Santiago se sente mais motivado para ir em busca do desconhecido. Por essa
cena percebemos que Santiago é segregador: para ele, por não ter dinheiro, que simboliza status, o
velho não é digno de confiança, seus dizeres não são relevantes.

Quando Santiago confirma a posição social do velho pelo peitoral de ouro, passa a acreditar em
seus dizeres do velho, passando a se sentir incentivado. O rapaz tinha um sonho, mas também tinha
medo de não ser capaz de enfrentar as possíveis adversidades que se interpunham entre seu sonho
e ele. Ao aceitar as palavras do velho como verdades, Santiago passa a confiar um pouco mais em si
mesmo, afinal era um rei que lhe dizia que ele era capaz de conquistar seu sonho, e se decide por
vender suas ovelhas e ir em busca do tesouro escondido. Essa ajuda externa, vinda de um rei, é o que
move Santiago em busca de seu sonho.

136
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Considerações Finais

Segundo Maingueneau (2006), na onda estruturalista surgiram questionamentos no que


concerne à concepção de literatura e a forma como esta era vista desde o século XVIII. Esses
questionamentos eram considerados marginais no momento em que surgiram, mas muito profícuos,
visto que pretendiam abordar a análise literária por outro viés, mais condizente com a época em
questão. Apesar de essas novas problemáticas terem sido colocadas, muitos estudiosos da área,
apesar de aceitarem-nas, ainda se mantêm dentro de padrões tradicionais de análise, o que nos leva
a pensar que essas novas concepções só são utilizadas caso haja a vontade de validar algum texto
por parte do crítico. No entanto, quando este não deseja enquadrar determinado texto no âmbito da
considerada boa literatura, ele fará uso das correntes canônicas de crítica literária.

É o que podemos perceber com relação a Paulo Coelho. Não há vontade dos críticos em validar
suas obras, por isso, percebemos que ao analisar a estética coelhiana, os críticos fazem uso das
correntes tradicionais. Propomo-nos a olhar a literatura pelo viés da Análise do Discurso, pois, ao
analisar um corpus literário pelo viés de sua construção discursiva, abrimos o leque de opções de
entendimento da obra literária em questão e encontramos uma esteticidade que se constrói por
meio de discursos outros, como o discurso da autoajuda, o discurso religioso e o discurso literário.

“Quando se diz que essa obra literária não tem grande mérito porque contém “clichês demais”,
porque é poesia “oficial” ou “literatura de salão”, porque lhes “falta originalidade” ou “sinceridade”,
mostra-se apenas que a apreensão que delas se faz não usa critérios adequados” (MAINGUENEAU,
2006, p. 8). Com isso, temos a comprovação de que precisamos nos apoiar em outros critérios de
análise para entender a produção literária contemporânea sem negar-lhe seu status literário.

Propusemos no artigo no presente artigo uma análise de interface entre Literatura e Análise
do Discurso, porque, a nosso ver, a AD abre uma possibilidade mais rica para a análise desse tipo de
discursividade, o que pode fazer com a leitura de toda obra possa ser mais ricamente explorada, e,
dessa forma, qualquer obra pode ser utilizada para a formação de público leitor.

Referencial

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. 16ª. Edição. São Paulo: Ediouro, s/d.

BAKHTIN, M. Questões de Estética e Literatura. São Paulo: Ed. Hucitec, 2002.

BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Cia. Das Letras, 1996.

COELHO, P. O Alquimista. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

COMPAGNON, A. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

137
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

FURLONI, I. A Função Autor na obra O Alquimista de Paulo Coelho. In: III SEMAD – Seminário de Pesquisa
em Análise do Discurso, 2008, Uberlândia. Anais/ Seminário de Pesquisa em Análise do Discurso. Uberlândia:
EDUFU, 2008. v.3. p.386-391.

FOUCAULT, M. O Que é Um Autor?. Lisboa: Passagem, 1992.

GENETTE, G. Fiction ET diction. Paris: Ed. Du Seuil, 1991.

SANT’ANNA. A.R. A Poesia Possível. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p.36.

SANTOS, J.B.C. “Reflexões discursivas em torno da essência sêmica dos enunciados e seu uso no ensino de
produção escrita”. In: Categorias e práticas de análise de discurso. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do
Discurso/FALE-UFMG, 2000).

SANTOS, J.B.C. “Entremeios da Análise do Discurso com a Lingüística Aplicada” In: Fernandes, C.A. & SANTOS,
J.B.C. Percursos de Análise do Discurso no Brasil. São Carlos: Claraluz, 2007.

Site oficial de Paulo Coelho. Disponível em: https://paulocoelhoblog.com/. Último acesso em: 03/07/2020.

138
DIÁLOGOS SOBRE A
FORMAÇÃO DE PROFESSORES
DE LÍNGUA(GENS)
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

DISCUTINDO INSCRIÇÕES DISCURSIVAS


EM REPRESENTAÇÕES DE APRENDIZAGEM
DE LÍNGUA INGLESA

Evelyn Cristine Vieira

Introdução

Diversos são os discursos sobre o que significa saber uma língua. Em especial, no que concerne
ao conhecimento de uma língua estrangeira (LE), encontramos discursividades que pontuam
o que seria de fato saber uma LE e como ocorre o processo de ensino-aprendizagem. Ao nos
circunscrevermos no ensino de língua inglesa como LE no Brasil, pontuamos que nosso interesse
reside em investigar as representações sobre o processo de ensino-aprendizagem de língua inglesa,
em diferentes instâncias da esfera educacional, a saber: a escola regular pública, a escola regular
privada, o instituto federal, o instituto de idiomas e a universidade, as quais chamamos de instâncias
enunciativas pedagógico-educacionais.

Trata-se de instâncias enunciativas porque dizeres são enunciados sobre o que seja ensinar-
aprender, fazendo circular o discurso pedagógico-educacional sobre as LEs. Vale ressaltar que a
circulação do discurso pedagógico-educacional em cada instância se dá por diversas vozes1 que
constituem esse processo de ensino-aprendizagem, podendo ser pelo aluno, professor, coordenador,
diretor, material didático ou por documentos oficiais. Há, assim, vozes que balizam esse processo
e que fazem parte da produção e circulação discursiva sobre o que seja ensinar-aprender inglês, a
depender da instância.
1 Neste trabalho, tomaremos voz em uma perspectiva bakhtiniana, ou seja, entendendo que várias vozes participam de
todo e qualquer diálogo.

140
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

No que concerne à inscrição teórico-metodológica, colocamo-nos na interface entre a


Linguística Aplicada (LA) e os estudos do discurso. Quanto à Análise do Discurso de linha francesa
(ADF), lançamos mão dos estudos desenvolvidos por Michel Pêcheux (2008, 2009, 2010, 2015)
para compreendermos, por exemplo, as noções de discurso, interdiscurso, efeitos de sentidos,
memória discursiva e acontecimento. Além disso, trazemos nossa inscrição também nos estudos do
Círculo de Bakhtin, considerando que eles são consonantes com nosso trabalho, no que concerne
especialmente às concepções de sujeito e de língua(gem), subjacentes à arquitetônica do pensamento
bakhtiniano. Conceitos como linguagem, sujeito, enunciado, alteridade, diálogo e voz são relevantes
para propormos um olhar analítico sobre algumas representações acerca do processo de ensino-
aprendizagem de língua inglesa, balizado pelas teorizações pensadas no âmbito dos estudos do
discurso, em interface com uma LA indisciplinar e transgressiva (MOITA LOPES, 2006, 2013).

No que tange à coleta de dados para composição do corpus, utilizando a proposta AREDA
(Análise de Ressonâncias Discursivas em Depoimentos Abertos) de Serrani-Infante (1998), visando
à coleta de depoimentos, constituíram-se sujeitos da pesquisa dez professores de língua inglesa de
diferentes instâncias enunciativas pedagógico-educacionais. A partir dos depoimentos transcritos,
nosso gesto de interpretação foi lançado, a fim de buscarmos e analisarmos as regularidades
enunciativas. É por meio do olhar cuidadoso das regularidades que agrupamos e selecionamos, a
partir dos depoimentos, as sequências discursivas (SDs) que nortearam a análise. Segundo Santos
(2004, p. 114), tais sequências são a base para observação das “inter-relações existentes entre as
ocorrências” que servirão para interpretar a natureza de seus sentidos.

Neste texto, especificamente, com vistas a analisar como o professor enuncia sobre seu
contato inicial com a LE, seus primeiros momentos de aprendizagem, suas experiências com a
língua inglesa como aprendiz, procuramos reunir regularidades acerca dos modos de representar
o processo de aprendizagem de língua inglesa. No que diz respeito às formas de representar o seu
processo de aprendizagem de inglês, o professor o faz evocando uma memória discursiva e revelando
suas inscrições discursivas, o que nos permite discutir os sentidos daí advindos. Assim, quanto à
historicidade do sujeito-professor enunciando sua aprendizagem, ou seja, sobre seu encontro-
confronto com essa língua, analisamos em dois segmentos as inscrições discursivas observadas, a
saber: o fascínio e a paixão pela língua e o desejo de pertencimento à LE.

Para cada um dos segmentos, dedicamos uma seção de análise, na qual realizamos nossa
percepção interpretativa no crivo do discurso, ancorada em SDs advindas do corpus e elencadas
com base em regularidades quanto aos efeitos de sentido. Cada segmento está organizado a partir

141
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

de um enunciado, pois agrupamos o que é regularidade por meio de um enunciado retirado dos
depoimentos que constituem o corpus, que acaba por apontar sentidos e representações que se
encontram em uma mesma direção de significação.

O fascínio e a paixão pela língua

Muitos alunos e professores acabam por representar a sua relação com a LE atravessada pelo
imaginário da afetividade, pelo resgate de uma falta, a busca por uma filiação legítima (o outro
estrangeiro), frequentemente balizada por uma discursividade que revela fascínio e paixão pela
língua que aprenderam e que ensinam, como aponta Grigoletto (2003).

A relação com a LE aparece constantemente discursivizada pelo viés do amor, da paixão, do


fascínio e do gostar. Ou seja, existe uma memória discursiva funcionando que deixa vir à tona uma
representação que relaciona o aprendizado de uma LE a um imaginário de paixão, amor e fascínio
por essa LE. Notamos que essa representação de aprendizagem dialoga com o seguinte enunciado:
“aprende-se uma LE por efeito de gostar dessa língua”, na mesma medida em que esse enunciado
também traduziria casos de insucesso, uma vez que aponta para o sentido de que o aluno não
aprende/aprendeu porque não gosta da LE, não se dedica, pois não tem uma boa relação com a LE
estudada. Uma relação de causa e efeito.

Discutimos, primeiramente, a representação de fascínio e paixão, quando o professor enuncia


sobre seu processo de aprendizagem de inglês, ou seja, em sua trajetória como aprendiz dessa LE.
Essa seção será direcionada pelo enunciado Acho o idioma fascinante, retirado dos dizeres de um
participante da pesquisa, em torno do qual propomos o levantamento das regularidades cujos
efeitos apontam para sentidos de fascínio e de paixão frente à LE. Inicialmente, trazemos três SDs2
para discussão sobre o olhar do sujeito quanto ao seu processo de aprendizagem de inglês como LE:

SD013: E a gente acaba achando bonito por ser uma língua né.. que não é a nossa, é isso. (Carmem)
SD02: Bom, eu me considero um aluno regular! Tenho um comprometimento e tento sempre
fazer o máximo para ter um bom desempenho, eu aprendi inglês a princípio, assim.. quero dizer..
quando despertei meu interesse verdadeiro pela língua.. foi.. durante o primeiro ano do ensino
médio quando, pela primeira vez!, tive um professor já muito experiente que ministrava aulas e

2 As sequências foram transcritas como enunciadas pelos professores em seus depoimentos gravados. Para a transcrição,
as convenções estabelecidas por Guilherme (2008) foram utilizadas.
3 As sequências seguem uma ordem numérica para que possamos nos referir a elas e retomá-las ao longo da nossa aná-
lise. Ao final da SD, colocamos o nome do enunciador, sendo este um nome fictício escolhido pelo professor em seu
depoimento.

142
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

sempre se preocupava em fazer com que o pouco que nos repassava ficasse sempre muito bem
entendido e aquilo me deixou animado. (Abu)
SD03: Foram sempre momentos de muita diversão e prazer por fazer algo que gostava e gosto
muito! (Abu)

Os dois professores utilizam palavras que apontam para sentidos de afetividade, amor, e até
paixão em relação à LE, como fatores motivacionais e importantes para o processo de aprendizagem
de uma LE. Carmem, na SD01, afirma que considera o inglês uma língua bonita, ou seja, a representação
da LE é de beleza. Além disso, já nos atentamos aqui, quando ela enuncia que a língua não é a nossa,
ao desejo de pertencimento à língua e ao universo do outro, do estrangeiro.

Na SD02, Abu, ao enunciar sobre sua trajetória de aprendizagem, reforça o comprometimento


como determinante para um bom desempenho, assim como para o interesse do aluno. Nesse sentido,
ter interesse pela LE funcionaria como um fator decisivo para o bom desempenho e sucesso na LE.
Além disso, Abu menciona animação, diversão e prazer, ao enunciar sobre estudar a LE de que ele
tanto gosta, afirmando que sempre foi assim, uma relação de gosto pelo inglês. Notamos inscrições
em discursos que remontam a sentidos, segundo os quais os alunos precisam gostar do que estudam,
sentir prazer ao estudar a LE, denegando a relação de confronto com a língua.

Há nas três SDs acima um apagamento da inevitabilidade do encontro com a LE ser ao mesmo
tempo um confronto, pois sabemos que nem todos os alunos revelam essa relação de afetividade,
paixão e gosto pela LE. Ou seja, isso nos levaria a pensar que, caso o aluno não tenha essa relação
afetiva com a LE, ele não seria bem-sucedido em sua aprendizagem. A memória evocada aqui nos
remete ao discurso de que é preciso gostar do que se faz, do que se estuda, entretanto sabemos
que existe a tensão instaurada na relação do sujeito com a LE, que ele não conhece, que ele não
entende e que ele não alcança em sua totalidade. Seria, de fato, o gostar dessa LE, suficiente para
determinar essa boa relação com a LE no processo de aprendizagem? Sabemos, todavia, que a relação
entre o sujeito e uma LE é de um constante encontro-confronto, e consideramos imprescindível
discutir como esse encontro-confronto com a língua constitui o professor, uma vez que incide em
sua prática docente e em seus discursos. Coracini (2003, p. 149, grifos no original) afirma que “a
língua estrangeira é a língua ‘estranha’, a língua do estranho, do outro. Tal estranhamento tanto
pode provocar medo como uma forte atração”.

Acerca do funcionamento da memória discursiva, sabemos que os sujeitos ao construírem


representações, inscrevem-se em determinados discursos e não em outros. Além disso, os sentidos

143
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

movimentam-se nas práticas discursivas, revelando tensões e conflitos próprios dos processos
enunciativos. A regularidade aqui observada vincula-se à imagem de uma intrínseca relação entre
amor e aprendizado da LE, uma imagem de paixão e de fascínio por essa língua. Vejamos as SDs a
seguir:

SD04: Por isso bato nesta tecla de que apesar desta densa preparação a que são impostos, os
alunos.. todos os dias e mesmo na língua estrangeira quando ficamos lendo e interpretando
infinitamente! quando os alunos gostam, sentem prazer em fazê-lo. (Abu)
SD05: Eu iniciei o estudo da língua inglesa na escola pública, fundamental, então eu me lembro
foi na terceira série do fundamental, porque hoje mudou.. e eu gostava muito, eu achava muito
interessante o ensino do idioma, apesar que era ensinado de forma com imagens e gravuras
porque éramos crianças né, então quando eu tinha doze anos de idade, eu pedi minha mãe para
me colocar numa escola de inglês! (Maria Cecília)
SD06: Então eu iniciei o estudo em escola particular de inglês com 12 anos de idade. Eu passei
por três escolas de inglês, tive vários professores e.. isso me agregou muito valor, eu gostava
muito, então a partir do inglês eu fui pulando pra outros idiomas, porque sempre me identifiquei,
sempre tive muita facilidade?, e era uma coisa que eu gostava de fazer, que eu gostava de aprender,
porque tinha séries, filmes, eu queria entender o que as pessoas estavam falando, eu queria ler
alguma coisa, eu queria saber o que tava dizendo ali, eu não queria ser leiga no assunto. (Maria
Cecília)

Notamos nas SDs a regularidade enunciativa da imagem construída entre aprendizagem e


gostar, amar a LE. Na SD04, o professor Abu revela o atravessamento do discurso dos documentos
oficiais, quando menciona a necessidade de ler e interpretar textos nas escolas regulares. Isso
ocorre, em especial, no ensino médio, e, assim, os documentos oficiais funcionam como vozes que
interpelam e são evocadas por professores no momento da enunciação.

O professor diz, na SD04, que os alunos passam por uma preparação constante, até mesmo
em LE, e, nesse sentido, seus dizeres resgatam a voz dos documentos oficiais cujas diretrizes
para o ensino médio estão, prioritariamente, voltadas para a habilidade de leitura, com foco no
desenvolvimento da interpretação, para preparação do aluno para processos seletivos, vestibulares
ou o próprio exame nacional do ensino médio (ENEM) usado para o ingresso em grande parte das
universidades brasileiras.

No entanto, o professor afirma que o aluno precisa gostar, inscrevendo-se no imaginário


de que se os alunos sentirem prazer nas atividades que realizam eles se sairão bem, reforçando

144
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

a representação do gosto e da paixão pela LE. Percebemos o atravessamento do interdiscurso da


motivação, que, apesar de não estar aparente no fio do discurso, é percebido via memória discursiva,
quando o professor diz que apesar da repetibilidade das atividades, se o aluno sentir prazer, sentir-se
motivado, ele será bem-sucedido em suas atividades. O discurso da motivação é histórico no/sobre
ensino-aprendizagem de LEs, balizando práticas metodológicas e circulando sócio-historicamente
nas mais diversas instâncias enunciativas pedagógico-educacionais, até mesmo na esfera acadêmica.

Autores que discutem a relação entre aluno e professor, como Kupfer (2009), afirmam que o
aluno não deve ser entendido como aquele que simplesmente recebe as informações, em um puro
processo de repetição e informação. O aluno não deve aprender o conteúdo, a informação em si,
mas aprender a tomar o objeto do saber como objeto de desejo, e a partir daí construir sua relação
de desejo de saber. Não se exclui, nesse sentido, que o aluno faça isso a partir do que vê no professor
e o seu desejo de saber, em relação à LE. Por isso, percebemos que muitos sujeitos, ao enunciarem,
explicitam a relação que estabeleceram inicialmente com a LE, pela relação do seu professor de LE
com a língua, pela imagem que fazem do professor de LE. Dessa forma,

a ideia da necessidade de o professor criar motivações em sala de aula, de


provocar o interesse dos alunos, não faz sentido neste contexto. O interesse
do professor, que se transmite ao aluno, é o interesse da relação com seu
objeto de desejo. O que o professor deixa transparecer ao aluno não é que o
seu objeto é “interessante” e, sim, a intensidade da relação construída com
aquele objeto – uma intensidade capaz de despertar no aluno o interesse
em ter uma relação parecida. (KUPFER, 2009, p. 23, grifos no original)

O que Kupfer (2009) problematiza é a impossibilidade de se transmitir a relação que o professor


estabeleceu com a LE para o aluno. Nossa inscrição nos estudos discursivos que consideram o
sujeito constituído pela coletividade (memória e vozes), mas, ao mesmo tempo, em seu caráter
de singularidade, não nos permitiria consentir com a possibilidade de uma transmissão, seja de
conhecimento ou de motivação.

Já na SD05, a professora Maria Cecília, ao relembrar seu contato inicial com a LE, afirma que
gostava muito das aulas e que era uma aluna muito interessada. Vale assinalarmos que ela não
silencia o lugar da escola pública em seu processo de aprendizagem que teve início no ensino
fundamental. Ela descreve como essa aprendizagem se deu (imagens e gravuras), o que nos leva a
perceber que a enunciadora foi interpelada por essa instância enunciativa pedagógico-educacional

145
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

(a escola pública) para solicitar à mãe que a matriculasse em uma outra instância (o instituto de
idiomas).

Maria Cecília também se inscreve no discurso da motivação, cujos sentidos apontam para o
efeito de que se o aluno gosta da LE, ele deve se dedicar ao aprendizado. Isso seria possível em
uma escola específica, acenando, assim, para uma imagem de institutos de línguas como espaços
legitimados para ensinar LEs, em contraponto à imagem de escola regular como espaço obrigatório
de se aprender a LE.

Já na SD06, identificamos tanto o imaginário de fascínio e de paixão, do interesse e da


facilidade frente à LE quanto o desejo de pertencimento, segmento que também discutiremos
quanto ao aprendizado da LE. O processo de ensino-aprendizagem é representado como um
processo perpassado pelo amor, pelo gosto, pela paixão. Ainda tratando do contato inicial com o
inglês, Maria Cecília já o explicita na SD06 com foco na descrição da abordagem do que seria esse
ensino em um instituto de idiomas, explicitando o seu interesse e os motivos que a levaram a se
sentir tão motivada. Ela não descarta o papel do professor, embora ressalte que sua facilidade, o
gosto e sua identificação com a LE levaram-na ao aprendizado. Ela reforça que gostava de aprender.
Por isso, pensamos que a memória discursiva evocada por Maria Cecília nesse momento remonta à
necessidade de o professor motivar o aluno e encontrar formas de fazê-lo interessar-se pela LE. Além
disso, os dizeres deixam revelar que essa motivação também se dá pelo interesse e pela dedicação
do aluno ao processo de ensino-aprendizagem, ao mesmo tempo que se direciona, também, para o
imaginário de pertencimento, pois a aluna queria aprender a LE a fim de inserir-se no universo dessa
LE, compreender o que se fala, entendendo vídeos e música, como ela afirma. Ou seja, existe um
ideal também de pertencimento, de inserção do mundo do outro pela língua desse outro (eu queria
entender o que as pessoas estavam falando).

Vejamos mais duas SDs, em que a aprendizagem de língua inglesa é discursivizada pela imagem
de gostar e amar essa LE:

SD07: A minha aprendizagem em língua inglesa foi através de muitas dinâmicas, por- todas
as escolas trabalhavam de forma muito didática e lúdica o conteúdo. Eram projetos.. ah.. eram
atividades, eram brincadeiras, eram jogos e isso estimulava muito o aprendizado e.. tanto é que
hoje eu trago muito pra dentro de sala de aula, porque funcionava comigo, então eu creio que
funciona com os outros! (Maria Cecília)
SD08: Não, não tem nada que incomode não. Não sei se é porque eu sempre gostei bastante. E
aquilo que eu não conseguia compreender, eu encarava como desafio, aí que eu queria aprender

146
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

mesmo sabe.. eu buscava todas as formas possíveis pra poder compreender. É.. eu sempre gostei
bastante, e a facilidade acaba que torna tudo mais fácil, quando você gosta, quando você quer,
quando você tem força de vontade, tudo fica mais fácil. (Maria Cecília).

A professora Maria Cecília, nas duas SDs acima, se inscreve no discurso da facilidade e da
motivação por gostar da LE, como elemento influenciador para aprender uma LE. Além disso,
a professora se inscreve discursivamente nas imagens de atividades lúdicas e dinâmicas como
fomentadoras de momentos propícios à aprendizagem de inglês. Sendo assim, percebe-se um
imaginário que corrobora muitas propostas de escolas de idiomas, segundo as quais se o aluno
aprende brincando, de forma divertida, dinâmica, utilizando jogos e brincadeiras, ele aprende mais
facilmente, sem muitos entraves, sem nem mesmo perceber a relação tenso-conflitiva constitutiva
da relação do sujeito com a LE. A inscrição no discurso lúdico, perpassado pelos sentidos de diversão
e felicidade, funciona de forma a apagar as tensões e conflitos que constituem a relação dos sujeitos
com as línguas que aprendem. Assim, se a proposta de ensino contemplasse o aprender brincando, o
aluno não passaria por uma relação de encontro-confronto com a LE. Entendemos que esse discurso
congrega sentidos que, naturalizados, caucionam uma representação de aprender inglês como um
processo sem conflitos, sem enfrentamentos, sem embates, o que sabemos não ser possível.

Entendemos que Maria Cecília, apesar de estar vinculada profissionalmente à escola regular
pública e privada, revela sua inscrição em discursos que delegam aos institutos de idiomas a
capacidade de ensinar a língua inglesa. Ao enunciar sobre o processo de ensino-aprendizagem de
inglês, a professora se inscreve no discurso do lúdico (forma muito didática e lúdica), no discurso da
motivação e do interesse (eu sempre gostei bastante; eu buscava todas as formas possíveis pra poder
compreender) e do esforço (quando você gosta, quando você quer, quando você tem força de vontade).
Isso para circunstanciar sua tomada de posição diante da legitimação de um lugar para o ensino-
aprendizagem da língua inglesa.

Os sentidos advindos das SDs deixam flagrar, assim, um apagamento da relação entre o sujeito
e a LE que passa sempre por um encontro-confronto, o qual não será minimizado ou apagado se o
ensino for baseado em atividades lúdicas e jogos. Esse discurso também aponta para um imaginário
de ensino-aprendizagem de inglês, cujo conjunto de atividades dinâmicas sendo desenvolvidas
assegurariam o envolvimento, a facilidade, e, portanto, o bom desenvolvimento linguístico do aluno.

Na SD8, por exemplo, a professora enuncia tratando de sua relação com a LE, embora a questão
norteadora do roteiro AREDA tivesse como proposta uma tomada de posição sobre a existência de
algo que a incomodasse em sua relação com a LE. Nesse sentido, tínhamos como pressuposto que

147
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

o professor poderia enunciar tratando do encontro-confronto com a LE em seu próprio processo de


ensino-aprendizagem, entretanto Maria Cecília afirma não ter nada que a incomode, justificando
que isso ocorre provavelmente pelo fato de ela ter sempre gostado muito da LE. Percebemos a voz do
discurso da motivação, atravessado pelo discurso de autoajuda direcionado ao ensino-aprendizagem
de inglês quando a professora diz quando você gosta, quando você quer, quando você tem força de
vontade, tudo fica mais fácil, naturalizando a motivação como suficiente para ter “sucesso” na
aprendizagem. Dessa forma, a imagem do gostar, de ter amor e/ou paixão pela LE é tomada como
uma regularidade enunciativa, pois ela acontece independentemente da instância enunciativa
pedagógico-educacional. Além disso, a gradação do enunciado na SD08 aponta para uma tensão
enunciativa.

Vejamos outras duas SDs:

SD09: Mas.. é.. formalmente eu comecei a estudar na escola, escola regular, na quinta série e eu
sempre gostei muito da língua, sempre achei muito bonito?, e quando eu comecei a estudar o meu
esquema era poder cantar as músicas em inglês, poder assistir algum filme sem a legenda, alguma
coisa nesse sentindo. (Laura)
SD10: Uma coisa que eu gostaria de acrescentar! é que a minha relação com a língua ela sempre
foi muito afetuosa, eu sempre gostei de estudar e aprender inglês, mesmo que os recursos na época
fossem poucos né.. Tanto o recurso tecnológico, de material, quanto meu próprio, né, meu
próprio recurso financeiro, mesmo que eles fossem reduzidos, se eu comparar com o que eu
tenho hoje, a minha relação com a língua sempre foi muito afetuosa! (Laura)

A professora Laura, na SD09, trata do seu primeiro contato com a LE na escola regular. Ela não
apaga o lugar da escola regular no processo de ensino-aprendizagem de inglês, o qual ela caracteriza
como ensino formal. Isso porque ela pontuou anteriormente que uma prima tinha estudado inglês
e havia se mostrado muito empolgada. Tal empolgação acabou por contagiá-la. Laura teve suas
primeiras experiências com a língua inglesa na escola regular, por não poder ir para uma escola
específica, entendemos que seja por isso que ela inicia a SD09 com a conjunção adversativa mas.
Depreendemos que Laura também representa sua aprendizagem balizada pela imagem de fascínio e
de paixão pela LE, pois ela enuncia que sempre gostou muito da língua, sempre achou muito bonito.
Há, ainda, o desejo de pertencimento ao universo da LE, uma inserção cultural no universo que o
conhecimento dessa LE lhe proporcionaria, visto que Laura queria poder cantar as músicas em inglês,
poder assistir algum filme sem a legenda.

148
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Já na SD10, Laura assevera o imaginário de fascínio pela LE em sua aprendizagem. A memória


discursiva que a professora evoca ao enunciar enaltece essa relação entre o aprendiz e a LE. Assim,
Laura assinala duas vezes nessa SD, com a palavra afetuosa, sua inscrição em discursos cujos efeitos
de sentido apontam para uma simples relação de empatia e gosto pela LE para que a aprendizagem
ocorra. Ao relacionarmos o uso dessa palavra e sua repetição, tomamos a noção de signo ideológico
(BAKHTIN, 2012) para pensar seu efeito no processo enunciativo.

Para Bakhtin (2012), o signo é ideológico, portanto, a enunciação como produto de uma interação
social faz emergir signos dos dizeres dos indivíduos. Considerados também em sua dimensão social,
os signos estão sempre carregados de sentidos. A imagem de afeto entre o sujeito e a LE perpassada,
também, pelos discursos sobre afeto no ensino-aprendizagem e na relação professor-aluno, reforça
a cristalização de tais discursos e passa a ter valor de verdade quando se trata da relação do sujeito
com a LE. Por isso, na mesma seara de sentidos, os dizeres de Laura também apontam para uma
memória discursiva funcionando na recuperação de ideologias cristalizadas sobre a necessidade
de manter uma relação afetuosa com o inglês. Por isso é que consideramos que Laura também se
inscreve discursivamente em uma ilusão de completude da língua, uma vez que ela afirma que,
apesar da falta de recursos (metodológicos por parte da escola e financeiros por parte de sua família),
sua aprendizagem lhe parecia garantida, porque havia o afeto. Enunciando a partir dessa ilusão,
Laura acaba por representar a aprendizagem em seu contato inicial com inglês pela imagem do
fascínio e do afeto, trazendo à tona já-ditos que constituem uma memória discursiva coletiva sobre
a necessidade de amar o que se estuda, o que se aprende, amar, nesse caso, a LE.

Kupfer (2009), ao abordar a relação entre professor e aluno, faz menção à representação de
amor no processo de ensino-aprendizagem. A autora afirma que a relação entre professor e aluno
apresenta marcas dessa relação amorosa, existindo uma demanda de amor, embora as relações
orientadas por essa demanda tragam consigo a marca da ilusão. Em uma perspectiva discursiva com
a qual compactuamos, tratamos também a ilusão como necessária ao sujeito e sua constituição.
No entanto, é preciso compreender que tal ilusão promete um preenchimento impossível, como
afirma Kupfer (2009), em qualquer relação amorosa, ou seja, também na relação entre o professor e
o aluno a falta é constitutiva. Desta feita, “a ilusão busca desconhecer a angústia que a falta produz,
ou seja, a relação fundada no narcisismo e na sedução não pode ser a base da aprendizagem e do
conhecimento” (KUPFER, 2009, p. 23).

Nesse sentido, acerca do aprendizado da LE representado a partir da imagem de fascínio e de


paixão pela língua, notamos que o sujeito professor quando enuncia, via memória discursiva, sobre

149
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

suas lembranças e experiências ao aprender inglês como LE, desvela sua inscrição em discursos que
tratam da necessidade de empatia, amor e paixão pelo inglês. É possível notar nos sentidos advindos
de tais inscrições, o interdiscurso do sucesso da aprendizagem, da idealização na relação entre o
sujeito e LE, marcada pelo encontro, pela alegria, por descobertas facilitadoras e motivacionais, além
de experiências lúdicas e jogos como necessárias e assertivas para o aprendizado.

Vale salientar que, independentemente da instância enunciativa pedagógico-educacional em


que o professor atua e da qual enuncia, há vozes que ressoam discursivamente de forma consonante,
ou seja, apontando para sentidos que se aproximam e se assemelham, neste caso sentidos de fascínio
e de paixão pela língua inglesa.

Além do fascínio e da paixão para representar a aprendizagem de inglês como LE, outras
percepções se manifestaram, dentre elas, o pertencimento à língua do outro, segmento a ser tratado
a seguir.

O pertencimento à língua do outro

Discursos sobre as interpelações que levam o sujeito a aprender a LE incluem, como já analisado
anteriormente, o fascínio e a paixão pela língua, e o desejo de aprender a LE para uma sensação de
inclusão, por meio do uso e do conhecimento da língua inglesa, língua do outro.

O desejo de pertencer, fazer parte do universo da LE, de pertencer ao país, à cultura, ao universo
do outro, por meio do conhecimento da língua desse outro, leva os professores à construção dessa
representação de que aprender a língua inglesa é pertencer ao universo dessa língua. Nela, emergem
discursos acerca da relação entre a LE e a língua materna (LM), bem como a imagem de “ser como
um nativo”, que é uma interdiscursividade que atravessa essa representação. Como já mostramos em
Vieira (2013), inscrito em uma ilusão de completude, o sujeito, seja ele aluno ou professor, imagina-
se inserido no universo dessa LE quando faz uso da língua, ao demonstrar que conhece e “sabe” a LE,
embora geralmente a imagem de saber esteja relacionada, única e exclusivamente, com a habilidade
de falar essa LE. Ou seja, encontramos nessa representação uma naturalidade discursiva quanto ao
inglês, segundo a qual o conhecimento da LE efetiva-se no uso na modalidade oral dessa LE, com
fins comunicativos.

Este segmento acerca da representação da aprendizagem diz respeito às SDs que remetem a
uma memória que relaciona a língua inglesa com o desejo de pertencimento ao universo da LE.
Além disso, discutimos os discursos que carregam uma imagem de supremacia da língua inglesa.

150
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

O enunciado que baliza o gesto de interpretação desta seção é Porque a língua inglesa, ela é uma
língua,..., universal, isso é inegável, dizer de uma professora, como vemos nas SDs abaixo:

SD11: Porque a língua inglesa, ela é uma língua,..., universal, isso é inegável, né?.. Qualquer lugar
que você vá que tenha um.. características, que tenha padrões internacionais, vai ter o inglês
como uma das opções. Então a pessoa que fala, que conhece, que sabe o inglês, ela.. vai ter muito
mais oportunidades!, ela vai ter muito facilidade! em algumas situações. (Sílvia)
SD12: Muito poucas,..., eu acho que o aprendizado é,..., enquanto estudante do ensino
fundamental e ensino médio, eu acho que foi um aprendizado que não se concretizou.. de fato. Eu
não, não cheguei a aprender a língua inglesa. Eu conheci algumas palavras e algumas regras, mas
não tive uma APRENDIZAGEM efetiva. (Sílvia)

As duas SDs acima foram enunciadas pela professora Sílvia. Na SD11, a professora trata de
aprendizagem, discutindo como é difícil e desafiador ensinar inglês atualmente, explicitar para os
alunos a importância da LE a ponto de fazê-los compreender que o conhecimento de tal língua lhes
daria melhores oportunidades (inscrição discursiva no utilitarismo) e mais facilidades. Assim, quando
Sílvia pontua que a língua inglesa é universal, percebemos a inscrição em discursos de supremacia
dessa LE: uma supremacia que transcende a questão pedagógica, visto que tal imagem transita em
vários discursos, tais como os profissionais, acadêmicos, mercadológicos, entre outros. Por sua vez,
tal imagem incide no processo de aprendizagem, pois alunos e professores podem se inscrever em
tais discursos para enunciarem.

Sílvia, na SD11, representa a aprendizagem da LE como uma necessidade de pertencimento à


língua, ao mundo, ao universo do outro. A partir do momento que o sujeito detém esse conhecimento,
ele tem mais possibilidades e facilidades para ter sucesso. Interpretamos que a imagem de sucesso é
um efeito de sentido que, interdiscursivamente, irrompe em SDs que tratam não somente da imagem
de pertencimento, como também em SDs que apontam para o utilitarismo da língua e a paixão pela
LE.

Cumpre salientar que Sílvia, ao tratar das oportunidades que o sujeito teria pelo conhecimento
da LE, se inscreve no discurso de que “saber uma LE é falar essa língua”, quando diz que então a
pessoa que fala, que conhece, que sabe o inglês. A repetição do verbo falar, enunciado como sinônimo
do verbo conhecer, pode sinalizar uma tensão enunciativa da professora. Além disso, a repetição
funciona como uma regularidade na medida em que a professora busca sustentar sua inscrição no
discurso, segundo o qual se o aluno conhece a LE, fala a LE, ele teria mais perspectivas de ser bem-

151
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

sucedido em sua carreira ou em sua vida acadêmica, ou seja, existe o desejo de pertencer ao universo
do outro, daquele que sabe/fala a língua inglesa.

A SD12 diz respeito ao momento em que Sílvia enuncia sobre quais eram as lembranças de
sua aprendizagem de língua inglesa, assim, ela enuncia sobre sua experiência na aprendizagem de
inglês. Ao tratar dessa aprendizagem, inscreve-se no discurso da impossibilidade de aprendizagem
de inglês na escola regular. Não há menção ao ensino público ou particular, por isso ambos são
colocados na esfera de escola regular, em que há a obrigatoriedade de ensino de inglês no ensino
fundamental e médio.

Nesse sentido, Sílvia afirma que são muito poucas as lembranças que ela tem de sua aprendizagem,
na escola regular, porque considera que a aprendizagem de fato não se concretizou. A imagem de
concretização do aprendizado, de uma aprendizagem efetiva como diz Sílvia estaria, a nosso ver,
relacionada à imagem de pertencimento à LE. Dessa forma, Sílvia diz que aprendeu vocabulário
(algumas palavras), bem como gramática (algumas regras), mas que isso não foi suficiente para
que ela se sentisse parte desse universo da LE. Ou seja, novamente temos uma imagem idealizada
do que seria esse pertencimento ao universo/língua do outro, do estrangeiro, através do uso da
habilidade oral. Predomina, como mecanismo enunciativo, a denegação de Sílvia, pois a professora
não reconhece que aprendeu inglês na escola regular.

Compreendemos que, na SD12, Sílvia não define o que seria uma aprendizagem efetiva, mas
pensamos que essa SD relaciona-se com a SD11, em que Sílvia revela a imagem do que seria aprender
a LE, pois os sentidos apontam para o mesmo imaginário: um aluno sentiria que pertence à LE se
soubesse de fato essa língua, não apenas vocabulário e gramática, mas quando estivesse apto a usar
essa língua, a falar essa língua.

A SD abaixo também diz respeito ao desejo de pertencimento ao universo do estrangeiro, via


conhecimento/uso do inglês, por meio da habilidade oral:

SD13: Eu acho que a fala é muito importante porque quando o aluno fala em inglês ele vê que tá
usando a língua mesmo?, ele vê que tá conseguindo se comunicar. Talvez até um pouco mais
do que com relação ao listening, porque o aluno que escuta e entende ele tem essa sensação
também, mas acho que não tão intensamente como quando ele fala, porque é uma coisa que ele
produziu, é uma mensagem que ele elaborou, então eu acho que isso fica um pouco mais forte pra
ele. (Felipe)

152
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Felipe discute o ensino das quatro habilidades em seu contexto docente, e, nesse sentido, ele
reafirma a imagem de supremacia da fala, relacionando-a ao segmento do pertencimento à LE. O
conhecimento efetivo da língua é representado pelas imagens de uso e comunicação, por meio da
habilidade oral, pois quando o aluno fala em inglês ele vê que tá usando a língua mesmo?, ele vê que
tá conseguindo se comunicar. Felipe diz que as habilidades de fala e audição são importantes, no
entanto a habilidade oral continua sendo representada como “superior”, visto que se trata de uma
habilidade produtiva e não simplesmente receptiva.

Pertencer à LE do outro, do estrangeiro, do nativo seria passível de realização quando o sujeito


se inscreve na LE, enunciando nessa LE. Ou seja, trata-se de uma representação de um ideal de
comunicação: o aluno ouve, entende, produz, elaborando uma mensagem, como aponta Felipe e,
portanto, está se comunicando, usando a LE. No entanto, nesse ideal de comunicação, o sujeito é
representado como um sujeito que tudo controla, tendo como único pré-requisito o conhecimento
da LE. Trata-se de um sujeito da ilusão, da completude, pois a ele nada falta, e, portanto, esse sujeito
poderia controlar seu dizer e os sentidos daí advindos, pois estaria sempre no controle de sua
produção discursiva.

Outras SDs também ilustram o desejo de pertencimento à LE:

SD14: Então, eu não tenho contato com o idioma só dentro da sala de aula, tenho contato com o
idioma o dia todo, o dia todo! Não é só pra ensinar, às vezes com filmes, com séries, ah.. com
projetos que eu trabalho fora, projetos paralelos.. ah.. com vários livros porque eu gosto muito
de ler, então o inglês tá presente em tudo?. Então, acaba que você tem contato com idiomas,
principalmente quando você passa a ser professora de inglês, 24 horas por dia né. (Maria Cecília)
SD15: Hoje o inglês faz parte do cotidiano de todos, todos os brasileiros? na verdade, alimentos,
ah.. músicas, filmes, séries, estabelecimentos, ah.. vídeo games, brincadeiras, então assim...
ah...tá muito presente, e os meninos precisam disso. Eles precisam dessa vivência, não é uma ali,
uma matéria qualquer da escola. Não, tem seu grau de importância. É muito importante! (Maria
Cecília)

Na SD14, Maria Cecília revela seu desejo de pertencimento ao inscrever-se em uma


discursividade, segundo a qual o inglês está presente em tudo. Existe a inscrição no discurso da
globalização e da supremacia do inglês como LE. A professora diz que o inglês faz parte de sua vida,
o dia todo, não apenas no que se refere à sua profissão. Além disso, interdiscursivamente, funciona
o discurso pedagógico que confirma a necessidade dessa inscrição cultural na LE para que o ensino-
aprendizagem seja “efetivo”. Por isso, a professora insiste no contato com o idioma, por meio de

153
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

filmes, de séries, de projetos, de livros, entre outros. Percebemos uma inscrição tanto no discurso
pedagógico quanto no discurso de inserção cultural em um mundo globalizado, por meio do contato
com a língua inglesa, um contato que seria 24 horas por dia. Nesse sentido, pensamos que há, além
do desejo de pertencimento, um desejo de reconhecimento, o sujeito deseja ser reconhecido por
alguém que domine a LE, que vive a LE.

Já na SD15, Maria Cecília trata da aprendizagem, mas voltando seu olhar para seus alunos,
resgatando a memória discursiva do utilitarismo do inglês, Maria Cecília representa a língua pelo
desejo de pertencimento, inscrevendo-se no discurso da supremacia do inglês: ele está presente no
cotidiano de todos os brasileiros. Pelo uso do verbo “precisar”, quando enuncia os meninos precisam
disso, Maria Cecília deixa flagrar sua inscrição em um discurso pedagógico que também atravessa a
imagem de utilitarismo da língua, pois os alunos precisam do inglês, porque essa língua está na vida
de todos os brasileiros. Por meio do sentido de que seria possível uma homogeneização dos alunos
e que, consequentemente, levar-nos-ia a pensar em práticas docentes com caráter homogeneizado,
observamos a inscrição da professora em um discurso hegemônico sobre a importância da língua
inglesa. Então, considerando a supremacia do inglês que faz parte, inevitavelmente, do cotidiano de
todos, como pontua Maria Cecília, os alunos necessitam entender essa inevitabilidade e procurar
formas de pertencimento à LE e ao universo dessa LE, através de uma “vivência” na/da língua inglesa.

A tentativa de pertencer ao universo do outro, do estrangeiro e de sua língua, descortina, pelo


interdiscurso, a imagem de vivenciar a língua e ter experiências nessa língua. A noção de experiência,
por sua vez, reflete, nesse caso, os sentidos de usar tal língua. Dessa forma, percebemos novamente o
discurso hegemônico do inglês para fins de comunicação.

Acerca dessa imagem de vivenciar a LE, fazendo uso dessa língua, passemos à SD abaixo:

SD16: O processo pelo qual eu aprendi inglês foi um pouco atípico, porque eu.. não havia feito
nenhum tipo de curso de inglês, então eu estudava inglês na escola, no ensino regular e.. pelo
fato de eu sempre querer ir morar nos Estados Unidos, eu comecei a estudar inglês sozinho,
por meio de alguns livros, de alguns primos que haviam feito ou que faziam cursos, então eu
pegava o material que eles já haviam usado e eu estudava em casa sozinho, tanto a parte de
listening quanto a parte de gramática e de escrita, escrita muito pouco e a parte de fala nada
praticamente, porque eu não tinha com quem praticar, então eu, ah... fazia todos os exercícios
do livro, os exercícios dos livros e as partes de listening inclusive, que eu gostava bastante, mas
foi meio que um aprendizado autodidata. Aí.. eu quando eu fui pros Estados Unidos eu fiz mais
uns quatro cursos e lá eu tive um ensino mais sistematizado. (Felipe)

154
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Percebemos, na SD16, que Felipe, ao abordar sua trajetória de aprendizagem, não apaga o espaço
da escola regular, embora se inscreva no discurso de que escola regular não é lugar para aprender
inglês. Por isso, ele afirma que não tinha feito nenhum curso de inglês, e só tinha a experiência da
escola regular. Tal experiência foi discursivizada como “insuficiente” pelo professor Felipe, e, como
ele sempre se mostrou interessado pela LE (eu gostava bastante), ele diz que começou a estudar inglês
sozinho.

Ao enunciar, Felipe se inscreve no discurso que privilegia os institutos de idiomas e, ao mesmo


tempo, desvaloriza a escola regular como espaço para ensino-aprendizagem para LEs, uma vez que
ele diz que aprendeu inglês de um modo um pouco atípico. A representação do que seria um “modo
típico” de aprender inglês, dessa forma, aponta para a imagem de um determinado tipo de instituição
em que existem recursos e possibilidades para se ensinar LEs. Além disso, percebe-se o desejo de
pertencimento quando ele afirma que sempre quis ir morar nos Estados Unidos. Os discursos que
circulam sobre a experiência no exterior, visitar ou mesmo morar em outro país, desvelam sentidos
que, a nosso ver, funcionam como matrizes de sentidos congeladas, pois foram sedimentadas pelo
uso e recorrência e passaram a configurar como pré-requisito para aprender, de “maneira legítima”
uma LE, adquirindo valor de verdade em discursividades sobre ensino-aprendizagem de uma LE.

A imagem de legitimidade se daria, assim, em um primeiro momento, pela oportunidade


de frequentar um instituto de idiomas. Em segundo lugar, tal legitimação ocorreria pela vivência
em outro país. Nessa representação, o outro, professor do instituto de idiomas, por exemplo, ou
o nativo, no exterior, é responsável por validar e legitimar o nível de conhecimento dessa LE pelo
sujeito, em especial, pelo uso que ele faz da língua, comunicando-se. Nesse momento, atentamos
para a alteridade como mecanismo enunciativo, pois Felipe refere-se e constitui-se pelo/no olhar do
outro. Lembramos que consideramos o sujeito como sempre atravessado pelo outro, visto que esse
outro é constitutivo desse sujeito e o discurso do outro também funciona como um atravessamento
discursivo. Por fim, Felipe, ao representar seu processo de aprendizagem como diferente e atípico
inscreve-se nesse discurso para enunciar, e, assim, via memória discursiva, convoca a voz da
experiência no exterior que legitima os cursos que lá fez (um ensino mais sistematizado).

As três SDs a seguir foram recortadas do depoimento de Clarice:

SD17: Só que eu considero que de verdade! esse primeiro contato, que me despertou a atenção
se deu em função de um familiar, quando se mudou para os Estados Unidos e sempre estava nos
contando a respeito das viagens, a respeito das.. é.. das experiências dele com a língua, é...e eu

155
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

acabei me despertando pra aquilo em função de sempre é querer conhecer outros lugares, querer
viajar.. pelo mundo. (Clarice)
SD18: O que o inglês pode mudar! na vida de um estudante, o que o inglês pode proporcionar!, abrir
de horizontes na vida de cada um desses alunos, que muitas vezes vêm de realidades tão difíceis,
é,..., então o professor ele precisa levar em consideração a importância do idioma. (Clarice)
SD19: Eu acho que o gosto pela coisa, a partir do momento em que eu fui tomando gosto pela
coisa, é.. estudando, aprendendo, ah.. podendo compreender músicas, é.. em língua estrangeira,
expressões, a capacidade de viajar e não me sentir tão vulnerável em relação à compreensão do
idioma!, me fez de alguma forma querer passar isso pros meus alunos, querer passar um pouco
dessas experiências, querer me tornar uma professora para possibilitar de certa forma que eles
vivessem aquilo que eu estava vivendo com o aprendizado! da língua inglesa. (Clarice)

Clarice aborda nas SDs acima a questão da aprendizagem de inglês como LE, enunciando
sobre suas experiências em sua aprendizagem (SD17), sobre sua prática docente (SD18) e também
relacionando esses dois lugares discursivos, aluna e professora (SD19). Apesar disso, as três sequências
apontam para a representação de aprendizagem como pertencimento à LE, à cultura de um outro
país, a um universo que é estrangeiro ao sujeito que aprende essa língua como LE. Retomamos nossa
filiação à ADF, quando Pêcheux (2010) trata do lugar discursivo do sujeito, compreendido nesse
trabalho como lugar que ele ocupa ao/para enunciar, balizado sempre pela relação do sujeito com a
língua e com a história.

Na SD17, Clarice evidencia a questão da alteridade na constituição do sujeito e, por conseguinte,


esse outro que também incide em suas inscrições discursivas. Foi o fato de um parente ter se mudado
para os Estados Unidos que Clarice considera determinante para que ela entendesse a importância
do inglês. Ou seja, ao se inscrever no discurso da legitimação da experiência no exterior como
diferencial é que Clarice diz que também gostaria de ter tal experiência: querer conhecer outros
lugares, querer viajar.. pelo mundo. Tal imagem de vivência em outro país aparece atrelada ao
conhecimento do inglês. Além disso, Clarice também revela sua inscrição em discursos como os da
motivação, do interesse que o sujeito deve despertar para aprender a LE. A motivação para aprender
inglês é discursivizada, perpassando, assim, o pertencimento como condição para aprendizagem.
Isso significa que, em seu imaginário, o sujeito deseja aprender a LE e sente-se, portanto, motivado
pelo fato de que o inglês irá proporcionar a oportunidade de se sentir inserido em outra realidade,
outra cultura, outro país, por meio do uso dessa língua.

156
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

A vontade de pertencer a uma outra realidade também aparece discursivizada na SD18, quando
Clarice evoca a memória discursiva acerca de como o inglês é uma língua que pode mudar a vida
das pessoas e abrir horizontes. Todavia, Clarice evoca essa memória vinculando-a à sua experiência
como aluna, porque diz que foi essa vontade de viajar, de abrir horizontes que mais a motivou para
estudar inglês. Ela também trata do papel do professor, ao afirmar que o docente precisa levar em
consideração a importância do idioma. Vemos, nesse momento, a representação de professor e do
seu papel que atravessa o imaginário de Clarice.

O professor seria aquele responsável pelo aprendizado, visto que ele é quem saberia a
importância do ensino-aprendizagem de LE e, portanto, seria responsável por mostrar tal importância
para seus alunos. Assim, a prática docente seria balizada pelo entendimento da necessidade de o
inglês ser ensinado de forma a proporcionar o tão sonhado pertencimento à LE do outro e a seu
universo. Verificamos, também, a interdiscursividade que se instaura via documentos oficiais, na
medida em que as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM), como norteadoras para o
ensino de inglês a nível médio na escola regular, propõem como objetivo “estender o horizonte de
comunicação do aprendiz” (BRASIL, 2006, p. 92). Assim, essa voz dos documentos oficiais é evocada
quando Clarice atribui ao professor a responsabilidade de estender o horizonte do aluno, por meio
de atividades que proporcionem a comunicação. A representação de comunicação das OCEM parece
dialogar com o desejo de experiências de sucesso no uso da LE, enunciado por muitos professores,
como o desejo e a necessidade de usar bem a língua, ou seja, o ideal de comunicação revela o uso
dessa língua na modalidade oral.

Por fim, na SD19, Clarice também convoca vozes segundo as quais a aprendizagem de uma LE
é significativa quando proporciona experiências de uso para os sujeitos. Clarice diz que descobriu
que pelo uso da LE em suas experiências, como viagens e ao ouvir músicas e entendê-las, não se
sentia tão vulnerável. Ou seja, a imagem de vulnerabilidade na LE se dá quando o sujeito não se
sente pertencente àquela língua, àquele universo em que tal língua impera. Clarice retoma, assim,
que o papel do professor é possibilitar que os alunos também vivenciem essas experiências da
mesma forma como ela fez ao estudar inglês. A aprendizagem de inglês é representada como um
facilitador de integração ao mundo globalizado, o que demonstra a inscrição discursiva de Clarice no
discurso da globalização, atrelado à necessidade de saber inglês. Além disso, há o atravessamento do
discurso das OCEM que também enunciam que o ensino de inglês na escola regular deve promover
a sensibilidade linguística do aluno a ponto de ele se sentir confiante ao usar de maneira bem-
sucedida a LE.

157
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Passemos à discussão das últimas duas sequências selecionadas para discutir a aprendizagem
representada pelo desejo de pertencimento à LE:

SD20: Então eu acho que eu sempre tento orientar os meus alunos para eles explorarem o máximo
possível as oportunidades, sejam elas com música, sejam elas com filme, sejam elas no contato com
pessoas, e.. porque você aproveita, você pode explorar, você deve explorar essas habilidades não
apenas no contexto, dentro de sala de aula, mas na maior parte dos momentos, principalmente
hoje com as.. com as novas tecnologias! isso fica tão mais acessível. (Ana)
SD21: Eu escuto muito os alunos comentando sobre o sotaque, “aí, meu Deus, professor, mas
como é eu faço para ter sotaque?” Gente, só se você nascer de novo!, reencarnar lá nos Estados
Unidos ou na Inglaterra pra você ter um sotaque como um americano, um britânico. E, na
verdade!, qual é o foco disso, né? Qual é a importância dessa questão? Vamos lembrar que hoje a
língua... Há muito tempo, na verdade, desde o século XIX a língua inglesa é a língua universal né.
(Alex)

Os dois enunciadores das SDs acima são professores formadores. Ana, na SD20, se inscreve no
discurso da tecnologia que permite o fácil acesso às informações e que, portanto, facilita o contato
do sujeito com a LE, levando à sensação de pertencimento. Como docente, ela diz que incentiva os
alunos a não perderem as inúmeras oportunidades que o mundo globalizado oferece para estar em
contato com inglês, não somente no contexto de sala de aula (discurso pedagógico do ensino de
línguas), mas em vários momentos (discurso da globalização). Aprender a língua inglesa é pertencer
ao universo do outro, do estrangeiro, por meio do contato com a LE (tento orientar os meus alunos
para eles explorarem o máximo possível as oportunidades, sejam elas com música, sejam elas com filme,
sejam elas no contato com pessoas). Tal imaginário dialoga com os sentidos advindos de outros
discursos, como é o caso da abordagem comunicativa de ensino de línguas, que são consonantes com
a representação de que estar em contato constante com a língua aumenta o nível de conhecimento
do aluno, e que, além disso, garantiria uma sensação de pertencimento.

Já o professor Alex, na SD21, parece questionar o desejo de pertencimento pautado em sentidos


cristalizados acerca da aprendizagem da língua inglesa. Muitos discursos sobre o processo de ensino-
aprendizagem de LEs fazem circular sentidos acerca da figura do nativo, como um ideal de falante a
ser copiado, uma imagem que representa o que os alunos devem buscar e alcançar em seus estudos.
Entretanto, o professor Alex afirma que busca conscientizar seus alunos, professores em formação,
acerca dessa impossibilidade de ser como um nativo da língua inglesa e de ter o mesmo sotaque,
por exemplo. Esse desejo dos alunos, ao qual o professor se refere, sinaliza a aprendizagem da LE

158
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

representada pelo imaginário de pertencimento à língua e cultura do nativo, caracterizado como um


elemento legitimador da aprendizagem da LE.

Todavia, o professor procura não se inscrever em discursos acerca da legitimação do


conhecimento de uma LE pela figura do nativo e recusa tal imagem ideal de falante. Alex se inscreve
no discurso da universalidade da língua inglesa, ao afirmar que há muito tempo a língua inglesa goza
dessa imagem de língua universal, mas ele não se inscreve no discurso da figura do nativo, segundo
o qual aprender inglês é ser como um nativo. Assim, observamos que o professor Alex se inscreve
discursivamente de maneira dissonante em relação aos professores anteriores no que tange ao desejo
de pertencimento, pois ele não convoca vozes que legitimem a necessidade de “perseguir” um ideal
de nativo, como modelo para o uso da LE. Como professor formador, ele resiste a essa representação,
fazendo vir à tona o discurso da universalidade da língua inglesa que corrobora questionamentos
(Qual é o foco disso, né? Qual é a importância dessa questão?) de modelos e padrões para o processo
de ensino-aprendizagem de língua inglesa.

Além disso, o discurso do inglês como língua universal veicula sentidos que relacionam a
aprendizagem dessa LE com diversas oportunidades no mundo contemporâneo, oportunidades
pessoais (viajar), acadêmicas (estudar) e profissionais (trabalhar), como notamos nas SDs discutidas.
O discurso da universalidade do inglês também atravessa várias das SDs analisadas, pois funciona
como uma voz convocada quando os professores enunciam sobre a aprendizagem relacionando-a ao
desejo de pertencimento à língua inglesa, ao mundo do outro, daquele que conhece/sabe/fala inglês.

Considerações Finais

Discutir e problematizar representações sobre ensino-aprendizagem de uma LE mostra-se


relevante, em virtude da necessidade da aceitação da heterogeneidade constitutiva dos sujeitos,
das práticas de linguagem, e, consequentemente, do processo de ensino-aprendizagem de línguas.
A instituição de ensino, seja ela a escola regular, o instituto de línguas, o instituto federal ou a
universidade, não pode concordar com uma prática de ensino que conceba a língua apenas como
instrumento para comunicação, um conjunto de regras na LE que quando “dominadas” permitiria ao
usuário se comunicar de forma perfeita. A esse respeito Revuz (1998, p. 223) já postulava que

o que estilhaça o contato com a língua estrangeira é a ilusão de que existe


um ponto de vista único sobre as coisas, é a ilusão de uma possível tradução

159
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

de termo a termo, de uma adequação da palavra à coisa. Pela intermediação


da língua estrangeira se esboça o deslocamento do real e da língua.

Por isso, é que pensamos que o professor deve tomar uma posição diante do ato de ensinar-
aprender a língua, para assumir e discutir o que esse encontro-confronto com a LE pode provocar
nos sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Não se trata de um encontro simples
e fácil para a maioria dos alunos. No entanto, o insucesso e o fracasso não devem ser vistos em uma
perspectiva fatalista.

Observamos que os professores ao representarem o processo de ensino-aprendizagem de


inglês, interpelados pela relação com sua instância enunciativa pedagógico-educacional, deixam vir
à tona sua inscrição em discursos sócio-historicamente constituídos, bem como sua identificação
com memórias discursivas, como também apontam Brito e Guilherme (2013, p. 25).

Analisando, especificamente, a representação de aprendizagem, percebemos que os


professores, via memória discursiva, deixam flagrar suas inscrições em discursos que relacionam a
aprendizagem da língua inglesa ao fascínio e à paixão pela língua e ao desejo de pertencimento ao
universo da LE. Foi possível observar que as vozes constitutivas da representação de aprendizagem
são predominantemente consonantes, visto que apontam para sentidos que se aproximam e
se assemelham. De acordo com Guilherme (2008, p. 274), nas relações dialógicas que se dão por
consonância, o diálogo é percebido quando existe ‘repetibilidade’, ‘semelhança’ e ‘aproximação’
entre as inscrições discursivas dos sujeitos enunciadores.

Em nossa análise, percebemos uma dialogicidade instaurada predominantemente por


consonância discursiva, haja vista a convergência de sentidos para uma mesma representação de
aprendizagem de língua inglesa. Isso significa ser possível afirmar que, independentemente da
instância enunciativa pedagógico-educacional a partir da qual enunciam, a maioria dos professores
constroem representações sobre a aprendizagem da língua inglesa, em que há uma vibração
semântica mútua em suas inscrições discursivas, apontando para um imaginário de fascínio, paixão
e pertencimento à língua como constitutivos de uma aprendizagem (idealizada) da língua inglesa.

Referências

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BAKHTIN, M. (V. N. VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2012.

160
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

BRASIL. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Linguagens Códigos e suas Tecnologias. Brasília:
MEC/ SEB, 2006, p. 87-124.

BRITO, C. C. de Paula; GUILHERME, M. F. F. Linguística Aplicada e Análise do Discurso: possíveis entrelaçamentos


para a constituição de uma epistemologia. Cadernos Discursivos, Catalão- GO, v.1, n.1, 2013, p. 17-40. (ISSN
2317-1006 online).

CORACINI, M. J. A escamoteação da heterogeneidade. In: CORACINI, M. J. &

BERTOLDO, E. S. A celebração do outro. In: CORACINI, M. J. Identidade e discurso. Campinas: Editora da


Unicamp, 2003, p. 197- 221.

GRIGOLETTO, M. Representação, Identidade e Aprendizagem de Língua Estrangeira. In: CORACINI, M. J.


Identidade e discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p. 223- 235.

GUILHERME, M. F. F. Competência oral-enunciativa em língua estrangeira (inglês): fronteiras e limites.


Tese de Doutorado. PUC – São Paulo, 2008.

KUPFER, M. C. M. Amor e saber: a psicanálise da relação professor e aluno. In: COHEN, Ruth H. P. (Org.)
Psicanalistas e educadores: tecendo laços. Rio de Janeiro: WAK Ed., 2009, p. 19- 31.

MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006.

MOITA LOPES, L. P. (Org.). Linguística Aplicada na modernidade recente: Festschrift para Antonieta Celani.
1 ed. São Paulo: Parábola, 2013.

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. 4. ed. Campinas: EDUCAMP, 2009.

PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, F. & HAK, T. (Orgs.) Por uma Análise
Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania S. Mariani et al. Campinas:
Ed. da UNICAMP, 2010, p. 59- 158.

PÊCHEUX, M. & FUCHS, C. A Propósito da Análise Automática do Discurso: Atualização e Perspectivas (1975).
In: GADET, F. & HAK, T. (Orgs.) Por uma Análise Automática do Discurso: Uma Introdução à Obra de Michel
Pêcheux. Trad. Bethania S. Mariani et al. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2010. p. 159-249.

PÊCHEUX, M. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al. (Org.). Papel da memória. Tradução e introdução José
Horta Nunes. 4ed. Campinas: Pontes, 2015, p. 43-51.

REVUZ, C. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do exílio. Trad. Silvana Serrani-
Infante. In: SIGNORINI, I. (Org.). Língua(gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo
aplicado. Campinas: Mercado de Letras, 1998, p. 213-230.

SANTOS, J. B. C. Uma reflexão metodológica sobre análise de discurso. In: SANTOS, J. B. C; FERNANDES, C. A.
Análise de discurso: unidade e dispersão. Uberlândia: EntreMeios, 2004, p. 109-118.

161
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

SERRANI-INFANTE, S. M. Abordagem transdisciplinar da enunciação em segunda língua: a proposta AREDA.


In: SIGNORINI, I. & CAVALCANTI, M. (Org.). Linguística Aplicada e Transdisciplinaridade. Campinas:
Mercado de Letras, 1998, p. 143-167.

VIEIRA, E. C. Um olhar discursivo sobre a fluência em língua inglesa. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal de Goiás. Catalão, 2013.

162
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

REFLEXÕES SOBRE LETRAMENTO


DIGITAL E ENSINO REMOTO: CAMINHOS
TRANSGRESSIVOS

Marcela Henrique de Freitas

Introdução

Ao longo dos anos, a tecnologia na Educação vem sendo gradativamente inserida nas escolas e
demais instâncias educacionais. Com o surgimento do novo coronavírus e a necessidade da suspensão
das aulas presenciais para que o distanciamento social fosse mantido, os Ambientes Virtuais de
Aprendizagem (AVAs) e demais recursos digitais passaram a fazer parte da rotina de professores e
alunos de forma arbitrária e repentina.

Com isso, professores, alunos e a comunidade educacional como um todo, se viram obrigados
a ocupar esses ambientes, ainda que nem todos tivessem conhecimento suficiente e possibilidades
equitativas para tal “integração”. Entre as principais limitações estão: acesso à internet ou um
acesso com a mínima qualidade necessária para acompanhar uma aula remota; ausência de
dispositivos (celulares ou computadores) ou dispositivos que não possuem tecnologia suficiente
para desempenhar a função necessária e a própria ausência de letramento digital1, aspecto que será
melhor explorado posteriormente.

1 Práticas sociais que se entrelaçam e se modificam através das tecnologias de informação e comunicação, incluindo
habilidades para construir sentidos a partir de textos multimodais e a capacidade para localizar, filtrar e avaliar critica-
mente a informação disponibilizada eletronicamente, além da familiaridade com as “normas” que regem a comunica-
ção através do computador Buzato (2003, 2007) apud Pinheiro (2018).

163
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Em nossa pesquisa de mestrado, buscamos investigar como os educadores de professores2


entendem o processo de constituição de um professor de língua inglesa. Dito de outro modo,
procuramos compreender quais vozes esses profissionais evocam quando enunciam sobre o processo
de formar um professor de inglês.

A partir dessas vozes, pudemos delinear algumas representações sobre ensino-aprendizagem,


lingua(gem) e sobre o próprio processo educativo no qual os professores em formação estão inseridos.
As representações identificadas nos dizeres dos professores foram divididas em três eixos, a saber:
1) o educador de professor e sua relação com idioma inglês; 2) o educador de professor e sua relação
com o processo de ensinar-aprender essa língua; 3) o educador de professor e sua relação com o
processo de formação de professores.

A partir das representações supracitadas, tecemos nossas análises levando em consideração


a hipótese de que os educadores de professores, quando enunciam do lugar de quem forma um
professor de língua inglesa, o fazem no entremeio entre ensinar a língua em sua forma material e
ensinar aspectos didático-metodológicos, político-sociais e ideológicos inerentes à constituição de
sujeitos do discurso que ocupam determinado lugar social.

Neste presente estudo, buscamos estabelecer um recorte da pesquisa de 2018 à luz do contexto
de adversidade que se instaurou em 2020 e da ideia de letramento digital. Para tanto, focaremos
nas análises sobre as memórias e interdiscursividades que emergem das representações, de modo
a confrontar as inscrições discursivas e propor reflexões problematizadoras das práticas docentes e
dos processos educacionais que visam formar professores de línguas estrangeiras e refletir sobre o
contexto emergencial instaurado com a pandemia.

Em Freitas (2018), a coleta e análise dos dados foi realizada nos moldes da proposta AREDA
(Análise de Ressonâncias Discursivas em Depoimentos Abertos), organizada pela pesquisadora
Serrani-Infante em 1998. De forma geral, trata-se de um aparato teórico e metodológico robusto
voltado para a produção de regularidades discursivas. O roteiro AREDA, inicialmente concebido para
enunciação em segunda língua como uma abordagem transdisciplinar, também tinha como segundo
foco a análise produção de material didático e em linhas gerais trata-se de estudos de caso com foco
em “analisar, em depoimentos de enunciadores com experiência bi/multilíngue, o funcionamento de
ressonâncias discursivas na construção de representações de processos identificatórios em jogo no
processo de enunciação em segunda(s) língua(s) (SERRANI-INFANTE, 1998, p. 151).

2 Referimo-nos aos profissionais que educam professores. Em outras palavras, aos docentes dos cursos de Letras, mo-
dalidade Licenciatura. A opção pelo termo deve-se ao entendimento de que o termo ‘formador’ de professor acaba por
simplificar um processo tão complexo e denso.

164
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Essa proposta teórico-metodológica se ancora na análise das ressonâncias discursivas em


depoimentos abertos, coletados com docentes de um curso de Licenciatura em Letras, habilitação
em língua inglesa. Uma das características dela é a recorrência das mesmas proposições ao longo do
roteiro para favorecer as ressonâncias. Dito de outra forma, ao gravar seu depoimento, observando
os questionamentos elencados, o sujeito, inconscientemente e livremente, retoma sua enunciação
sobre algo que já fora antes dito, dada a repetibilidade das questões, e isso é o que propicia o chamado
efeito de vibração mútua, característico quando da existência de ressonâncias.

A partir do funcionamento do ensino nos moldes atuais, estabelecemos diálogos com questões
relacionadas ao ensino-aprendizagem de línguas e à formação de professores identificadas em
Freitas (2018). O foco no novo contexto, balizado pelos estudos do discurso com viés transgressivo,
foi mobilizado por entendermos que a contribuição desses estudos é singular e permite revisitarmos,
de forma crítica, as práticas, lançando um olhar “que precisa considerar, inclusive, os interesses a
que servem os conhecimentos que produz” (MOITA LOPES, 2006, p. 25), pensadas para ação e para a
mudança, premissas basilares para um estudo inserido em um contexto pandêmico-digital.

A seguir, faremos um breve compilado teórico para o diálogo proposto neste capítulo.

Discurso e transgressividade

O tom transgressivo empregado nesse estudo é fruto do diálogo com a Linguística Aplicada
(LA) indisciplinar organizada por Moita Lopes (2006), e que diverge da LA tida tradicional por essa
ainda ser:

[...] muito positivista (embora não o seja, em geral na formulação da


metodologia de investigação no Brasil!) e que ainda entende a LA como
área exclusivamente centrada em práticas de ensino-aprendizagem de
línguas (sobretudo, estrangeiras), tanto no modo presencial ou à distância,
com forte dependência da linguística (ignorando inclusive intravisões sobre
linguagem proveniente de outros campos. (MOITA LOPES, 2006, p. 25)

Pretendemos, neste estudo, ir de encontro ao positivismo da frente tradicional da Linguística


Aplicada, ao (re)pensarmos e refletirmos sobre os modos de produção de conhecimento atuais,
especialmente no ensino emergencial, bem como extrapolarmos a fronteira das práticas de ensino-
aprendizagem de línguas, ao abrirmos espaço para diálogos outros, não somente com outros campos

165
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

do saber, mas também relacionados a pontos como: acessibilidade dos estudantes e até mesmo dos
docentes, políticas públicas para integração da comunidade escolar a essa nova realidade e questões
sobre letramento digital.

Para Pennycook (2006, p. 82), essa vertente crítica da LA pode ser entendida como uma
“abordagem transgressiva da teoria e da disciplinaridade. Aqui “transgressivo” se refere à
necessidade crucial de ter instrumentos tanto políticos como epistemológicos para transgredir as
fronteiras do pensamento e da política tradicionais”. Se para transgredir é preciso ter instrumentos,
precisamos levantar bandeiras para alicerçarmos tal abordagem, e, nesse sentido, a inter ou a
transdisciplinaridade podem se configurar como formas de transgressão dos limites disciplinares,
questionando as chamadas “fundações do conhecimento legítimo” e trazendo à baila “novos objetos
de conhecimento socialmente construídos”. Para que isso aconteça, é preciso atravessar, e se
necessário transgredir, “fronteiras disciplinares convencionais com o fim de desenvolver uma nova
agenda de pesquisa que, enquanto livremente informada por uma ampla variedade de disciplinas,
teimosamente procuraria não ser subalterna a nenhuma” (PENNYCOOK, 2006, p. 73).

Estabelecendo uma comparação entre a Linguística Aplicada Crítica (LAC) e as teorias


transgressivas, Pennycook nos diz que a LAC é vista como a práxis em movimento, uma abordagem
mutável e dinâmica para questões de linguagem em contextos múltiplos, enquanto a LAC situada
dentro da perspectiva transgressiva, age como forma de antidisciplina ou conhecimento mútuo,
como um modo de pensar e fazer sempre problematizador (PENNYCOOK, 2006). O autor faz uma
leitura crítico-comparativa que dá conta dos aspectos principais do diálogo entre essas duas frentes,
no que diz respeito ao cerne das vertentes, sendo a LAC uma forma de extrapolar a criticidade
ou o caráter meramente crítico, atribuído a ela, ao passo que as teorias transgressivas passam a
contemplar outras questões de ordens identitárias, sexuais, de acessibilidade, questões éticas e até
mesmo econômicas (desigualdade), desejo ou reprodução de alteridade. A transgressão, portanto,
possibilita-nos desestabilizar os objetos, de modo que por meio dela podemos adicionar em nossas
agendas de pesquisa questões, interesses e tópicos que ultrapassam os limites e as fronteiras das
questões de linguagem e ensino.

Em diálogo com essa vertente da LA, os estudos do discurso se encarregam de dar suporte
a questões da linguagem propriamente ditas. Traçamos um breve panorama desses estudos,
levantando conceitos e concepções que se fazem imprescindíveis à problematização das práticas
de ensino vigente, bem como nos possibilitam pensar questões de língua e linguagem inerentes à
formação de professores e ao ensino-aprendizado.

166
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Dado o seu caráter histórico-singular, compreendemos o ensino remoto como um acontecimento


discursivo único e irrepetível, no qual os sentidos são aflorados, refletindo as variadas percepções
dos sujeitos envolvidos historicamente no ensino. Nesse evento, as redes de memórias discursivas
sobre a língua e seu ensino-aprendizagem, por exemplo, são acionadas e criam condições para
um funcionamento discursivo que dialoga com os já-ditos e propõe novos sentidos face ao novo
acontecimento.

Para Pêcheux (1999), a memória discursiva seria aquilo que,

face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer “os
implícitos” (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos
citados e relatados, discursos transversos etc.) de que sua leitura necessita:
a condição do legível em relação ao próprio legível. (PÊCHEUX, 1999, p. 52
- grifos do autor)

Em diálogo com o conceito de memória, retomamos o segundo eixo de representação


discursiva que emergiu como resultado em Freitas (2018), o qual versa sobre a relação do educador
de professores com o ensino-aprendizagem da língua. Assim sendo, entendemos que essas redes de
memória discursiva podem vir a ser mobilizadas a partir das inscrições desses sujeitos nos discursos
da integração, entendidos por um conjunto de fatores globalizados que colocam o conhecedor do
inglês em um dado patamar mais elevado ou privilegiado, quando comparado aos demais. São
elementos integradores que acabam por excluir ou menosprezar os não falantes.

Partindo das memórias cristalizadas identificadas em Freitas (2018) sobre o que é aprender e
ensinar uma língua no contexto regular, recorremos às condições de produção do atual cenário do
ensino de línguas para problematizar como esse ensino acontece, seja ele de forma presencial ou a
distância. Por condições de produção, entendemos que representam

fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz parte


da produção do discurso. A maneira como a memória “aciona”, faz valer, as
condições de produção, é fundamental [...] e se as considerarmos em sentido
amplo, as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico,
ideológico. (ORLANDI, 2003, p. 30)

167
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Também nos inscrevemos nos estudos do Círculo de Bakhtin, no que tange às noções de
dialogismo e polifonia, tomadas aqui como pilares teóricos para pensarmos os discursos dos
educadores. A teoria do diálogo representa que todo dizer é, em sua essência, dialógico, pois é
atravessado e constituído por outros discursos e outras vozes. O conceito de polifonia, o segundo
pilar bakhtiniano, caracteriza-se por uma vibração do conjunto de vozes.

Com essa sucinta mobilização teórica, pretendemos desconstruir a aparente transparência


da linguagem e dos sentidos que estão em jogo nesses processos e discutir os possíveis limites e
fronteiras do ensino e da formação remota pois, ainda que o aluno atual tenha a tecnologia inserida
em sua vida cotidiana, no contexto digital de ensino ele foi arbitrariamente inserido, assim como o
professor. Por isso, não podemos dizer que o ensino remoto seja parte da realidade do aluno e do
professor ou que esse seja um processo natural, não conflituoso e sem equívocos. Assim como não
podemos afirmar que há letramento digital pelo simples fato de a comunidade escolar ter acesso, por
exemplo, a um celular com dados móveis.

Representações sobre o ensino-aprendizagem de inglês: diálogos e embates

Em Freitas (2018), as representações de ensino, formação e língua que emergiram das


regularidades discursivas dos sujeitos foram organizadas da seguinte maneira:

Eixo 1 – O educador de professor e a relação com a língua

I. A inscrição no discurso do afeto pela Língua Inglesa

II. A inscrição no discurso da aprendizagem formal

III. A inscrição no discurso da legitimação da língua pelo contato com o estrangeiro

Eixo 2 – O educador de professor e a relação com o ensino-aprendizagem da língua

I. A inscrição no discurso da integração

II. A inscrição no discurso da (im)possibilidade da proficiência linguística

III. A inscrição do educador no discurso da criticidade

Eixo 3 – O educador de professor e a relação com o processo de formação

I. A inscrição no discurso da formação lacunar do curso de Letras e da falta

II. A inscrição no discurso da autonomia

168
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

III. A inscrição no discurso da (im)possibilidade da formação

Nesta seção, retomaremos alguns resultados encontrados em Freitas (2018) com foco no segundo
eixo de representações: o educador de professor e sua relação com o processo de ensinar-aprender
essa língua, sendo suas regularidades: 1) integração, 2) (im)possibilidade de proficiência linguística
e 3) criticidade. Como forma de recorte para o presente estudo, analisaremos aqui a primeira
regularidade do segundo eixo, que trata da integração, demonstrando que os sujeitos representam a
língua como instrumento global, que une e conecta os sujeitos falantes dela. Entendemos que essa
representação ainda reverbera, em certa medida, no cenário atual de ensino remoto, uma vez que
é agravado pelas desigualdades nas condições de acesso à internet e à infraestrutura de tecnologia
digital.

A primeira sequência selecionada, reitera a inscrição dos sujeitos no discurso da integração:

(SD01) E.P 13: Pra mim, ensinar inglês, significa, éh...abrir oportunidades pra que essas pessoas
possam se conectar com o mundo, éh..éh, criar cidadãos críticos, que possam debater, que possam,
éh..ter contato com outras opiniões, que possam ter contato com diversos entretenimentos, que
possam viajar “e”, “e” “e” e ser parte dessa viagem, de uma maneira mais autônoma, então é mais
na questão de criar mesmo uma parte dessa cidadania dessa pessoa, “como” como autonomia…
então, a pessoa vai se empoderar dessa língua inglesa pra que ela seja autônoma, tanto em seu
trabalho, tanto em sua pesquisa, tanto em seus estudos, em suas viagens e no seu dia a dia, né,
ao abrir “o”, ao ter que lidar com computador, ao ter que lidar com coisas que são do dia-a-dia,
então é um, éh, pra mim, ensinar inglês é empoderar as pessoas, é empoderar as pessoas pra
que elas possam agir em sociedade de uma forma mais crítica (FREITAS, 2018, p. 78).

Na sequência sobredita, o sujeito educador de professor enuncia sobre o que considera ensinar
a língua inglesa. Ele parte da posição discursiva de docente de um curso de Letras e o faz inscrito
no discurso da integração. Isso pode ser percebido pelos enunciados ‘abrir oportunidades’, ‘conectar
com o mundo’, ‘ter contato com outras opiniões’, ‘possam viajar e ser parte dessa viagem’, ‘empoderar
dessa língua’ e ‘lidar com coisas do dia a dia’.

Quando enuncia, o E.P. 1 recorre às memórias discursivas que dão conta de que, ao falar inglês,
necessariamente, o sujeito do dizer ocupa uma posição social de prestígio, pois é capaz de exercer
sua autonomia e de se portar de forma crítica em sociedade. As marcações em itálico fazem coro à
inscrição no discurso da língua que integra, mas ao mesmo tempo, ao integrar alguns privilegiados,
ela também exclui, automaticamente, os demais.
3 Sigla para Educador de Professor. Para essa finalidade, os nomes fictícios dos educadores foram suprimidos.

169
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Transpondo esses dizeres para o contexto em discussão, podemos perceber que a questão da
conectividade é reincidente no contexto pandêmico, ou seja, os sujeitos-alunos não conectados
no ensino presencial possivelmente são aqueles mesmos sujeitos que permanecem nessa mesma
situação dentro de um contexto remoto. É interessante pontuar que a tecnologia continua sendo
uma questão que aparece nos dizeres, ainda que hoje ela tenha sido ressignificada.

A ressignificação que ocorre com a tecnologia dentro de um contexto de exceção perpassa


tanto questões econômico-estruturais quanto aspectos da própria familiaridade com o uso e
letramento digital dos usuários. Em a pessoa vai se empoderar dessa língua inglesa...ao ter que lidar
com um computador possivelmente, no dado momento histórico em que foi enunciado, o sujeito-
educador estivesse se referindo a recursos de informática em língua inglesa ou a outras formas
de empoderamento na/pela língua. Porém, nos dias atuais, tais dizeres nos levam a pensar esse
empoderamento no sentido da acessibilidade, pois a equidade no acesso a dispositivos, recursos e
ferramentas digitais está longe de ser uma realidade no contexto educacional brasileiro.4

O segundo educador de professor, quando enuncia sobre o mesmo questionamento, profere:

(SD02) E. P. 2: Éh…o que significa ensinar inglês, né, que é a décima primeira pergunta…
éh, eu acho que ensinar em inglês tem a ver “com”, com criar oportunidades pros alunos, éh,
aprenderem tanto sobre quanto se expressarem “na” lin-, nessa língua... então acho que tem a
ver com criar essas oportunidades pra fazer o uso, pra se expressar, pra criar por meio da Língua
Inglesa, né…(FREITAS, 2018, p. 78).

Assim, quando enuncia que o ensino de línguas está relacionado à criação de oportunidades,
podemos estabelecer uma ponte entre as oportunidades de acesso a idiomas estrangeiros,
propriamente ditas, e em se tratando de ensino remoto emergencial, a oportunidades de acesso à
internet e aos recursos tecnológicos como um todo, por exemplo, podemos citar os aparelhos de
celular que possuam uma configuração mínima para desempenhar funções básicas voltadas para o
ensino (acessar conteúdo em um AVA, enviar uma tarefa e participar de uma aula remota).

As oportunidades de acesso à aprendizagem da língua estão relacionadas ao fato de que


a concessão para se estudar inglês no Brasil é voltada a uma minoria privilegiada. Em relação às
oportunidades de acesso à tecnologia, tanto pelos discentes, que, em alguns casos, não dispõem
de recursos mínimos suficientes para participarem de uma aula remota, quanto pelos próprios

4 Ver mais sobre exclusão digital na pandemia em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2020/08/05/exclusao-


-digital-na-pandemia-e-nova-forma-de-discriminacao-diz-ativista.htm. Acesso em: 14 set. 2020 16:18.

170
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

docentes, que, devido à baixa remuneração e condições, não estão inseridos no meio digital de forma
adequada. Isso pode ocorrer por falta de recursos, ou até mesmo de uma estrutura física apropriada,
um ambiente adequado para estudo,

Como se sabe, o letramento vem sendo amplamente discutido por diversos autores e adquire
uma pluralidade de vieses. Nesse sentido, refutamos as definições de letramento digital que se
restringem à escrita e leitura de textos mediados por recursos digitais, como postula Pinheiro:

[...] alguns conceitos de letramento digital se configuram como as práticas


sociais de leitura e escrita realizadas através das ferramentas digitais
(SOARES, 2002; MARCUSCHI, 2004; RIBEIRO, 2007; VICENTE; CAMPOS,
2016). Essas definições deixam implícito que quem consegue digitar ou
ler algo produzido em um processador de texto, como o word, é letrado
digital, porém desconsideram outras práticas sociais realizadas através das
tecnologias digitais que agregam, à escrita, outras modalidades, tais como
a visual e a oral. (PINHEIRO, 2018, p. 606)

Para além de pensar nos tipos de práticas que envolvem os conceitos de letramento digital por
estudiosos, compreendemos que os conceitos e as práticas de letramento podem ser ampliados no
sentido de passarem a contemplar, também, aspectos sociais e culturais de alunos e professores.
Num contexto de ensino remoto emergencial, o letramento digital passa a ser uma questão que
incide nas práticas de modo a impactar tanto os docentes quanto os discentes.

No caso dos docentes, ao implementar um ensino nesses moldes, a resistência e a insegurança


em relação ao domínio da tecnologia e à falta de familiaridade com as ferramentas são fatores
decisivos que terminam por limitar a atuação dos professores frente às novas necessidades de
inserção e adaptação às novas rotinas educacionais. A oferta de assistência emergencial e de formação
emergencial por instituições de ensino atenuaram a resistência e o impacto da nova realidade, mas,
indubitavelmente, não podem e não têm a pretensão de esgotar todas as necessidades que surgiram.

De modo geral, ainda que pertencentes a uma geração que é inserida digitalmente, os discentes
também enfrentam dificuldades e, em muitos casos, por diversas razões, podem ser caracterizados
como iletrados digitais, na medida em que, além de questões de dificuldades estruturais e de
acessibilidade mais acentuadas, familiaridade com as tecnologias, também enfrentam dificuldades
de adequação ao formato digital, por não entenderem que o ambiente on-line, ao qual estavam

171
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

habituados a utilizar para fins de entretenimento, passou a representar o principal ambiente de


ensino formal, correspondente a sala de aula presencial.

Existem, ainda, inadequações de ordem comportamental e estrutural, uma vez que houve uma
alteração nos contextos domésticos. Em lares com mais de um filho, por exemplo, nem sempre há
dispositivos para todos, e essa falta se estende aos próprios pais em suas profissões, afetados por
essas mudanças que têm efeito, inclusive, sobre a classe média. Por isso, é importante ressaltar que
o cotidiano nos lares foi prejudicado por esse formato instaurado, o que também termina por incidir
na produtividade dos profissionais, alunos e professores.

Todos esses fatores somados nos levam a uma ressignificação das práticas de ensino, de modo
a lançar um olhar crítico sobre o contexto em questão e pensar que essa transposição não planejada
já vinha acontecendo, a passos lentos, ainda que de forma discreta e por vezes imperceptível. Em
Freitas (2018), identificamos que os próprios educadores de professores já vislumbravam a inserção
tecnológica em suas práticas, ainda que naquele dado momento histórico não houvesse o peso de
uma necessidade abrupta do ensino remoto emergencial.

A resistência por parte de muitos, em especial pelos docentes mais conservadores ou tradicionais,
sempre existiu. No entanto, o contexto atual exige que as adaptações aconteçam de forma muito
rápida, o que faz com que seja possível que se instaurem formatos equivocados e excludentes, bem
como em descompassos com o contexto social e cultural da comunidade escolar.

Vejamos a terceira sequência que contempla os dizeres do E.P. 3:

(SD03) E. P. 3: “...e a gente também como formador tem que acompanhar essas mudanças,
porque a forma como eu aprendi a Língua Inglesa…se for pensar hoje em dia com tanta tecnologia
é uma forma muito ultrapassada, porque eu só tinha insumo de livros didático, de fita cassete,
na época não tinha internet, depois que a internet surgiu, então não adianta eu querer como
formadora insistir pro aluno aprender dessa forma, hoje é outros recursos...”.

Nesses dizeres, o sujeito aponta a internet como a causa de um distanciamento entre o ensino
conservador e o ensino digital. Quando enuncia que o formador precisa acompanhar as mudanças
com o advento da internet, ele já sinalizava a necessidade de uma readequação das práticas de
ensino, de modo que o aluno parecia já estar automaticamente inserido nesse cenário e que, apenas
o professor, precisasse se colocar nesse lugar para dialogar com o aluno em um mesmo ambiente.
Dito de outro modo, discentes, e até mesmo os docentes, estão habituados ao ambiente digital,
porém, não necessariamente estão familiarizados com o ensino digital, que exige um conjunto

172
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

de habilidades específicas e, ainda, uma infraestrutura básica (celular e/ou computador, rede de
internet).

Uma das questões que o ensino remoto emergencial evidenciou logo no início de sua instauração
em 2020 é que não somente os educadores precisam ser letrados digitalmente. Ainda que os alunos,
em sua grande maioria, sejam nativos digitais, não se apresentam no ambiente on-line de forma
natural e produtiva, requerendo adaptações e ressignificações pertinentes e condizentes ao formato
de ensino digital.

A partir desses diagnósticos, elencamos alguns fatores externos recorrentes, compreendidos


como entraves para que o ensino remoto aconteça de forma produtiva:

• Falta de energia

• Ausência ou instabilidade no sinal da internet

• Ausência ou defeitos em equipamentos (celulares, computadores, fones de ouvido,


microfones etc.)

• Questões estruturais (ausência de um ambiente específico para estudos e participação nas


aulas; disposição do espaço, há casos em que o computador está localizado em um local onde
há trânsito da família; contextos adaptados de acordo com as possibilidades, por exemplo,
os computadores emprestados por instituições são colocados sobre caixotes de madeira em
casas insalubres, pois não há um local adequado para ser instalado

• Desrespeito ou má conduta em chats ou durante as aulas.

Nesse sentido, a concepção de letramento digital a qual nos referimos transcende a mera
familiaridade com a tecnologia. Essa forma de letramento precisa ser pensada de modo a funcionar
como um conjunto de práticas que contribuam para inserção social e que contemplem também
questões comportamentais e éticas, questões de postura, ensino e adequação linguística ao novo
cenário. Para serem considerados letrados digitalmente, alunos e professores precisam ser capazes
de se integrarem ao ambiente de forma ativa, ética e responsiva.

A partir disso, pensar na representação do inglês como língua global e, de modo geral, nas
representações dos formadores sobre como formar professores extraídas de Freitas (2018), nos
possibilita estabelecer relações entre as questões de letramento digital pontuadas (inserção social,
questões éticas, comportamentais e estruturais) com o novo contexto de ensino vivenciado.

173
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

A inscrição dos sujeitos no discurso da integração desvela a representação de uma língua global/
internacional, que funciona como um instrumento de acesso. Essa imagem de língua articulada ao
seu ensino mobiliza o discurso de que os recursos didáticos e digitais possuem a potencialidade de
também integrar os alunos, fornecendo-lhes, por exemplo, muito mais insumo e oportunidades de
aprendizagem. Nesse sentido, podemos dizer que há uma ressignificação por parte dos educadores
do acerca do processo de ensino-aprendizagem mediado por tecnologias, demandando-lhes um
olhar outro sobre esse processo.

Considerações Finais

Este estudo retomou parte dos resultados que obtivemos em Freitas (2018) acerca das
discursividades construídas por professores de língua estrangeira sobre o ensino-aprendizagem da
língua inglesa. A partir disso, pensamos em diálogos entre essas discursividades e o ensino remoto
emergencial instaurado com a pandemia, bem como os desdobramentos relacionados a esse contexto
para a construção de práticas de ensino-aprendizagem.

Pudemos estabelecer um diálogo entre a pandemia do novo coronavírus, a digitalização da


educação e seus desdobramentos, balizados pelos estudos transgressivos (MOITA LOPES, 2013;
2006) e pautados em alguns resultados do estudo de Freitas (2018). Face à reflexão proposta e às
condições de produção em que esse estudo se inscreve, buscamos demonstrar que o contexto de
ensino-aprendizagem emergencial instaurado com a pandemia instaurou pontos de tensão que
devem ser analisados e tomados como essenciais no debate, ao se pensar o ensino em formato digital.

Por fim, o diálogo mobilizado entre as representações dos formadores e o contexto


pandêmico-remoto instaurado em 2020 incita afirmarmos que pensar o letramento digital por si
só, desconsiderando as condições de produção e o contexto sócio-histórico e ideológico os quais
professores e alunos se inscrevem, não contempla as especificidades da maioria das realidades
escolares do Brasil.

Referências

FREITAS, Marcela Henrique de. Representações de educadores de professores sobre a formação em Letras
e o ensino-aprendizagem de Língua Inglesa. 2018. 156 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) -
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2018.

BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2017.

174
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma Lingüística Aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

ORLANDI. E. P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas: Pontes, 2003

PENNYCOOK, A. Uma linguística aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma Lingüística
Aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

PÊCHEUX, M. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre [Jean Davallon / Jean-Louis Durand / Michel Pêcheux / Eni
P. Orlandi]. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999[1983]. p. 49- 57.

PINHEIRO, Regina Cláudia. Conceitos e modelos de letramento digital: o que escolas de ensino fundamental
adotam? Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 18, n. 3, p. 603-622, set./dez. 2018.

SERRANI-INFANTE, S. M. A abordagem transdisciplinar da enunciação em segunda língua: a proposta AREDA.


In: SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. C. (Org.) Linguística Aplicada e transdisciplinaridade. Campinas:
Mercado de Letras, 1998b. p. 143-167.

175
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

PERSPECTIVAS DISCURSIVAS PARA


UMA DECOLONIZAÇÃO DO ENSINO E
DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE
LITERATURA

Thyago Madeira França

Pensamentos iniciais

A literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros


e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações
insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e
mais belo (TODOROV, 2009, p. 23-24).

Ao estabelecer uma agenda de pesquisa e ação para uma Linguística Aplicada crítica e de
modernidade recente, Kleiman (2013) retoma os estudos indisciplinares organizados em Moita Lopes
(2006), com o intuito de reestabelecer o debate sobre a necessidade de se construir conhecimentos
que contemplem “as vozes do Sul”, ou seja, saberes que dialoguem com os sujeitos e/em sua
realidade social. Trata-se, dessa forma, de pensar uma agenda de pesquisa, ação e intervenção que
dê mais visibilidade para a LA, mas que também se proponha decolonizar e combater as estruturas
hegemônicas de produção do conhecimento, aparelhadas também nos currículos das universidades
e, por conseguinte, também das escolas.

176
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Nesse contexto de tomada de posição, Kleiman reforça que é essencial estabelecer diálogos com
vozes do Sul, ou seja, com nomes de fronteiras, autores latino-americanos que questionam, direta
ou indiretamente, a hegemonia ocidental do Norte, ainda determinante e dominante em todas as
etapas de produção e disseminação do saber científico e acadêmico. Nesse desejo de suleamento,
são mobilizados estudos que se posicionam na periferia do eixo acadêmico euro-norte-americano e
propõem uma decolonização epistemológica que rompa o monopólio do saber e que se ancorem, por
exemplo, na elaboração de currículos que favoreçam, “por um lado, a apropriação desses saberes por
grupos de periferia dos centros hegemônicos e, por outro, a legitimação dos saberes produzidos por
esses grupos” (KLEIMAN, 2013, p. 42).

Kleiman reforça, inclusive, que a definição dos problemas de pesquisa e dos caminhos
epistemológicos devam também ser “suleados”, para que a produção de conhecimento transcenda a
universidade e se realize também pelos próprios participantes das histórias locais, como os sujeitos
dos grupos “feministas, movimentos étnico/raciais, dos movimentos gays, dos sem-terra, sem-teto,
sem-escrita, ou ainda, como no caso dos alfabetizadores e professores, daqueles sem movimentos
sociais que os acolham e fortaleçam” (KLEIMAN, 2013, p. 43), o que pode ser alcançado com pesquisas
de problematizem discussões sobre “sexo e gênero, racismo, proletarização do professor, a exclusão
e o ensino na escola pública, a interculturalidade na produção de textos escolares, na formação de
docentes, nos currículos da escola” (KLEIMAN, 2013, p. 50).

Os dizeres de Kleiman chancelam o espaço e o currículo da escola, assim como a formação


dos professores, como discussões a serem suleadas, uma vez que esses lugares discursivos são
alicerçados em processos de exclusão e interdição de grupos estigmatizados. Assim, em
consonância com a agenda da LA crítica sobre os modos de produção do conhecimento, defendemos
a necessidade de uma decolonização dos currículos que chancelam o ensino de literatura na escola
pública e na universidade, os quais mobilizam o saber literário a partir de paradigmas hegemônicos
que referendam a memória discursiva (PÊCHEUX, 2010) de uma literatura para poucos, associada a
um amontoado de textos que pouco dizem para os alunos e, por vezes, não dialogam com os saberes
locais dos professores da escola1. Nesse sentido, aqui buscamos demonstrar como os discursos e
o aparelhamento institucional que gravita em torno do ensino de literatura contribuem para

1 Canagarajah (2005) entende que os saberes globais são as teorias e práticas institucionalizadas academicamente e
concebidas por cientistas especializados. Em contrapartida, os saberes locais não possuem status de conhecimento
acadêmico e científico, mas representam o conjunto de saberes gerados pelo professor por meio de suas práticas sociais
no processo de ensino-aprendizagem. Logo, os saberes locais consistem nas diversas estratégias criadas pelo professor
em seu contexto específico de trabalho, ou seja, as decisões teóricas, didáticas, metodológicas tomadas por ele em sua
prática cotidiana (FRANÇA, 2017).

177
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

um conceito de literatura equivocada, que afasta o aluno-leitor de uma formação literária que o
humanize.2

Nesse sentido, também propomos diálogos com estudiosos que se posicionam criticamente em
relação ao poder do cânone literário e de sua escolarização restritiva, bem como que compreendam
a literatura como um saber que precisa dialogar com a periferia, a partir da valorização dos saberes
locais dos professores da escola e do fortalecimento dos discursos e do currículo de formação do
professor de literatura nas universidades. Como postula a bibliotecária e educadora colombiana
Silvia Castrillón, a leitura pode e deve contribuir para a construção de “uma sociedade mais afinada
com seus mais íntimos sonhos: pensar e escolher o próprio destino” (CASTRILLÓN, 2011, p. 11).
Por isso, defendemos que não se forma um país de leitores literários sem se questionar os pilares
acadêmicos que silenciam a formação dos professores de literatura nos currículos das universidades.

Para que possamos dar continuidade às reflexões sobre a necessidade de se questionar


as estruturas hegemônicas que alicerçam a educação literária (na universidade e nas escolas),
estabelecemos alguns axiomas discursivos (FRANÇA, 2019) que emergem das regularidades
históricas que funcionam como interdiscursividades sobre o ensino de literatura e sobre a formação
do professor:

• Os documentos oficiais (Base Nacional Comum Curricular ou matrizes curriculares das


secretarias estaduais) não oferecem à literatura status de disciplina, a qual figura somente
como um conteúdo que deve ser contemplado em Língua Portuguesa. O texto literário figura
como um gênero discursivo entre outros tantos;

• Os livros didáticos, as provas diagnósticas e os processos seletivos de acesso ao ensino


superior (o ENEM, por exemplo) mobilizam o saber literário de forma interdisciplinar e/ou
utilitarista;

• Por não ser uma disciplina autônoma na maioria das realidades da educação básica, a
literatura corre o risco de “acontecer” somente nas salas de aulas dos professores que
identificam a importância da formação do leitor literário;

• Há uma cristalização de metodologias propedêuticas que utilizam fragmentos de textos


literários para servir a estudos gramaticais ou para justificar a regularidade das características
inerentes às escolas literárias e tendências estéticas;

2 Para Candido (2011, p. 180), a literatura confirma no homem traços essenciais, como o “exercício da reflexão, a aquisi-
ção do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas
da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”.

178
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

• Há um costume de se organizar e escolarizar o saber literário por um viés histórico, o que faz
com que os textos literários sejam preteridos à historicidade dos movimentos literários, suas
características, principais autores e obras;

• Nos cursos de Letras, raramente há componentes curriculares que estejam alinhados à


formação de professores de literatura. Esse saber, na maioria dos currículos das universidades
brasileiras, afasta-se da formação docente e foca na formação histórica, crítica e comparativa
do profissional frente à literatura e seus autores de renome.

Discussões mais ampliadas sobre os entraves relacionados ao ensino de literatura podem ser
encontradas em França (2017). O foco aqui é estabelecer como essas problemáticas compõem um
cenário periclitante para a sobrevivência (ou existência?) da literatura na escola. Como tem sido
organizado na maioria das realidades da educação básica, em especial na escola pública, o saber
literário é revestido de sentidos que produzem equívocos, uma vez que o próprio conceito de
literatura é assimilado de forma equivocada por alunos e professores3. Ao não priorizar a formação
do leitor literário, o que se chama de ensino de literatura é tão muito o ensino da historiografia
literária e a utilização ilustrativa de textos para fins linguísticos e gramaticais.

Em seu texto mais recente, A literatura em perigo, Todorov (2009, p. 27) nos diz que “na escola,
não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos”. Isso é um problema
que não pode ser apontado como responsabilidade exclusiva dos professores da educação básica, os
quais foram formados em contextos universitários que, por vezes, são compostos por catedráticos
que abominam a ideia de se ensinar a literatura e acreditam que a compreensão do discurso estético
deve emergir de uma inspiração iluminadora, comum a poucos e sensíveis leitores.

Todorov (2009) também afirma que há uma espécie de abuso de poder da crítica, dos historiadores
e dos estruturalistas acerca da disciplina de literatura. Entendemos que esses abusos acabam por
interditar sentidos, leituras, autores, por meio da cristalização de modelos ideológicos que fazem
emergir memórias que dizem que literatura não se ensina ou que focar na formação de professores
empobrece a literatura4. Infelizmente, nem sempre os professores universitários da Literatura

3 Nossa experiência como professor formador no curso de Letras permitiu que reconhecêssemos que, por vezes, os calou-
ros possuem uma percepção de que a literatura está associada mais aos aspectos históricos, do que aos textos literários.
Em diálogos com alunos calouros, ouvimos em vários momentos relatos de alunos que tiravam boas notas em Língua
Portuguesa e Literatura na escola, tendo lido poucos ou nenhum texto literário integral.
4 O processo histórico de reformulação de matrizes curriculares, a reorganização de projetos políticos pedagógicos e a
gestão acadêmica de um curso de Letras permitem lançarmos tais enunciados como símbolos de uma representação
hegemônica da Literatura nas universidades. No entanto, essas discursividades não significam um diagnóstico quanti-
tativo, mas uma memória discursiva a ser combatida.

179
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

reconhecem a importância social da formação de leitores literários na escola, o que, por motivos
claros, depende de uma formação produtiva e ética de professores de literatura na universidade.

Nesse contexto de exclusão e privilégios que a literatura se alicerça, ou seja, de uma canonização
hegemônica do saber literário nas universidades e nas escolas, consideramos essencial o diálogo
teórico-metodológico e político com os estudos da LA e sobre decolonização, como forma de
reconhecer que os problemas mobilizados por esses pensadores são importantes e, infelizmente,
semelhantes aos enfrentados por aqueles que pretendem alicerçar caminhos para um ensino de
literatura que se estabeleça de forma responsável, produtiva, humanizadora e empoderadora.

Em França (2017, p. 226), estabelecemos o conceito de empoderamento literário como um


“ato sócio-político-formativo e emancipatório em que o sujeito, por meio da linguagem literária,
é interpelado a se inscrever e participar, de maneira responsiva-responsável, de diferentes práticas
sociais”. Assim, empoderar é contribuir para que os alunos-leitores busquem, por meio de práticas
de letramento literário, tomadas de posição enquanto sujeitos críticos e, se assim se identificarem,
serem capazes de provocar transformações de diversas naturezas nas esferas sociais e lugares
discursivos em que se inscrevem. O professor de literatura, nessa esfera, é o agente catalisador do
processo de empoderamento literário. Por isso a importância de pensarmos processos que combatam
a formação hegemônica do professor de literatura nas universidades.

Reflexões sobre a decolonização do ensino de literatura

A ideia de colonialidade revela uma faceta perversa da modernidade, pois contempla em suas
práticas processos de opressão e dominação de países e, em termos mais específicos, de grupos
subalternos e populações estigmatizadas. Essa percepção emerge dos estudos sobre modernidade/
colonialidade no pensamento decolonial latino-americano de Quijano (2007; 2005), a construção de
epistemologias do Sul em Santos (2011), a transdisciplinaridade proposta em Castrogómez (2007),
a interculturalidade de Walsh (2007), assim como as reflexões de Dussel (2005), Maldonado-Torres
(2007) e Zibechi (2014).

O sociólogo peruano Quijano (2005) defende que a colonialidade alicerça a negação do status
epistêmicos das histórias locais e, por conta disso, o pensamento decolonial estabelece como
problemática central “a relação entre a periferia e o poder, e especificamente com o saber como
forma de poder” (KLEIMAN, 2013, p. 46). Nessa seara, a autora defende a valorização das histórias
que atravessam e constituem os atores sociais na e a partir da periferia. Ao refletir sobre os processos
exploratórios sofridos pelos povos da América Latina, Quijano (2005, p. 136) também reforça que

180
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

o processo de homogeneização cultural (genocídios indígenas) e também “a imposição de uma


ideologia de ‘democracia racial’ que mascara a verdadeira discriminação e a dominação colonial dos
negros” alicerçam a ideia de colonialidade que se instaurou em países como o nosso.

Nesse âmbito de exploração e exclusão, os processos de produção do conhecimento são


determinantes para a normalização de padrões culturais – como a dicotomização entre cultura erudita
e cultura popular – que contribuem para a cristalização de modelos hegemônicos, responsáveis por
silenciar as histórias locais de grupos que, historicamente, vivem à margem do capital econômico e
dos centros de produção acadêmico e científico.

Nessa seara, o pensamento suleado, decolonial e de fronteira que defendemos e mobilizamos


não pretende destruir os saberes hegemônicos, mas sim combater a proclamação de uma verdade
única, alicerçada na desvalorização da cultura popular e no silenciamento de grupos rejeitados.
Logo, a ideia de periferia aqui está relacionada tanto aos estudiosos que não figuram nos principais
redutos científicos do mundo e, por conta disso, fronteiriços e periféricos, quanto aos grupos sociais
tradicionalmente estigmatizados – mulheres, afrodescendentes, índios, gays, trabalhadores do
campo, alfabetizadores e professores (KLEIMAN, 2013).

A inserção dos professores no radar dos processos de exclusão permite a vinculação de nossa
proposta com os estudos de decolonização e da LA crítica, uma vez que referendam o docente como
um sujeito social que, apesar de ter como instrumento de trabalho o conhecimento, é excluído
e deixado, por vezes, à margem da produção dos saberes acadêmicos e científicos e, por conta
disso, juntamente com seus alunos, têm seus saberes e histórias locais atropelados por currículos
e materiais didáticos hegemônicos, descontextualizados e deslocados de uma formação que
transcenda o mero tecnicismo. Os saberes de professores e alunos não podem ser tratados como
subalternos ou inferiores e, dessa forma, defendemos que somente com uma atitude responsiva e
ética frente às histórias locais é possível pensar um ensino de literatura não excludente, que forme
leitores literários conscientes do efetivo domínio da linguagem literária.

Na mesma seara de uma LA anti-hegemônica e pensada para uma modernidade recente,


confluímos com os posicionamentos de Hilário Bohn (2013). Ao refletir sobre a necessidade de
se empreender profundas rupturas epistemológicas para se repensar o ensino-aprendizagem de
línguas no Brasil, Bohn (2013, p. 81) chama atenção para teóricos necessários para se “construir uma
sala de aula que corresponda aos anseios de seus principais atores, alunos e professores”. O autor
reforça que encontra nos estudos do discurso, no dialogismo bakhtiniano (BAKHTIN, 1999; 2006),
nos estudos culturais de Hall (2014), nos estudos identitários, na Linguística Aplicada de Moita

181
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Lopes (2002; 2006), bem como nos estudos feministas de Butler (2003) e Salih (2012), a legitimidade
para propor uma reflexão sobre rupturas, neste caso na construção dos saberes linguísticos.

Além da já expressa identificação com a LA de Moita Lopes, igualmente inscrevemo-nos em


uma concepção de linguagem bakhtiniana e discursiva que, com certeza, entra em consonância com
um desejo de uma formação de professores e um ensino de literatura decolonizante. Trata-se de
compreender as manifestações linguajeiras (o discurso) em uma dimensão social, histórica e política,
de modo que a produção dos sentidos e a constituição dos sujeitos dialogam com as posições sociais
e os lugares discursivos que esses ocupam.

Assim, propostas curriculares e metodológicas que se inscrevam em um ensino de literatura


decolonizante devem reconhecer que professores de literatura da universidade e da escola, assim
como alunos e acadêmicos, são atravessados por uma infinidade de discursos de diversas naturezas
(classe social, grupo familiar, concepções culturais e políticas, crenças sobre os saberes e o
conhecimento, posições religiosas, histórias de vida). Esse diálogo se dá de forma hierarquizada,
de modo que sempre há discursos dominantes que estabelecem verdades ideológicas sobre, por
exemplo, o cânone literário e sua escolarização, por vezes, restritiva.

Portanto, reconhecer a dimensão discursiva da linguagem é um importante passo para se


pensar caminhos para decolonizar o ensino formal de literatura, por meio de propostas de formação
de professores, leituras literárias, metodologias de interação com os textos e práticas de letramento
que respeitem os saberes e as histórias locais dos sujeitos que compõem esse lugar social da sala de
aula.

À luz dos estudos de Canagarajah (2005), entendemos que, em relação ao ensino de literatura,
os saberes globais representam o “conjunto das teorias literárias tradicionais, dos mecanismos de
disseminação, produção e publicação de obras literárias, bem como à escolarização restritiva do
cânone literário e de determinados textos e autores” (FRANÇA, 2017, p. 72), ou seja, o aparelhamento
institucionalizado que gravita em torno da literatura e do seu ensino, tanto na escola quanto nas
universidades. Sem status científico, os saberes locais que atravessam e constituem os discursos do
professor de literatura – estratégias, decisões teóricas, didáticas, metodológicas tomadas na prática
cotidiana de sala de aula – são desmerecidos de tal forma que os próprios docentes tendem a não
reconhecer como esses saberes determinam o seu reconhecimento sobre a diversidade dos alunos-
leitores, essencial para o processo de seleção e manipulação dos textos literários.

Não se trata de uma batalha fácil de ser vencida, uma vez que os caminhos para institucionalizar
uma formação decolonizante de professores de literatura depende, em certa medida, da

182
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

compreensão da importância desse processo por parte dos próprios acadêmicos que, por vezes,
chancelam o pensamento hegemônico. As reformulações das matrizes acontecem de tempos em
tempos e não podem ser utilizadas para manutenção do status quo acadêmico ou das linhas de
pesquisa tradicionais. Em países subdesenvolvidos como o nosso, o currículo acadêmico precisa ter
sensibilidade e compromisso social com as demandas da sociedade não acadêmica, em especial às
populações que fazem parte de grupos estigmatizados.

Dessa forma, retomamos Todorov (2009) que, ao questionar o modelo hegemônico de escola
que se espelha na forma como os saberes são organizados nas universidades, reforça que:

no ensino superior, parece legítimo “ensinar (também) as abordagens, os


conceitos postos em práticas e as técnicas. O ensino médio, que não se
dirige aos especialistas em literatura, mas a todos, não pode ter o mesmo
alvo; o que se destina a todos é a literatura, não os estudos literários.
(TODOROV, 2009, p. 41)

Esse é um importante ponto de inflexão sobre o nosso debate acerca de uma formação
decolonizante de professores de literatura. O currículo da universidade pode e deve contemplar a
crítica literária canônica e os estudos sobre produção literária. No entanto, não pode simplesmente
sobrepujar o fato de que a literatura deve ser de acesso a todos e que, para ampliar esse direito
incompressível (CANDIDO, 2011), é necessário formar professores de literatura que estejam
preparados para formar leitores literários na escola pública, principal espaço de acesso ao texto
literário para a maioria dos alunos da classe trabalhadora.

Em seu principal texto sobre os caminhos para a efetivação de práticas de letramento literário,
Cosson (2006, p. 17) também reforça que, “para que a literatura cumpra seu papel humanizador,
precisamos mudar os rumos da sua escolarização”. Essa transformação depende de uma
desaprendizagem da utilização do texto literário enquanto um pretexto. Para tanto, o ensino de
literatura na escola deve “derrubar algumas dessas cercas disciplinares” (PENNYCOOK, 2006, p. 73)
e viabilizar espaços “para visões alternativas ou para ouvir outras vozes” (MOITA LOPES, 2006, p. 23)
que combatam uma educação bancária e apática que bem serve aos interesses “específicos de uma
pequena minoria” (RAJAGOPALAN, 2013, p. 159).

Para além de atitudes responsivas individuais de profissionais que fazem a diferença, é preciso
lutar para a construção de currículos acadêmicos que assumam em suas disciplinas e componentes

183
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

curriculares a pauta da formação de professores de literatura para atuarem na educação básica e


para formarem leitores literários. A formação de professores que valorizam as histórias locais e se
compreendem como os principais agentes de letramento literário para alunos da escola pública é
possível e precisa ser pauta constante de discussão, para que a literatura não sucumba de vez a um
modelo claramente neoliberal de educação proposto, por exemplo, pela própria BNCC.

Considerações Finais

Apesar de o fio discursivo do presente texto ter como objetivo principal a reflexão sobre
caminhos decolonizantes para a formação do professor de literatura nas universidades, é impossível
pensar políticas de formação que não dialoguem com a prática de ensino de literatura na educação
básica. Assim, valemo-nos nesse ensaio de estudos críticos que nos auxiliam a denunciar contextos
inadequados de escolarização da literatura, os quais representam efeitos de processos canônicos
de formação de professores que, por vezes, estão distantes das histórias locais das populações das
escolas públicas e, por conseguinte, afastados de uma formação de leitores adequada.

A escola precisa deixar de se acalentar, como nos lembra Freire (2014, p. 61), pela “sonoridade
da palavra fácil, pela memorização de trechos enormes, pela desvinculação da realidade, pela
tendência a reduzir todos os meios de aprendizagem às formas meramente nocionais, já é uma
posição caracteristicamente ingênua”. Para que isso aconteça, o professor responsável pela literatura
na educação básica precisa ser atravessado por uma formação que lhe imprima o poderoso papel
e o valor dos seus saberes locais, para que ele, juntamente com a escola, “tome partido por uma
transformação social que acabe com desequilíbrios e desigualdades” (CASTRILLÓN, 2011, p. 65).

As reflexões aqui empreendidas representam um manifesto, um diagnóstico da necessidade de


se pensar uma formação de professores e um ensino de literatura anti-hegemônico. No entanto, ao
nos inscrevermos no lugar discursivo de professor formador, entendemos que avançamos, pois há
caminhos a serem trilhados de forma prática, os quais podem ser referendados pela produção de um
conhecimento científico e intelectual de resistência, que compreenda o sistema e se valha dele para
propor caminhos outros, mais próximos de um projeto de sociedade mais justa.

Com currículos acadêmicos menos excludente, entendemos que o professor de literatura estará
melhor preparado para mobilizar o saber literário de forma adequada, escolarizando-o em prol da
consolidação de uma comunidade de alunos-leitores que possua o efetivo domínio da linguagem
literária e “uma moldura cultural dentro da qual o leitor poderá se mover e construir o mundo e a ele
mesmo (COSSON, 2006, p. 47).

184
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Reforçamos! Para que os saberes locais de professores e alunos sejam ouvidos, respeitados e
validados, é essencial que os currículos dos cursos de Letras sejam reformulados e estabeleçam a
formação do professor de literatura como um objetivo claro e efetivo, por meio de disciplinas com
ementários que vinculem a literatura à sua prática escolarizada de ensino-aprendizagem.

Há uma infinidade de professores de estágio supervisionado, de Literatura e de Crítica Literária


que dialoga com os princípios éticos e responsivos de uma formação anti-hegemônica. No entanto,
a escolarização da literatura precisa ser valorizada como uma política institucional, que emerja
de discursos chancelados pela comunidade acadêmica, para que a formação ética do professor de
literatura não dependa de posicionamentos de resistência isolados.

Talvez estejamos sendo utópicos, ao imaginar a possibilidade de uma universidade e uma escola
decolonizadora, no entanto, parafraseando Moita Lopes (2006), ainda que muitos digam que há uma
grande dose de utopia nessa reflexão, a luta por uma formação de qualidade e, por conseguinte, um
mundo melhor, só seja possível com porções de utopia. São desses ensaios de esperança que podem
surgir alternativas que visem transformações efetivas.

Referências

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006, 203p.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1999, 421p.

BOHN, Hilário Inácio. Ensino e aprendizagem de línguas: os atores da sala de aula e a necessidade de rupturas.
In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da. (Org.). Linguística Aplicada na Modernidade Recente. São Paulo: Parábola
Editorial, 2013. p. 79-98.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio
de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003. 236 p.

CANAGARAJAH, S. Introduction. In: CANAGARAJAH, S. (Org.). Reclaiming the Local in Language Policy and
Practice. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates, 2005. p. 13-30.

CANDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 195-216.

CASTRILLÓN, Silvia. O direito de ler e de escrever. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2011.

CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Descolonizando la universidade. La hybris del punto cero y el diálogo de saberes. In:
CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. (Org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad
epistémica mas allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007, cap. 5, p. 79-93.

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006.

185
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo. (Org.). A colonialidade do
saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colleción Sur-Sur. Buenos Aires,
Argentina: CLACSO, 2005, cap. 2, p. 24-33.

FRANÇA, Thyago Madeira. O dispositivo axiomático como ferramenta de análise discursiva. Dossiê em
homenagem ao Professor Dr. João Bôsco Cabral dos Santos. Cadernos Discursivos, Catalão-GO, Edição Especial,
v. 2 n 1, p. 133-150, 2019.

FRANÇA, Thyago Madeira. A discursividade literária em João Anzanello Carrascoza - por uma episteme
do ensino de literatura. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos) - Instituto de Letras e Linguística,
Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, p. 228. 2017.

FREIRE, Paulo. Partir da infância: diálogos sobre educação. Paz e Terra. 2014.

HALL, Stuart. Quem precisa da Identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). WOODWARD, Kathrin & HALL,
Stuart. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

KLEIMAN, Ângela Bezerra. Agenda de pesquisa e ação em Linguística Aplicada: problematizações. In: MOITA
LOPES, Luiz Paulo da. (Org.) Linguística Aplicada na Modernidade Recente. São Paulo: Parábola Editorial,
2013. p. 39-58.

MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In:
CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón. (Org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad
epistémica mas allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007, cap. 7, p. 127-169.

MOITA LOPES, Luiz Paulo da. (Org.) Linguística Aplicada na Modernidade Recente. São Paulo: Parábola
Editorial, 2013.

MOITA LOPES, Luiz Paulo da. (Org.) Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola
Editorial, 2006.

MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Identidades fragmentadas: a construção de raça, gênero e sexualidade na sala
de aula. Campinas, SP: Mercado de Letras. (Coleção Letramento, Educação e Sociedade). 2002.

PÊCHEUX, Michel. O papel da memória. In: ACHARD, Pierre. et al. O papel da memória. Tradução de José
Horta Nunes. 3. ed. Campinas: Pontes, 2010. p.49-57.

PENNYCOOK, Alastair. Uma linguística aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da. (Org.) Por
uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p.67-84.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL,
Ramón. (Org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica mas allá del capitalismo global.
Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007, cap. 6, p. 93-127.

186
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder: eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A
colonialidade do saber: eurocentrismo nas ciências sociais - perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:
2005. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/lander/pt/lander.html. Acesso em: 01 set. 2020.

SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

SANTOS, Boaventura Souza. Epistemologias del Sur. Utopía e Praxis Latinoamericana, MaracaiboVenezuela,
ano 16, nº 54, p. 17-39, 2011. Disponível em: http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/
EpistemologiasDelSur_Utopia%20y%20Praxi s%20Latinoamericana_2011.pdf. Acesso em: 5 set. 2020.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

WALSH, Catherine. Interculturalidad e colonialidad del poder. Un pensamiento y posicionamiento “otro” desde
la diferencia colonial. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago.; GROSFOGUEL, Ramón. (Org.). El giro decolonial:
reflexiones para una diversidad epistémica mas allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores,
2007, cap. 3, p. 47-63.

ZIBECHI, Raúl. Descolonizar la rebeldía. (Des)colonialismo des pensamento crítico y de las prácticas
emancipatorias. Málaga: Baladre; Zambre; Ecologistas em Acción, 2014.

187
DIÁLOGOS SOBRE O ENSINO
NA EDUCAÇÃO BÁSICA
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR


(BNCC) E ENSINO DE LÍNGUA INGLESA:
NOTAS SOBRE CONSTITUIÇÃO DE
SUJEITOS A PARTIR DO CUIDADO DE SI

Wânia Gomes Mariano Vieira


Guilherme Figueira-Borges

Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem


qualidade, nem processo; O acontecimento não é da ordem dos corpos.
Entretanto ele não é imaterial; é sempre da ordem da materialidade que ele
se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência,
dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais. (FOUCAULT,
1999, p. 57)

Introdução

Para Foucault (1999), o acontecimento é a irrupção de uma singularidade no tempo e no espaço.


Notadamente, a instância acontecimental, no momento e no lugar de sua produção, está relacionada
ao funcionamento de discursividades que remarcam determinados sentidos e não outros. Neste
texto, objetivamos lançar um olhar para a Base Nacional Comum Curricular (doravante, BNCC)
enquanto um acontecimento que instaura formas outras para o sujeito pensar o ensino-aprendizado
de Língua Inglesa a partir de uma “construção de si” (FOUCAULT, 2006). Os estudos foucaultianos

189
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

nos possibilitam lançarmos um olhar analítico para os movimentos entre os saberes que organizam
o ensino-aprendizagem de Língua Inglesa (doravante, LI) e os embates com as relações de poder
propostas nos documentos que versam sobre o que pode e deve ser ensinado na educação básica para
a formação crítica do aluno.

Primeiramente é importante considerar a BNCC (2017) como um acontecimento discursivo que


irrompe outras formas de ensinar a Língua Inglesa. Para Foucault (2006), o acontecimento discursivo
descreve a relação dos discursos em um dado momento da história. Nos dizeres do próprio autor,
“trata-se de considerar o discurso como uma série de acontecimentos, de estabelecer e descrever as
relações que esses acontecimentos – que podemos chamar de acontecimentos discursivos – mantêm
com outros acontecimentos” (FOUCAULT, 2006, p. 255-256). Acontecimento entendido, neste
trabalho, enquanto a instauração de práticas corporais outras (FIGUEIRA-BORGES, 2018, p. 143)
que movimentam as relações de saber-poder inscritas no ensino-aprendizagem da LI. Desse modo,
pensamos que os acontecimentos “pertencem ao sistema econômico, ou ao campo político, ou às
instituições” (FOUCAULT, 2006, p. 255-256), irrompendo a partir de condições de possibilidade que
se estabelecem nesse contexto de aquisição de uma língua estrangeira. Há saberes propostos como
verdade a ser ensinada sobre a LI, a adaptação de uma norma que pode ser alterada minimamente
para manter as características necessárias ao aprendizado da LI e, ainda, a subjetividade de cada
docente que deve empregar a fim de estabelecer o que melhor será ensinado a cada aluno. Nesse
sentido, vemos que a BNCC, enquanto acontecimento, está inscrito no sistema econômico, haja vista
a delimitação, por exemplo, de uma educação que vise principalmente o mercado de trabalho, como
se o papel principal da educação básica não fosse formar sujeitos (cons)cientes de sua condição
dentro da dinâmica social, mas forjar sujeitos com conhecimentos técnicos para ocupar - se
possível sem questionar as estruturas dos - postos de trabalho. No campo político, este documento
estabeleceu também embates dos quais convém destacar a exclusão das questões de identidade
de gênero e de sexualidade, escamoteando o fato de que, por meio do funcionamento da língua
(inglesa), os sujeitos constroem para si práticas identitárias de homem e de mulher (cisgênero ou
transgênero), de não-binários, de queer, dentre outros1. A BNCC movimenta, pela sua especificidade
acontecimental, as instituições de ensino superior, levando os cursos de licenciatura a reverem suas
matrizes curriculares para formar profissionais com saberes específicos para atuar nos contextos de
ensino, por exemplo, de língua inglesa.

1 Consideramos as identidades não-binária e queer são práticas corporais que subvertem as dicotomias de masculino e
feminino.

190
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

A BNCC (2017) é um documento que estabelece competências para o processo de ensino-


aprendizagem de habilidades essenciais que todos os alunos devem adquirir nas escolas de
educação básica de todo o país. Isso posto, temos um recente documento com um curto prazo para
ser implantado nos currículos das escolas até 2020. Face à atualidade da BNCC, propomos uma
interpretação discursiva sobre as habilidades exigidas para o ensino-aprendizagem de LI, de modo
a reconhecer o funcionamento desses discursos, bem como dos efeitos de sentido que o documento
produz enquanto práticas do cuidado de si. Entendemos que estudos como este são necessários
para fomentar discussões sobre a complexidade da implantação de um documento dessa natureza
frente à diversidade de realidades e condições de produção que constituem a educação brasileira, em
especial os contextos de escola pública.

Como objeto de análise, estabelecemos um recorte de quatro habilidades do componente


curricular de LI do 6º ano do ensino fundamental, nas quais identificamos discursividades sobre
os cuidados de si, entendidos aqui como um conjunto de relações de saber poder que organiza as
práticas do professor. Para compreender melhor a organização desses saberes enunciativos que
constituem o campo pedagógico de ensino-aprendizagem, recorremos às noções de “cuidado de si”,
“subjetivação”, “sujeito” (FOUCAULT, 2008, 1995, 1990, 1999, 2006), para que possamos analisar as
habilidades propostas pela BNCC para o 6º ano do ensino fundamental, a fim de reconhecer como
algumas dessas diretrizes para o ensino de LI são pautadas na construção de um saber do sujeito
sobre si mesmo.

A implantação da BNCC e o ensino de língua inglesa

A BNCC (2017) foi pensada como construção de outras práticas sobre o universo do ensino-
aprendizagem no contexto escolar. Ao interpretar os documentos, os docentes produzem
acontecimentos enunciativos que são contrários ao que desejam apresentar nas suas práticas
de aula de LI. Foucault enfatiza que o acontecimento se efetua na ordem da materialidade e que
permite circunscrever o lugar e as condições de sua aparição (FOUCAULT, 1999) e, dessa forma, a
BNCC pode ser analisada como um acontecimento discursivo que funda outras vias interpretativas
para a prática docente.

Isso posto, podemos lançar um olhar sobre a BNCC que nos permite “descobrir por que e como
se estabelecem relações entre os acontecimentos discursivos” (FOUCAULT, 2006, p. 258). Quem é
esse professor de LI a partir das novas condições de produção desse documento? Sem a pretensão de
exaurir esta problematização, consideramos relevante destacar que uma resposta possível pode ser

191
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

indicada pelos efeitos de sentido que deslizam sobre a materialidade de “habilidade” e que refletem
as condições de produção do documento. Documento este entendido enquanto uma materialidade
construída sócio-historicamente, remarcando “pontos de vista específicos” (FIGUEIRA-BORGES,
2018, p. 185) sobre o ensino-aprendizagem de LI. Assim, as regras para a criação do documento
têm marcas de discurso com caráter controlador, selecionado para ser redistribuído em todo país. A
partir disso, há uma construção de saberes sobre o documento que desencadeia outras possibilidades
de interpretação, as quais se estabelecem enquanto relações de poder acerca do que deve e pode
ser ensinado. Na perspectiva da BNCC (2017, p. 29), “as habilidades expressam as aprendizagens
essenciais que devem ser asseguradas aos alunos nos diferentes contextos escolares”, sendo assim
as habilidades estão relacionadas a diferentes objetos de conhecimento, compreendidos como
conteúdos, conceitos e processos organizados em diferentes unidades temáticas. Na prática,
temos, de acordo com este exemplo da BNCC, o código EF06LI01 referente à primeira habilidade do
componente de língua inglesa para o ensino fundamental, proposta para o 6º ano. Então, durante o
estudo e a prática do eixo oralidade em língua inglesa neste período, é esperado que os estudantes
desenvolvam a habilidade de “interagir em situações de intercâmbio oral, demonstrando iniciativa
para utilizar a língua inglesa”. Esta habilidade está dentro de uma unidade temática descrita como
interação discursiva que visa explorar os objetos do conhecimento por meios da “construção de laços
afetivos e convívio social” (BRASIL, 2017, p. 249).

Como versa o documento oficial em estudo, compreender as habilidades exigidas para a LI pode
possibilitar aos alunos “acesso aos saberes linguísticos necessários para engajamento e participação,
contribuindo para o agenciamento crítico dos estudantes e para o exercício da cidadania ativa, além
de ampliar as possibilidades de interação e mobilidade” (BRASIL, 2017, p. 242). Interpretamos que
o conceito de agenciamento crítico exposto no documento não foi explorado na sua completude,
demonstrando lacunas de como promover uma construção do estudante crítico. Compreendemos
que os professores na maioria das vezes não possuem formação continuada e termos recentes, como
agência/crítico, deveriam ser mais explorados em documentos oficiais, pois implica compreender
diferentes perspectivas epistemológicas.

Entendemos que a BNCC (2017, p. 241-242) traz, pelo menos, três implicações importantes para
o ensino de LI. A primeira está relacionada ao caráter formativo, ou seja, prioriza a função social
do inglês, colocado com o status de língua franca. Desse modo, o inglês deixa de ser considerado
como pertencente a determinados territórios e passa a ser legitimado em usos locais de qualquer
lugar que se fale a LI. Há a instauração de uma desterritorialização da LI, o que remarca aspectos de
dominação que estão imbricados a saberes locais de tal modo que não poderiam mais ser dissociados.

192
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

A desterritorialização atende a exercícios de poder que, ilusoriamente através de uma valorização de


um uso local, remarcam práticas de dominação vigentes em relação à LI.

A segunda implicação está diretamente ligada aos multiletramentos, tomados como as


diferentes linguagens que facilitam o processo de significação. Nesse contexto, a língua é vista como
uma construção social, na qual o sujeito interpreta e atribui novos sentidos, a fim de expor suas
ideias, sentimentos e valores. A terceira implicação diz respeito a abordagens de ensino, nas quais
é preciso uma atitude do professor frente a não buscar um ideal de falante, rompendo com aspectos
de correção, precisão e proficiência.

O status de inglês como língua franca (ILF) implica reconhecer e valorizar o uso da língua
de forma a permitir que diferentes modalidades linguísticas sejam criadas e que possam produzir
sentidos. Os recentes estudos sobre ILF têm como preocupação maior qual é a variedade do inglês
que têm sido ensinado pelos professores, na maioria das vezes abarca o ensino do inglês britânico e
americano e as outras variedades em torno do mundo são suprimidas em detrimento da conservação
da norma pelo falante nativo. Tem-se, neste ponto, uma difícil tarefa de compreensão para o
professor que não tem uma delimitação de como deve ser o ensino do ILF, uma vez que, as teorias
sobre o ILF demandam uma leitura cuidadosa para não incorrer em distorções quanto o ensino/
aprendizado de ILF. O saber da LI serve como instrumento de poder para propagar discursos de que
o inglês ensinado nas escolas públicas não tem produzido efeitos apontados pela perspectiva de ILF
quando prioriza o ensino como língua pertencente aos americanos e ingleses apenas. Desse modo,
a circulação desses enunciados produz subjetividades de não pertencimento a esses espaços que
visam democratizar o ensino de inglês de forma homogênea pelo país.

Com essas novas diretrizes, a BNCC visa propor um ensino que esteja integrado aos cinco
eixos norteadores para o ensino de LI – escrita, oralidade, leitura, aspectos linguísticos e dimensão
intercultural – os quais “estão intrinsecamente ligados nas práticas sociais de usos da língua inglesa
e devem ser assim trabalhados nas situações de aprendizagem propostas no contexto escolar”
(BRASIL, 2017, p. 245). Tais concepções são importantes para a compreensão da LI, que, na maioria
dos casos, é concebida como uma língua inatingível pela maioria dos estudantes de escolas públicas.

Construção de saberes sobre ensino de língua inglesa

De acordo com Foucault (2004), na sociedade grega, buscava-se o cuidado de si para uma
busca do autoconhecimento, de uma experiência que pudesse conduzir o sujeito à sabedoria. Nesse
sentido, há o delineamento de um conjunto de técnicas que conduzem o sujeito a lançar o olhar para

193
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

si mesmo, dentre as quais podemos destacar a figura do mestre que tem o papel fundamental de
conduzir o conhecimento do sujeito sobre si. Há que se destacar a relação entre Sócrates e Alcibíades,
em que este só aceitou cuidar de si quando aquele o exortou a olhar para a própria constituição (a
educação que recebera quando jovem) e a constituição de outros príncipes (BORGES, 2010; 2014). Só
quando Alcebíades instituiu um saber, analisando para a sua constituição em alteridade, conduzido
pelo dizer do mestre, é que ele decidiu cuidar de si. Nesse sentido, pode-se dizer que Sócrates,
para Foucault, revela-se como aquele que “essencialmente, fundamental e originalmente, tem por
função, ofício e encargos incitar os outros a ocuparem consigo mesmos, a terem cuidados consigo e
não descuidarem de si” (FOUCAULT, 2008, p. 7). Portanto, delineou que a “técnica consistia em fazer
com que o sujeito, a partir do diálogo empreendido por perguntas e respostas, voltasse o seu olhar
para si e procurasse em sua alma as respostas para tudo o que inquieta seu ser” (BORGES, 2010,
p. 70). O cuidado de si, para Foucault (2004), é uma prática em que o sujeito lança o olhar para si
mesmo em outricidade, ou seja, ele analisa a si projetando-se enquanto um outro (BORGES, 2014).

Assim, podemos pensar que a escola é um espaço no qual os sujeitos (alunos, professores,
diretores, coordenadores pedagógicos, dentre outros) são exortados a cuidarem de si mesmos. A
escola, nesse sentido, estabelece jogos de verdade que direcionam sujeitos envolvidos no processo de
ensino. Pensar nos efeitos de sentido das práticas do cuidado de si elencadas no documento da BNCC
como jogos de verdades no contexto escolar pode nos auxiliar na investigação do ensino de LI sobre
o efetivo uso da linguagem, bem como colabora para uma reflexão sobre atividades escolares a partir
de métodos e abordagens específicos, de modo a fazer emergir outros sentidos quanto à percepção
de uma compreensão da LI. Assim, o processo de aquisição da LI deixa de ser mecanizado e o sujeito
tende a se constituir e pertencer de forma responsiva frente às práticas inovadoras que são propostas
na BNCC em LI. Volóchinov (1997) afirma que todo enunciado traz consigo um ato responsivo. Nessa
mesma direção, Vieira (2018, p. 30) afirma que “ao enunciar, os sujeitos expressam, subjetivam-se
através dos enunciados concretos da vida cotidiana, é esperado que os interlocutores respondam ao
processo de interação discursiva”, (re)produzindo, assim, “diferentes gêneros discursivos, o sujeito
não recebe passivamente o enunciado proferido, mas responde, concorda ou refuta esses discursos,
que servem a diferentes diretrizes discursivas entre os sujeitos” (VIEIRA, 2018, p. 30). O enunciado,
nessa perspectiva, emerge a partir de uma incidência da “coletividade no processo de comunicação
social, em que a posição do outro em relação à posição do eu se englobam e os enunciados se
completam em constante interação para a formação de sentidos para uma compreensão responsiva
entre sujeitos” (VIEIRA, 2018, p. 30).

194
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Tal como a concepção de Volóchinov (1997), aprender outra língua deve ser um ato responsivo,
que define uma posição, em relação ao enunciado do outro na construção dialógica com outros
enunciados. Assim “eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando
para o outro, através do outro e com o auxílio do outro” (BAKHTIN, 2011, p. 341). Os atos responsivos
frente às práticas discursivas atuais devem responder a questionamentos anteriores e ao mesmo
tempo propor novas respostas. Nesse sentido, vemos a possibilidade de um diálogo profícuo entre as
noções de “cuidado de si”, de Foucault (2006, 2008), e de “responsividade”, de Bakhtin (2011).

Por meio da noção de prática discursiva fundamentada por Foucault (1995), podemos reconhecer
a construção desses enunciados propostos na BNCC, na sua constituição histórica e linguística, bem
como verificar como os elementos que constituem o documento produz efeitos de sentidos para os
sujeitos docentes. Por conta disso é que nos interessa analisar como os enunciados propostos pela
BNCC de LI enunciam sobre o que deve ser ensinado e como significam para o sujeito professor.

De acordo com Foucault (1995, p. 90), o enunciado é um “elemento suscetível de ser isolado
e capaz de entrar em jogo de relações com outros elementos semelhantes a ele”. O enunciado é
um fragmento que necessita de um suporte material que é produzido pelos sujeitos nas práticas
sociais cotidianas, que levam em conta sua constituição histórica e estabelecem correlações com
outros enunciados. Desse modo, a BNCC como enunciado possibilita-nos visualizar a construção
disciplinar dos currículos para o ensino-aprendizagem de LI que passou por várias transformações
nos últimos anos.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em 1998, demonstravam uma síntese da situação


do ensino de língua inglesa que convém destacar para, em seguida, estabelecer um contraponto com
o que é descrito na BNCC. Nos PCNs, evidencia-se que

[a] maioria das propostas priorizam o desenvolvimento da habilidade de


compreensão escrita, mas essa opção não parece decorrer de uma análise de
necessidades dos alunos, nem de uma concepção explícita da natureza da
linguagem e do processo de ensino e aprendizagem de línguas, tampouco
de sua função social. Evidencia-se a falta de clareza nas contradições entre a
opção priorizada e os conteúdos e atividades sugeridos. Essas contradições
aparecem também no que diz respeito à abordagem escolhida. A maioria
das propostas situam-se na abordagem comunicativa de ensino de línguas,
mas os exercícios propostos, em geral, exploram pontos ou estruturas
gramaticais descontextualizados. (BRASIL, 1998, p. 24)

195
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Nesse sentido, o documento esclarece que não representava a situação nacional como um todo.
No entanto, é possível, reconhecer essas considerações gerais como situação que predomina em
todo o país, temos o ensino-aprendizagem de LI com foco na escrita e leitura de textos com objetivo
de reconhecer a gramática de forma descontextualizada. Assim, dos PCNs à BNCC, as práticas
pedagógicas que orientam a circulação desses saberes têm sido reformuladas de acordo com a
subjetividade de cada professor, adequadas de acordo com as demandas da instituição escolar. Assim,
no documento da BNCC é expresso que as “habilidades não descrevem ações ou condutas esperadas
do professor, nem induzem à opção por abordagens ou metodologias” (BRASIL, 2017, p. 30), a ideia
é que as escolhas devem ser pensadas no âmbito dos currículos e dos projetos pedagógicos, ou seja,
cabe ao professor a construção dessas práticas respeitando o contexto específico de seus alunos.

Isso posto, as tecnologias de si permitem que o sujeito se transforme por si mesmo e por
constituição do outro. Diante disso, os professores necessitam expor suas práticas para uma melhor
adequação ao sistema de ensino de línguas.

Segundo Foucault (2008, p. 136), a subjetivação é o processo pelo qual se obtém a constituição
da subjetividade dos indivíduos, os quais estão inseridos nas práticas discursivas por meio de um
certo número de técnicas que permitem constituir-se como sujeito da sua própria existência. A partir
desses processos de subjetivação das teorias que devem ser ensinadas aos alunos de LI, o professor
encontra-se como produtor de um saber que passa a filiar a determinadas redes teóricas, das quais
irá estabelecer o que deve ser ensinado. Logo, é no/pelo discurso que são negociados os saberes e os
poderes.

O conceito que abordamos para interrogar nosso objeto é o conceito de tecnologias de si,
que permite explanar como os sujeitos estão sendo recrutados sem se dar conta dos processos que
estão sendo submetidos. Desse modo, as tecnologias de si determinam aos sujeitos “certo número
de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos, conduta e modo de ser, de modo a
transformá-los com o objetivo de alcançar um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição
ou imortalidade” (FOUCAULT, 1990, p. 48).

A descrição da habilidade abaixo foi configurada a partir do reconhecimento da regularidade


que visa a construção de um sujeito, a partir do cuidado de si e da percepção do outro na esfera
social:

196
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Acontecimento discursivo como (EF06LI05) Aplicar os conhecimentos da língua inglesa para falar
ponto de partida do cuidado de si de si e de outras pessoas, explicitando informações pessoais e
e compreensão do outro através características relacionadas a gostos, preferências e rotinas.
dos espaços para aquisição em LI.
(EF06LI06) Planejar apresentação sobre a família, a comunidade e a
escola, compartilhando-a oralmente com o grupo.

(EF06LI12) Interessar-se pelo texto lido, compartilhando suas ideias


sobre o que o texto informa/comunica.

(EF06LI15) Produzir textos escritos em língua inglesa (histórias


em quadrinhos, cartazes, chats, blogues, agendas, fotolegendas,
entre outros), sobre si mesmo, sua família, seus amigos, gostos,
preferências e rotinas, sua comunidade e seu contexto escolar.

Fonte: BNCC (2017, p. 249-241, grifos nossos)

A regularidade instaurada nas habilidades recortadas emerge como a delimitação de práticas


que podem ser direcionadas ao cuidado de si, ou seja, como o “eu” do sujeito aluno pode/deve ser
direcionado a fim de identificar a percepção de si para a compreensão do mundo. Os sentidos que
emergem dos enunciados acima dizem respeito a um conjunto de relações de saber/poder que
conduzem a regimes de verdade no discurso pedagógico. Desse modo, temos a sujeição dos alunos
por meio de procedimentos disciplinares que visam à uniformização do ensino de LI.

Reconhecemos que as habilidades iniciais propostas no 6º ano para aquisição de LI produzem


discursos de verdade sobre a constituição do sujeito. Podemos pensar o sujeito em uma prática de
lançar o olhar sobre si, e as habilidades, a partir desta prática, exploram aspectos que remetem a
como esse sujeito se reconhece e como se identifica com os outros sujeitos por meio de suas práticas
discursivas. Além disso, definem as regras de como deve ser a construção do ensino de LI, pois há
uma maneira adequada de falar de si e de seus gostos, obedecendo a regras pré-estabelecidas nos
processos metodológicos mediados pelo professor.

O cuidado de si está relacionado com a prática que o sujeito deve desempenhar num constante
retorno a si para melhor compreensão do mundo. Segundo Foucault (2006), a primeira perspectiva
do cuidado de si é na percepção da individualidade como uma prática ética. Nos dizeres do autor,

o cuidado de si constituiu, no mundo greco-romano, o modo pelo qual a


liberdade individual – ou a liberdade cívica, até certo ponto – foi pensada

197
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

como ética. Se se considerar toda uma série de textos desde os primeiros


diálogos platônicos até os grandes textos do estoicismo tardio – Epícteto,
Marco Aurélio... –, ver-se-á que esse tema do cuidado de si atravessou
verdadeiramente todo o pensamento moral. É interessante ver que, pelo
contrário, em nossas sociedades, a partir de um certo momento – e é muito
difícil saber quando isso aconteceu –, o cuidado de si se tornou alguma
coisa um tanto suspeita. Ocupar-se de si foi, a partir de um certo momento,
denunciado de boa vontade como uma forma de amor a si mesmo, uma
forma de egoísmo ou de interesse individual em contradição com o interesse
que é necessário ter em relação aos outros ou com o necessário sacrifício de
si mesmo. (FOUCAULT, 2006, p. 267)

Segundo Foucault (2006), o individualismo exacerbado no cuidado de si na época greco-romana


fez predominar traços de afirmação do sujeito a partir de um retorno a si. Temos, nas habilidades
expostas, a preocupação para a construção de si, observando as singularidades na constituição
dos alunos a partir de uma busca de representação do espaço íntimo e familiar, em prol de um
cuidado mútuo. Nas práticas sociais, percebe-se o poder sendo exercido por meio dos sujeitos que
desenvolvem ações que operacionalizam o corpo num sentido de sujeição das suas ações.

Outro aspecto analisado são práticas discursivas que são procedimentos de controle sobre os
corpos que obedecem a certas técnicas e produzem efeitos (FOUCAULT, 2009). Assim, são as práticas
pedagógicas que objetivam os sujeitos, suas ações e modos de vida, as quais interpelam o sujeito a
falar de si mesmo, mas que se modificam à medida que os sujeitos são atravessados por inúmeros
campos de enunciados.

Temos o discurso pedagógico como uma verdade a ser seguida pelos professores de LI.
Reiteramos que, no acontecimento da BNCC, há o entrecruzamento dos mecanismos político e
coercitivo e os efeitos discursivos sobre o domínio de certos saberes para a subjetivação dos sujeitos.
Assim, as práticas pedagógicas dão subsídios para que possam emergir sujeitos dóceis forjados a se
inscreverem em determinadas formações discursivas de outra cultura, tais como as que alicerçam
a LI. Entendemos que as condições de produção do documento versam sobre a crescente demanda
hegemônica que a LI tem pregado a todos os países como língua comercial. Isso posto, as políticas
linguísticas no Brasil acabam sendo direcionadas para que apenas uma língua seja ensinada como
base, restringindo assim o acesso a outras línguas.

Cada habilidade discursiva apresentada no recorte acima para o ensino-aprendizagem de LI diz


respeito à produção de tecnologias do cuidado de si, que devem ser expressas pela oralidade, leitura
e escrita. Nota-se que o aluno, ao falar de si, mobiliza um saber local que, ao ser traduzido para a

198
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

LI, instauram sentidos distintos daqueles que foram enunciados em português. É preciso remarcar
também que, na maioria das vezes, os livros didáticos (LDs) apresentam contextos de fala específicos
aos nativos e que não atendem às demandas locais dos alunos brasileiros. Para Rajagopalan (2012),
a supervalorização da língua inglesa nos países periféricos produz uma “tendência de utilização
dos materiais didáticos para fins propagandísticos ou, no mínimo questionáveis, do ponto de vista
ideológico” (RAJAGOPALAN, 2012, p. 77). Sendo assim, para o autor, os LDs de ensino/aprendizagem
de LI devem ter um compromisso político a fim de se posicionarem contra a produção de textos que
sirvam apenas para fins didáticos, mas sobretudo busquem a desconstrução dos aspectos hegemônicos
e das verdades construídas e legitimadas socialmente nos livros didáticos. Com isso, pontuamos
que os LDs são materialidades que convocam os alunos a produzirem (efeitos de) sentidos a partir
de jogos interpretativos, balizados por memórias discursivas (LUTERMAN; FIGUEIRA-BORGES;
SOUZA, 2018).

É a partir da linguagem que os sujeitos manifestam seus enunciados e, por meio dos textos
multimodais, constroem as referências que possibilitam a identificação com determinado grupo
social. Assim, ao explorar temas que versam sobre a construção da identidade, a BNCC produz
um embate de negociação dos sentidos sobre as subjetivações coletivas. Como explica Veiga-Neto
(2007), as práticas e os saberes “uma vez descritos e problematizados poderão revelar quem é esse
sujeito, como ele chegou a ser o que dizemos que ele é e como se engendrou historicamente tudo
o que dizemos dele” (VEIGA-NETO, 2007 p.113). Logo, a construção de si pautada na identificação
com outra língua pode produzir efeitos de um modelo a ser seguido e representar um ensino-
aprendizagem que não corresponde às demandas locais.

Descrevemos, ao longo deste texto, algumas estratégias de construção da linguagem na BNCC


e evidenciamos as complexidades das práticas pedagógicas propostas pelo documento norteador. Ao
contemplar o ensino-aprendizagem de LI pelo viés de língua franca, alicerçada nos multiletramentos,
e ainda com uma atitude acolhedora do professor, o aluno deve ser capaz de expor suas questões
locais para fazer sentido as novas construções de outras línguas, e isso pode demonstrar como o
sujeito se fabrica por meio dessas formas de enunciar. Por isso a relevância de refletirmos sobre os
discursos que atravessam documentos como a BNCC.

Considerações Finais

A tarefa a que nos propusemos neste estudo foi pensar as contribuições que os pressupostos
foucaultianos podem trazer para auxiliar na reflexão sobre as práticas pedagógicas que são exercidas
para a construção de um cuidado de si, a partir do que deve ser aprendido e ensinado para aquisição

199
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

da LI. A reflexão sobre o cuidado de si não só instaura uma retomada ao aspecto da formação humana,
mas também possibilita que o sujeito, diante das verdades, encontre novas formas de ser-sujeito.

Os enunciados propostos pela BNCC como práticas vindas de outros discursos de saber e poder,
tais como a dominação hegemônica da LI, levam-nos a uma imposição de modelos para o ensino.
Neste aspecto, o controle passa a ser um meio de resistência/liberdade e produz novas formas de
existência da LI. Nesse sentido, defendemos que a adaptação da língua aos contextos locais pode
fazer emergir outros sentidos a partir da reconfiguração da aquisição de LI como língua franca.

Reconhecemos a relevância dos aspectos subjetivos que devem ser levados em conta quando
se propõe o ensino de LI. Assim, faz-se necessário o estabelecimento de outras práticas de ensino-
aprendizagem de LI integradas, de forma autônoma e libertária, como por exemplo uma prática do
“conhecimento de si”, que possa levar em consideração as singularidades na constituição dos alunos
a partir de uma percepção do espaço íntimo, familiar e local. Isso posto, pode permitir, portanto,
que os sujeitos atuem no mundo de forma ética e responsável e possam questionar as verdades que
organizam os efeitos de sentido da prática docente.

Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BORGES, G. F. O imaginário filosófico em Nietzsche: a dialogicidade da obra “Assim falava Zaratustra” e a


“Bíblia”. 2010. 136f. Dissertação (Mestrado em Linguística), Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
2010.

BORGES, Guilherme Figueira. Intempestividade do/no corpo nietzschiano: análise da discursividade


filosófica. 2014. 219 f. Tese (Doutorado em Linguística Letras e Artes) - Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, 2014.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Fundamentos pedagógicos e estrutura


geral da BNCC. Brasília, DF, 2017. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_
docman&view=download&alias=56621bnccapresentacaofundamentospedagogicosestruturapdf&category_
slug=janeiro2017pdf&Itemid=30192. Acesso em: 28 jun. 2020.

BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Secretaria de Educação Fundamental (SEF). Parâmetros Curriculares
Nacionais - terceiro e quarto ciclos: Língua Estrangeira. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998. Disponível em: http://
portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pcn_estrangeira.pdf. Acesso em: 28 jun 2020.

DUBOC, A. P. M. Atitude Curricular: Letramentos Críticos nas brechas da formação de professores de inglês.
Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês do Departamento

200
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

de Línguas Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo: USP.
2012. 246 f.

FIGUEIRA-BORGES, G. Female body, discursive threads and the “slutwalk” movement. Revista do GELNE, v.
20, n. 2, p. 142-152, 2019.

FIGUEIRA-BORGES, G. Construction de sens sur l’homosexualité dans des déclarations politico-religieuses.


Revista Investigações, v. 31, n. 2, p. 181-197, 2018.

FOUCAULT. M. A ética do cuidado de si como prática de liberdade. In: FOUCAULT. M. Ditos e escritos V: Ética,
sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

FOUCAULT. M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes,
1995.

FOUCAULT. M. O uso dos prazeres e as técnicas de si. In: MOTTA M. B. (Org). Ética, sexualidade e política.
2.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

FOUCAULT. M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FOUCAULT. M. A ordem do discurso. 6 ed. São Paulo: Loyola, 1999.

FOUCAULT. M. A arqueologia do saber. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

FOUCAULT. M. Estratégia, poder-saber I Michel Foucault; organização e seleção de textos, Manoel Barros da
Morta; tradução, Vem Lucia Avellar Ribeiro. -2.ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e escritos
vol. IV.)

FOUCAULT. M. A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade. In: Ética, Sexualidade, Política. Organização
e seleção de textos Manoel Barros de Motta; tradução Elisa Monteiro, Inês Autram Dourado Barbosa. 2ª. ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e Escritos V).

LUTERMAN, L. A.; FIGUEIRA-BORGES, G.; SOUZA, A. P. de. Análise discursiva da tridimensionalidade do livro
pop-up. Entrepalavras, Fortaleza, v. 8, n. 2, p. 39-54, maio/ago. 2018.

RAJAGOPALAN, K. O papel eminentemente político dos materiais didáticos de inglês como língua estrangeira.
In: SCHEYERL, D.; SIQUEIRA, S. (Org). Materiais didáticos para o ensino de línguas na contemporaneidade:
contestações e proposições. Salvador: Editora da UFBA, 2012, p. 57-82.

VEIGA-NETO, A. Foucault e a educação. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

VIEIRA. W. G. M. O enunciado verbo-visual dos memes sobre o sujeito professor: diálogos sobre a identidade
docente. 2018. 92f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem), Universidade Federal de Goiás, Catalão,
2018.

VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico


na ciência da linguagem. Tradução de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

201
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

ECOS TRANSGRESSIVOS DOS DIÁLOGOS


ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E
LINGUÍSTICA APLICADA NO ENSINO
MÉDIO INTEGRADO

Edilson Pimenta Ferreira

Introdução

Em trabalhos anteriores (FERREIRA, 2010, 2012, 2016), busquei discutir resultados


provenientes de processos de (des)encontros entre a Análise do Discurso e a Linguística Aplicada.
Mais diretamente, sempre percebi assentadas nesses (des)encontros possibilidades de transgredir os
limites físicos da sala de aula e, assim, oportunizar aos estudantes – e a mim mesmo – momentos de
(des)aprendizagem/unlearning (SPIVAK, 1994, 2009).

Nesse âmbito, constituí, como empreendimento acadêmico, debruçar-me sobre epistemes


que me oportunizassem enxergar e agir além do que está[va] imediatamente perceptível (hooks1,
1994). Devo pontuar que como professor de Ensino Médio há mais de 20 anos2, tendo me dedicado
exclusivamente ao Ensino Médio Integrado3 nos últimos dez, meu empreendimento acadêmico
1 Opto por manter, neste capítulo, o formato requisitado pela própria autora, que assina as suas obras com letras minús-
culas alegando que ela não se reduz a um nome.
2 Atuei como professor de línguas inglesa e portuguesa no Ensino Médio Regular de 1999 a 2009, quando fui aprovado
no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro, onde passei a atuar, a partir de 2010,
ministrando as mesmas disciplinas nas turmas do Ensino Médio Integrado.
3 Convencionou-se intitular “Ensino Médio Integrado” o ensino secundarista que oferta as disciplinas tradicionais de
um curso de Ensino Médio, em articulação e integração com disciplinas do Ensino Profissionalizante. À luz da lei nº
11.892, de 29 de dezembro de 2008 (BRASIL, 2008), os Institutos Federais possuem a obrigatoriedade de ofertar, ao
menos, 50% de todas as suas vagas para essa modalidade de ensino.

202
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

tem sido sinônimo de inquietações, resistências, embates e muitos enfrentamentos. É uma arena
desafiadora, mas não caminhar por essas sendas seria me constituir um mero transferidor de
conteúdos realizando o que me parece inaceitável, transferir descritivamente elementos teóricos.
Ser transferidor de conteúdos, é, para mim, um lugar pouco confortável, que em nada contribui para
romper com a lógica de referendar a “inclusão do incluídos” (KUENZER, 2002), sempre balizada
por resultados escolares e, também, por experiências sociais e culturais que asseguram a esses,
já incluídos, condições de estarem ainda mais em vantagem na relação com o conhecimento
sistematizado.

Para esse projeto transgressivo a que me referi, tenho assumido os pressupostos teórico-
metodológicos da Análise do Discurso e da Linguística Aplicada como profícuos sustentáculos
norteadores. Neste capítulo, não enfatizarei os diversificados enfoques teóricos existentes no
que se convencionou intitular “Análise do Discurso”, tampouco sobrelevarei a distinção entre as
diferentes noções de Linguística Aplicada ora conhecidas. O que faço é apresentar coincidências
epistemológicas perceptíveis entre algumas noções dos estudos de Bakhtin (1988, 1992, 1997, 2003,
2004, 2006), algumas reflexões teóricas empreendidas por Pechêux (1990, 1997, 1999) e alguns dos
postulados teóricos que embasam as obras de Pennycook (1994, 1998, 1999, 2001, 2004, 2006, 2007).
Como poderão também observar, arrolarei, ao longo da discussão proposta neste capítulo, noções
teóricas outras que estejam em consonância com a prática problematizadora (PENNYCOOK, 2001,
2004, 2006) que busca desestabilizar discursos hegemônicos e totalitários. Dito de outra forma,
a discussão ora proposta está alicerçada na Linguística Aplicada, com clara interface com balizas
teóricas da Análise do Discurso, sem, contudo, desprezar pressupostos de autores cujas perspectivas
extrapolam o que mestre Paulo Freire intitulou de Educação Bancária (FREIRE, 1979, p. 66), que ao
invés de ser libertadora, oprime.

A função social do Ensino Médio Regular

Ao assumir o compromisso de atuar no Ensino Médio, passei a lentamente perceber que não
conseguiria suscitar mudanças nos jovens ali matriculados sem antes melhor compreender as noções
pedagógicas que se colocavam suficientes para dar conta da função social que jazia no bojo daquele
nível de ensino.

Avancei, ano após ano, ensinando enquanto formava, mas muito mais aprendendo com os
estudantes, com as oportunidades e com o processo formador como um todo. “Embora diferentes
entre si, quem forma se forma e reforma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser

203
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

formado”, já dizia Paulo Freire ao se referir ao processo de formação docente (FREIRE, 2011, p. 25).
Ainda que deslocando o contexto de sua fala para uma relação de docente-discente de Ensino Médio,
sempre percebi, nesse nível de ensino desafiador, oportunidade de conceber a língua(gem) como
inerentemente política, dialógica e dialética, e, assim, ratificar a noção de linguagem com a qual
coaduno, qual seja, linguagem como elemento que extrapola os processos puramente linguísticos.

Fato é que o “Ensino Médio no Brasil tem-se constituído ao longo da história da Educação
brasileira como o nível de mais difícil análise, estudo e enfrentamento” (MOLL, 2010, p. 98). Essa
dificuldade originou-se, em partes, da pseudoestrutura arquitetada no bojo da ditadura “para
escamotear o projeto hegemônico do poder e da concentração de renda que se sustentava e, assim,
evitar que ocorressem a articulação e a politização do ensino secundário” (MOLL, 2010, p. 100).
Dito de outra forma, tratava-se de uma proposta escolar que possuía muito mais cunho político
do que estudantil em sua essência. Era interesse dos governantes ofertar cursos fragmentados que
atendessem à demanda específica do tipo de desenvolvimento pretendido. O que se buscava, assim,
era ter mão de obra “qualificada” para as empresas de grande porte que começavam a ancorar no
Brasil e isso seria obtido por meio de uma estrutura educacional falsa.

Anos depois, o Ensino Médio continua a fazer o que mencionei na introdução deste texto,
“incluir os incluídos”, visto que a ênfase nos estudos da linguagem realizados com esses alunos
continua sendo meramente numa perspectiva linguístico-cognitiva. Assim, aqueles que por razões
historicamente explicáveis não obtiverem resultados expressivos serão excluídos do processo. Nesse
sentido, advogo que um Ensino Médio apenas conseguirá ser efetivamente democrático quando seu
projeto pedagógico viabilizar condições de os menos favorecidos se inscreverem efetivamente em
produções científicas, tecnológicas e culturais. Isso implica afirmarmos que a Linguística Aplicada e
a Análise do Discurso mostram-se como fundamentais, na medida em que concebem possibilidades
de enfatizar questões ideológicas, políticas, sociais, históricas, culturais e socioafetivas que incidem
no processo de ensino-aprendizagem.

Ecos animadores de um Ensino Médio Integrado

Ao ingressar na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica em 2010, passei


a trabalhar diretamente com o Ensino Médio Integrado, uma forma de conceber o Ensino Médio dito
“tradicional” em efetiva articulação com ciência, trabalho e cultura. Assim, o que conheci, ao chegar
na “Rede”, foi um Ensino Médio que buscava cumprir sua função holística e universalizadora, por
meio de um projeto pedagógico que sinaliza(va) para uma superação do tecnicismo apregoado na

204
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Ditadura e, assim, abre(ia) espaço para que noções muito caras à Linguística Aplicada e à Análise
do Discurso possam (pudessem) ser trabalhadas. Refiro-me a articular às aulas questões como
entraves políticos, políticas públicas para o ensino de língua estrangeira, questões interculturais e
intraculturais, questões de cidadania, entre outras.

Nesse viés, o Ensino Médio Integrado constitui-se como princípio educativo que estabelece
outra forma de articulação entre Educação Básica e Profissional e, assim, não se aproxima, ao menos
em princípio, das noções Tayloristas-Fordistas de outrora que viam uma segmentação clara entre
trabalho manual e intelectual; entre pensamento e ação; entre teoria e prática (KUENZER, 2007). Pelo
contrário, a noção de Integração realizada hoje nos 644 campi dos Institutos Federais de Educação,
Ciência e Tecnologia existentes no Brasil está alinhada com um currículo que compreende o trabalho
como práxis humana e como práxis produtiva e, assim, não há distinção entre formação geral e
formação para o trabalho. Toda formação é formação para o trabalho e não deve ser confundida com
tecnicismo, visto que apesar de ser marcada por recortes (seria impossível trabalhar e ensinar todas
as especificidades profissionais a todos os estudantes em todas as regiões do país), tais recortes não
são estanques, o que permite que o currículo seja reflexo das práticas sociais e produtivas de uma
dada região.

É nesse sentido que recorro a um diálogo entre a Análise do Discurso e a Linguística Aplicada.
Articular essas duas áreas do conhecimento permite, por exemplo, compreender o processo de
ensino-aprendizagem de línguas com vistas a respeitar que o sujeito-aprendiz que faz parte desse
processo deve ser concebido à luz dos aspectos social, histórico, político e ideológico e é, portanto,
heterogêneo por natureza. E, já nos trabalhos de Ensino Médio, deve-se respeitar que a linguagem é
campo dialógico em essência. Essa dialogicidade permite transgredir os limites da sala de aula para
promover mudanças, intervenções e trocas espontâneas de experiências e de conhecimento. Por sua
vez, tal concepção nos possibilita pensar o ensino de língua inglesa como transgressão.

Diálogos entre Análise do Discurso e Linguística Aplicada – a transgressão que ecoa

De acordo com Pennycook (2006), o termo transgressivo pode ser utilizado tanto para demarcar
os instrumentos políticos e epistemológicos que visam a romper as fronteiras do pensamento e da
política tradicionais quanto para pensar o que não deveria ser pensado e fazer o que não deveria ser
feito. Com base nas reflexões de hooks (1994), o autor sugere que transgredir significa “opor, resistir
e cruzar os limites opressores da dominação pela raça, gênero e classe”, o que nos permite construir

205
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

a imagem “de professores que transgridem os limites normais da pedagogia e ensinam seus próprios
alunos a transgredir: a pedagogia como transgressão” (PENNYCOOK, 2006, p. 75).

Em trabalho anterior (FERREIRA, 2016) eu pontuei que, a meu ver, atualmente, o mundo deve
ser pensado sob um olhar de reconstrução discursiva, sobretudo por estarmos diante de uma série
de mudanças econômicas, culturais, ecológicas, tecnológicas e de convívio social. Naquele estudo,
destaquei que reconstrução discursiva seria um conceito que eu havia cunhado para representar
o processo decorrente das mudanças históricas e socioeconômicas atravessadas pelo mundo que
permitiriam o engajamento discursivo dos sujeitos que, ao tomar consciência crítica em relação à
linguagem, entendiam que os saberes não mais se encontram prontos para serem “descobertos”,
mas para serem “ressignificados”. Isso implica transgredir o pensamento único que propaga as
ideologias de uma globalização excludente, que beneficia uma pequena parcela da população e
que cria “verdades” que rapidamente atravessam o planeta. Portanto, transgredir do ponto de vista
discursivo significa corroborar uma mudança social, coletiva, local e institucional, o que permite
uma prática reflexiva do professor que passa a considerar as condições sociais de seu entorno.

Isso posto, delego à interface entre Análise do Discurso e Linguística Aplicada uma profícua
possibilidade de desnudar contradições que perpassam muitas das aulas de língua inglesa no Ensino
Médio brasileiro que deveriam, sim, focalizar as desigualdades sociais e enfatizar a transformação
social. Afirmo haver contradições recorrentes em sala de aula, pois, conforme é sabido, diversos
professores e vários alunos veem o processo de ensino-aprendizagem de língua inglesa como mera
transferência de língua pela língua e, assim, consideram que a língua inglesa é neutra, autônoma
e transparente aos que a aprendem. Esse imaginário coletivo parece influenciar na concepção de
ensino e de linguagem que os professores da área de linguagens possuem, visto que o ambiente em
que exercem suas funções estaria contaminado por vozes que se interpenetram e se interconstituem
para desconsiderar a possibilidade de utilizar a sala de aula como importante espaço para construção
de contradiscursos que confrontariam práticas discursivas hegemônicas e que, assim, incitariam os
estudantes a pensar sobre as várias realidades do mundo, confrontá-las, rejeitá-las e/ou reconstruí-
las.

Pennycook (1994, p. 99) critica o ensino de língua pela língua simplesmente e acredita que
um dos problemas da Linguística Aplicada é sua tendência em tratar a aprendizagem da língua
isoladamente de seu contexto social, cultural e educacional. O autor (p. 102) assevera, ainda, que a
sala de aula de língua inglesa é local propício à formulação de contradiscursos que podem colaborar
para a renovação de formas globais e locais de cultura e conhecimento. Tal perspectiva crítica, de

206
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

enfatizar as intrínsecas relações entre ideologia, conscientização, emancipação e ampla agenda de


lutas, é o que Pennycook (2006 ,2001) intitula de modernismo emancipatório e que se distancia do que
o autor intitulou de avestruzismo liberal (PENNYCOOK, 2001, 2006), pois este ignora agendas sociais
mais amplas ao enterrar a própria “cabeça” nas “areias” do objetivismo.

Importante notar que há duas questões incontestáveis na obra de Bakhtin que me permitem
aproximá-la dos pressupostos emancipatórios de Pennycook: a incontroversa adesão ao movimento
e a indissociabilidade entre o social e o histórico, no que diz respeito à enunciação.

Para Bakhtin (2003), a comunicação humana se dá por enunciações concretas de determinados


falantes, sujeitos do discurso. Esses sujeitos estariam inscritos em determinadas condições e
profeririam seus enunciados, enunciações concretas, a partir desse espaço social e histórico. Essa
reconstrução da noção bakhtiniana da linguagem, que é sempre dialógica-polifônica, ratifica a ideia
de que não se pode pensar, sob o prisma da obra do filósofo russo, em objeto dado a priori. Todo
sentido se dá na interação.

Em linha coadunante, Pêcheux (1997) também sobreleva as questões sociais e históricas que
envolvem o sujeito aprendiz. Para o autor, não se pode pensar em um discurso insensível às condições
de produção que o envolvem. A esse respeito, Pêcheux (1997, p. 77, grifos no original) pontua que
“um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas (...). Ele está, pois,
bem ou mal situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos antagonistas de
um campo (...)”.

Ao arrolar a noção histórica e social para avalizar a noção de enunciado em Bakhtin, e


de condições de produção em Pêcheux, intento ratificar que o discurso, em sua obra, é sempre
atravessado pelo discurso do outro. Assim, inexiste um enunciado neutro, independente, completo
e uno, que possa ser analisado em sua interioridade, sem considerar as condições de sua produção,
mesmo porque muitos dos enunciados que são proferidos dialogam com outros enunciados que
fazem parte do já-dito. Nas palavras do próprio Bakhtin (1992, p. 296),

os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si


mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos
outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada enunciado é
pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado
pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve
ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de

207
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

um determinado campo: ele os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles,


subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta.

Nessa via, percebemos uma outra concepção sobre língua quando comparada à noção que se
apregoava anteriormente. Uma noção que é mutável e movente e que por rejeitar a noção de estudar
língua pela língua (considerando apenas a sua interioridade) mostra-se como campo fértil para que
a formulação de contradiscursos, que podem colaborar para a renovação de formas globais e locais
de cultura e conhecimento, tão alinhada aos estudos de Pennycook ocorra.

Sob esse prisma, compreendo que no imo da interface proposta entre a Linguística Aplicada
e a Análise do Discurso, encontra-se um relevante alinhamento teórico: tanto uma teoria quanto a
outra buscam considerar que os sujeitos envoltos no processo de ensino-aprendizagem são, antes
de mais nada, sujeitos dotados de singularidade, desejos, sentimentos e anseios para somente então
tornarem-se sujeitos-aprendizes ou sujeitos-professores de uma língua. A esse respeito hooks
([1994]2007, p. 115) afirma que

tem havido uma tendência contínua a ignorar o fato de que professores


e alunos têm corpos nos quais suas classes sociais, sexualidades, gênero,
etnia, etc. são inscritos em posicionamentos discursivos, contemplando
somente o sujeito como racional e não como social e histórico, ou seja,
focalizando somente sua racionalidade descorporificada.

Diante do que apresentei, já se encontra, a meu ver, bem circunstanciada a razão pela qual
os apontamentos teóricos de Bakhtin (e seu Círculo) e de Pêcheux possam ser considerados em
batimento com aqueles da Linguística Aplicada na busca de transgredir. Eis o Eco que ressoa da
Análise do Discurso para a Linguística Aplicada e, também, em via contrária, de forma interpenetrada
e imbricada, com vistas a resistir à postura de diversos professores que atuam em Ensino Médio e
que, muitas vezes, parecem não conceber os aprendizes como sujeitos, tratando-os como meros
“dóceis receptores de língua”. Dessa forma, por se aterem ao ensino de tão somente estrutura e
termos técnicos, ou de língua pela língua, incorrem no erro de ensinar para “invisíveis” uma mesma
língua, de uma mesma forma, sem considerar a unicidade dos sujeitos-aprendizes.

208
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Considerações Finais

Neste capítulo, intentei apresentar traços epistemológicos perceptivelmente coincidentes entre


os apontamentos teóricos de uma Linguística Aplicada Transgressiva e uma Análise do Discurso com
vieses bakhtiniano e pecheutiano.

Discuti, pois, como a Linguística Aplicada, em interface com a Análise do Discurso, pode se
traduzir em uma poderosa ferramenta problematizadora em sala de aula, visto que circunscrever em
seus pressupostos deixa resvalar um vínculo a um mesmo devir: o ensino de língua inglesa que não
compreende os aprendizes como sujeitos que são meros “dóceis receptores de língua”.

Não alvitrei, neste breve capítulo, construir longas explicações teóricas que designassem
a qual Análise do Discurso me referia e em qual Linguística Aplicada assentava este estudo. Ao
invés, busquei me ater a pontos convergentes entre estudiosos como Pêcheux e Bakhtin, na Análise
do Discurso, para ressaltar, por exemplo, a relevância que ambos atribuem, de forma distinta, ao
elemento histórico e social. Mesmo reconhecendo a ênfase posta no elemento interacional no
projeto bakhtiniano e na historicidade no projeto pecheutiano, registro que não consigo pensar o
discurso em nenhuma das duas obras fora de sua historicidade; não consigo, por outro lado, pensar
as relações interdiscursivas sem que estas sejam concebidas como instâncias significativas que são
veiculadas sócio-historicamente. Também não me estendi no intuito de delimitar a qual Linguística
Aplicada me referi no estudo, pois ao lançar mão de alguns dos pressupostos de Pennycook (1994,
2001, 2004, 2006, 2007), alinhei-me com o pressuposto de que não basta ensinar uma língua para
fins comunicativos: é preciso considerar quais desdobramentos o ensino dessa língua produz na
sociedade e, também, incentivar práticas problematizadoras que partam das condições de produção
dadas e que respeitem a realidade dos estudantes.

Neste capítulo, busquei, também, discutir como os diálogos entre a Análise do Discurso e
Linguística Aplicada podem produzir ecos no Ensino Médio, sobretudo no Ensino Médio Integrado,
praticado nos Institutos Federais. Para tanto, (d)enunciei (sobre) a existência de professores que,
inscritos na concepção de linguagem do tecnicismo, positivismo e objetivismo, ainda lecionam a
língua inglesa nesse nível de ensino focalizando exclusivamente a noção de “língua pela língua” e
não buscam explodir a relação taylorista-fordista de construir uma escola voltada para o processo
de “treinar” pobres.

As relações estabelecidas neste texto acenam para a proficuidade de tentarmos resistir ao que
é dado como certo, posto e sedimentado no Ensino Médio, em especial no que tange ao ensino de

209
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

língua inglesa. A pertinência de assumirmos essa agenda social também sinaliza para a necessidade
de tomarmos uma posição política clara e contundente frente à práxis pedagógico-educacional que,
muitas vezes, é realizada nas instituições de Ensino Médio brasileiras.

É preciso, também, refletir sobre os efeitos nocivos (ou, ao menos, pouco férteis) do ensino
de língua pela língua. Tal forma de atuar concebe o processo de ensino-aprendizagem como
transparente e passível de uma análise fora de sua historicidade. Ao agir dessa forma, os professores
não só desperdiçam a oportunidade de confrontar discursos opressores que convergem para noções
excludentes já naturalizadas e sedimentadas, mas também deixam de combater as imposições e a
ardilosidade do robusto mercado capitalista.

Referências

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora


Fornoni Bernardini et al. São Paulo-SP: Hucitec, [1975]1988.

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Estética da Criação Verbal. Tradução do francês por Maria Ermantina Galvão;
revisado por Marina Appenzeller. São Paulo-SP: Martins Fontes, 1992.

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Problemas da poética de Dostoiévski. 2. ed. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro-RJ: Forense Universitária, [1929]1997.

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução do francês
por Maria Ermantina Galvão; revisado por Marina Appenzeller. São Paulo-SP: Martins Fontes, 2003. p. 279-325.

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). O freudismo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo-SP: Martins Fontes, 2004.

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi
Vieira. São Paulo-SP: Hucitec, 2006.

BRASIL. Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008. Institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica
e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 30 dez. 2008. Disponível em: http: //www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11892.
htm. Acesso em: 07 jul. 2020.

FERREIRA, E. P. Oralidade em língua estrangeira (inglês) – representações discursivas. 2010. Dissertação


de Mestrado. (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia-MG, 2010.

FERREIRA, E. P. Oralidade em língua estrangeira (inglês) como elemento legitimador do ‘saber’ da língua
inglesa: resultado do discurso midiático. Crátilo, Patos de Minas-MG, v. 5, n. 1, p. 40-49, 2012.

210
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

FERREIRA, E. P. Discursos constitutivos e constituintes sobre a língua inglesa nos Institutos Federais
de Educação, Ciência e Tecnologia: um estudo de caso no Triângulo Mineiro. 2016. Tese de Doutorado.
(Doutorado em Estudos Linguísticos) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, 2016.

FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São
Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

HOOKS, B. Teaching to transgress: education as the practice of freedom. New York: Routledge, 1994.

HOOKS, B. Eros, erotismo e o processo pedagógico. In: LOURO, G. L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade.
2. ed. Belo Horizonte-MG: Autêntica, [1994]2007. p. 113-123.

KUENZER, A. Z. (Org.). Construindo uma proposta para os que vivem do trabalho. 3. ed. São Paulo-SP:
Cortez, 2002.

KUENZER, A. Z. As políticas do estado neoliberal: Questões de Nossa Época. v. 63. São Paulo-SP: Cortez,
2007.

MOLL, J. et al. Educação profissional e tecnológica no Brasil contemporâneo: desafios, tensões e


possibilidades. Porto Alegre-RS: Artmed, 2010.

PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma Análise
Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Tradução de Bethânia S. Mariani et al.
Campinas-SP: UNICAMP, 1990. p. 61-161.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni P. Orlandi. 3. ed.
Campinas-SP: UNICAMP. 1997.

PÊCHEUX, M. O papel da memória. Tradução e introdução de José Horta Nunes. In: ACHARD, P. et al. O papel
da memória. Campinas-SP: Pontes, [1983]1999. p. 49-57.

PENNYCOOK, A. A. The cultural politics of English as an international language. Harlow: Longman, 1994.

PENNYCOOK, A. A. A lingüística aplicada dos anos 90: em defesa de uma abordagem crítica. In: SIGNORINI, I;
CAVALCANTI, M. C. (Orgs.). Lingüística aplicada e transdisciplinaridade. Campinas-SP: Mercado de Letras,
1998. p. 23-49.

PENNYCOOK, A. A. Introduction: critical approaches to TESOL. TESOL Quarterly, v. 33, n. 3, p. 329-348, 1999.

PENNYCOOK, A. A. Critical applied linguistics: a critical introduction. Mahwah-NJ: Lawrence Erlbaum


Associates, 2001.

PENNYCOOK, A. A. Critical moments in a TESOL praxicum. In: NORTON, B.; TOOHEY, K. (Eds.). Critical
Pedagogies and Language Learning. Cambridge: CUP, 2004. p. 327-345.

211
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

PENNYCOOK, A. A. Uma lingüística aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. (Ed.). Por uma lingüística
aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 67-84.

PENNYCOOK, A. A. The myth of English as an international language. In: MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. (Eds.).
Disinventing and reconstituting languages. Clevedon: Multilingual Matters, 2007. p. 90-115.

SPIVAK, G. C. Can the subaltern speak? In: WILLIAMS, P.; L. CHRISTMAN (Eds.). Colonial discourse and post-
colonial theory: A reader. New York: Columbia University Press, 1994. p. 66-111.

SPIVAK, G. C. Gayatri Spivak, Interviewed by Oscar Guardiola-Rivera. (Interview in June 2006), Naked Punch,
[London-UK], 2009. Não paginado. Disponível em: http://www. nakedpunch.com/ articles/21. Acesso em: 08
jul. 2020.

212
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

SOBRE OS AUTORES

Cristiane Carvalho de Paula Brito é Professora na área de Língua Inglesa, no Instituto de Letras e Linguística
da Universidade Federal de Uberlândia (ILEEL/UFU). Graduada em Letras pela UFU, Mestre e Doutora em
Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Coordenadora do Grupo de Pesquisa
Laboratório de Estudos Polifônicos (LEP) e vice-coordenadora do Grupo de Pesquisa Linguagem Humana e
Inteligência Artificial, ambos certificados pelo CNPq. Suas áreas de interesse são: formação de professores,
ensino-aprendizagem de línguas, Análise do Discurso e Linguística Aplicada.

Email: depaulabrito@gmail.com

Edilson Pimenta Ferreira é Doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e Mestre
em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É membro de dois grupos de pesquisa
vinculados ao CNPq: “LEP – Laboratório de Estudos Polifônicos” e “Linguística Aplicada Crítica: estudos sobre
Ensino e Formação de professoras(es) de língua estrangeira”. Atua como professor efetivo associado 2 (DIV-
2) no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM) - Campus Uberlândia
(MG) e exerce, atualmente, a função de Coordenador Geral do Centro de Idiomas e Relações Internacionais na
Reitoria do IFTM - Uberaba (MG).

Email: edilsonpimenta@iftm.edu.br

Evelyn Cristine Vieira é Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (2018),
Mestra em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás (2013) e Graduada em Letras, com
habilitação em Português e Inglês, pela Universidade Federal de Uberlândia (2007). É docente do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Goiano – Campus Avançado Catalão, atuando com disciplinas de
Língua Portuguesa e Língua Inglesa. É membro do GEDIS (Grupo de Estudos Discursivos) da Universidade
Federal de Goiás - Campus Catalão e do LEP (Laboratório de Estudos Polifônicos) da Universidade Federal de
Uberlândia. Interessa-se por: Ensino-aprendizagem de Línguas Estrangeiras, Formação de professores e Análise
do Discurso.

Email: evelyn_vieira6@hotmail.com

213
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Guilherme Figueira-Borges é Docente de Ensino Superior Doutor (DES IV) da Universidade Estadual de
Goiás (UEG) no Câmpus Morrinhos, atuando no Curso de Letras e no Programa de Pós-graduação em “Língua,
Literatura e Interculturalidade” (POSLLI/UEG). Está credenciado, também, no Programa de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem (PPGEL/UFG Catalão). Tem Doutorado (2014) em Estudos Linguísticos pelo Programa
de Pós-graduação em Estudos Linguísticos, Universidade Federal de Uberlândia - UFU. É coordenador do grupo
de pesquisa: “Grupo de Estudos do Discurso e de Nietzsche” (GEDIN/UEG/CNPq). E desenvolve pesquisas nos
seguintes temas: Ensino-Aprendizagem de Língua Portuguesa; Análise do Discurso francesa; Diálogos entre as
Teorias do Discurso e as Teoria(s) de Nietzsche.

Email: guilherme.borges@ueg.br

Ivi Furloni Ribeiro é mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (2009) e
graduada em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Campus Araraquara (2002).
Atualmente é professora na Estácio - Ribeirão Preto, nos cursos de Letras (EAD), Direito (presencial). Atuou
como Coordenadora Pedagógica de Ensino Médio. Tem experiência na área de Letras, atuando como professora
de Língua Portuguesa, Literatura e Redação na rede privada e pública.

Email: ivifurloni00@gmail.com

Jéssica Sousa Borges é professora de Inglês geral e Inglês para fins específicos. Graduada em Letras Inglês pela
Universidade Federal de Uberlândia e ex-professora bolsista de Inglês do Programa Idiomas sem Fronteiras
(IsF). Mestranda no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos. Suas áreas de interesse são: ensino-
aprendizagem de língua inglesa, produção de material didático e linguística aplicada.

Email: jesccp7@gmail.com

Luís Fernando Bulhões Figueira é Professor-Adjunto 3 do Departamento de Línguas e Letras (DLL) e do


Programa de Pós-graduação em Linguística (PPGEL) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Doutor
em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Desenvolve pesquisas na Análise de
Discurso de viés materialista, com especial interesse pelo estudo das ideologias materializadas na linguagem.
Coordena o Grupo de estudos sobre Discurso e Ideologia (GRUDI/UFES). É autor da obra “O Althusserianismo
em Linguística: a teoria do discurso de Michel Pêcheux”. Membro do Coletivo de Trabalho: Discurso e
Transformação (CONTRADIT). Email: luisfernandobf@gmail.com

214
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

Marcela Henrique de Freitas é Professora Substituta de Língua Inglesa do Instituto Federal da Paraíba (IFPB)
- Campus Santa Rita. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Universidade Federal
de Uberlândia (PPGEL/UFU). Licenciada em Letras: Habilitação em Inglês e Literaturas de Língua Inglesa e
Bacharel em Tradução pela Universidade Federal de Uberlândia. Educadora Certificada pelo Google (Nível 1).
Integrante dos Grupos de Pesquisa certificados pela instituição e pelo CNPq: Laboratório de Estudos Polifônicos
(LEP), coordenado pelos Professores Dra. Cristiane Carvalho de Paula Brito e Dr. Thyago Madeira França e
Grupo de Estudos em Tradução e Expertise (GESTE), coordenado pelos Professores Dr. Igor Antônio Lourenço da
Silva e Dra. Cynthia Beatrice Costa. Líder do Grupo de Educadores Google (GEG) da cidade de João Pessoa - PB.
Principais áreas de interesse: formação de professores de línguas, ensino-aprendizagem de línguas, Análise do
Discurso, Linguística Aplicada e Estudos da Tradução. Experiência como intérprete (simultânea e consecutiva),
tradutora inglês-português-inglês e revisora em ambos os idiomas.

Email: marcelahdf@hotmail.com

Mariana Ruiz Nascimento é Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos (PPGEL) da


Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É Mestre em Estudos Linguísticos, graduada em Letras - Habilitação
em Inglês e Literaturas de Língua Inglesa e possui especialização em Português como Língua Estrangeira e
Cultura Brasileira pela mesma universidade. Tem experiência e interesse na área de Linguística Aplicada,
Análise do Discurso, Ensino de Línguas Estrangeiras, Formação de Professores, e Desenvolvimento e Análise
de Material Didático.

Email: mariruiznasci@yahoo.com.br

Patrícia Afonso Ferreira é Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Possui graduação em Letras com Licenciatura Plena em Português/Inglês pela UFU. Membro do grupo de
pesquisa “LEP - Laboratório de Estudos Polifônicos”, vinculado ao CNPq. Atualmente é professora efetiva de
Língua Inglesa no Ensino Fundamental II na Prefeitura Municipal de Indianópolis e professora efetiva de
Língua Portuguesa, na rede estadual. Possui especialização em Psicopedagogia pelo Instituto Catarinense de
Pós-graduação - Instituto Passo 1. Tem interesse na área de Linguística, com ênfase em Linguística Aplicada e
Análise Dialógica do Discurso, principalmente nos seguintes temas: Linguística Aplicada; Análise do Discurso;
Ensino de Línguas e Formação de Professores.

Email: patriciaafonsof@gmail.com

Thyago Madeira França é Doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia. É Docente
de Ensino Superior na Universidade Estadual de Goiás (UEG) - Câmpus Sudeste - Sede Morrinhos, atuando no
curso de Letras, em especial nas disciplinas das áreas de Literatura, Língua Portuguesa e Linguística. É colíder
do grupo de pesquisa “Laboratório de Estudos Polifônicos” (UFU) e membro do grupo “A narrativa ficcional para

215
DIÁLOGOS ENTRE ANÁLISE DO DISCURSO E LINGUÍSTICA APLICADA

crianças e jovens: teorias e práticas” (UERJ). Tem experiência e desenvolve pesquisas nas áreas de Ensino de
Literatura, Análise do Discurso e Linguística Aplicada contemporânea.

Email: thyago.franca@ueg.br

Walkiria Felix Dias é Graduada em Letras com habilitação em língua inglesa na Universidade Federal de
Uberlândia (2017). Desenvolveu a pesquisa de Mestrado intitulada “Representações discursivas de professores
de línguas sobre o ensino-aprendizagem em contexto de educação prisional”, com financiamento CAPES,
durante os 11 meses finais (2018 - 2020). Membro do grupo de pesquisa Laboratório de Estudos Polifônicos (LEP)
(2015 - atualmente). Bolsista de Iniciação Científica FAPEMIG (setembro/2015 a junho/2017). Ministrante do
curso: Ensino de Língua Inglesa para Adolescentes (ELIA) (2015-2; 2016-1/2). Professora designada pelo Estado
para ministrar aulas de Inglês: E. E. João Rezende (setembro - outubro/2014); E. E. Américo Renê Giannetti
(agosto/2017 - janeiro/2018); E. E. Professor Inácio Castilho (janeiro - junho/2018). Monitora e corretora de
redação Colégio Gabarito (2017 - 2018). Professora de Linguagens na Escola da Cidade (1° semestre de 2019).
Professora no Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM) - Campus Uberlândia, para ministrar as disciplinas:
Português, Literatura, Redação e Inglês (2020/1 - atualmente).

Email: wkprinci@hotmail.com

Wânia Gomes Mariano Vieira possui Graduação em Letras pela Universidade Estadual de Goiás, e Mestrado no
Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL/UFG). Atualmente, é Doutoranda no Programa
de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL/UFCAT). É membro do “Grupo de Estudos do Discurso e
de Nietzsche” (GEDIN/CNPq). Já atuou como Docente de Ensino Superior no curso de Letras da UEG - Câmpus
Morrinhos em disciplinas de Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Orientação de Estágio Supervisionado de
Língua Inglesa. Interessa-se por Análise do Discurso, Linguística Aplicada e Ensino de línguas.

Email: waniagomesmv@gmail.com

216

Você também pode gostar