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ACIR DE MATOS GOMES

DISCURSO JURÍDICO, MULHER E IDEOLOGIA:


UMA ANÁLISE DA “LEI MARIA DA PENHA”

Dissertação apresentada à Universidade


de Franca como exigência parcial para
obtenção de título de Mestre em
Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Silvia Olivi


Louzada

FRANCA
2011
Catalogação na fonte – Biblioteca Central da Universidade de franca

Gomes, Acir de Matos


G612d Discurso jurídico, mulher e ideologia : uma análise da Lei Maria da
Penha / Acir de Matos Gomes ; orientador: Maria Silvia Olivi Louzada. –
2011
128 f. : 30 cm.

Dissertação de Mestrado – Universidade de Franca


Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestre em Linguística

1. Linguística – Discurso – Direito. 2. Discurso jurídico. 3.


Ideologia. 4. Mulher. 5. Violência doméstica. I. Universidade de
Franca. II. Título.

CDU – 801:808.51:34
ACIR DE MATOS GOMES

DISCURSO JURÍDICO, MULHER E IDEOLOGIA:


UMA ANÁLISE DA “LEI MARIA DA PENHA”

COMISSÃO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA

Presidente: Profa. Dra. Maria Silvia Olivi Louzada.

Titular 1: Prof. Dr. Luiz Antônio Ferreira.

Titular 2: Profa. Dra. Maria Regina Momesso.

Franca
DEDICO à minha esposa, Juliana, ao meu filho, Gabriel, e
demais familiares que me apoiaram na realização deste sonho.
AGRADECIMENTOS

A Deus, fonte de sabedoria, por tudo...


À Profa. Dra. Maria Silvia Olivi Louzada, por toda dedicação e
ensinamento durante esse período de aprendizagem, por aceitar a árdua tarefa de
orientar um advogado que desconhecia totalmente os fundamentos teóricos da
Análise de Discurso.
À minha esposa, Juliana, e meu filho, Gabriel, pelo apoio e pelo tempo
que deixamos de estar juntos visando à concretização do mestrado.
Aos professores do Programa de Mestrado em Linguística da
UNIFRAN, pelo empenho em transmitir os seus conhecimentos.
À banca, pela leitura crítica e cautelosa.
A todos que, de alguma forma, contribuíram para a realização deste
estudo, enfatizando a pessoa do Rafael, amigo que me amparou quando cheguei ao
mestrado e que não pôde participar diretamente desta conquista.
A ideologia interpela os indivíduos em sujeitos, sem que eles
se deem conta de tal interpelação. Dito ainda de outra forma,
não há sujeito sem ideologia, embora ela não seja um processo
da ordem do consciente.
Freda Indursky
RESUMO

GOMES, Acir de Matos. Discurso jurídico, mulher e ideologia: uma análise da


Lei Maria da Penha. 2011. 128 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –
Universidade de Franca, Franca.

Toma-se como corpus de análise neste estudo a chamada “Lei Maria da Penha” –
Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 –, que cria mecanismos para coibir e prevenir
a violência doméstica e familiar contra a mulher, dispõe sobre a criação dos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabelece medidas
de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
A lei é ato político que representa a vontade do povo. Considerando que todos
(homem e mulher) são iguais de acordo com o artigo 5.º da Constituição Federal do
Brasil, a escolha do corpus justifica-se por considerarmos relevante o modo como se
concebe institucional, legal e discursivamente a mulher contemporânea em nossa
sociedade: um ser frágil, que necessita de proteção em razão de um posicionamento
machista, ainda vigente na atualidade. A opção pelo referencial teórico da Análise do
Discurso Francesa justifica-se pelo fato de ela investigar o campo dos enunciados a
fim de entender os acontecimentos discursivos que possibilitaram o estabelecimento
e a cristalização de certos sentidos em nossa cultura, considerando ainda o
inconsciente, a história e a ideologia. Os sentidos, por não serem evidentes, abrem
espaço à interpretação do que não é dito, e não se esgotam. Um mesmo enunciado
pode, em diferentes condições de produção, criar efeitos discursivos diversos. O
objetivo geral da pesquisa é averiguar a trajetória discursivo-legislativa da mulher
brasileira e identificar o contexto ideológico de surgimento da “Lei Maria da Penha”,
que tem como finalidade coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Como objetivo específico pretendemos verificar qual a imagem, a constituição
institucional, legal e discursiva da mulher na sociedade contemporânea por ser uma
lei publicada recentemente no Brasil. A pesquisa é bibliográfica e a análise dos
dados, qualitativa e comparativa. Entendemos que a “Lei Maria da Penha” reflete, de
certo modo, a contemporânea tensão entre os papéis sociais da mulher brasileira:
mulher submissa e mulher protagonista de grandes feitos. Os resultados identificam
um posicionamento em favor da mulher frágil/vitimizada, pressupondo um homem
agressor. Apontam a presença de discursos que rompem a memória discursiva de
família constituída por sexos opostos, pelo casamento civil e pela coabitação.

Palavras-chave: discurso jurídico; ideologia; mulher; violência doméstica.


ABSTRACT

GOMES, Acir de Matos. Discurso jurídico, mulher e ideologia: uma análise da


Lei Maria da Penha. 2011. 128 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –
Universidade de Franca, Franca.

Take as the corpus examined in this study called the "Maria da Penha Law" – Law
nº. 11340 of August 7, 2006 – establishing mechanisms to curb and prevent
domestic violence against women, provide for the creation of Courts and Domestic
Violence against Women, and establishes measures to protect and assist women in
situations of domestic violence. The law is a political act that represents the will of the
people. Considering that all (men and women) are equal in accordance with article
5.º of the Constitution of Brazil, the choice of corpus is justified by considering how
relevant is conceived institutional, legal discourse and the contemporary woman in
our society : a fragile being that needs protection because of a chauvinistic position,
still dominant today. The choice of theoretical framework of French Discourse
Analysis is justified by the fact that she investigates the field of the statements in
order to understand the events that made possible the establishment of discourse,
and crystallization of certain meanings in our culture, and considering the
unconscious, history and ideology. The senses, for not being clear, open space to
the interpretation of what is not said and not are exhausted. The same statement
can, in different conditions of production, producing various discursive effects. The
overall goal of this research is to investigate the discursive and legislative history of
Brazilian women and identify the ideological context of the emergence of the "Maria
da Penha Law" which aims to curb domestic violence against women. As a specific
objective which aims to examine the image, setting up institutional and legal
discourse of women in contemporary society by being a law recently published in
Brazil. The research is literature and analysis of qualitative and comparative data. We
understand that the "Maria da Penha Law" reflects a sense, the contemporary
tension between the social roles of the Brazilian woman: submissive woman and
woman protagonist of great deeds. The results identify a position in favor of the frail
woman / victimized, assuming an aggressor. They point to the existence of
discourses that disrupt the discursive memory of family consisting of opposite sexes,
the civil marriage and cohabitation

Keywords: legal discourse; ideology; wife; domestic violence.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 09
1 ANÁLISE DO DISCURSO: PRINCIPAIS FUNDAMENTOS TEÓRICOS ..... 13
1.1 LINGUAGEM E IDEOLOGIA ........................................................................ 17
1.2 SUJEITO ...................................................................................................... 18
1.3 FORMAÇÃO DISCURSIVA E FORMAÇÃO IDEOLÓGICA .......................... 21
1.4 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO .................................................................... 24
1.5 TEXTO E DISCURSO .................................................................................. 26
1.6 INTERDISCURSO, PRÉ-CONSTRUÍDO E MEMÓRIA DISCURSIVA ......... 31
2 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DISCURSIVA: FAMÍLIA E MULHER
NO CAMPO LEGISLATIVO-JURÍDICO ..................................................... 35
2.1 O CONCEITO DE FAMÍLIA NA LEGISLAÇÃO ............................................ 35
2.2 A TRAJETÓRIA DISCURSIVO-LEGISLATIVO-JURÍDICA DA MULHER..... 39
2.3 MODIFICAÇÕES DAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÕES DISCURSIVAS
COM A VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ..................... 53
3 “LEI MARIA DA PENHA”: UM DISCURSO MARCADO POR
CONTRADIÇÕES E IDEOLOGIAS .............................................................. 58
3.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÊNERO PRESCRITIVO ......... 59
3.2 FEMININO & MASCULINO OU FEMININO X MASCULINO ........................ 64
3.3 MARCAS LINGUÍSTICAS E TEXTUAIS REVELADORAS DO DISCURSO. 67
3.3.1 O emprego das preposições “contra”, “com” e “sem” na “Lei Maria da
Penha”... ....................................................................................................... 68
3.3.2 O emprego dos pronomes “toda” e “qualquer” na “Lei Maria da Penha” ...... 71
3.3.3 Os verbos no contexto da “Lei Maria da Penha” .......................................... 75
3.4 CONTRADIÇÃO: TRAÇO IDENTIFICADOR DO DISCURSO ...................... 79
3.5 POSICIONAMENTO E IDENTIDADE ENUNCIATIVA .................................. 83
3.6 LEI QUE “NÃO PEGA” EXISTE? .................................................................. 89
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 99
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 101
ANEXOS .............................................................................................................. 108
9

INTRODUÇÃO

A lei é um ato político que representa, ou deve representar, a vontade


do povo. No dia 07 de agosto de 2006, foi editada a Lei Federal n. 11.340,
conhecida como “Lei Maria da Penha” com vigência a partir do dia 22 de setembro
de 2006. Essa lei criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e
familiar contra a mulher, dispôs sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabeleceu medidas de assistência e
proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A lei é
composta por 46 artigos contendo normas mistas, ou seja, normas de direito
material, de direito processual penal e de outras naturezas.
Considerando que todos (homem e mulher) são iguais de acordo com a
Lei Máxima do nosso país (artigo 5.º da Constituição Federal do Brasil de 1988),
pretendemos averiguar a trajetória discursivo-legislativo-jurídica sobre a mulher
brasileira, de modo a verificar qual foi o contexto ideológico do surgimento dessa lei,
em 2006. A escolha do corpus “Lei Maria da Penha” justifica-se por considerarmos
relevante a verificação do modo como se concebe institucional, legal e
discursivamente a mulher contemporânea em nossa sociedade: trata-se de um ser
frágil, que necessita de proteção em razão de um posicionamento machista, ainda
vigente na atualidade?
Entendemos que a “Lei Maria da Penha” é um texto do campo
legislativo-jurídico. Todo texto é um espaço significante, lugar de jogos de sentidos,
de ideologias, de discursividades, de formações ideológicas materializadas em
formações discursivas considerando as condições de produção. Sabemos, ainda,
que os mecanismos de funcionamento do discurso têm por base as formações
imaginárias, que designam o lugar que A e B (os protagonistas do discurso) e os
lugares que se atribuem cada um a si e ao outro. Nessa perspectiva, buscamos
compreender: qual o contexto histórico e ideológico de elaboração dessa lei, desse
discurso? Quais são os sujeitos aí envolvidos e os seus respectivos lugares?
10

O nosso objeto de estudo restringiu-se aos textos legais brasileiros


que, de certa forma, tutelam os direitos e interesses da mulher, enfatizando a Lei n.
11.340/2006 – “Lei Maria da Penha”.
Um esclarecimento quanto à escolha do corpus é necessário. Como
advogado, formado desde 1994, presenciamos ao longo desses anos, nas idas à
Delegacia da Mulher e nas audiências nos fóruns, enfim, nos processos judiciais,
que a violência contra a mulher realmente existe. Em geral, a violência doméstica e
familiar é praticada por um agressor que deveria ser companheiro, cúmplice, amigo,
já que com ele a mulher/vítima mantém um relacionamento de intimidade, de troca
de sonhos, afetos, de objetivo “comum” de constituir uma família e ser feliz.
Na ocasião da escolha do corpus, a felicidade, o entusiasmo e a
seriedade da pesquisa nos envolveram. A “Lei Maria da Penha” abrange a nossa
área de atuação profissional e, doravante, passa a integrar também a nossa vida
acadêmica.
A opção pelo referencial teórico da Análise do Discurso Francesa (de
agora em diante apenas AD) se justifica pelo fato de que ela investiga os enunciados
a fim de entender os acontecimentos discursivos que possibilitaram o
estabelecimento e a cristalização de certos sentidos em nossa cultura. Esse campo
teórico trabalha a relação entre sujeito e língua, considerando ainda o inconsciente,
a história e a ideologia. Os sentidos não são considerados como evidentes e, desta
forma, abre-se espaço à interpretação do que não é dito. Os sentidos não se
esgotam, tanto que um mesmo enunciado pode, em diferentes condições de
produção, produzir efeitos diversos. Os discursos sempre estão relacionados a
discursos anteriores e afetam discursos futuros, conforme o conceito de
interdiscurso. Entendemos que é pela memória discursiva que o interdiscurso
permite aos sujeitos utilizar palavras que já foram utilizadas em outro momento.
Acreditamos que um dos desafios desse trabalho será fazer
interagirem os fundamentos teóricos da AD com os do Direito; acreditamos, contudo,
que, por ser a AD uma disciplina de entremeio, constituída pela contradição de
outros três campos do saber – o marxismo, a psicanálise e a linguística –, a
dificuldade inicial poderá reverter-se e gerar frutos para ambas as disciplinas. Os
linguistas poderão, talvez, utilizar em suas análises conceitos do Direito, e os
11

operadores e pesquisadores do Direito poderão utilizar os conceitos da Análise de


Discurso, como forma de ampliar os horizontes, os sentidos e seus efeitos.
O campo jurídico propõe que há uma necessidade universal de um
“mundo semanticamente normal”, isto é, normatizado com a distribuição de bons e
maus objetos e, contra as ameaças, o Estado e as instituições, funcionam como
polos privilegiados de resposta à necessidade ou demanda. Há “coisas-a-saber”,
conhecimentos a gerir e a transmitir socialmente, descrições de situações, de
sintomas e de atos a realizar ou recusar, os quais estão associados às ameaças
multiformes de um real no qual “ninguém pode ignorar a lei”. O real é impiedoso. No
Direito, busca-se o sentido e aplicação régia da lei; o equívoco, contudo, não é
considerado com primazia, “dando a ilusão que sempre se pode saber do que se
fala” 1. Há, no entanto, necessidade de considerar a opacidade da linguagem, a
ausência de transparência, e, na relação do sujeito com a língua e com a história,
por trás das palavras ditas há sempre um não-dito que produz sentidos
incontroláveis que não se encerram em si mesmos.
Acreditamos que, ao final, poderemos responder à questão
fundamental do analista do discurso: como esse texto de lei/discurso significa?
Para analisar o discurso também será necessário interpretar os sujeitos
considerando a produção de sentidos como integrante das atividades sociais e o fato
de que a ideologia manifesta-se no discurso materializado no texto pela linguagem.
Temos como objetivo geral da pesquisa averiguar a trajetória
legislativo-jurídica sobre a mulher brasileira e identificar o contexto ideológico de
surgimento da “Lei Maria da Penha”, que tem como finalidade coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher. Como objetivos específicos, pretendemos
verificar qual a imagem, a constituição institucional, legal e discursiva da mulher na
sociedade contemporânea, uma vez que a lei foi publicada e entrou em vigência no
ano de 2006, e fazer um levantamento bibliográfico da legislação brasileira sobre a
mulher. A pesquisa será bibliográfica e a análise dos dados, qualitativa e
comparativa.

1
Para Pêcheux (1990, p. 34-55) “as coisas-a-saber” coexistem, assim como objetos a propósito dos
quais ninguém pode estar seguro de “saber do que se fala”, porque esses objetos estão inscritos em
uma filiação e não são o produto de uma aprendizagem.
12

Planejamos a escrita desse trabalho conforme segue: os dois primeiros


capítulos da pesquisa são teóricos; o primeiro capítulo apresenta os principais
fundamentos da Análise de Discurso; o segundo capítulo, os principais fundamentos
do Direito, enfatizando a trajetória legislativo-jurídica envolvendo a mulher e os
valores sociais respectivos. No terceiro capítulo, analisaremos a “Lei Maria da
Penha” à luz dos conceitos e fundamentos da Análise de Discurso. Nas
considerações finais, retomaremos os nossos objetivos de pesquisa para fazer um
balanço do quanto nos aproximamos deles. Ao final, anexaremos a “Lei Maria da
Penha” e arquivos extraídos do site do Conselho Nacional de Justiça.
13

1 ANÁLISE DO DISCURSO: PRINCIPAIS FUNDAMENTOS TÉORICOS

A escola francesa de Análise do Discurso, conhecida como AD, tem


como fundamento uma tradição intelectual europeia acostumada a refletir sobre
texto e a história. Nos anos 1960, em razão do estruturalismo, tornou-se possível
uma reflexão sobre a “escritura”, uma articulação entre a linguística, o marxismo e a
psicanálise, por isso, a Análise do Discurso nasceu tendo como base o diálogo entre
disciplinas, ou seja, entre os linguistas, os historiadores e alguns psicanalistas.
Trata-se de uma teoria marcada por revisões, mudanças e
deslocamentos de seus conceitos essenciais, caminho esse que permitiu a revisão
realizada pelo próprio Pêcheux (1990), sendo suas fases denominadas por AD1,
AD2 e AD3. Essas nomenclaturas se referem às épocas e mudanças na teoria de
seu fundador, Michel Pêcheux, a qual sofreu influências dos estudos desenvolvidos
por Saussure, Bakhtin, De Certeau, Althusser, Foucault, Authier-Revuz, Courtine e
Lacan, entre outros. Não se trata de uma divisão precisamente cronológica, mas de
alterações nas reflexões do arcabouço teórico e metodológico da Análise do
Discurso.
Na Análise do Discurso há uma relação tríplice entre o sujeito
assujeitado que é falado por seu discurso (decorre do estruturalismo de Foucault,
Althusser e Lacan), a historicidade do enunciado (Foucault) e a materialidade da
Língua (Sausssure, Harris e Chomsky).
Em todas essas três épocas, dois pensamentos de Saussure
permanecem imutáveis: a língua é um sistema e uma instituição social. Em Gadet
(1997, p. 311-319) apresenta-se uma síntese dessas três épocas. Na AD1, partindo-
se de uma releitura de Saussure, Pêcheux apresenta uma proposta teórico-
metodológica considerando a langue como a base dos processos discursivos nos
quais estão envolvidos o sujeito e a história. O sujeito é considerado como
assujeitado, atravessado pela ideologia e pelo inconsciente. O sujeito tem a ilusão
de ser fonte do seu discurso. Surge a noção de “maquinaria discursiva”,
14

compreendida como um conjunto de discursos homogêneos, fechados em si e


produzidos em um dado momento.
No segundo momento da AD, o conceito de maquinaria discursiva é
substituído pelo de Formação Discursiva emprestada dos ensinamentos de Foucault
(1987). Uma formação discursiva é constituída por várias outras formações
discursivas e de elementos exteriores, chamados de pré-construídos. Tem início o
movimento em direção ao Outro2, à heterogeneidade de Authier-Revuz (1982 apud
BRANDÃO, 2002). Nessa fase, há um refinamento das relações entre língua,
discurso, ideologia, sujeito e o surgimento da teoria dos esquecimentos (n. 1 e n. 2)
que será abordada neste estudo no subtítulo “Interdiscurso e memória discursiva”.
Os procedimentos metodológicos da fase anterior são mantidos, altera-
se apenas a constituição dos corpora, focalizando a desigualdade em suas
influências internas que vão além da justaposição.
Por fim, na AD3, estabelece-se o primado teórico do outro sobre o
mesmo, é abandonada a noção da homogeneidade vinculada às condições de
produção do discurso, já que a heterogeneidade remete à discussão do discurso-
outro. Interrogações e problemáticas sobre o discurso, sujeito do discurso, a
interpretação, a estrutura, o acontecimento, memória e sobre a própria teoria da
análise de discurso permanecem vivas.
Maldidier (2003) conceitua essas três fases ou épocas como: AD1 –
aventura teórica, AD2 – época dos tateamentos e AD3 – desconstrução dirigida.
Pêcheux (1997) considera a AD1 como a fase de exploração metodológica da noção
de maquinaria discursivo-estrutural; a AD2 como a da justaposição dos processos
discursivos à tematização de seu entrelaçamento desigual; a AD3 como a
emergência de novos procedimentos da AD através da desconstrução das
maquinarias discursivas.
Importante ressaltar que antes dessas três fases ou épocas existiu uma
fase conhecida como AAD 69, um esboço de uma teoria do discurso a surgir. AAD
69 refere-se à análise automática do discurso, e o número 69 ao ano de 1969, data

2
Outro com a letra “O” inicial maiúscula possui significado diferente de outro com “o” inicial
minúsculo. O outro “designa o exterior, o social constitutivo do sujeito, refere-se ao desejo e sua
manifestação pelo inconsciente. O Outro refere-se ao desejo do outro como constitutivo do desejo do
„eu‟. Esse „eu” seria o sujeito” (FERNANDES, 2005, p. 42).
15

em que surgiu a obra de Michel Pêcheux – Análise automática do discurso. Foi uma
tese universitária defendida em 1968, na qual ele faz referência ao materialismo
histórico e à psicanálise sob um terreno da epistemologia e da crítica às ciências
humanas e sociais. Para o fundador, nessa época, os instrumentos, antes de se
tornaram científicos, podem ser apenas técnicas, ou seja, só há um instrumento em
razão da teoria. Ao contestar o conceito/método de ciências atribuído às disciplinas
que ignoravam o sujeito psicológico e a sua relação com a política, nasce a Análise
Automática do Discurso.

É por uma crítica desses métodos: a contagem de frequência, as variantes


da análise de conteúdo, mas também as aplicações estruturalistas aos
domínios dos mais variados, que se abre a introdução de Análise
Automática do Discurso (MALDIDIER, 2003, p. 20-21).

Por estar a Análise do Discurso inserida em um contexto que abrange


o linguístico e o social, e por ser polissêmica a palavra “discurso”, foi necessário
definir o seu campo de atuação para alcançar a especificidade. Para Orlandi (1996,
p. 110), “a AD pressupõe a Linguística e é pressupondo a Linguística que ganha
especificidade em relação às metodologias de tratamento da linguagem nas ciências
humanas”. Essa especificidade, portanto, deve ser analisada considerando outras
condições, como: o quadro das instituições em que o discurso é produzido, já que
delimitam a enunciação, os embates históricos, sociais que se cristalizam no
discurso, o espaço que cada discurso configura para si mesmo no interior de um
interdiscurso.
Assim, a linguagem passa a ser estudada também como formação
ideológica dotada de competência sociolinguística. Para Brandão (2002, p. 18),
preconizando um quadro teórico que aliasse o linguístico ao sócio-histórico, os
conceitos de discurso e de ideologia tornaram-se nucleares. Dois teóricos
influenciaram Pêcheux, ou seja, do lado da ideologia, os conceitos de Althusser
(1974) e, do lado do discurso, as ideias de Foucault (1987). Althusser na
conceituação de “formação ideológica” e Foucault na conceituação de “formação
discursiva”.
Para Orlandi (2007, p. 19-20), a língua tem sua ordem própria, mas é
relativamente autônoma, pois reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise
16

da linguagem; o real da história é afetado pelo simbólico que exige dos fatos o
sentido e um sujeito afetado pelo inconsciente e pela ideologia. O sujeito é afetado
pelo real da língua e da história sem poder controlar o modo de afetação.
No Brasil, de acordo com Gregolin (2006, p. 23-25), a AD encontrou
solo propício com o início da abertura política nos anos 1980. Nessa época, a teoria
já havia passado pelos três principais momentos de refacções e se encontravam em
crise teórica e política na França, circunstâncias essas que produziram
consequências teóricas e metodológicas. Uma delas decorre do fato de a circulação
dos textos, no Brasil, não seguir a ordem cronológica francesa, o que levou à falta
de visibilidade das diferenças teórico-metodológicas, durante um tempo, nos
trabalhos brasileiros. Alguns conceitos que foram suplantados da AD na França
continuam sendo utilizados em nossos trabalhos, como, por exemplo, a noção
pecheutiana de formação discursiva.
Por não termos vivenciado, no Brasil, tais discussões metodológicas,
convivemos com uma chamada ausência de explicitação de metodologias na Análise
do Discurso. Mesmo sabendo ter sido, a discussão do método, central no
desenvolvimento da AD na França e que o seu fundador, Michel Pêcheux, perseguiu
uma metodologia utilizando-se de ferramentas sofisticadas para atender a
complexidades teóricas refinadas, sabemos que, no início dos anos 1980, a
computação no Brasil engatinhava e praticamente não havia computadores nas
instituições que realizavam os primeiros trabalhos de AD. Todavia, a não
explicitação de métodos não impediu a expansão da AD no Brasil, que hoje goza de
campo fértil e consolidado de estudos.
Partindo desse panorama, é possível perceber as descontinuidades
entre a AD feita na França e no Brasil; contudo, a base conceitual/teórica no Brasil
possui fortes e estreitos vínculos com os trabalhos franceses.
Dessa forma, fundamentado nos trabalhos de Pêcheux, cujo projeto
ainda não se esgotou do ponto de vista teórico e metodológico, elegemos a Análise
do Discurso para análise do corpus escolhido: “Lei Maria da Penha”.
Embora existam críticas e interrogações sobre a Análise do Discurso,
especialmente em face de disciplinas como a Comunicação, a História, a Sociologia
e a Psicologia, a Pragmática, a Análise da Conversação, a Análise Textual, ela se
mantém em razão de princípios sólidos.
17

São princípios sólidos da AD, conforme Maziére (2007, p. 9-10):


1) a língua é considerada como objeto construído pelo linguista e as
línguas particulares como situadas em relação ao espaço-tempo;
2) a dupla relação com heranças descritivas das línguas considera a
gramática, as sintaxes e os vocabulários de línguas particulares contra uma sintaxe
lógica universal;
3) o corpus a ser analisado é considerado como enunciado,
heterogêneo, dentro do saber linguístico, histórico, político e filosófico;
4) nas interpretações não se desprezam os dados da língua, da história
e dos sujeitos falantes. O sujeito enunciador não é um ser individual e detentor do
enunciado, ele não controla totalmente a sua fala.

1.1 LINGUAGEM E IDEOLOGIA

Para Althusser (1974, p. 44-47), a classe dominante cria, como meio de


dominação, mecanismos para manter esse status. O Estado, portanto, através dos
Aparelhos Repressores (ARE) – o Governo, a administração, o exército, a polícia, os
tribunais, as prisões etc. – e dos Aparelhos Ideológicos (AIE) – instituições como a
religião, a escola, a família, o direito, a política, o sindicato, a cultura, a informação –,
intervém através da repressão ou da ideologia para manter as relações e condições
de exploração. O Direito pertence simultaneamente ao aparelho (repressivo) de
Estado e ao sistema de AIE. Althusser ainda faz uma diferenciação entre ideologia
geral e particular formulando três hipóteses: a) a ideologia representa a relação
imaginária de indivíduos com suas reais condições de existência; b) a ideologia tem
uma existência porque existe sempre num aparelho e na sua prática ou suas
práticas; c) a ideologia interpela indivíduos como sujeitos.
A ideologia reconhece que as ideias de um sujeito existem nos seus
atos, ou devem existir nos seus atos, e se tal não acontece, empresta-lhe outras
ideias correspondentes aos atos (mesmo perversos) que ele realiza. Esta ideologia
fala dos atos, que as práticas são reguladas por rituais que se inscrevem no seio da
18

existência material de um aparelho ideológico (ALTHUSSER, 1974, p. 87). O homem


é por natureza um animal ideológico; os indivíduos são sempre-já sujeito.
Da articulação dos processos ideológicos com os fenômenos
linguísticos surge o discurso. A linguagem, enquanto discurso, é interação, um modo
de produção social; não é neutra, inocente e nem natural, por isso é o lugar
privilegiado de manifestação da ideologia. É um lugar de conflito, de confronto
ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade uma vez que os processos
que a constituem são histórico-sociais (BRANDÃO, 2002, p. 12).
Para Orlandi (2007, p. 45), o ressignificar a noção de ideologia a partir
da linguagem é um dos pontos fortes da Análise do Discurso, ou seja, a definição
discursiva de ideologia. Por não existir sentido sem interpretação, é impossível
afastar a presença da ideologia. A ideologia produz evidências e coloca o homem na
relação imaginária com suas condições materiais de existência; é a condição para a
constituição do sujeito e dos sentidos. As formações discursivas dão sentidos às
palavras e este é o efeito da determinação do interdiscurso. Não se considera a
ideologia como ocultação, mas como relação necessária entre o mundo e a
linguagem, sentido de refração, do efeito do imaginário de um sobre o outro. O
sujeito, afetado pela língua e pela história, produz o sentido. Não existe discurso
sem sujeito e não existe sujeito sem ideologia. Não há realidade sem ideologia. A
ideologia torna possível a relação entre palavra/coisa e é através dela que o sujeito
se constituiu e o mundo se significa. A ideologia manifesta-se no discurso e o
discurso, na língua.
A intervenção da história, do equívoco, da opacidade e do significante
faz com que a língua tenha sentido, resultando que a interpretação não é mero gesto
de decodificação, de apreensão do sentido, não é livre de determinações, é
desigualmente distribuída na formação social e é considerada como conjunto de
representações, de visão de mundo ou ocultação da realidade. A integração da
língua, da história e da ideologia faz com que a linguagem, os sentidos e os sujeitos
se materializem e se constituam.

1.2 SUJEITO
19

O estudo do sujeito, necessariamente, ainda que de forma breve,


remete aos conceitos apresentados por Benveniste (1976), que incorporou aos
estudos linguísticos a noção de subjetividade. Dois aspectos foram apresentados ao
considerar a enunciação como processo de apropriação da língua para dizer algo.
Um aspecto é considerar a língua apenas como uma possibilidade que ganha
concretude no ato da enunciação, isto é, enquanto emprego e expressão de certa
relação com o mundo. A referência passa a ser parte integrante da enunciação. O
outro aspecto é que a significação passa a ser inserida no discurso e o sentido,
relacionado ao sujeito. E introduz “aquele que fala na sua fala” a subjetividade, já
que “é na instância do discurso na qual eu designa o locutor que este se anuncia
como sujeito” (BENVENISTE, 1966, p. 288).
Brandão (2002, p. 47-49), apoderando-se dos ensinamentos de
Benveniste, esclarece que a subjetividade é “a capacidade de o locutor se propor
como sujeito do seu discurso e ela se funda no exercício da língua”. Há uma
subjetividade na linguagem que pode ser notada na utilização dos pronomes
pessoais. O “eu” (pessoa subjetiva) necessariamente remete ao “tu” (pessoa não
subjetiva) e em oposição surge o “ele” (não-pessoa). A crítica à teoria de Benveniste
situa-se no fato de que a subjetividade é inerente à linguagem e é também
constituída mesmo sem a enunciação do “eu”. Em resumo, para Benveniste, o
sujeito é homogêneo e é constituído na interação do “eu” com o “tu”, tendo o “eu”
ascendência sobre o “tu‟”. A noção de sujeito não considera a história como
fundamental.
De outro lado, a noção de sujeito, para a AD, não se refere ao indivíduo
humano, individualizado, idealista, imanente, sujeito em si, mas sim um ser social
que ocupa um lugar socioideológico em um determinado momento da história que é
interpelado pela ideologia. Não é a origem ou fonte absoluta do sentido pelo fato de
que na sua fala há outras falas.
Assim, o sujeito, na Análise do Discurso, não se confunde com a noção
psicológica do sujeito empiricamente coincidente consigo mesmo (ORLANDI, 2007,
p. 48). Trata-se de um sujeito atravessado pela história, pela linguagem, pelo
imaginário, que controla apenas parte do que diz, materialmente dividido desde sua
constituição. O sujeito discursivo é interpelado pela ideologia que assume um lugar
20

no processo discursivo e está sempre vinculado a redes de filiações de sentidos. A


relação entre o “eu” e o “tu” começa a ser analisada não em suas polaridades, mas
sim no espaço discursivo existente entre ambos. O sujeito na AD é um lugar de
sujeito que não pode ser apreendido senão através de análises considerando a
interpretação e a posição que ocupa em relação à língua.
Considerando que a língua não é transparente e que o sentido não é
evidente, interessa entender como o sujeito se define dentro de um sistema
significante, o sujeito histórico, o sujeito produzido entre diferentes discursos em
uma relação regrada com a memória do dizer, o interdiscurso – “algo fala antes, em
outro lugar e independentemente” (PÊCHEUX, 1988, p. 162), como se define em
função de uma formação discursiva e em relação com as demais.
A noção de sujeito discursivo afetado pelo inconsciente e pela
ideologia, tal como concebe a AD, mostra-se nos discursos, visto que é pelos
discursos que o sujeito e o sentido são construídos.
O sujeito só controla parte do que diz por estar atravessado pela
história e pela linguagem. Segundo Orlandi (2007, p. 49), o sujeito

materialmente está dividido desde sua constituição: ele é sujeito de e é


sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história, pois para se constituir, para (se)
produzir sentidos ele é afetado por elas. Ele é assim determinado, pois se
não sofrer os efeitos do simbólico, ou seja, se ele não se submeter à língua
e à história ele não se constitui, ele não fala, não produz sentidos... o sujeito
discursivo é pensado como posição entre outras. Não é uma forma de
subjetividade, mas um lugar que ocupa para ser sujeito do que diz.

Nesse contexto, o sujeito pode ser identificado conforme o discurso


que produz, sendo certo que, para a AD, a língua é vista como não transparente,
incompleta, heterogênea, sujeita a falhas, deslizes, equívocos e multiplicidade de
sentidos, por ser também afetada pela história.
O sujeito da Análise de Discurso, para Indursky (2000, p. 70), é “um ser
social e não tomado em sua condição linguística e/ou individual”, mas “também
dotado de inconsciente”. O sujeito, além de ser social, é histórico, é ideológico e é
dotado de inconsciente. Para Pêcheux (1988, p. 161-163), os indivíduos são
interpelados em sujeitos falantes por causa das formações discursivas
representadas na linguagem por elas utilizada, reveladora de suas formações
21

ideológicas. A “interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela


identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele
é constituído como sujeito)”.

1.3 FORMAÇÃO DISCURSIVA E FORMAÇÃO IDEOLÓGICA

As palavras têm o sentido determinado pela posição do sujeito que a


emprega. Sendo assim, pode-se afirmar que o sentido é afetado pelas ideologias
contidas dentro de um processo sócio-histórico. No discurso manifesta-se a
ideologia; portanto, na análise de discurso, é indispensável conceituar “formação
ideológica” e “formação discursiva”.
Para Orlandi (2007), embora a noção de formação discursiva seja
polêmica, ela ainda é essencial na Análise do Discurso por permitir a compreensão
da produção dos sentidos, a relação com a ideologia, além de possibilitar ao analista
verificar as regularidades no discurso. Uma formação discursiva é definida pela
formação ideológica que dentro de um contexto sócio-histórico determina o que
pode ou não ser dito; logo, o discurso produz sentidos por estar o sujeito inserido
numa formação discursiva e não em outra. Por essa razão é que as palavras não
têm sentidos por si sós, os sentidos são derivados da formação discursiva em que
estão inseridas e a essência das palavras e dos sentidos se dá na discursividade, ou
seja, no discurso a ideologia produz seus efeitos e nele se materializa.

As palavras falam com outras palavras. Toda palavra é sempre parte de um


discurso. E todo discurso se delineia na relação com outros: dizeres
presentes e dizeres que se alojam na memória. As formações discursivas
podem ser vistas como regionalizações do interdiscurso, configurações
específicas dos discursos em suas relações (ORLANDI, 2007, p. 43).

Para Pêcheux (1988, p. 160), as formações ideológicas comportam


necessariamente como um de seus componentes “uma ou mais formações
discursivas inter-relacionadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado
sob a forma de arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um
programa etc.) a partir de uma posição dada em uma conjuntura dada”.
22

Pela formação ideológica, as normas, regras e preceitos explicam a


realidade como também regulam os comportamentos humanos. Através da
formação ideológica, constituída de valores, representações, interpretações,
regularidades, saberes e do que pode ser dito, percebem-se os interesses
conflitantes das classes sociais.
As formações discursivas não podem ser vistas como blocos
homogêneos com funcionamento automático, mas como heterogêneas, marcadas
pela contradição. É através do efeito da determinação do interdiscurso que as
formações discursivas determinam os sentidos das palavras.
A noção de formação discursiva foi introduzida por Foucault (1987, p.
33-45) e acolhida na Análise do Discurso por Pêcheux, o qual, após reformulação
inicial do conceito, passou a considerá-la nestes termos:

Uma formação discursiva não é um espaço estrutural fechado, já que ela é


constitutivamente „invadida‟ por elementos provenientes de outros lugares
(i.e., de outras formações discursivas) que nela se repetem, fornecendo-lhes
suas evidências discursivas fundamentais (por exemplo, sob a forma de
„pré-construídos‟ e de discursos transversos‟) (PECHEUX, 1983, p. 297).

Desta forma, a formação discursiva mostra-se intimamente ligada com


o interdiscurso, lugar em que se encontram os objetos e a coerência dos enunciados
provenientes da formação discursiva.
A produção de sentidos está diretamente ligada à formação discursiva.
Palavras iguais possuem sentidos diversos. Da mesma forma que o sujeito, que se
constitui pela interpelação, dá-se ideologicamente dentro de uma formação
discursiva. Os sentidos das palavras não são fixos como constam no dicionário
justamente pelo fato de que são produzidos considerando os lugares dos
sujeitos/interlocutores. A diversidade dos sentidos demonstra o lugar socioideológico
do sujeito que a utiliza.
Através das formações ideológicas, do encontro do imaginário, do real
e do simbólico e do confronto entre as relações de forças, do jogo do poder, os
efeitos de sentidos tornam-se capazes de determinar relações e práticas sociais. As
noções de discurso e de formações discursivas, “aquilo que numa formação
ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada,
determinada pelo estado de lutas de classes, determina o que pode e deve ser dito”
23

(PÊCHEUX, 1988, p. 160), permitem pensar a relação entre língua e formações


ideológicas. Práticas muitas vezes antagônicas se desenvolvem sobre uma mesma
base linguística. As relações aparecem como reflexo indireto de outros discursos
quando um discurso se apresenta sob a imagem de outro discurso.
Atualmente, por motivos de preferência, por a “formação discursiva”
estar muito ligada ao domínio sociopolítico, a noção de posicionamento vem
alcançando expressividade, substituindo a formação discursiva; contudo, essa
substituição deve ser

cuidadosamente especificada em função dos tipos de discursos


concernidos. Por exemplo, no discurso religioso ou no discurso filosófico, os
posicionamentos em geral correspondem às “escolas”, aos movimentos que
se consideram de uma doutrina, mas esse não é o caso geral
(CHARAUDEAU, 2008, p. 393).

O conceito de posicionamento pode ser definido, ainda por


Charaudeau e Maingueneau (2008, p. 392-393) considerando o campo discursivo,
como sendo a “identidade enunciativa forte” e “um lugar de produção discursiva bem
específico”. Está relacionado também com “as diversas dimensões do discurso”
representadas na escolha do “gênero do discurso”. Pode também ser empregado
como sendo a “posição ocupada pelo locutor no campo de discussão, aos valores
que ele defende (consciente ou inconscientemente) e que caracterizam
reciprocamente sua identidade social e ideológica”. Esses princípios amoldam-se
aos conceitos de formação ideológica ligada à formação discursiva, sendo que
ambas demonstram um contexto social em um momento determinado.
As noções de formação discursiva e formação ideológica estão
diretamente ligadas à noção de ideologia. Para Guimarães (2009, p. 109-110),
analisando as formações ideológicas materializadas nas formações discursivas
chega-se à compreensão do campo discursivo como “conjunto de estratégias que
organizam e distribuem as condições enunciativas delimitadas pelo contexto
histórico e social”.
Pode-se afirmar que as noções de formação discursiva, formação
ideológica, posicionamento e interdiscurso estão ligadas com tanta profundidade que
a definição de um remete necessariamente à definição do outro, configurando a
24

existência de um sistema de análise discursiva revelador das condições de


produção, sem as quais o discurso não se sustentaria.

1.4 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

Por condições de produção entende-se necessariamente o sujeito, a


situação e a memória existentes no discurso. Em sentido estrito, são as
circunstâncias da enunciação, o contexto imediato; em sentido amplo, o contexto
mediato, sócio-histórico e ideológico que envolve ou possibilita a existência do
discurso. Todo dizer está lastreado na memória e no interdiscurso. Os discursos são
constituídos pelas condições de produção afetadas por fatores como a relação de
sentidos, antecipação e relação de forças.
Segundo Orlandi (2007, p. 39-42), na relação de sentidos está presente
o fato de que um discurso sempre se relaciona com outros e os sentidos são
decorrentes dessa relação. O discurso é visto como amplo e contínuo, não existindo
começo absoluto e do ponto final já que o discurso tem relação com outros dizeres
realizados, imaginados e possíveis. Pela antecipação, o sujeito é capaz de se
colocar no lugar do outro, do interlocutor, e utiliza as palavras que pensa serem
apropriadas para criar o efeito de sentido pretendido. A relação de forças decorre do
lugar em que o sujeito do discurso fala, ou seja, o lugar é constituinte do que é dito e
pode ser dito. Há uma assimetria em nossa sociedade e isso produz a relação de
forças sustentada pelo poder desses lugares. Pode-se dizer que a fala de quem
ocupa a posição docente tem mais poder do que a fala do discente dentro do
ambiente escolar. Também a fala do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário possui
mais poder do que a fala do cidadão dentro da sociedade.
Importante ressaltar que a relação de sentidos, a antecipação e a
relação de forças (mecanismos de funcionamento de discurso) produzem a
formação imaginária. No discurso, os sujeitos e os lugares empíricos funcionam
como imagens projetadas, posto que, através da projeção, as situações empíricas,
os lugares dos sujeitos, dão vida às posições dos sujeitos no discurso. Daí surge a
distinção entre lugar e posição, já que em toda língua há permissão para projeção
25

do sujeito empírico para a do sujeito do discurso criando o significado de acordo com


o contexto sócio-histórico e a memória.
A imagem do sujeito é produzida por meio da relação existente entre a
língua (sujeita ao equívoco e à historicidade), a formação social e o imaginário. Pode
ocorrer ainda a intervenção da antecipação, criando um jogo de imagens mais
complexo. A soma de tudo isso constitui as condições do discurso produzido que
determinará o processo de significação; não há como desconsiderar a força da
imagem na constituição do dizer, pois o imaginário está inserido no funcionamento
da linguagem. O imaginário é decorrente das relações de poder, do modo como as
relações sociais são regidas e inseridas na sociedade. Os sentidos não estão
somente nas palavras, mas aquém e além delas.
A condição de existência dos sujeitos e dos sentidos é constituída pela
relação existente entre a paráfrase e a polissemia que estão presentes em todo
discurso por serem forças que trabalham o dizer. No funcionamento da linguagem
está presente a tensão entre os processos parafrásticos e polissêmicos. Através da
paráfrase busca-se verificar o que se mantém, o dizível, a memória, um retorno aos
mesmos espaços do dizer, diferentes formas do dizer existente, uma estabilização, a
repetição. Por outro lado, na polissemia, depara-se com o equívoco, o
deslocamento, a ruptura, a simultaneidade de movimentos distintos de sentido no
mesmo objeto simbólico.
Por existir um “real da língua” que falha e um “real da história” possível
de ruptura, torna-se possível a transformação, o movimento dos sentidos e dos
sujeitos. É a “incompletude uma condição da linguagem” visto que os sentidos, os
sujeitos, o discurso não estão prontos e acabados; há um movimento do simbólico e
da história que permite afirmar que os “sentidos e os sujeitos sempre podem ser
outros” (ORLANDI, 2007, p. 37).
Pêcheux (1990, p. 81) produz a primeira definição de condições de
produção considerando o esquema “informacional” que apresenta a vantagem de
colocar em cena os interlocutores do discurso e o seu “referente”, que permite
compreender as condições históricas da produção do discurso. Os interlocutores não
são vistos como “organismos humanos individuais”, mas uma representação de
“lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares dos quais a
sociologia pode descrever o feixe de traços objetivos característicos”. Desta forma,
26

nos discursos, as relações imaginárias acham-se representadas por “formações


imaginárias” que designam o lugar que o destinador e destinatário atribuem a si
mesmos e ao outro, a imagem que fazem do seu próprio lugar e do lugar do outro.
Disso, resulta a afirmação de Brandão (2002, p. 36) de que “nos processos
discursivos o emissor pode antecipar as representações do receptor e, de acordo
com essa antevisão do “imaginário” do outro, fundar estratégias de discurso”.
As formações imaginárias são designadas, segundo Pêcheux (1990,
p. 83), da seguinte maneira:

IA (A): Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em A - Quem sou eu


para lhe falar assim?
IA(B): Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em A - Quem é ele
para que eu lhe fale assim?
IB(B): Imagem do lugar de B para o sujeito colocado em B - Quem sou eu
para que ele me fale assim?
IB (A): Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B - Quem é ele
para que me fale assim?

Desta forma, o modo como os sujeitos protagonistas do discurso se


comportam, ou, de acordo com os lugares e imagens que fazem de si e do outro,
necessariamente, influenciam e interveem nas condições de produção do discurso.
Podemos afirmar, então, que o lugar ocupado pelo Poder Legislativo, Poder
Executivo e Poder Judiciário, por serem reconhecidos constitucionalmente em nosso
país, como Poderes do Estado, autoriza a produção de certos discursos, inclusive
pelas possibilidades de sanções aplicadas em todo o território nacional. Os poderes
ocupam um lugar de “autoridade” enquanto que os cidadãos ocupam o lugar de
“submissos”.

1.5 TEXTO E DISCURSO

Texto é definido por Goldstein, Louzada e Ivamoto (2009, p. 11) como


sendo toda produção linguística, oral ou escrita, que apresenta sentido completo e
unidade. A compreensão é determinada pelo contexto e pelas condições de
27

produção que envolvem também o local e o momento da comunicação, a posição


social dos participantes, o tema tratado, ambiente e a finalidade. Desta forma, os
textos devem ser produzidos considerando os destinatários e o ambiente em que
vão circular.
Os fatos vividos produzem sentidos permitindo que os sujeitos se
movimentem entre o real da língua e o real da história, entre o acaso e a
necessidade, o jogo e a regra. Em todo texto há sinais da historicidade,
considerando o texto como discurso, como trabalho dos sentidos sendo
perfeitamente possível verificar o modo de constituição dos sujeitos e dos sentidos.
Há uma ligação, não direta, nem automática, entre a história e a historicidade do
texto. Busca-se na Análise do Discurso a materialidade histórica da linguagem. O
texto pode ser escrito ou oral, extenso ou não, pode limitar-se a apenas uma letra. O
texto é considerado como “fato discursivo” que permite alcançar a memória da
língua.
Orlandi (2007, p. 70) afirma ser todo texto heterogêneo quanto à
natureza dos diferentes materiais simbólicos, natureza das linguagens, quanto à
posição do sujeito, e as diferenças também podem ser consideradas em razão das
formações discursivas que o atravessam e nele se organizam em razão de uma
formação dominante.
O texto é considerado como unidade de acesso ao discurso, não como
ponto absoluto de partida ou chegada. Feita a análise do texto ele desaparece para
dar lugar ao discurso, ao processo discursivo, à compreensão dos sentidos e
constituição dos sujeitos. O texto é um objeto de análise provisório, uma vez que,
feita a análise, ele é dispensado, por ser o processo discursivo quem dará a
compreensão dos sentidos.
O objeto de estudo da disciplina Análise do Discurso não é o “discurso”
tal como comumente é conhecido e utilizado no cotidiano, tido como um texto ou fala
com recursos de estilo, eloquência, retórica, frases de impacto etc., muitas vezes
atribuído a momentos especiais e, principalmente, à esfera política. O discurso, na
verdade, não é o texto, a fala, a língua, mas a existência exterior à língua que é
encontrada no social e na ideologia existente nas palavras. A fala e o texto são
objetos de análise do discurso, mas, sobretudo, busca-se o efeito de sentido
produzido por eles.
28

O discurso precisa da língua para ter existência material e real. O


estudo discursivo, segundo Orlandi (2007, p. 16), visa analisar o sentido
compreendido no tempo e no espaço das práticas do homem com a
descentralização da noção de sujeito e a relativização da autonomia do objeto da
linguística; logo, não a considera como língua fechada em si mesma, mas com o
discurso que é “um objeto sócio-histórico em que o linguístico intervém como
pressuposto”.
O homem vê o mundo através dos discursos, deles se apropria e os
reproduz em sua fala. Soma-se a isso o fato de que as normas sociais determinam o
que é permitido ou não. Sendo assim, o discurso passa a ser moldado pelas
coerções ideológicas e pelos discursos assimilados, portanto, não há discurso
individual, em contraposição a quem acredita que o discurso não pode ser
determinado pela sociedade pelo fato de que cada pessoa manifesta seus
pensamentos de formas diferentes.
Segundo Orlandi (2007, p. 15), “a palavra discurso, etimologicamente,
tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento”. O discurso
não é um conjunto de textos e sim uma prática constituída pela dispersão de textos.
A discursividade é um acontecimento, sendo que o discurso acontece
sempre no interior de uma série de outros discursos, com os quais estabelece
correlações e deslocamentos. Os sentidos produzidos em um momento histórico
estão relacionados com a interdiscursividade.
Para Pêcheux (1990, p. 56), o discurso

não é um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos


trajetos sociais nos quais ele irrompe (...) só por sua existência, todo
discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação
dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação
nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele
constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou
menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo
atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu
espaço.

Orlandi (2007, p. 62-63) enfatiza que todo discurso se estabelece na


relação com um discurso anterior e aponta para outro. Não há discurso fechado em
si mesmo, mas um processo discursivo do qual podemos recortar e analisar estados
diferentes. A distinção entre discurso e texto necessariamente está ligada a sujeito e
29

autor. O texto é a unidade que o analista tem diante de si e faz a sua análise de
discurso procurando em suas regularidades as formações discursivas e as
formações ideológicas dominantes na conjuntura, as condições de produção em
relação à memória na qual também intervém o inconsciente, o esquecimento, a falha
e o equívoco. O texto funciona como unidade de análise que se estabelece pela
historicidade, unidade de sentido em relação à situação. O texto é considerado como
um fato discursivo que nos permite alcançar a memória da língua e a compreensão
do modo como o texto funciona enquanto objeto linguístico.
Fiorin (1998, p. 41) afirma que o discurso é a materialização das
formações ideológicas, por isso é determinado por elas. O texto é unicamente um
lugar de manipulação consciente, em que o homem organiza, da melhor maneira
possível, os elementos de expressão que estão a sua disposição para veicular seu
discurso. O discurso possui uma função citativa, através da qual um discurso remete
a outro discurso, logo, há uma restrição à liberdade discursiva. Cada dizer é uma
reprodução inconsciente do dizer do grupo social. Nesse contexto, quem determina
a discursivização não é o indivíduo, mas as classes sociais. O indivíduo não pensa e
fala o que quer, mas o que a realidade lhe impõe. O que está na consciência é
provocado por algo exterior a ela e independe dela. A consciência humana depende
da linguagem assimilada. A linguagem contém e reflete as práticas sociais; o
discurso reflete uma categorização do mundo, uma abstração efetuada pela prática
social.
O discurso, segundo Fiorin (1998, p. 55), contém em si, como parte da
visão de mundo que veicula, um sistema de valores, estereótipos dos
comportamentos humanos que são valorizados positiva ou negativamente. Ele
veicula os tabus comportamentais. A sociedade transmite aos indivíduos
determinados comportamentos e esses estereótipos entram na consciência
tornando-os naturais. O discurso é uma prática social cristalizada e modelador de
uma visão de mundo.
Enfatizando o ensinamento de Edward Lopes, Fiorin (1998, p. 42)
ressalta que, “combinando uma simulação com uma dissimulação, o discurso é uma
trapaça: ele simula ser meu para dissimular que é do outro”, demonstra que o
discurso simula ser individual para ocultar que é social e, ao realizar esse jogo, a
30

linguagem serve de apoio para as teses de individualidade de cada ser humano e da


liberdade abstrata de pensamento e de expressão.
Partindo dessas premissas, como aceitá-las sabendo que o homem é
um animal racional e que pode organizar o seu discurso como quer para exprimir o
que quiser, já que tem liberdade para se expressar? Como aceitar a existência dos
discursos críticos diferentes dos discursos dominantes? Na medida em que o
homem é suporte de formações discursivas, ele não fala, mas é falado pelo discurso.
Não há liberdade absoluta do ser humano porque ele está inserido numa sociedade
e, em razão dessa inserção, ele age, reage, pensa e fala, na maioria das vezes,
como os membros do seu grupo social. O discurso crítico não surge de um vazio,
mas é resultado dos conflitos realmente existentes.
O analista do discurso procura encontrar no discurso os modos de
pensar existentes numa formação social e o homem não consegue se libertar das
coerções existentes, mesmo quando imagina mundos diferentes. Alterações nas
relações sociais de produção podem gerar mudanças nas formações ideológicas e
discursivas. O discurso é um produto histórico e social e as transformações sociais
podem modificá-lo. A Análise do Discurso desfaz a ilusão idealista de que o homem
controla totalmente o seu discurso.
O estudo do discurso se apropria da língua materializada no texto,
forma linguístico-histórica, sendo o objeto o próprio discurso. As palavras, de acordo
com Fernandes (2005, p. 23), têm sentido em conformidade com as formações
ideológicas em que os sujeitos (interlocutores) se inscrevem.

O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não


existe “em si mesmo”, mas, ao contrário, é determinado pelas posições
ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico no qual as
palavras, expressões e proposições são produzidas (PÊCHEUX, 1997, p.
190).

Comunicar é agir (FIORIN, 1998, p. 74), pois, quando um enunciador


diz alguma coisa ele pretende que o enunciatário creia no que foi dito, mude de
comportamento ou opinião, além de, também, simplesmente permitir que o outro
detenha um saber. O discurso não pode transformar o mundo, mas a linguagem
pode ser instrumento de libertação ou opressão, de mudança ou de conservação. O
discurso não se esgota no próprio discurso, ele se projeta na história; portanto, o
31

discurso é um lugar no qual se pode verificar a relação entre a língua e a ideologia, a


língua produzindo sentidos por e para os sujeitos.
Enfim, discurso é efeito de sentido que se extrai de qualquer texto
escrito ou fala, entre interlocutores em um dado momento histórico. O discurso é,
assim, uma estrutura (regras da língua) e um acontecimento (histórico).

1.6 INTERDISCURSO, PRÉ-CONSTRUÍDO E MEMÓRIA DISCURSIVA

A definição de interdiscurso, segundo Maldidier (2003, p. 51), não é a


designação banal dos discursos que existiram antes nem a ideia de algo comum a
todos os discursos, ele é: “o todo complexo dominante das formações discursivas,
intrincado no complexo das formações ideológicas e submetidos à lei de
desigualdade-contradição-subordinação”. O interdiscurso determina o espaço
ideológico e discursivo onde as formações discursivas estão ligadas às relações de
dominação, subordinação e contradição.
Para Orlandi (2007, p. 80), o interdiscurso é a relação do discurso com
uma multiplicidade de discursos, é um conjunto não discernível de discursos que
sustentam a possibilidade do dizer, sua memória. É a representação do outro, da
historicidade.
Em todo discurso há um já-dito dentro de si. Isso é fundamental para
se compreender como funciona o discurso, a relação com o sujeito e com a
ideologia. Não se confunde com intertexto, que se refere à ligação ou remessa de
um texto a outros textos. No intertexto, o esquecimento não é considerado como
estrutura como no interdiscurso, que é da ordem do saber discursivo e da memória.
O esquecimento, no interdiscurso, está presente no fato de que somente uma
parcela do dito, do dizível, é conhecida pelo sujeito. Em todo texto, num sentido
amplo, sempre haverá o intertexto ou intertextualidade, porque nenhum texto inicia-
se em si mesmo, mas parte de conhecimentos anteriormente aprendidos ou
assimilados.
32

O interdiscurso disponibiliza dizeres, determinando pelo já-dito aquilo que


constitui uma formação discursiva em relação à outra. Dizer que a palavra
significa em relação a outras, é afirmar essa articulação de formações
discursivas dominadas pelo interdiscurso em sua objetividade material
contraditória (ORLANDI, 2007, p. 43.44).

O dito e o não-dito, na Análise do Discurso, são abrangidos pela noção


de interdiscurso, de ideologia, de formação discursiva. Para Orlandi (1993), o não-
dito pode ser trabalhado através do conceito de silêncio.
O pré-construído, termo utilizado por Pêcheux (1988, p. 164),
corresponde ao “sempre-já-aí” da interpretação ideológica que impõe a “realidade” e
seu “sentido” sob a forma da universalidade; em outras palavras, os sujeitos falam a
partir do já dito, sem saber quem foi o enunciador.
O Dicionário de Análise do Discurso (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2008, p. 287) conceitua o pré-construído como sendo uma
reformulação das teorias da pressuposição de Ducrot. Marca, no enunciado, de um
discurso anterior; ele se opõe, portanto, àquilo que é construído no momento da
enunciação.
A memória, segundo Orlandi (2007, p. 31), remete ao conceito de
interdiscurso. O dizer não é de propriedade particular. As palavras são significadas
pela língua e pela história. Os sujeitos são atingidos pela história, pela memória, pela
filiação de sentidos constituídos por outros dizeres e vozes historicizadas e
marcadas pela ideologia e pelo poder.

Segundo Pêcheux (1990, p. 55),

Esse discurso-outro, enquanto presença virtual na materialidade descritível


da sequência, marca, do interior desta materialidade, a instância do outro
como lei do espaço social e da memória histórica, logo como o próprio
princípio do real sócio-histórico.

Para falar da memória discursiva, necessariamente, há de se falar


sobre os dois tipos de “esquecimento” apresentados por Pêcheux (1990). Um
esquecimento que está ligado à ideologia (o de n. 1). A ideologia afeta o
inconsciente do sujeito, o qual acredita proferir um discurso original, que as palavras
significam exatamente o que ele quer, desconsidera o fato de que, na realidade, ele
retoma o sentido já existente, determinado pela maneira de se inserir na língua e na
33

história. Para Orlandi (2007, p. 35), é por causa desse esquecimento que se tem a
ilusão de ser original quando, em verdade, apenas se retomam os sentidos já
existentes. Ao nascer, o sujeito já é afetado pelos discursos em processo. O sujeito
é afetado pela língua e pela história. O esquecimento é estruturante por ser parte da
constituição dos sujeitos e dos sentidos: o sujeito “esquece” que o sentido é formado
em um processo exterior. O outro esquecimento (o de n. 2) é da ordem da
enunciação e está diretamente ligado à paráfrase. Trata-se de um esquecimento
parcial, semiconsciente. O dito sempre pode ser dito de outra forma e nem sempre
se tem consciência disso. Há a impressão (ilusão referencial) de que existe uma
ligação direta entre o mundo, o pensamento e a linguagem, uma relação “natural”
entre a palavra e a coisa. O discurso não é originado no e pelo sujeito. É também
chamado de esquecimento enunciativo, ou seja, o modo de dizer não é indiferente
aos sentidos.
Essa ilusão não é um defeito, como diz Orlandi (2007, p. 36), mas uma
necessidade para que a linguagem funcione nos sujeitos e na produção de sentidos.
O “esquecimento” do que foi dito, que não é voluntário, ao ser identificado pelo
sujeito, o constitui. As palavras adquirem sentidos quando retomam palavras já
existentes como se fossem originais e, nesse movimento, o sujeito e o sentido vão
sendo construídos de muitas e variadas formas, sempre as mesmas e sempre
outras.
Pêcheux (1990, p. 54) explica que

é porque há o outro nas sociedades e na história que pode haver ligação,


identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a
possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações
históricas podem-se organizar em memoriais e as relações sociais em rede
de significantes.

Na AD a memória não é entendida em seu sentido psicologicista de


“memória individual”, mas no entrecruzamento de “memória mítica” e “memória
social” inscritas em práticas e da “memória construída do historiador”. A memória
discursiva é aquilo que surge como acontecimento a ler, restabelece os pré-
construídos (implícitos) de que a leitura necessita: “a condição de legível em relação
ao próprio legível”. A memória, então, é considerada como “espaço móvel de
divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de
34

regularização... de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contradiscursos”


(PÊCHEUX, 2007, p. 52-56).
Os conceitos de interdiscurso, pré-construído e memória discursiva
estão intimamente ligados entre si. O pré-construído e o interdiscurso são utilizados
como sinônimos por muitos analistas do discurso e não há como afastar desses
conceitos de memória discursiva, ou memória do dizer, já que o sujeito dela se utiliza
e apropria para comunicar. Os sentidos se tornam legíveis também por força da
memória discursiva.
Neste capítulo vimos alguns dos principais fundamentos teóricos da
Análise do Discurso, os quais são imprescindíveis para fundamentar a análise do
corpus objeto do nosso estudo. Sem esses conceitos a análise ficaria sem um lastro
científico e não seria uma análise discursiva de linha francesa. Também faltariam
elementos teóricos para contextualizar o capítulo que segue, no qual abordaremos
as condições de produção discursiva da família e da mulher no campo legislativo-
jurídico.
35

2. CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DISCURSIVA: FAMÍLIA E MULHER NO CAMPO


LEGISLATIVO-JURÍDICO

Como vimos anteriormente, entendem-se necessariamente por


condições de produção o sujeito, a situação e a memória existente do discurso; em
outras palavras, as circunstâncias da enunciação, o contexto imediato, o contexto
mediato, sócio-histórico e ideológico do discurso. Sendo assim, neste capítulo,
fazemos um levantamento da posição e do sujeito “mulher” em diferentes momentos
da história e das leis existentes visando garantir-lhe direitos. A mulher, muitas vezes,
é considerada como “vítima”, um ser dominado e sujeito a vários preconceitos.
Vivemos em uma sociedade estruturada em hierarquias dotadas de poder e, nela, a
mulher, por meio da luta feminista, vem alcançando espaços anteriormente nunca
imaginados. Atualmente, as mulheres ocupam lugares, graus, altos escalões da
sociedade. Em todos os poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, a presença da
mulher é marcante; contudo, embora tenha alcançado grandes feitos, a mulher
continua sendo vítima de agressão e de violência doméstica, mesmo existindo lei
visando à eliminação ou diminuição desse tipo de violência, um fenômeno que é
mundial.
Ressaltamos que algumas citações dos artigos das leis tornaram-se
extensas por entendermos que devessem ser mantidas para tornar a leitura mais
fluida e propiciar a melhor compreensão dos leitores não acostumados com o gênero
prescritivo no qual se insere a legislação.

2.1 O CONCEITO DE FAMÍLIA NA LEGISLAÇÃO

Indispensável conceituar e verificar o processo histórico e, por


consequência, a historicidade decorrente da palavra “família”, considerando inclusive
36

as várias mutações que essa instituição sofreu e vem sofrendo até os dias atuais,
inclusive nas legislações.
É inquestionável que a definição de família vem sofrendo modificações
em razão das transformações históricas e políticas; definir família, portanto, exige
um olhar abrangente, haja vista a existência de várias formas de organização social
consideradas como tal, gerando imprecisões terminológicas.
A família que considera o homem como seu chefe (o patriarcado)
começou a sofrer mudanças a partir do fim do século XIX (teorias dos estágios) e no
século XX com uma nova força do feminismo. O patriarcado refere-se ao poder dos
homens, dominação dos homens e submissão das mulheres: é poder ou autoridade
do pai. Esse sistema foi combatido pelo movimento feminista, nos anos 1970.
Delphy (2009, p. 175) afirma que em relação aos termos quase sinônimos
“dominação masculina” e “opressão das mulheres” há duas características distintas.
De um lado designa “no espírito daqueles que o utilizam, um sistema e não relações
individuais ou um estado de espírito; do outro lado, a argumentação feminista opôs
„patriarcado‟ a „capitalismo‟, o primeiro é diferente do segundo, um não se reduz ao
outro”. Embora ainda vigente o termo “patriarcado”, convivem com ele “gênero” e
“sistema de gênero”, os quais têm em comum a pretensão de descrever atitudes não
individuais ou de setores da vida social, mas um sistema que comanda atividades
humanas, coletivas e individuais. Nesse conjunto lexical feminista os termos se
completam e se opõem ao “sexismo” ou “machismo”, são mais teóricos que
“dominação masculina” e “opressão das mulheres”.
Para Durham (1982), família é um grupo social com vínculos e
constituído como unidade de reprodução humana. O termo família é considerado
como uma instituição; refere-se a grupos sociais concretos e a modelos culturais.
Por grupos domésticos entendem-se as pessoas da família não coabitantes do
mesmo domicílio. Parentesco é uma forma mais ampla de organização das relações
de afinidade, descendência e consanguinidade e determina as formas de herança e
sucessão.
Diniz (2002, p. 9-11) enfatiza que os sentidos do termo família são
vários por decorrerem da plurivalência semântica existente no vocabulário jurídico.
Três são as definições existentes no campo jurídico, ou seja, amplíssima, lata e
restrita. Por amplíssima, considera-se a família abrangida por todos os indivíduos
37

ligados pela consanguinidade ou afinidade, incluindo estranhos (previsão legal –


artigo 1.412, § 2.º, artigo 241 da lei n. 1.711/52). Por lata, entendem-se os cônjuges,
os filhos, parentes em linha reta ou colaterais e afins (previsão legal artigo 1.591 e
seguintes do Código Civil, Decreto-lei n. 3.200/41 e lei n. 883/49); por restrita,
compreende os cônjuges ou conviventes e a prole e qualquer dos pais e
descendentes independentemente do vínculo conjugal que a originou (previsão legal
artigo 1.567, 1.716 do Código Civil e art. 226, §§ 3.º e 4.º da Constituição Federal).
Desta forma, com a vigência da Constituição Federal de 1988 e do
Código Civil, lei n. 10.406/2002, passou a ser garantida e reconhecida como família
a decorrente do matrimônio e, como entidade familiar, a decorrente da união estável
e comunidade monoparental, formada por qualquer dos pais e seus descendentes,
desvinculando-se do conceito de casal.
Didaticamente, três são as espécies de família conforme a fonte de
constituição, embora não se possa fazer discriminação por vedação legal: família
matrimonial (casamento), não matrimonial e adotiva. Diniz (2002, p. 13) apresenta os
caracteres da família: o caráter biológico é um agrupamento natural, já que a pessoa
nasce e cresce numa família e permanece nela até constituir a própria família; o
caráter psicológico, constituído pelo amor familiar, elemento espiritual que une os
integrantes; o caráter político (art. 226 da Constituição Federal do Brasil), segundo o
qual a família é a célula da sociedade e o Estado nasce dela; o caráter religioso, em
que a família influenciada pelo cristianismo ou outra doutrina determina a ética e a
moral e o caráter econômico, condições de obtenção e realização material,
intelectual e espiritual; o caráter jurídico, pois a família é regulada por normas e
princípios jurídicos que compõem o direito de família.
Pereira (1959, p. 89-90) já advertia, antes mesmo da Constituição
Federal, que:

A família é um fato natural. Não a cria o homem, mas a natureza [...] o


legislador não cria a família, como o jardineiro não cria a primavera [...] ela
excede à moldura em que o legislador a enquadra [...]. Agora, dizei-me: que
é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o
mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é fruto de seu amor?
Vereis uma família. Passou por lá o juiz com sua lei, ou o padre, com o seu
sacramento? Que importa isso? O acidente convencional não tem força
para apagar o fato natural.
38

Mesmo admitindo que a família não seja meramente um fato natural,


mas cultural, pois o elemento que funda uma família é o elo psíquico estruturante,
dando a cada membro um lugar definido, uma função, há de se ter em conta que
esta estrutura familiar existe antes e acima do Direito. Não se admite mais atrelar o
conceito de família ao de casamento, já que este é uma das possíveis maneiras de
constituição daquela. Hodiernamente, em razão das mudanças dos costumes, tanto
o direito quanto a realidade social mudaram. As relações sexuais ocorrem não só no
casamento, logo há reconhecimento jurídico e social da união estável como entidade
familiar na qual as relações sexuais ocorrem sem repressão. Desta forma, a família
moderna, atual, possui outra concepção, diferente, e já não pode ficar restrita à
noção originária que a vinculava ao casamento.
Podemos afirmar que há uma mudança significativa no conceito e na
própria família moderna/contemporânea, ou seja, no perfil da família brasileira já não
se percebe, embora ainda existente, a hierarquização rígida, intransponível onde os
papéis são definidos pelo sexo. Historicamente, a família está buscando uma relação
igualitária e há a percepção de que homem e mulher são diferentes enquanto
pessoas, mas iguais como indivíduos.
Lemos (1996, p. 16), após realizar uma pesquisa, percebeu que há uma
retomada vigorosa, em matéria esmagadora, dos anseios pela formação de família
nuclear. A família ressurge como reduto, porto seguro, local de confiança, garantia
em face de uma realidade brutal violenta e frustradora, porém, com significantes
mudanças, especialmente no que se refere à mulher que busca a realização
profissional, casamento e filhos, enfim, uma mulher com independência e arrojo.
Por fim, podemos afirmar que o modelo de família nuclear, na
modernidade, sofreu modificações em decorrência dos métodos contraceptivos. A
sexualidade feminina deixou de estar atrelada à maternidade. A possibilidade de
planejamento familiar, a possibilidade do divórcio, o afastamento da influência
religiosa permitindo uma leitura laica, ou seja, uma certa dessacralização da família,
e a força do trabalho feminino estão exigindo que os membros da “família” busquem
uma relação de igualdade.
O movimento feminista despertou o sentimento de igualdade, de
valorização, de respeito, de autoestima, até então sufocados pelo patriarcalismo, e
isso pode ser notado também na trajetória discursivo-legislativo-jurídica.
39

2.2 A TRAJETÓRIA DISCURSIVO-LEGISLATIVO-JURÍDICA DA MULHER

Esclarecemos que adotamos a expressão “discursivo-legislativo-


jurídica” pelo fato de que as leis são criadas, em regra, pelo Poder Legislativo; no
entanto, em razão do controle que o Poder Judiciário faz das leis, a expressão
supracitada indica que as modificações legislativas foram ratificadas pelo Judiciário,
ou seja, as leis foram reconhecidas constitucionais, de acordo com a Constituição
vigente na época. Enfatiza Lenza (2005, p. 102) que em nosso ordenamento jurídico
há a possibilidade de uma lei ser declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário,
através dos controles de constitucionalidade posterior ou repressivo.
Para a AD a tipologia do discurso (político, jurídico, jornalístico,
religioso, científico etc.) é utilizada para análise, mas o que de fato importa ao
analista é o modo como o discurso funciona, as suas propriedades internas ao
processo discursivo, as condições, as formações discursivas, as formações
ideológicas. Relacionar a trajetória das leis que tratam dos direitos da mulher nos
permitirá identificar as formações discursivas e ideológicas dominantes em cada
discurso legislativo-jurídico, bem como as suas condições de produção.
A partir de uma pesquisa bibliográfica sobre a teoria do ordenamento
jurídico, Barros (2000) constatou que o Direito está calcado em uma norma
fundamental: “deverás obedecer”. Essa norma é pressuposta e supõe uma
autoridade imaginária que determina a obediência às leis. Todos os ordenamentos
têm uma estrutura hierárquica e pertencem ao gênero prescritivo de discurso,
portanto.
A norma fundamental, para Kelsen (1964), se funda num terreno que
não é próprio do campo jurídico. Ele utiliza de exemplos da realidade familiar e faz
comparação entre o ordenamento jurídico e o ordenamento familiar, atribuindo
sempre ao pai o poder normativo constituinte. Vejamos o exemplo:

O pai indica ao seu filho a norma individual: 'Vá ao Colégio'. O filho interroga
o pai: 'Por que tenho de ir ao Colégio?' Quer dizer, por que o sentido
subjetivo do ato da vontade de seu pai constitui nele um sentido objetivo, ou
seja, uma norma obrigatória?(...) Qual é o fundamento que outorga validez a
esta norma? Respondeu o pai: 'Porque Deus ordenou que obedecêssemos
40

aos pais. Ou seja, Ele autorizou aos pais dirigir ordens aos seus filhos'.
Segue o filho: 'Por que temos de obedecer aos mandamentos de Deus?'(...)
E a única resposta possível a esta pergunta é: 'Como somos homens
crentes em Deus, pressupomos que devemos obedecer aos seus
mandamentos'. É a afirmação sobre a validez de uma norma, que deve ser
pressuposta... é uma norma-base (Grund-norm), a fundante, porque não se
pode perguntar pelo fundamento de sua validez... É uma norma
3
pressuposta no pensamento de um homem crente .

O fundamento da obediência ao pai está atrelado à “obediência às


leis”. A autoridade imaginária, com o poder de ordenar a obediência, está ligada à
figura paterna, uma metáfora do pai, Deus, Papa, Rei. Foi reveladora para Barros
(2000) a constatação de que nos ordenamentos a autoridade normativa capaz de
determinar a norma fundamental sempre foi, em analogia, aproximada da figura
paterna, não como o sujeito do mundo, mas como uma função, um sujeito empírico,
um ser social que ocupa um lugar socioideológico.
Obedecer à lei é uma decorrência da transmissão da obediência ao
pai, está na base da sociedade, na estrutura familiar que exige uma conjugação de
amor e autoridade, a qual confere legitimidade ao ordenamento jurídico, ou seja,
normas contidas em texto, denominado texto jurídico.
O discurso jurídico, dotado de poder, para produzir o efeito de
autoridade e exigir o cumprimento, precisa fazer com que haja uma crença, ainda
que de forma imaginária, que há uma estrutura que dá proteção cuja inobservância
produzirá sanção. A ordem jurídica é dotada de eficácia em sua função de
ordenação social, pois, segundo Barros (2000), se estrutura enquanto linguagem e é
na estrutura da linguagem que a transmissão é possível.
Sabe-se que o Estado4 é uma ficção, não possui um corpo físico, é
uma ideia dotada de autoridade. O Estado se corporifica nas normas/leis que são
dotadas de ideologia. Para Temer (1998, p. 15), o Estado “consiste na incidência de
determinada ordenação jurídica, ou seja, determinado conjunto de preceitos sobre

3
KELSEN, H. La Función de La Constitución. In: Derecho y Psicoanálisis, Teoria de las ficciones
y función dogmática, Buenos Aires: Libreria Hachette, [s.d.], p. 80 a 88, traduzido do alemão para o
espanhol pelo Sr. Enrique Bein. Este artigo estava destinado a ser pronunciado como discurso central
na Segunda Jornada Austríaca de Juristas, mas uma indisposição de Kelsen o impediu. O texto foi
então agregado às atas dessa Jornada, Viena, 1964, v. 7, p. 67 e segs.
4
O Brasil adotou a forma republicana de governo, o sistema presidencialista de governo e forma
federativa de Estado. A Federação surgiu com a primeira Constituição Republicana de 1891 com o
artigo 1.º “A nação Brazileira [...] constitui-se por união perpétua e indissolúvel das suas antigas
províncias em Estados Unidos do Brazil” (LENZA, 2005, p.173-176).
41

determinadas pessoas que estão em certo território”. O direito e a linguagem são


fenômenos da vida, já que sem eles não há sociedade. Não existe sociedade sem
direito da mesma forma que não há sociedade sem linguagem.
O direito possui uma função ordenadora, pois coordena os interesses
existentes na sociedade bem como os resolve. O direito, do ponto de vista
sociológico, exerce a função de controle social, ou seja, é o

conjunto de instrumentos de que a sociedade dispõe na sua tendência à


imposição dos modelos culturais, dos ideais coletivos e dos valores que
persegue, para a superação das antinomias, das tensões e dos conflitos
que lhe são próprios (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 1999, p. 19).

Sendo assim, faz-se necessário apresentar as principais conquistas e


evolução dos direitos da mulher, nos planos constitucional, civil e penal, inclusive
para constatar como se construíram a memória discursiva da mulher e as condições
dos discursos até se chegar à formulação da “Lei Maria da Penha”, objeto desta
dissertação.
A mulher, desde o direito romano, era considerada como objeto, não
tinha capacidade jurídica, ou seja, não podia exercer direitos porque poucos ou
nenhum direito lhe assistia. A dominação da mulher, quando criança, dava-se na
presença do pai; quando casava, na pessoa do cônjuge e, caso ficasse viúva, na
família do pai do marido morto.
Nos primórdios havia uma igualdade entre o homem e a mulher, já que
ambos realizam atividades ou funções sociais equivalentes; enquanto o homem
pescava e caçava, a mulher cuidava da agricultura e do lar. A monopolização da
política, a concentração de riqueza em poder do homem e o detrimento do direito
materno, deu origem à desigualdade no campo social e até no jurídico. Em
decorrência desses fatos, a mulher por muito tempo recebeu educação diferenciada,
era educada para servir, ser boa dona de casa, cuidar dos filhos, das atividades do
lar, enfim, ser submissa; o homem, ao contrário, recebia uma educação que o
obrigava a ser dominador, poderoso.
Um dos fatores decisivos para o reconhecimento e valorização da
mulher, com o início da emancipação feminina, foram as duas grandes Guerras
Mundiais. Ao ser obrigado a estar na guerra, o homem deixou a mulher no controle
da família, papel até então destinado a ele.
42

No Brasil, as mudanças começaram a surgir com a vinda da Corte de


Portugal e sua permanência no Rio de Janeiro em 1808. As famílias diferenciavam-
se umas das outras em razão do poder que possuíam, da dependência das pessoas
e pelo número de escravos que compartilhavam a mesma casa.
Escolas não religiosas surgiram e deram oportunidade para as
mulheres estudarem o português de Portugal. Com a Constituição Federal de 1824
(Constituição do Império), a mulher pôde aprender o português brasileiro. Mulheres e
homens não estudavam juntos; essa possibilidade surgiu apenas no século XX. Na
época do Brasil-Colônia, as leis vigentes eram as de Portugal e, por muitos anos, as
Ordenações Filipinas mantiveram o poder patriarcal da Idade Média, a mulher tinha
apenas alguns poucos direitos.
Em 1890, com o surgimento do regime republicano no Brasil, através
do Decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890, o patriarcalismo foi mantido, mas com
sinais de enfraquecimento, posto que ao marido não era mais permitido impor
castigos físicos à mulher e aos filhos. Assim, as conquistas dos direitos inerentes à
mulher foram alcançados lentamente. Como podemos perceber, o poder conferia ao
homem o direito de exercê-lo pela violência antes da República.
Na Lei n. 3.071, de 1.º de janeiro de 1916, Código Civil, atualmente
revogado pela Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, a ideologia patriarcal ainda é
evidente. O homem é considerado o chefe da sociedade conjugal. A mulher alcança
alguns direitos, mas ainda mantém a dependência ao homem e situação de
desigualdade em relação ao marido. A mulher exercia um papel de coadjuvante do
marido. Há previsão do regime dotal de casamento, regime pelo qual a mulher, ou
alguém de sua família, transferia ao marido bens para que ele administrasse e
gerasse rendas para a família. O pai exercia o pátrio poder sobre os filhos. O Código
Civil foi sendo modificado, dentre outras leis, principalmente pelo Estatuto da Mulher
Casada (Lei n. 4.121/62) e pela Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/77).
Monteiro (1979, p. 130) esclarece que, inicialmente, antes das
modificações sofridas, o Código Civil, embora os direitos da mulher devessem ser
iguais aos dos homens, na “realidade assim não acontecia”, cita que o nosso Código
poderia ser comparado ao que foi dito por Savatier (Puissance maritale, in Revue
Critique de Législation et de Jurisprudence, 56/206) acerca da legislação francesa,
43

ou seja: “O Código, trabalho masculino, é obra parcial, em que a mulher aparece ao


mesmo tempo como vítima e vencida".
Importa destacar que o Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121, de 27
de agosto de 1962) foi elaborado e entrou em vigência por “imposição” da
Convenção Interamericana, assinada em Bogotá, no dia 02 de maio de 1948. No
Brasil foi promulgado o Decreto n. 31.643, de 23 de outubro de 1952. Antes, porém,
no dia 08 de novembro de 1948, foi aprovada pela Comissão Social das Nações
Unidas a Declaração dos Direitos Humanos, a qual estabelecia que homens e
mulheres detinham os mesmos direitos antes ou depois do casamento. Com o
Estatuto da Mulher casada houve uma paridade entre os direitos do homem e da
mulher.
A palavra homem pode referir-se à espécie humana, no entanto, é fato
que na Lei n. 3.071/16, o art. 2.º estabelecia que: “Todo homem é capaz de direitos
e obrigações na ordem civil”. Em razão da entrada em vigor da Lei n. 11.406/20025,
a palavra “homem” foi substituída por “pessoa”: “Art. 1o Toda pessoa é capaz de
direitos e deveres na ordem civil”.
No início da vigência do Código Civil6, a mulher casada era
considerada pessoa relativamente incapaz, tinha a mesma capacidade dos menores
e dos silvícolas. A capacidade foi conferida à mulher com a Lei n. 4.121, de 27 de
agosto de 1962, Estatuto da Mulher Casada, que alterou a redação do art. 6.º, que
assim passou a ficar redigido:

o
Art. 6 São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à maneira
de os exercer:
I - os maiores de 16 (dezesseis) e os menores de 21 (vinte e um) anos (arts.
154 a 156);
II - os pródigos;
III - os silvícolas.
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar,
estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida
que se forem adaptando à civilização do País.

5
BRASIL. Código Civil comentado. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009.
6
BRASIL. Código Civil. Organização dos textos, notas remissivas e índices por Juarez de Oliveira.
43. ed. São Paulo: Saraiva, 1993.
44

A emancipação (antecipação dos efeitos da maioridade) exigia a idade


de 18 anos completos e era concedido pelo pai (homem) e à mãe (mulher) somente
se aquele estivesse morto.

o
Art. 9 Aos 21 (vinte e um) anos completos acaba a menoridade, ficando
habilitado o indivíduo para todos os atos da vida civil.
º
§ 1 Cessará, para os menores, a incapacidade:
I - por concessão do pai, ou, se for morto, da mãe, e por sentença do juiz,
ouvido o tutor, se o menor tiver 18 (dezoito) anos cumpridos. (grifo nosso).

Como podemos perceber, a assimetria entre homem e mulher ainda se


mantém nessa lei: a condicional “se for morto” pressupõe que a mulher somente
poderá exercer poder na ausência do homem.
Para Monteiro (1979, p. 117-118), antes da vigência da Lei do Divórcio
(Lei n. 6.515/77), a preponderância do homem em face da mulher era
fundamentada, outrora, no direito natural, depois em razão da sua fragilidade e na
época em que escreveu afirmava que:

ao marido competia a chefia da sociedade conjugal pela natural


necessidade de haver quem lhe assuma a direção e também por ser ele
quem, pelo sexo e profissão, mais apto se acha a receber a investidura. Os
direitos de ambos os cônjuges são exatamente os mesmos; apenas por
questão de unidade na direção dos assuntos domésticos, indispensável à
boa ordem familiar, entrega-se ao marido a autoridade dirigente, destinada
a coibir discórdias que fatalmente surgiriam com dualidade de orientações.
O marido não é, entretanto, patrão da mulher, não exerce sobre ela
poder algum, como existente em relação aos filhos menores, através do
pátrio poder; não dispõe do jus corrigendi, outrora outorgado pelas
Ordenações Filipinas e, não deve esquecer que, de acordo com a lei, ela é
sua companheira, consorte e colaboradora nos encargos da família, não
escrava sob sua manus, como antigamente acontecia entre os
romanos (grifos nossos).

A lei (Código Civil com as modificações introduzidas pela Lei do


Divórcio e pelo Estatuto da Mulher casada) prevê expressamente os direitos do
marido e da mulher demonstrando que há diferença entres eles. O homem, o marido
é considerado o chefe da sociedade conjugal e a mulher, a sua companheira,
colaboradora. A mulher, na falta do homem, assume a função de chefe da família.
No entanto, ainda, podemos perceber que o efeito discursivo produzido é o de que a
mulher é entendida como um segundo sexo, uma coadjuvante do homem
(LOUZADA, 2008).
45

Os filhos menores de 21 anos dependiam da autorização dos pais para


casar; havendo, porém, divergência entre eles, prevalecia a vontade do pai/homem.

Art.185. Para o casamento dos menores de 21 (vinte e um) anos, sendo


filhos legítimos, é mister o consentimento de ambos os pais.
Art. 186. Discordando eles entre si, prevalecerá a vontade paterna, ou
sendo o casal separado, divorciado ou tiver sido o seu casamento anulado,
a vontade do cônjuge, com quem estiverem os filhos.

O exercício profissional e a permanência fora do lar conjugal estavam


condicionados à autorização do marido (art. 233, IV). Essa situação foi também
modificada com a vigência do Estatuto da Mulher Casada.

Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce


com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos
(arts. 240, 247 e 251). Compete-lhe:
I - a representação legal da família;
II - a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher que ao
marido incumbir administrar, em virtude do regime matrimonial adotado, ou
de pacto antenupcial (arts. 178, § 9°, I, c, 274, 289, I e 311);
III - o direito de fixar o domicílio da família, ressalvada a possibilidade de
recorrer a mulher ao juiz, no caso de deliberação que a prejudique;
IV - prover a manutenção da família, guardadas as disposições dos arts.
275 e 277.

Em todos esses casos, podemos observar pelo emprego de palavras e


expressões como “prevalecerá a vontade paterna”, “o marido é o chefe” para referir
o homem na sociedade conjugal e, por outro lado, “colaboradora”, “colaboração da
mulher”, que se mantém o mesmo efeito de sentido de submissão da mulher ao
homem, de sua coadjuvante.
A mulher somente era responsável pela direção e administração da
família em situações especiais e os atos por ela praticados poderiam ser revogados
se não existisse autorização do marido ou do juiz.

Art. 251. À mulher compete a direção e administração do casal, quando o


marido:
I- estiver em lugar remoto, ou não sabido;
II - estiver em cárcere por mais de 2 (dois) anos;
III - for judicialmente declarado interdito.
Parágrafo único. Nestes casos, cabe à mulher:
I - administrar os bens comuns;
II - dispor dos particulares e alienar os móveis comuns e os do marido;
III - administrar os do marido;
IV - alienar os imóveis comuns e os do marido mediante autorização
especial do juiz.
46

Art. 252. A falta não suprida pelo juiz, de autorização do marido, quando
necessária (art. 242), invalidará o ato da mulher; podendo esta nulidade ser
alegada pelo outro cônjuge, até 2 (dois) anos depois de terminada a
sociedade conjugal.

A mulher não podia aceitar herança, a curatela, tutela ou múnus


público (art. 242, V), não podia aceitar mandato (art. 242, X, c.c art. 1.299). Esses
direitos foram conferidos à mulher através do Estatuto da Mulher Casada, que
alterou a redação desse artigo.

Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251):
I - praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher
(art. 235);
II - alienar ou gravar de ônus real os imóveis de seu domínio particular,
qualquer que seja o regime dos bens (arts. 263, II, III e VIII, 269, 275 e 310);
III - alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem;
IV - contrair obrigações que possam importar em alheação de bens do
casal.
Art. 243. A autorização do marido pode ser geral ou especial, mas deve
constar de instrumento público ou particular previamente autenticado.
Art. 244. Esta autorização é revogável a todo o tempo, respeitados os
direitos de terceiros e os efeitos necessários dos atos iniciados. (grifos
nossos).

O emprego de condicionais (“sendo o casal separado”; “quando o


marido...”; “sem autorização do marido”) reforçam o mesmo sentido já comentado. A
legislação, portanto, avança cautelosamente, titubeante: ora reconhece a igualdade
entre homem e mulher; ora submete a mulher ao poder do marido. Os seus “novos”
direitos ficam, mais uma vez, condicionados à autorização do homem: “a mulher
autorizada pelo marido”.
A mulher passa a poder trabalhar e a exercer a sua própria defesa. Os
bens adquiridos pela mulher podem se tornar bens exclusivos dela (bens
reservados). Pode propor ação de separação judicial, administrar os seus bens,
cuidar dos filhos. Essas alterações passam a incorporar o Código Civil para atender
aos ditames da Lei do Divórcio e do Estatuto da Mulher Casada, o qual passou a ter
as seguintes redações.

Art. 246. A mulher que exercer profissão lucrativa, distinta da do marido,


terá direito de praticar todos os atos inerentes ao seu exercício e à sua
defesa. O produto do seu trabalho assim auferido, e os bens com ele
adquiridos, constituem, salvo estipulação diversa em pacto antenupcial,
bens reservados, dos quais poderá dispor livremente com observância,
porém, do preceituado na parte final do art. 240 e nos ns. II e III do art. 242.
Parágrafo único. Não responde, o produto do trabalho da mulher, nem os
47

bens a que se refere este artigo, pelas dívidas do marido, exceto as


contraídas em benefício da família.
Art. 247. Presume-se a mulher autorizada pelo marido:
I - para a compra, ainda a crédito, das coisas necessárias à economia
doméstica;
II - para obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas
possa exigir;
III - para contrair as obrigações concernentes à indústria, ou profissão que
exercer com autorização do marido, ou suprimento do juiz.
Parágrafo único. Considerar-se-á sempre autorizada pelo marido a
mulher que ocupar cargo público, ou, por mais de 6 (seis) meses, se
entregar a profissão exercida fora do lar conjugal.
Art. 248. A mulher casada pode livremente:
I - Exercer o direito que lhe competir sobre as pessoas e os bens dos filhos
do leito anterior (art. 393);
II - Desobrigar ou reivindicar os imóveis do casal que o marido tenha
gravado ou alienado sem sua outorga ou suprimento do juiz (art. 235, I);
III - Anular as fianças ou doações feitas pelo marido com infração do
disposto nos ns. III e IV do art. 235;
IV - Reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou
transferidos pelo marido à concubina (art. 1.177).
Parágrafo único. Este direito prevalece, esteja ou não a mulher em
companhia do marido, e ainda que a doação se dissimule em venda ou
outro contrato;
V - Dispor dos bens adquiridos na conformidade do número anterior e de
quaisquer outros que possua, livres da administração do marido, não sendo
imóveis;
VI - Promover os meios assecuratórios e as ações que, em razão do dote
ou de outros bens seus sujeitos à administração do marido, contra este lhe
competirem;
VII - Praticar quaisquer outros atos não vedados por lei;
VIII - Propor a separação judicial e o divórcio.
Art. 249. As ações fundadas nos ns. II, III, IV e VI do artigo antecedente
competem à mulher e aos seus herdeiros.
Art. 250. Salvo o caso do n° IV do art. 248, fica ao terceiro, prejudicado
com a sentença favorável à mulher, o direito regressivo contra o marido ou
seus herdeiros.
Art. 251. [...]
Art. 252. A falta não suprida pelo juiz, de autorização do marido, quando
necessária (art. 242), invalidará o ato da mulher; podendo esta nulidade ser
alegada pelo outro cônjuge, até 2 (dois) anos depois de terminada a
sociedade conjugal.
Parágrafo único. A ratificação do marido, provada por instrumento público
ou particular autenticado, revalida o ato.
Art. 253. Os atos da mulher autorizados pelo marido obrigam todos os
bens do casal, se o regime matrimonial for o da comunhão, e somente os
particulares dela, se outro for o regime e o marido não assumir
conjuntamente a responsabilidade do ato.
Art. 254. Qualquer que seja o regime do casamento, os bens de ambos os
cônjuges ficam obrigados igualmente pelos atos que a mulher praticar na
conformidade do art. 247.
Art. 255. A anulação dos atos de um cônjuge, por falta da outorga
indispensável do outro, importa ficar o primeiro obrigado pela importância da
vantagem que do ato anulado lhe haja advindo, a ele, ao consorte ou ao
casal.
Parágrafo único. Quando o cônjuge responsável pelo ato anulado não tiver
bens particulares, que bastem, o dano aos terceiros de boa-fé se comporá
pelos bens comuns, na razão do proveito que lucrar o casal. (grifos nossos)
48

É relevante neste trecho da lei o efeito discursivo produzido pelo inciso


IV do artigo 248, em que admite, para o homem, a existência de relação
extraconjugal.
A mulher perdia o “pátrio poder” sobre os filhos do primeiro leito se se
casasse novamente (art. 393). Com o Estatuto da Mulher Casada essa punição foi
abolida. Houve alteração no artigo 393, que passou a ser redigido: “A mãe que
contrai novas núpcias não perde, quanto aos filhos de leito anterior, os direitos ao
pátrio poder, exercendo-os sem qualquer interferência do marido”.
Antes da Lei do Divórcio (Lei n. 6.515/77), ao se casar, a mulher era
obrigada a incluir em seu nome o apelido (nome de família) do marido, tradição
herdada do direito romano. A observância dessa tradição/obrigação passou a ser
facultativa, a mulher passou a poder não incluir o nome do marido com o casamento.
Ainda, com a Lei do Divórcio, a mulher separada perderia o nome de casada se
fosse vencida (culpada) pela separação:

Art. 17 - Vencida na ação de separação judicial (art. 5º “caput”), voltará a


mulher a usar o nome de solteira.
Art. 18 - Vencedora na ação de separação judicial (art. 5º “caput”), poderá a
mulher renunciar, a qualquer momento, o direito de usar o nome do marido.
Art. 240. A mulher, com o casamento, assume a condição de
companheira, consorte e colaboradora do marido nos encargos de
família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta.
Parágrafo único. A mulher poderá acrescer aos seus os apelidos do
marido.
Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais,
exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou
impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com
exclusividade.
Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio
poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de
recorrer ao juiz para solução da divergência.

Mais uma vez, repetem-se neste trecho da Lei do Divórcio, considerada


um grande avanço para a época (1977), os pressupostos de submissão da mulher
ao homem. O emprego do adjetivo “pátrio” (poder), para referir o poder do casal
sobre os filhos, é revestido do sentido de dominação secular do homem sobre a
mulher; assim, também se ratifica no emprego dos verbos “exercer” (o marido o
pátrio poder) e “prevalecer” (a decisão do pai/marido).
49

O Código Eleitoral de 1932 (Decreto 21.076, de 24 de fevereiro de


1932) garantiu às mulheres a condição de eleitora até então inexistente. Antes do
Código Eleitoral as eleições seguiam os ditames da Constituição Federal e leis
esparsas. Com esse Código, as eleições e as normas que as disciplinavam
passaram a estar inseridas em uma única lei. As mulheres passaram a poder votar
(capacidade eleitoral ativa) e serem votadas (capacidade eleitoral passiva): “Art. 2.º
É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste
Código”.
Com o advento da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, conhecida
como Novo Código Civil, por ab rogar7 o Código Civil anterior (Lei n. 3.071/1916) e
demais dispositivos, está garantida a igualdade entre homem e mulher no que se
refere aos direitos e obrigações.
Logo no art. 1.º houve a substituição da palavra HOMEM para
PESSOA. “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.8
Na família há uma equivalência dos papéis e poderes:

Art. 1.511 – O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base


na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
Art. 1565 – Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a
condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da
família.
§ 1.º – Qualquer dos nubentes, querendo, poderá acrescentar ao seu o
sobrenome do outro.
Art. 1.567 – A direção da sociedade conjugal será exercida em
colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e
dos filhos.
Parágrafo único – Havendo divergência, qualquer dos cônjuges poderá
recorrer ao juiz, que decidirá tendo em consideração aqueles interesses.
Art. 1.568 – Os cônjuges são obrigados a concorrer na proporção de seus
bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família e educação
dos filhos, qualquer que seja o regime patrimonial.
Art. 1.569 – O domicílio do casal será escolhido por ambos os cônjuges,
mas um e outro podem ausentar-se do domicílio conjugal para atender a
encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses
particulares relevantes.
Art. 1.570 – Se qualquer dos cônjuges estiver em lugar remoto ou não
sabido, encarcerado por mais de cento e oitenta dias, interditado
judicialmente ou privado episodicamente, de consciência, em virtude de
enfermidade ou de acidente, o outro exercerá com exclusividade a
direção da família, cabendo-lhe a administração dos bens.

7
Termo jurídico que significa que uma lei foi totalmente modificada, extinta por outra e, em razão
disso, deixa de ter vigência e eficácia.
8
BRASIL. Código Civil comentado. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009.
50

Art. 1.572 – Qualquer dos cônjuges poderá propor ação de separação


judicial imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos
deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum. (grifos
nossos).

Como podemos notar, somente com o advento do Novo Código


Civil (2002) é que, de fato, discursivamente produz-se um efeito de igualdade
entre homem e mulher na sociedade conjugal: a “colaboração” que antes era
devida pela mulher ao marido, agora é integrante da relação conjugal, é
recíproca; o poder de decidir e conduzir a família também é mútuo, assim como a
decisão de separação.
A expressão “pátrio poder” é substituída por “poder familiar”,
substituindo o patriarcalismo (poder do pai) existente por igualdade de condições
entre os pais (poder de ambos).

Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto


menores.
Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder
familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o
exercerá com exclusividade.
Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder
familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do
desacordo.
Art. 1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união
estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao
direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os
segundos.
Art. 1.633. O filho, não reconhecido pelo pai, fica sob poder familiar
exclusivo da mãe; se a mãe não for conhecida ou capaz de exercê-lo,
dar-se-á tutor ao menor.
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o
outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o
poder familiar;
V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e
assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-
lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios
de sua idade e condição.
Art. 1.636. O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece
união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior,
os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência
do novo cônjuge ou companheiro.
Parágrafo único. Igual preceito ao estabelecido neste artigo aplica-se ao
pai ou à mãe solteiros que casarem ou estabelecerem união estável.
Art. 1.643. Podem os cônjuges, independentemente de autorização
51

um do outro:
I - comprar, ainda a crédito, as coisas necessárias à economia
doméstica;
II - obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas
possa exigir.
Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges
pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação
absoluta:
I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;
II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;
III - prestar fiança ou aval;
IV - fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos
que possam integrar futura meação. (grifos nossos)

Também neste trecho da lei podemos observar que o efeito de


igualdade, de parceria entre homem e mulher, produz-se pela
retomada/retificação dos termos empregados em leis anteriores: “podem os
cônjuges, independentemente de autorização um do outro”; “nenhum dos
cônjuges pode, sem a autorização do outro”. A autoridade sobre o outro, como
podemos notar, foi dissolvida no Novo Código Civil (2002).
As conquistas referentes aos direitos da mulher, notadamente no
que se refere à igualdade, foram consagradas gradativamente também na
Constituição Federal (Lei Máxima do País).
Por Constituição, entende-se, em sentido amplo,

o ato de constituir, de estabelecer, de firmar, ou ainda, o modo pelo qual


se constitui uma coisa, um ser vivo, um grupo de pessoas, organização,
formação. Juridicamente, porém, deve ser entendida como a lei
fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à
estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de
governo e aquisição do poder de governar, distribuição de
competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos (MORAES,
1999, p. 34).

Destacamos a seguir as Constituições brasileiras e os artigos que


garantiam o direito à igualdade. Daremos ênfase à Constituição de 1988 por ser
considerada uma Constituição Cidadã e um marco jurídico da “institucionalização
dos direitos humanos no Brasil” (PIOVESAN, 1997, p. 30).

Art. 179, XII: A lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue o
recompensará em proporção dos merecimentos de cada um (BRASIL,
Constituição de 1824).

Art. 72, § 2.º - Todos são iguais perante a lei. A República não admite
privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as
52

ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias,


bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho (BRASIL, Constituição
de 1891).

Art. 113, § 1.º - Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios,
nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões
próprias ou do país, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias
políticas (BRASIL, Constituição 1934).

Art. 122, § 1.º - Todos são iguais perante a lei (BRASIL, Constituição de
1934).

Art. 141, § 1.º - Todos são iguais perante a lei (BRASIL, Constituição de
1946).

Art. 150, § 1.º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo,
raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de
raça será punido pela lei (BRASIL, Constituição de 1967).

Art. 153, § 1.º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo,
raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. Será punido pela
lei o preconceito de raça (BRASIL, Emenda Constitucional nº 1, de
1969).

Art. 5.º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição (BRASIL, Constituição de 1988).

Nesta Constituição, como forma de garantir ou de nortear os rumos


das leis inferiores, foram inseridos no art. 3.º os objetivos fundamentais da
República, no qual a igualdade entre homem e mulher é um bem social, já que o
Brasil é uma sociedade que preza a liberdade, a justiça e a solidariedade.

Art. 3.º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do


Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Dentro deste contexto constitucional percebe-se que antes da


Constituição de 1934 a igualdade dava-se de forma genérica, uma vez que não
deixava expressa a situação do sexo. Na de 1934, ficam evidentes a igualdade e
a proibição de discriminação. Nas de 1937 e de 1946, voltou-se a utilizar a
igualdade geral sem mencionar a igualdade em decorrência do sexo. A partir da
53

Constituição de 1967, a igualdade jurídica entre homem e mulher passou a estar


consagrada de forma expressa, evidente e clara nos textos constitucionais. Na
Constituição de 1988, essa garantia não ficou limitada ao art. 5.º, mas também
em outros artigos, como por exemplo:

Art. 7.º, XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do


salário, com a duração de cento e vinte dias;
Art. 183 - Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e
cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á
o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou
rural.
§ 1.º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao
homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
Art. 189 - Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma
agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso,
inegociáveis pelo prazo de dez anos.
Parágrafo único. O título de domínio e a concessão de uso serão
conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do
estado civil, nos termos e condições previstos em lei.
Art. 201, V - pensão por morte de segurado, homem ou mulher, ao
cônjuge ou companheiro e dependentes, obedecido o disposto no § 5.º
e no art. 202.
Art. 226, § 5.º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal
são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

2.3 MODIFICAÇÕES DAS CONDIÇÕES DE PRODUÇÕES DISCURSIVAS COM


A VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Com a vigência da Constituição Federal do Brasil de 1988,


considerada a “constituição cidadã”, houve modificações nas condições de
produção dos discursos legislativo-jurídicos antes vigentes em nossa sociedade,
especialmente no que se toca à igualdade entre homens e mulheres e à
constituição das famílias. O “patriarcalismo”, no plano legislativo-jurídico, deixa
de existir. As várias formas de constituição de “família” passam a ser
reconhecidas. O discurso “constitucional” vem ao encontro das mudanças
sociais.
As famílias naturais ou de fato (união estável) passaram a ter
previsão legal e, diante desse tratamento constitucional, os integrantes de união
54

devem reciprocamente manter respeito e fidelidade, prover assistência moral e


material e ambos são responsáveis pela guarda e sustento dos filhos comuns.
Os bens adquiridos na constância da união são considerados de
ambos e como fruto do trabalho comum, devendo ser partilhados em caso de
dissolução da sociedade, exceto se existir contrato escrito. A existência de filhos
deixa de ser requisito para reconhecimento da união estável, bem como a
finalidade de procriação no casamento e ou união estável. O matrimônio continua
tendo preferência em nosso ordenamento jurídico, já que a lei deve facilitar a
conversão da união estável em casamento.
Não se concebem, atualmente, no Direito, inclusive por ser uma
expressão da evolução histórico-social, conceitos antigos sobre a constituição da
família, pois o Direito, na busca pelo bem-estar social, deve tutelar a vontade da
sociedade. A própria Constituição, ao dispor que deverá ser considerada como
entidade familiar a união estável entre homem e mulher, sem aludir às
expressões “concubinos” ou “concubinato”, buscou afastar qualquer
consideração contrária no tocante àqueles que mantenham vida em comum e
contínua, sem que casados sejam, indicando, ao contrário, o respeito que
merecem, tanto sob o aspecto legal como sob o aspecto social, mesmo porque a
terminologia, antes pejorativa, deixa de sê-lo por estar admitida no âmbito social.
A mudança ocorrida é tamanha que se pode afirmar não ser fácil
assimilá-la em razão das condicionantes existentes por séculos de cultivo da
hipocrisia e pensamentos diversos no Direito de Família. Trata-se de um poder
da tradição que, segundo Habermas (1987), há de sofrer o impacto da ideologia
e da psicanálise. Afinal, "a família juntamente com a propriedade e o contrato são
os pilares do direito liberal ocidental" (JEAN CARBONNIER, 1974 apud
HABERMAS, 1987).
Com o advento da Lei n. 10.406/2002 (Código Civil), a união
estável, que estava previamente prevista na Constituição Federal (§ 3.º do art.
226), passou a estar devidamente regulamentada no que se refere aos direitos e
obrigações dos conviventes, estando revogadas as leis anteriores (n. 8.671, de
21 de dezembro de 1994, e n. 9.278, de maio de 1996). A referida lei, já
contemplando alguns dos anseios da sociedade e adequando-se à nova ordem
55

social e constitucional, prevê a igualdade entre os cônjuges; o divórcio como


meio de dissolução da sociedade conjugal, o planejamento familiar exclusivo do
casal, a impossibilidade de discriminação entre os filhos. O homem deixa de
exercer a chefia conjugal e a mulher passa a exercer essa função conjuntamente
com ele; há um afastamento do “patriarcalismo”. Ambos podem se ausentar do
domicílio conjugal para exercerem suas profissões sem caracterizar abandono do
lar; o poder familiar também é exercido por ambos os pais.
Em nosso ordenamento jurídico não há limitação ou controle de
fecundidade (quantidade de filhos por família), porém há previsão constitucional
quanto ao Planejamento Familiar, o qual deve ser orientado pelos princípios da
dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. A família goza de
proteção do Estado por ser a base da sociedade.
Assim está consagrado em nossa Constituição Federal no art. 226 e
no § 7.º:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do


Estado.
§ 7.º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do
casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e
científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma
coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Sabemos que, no começo do século XIX, as famílias brasileiras


eram numerosas, mas com as conquistas e independência das mulheres os
integrantes da família foram-se reduzindo. As mulheres começaram a deixar de
ver o sexo como meio de procriação e passaram a considerá-lo como forma de
prazer, uma vez que os métodos anticoncepcionais deram-lhes segurança,
liberdade e, conscientemente, oportunidade para integrar o mercado de trabalho.
A maternidade deixou de ser prioridade, dando lugar às realizações profissionais
e pessoais. Atualmente é comum famílias sem filhos ou com um ou dois apenas.
Diante disso, constatamos que as mudanças ocorridas nas
legislações são decorrentes de mudanças sócio-históricas que influenciaram na
produção de cada texto/discurso. Percebemos o interdiscurso, a “representação
do outro, da historicidade”, como diz Orlandi (2007, p. 80), já que as
modificações tiveram respaldo em discursos anteriores, em já-ditos decorrentes
56

de formações discursivas e ideológicas contrárias.


Essas modificações sócio-históricas, somadas ao reconhecimento
de que a mulher possui, atualmente, os mesmos direitos dos homens, garantidos
por uma igualdade jurídica, permitiu que a voz de uma mulher pudesse modificar
ainda mais os direitos das mulheres no que se refere à violência doméstica e
familiar, culminando com o surgimento da Lei n. 11.340/2006, conhecida como
“Lei Maria da Penha”.
A origem da Lei n. 11.340/2006, remonta ao dia 29 de maio de
1983, quando na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará, a farmacêutica Maria da
Penha Maia Fernandes, enquanto dormia, foi atingida por tiro de arma de fogo
disparado por seu marido, Marco Antônio Heredia Viveiros, um economista
colombiano naturalizado brasileiro. Em razão das lesões sofridas na coluna a
mulher ficou paraplégica. Apurou-se que essa agressão ocorreu-se de forma
premeditada, pois o marido/agressor, dias antes, tentou convencer a
mulher/vítima a contratar um seguro de vida tendo-o como beneficiário e a
assinar em branco o documento de transferência da titularidade do seu veículo.
Dias após essa agressão, a mulher/vítima sofreu uma descarga elétrica quando
se banhava, quando, então, passou a entender, por que o marido passou a tomar
banho no banheiro das filhas.
O marido/agressor foi processado por tentativa de homicídio e
condenado à pena de 10 (dez) anos de reclusão. Em razão de recursos somente
no ano de 2002, praticamente após 19 (dezenove) anos da data da agressão, foi
preso. Esses fatos chegaram ao conhecimento da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos através da própria vítima, do Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL) e pelo Comitê Latino-Amerciano e do Caribe para a Defesa
dos Direitos da Mulher (CLADEM).
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, além de tornar
pública a violência praticada contra a mulher – Maria da Penha –, recomendou a
adoção de políticas públicas específicas para prevenir, punir e erradicar a
violência contra as mulheres, e condenou o Brasil ao pagamento de indenização
de 20 mil dólares em favor da vítima como reparação pelo dano sofrido,
desproporção entre a violência suportada pela vítima e a pena aplicada ao
57

agressor e a ineficácia do sistema legal no caso concreto. A vítima, em fevereiro


de 2005, recebeu do Senado Federal o prêmio Mulher Cidadã Bertha Lutz,
atribuído às mulheres que se destacaram na busca dos direitos das mulheres.
Atualmente, a Sra. Maria da Penha montou uma organização,
denominada Instituto Maria da Penha, estabelecida em Fortaleza e Recife, tendo
como finalidade: “capacitar as comunidades sobre a Lei Maria da Penha”...,
“esclarecer todas as mulheres sobre a abrangência dessa conquista” e
“monitorar o cumprimento da lei pelo país”.9

9
Entrevista concedida pela Sra. Maria da Penha à revista VERO, ano 11, número 129, setembro de
2010, p. 16-20.
58

3. “LEI MARIA DA PENHA”: UM DISCURSO MARCADO POR CONTRADIÇÕES E


IDEOLOGIAS

Após verificarmos as condições discursivas legislativo-jurídicas, as


modificações gradativas referentes às “conquistas” dos direitos das mulheres ante a
“perda” dos direitos pelos homens, as contradições existentes entre os discursos
dominantes (patriarcalismo) e os dominados (igualdade), neste capítulo,
analisaremos a Lei n. 11.340/2006 (ANEXO A), considerando as propriedades do
discurso e seu funcionamento. As etapas de análise permitem-nos fazer uma
trajetória em que nos apropriamos do corpus “Lei Maria da Penha” e buscaremos
atravessar o texto para alcançar o discurso. Orlandi (2007, p. 65-68) propõe as
seguintes etapas de análise, que tentaremos seguir:

1.ª – Superfície Linguística (texto) – O como se diz? A quem diz? Em que


circunstâncias? Em que o sujeito se marca no que diz?
2.ª – Objeto do discurso – discurso – formação discursiva – “impressão” da
realidade do pensamento.
3.ª – Processo discursivo – formação ideológica – constituição dos sentidos
Na primeira etapa, com o texto, busca-se a discursividade, construindo um
objeto discursivo, considerando o esquecimento número 2. Na segunda
etapa, busca-se relacionar as formações discursivas distintas através do
processo de significação com as formações ideológicas. Na terceira etapa,
busca-se deslocar o sujeito dos efeitos da linguagem e da ideologia.

Dentro das classificações dos gêneros, a “Lei Maria da Penha”


enquadra-se na classificação de “gênero prescritivo”, pois trata de ordenar princípios
e normas a serem seguidas pelos cidadãos brasileiros e de propor sanções para os
casos de descumprimento. Produz, portanto, efeito coercitivo. A lei está marcada por
contradições e ideologias que indicam as formações discursivas que permeiam o
discurso. Ao ser aceita e recusada por muitos ela se torna relevante para a análise e
pesquisa.
59

3.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÊNERO PRESCRITIVO

Inicialmente, entendemos como relevante para a análise, apresentar,


ainda que de forma resumida, por ser o processo legislativo muito complexo,
conceitos e noções gerais sobre lei, hierarquia, espécies, iniciativas, formas de
controle, inclusive para tipificá-la, dentro dos gêneros do discurso, como sendo um
gênero prescritivo. Ressaltamos que, segundo Maldidier (2003, p. 48), a expressão
“vontade do povo” faz parte de questões obsidiantes que estimularam o pensamento
de Michel Pêcheux, “uma questão que conjuga nele o amor à língua e à política”.
A noção de gênero tem sua origem na antiguidade, na Grécia pré-
arcaica: o fazer dos poetas. Na Grécia clássica e seu desenvolvimento em Roma,
com Cícero, sua finalidade era gerir a vida social e comercial. A fala pública era um
instrumento de decisão e persuasão jurídica e política. Na tradição literária, entende-
se que os gêneros podem classificar os diversos tipos de textos que pertencem à
prosa ou à poesia, embora essa classificação não parta de critérios de uma mesma
natureza. Define-se gênero de discurso como “um meio para o indivíduo localizar-se
no conjunto das produções textuais”; contudo, não se pode classificar os gêneros de
forma rígida pelo fato de eles se adaptarem à evolução dos relacionamentos
sociocomunicativos, portadores de variadas indexações sociais10.
Para muitos, “gênero” e “tipo de discurso” são sinônimos, mas para
Maingueneau (2005, p. 61) a “tendência é a de distingui-los. Os gêneros de discurso
pertencem a diversos tipos de discurso associados aos vastos setores de atividade
social”.
Os textos pertencem a uma categoria de discurso/gênero cujos critérios
para denominação são heterogêneos que variam em função da destinação, do uso
que dela se faz. Segundo Maingueneau (2005, p. 59-63), essas categorias
“correspondem às necessidades da vida cotidiana e o analista do discurso não pode
ignorá-las”, embora o “ideal seria poder apoiar-se também sobre tipologias

10
CHARADEAU, P. ; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso, 2008, p. 249.
60

propriamente discursivas”. Sendo assim, podemos classificar a “lei” considerando a


classificação da tipologia comunicacional (indica aquilo que se faz com o enunciado,
qual a sua orientação comunicacional) como pertencente ao gênero do discurso
prescritivo e, considerando a função da linguagem (função predominante do
discurso), a lei tem uma função conativa, já que “o locutor busca agir sobre o outro”.
Considerando, finalmente, o lugar institucional, a lei, sendo uma norma, regra,
integra uma lista dos gêneros de discurso escrito e oral praticados pelo Poder
Legislativo, como, por exemplo: deliberações, debates, sessões, votações etc.
Guimarães (2009, p. 26) classifica as leis, estatutos, contratos e as
certidões como textos normativos.
O conhecimento dos gêneros pela coletividade permite a comunicação
entre as pessoas com mais facilidade (polidez), possibilitando a diminuição do mal
entendido, quando são respeitadas as normas do gênero. Os participantes do
discurso (enunciador e enunciatário) ao identificarem o “gênero” passam a respeitar
“as regras do jogo”, um “saber mutuamente conhecido”, ou seja, no caso da lei, o
cumprimento e a sua observância é um dever de todos.
Para Discini (2007, p. 34), no gênero há coerções que delimitam o
dizer. Os gêneros “são formas relativamente estáveis de enunciados; estáveis tanto
em relação ao conteúdo temático-figurativo, quanto em relação à estrutura textual” e
as suas características textuais comuns, embora “heterogêneas”, estão dispostas na
cultura, ou seja, nas regras genéricas.
O que se entende por lei? De acordo com o dicionário eletrônico
Houaiss (2003), é uma “regra, prescrição escrita que emana da autoridade soberana
de uma dada sociedade e impõe a todos os indivíduos a obrigação de submeter-se a
ela sob pena de sanções”, logo, ninguém pode ignorar ou escusar-se ao
cumprimento de uma lei válida sob pena de responder e sofrer as consequências da
inobservância.
O Estado, no desempenho de sua função jurídica, regula as relações
intersubjetivas através da legislação e jurisdição. Ao nosso estudo, interessa a
legislação, já que a jurisdição está ligada à atividade jurídica, aplicação da norma
para resolução do conflito entre pessoas. Tem a função de assegurar a prevalência
do direito positivo do país. Através da legislação estabelecem-se normas, de acordo
com a consciência dominante, que devem reger as diversas relações, definindo o
61

que é lícito ou ilícito, direitos, poderes, faculdades, obrigação. Essas normas,


segundo Cintra, Grinover e Dinamarco (1999, p. 38-40) possuem caráter abstrato e
genérico, sem destinação específica quanto à pessoa ou à situação concreta, são
“tipos ou modelos de conduta (desejada ou reprovada) acompanhados
ordinariamente dos efeitos que seguirão à ocorrência de fatos que se adaptem às
previsões”.
Na “Lei Maria da Penha” encontramos normas de Direito Material
(disciplina as relações jurídicas referentes a bens e utilidade da vida) e de Direito
Processual (complexo de normas e princípios que regem o exercício do direito com a
conjugação da jurisdição pelo Estado-Juiz, da ação/demandante e da
defesa/demandado).
A expressão processo legislativo, segundo Moraes (1999, p. 477),
possui duplo sentido: 1) jurídico – “conjunto coordenado de disposições que
disciplinam o procedimento a ser obedecido pelos órgãos competentes na produção
das leis e atos normativos que derivam diretamente da própria constituição”; 2)
sociológico – “conjunto de fatores reais que impulsionam e direcionam os
legisladores a exercitarem suas tarefas”. Para Lenza (2005, p. 258), trata-se de
“regras procedimentais, constitucionalmente previstas, para a elaboração das
espécies normativas, regras estas a serem criteriosamente observadas pelos
“atores” envolvidos no processo”. A importância de observar as regras do processo
legislativo é a de fazer com que a lei seja reconhecida como constitucional e tenha
validade e eficácia jurídica, já que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer
senão em virtude de lei ou espécie normativa elaborada pelo Poder competente e de
acordo com o processo legislativo constitucional.
Cada espécie normativa tem uma competência própria, pois uma lei
não pode invadir a seara alheia, sob pena de invasão de competência, fenômeno
esse que, se ocorrer, cria um vício de forma que conduz à inconstitucionalidade.
Todo o processo legislativo está previsto na Constituição Federal, a
qual prevê, em seu artigo 59 e incisos, as seguintes espécies:

Art. 59
I – emendas à Constituição
II – leis complementares.
III – leis ordinárias.
IV – leis delegadas.
62

V – medidas provisórias.
VI – decretos legislativos.
VII – resoluções.
Parágrafo único – Lei complementar disporá sobre elaboração, redação e
consolidação das leis.

As matérias, as iniciativas, as vedações, enfim, todo o processo


legislativo, de forma geral, está previsto na Constituição Federal nos arts. 59 a 69.
Moraes (1999, p. 480) apresenta três espécies de processos
legislativos: o comum, o sumário e os especiais. O ordinário elabora as leis
ordinárias; o sumário difere do ordinário, apenas no que se refere ao prazo para
deliberação pelo Congresso Nacional sobre determinados assuntos; os especiais
referem-se à elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis
delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos, resoluções e leis financeiras
(lei de plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias, leis do orçamento anual e
abertura de créditos adicionais), sendo o processo de elaboração de leis ordinárias o
mais complexo de todos.
Por se tratar de uma dissertação de mestrado em linguística, não
abordaremos todas as espécies legislativas e seus respectivos processos, mas
apenas o da lei ordinária, nosso objeto de análise.
A fase de iniciativa ou introdutória, também chamada da deflagratória,
iniciadora, instauradora, é a faculdade que se atribui a algum legitimado de
apresentar projetos ao Legislativo. Essa iniciativa pode ser geral, concorrente,
privativa, popular, conjunta, parlamentar ou extraparlamentar. A iniciativa geral está
prevista no art. 61 caput da Constituição Federal, no qual se atribui competência
legislativa a qualquer deputado federal ou senador da República, Comissão da
Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, Presidente
da República, Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores, Procuradoria-Geral
da República e cidadãos. Ocorre a iniciativa concorrente quando mais de uma
pessoa ou órgão pode deflagrar o processo legislativo. Na privativa ou reservada ou
exclusiva, algumas matérias legislativas só podem ter o processo legislativo iniciado
por certas e determinadas pessoas. Na iniciativa popular, o processo legislativo tem
a apresentação do projeto de lei ordinária ou complementar na Câmara dos
Deputados e precisa estar subscrito por 1% do eleitorado nacional.
63

A fase constitutiva: trata-se da fase de conjugação de vontades do


Legislativo (deliberação legislativa) e do Executivo (deliberação executiva). Após ser
apresentado o projeto de Lei ao Congresso Nacional, tratando-se de Lei Federal,
sempre haverá a apreciação pelas duas casas: a Casa Iniciadora e a Casa Revisora.
Para que o projeto de lei possa ser apreciado pelo chefe do Executivo, precisa ter
sido aprovado pelas duas casas: Câmara dos Deputados e Senado Federal através
de votação; antes, porém, o projeto é analisado pela Comissão de Constituição e
Justiça e Comissões Temáticas em ambas as casas. Após ter percorrido esses
procedimentos, não existindo qualquer rejeição ou emenda, estando o projeto de lei
aprovado pelo Congresso Nacional (duas casas), é enviado para autógrafo, que é
um instrumento formal que contém o texto final e aprovado pelo Poder Legislativo.
Terminada essa fase de deliberação legislativa, o projeto de Lei é enviado ao Chefe
do Executivo para sanção ou veto. A sanção é a concordância, aquiescência,
aceitação do projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional; o veto, por sua vez, é
a discordância, não aceitação. Sancionado, o projeto de lei passa para a última fase,
da promulgação e publicação.
A fase complementar: nesta fase final do processo legislativo ocorrem
a promulgação e a publicação. A promulgação garante a executoriedade, atesta a
validade do projeto já transformado em lei, enquanto a publicação é a exteriorização
da Lei, é o instrumento que lhe dá notoriedade e fixa o momento em que o seu
cumprimento deverá ser obedecido e cumprido – vacatio legis. Com a publicação da
lei, ninguém mais pode alegar ignorância, trata-se de uma presunção de
conhecimento.
Em resumo, a Lei n. 11.340, do ponto de vista jurídico, é uma Lei
Ordinária, datada de 07 de setembro de 2006, foi aprovada pelas duas casas
legislativas (Câmara dos Deputados e Senado), foi sancionada pelo Chefe do Poder
Executivo e está em vigência, uma vez que não houve qualquer declaração de
inconstitucionalidade (a lei está de acordo com os preceitos da Constituição Federal
do Brasil) e não existe outra lei revogando-a. Na lei há matérias relativas ao direito
processual penal, direito penal e direitos da mulher em geral. Do ponto de vista
linguístico, a lei é classificada como pertencente ao gênero do discurso prescritivo,
escrito, e tem uma função conativa.
64

3.2 FEMININO & MASCULINO OU FEMININO X MASCULINO

A “Lei Maria da Penha” é um discurso de igualdade entre os seres


humanos ou revela uma dualidade, uma disputa? A lei procura nivelar o feminino &
masculino ou ressaltar a existência de rivalidade, uma oposição entre ambos? Quais
as materialidades linguísticas existentes no texto que podem explicar o discurso? O
que é feminismo?
Para responder a essas perguntas, necessariamente, temos que
entender e conceituar “feminismo”, o qual, com toda a sua ideologia, introduziu uma
(re)evolução na relação entre os sexos que não inclui um modelo ideológico
preestabelecido. Collin (2009, p. 61), resgatando os ensinamentos de Simone de
Beauvoir (1970), esclarece que a originalidade está na articulação dos problemas
existentes nas relações entre os sexos e que a estrutura é única, seja ela
sociológica, econômica, psicológica, e que nesta última não há uma realidade
natural, mas uma relação de dominação, “culturalmente construída e, portanto,
passível de ser superada”.
Desta forma, se a dominação existente é ideológica, construída
culturalmente, na “Lei Maria da Penha”, nota-se a presença de uma ideologia
contrária à dominante (machismo, patriarcalismo). A lei prevê mecanismos para
(re)criar uma mulher, um relacionamento entre os sexos, livre de violência, pautado
no amor, respeito e companheirismo para preservar o ambiente familiar.
Três posições teóricas permeiam o feminismo: universalismo,
diferencialismo e pós-modernismo. Segundo o universalismo, todos os seres
humanos são indivíduos iguais, de mesmo valor, independentemente das diferenças
de sexo, raça, cor etc. O que diferencia homem e mulher é, segundo Collin (2009, p.
61), “um efeito das relações de poder” e, portanto, “não há então sexos, mas classes
de sexo” destinadas a desaparecer, permitindo o surgimento uma categoria geral
“ser humano”. Citando ainda Beauvoir (1970), essa teoria sustenta que a razão não
tem um sexo e se tem um corpo, ela não é esse corpo: “ela transcende sua
imanência pela liberdade. Não nascemos mulheres, tornamo-nos mulheres”.
65

Para o diferencialismo existem os dois sexos e a igualdade não é


identidade. A dominação deve desaparecer e surgir um mundo pautado pelas
contribuições de ambos os sexos. Acredita-se que os dois sexos podem constituir
duas formas de organização não mais hierarquizadas, mas iguais e paralelas, dentro
de um mesmo mundo. Existe o “dois” ou mais precisamente, existe um “uno” e o
“não uno”. O pós-modernismo, ou desconstrucionismo, sustenta a dualidade dos
sexos coligada à especificidade de papéis materno e paterno e o sexo feminino tem
um estatuto de desconstrução da modernidade identificada como o “reinado da
virilidade”. O feminismo não é uma marca do sexo feminino, mas uma quebra, uma
ruptura “à lógica binária das oposições”. Pode ser assumido por homens e mulheres,
já que transcende a dualidade do sexo e do gênero. “O sexo identificado social ou
morfologicamente não é determinante”.
A “Lei Maria da Penha” utiliza tanto a palavra Mulher como Gênero.
Gênero e Sexo são sinônimos? Produzem o mesmo efeito de sentido? A resposta é
não. Para Pedro (2005, p. 78), na maioria das línguas os seres animados ou não
têm gênero; no entanto, existem alguns seres vivos que se reproduzem de forma
assexuada e mesmo assim são designados pelo gênero. Os movimentos feministas,
utilizando-se da máxima de que “as palavras na maioria das línguas têm gênero,
mas não têm sexo”, passaram a utilizar Gênero no lugar do Sexo como forma de
cristalizar a ideologia de que as diferenças existentes nos comportamentos dos
homens e das mulheres independiam do “sexo” (biologia), mas do gênero (cultura).
A terminologia “gênero” está diretamente ligada aos movimentos sociais de
mulheres, gays, lésbicas e feministas na busca por direitos iguais. A referida autora
ainda enfatiza que cada sociedade humana usa a diferença sexual como argumento
na constituição dos papéis sociais, que são diferentes de sociedade para sociedade,
desta forma, existe uma separação entre o sexo (biológico) e o temperamento
(cultura). Dentro desse contexto, o sexo deixa de ser o significante sobre o qual se
constrói o significado.
Sexo está ligado à condição biológica existente entre homens e
mulheres. O gênero, por sua vez, é uma construção social, aquisição da
masculinidade e feminilidade. “O gênero cria o sexo” (JUTEAU, 2009, p. 93).
Masculinidade e feminilidade existem e são definidas em suas próprias relações, ou
seja, “são as relações sociais de sexo, marcadas pela dominação masculina, que
66

determinam o que é considerado „normal‟ e em geral interpretado como „natural‟ para


mulheres e homens” (MOLINIER; LANG, 2009, p. 101).
A virilidade, segundo os referidos autores, possui duplo sentido: 1)
atributos sociais atribuídos aos homens e ao masculino: a força, a coragem, a
capacidade de combater, o “direito” a violência e a privilégios associados à
dominação daquelas e daqueles que não são e não podem ser viris: mulheres,
crianças; 2) a forma erétil e penetrante da sexualidade masculina. Nessas duas
acepções, a virilidade é imposta pelos homens como forma de obter status em face
das mulheres, trata-se de “expressão coletiva e individualizada da dominação
masculina”. É considerado como “verdadeiro homem” aquele que se mostra viril e a
ele são atribuídos honra, poder e dominação doméstica e sexual da mulher, os que
não alcançam a “virilidade” sofrem violência dos próprios homens, cita-se como
exemplo a homofobia, que é uma forma de controle exercido pelos homens.
A diferença sexual está ligada à igualdade dos direitos entre os sexos,
igualdade essa que teve início com a Revolução Francesa. Antes disso, não se
questionava a diferença entre os sexos porque entendia-se que a diferença era
decorrência da natureza (biologia), aspecto anatômico e fisiológico e era em
decorrência dessa diferença natural que se dava a inserção na sociedade. Até o final
do século XVIII, reinava a concepção do modelo hierárquico do sexo único. O
discurso da igualdade rompeu como a ideologia até então cristalizada na sociedade.
Como poderia sustentar a igualdade jurídica sem criar um discurso que contrariasse
o discurso da hierarquia até então existente?
O modelo do sexo único, segundo Birman (2001, p. 37), surgiu na
antiguidade. Segundo a referida autora, Galeno foi o responsável por esse
paradigma cujos alicerces foram traçados por Aristóteles. Partindo da teoria de
Galeno (quatro causas: material, formal, eficiente e final), Aristóteles concebeu a
geração como diversamente distribuída entre as figuras do homem e da mulher.
Com efeito, a mulher seria a sede e o vetor da causa material da geração, caberia
ao homem o poder da causa formal. O macho era responsável pela transmissão da
humanidade por ser o portador do “princípio divino”, a forma, essência, a perfeição.
Por sua vez, Galeno, apoiando-se nos trabalhos de Aristóteles, criou a
teoria dos humores, segundo a qual a predominância do humor quente no ato da
geração produziria o homem e a ausência dele, a mulher. Para ele existia uma
67

equivalência entre os aparelhos genitais do homem e da mulher, uma homologia


(sexo único). A diferença existente decorria da presença do humor quente ou não
nos corpos. A ausência do humor quente produziria a invaginação, e sob esse
enfoque haveria a possibilidade de o feminino tornar-se masculino se o humor
quente pudesse dominar o corpo da mulher. Em outras palavras, uma mulher
poderia tornar-se homem, mas o contrário jamais, porque a perfeição era
representada pelo homem. Com o surgimento da teoria natural das diferenças
sexuais, apoiada na ciência, nos séculos XVIII e XIX, a teoria do sexo único deixou
de ser sustentável. Nos séculos XIX e XX, com o avanço da ciência e da genética,
constatou-se a diferença entre os sexos através dos hormônios e dos cromossomos.
Importante destacar que no século atual (XXI), o discurso até então
existente nos séculos XVII e XIX deixou de ser aceito como um discurso igualitário
de direitos dos homens e das mulheres:

A cultura [...] dos séculos XVIII e XIX produziu uma quantidade inédita de
discursos cujo sentido geral era promover uma perfeita adequação entre as
mulheres e o conjunto de atributos, funções, predicados e restrições
denominada feminilidade [...] A feminilidade aparece aqui como conjunto de
atributos próprios a todas as mulheres, em função das particularidades de
seus corpos e de sua capacidade procriadora; partindo daí, atribui-se às
mulheres um pendor definitivo para ocupar um único lugar social – a família
e o espaço doméstico –, a partir do qual se traça um único destino para
todas: a maternidade (KEHL, 1998, p. 58).

Constatamos, então, que há na “Lei Maria da Penha” uma busca pelo


direito à igualdade (masculino & feminino), porém essa busca passa
necessariamente pelo reconhecimento da existência de conflitos (masculino X
feminino), conflitos esses materializados no texto legal e que podem ser analisados
também através das preposições, dos verbos e dos pronomes, além de outros
dispositivos próprios da Análise do Discurso, uma vez que o discurso, como
ressaltado anteriormente por Maldidier (2003, p. 51), é “o todo complexo dominante
das formações discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas e
submetido à lei de desigualdade-contradição-subordinação”.

3.3 MARCAS LINGUÍSTICAS E TEXTUAIS REVELADORAS DO DISCURSO


68

O texto é um objeto de análise provisório, uma vez que, feita a análise,


ele é dispensado, por ser o processo discursivo quem dará a compreensão dos
sentidos. A observância de normas gramaticais interfere na comunicação e na
interpretação. Ao analisarmos na “Lei Maria da Penha” as suas marcas textuais,
certamente o discurso nos será revelado, porque as palavras, embora em si mesmas
não constituam unidades de análise pertinentes, ao serem analisadas revelam o
interesse na “construção de redes fundadas na consideração das dimensões
pragmáticas e sintagmáticas e em uma combinação do aspecto quantitativo com o
aspecto qualitativo” (MAINGUENEAU, 2008, p. 80). Analisaremos então alguns
verbos, preposições e pronomes com a finalidade de, identificada a sua existência
no texto legal, constatar qual o efeito de sentido produzido, inclusive a relação deles
com dispositivos da Análise do Discurso. Semelhante observação é mencionada por
Castilho (2010, p. 136) ao referir-se às categorias cognitivas constitutivas do
discurso. Ele afirma que geralmente nas análises gramaticais, “nos enredamos nos
temas anteriores, sem nos dar conta de que estamos lidando com o resultado de
processos mais amplos, os processos discursivos”.

3.3.1 O emprego das preposições “contra”, “com” e “sem” na “Lei Maria da Penha”

Para Faraco (1990, p. 287-290), preposição é:

palavra invariável que relaciona dois termos. A relação que as preposições


estabelecem entre dois termos é chamada de regência. Portanto, quando
ocorre uma preposição pode-se observar a seguinte sequência: termo
regente é a palavra ou expressão que comanda, pede, solicita uma outra
que depende dela. Pode-se dizer que é a palavra que governa. Termo
regido é o termo dependente, subordinado ao termo regente. Pode-se dizer
que é o termo governado.

As preposições subdividem-se em essenciais (palavras que atuam


como preposições), acidentais (palavras de classe gramatical diversa, mas que
exercem o papel de preposição) e locuções prepositivas (duas ou mais palavras que
exercem a função de preposição, sendo que a última palavra é uma preposição
69

essencial). Segundo essa classificação, a preposição “contra” é essencial. Nota-se


que no próprio conceito de preposição a “subordinação”, a “dependência” está
presente. Faraco (1990, p. 291) esclarece que “nem sempre é possível determinar
com clareza o tipo de relação que a preposição ou a locução prepositiva
estabelecem com o termo regente e regido”, no entanto, ao mencionar algumas
relações, apresenta a preposição “contra” como sendo “oposição”.
Para Cunha e Cintra (1985, p. 553), a preposição “contra” indica um
movimento, uma “direção contrária” e a “noção de oposição, hostilidade, é um efeito
secundário de sentido decorrente do contexto”.
Logo nos primeiros artigos da Lei encontramos essa marca textual
extremamente significativa para analisar o discurso proferido.

Artigo 1.º - Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica
e familiar contra a mulher, dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de
assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e
familiar (grifos nossos).

A preposição “contra”, segundo o dicionário Eletrônico Houaiss (2003),


possui os seguintes significados: 1- em oposição direta a; em combate a; 2- em
movimento contrário a, hostil e impetuosamente; 3- em direção ou sentido oposto a;
4- de encontro a (ponto de apoio ou de resistência); 5- como defesa ou proteção a;
6- para alívio ou extinção de; 7- de face para; de frente para; 8- tendo como
adversário; 9- em discordância, em desacordo com; em contraposição a.
Não estamos afirmando que os Poderes Legislativo e Executivo ao
elaborar e sancionar a “Lei Maria da Penha” escolheram conscientemente a
preposição “contra” como forma de evidenciar os conflitos existentes entre os
direitos dos seres humanos, mas podemos afirmar que a referida preposição dá
coesão ao texto legal, enfatizando que a mulher não é tratada de forma igualitária.
Logo, se existe uma garantia de que todos “são iguais”, é porque há pessoas
desiguais ou “não iguais”.
Notamos que no contexto da Lei ao se utilizar a preposição “contra” o
sentido é o de demonstrar a existência de subordinação da mulher e de garantir um
ambiente familiar saudável. A violência no ambiente familiar não é praticada pela
mulher, mas contra a mulher. Da mesma forma que a “violência” no texto/discurso
70

nunca está ligada à preposição “com”, que possui o sentido de adição, companhia,
associação, mas à preposição “contra”.
A preposição “contra”, ligando a mulher à violência, produz um efeito
de sentido e de veracidade, de que a mulher está subordinada ao homem. Há uma
“dependência” da mulher em relação ao homem.
Por outro lado, a preposição “com” é utilizada quando a lei trata das
medidas de integração, prevenção e de conjunto articulado de ações da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e quando trata das medidas protetivas
de urgência que obrigam o agressor. Constatamos, portanto, o efeito de sentido
produzido com a preposição “com”, que é o da adição, de comunidade, está
diretamente ligado à soma de esforços na aplicação da lei e na obtenção das suas
finalidades.

o
Art. 8 A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-
governamentais, tendo por diretrizes:
I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da
Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social,
saúde, educação, trabalho e habitação;
II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações
relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes
às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica e
familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem
unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das
medidas adotadas;
VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores
éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a
perspectiva de gênero e de raça ou etnia;
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao
agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas
de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação
o
ao órgão competente, nos termos da Lei n 10.826, de 22 de dezembro de
2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer
meio de comunicação (grifo nosso);

A preposição “sem”, cujo efeito de sentido é o de subtração, de


ausência, também demonstra a inferioridade da mulher, por ela precisar da lei para
“viver sem violência”, ou seja, sem a lei, a mulher vive com violência, e, por essa
razão, a lei precisa existir e ser contra a violência praticada pelo homem.
71

Artigo 2.º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,


orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza
dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe
asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,
preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral,
intelectual e social (grifo nosso).

Nas disposições gerais da lei, notadamente no art. 5.º, inciso I, a


utilização das preposições “com” ou “sem” deixa evidente os efeitos de sentido
produzidos pelo discurso. A lei preserva a vítima (mulher) dos tipos de violência
doméstica praticados ainda que o vínculo existente não seja o familiar:

o
Art. 5. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar
contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;

Essa breve análise das preposições “contra”, “com” e “sem” nos


permite constatar que o discurso está bem marcado do ponto de vista textual e
discursivo, sendo que a discursividade revela as contradições existentes, a intenção
de unir forças no sentido de combater a violência praticada em desfavor da mulher,
que ainda não consegue ter uma vida digna, livre de violência.

3.3.2 O emprego dos pronomes “toda” e “qualquer” na “Lei Maria da Penha”

Esses dois pronomes são classificados como indefinidos. Os pronomes


indefinidos aplicam-se à 3.ª pessoa gramatical “quando considerada de um modo
vago e indeterminado” (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 347). Esses pronomes,
considerando suas propriedades discursivas, “concorrem para que um texto tenha
um caráter de indefinitude, imprecisão” (CASTILHO, 2010, p. 509).
O pronome “toda” seguido de um substantivo indica a totalidade da
parte. O “qualquer”, por vezes, tem sentido pejorativo quando precedido de artigo
72

indefinido. Podem também ser utilizados como forma de antecipação por palavra
gramatical.
Muita atenção nos chamou o pronome “toda” constante no art. 2.º da
“Lei Maria da Penha”, notadamente por ser precedido de um substantivo feminino,
“mulher”. Esse pronome produz uma divisão entre o homem e a mulher e entre as
próprias mulheres. Para que não haja “desigualdade” no texto foram inseridos outros
substantivos, tais como: “classe”, “raça”, “etnia”, “orientação”, “sexual”, “nível
educacional”, “idade”, “religião”. Considerando ainda que a finalidade do pronome
“toda” seguido do substantivo indica a totalidade da parte, podemos concluir que ao
ser utilizado esse pronome há uma marca textual e linguística que revela a
subordinação/dependência da mulher.
O pronome “toda” tem como antônimo a divisão e produz um sentido
de que as mulheres, sem exceção, podem ser vítimas de violência doméstica e
familiar.
Artigo 2.º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,
orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza
dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe
asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,
preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral,
intelectual e social (grifos nossos).

O pronome poderia não ter sido incluído e, nessa hipótese, permitiria o


fenômeno do subentendido, que dependeria do contexto. No entanto, o Legislador
preferiu adotar o dito. Da mesma forma, a lei poderia omitir o substantivo “mulher” e
punir a violência doméstica e familiar, porque está subentendido que é ela quem
sofre esse tipo de violência.
A supressão do substantivo “mulher” no texto legal produziria um efeito
de sentido em direção a outra memória discursiva, podendo inclusive evitar as
inúmeras contradições existentes na lei e não ressaltar a diferença entre homem e
mulher, tal como ocorreu com o Código Civil, no qual o substantivo “homem” foi
substituído por “pessoa”.
No Código Civil (Lei n. 3.071/16) desta forma estava disposto: Art. 2.º
“Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil” (grifo nosso).
No atual Código Civil (Lei n. 10.406/2002) está disposto: Art. 1.º “Toda
pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (grifo nosso).
73

Na “Lei Maria da Penha”, se tivesse sido utilizado o pronome “toda”


seguido do substantivo “pessoa”, a referida lei poderia ser utilizada também em favor
dos homens que são vítimas de violência praticada pelas mulheres; no entanto, essa
não foi a opção do legislador, demonstrando, desta forma, que a lei é destinada às
mulheres e não aos homens.
Além disso, no art. 2.º da “Lei Maria da Penha”, há uma ligação direta
entre “toda mulher”, “pessoa humana” e “sem violência” produzindo o sentido de que
a mulher é “um ser frágil” e parece não ser propriamente reconhecida como “pessoa
humana” por sofrer “violência”, tanto que a lei precisa garantir no art. 3.º que ela
goze dos direitos fundamentais como: à vida, à segurança, à saúde, à alimentação,
à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao
trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e
comunitária. Esse sentido vem demonstrado de forma expressa no art. 6.º da lei no
qual “a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de
violação dos direitos humanos”.
No art. 28 da Lei, também aparece o pronome “toda” seguido do
substantivo “mulher” ao tratar do direito à assistência judiciária gratuita destinada à
mulher que se encontra em situação de violência doméstica e familiar. Esse
direito/assistência é garantido inclusive na fase policial, direito esse não existente
para os homens. Nesse artigo, há menção de que o atendimento à mulher deve ser
específico e humanizado.

É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o


acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária
Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante
atendimento específico e humanizado (grifo nosso).

O pronome “qualquer” aparece no texto legal nos arts. 5.º, 7.º e 22. No
art. 5.º a lei trata das disposições gerais sobre a configuração da violência doméstica
e familiar. No art. 7.º, das formas de violência, e no art. 22, das medidas protetivas.
No art. 5.º a indefinitude refere-se à violência praticada contra a mulher
através de ação ou omissão, ou seja, a violência pode ocorrer por ato omissivo ou
comissivo do agressor. Revela ainda que a relação de afeto não é decorrente do
matrimônio, mas de várias outras possíveis relações, podendo ser uma união
74

estável, concubinato, relacionamento íntimo etc., basta que haja uma relação de
afeto para os efeitos da lei serem alcançados.

Art. 5.º caput – Configura violência doméstica e familiar contra a mulher


qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por
indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços
naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem
de orientação sexual.

Da mesma forma, no art. 7.º, dando inclusive coerência e ratificando o


conteúdo do art. 5.º, as formas de violência também são apresentadas com
variedades. Além de explicitar as formas de violência como sendo física, psicológica,
sexual, patrimonial e moral, a lei abrange ainda outras possíveis formas de violência
não explícitas, mas que são entendidas em razão do pronome indefinido “qualquer”
produzindo o sentido de incompletude, indefinitude, maior abrangência possível na
efetivação da proteção à vitima: a mulher.

Art. 7.º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre
outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause
dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja
a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a
impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de
seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou
75

recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas


necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria.

No art. 22 a lei, ao tratar das medidas protetivas de urgência que


obrigam o agressor, o pronome “qualquer” aparece somente no inciso III, alínea “b”,
ou seja, para proibir condutas do agressor, dentre elas, a forma de comunicação do
agressor para com a ofendida, seus familiares e testemunhas. Embora o uso do
pronome esteja dentro de medidas de urgências que obrigam o agressor, a
indefinitude refere-se a uma ampliação da proibição. O ofendido não poderá ter ou
manter contato por meio de comunicação, ou seja, telefone, internet, mensagens,
carta etc., inclusive pessoalmente.

Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a


mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao
agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas
de urgência, entre outras:
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer
meio de comunicação;

Na “Lei Maria da Penha” o pronome “qualquer” é utilizado com efeito de


indefinitude e não com sentido pejorativo. A lei busca proteger a mulher de várias
formas possíveis, embora o sentido de “desvalor” ou de “submissão” da mulher é
encontrado em outras marcas textuais e discursivas.
Da análise dos pronomes “toda” e “qualquer” extraídos do texto legal
podemos alcançar as formações ideológicas e discursivas deste discurso que visa
garantir um ambiente doméstico e familiar livre de violência praticada pelo agressor
homem em face da vítima mulher. Inegável que existe, podemos dizer, uma luta
entre o homem (agressor) e a mulher (vítima/ofendida).

3.3.3 Os verbos no contexto da “Lei Maria da Penha”

Verbo, segundo Cunha e Cintra (1985, p. 367), é “uma palavra de


forma variável que exprime o que se passa, isto é, um acontecimento representado
76

no tempo”. Os verbos possuem flexões de número (singular e plural), de pessoa


(primeira, segunda e terceira), de modo (indicativo, subjuntivo e imperativo), de
tempo (presente, pretérito e futuro, esses subdivididos no modo indicativo e
subjuntivo) e de voz (ativa, passiva e reflexiva), dentre outras. Nessa análise, não
nos aprofundaremos no estudo e análise de todos os verbos e suas possibilidades,
mas sim, qual o efeito de sentido que o emprego de alguns verbos contidos na “Lei
Maria da Penha” produz.
Através da análise do modo e do tempo verbal podemos identificar a
atitude do enunciador em relação ao fato que enuncia e ao momento de sua
ocorrência.
Os verbos “assegurar” e “resguardar” presentes no art. 3.º da “Lei
Maria da Penha” demonstram que a “mulher” não goza de proteção do próprio poder
estatal, que ela realmente é um ser excluído da sociedade no que se refere aos
direitos inerentes à sua condição “de pessoa humana”. A mulher é negligenciada,
discriminada, explorada, violentada e oprimida, adjetivos que também reforçam a
sua “inferioridade”. Se há uma pessoa “inferior” (mulher), certamente há uma pessoa
que é “superior” (homem) que comete as ações que a inferiorizam. Ademais, se a
Lei precisa “assegurar” é porque há um descrédito quanto à garantia e à
possibilidade de exercício dos direitos da e pela mulher.

o
Art. 3 Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício
efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à
educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao
trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência
familiar e comunitária.
o
§ 1 O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos
humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no
sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.

Da mesma forma, a lei, ao tratar da assistência à mulher em situação


de violência doméstica e familiar, utiliza-se dos verbos “será‟, “determinará”,
“assegurará” e “compreenderá”, no tempo futuro, indicando que o tipo de
“assistência” necessária à mulher vítima de violência familiar ainda não existe de
forma adequada que possa garantir-lhe o exercício desse direito. O tempo verbal é
utilizado como ordem e como afirmações condicionadas, já que se referem “a fatos
de realização provável”, segundo Cunha e Cintra (1985, p. 446-448).
77

o
Art. 9 A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar
será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes
previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de
Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e
políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
o
§ 1 O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em situação
de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do
governo federal, estadual e municipal.
o
§ 2 O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e
familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:
I - acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da
administração direta ou indireta;
II - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do
local de trabalho, por até seis meses.
o
§ 3 A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar
compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento
científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de
emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e
da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos
médicos necessários e cabíveis nos casos de violência sexual (grifo nosso).

O tempo verbal utilizado na lei (futuro), como nos recortes acima


mostrados e nos demais constantes no texto legal, indica como não sendo
verdadeiros ou inexistentes ainda os direitos da mulher vítima de violência e
objetivos da “Lei Maria da Penha”. Para Maingueneau (2005, p. 106), “passado” e
“futuro” são definidos no momento “presente” da enunciação: “é passado aquilo que
é colocado como não sendo mais verdadeiro na situação de enunciação, é futuro o
que é colocado como não sendo verdadeiro ainda”.
Sendo assim, identificando o momento presente da enunciação, na “Lei
Maria da Penha” há verbos no tempo presente e no modo indicativo, demonstrando
ações e estados permanentes ou dogmas. Esse tempo/modo verbal, de acordo com
os ensinamentos de Cunha e Cintra (1985, p. 436-437), é denominado de “presente
do indicativo durativo”. O modo indicativo exprime em geral uma ação ou um estado
considerados na sua realidade ou na sua certeza” em relação ao passado, presente
ou futuro.

Artigo 1.º - Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica
e familiar contra a mulher, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência
e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Artigo 2.º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,
orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza
dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe
asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,
78

preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral,


intelectual e social (grifos nossos).
Art. 5.º, caput – Configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
o
Art. 6 A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das
formas de violação dos direitos humanos.

Na “Lei Maria da Penha”, também encontramos verbos no infinitivo, o


qual é utilizado como expressão de comando. O infinitivo é uma das formas
nominais do verbo. Sinaliza a ideia de ação.
Como expressão de comando:

Lei n.º 11.340 de 07 de agosto de 2006 cria mecanismos para coibir a


o
violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8 do art.
226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código
Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências (grifos nossos).

Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e


familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:
I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato
ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;
II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto
Médico Legal;
III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou
local seguro, quando houver risco de vida;
IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de
seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços
disponíveis.
Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de
imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no
Código de Processo Penal:
I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação
a termo, se apresentada;
II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de
suas circunstâncias;
III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado
ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas
de urgência;
IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e
requisitar outros exames periciais necessários;
V - ouvir o agressor e as testemunhas;
VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha
de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou
registro de outras ocorrências policiais contra ele (grifo nosso).
79

Analisando os verbos entendemos que eles ajudam também a


identificar, dentro das classificações do gênero do discurso, qual é o da “Lei Maria da
Penha”, ou seja, o gênero prescritivo. Os verbos também indicam ordens e ações a
serem cumpridas pelos entes públicos quando se depararem com situação de
violência doméstica e familiar contra a mulher, revelando ainda a omissão por parte
dos Poderes constituídos de nossa sociedade, seja pela ausência de estrutura
adequada, física, pessoal, administrativa, quanto ao reconhecimento efetivo dos
direitos da mulher vitimizada.

3.4 CONTRADIÇÃO: TRAÇO IDENTIFICADOR DO DISCURSO

O termo contradição é imanente à Análise do Discurso pelo fato de


todo discurso possuir um verso e o seu reverso, tal como as duas faces da moeda.
Em todo discurso há um enunciado que remete a um discurso anterior em oposição
ao que se é construído no momento da enunciação. O texto da “Lei Maria da Penha”
não poderia deixar de ser diferente; ele também é marcado pela contradição.
A lei trata do assunto violência doméstica e familiar, no entanto, além
das marcas textuais/linguísticas já analisadas, deixa entrever a contradição em
vários outros aspectos e pontos.
Ao tratar da violência doméstica a lei inclui o “homem” e a “mulher”. A
contradição está lastrada, podendo-se assim dizer, no “machismo” e “feminismo” ou
“masculino” e “feminino” reveladores do discurso e das coerções ideológicas.
No texto, expressamente consta a mulher como sendo: a ofendida, a
vítima da violência doméstica e familiar. Não aparece no texto a palavra “homem”
como sendo o autor da agressão; contudo, o “homem” está subentendido e
identificado na utilização do artigo “o” e no próprio substantivo “agressor”. Na lei
consta “o agressor” e nunca “a agressora” e sempre “a ofendida” e nunca “o
ofendido”. Sabemos que a finalidade gramatical do artigo é ser um marcador
vinculado ao substantivo, podendo esse ser definido (o, a, os, as) ou indefinido (um,
uma, uns, umas). Na Lei, ao utilizar o artigo “o” associado ao substantivo “agressor”,
o referente passa a ser determinado e definido, ou seja, o “homem”. O sujeito
80

“homem” é determinado, não é um homem qualquer, mas o que tenha relação de


afeto com a mulher. O texto utilizou o artigo definido para demonstrar que a lei
aplica-se à sociedade; no entanto, estão sujeitas ao alcance dela pessoas certas e
determinadas, ou seja, o homem agressor e a mulher ofendida que possuem vínculo
afetivo.
Além disso, considerando a finalidade da lei de coibir e proteger a
mulher da violência doméstica e familiar praticada pelo agressor, considerando ainda
as condições de produção discursivas desta lei, na qual a mulher que a batizou com
o seu nome foi vítima de violência doméstica e familiar praticada por seu marido
(homem), fica evidenciado o efeito de sentido produzido pela lei ao utilizar-se da
expressão “o agressor”, notadamente quando está em contradição com “a ofendida”.

o
Art. 5 caput – Configura violência doméstica e familiar contra a mulher
qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de
imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no
Código de Processo Penal:
I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação
a termo, se apresentada;
III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao
juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de
urgência;
IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e
requisitar outros exames periciais necessários;
V - ouvir o agressor e as testemunhas;
VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha
de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou
registro de outras ocorrências policiais contra ele;
o
§ 1 O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade policial e
deverá conter:
I - qualificação da ofendida e do agressor;
III - descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela
ofendida.
o o
§ 2 A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1 o
boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em
posse da ofendida (grifos nossos).

A “Lei Maria da Penha” trata a mulher sempre como ofendida,


agredida, e o homem como agressor e se a palavra, na mesma língua, possui
significado diferente dependendo da posição do sujeito e da sua formação
discursiva, pode-se afirmar que a lei, ao utilizar a palavra “ofendida” e “agressor”
dentro do campo discursivo da violência doméstica, trata os sujeitos de forma
81

dualista, como o bem e o mal. A mulher é boa e o homem é mau! A mulher é vítima
e o homem, agressor. A mulher não se defende e o homem ataca, violenta. Trata-se
de regularidades que geram sentidos de veracidade por estarem atrelados a uma
formação ideológica de uma conjuntura atual. Há uma materialidade linguística e
histórica que não reflete a totalidade da sociedade, mas parte dela. Nem todas as
mulheres são boas, honestas, frágeis; há mulheres fatais, que agridem, que atacam,
que são más, enfim, essas características são de ambos os sexos: mulher e homem;
porém, na lei, há um apagamento dessas características e uma evidente formação
ideológica “feminista”.
A contradição também está marcada, presente, na fixação das medidas
protetivas de urgência que obrigam o agressor (art. 22) e nas medidas protetivas de
urgência à ofendida (art. 23). Nota-se que ao agressor (homem) são apresentadas
somente as sanções, as punições, enquanto que para a mulher (ofendida) somente
as proteções, revelando assim uma dualidade, um antagonismo.
Ademais, podemos entender que a lei cria a figura dos “direitos
humanos das mulheres” como contraponto aos “direitos humanos” já existentes.
Consideramos estes de utilização apenas em favor dos homens, pois se fossem
dedicados também à mulher, não haveria necessidade da lei. Toda e qualquer
violência praticada contra todo e qualquer ser humano é uma violação aos direitos
humanos.

o
Art. 6 A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das
formas de violação dos direitos humanos.
Art.8º
V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da
violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e
à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção
aos direitos humanos das mulheres.
IX – o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para
os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de
raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a
mulher (grifos nossos).

O reconhecimento de todo tipo de união – hetero ou homossexual –


quebra a memória discursiva de que a “família” é constituída pela união de sexos
opostos (homem e mulher), pelo casamento civil com a necessidade de coabitação.
Para a lei basta a convivência das pessoas na unidade doméstica ou que tenha uma
relação de afeto. A união entre mulheres (lésbicas) como forma de constituição de
82

entidade familiar é perfeitamente possível na “Lei Maria da Penha”. Porém, não


poderá a lei ser aplicada em entidade familiar constituída por homens (gays) já que
para a lei somente a mulher é ofendida/vítima e o homem é sempre agressor, exceto
se entendermos que a construção do sexo é uma construção social como pretende
parte da ideologia feminista.
Nesse caso, em tese, poderíamos ter um casal de homens no qual um
teria uma identidade feminina, ou seja, seria considerada “mulher” e, então, poderia
ser agraciado(a) com a “Lei Maria da Penha”. Porém, a lei ainda não tem esse
alcance.

o
Art. 5
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo
independem de orientação sexual (grifos nossos).

A lei também rompe com um ditado popular: “Em briga de marido e


mulher não se mete a colher”. Com esse discurso, a violência contra a mulher passa
a ser um problema social de todos, sem exceção; ao tomarem conhecimento devem
denunciar. A sacralidade, a vida íntima do casal, até então intocável, começa a ser
tocada, invadida e intrometida diante da violência doméstica contra a mulher. Esse
discurso também afasta a voz do homem chefe da família (patriarcalismo): “Da
minha família cuido eu”. Com a lei, o cuidar da mulher e da família cabe também à
sociedade e ao poder público, os quais devem criar condições para assegurar esses
direitos. A lei faculta esse cuidado inclusive às associações com finalidade
específica.

o
Art. 3. Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício
efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à
educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao
trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência
familiar e comunitária.
o
§ 2. Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições
necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.
Art. 37. A defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos
nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente, pelo Ministério
Público e por associação de atuação na área, regularmente constituída
há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil.
Parágrafo único. O requisito da pré-constituição poderá ser dispensado
pelo juiz quando entender que não há outra entidade com
representatividade adequada para o ajuizamento da demanda coletiva.
83

As contradições existentes na “Lei Maria da Penha” também ajudam a


identificar o posicionamento, ou seja, identidade enunciativa da Lei no que se refere
ao homem e à mulher. Entendemos também ser possível identificar duas
polaridades do discurso, ou seja, a identidade X alteridade da mulher. O discurso da
“Lei Maria da Penha”, pode-se dizer, é um discurso também de cidadania por estar
inserido num conflito social; portanto, é revelador da identidade da mulher. Esse
discurso não revela apenas situações frequentes de violência doméstica e familiar,
até então abafada, mas também a desestabilização de padrões comportamentais.
Para Discini (2007, p. 207), a masculinidade se opõe à feminilidade, no entanto,
entre esses “polos há um traço comum, a sexualidade”.

3.5 POSICIONAMENTO E IDENTIDADE ENUNCIATIVA

Ao analisar a “Lei Maria da Penha” nota-se um posicionamento em


favor da mulher frágil e vitimizada, o que já pressupõe um homem agressor (art. 5.º
III). Ao estabelecer as várias formas de violência (art. 7.º) e ações articuladas (art.
8.º) reforça a imagem que o poder estatal possui da mulher, além de romper com
uma prática até então “aceitável” na sociedade. Se há uma pessoa “violentada” é
porque existe outra que a violentou. Ressaltamos que, recentemente, houve
alteração no Código Penal no art. 213 que trata do estupro. Anteriormente, somente
a mulher podia ser estuprada, já que o tipo penal exigia a cópula, a introdução do
pênis do homem na vagina da mulher. Além disso, na doutrina era aceitável e
reconhecido o direito do marido “estuprar” (praticar uma relação sexual não
desejada) a esposa sob o fundamento de que ele estaria praticando um “exercício
regular de um direito”. A mulher não tinha o direito de recusar o ato sexual.
Ao adotar um posicionamento em favor da mulher, o discurso remete
a outros dizeres, a um já-dito preexistente, vinculado a uma formação ideológica e
discursiva diferente da dominante, na qual o homem tudo pode e a mulher pouco
pode. A lei, ao exemplificar as várias formas de violência praticada contra a mulher,
também constrói a identidade da mulher (vítima) e do homem (agressor). A mulher é
84

vítima de vários tipos de violência, desde violência física à moral, passando pela
psicológica, sexual e patrimonial.
Por que a lei utiliza a palavra “violência” contra a mulher e não
“agressão”? Definir e distinguir esses conceitos não é tarefa fácil; para muitos,
agressão é ato instintivo, enquanto a violência é um ato cultural, ou seja, uma
agressão com a finalidade de destruir o outro. Adotamos o conceito de violência
apresentado por Andrade (2007, p. 6) como sendo

toda forma de investida, ataque, assalto, provocação, hostilidade, ofensa,


acometimento, abandono, exploração, golpe, insulto, gesto, assédio,
conduta com intuito destrutivo (e muitas condutas sem este intuito, como as
necessárias à constituição do sujeito, sendo exemplos os inúmeros
interditos paternos necessários a esta constituição) capaz de causar
sofrimento, dor, constrangimento ou sensação desagradável.

Este conceito, embora pareça amplo, não consegue abarcar todas as


possíveis formas de agressão; portanto, com a finalidade de conceituar
adequadamente o conceito de violência, distinguindo-o do de agressão, Costa
(1986, p. 39) assim teoriza:

Violência é o emprego desejado da agressividade, com fins destrutivos.


Esse desejo pode ser voluntário, deliberado, racional e consciente, ou pode
ser inconsciente, involuntário e irracional. A existência destes predicados
não altera a qualidade especificamente humana da violência, pois o animal
não deseja, o animal necessita. E é porque o animal não deseja que seu
objeto é fixo, biologicamente predeterminado, assim como é a presa para a
fera. Nada disso ocorre na violência do homem. O objeto de sua
agressividade não só é arbitrário como pode ser deslocado. Este
pressuposto é indissociável da noção de irracionalidade e corrobora a
presença do desejo em qualquer atividade humana, inclusive a violência. É
porque o sujeito violentado (ou o observador externo à situação) percebe no
sujeito violentador o desejo de destruição (desejo de morte, desejo de fazer
sofrer) que a ação agressiva ganha o significado de ação violenta.

Sabemos que a espécie humana organizou-se socialmente através do


domínio dos “machos” incumbidos da defesa do grupo por serem possuidores de
potencial agressivo e que a agressão contra seres da mesma espécie não é uma
exclusividade do homem. A origem da violência, segundo Andrade (2007, p. XIV),
está agregada a fatores como crenças, bandeiras, hinos, ideologias, mas o
comportamento agressivo “encontra suas origens no passado, ou na própria
condição animal [...] os machos sempre lutaram para ser o número um. E agora, as
85

fêmeas humanas já começaram a fazer o mesmo”, é uma forma de buscar a


igualdade.
A violência pode ser manifestada por diversas formas e ser praticada
de forma institucionalizada ou interpessoal. A violência institucional é a praticada
pelo Estado, promotor de políticas públicas para o bem comum, o qual dela se utiliza
para a consecução dos seus fins, é uma violência legítima. A interpessoal é a
praticada entre as pessoas, não institucional. Na “Lei Maria da Penha”, encontramos
no artigo 7.º as diversas formas de violência doméstica e familiar contra a mulher,
classificação essa que nos permite criar a identidade da mulher. A escolha lexical do
substantivo “violência” revela que o Poder Legislativo conceitua a violência como um
ato agressivo com finalidade destrutiva. O sujeito agressor (homem) ao violentar,
pratica atos agressivos, com a finalidade de destruir a vítima (mulher). Essa
destruição é física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

o
Art. 7 São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre
outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe
cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e
perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça,
constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância
constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja
a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a
comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a
impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao
matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de
seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou
recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas
necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria.

Temos então um discurso dotado de Poder que reconhece a


capacidade destrutiva (violência) de um sujeito (agressor) para com outro sujeito
(mulher), porém, a forma encontrada para coibir a violência praticada é através
86

também de uma violência institucional, já que o sujeito agressor incorrerá nas


medidas protetivas de urgência que o obrigam descritas no art. 22.
A “Lei Maria da Penha” é atravessada por formações discursivas
diversas, pois, ao mesmo tempo em que no art. 22 apresenta medidas protetivas
obrigando o agressor, no art. 45, ao tratar da alteração do art.152 da Lei de
Execuções Penais (ou seja, do cumprimento das penas), faculta ao juiz a
possibilidade de determinar ao agressor o comparecimento a programas de
recuperação e reeducação. O “direito” de violentar, caracterizador da identidade do
homem, do macho, passa a ser entendido como problema que necessita de
tratamento de reeducação e recuperação. Esse enunciado confirma também a
escolha lexical do substantivo “violência” como sendo um ato cultural, passível,
portanto, de ser controlado e regrado.

Art. 45. Parágrafo único - Nos casos de violência doméstica contra a


mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor
a programas de recuperação e reeducação.

Há uma dialética no discurso contra a violência doméstica e familiar:


nos primórdios o discurso estava alicerçado no egoísmo, na superioridade; no
entanto, com a civilização, o discurso está calcado no altruísmo, já que na lei há
repressões de instintos e desejos.
O posicionamento em favor da mulher “frágil” é também revelado na
articulação entre todos os entes da federação (União, Estados, Distrito Federal e
Municípios), os quais devem agir com integração com os demais poderes
(Executivo, Legislativo e Judiciário).

o
Art. 8 A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não
governamentais, tendo por diretrizes:
I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da
Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social,
saúde, educação, trabalho e habitação;

A criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, além dos


centros de atendimento, casas-abrigos, delegacia, defensoria, serviços de saúde
destinados à mulher vítima de violência doméstica, remete à “fragilidade” da mulher
87

e também à do poder estatal no que se refere à violência doméstica e familiar e o


“duradouro” ou “perdurável” sentimento de impunidade do agressor. A “mulher”, por
“depender” e ter “medo” do “homem”, acaba não exercendo os seus direitos.

Art. 34. A instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra


a Mulher poderá ser acompanhada pela implantação das curadorias
necessárias e do serviço de assistência judiciária.
Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão
criar e promover, no limite das respectivas competências:
I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e
respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar;
II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em
situação de violência doméstica e familiar;
III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e centros
de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em
situação de violência doméstica e familiar;
IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e
familiar;
V - centros de educação e de reabilitação para os agressores.

Percebemos também a construção da identidade da mulher, do homem


e do próprio Poder Legislativo e do Judiciário, nos art. 16 e 17 da Lei. Ao permitir
que a representação ocorra somente na presença do Juiz e com a oitiva do
Ministério Público, revela um discurso contrário, ou seja, anteriormente, a mulher
denunciava, mas em razão das represálias e da falta de uma política pública e até
judicial que lhe desse condições de levar adiante o seu desejo de justiça, acabava
por “perdoar” o agressor, que não era punido em razão da “renúncia” da
representação. A representação é um termo jurídico, é uma condição imposta pela
Lei para que haja processo contra o agressor. A mulher, vítima da violência, precisa
demonstrar que deseja realmente processar o agressor; caso contrário, o
processo/ação é arquivado. Atualmente, depois de representar (demonstrar que
deseja processar) a renúncia desse direito somente poderá ocorrer em juízo. A
mulher terá que comparecer perante o juiz e o promotor de Justiça, em audiência
designada especialmente para esse fim. Tanto o juiz quanto o promotor ficam
“responsáveis” pela vítima da violência, porque não poderão deixar de dar
seguimento ao processo sem ouvi-la.
Da mesma forma, o Juiz não poderá aplicar penas de cesta básica ou
prestação pecuniária ao agressor. Essas penas, anteriormente, eram aplicadas em
razão da Lei n. 9.099/95 (Juizado Especial), já que a lesão (violência) dependendo
da gravidade era considerada como crime de menor potencial ofensivo. A aplicação
88

da Lei do Juizado Especial também servia como desestímulo à busca da justiça,


pois, após percorrer todo o trâmite processual, a mulher vitimizada via o seu
agressor livre e praticamente impune. A violência por ela suportada era substituída
por cesta básica. O art. 41 da “Lei Maria da Penha” veda expressamente a utilização
da Lei n. 9.099/95, independentemente da gravidade da lesão e da respectiva pena,
já que a gravidade de lesão determina o tipo de pena, de sanção.

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a
o
mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n 9.099,
de 26 de setembro de 1995.

Sendo assim, podemos entender que violentar uma mulher era


sinônimo de cesta básica. Quantificando a violência em valor monetário, em reais,
considerando o valor atual de uma cesta básica, a violência causada pelo agressor
lhe custaria em torno de R$ 40,00 a R$ 80,00.

Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da


ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à
representação perante o juiz, em audiência especialmente designada
com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o
Ministério Público.
Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar
contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação
pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o
pagamento isolado de multa (grifos nossos).

Desta forma, o sentimento de desvalor da mulher vítima de violência


enuncia e identifica o sujeito mulher, o sujeito agressor e o sujeito Poder Legislativo
e Judiciário, todos constituídos por força das formações ideológicas e discursivas
determinantes dos seus discursos, já que são elas quem impõem o que pode ser
dito.
As mulheres, ao buscarem o direito à igualdade, o de viverem uma vida
sem violência doméstica e familiar, estão, automaticamente, configurando a
diferença que reside da ambiguidade, ou seja,

se não reivindicamos a diferença não podemos discutir a desigualdade. Por


outro lado, o “nós” mulheres, ao afirmar a particularidade do agrupamento,
pode excluir (pastoralmente) ao mesmo tempo a universalidade do direito e
a singularidade do sujeito (ORLANDI, 1988, p. 97).
89

A “Lei Maria da Penha”, ao buscar e tentar efetivar o direito à


igualdade, revela uma dicotomia entre os direitos do homem e os da mulher. A
diferença reside no fato de que, ao revelar os direitos coletivos e sociais (igualdade),
deixa entrever as exclusões existentes. Toda afirmação pressupõe uma negação,
logo, a Lei, ao criar normas permissivas em favor da mulher, deixa de restringir tanto
quanto se tivesse criado normas de proibição. Ao buscar a igualdade de direitos, o
discurso da Lei nega a existência desse direito e afirma que a mulher ainda é
“incapaz”. Por isso, entendemos que o enunciado “violência doméstica e familiar
contra a mulher” poderia ser substituído por “violência doméstica e familiar contra a
pessoa humana” ou ainda com a supressão do termo “contra a mulher”, ou seja, a
“violência doméstica e familiar”. Nesse sentido, acreditamos que o discurso de
igualdade estaria mais bem representado e alcançaria toda a sociedade e não uma
parcela específica, pois os direitos humanos são fundamentais e para todos, e aqui
reside o enunciado da igualdade.
Na lei, há um posicionamento contrário a uma imagem machista e
preconceituosa da mulher, segundo a qual é seu papel submeter-se a quaisquer
condições de sobrevivência, ainda que desagradáveis, para ser companheira e
solidária. O discurso revela as relações de poder e ideologias dos quais é formado,
mediante o fato de que a linguagem é constituída também pelas relações sociais e
as relações sociais são constituídas também pela linguagem.

3.6 LEI QUE “NÃO PEGA” EXISTE?

A “Lei Maria da Penha” é um enunciado que reclama a interpretação


pelo enunciatário, o seu destinatário. Em razão das coerções (sanções, penas), o
efeito de sentido produzido (discurso) contém uma interdição, possui um valor
pragmático, uma reflexidade fundamental e uma dimensão jurídica. Sabemos que “a
linguagem se refere ao mundo mostrando sua própria atividade enunciativa”
(reflexidade) e a “fala é sustentada por um tecido estreito de direitos e obrigações”
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 395). Por qual motivo, então, existe no
Brasil, em nossa sociedade, o discurso de não aceitação dos efeitos da lei? Existe
lei que “não pega”?
90

Em termos. Há tantas leis, tratando de diversos assuntos, que se torna


impossível o conhecimento e aplicação de todas; contudo, a lei “pega” ou “não pega”
de acordo com os valores aceitos pela sociedade. Pode até existir a lei, mas
ocorrendo a mudança ou permanência de valores sociais, a lei deixa de ser aplicada
em razão até mesmo da falta de razoabilidade. Citamos como exemplo o adultério.
Durante anos, o adultério foi considerado crime; atualmente, não é mais; no máximo,
um adultério pode ensejar um pedido de divórcio cumulado com danos morais. Outro
exemplo é a compra, venda e exposição de CDs e DVDs pirateados. Embora seja
crime, socialmente, a conduta não é reprovada: uma grande maioria da população
compra esses produtos. Além disso, através da internet podemos baixar músicas e
filmes gratuitamente, então, onde está o crime se essas condutas são aceitas
socialmente?
Acreditamos que o enunciado, o discurso legislativo, os efeitos de
sentido de uma lei, necessariamente passam pela aceitação da sociedade. Ao
afirmar que “a lei não pegou”, ouve-se a voz do destinatário que recusa o discurso, o
enunciado proferido pelo enunciador.
Partindo dessa premissa, perguntamos: a “Lei Maria da Penha” é uma
lei que pegou?
Entendemos que ainda não, em razão dos vários esforços que estamos
vendo por parte dos Poderes e das instituições públicas e privadas. Todos estão se
empenhando no sentido de a divulgarem, de a tornarem conhecida, de estimularem
as mulheres a denunciar as agressões, enfim, sem esse empenho, a lei poderia ser
apenas mais uma dentre outras. A própria Maria da Penha criou uma organização
com essa finalidade.
Não se pode deixar de considerar a influência das formações
discursivas e ideológicas que determinam todos os discursos, inclusive o legislativo-
jurídico. No caso da “Lei Maria da Penha”, nota-se que ela está sendo “aceita” pela
sociedade em razão das sanções, mas principalmente pelos discursos midiáticos
que visam modificar o patriarcalismo, o machismo ainda vigentes em nossa
sociedade.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou uma campanha nacional,
com veiculação (suporte) no rádio, televisão e internet sobre a violência doméstica,
além de várias jornadas. O material de campanha encontra-se nos ANEXOS D e E.
91

Faremos uma análise sucinta do site e do material de divulgação da “Lei Maria da


Penha” por termos a finalidade de encontrar o posicionamento discursivo e por
considerarmos que o material, por si só, é rico em detalhes que poderia ser objeto
de várias outras análises, extrapolando a nossa finalidade.
O Conselho Nacional de Justiça, conforme definição contida no site
institucional é:

Um órgão voltado à reformulação de quadros e meios no Judiciário,


sobretudo no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e
processual. Foi criado em 31 de dezembro de 2004 e instalado em 14 de
junho de 2005. Trata-se de um órgão do Poder Judiciário com sede em
Brasília/DF e atuação em todo o território nacional, que visa, mediante
ações de planejamento, à coordenação, ao controle administrativo e ao
aperfeiçoamento no serviço público da prestação da Justiça. Foi instituído
em obediência ao determinado na Constituição Federal, nos termos do art.
103-B. É composto por quinze membros com mandato de dois anos,
admitida uma recondução, sendo: o Presidente do Supremo Tribunal
Federal; um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, que será o corregedor
Nacional de Justiça; um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho; um
Desembargador do Tribunal de Justiça; um Juiz Estadual; um Juiz Federal;
um Juiz do Trabalho; um Juiz de Tribunal Regional do Trabalho; um
Membro do Ministério Público da União; um Membro do Ministério Público
Estadual, dois advogados e dois cidadãos de notável saber jurídico e
11
reputação ilibada.

No site encontra-se também material referente às Jornadas sobre a


“Lei Maria da Penha” – ANEXO C. O enunciado das Jornadas é: “Fazer justiça é
construir a paz”. As três “mulheres” que aparecem alegres e sorridentes sinalizam
três gerações (mãe, filha e neta). Todas essas mulheres estão com os olhares
focados no futuro, na esperança, futuro/esperança sem violência contra elas. As
cores utilizadas no site são suaves (rosa claro, branco e azul claro). Aparece o tom
vermelho, apenas nos ícones “Corregedoria Nacional de Justiça” e “Plenário”. Há
movimentos curvilíneos, sinalizando mudanças, percursos, parafraseando o conceito
etimológico da palavra discurso apresentado por Orlandi (2007, p. 15) de que “a
palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de
correr por, de movimento”. O discurso não é um conjunto de textos e sim uma
prática constituída pela dispersão de textos.

11
Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8850&Itemid
=1052. Acesso em: 5 dez. 2010.
92

O site possibilita que as “mulheres” se “identifiquem” com os


enunciados nele existentes e com o discurso de que é possível garantir a paz
através da justiça, dando credibilidade ao Conselho Nacional de Justiça, cujo
objetivo da jornada é “debater a efetividade da aplicação da lei, com vistas a
melhorar as ações de combate à violência contra a mulher”.12 O site adota um
posicionamento e uma identidade que se amoldam ao estereótipo feminino.
Através desse enunciado pode-se entender que as “mulheres” vítimas
de violência não têm justiça e muito menos paz e que há uma “guerra” entre homens
e mulheres na busca dos seus direitos. O “homem” tem sido vitorioso nessa “guerra”,
e o Conselho Nacional de Justiça sai em defesa das “mulheres” e da “Lei Maria da
Penha”.
No material de campanha da “Lei Maria da Penha” há também a
presença de três flores, uma das quais está desabrochando, uma praticamente
aberta e um totalmente aberta, sinalizando que a “lei” é boa, que visa a um mundo
melhor já que as “mulheres”, agora representadas e identificadas nas flores, poderão
viver plenamente todas as fases da vida sem serem “arrancadas” ou “destruídas”
pelo agressor. O CNJ aparece como enunciador e garantidor desse discurso.
No vídeo, ANEXO E, veiculado por todas as emissoras de televisão,
aparecem dois casais (tradicional: homem e mulher) jantando em um ambiente
familiar agradável, alegre e descontraído. Um dos homens surge com um prato de
comida e põe-se a servir a sua mulher e o casal de amigos quando produz o
enunciado: “Fui eu quem fiz”, todos os outros respondem: “Nossa, que delícia!” e
“Que talento!”. Nesse momento, em outro ambiente, surgem sons externos de gritos,
vozes típicas de violência sendo praticada por um homem (agressor) em face de
uma mulher (ofendida). Não se ouve a voz da vítima, apenas os seus gemidos de
dor. Surge a voz do enunciador dizendo: “Cerca de dez mulheres morrem por dia no
Brasil vítimas da violência do próprio parceiro”. Os dois casais, ao escutarem os
gritos da violência, ficam constrangidos, o ambiente familiar que era alegre passa a
ser de indignação, de situação desconfortável. O homem que fez o jantar tenta
quebrar o mal-estar oferecendo água, que é aceita pela sua mulher. Continuam os

12
Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=7105:jornadas- lei-maria-da-
penha&catid=175:geral. Acesso em: 5 dez. 2010. Ver Anexo B.
93

sons externos da violência. Surge novamente a voz do enunciador perguntando:


“Até quando você vai ignorar?” Ouve-se novamente a voz do agressor dizendo:
“Cala a boca”. O vídeo finaliza com a fala do enunciador: “Basta! Violência contra a
mulher não tem desculpa, tem lei”. A voz do enunciador é identificada como sendo a
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), afirmando também que: “O Brasil faz a
justiça”. A heterogeneidade mostrada aparece no vídeo com o surgimento dos
caracteres “Lei Maria da Penha 4 anos”.
O CNJ enuncia um discurso de justiça em favor da mulher vítima de
violência doméstica e familiar contrapondo-se à punição internacional que o Brasil
sofreu em decorrência do caso Maria da Penha. No Brasil não há desculpa para
quem violenta a mulher, mas sim os rigores da lei. O CNJ aparece como enunciador
e fiador desse discurso em razão da autoridade imanente do órgão. No vídeo fica
evidente a quebra do ditado popular no qual “Em briga de marido e mulher, não se
mete a colher”. Os casais do vídeo, embora escutem a agressão sendo praticada
perto do ambiente em que estão, apenas ficam desconfortados, porém nada fazem
para impedir a agressão contra a mulher vitimizada.
Enfatizamos o fato de o CNJ ter afastado de suas funções
jurisdicionais, pelo período de dois anos, o juiz de Sete Lagoas, Estado de Minas
Gerais13. O juiz de nome Edílson Rodrigues, quando do julgamento de um caso
envolvendo violência doméstica, considerou a “Lei Maria da Penha” inconstitucional
sob o fundamento de “conter na legislação um conjunto de regras diabólicas e que a
desgraça humana começou por causa da mulher”. Segundo consta, o juiz ainda se
referiu à lei como sendo “monstrengo tinhoso”, já que “para não se ver
eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o homem terá de manter
tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de tecer facilmente as pressões”.
Continua o magistrado afirmando que “a vingar esse conjunto de regras diabólicas a
família estará em perigo, como inclusive já está: desfacelada, os filhos sem regras,
porque sem pais, o homem subjugado”. Finaliza com a seguinte conclusão “Ora, a
desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós sabemos, mas

13
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/827860-cnj-afasta-juiz-de-mg-que-chamou-lei-
maria-da-penha-de-conjunto-de-regras-diabolicas.shtml. Acesso em: 12 dez. 2010.
94

também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem...


O Mundo é masculino! A ideia que temos de Deus é masculina! Jesus foi homem!”
A identidade da mulher, do ethos feminino, enunciada pelo juiz
afastado, está inserida em nossa cultura em vários segmentos: vai desde os
conceitos religiosos até a música popular brasileira. Para Ferreira (2006, p. 95) o
primeiro ato retórico, considerando o livro do Gênesis, construiu uma imagem
feminina ligada ao “arrojo”, “sedução mundana”, “curiosidade” e “domínio sobre
afabilidade e subserviência masculina”, pois, quando do encontro no paraíso da
mulher com a serpente que falava, obteve-se o seguinte resultado:

A curiosidade e a impetuosidade feminina permitiram desvendar o mundo. A


desobediência foi emblemática: Adão conheceu o sexo, Eva teve muitos
filhos, os homens não puderam mais conceber o existir longe do trabalho e
das paixões.

Na mitologia antiga, Ferreira (2006, p. 98) ressalta que a mulher de


Adão foi Lilith:

Um demônio noturno, anjo exterminador de parturientes, assassina de


recém-nascidos, prostituta voluntariosa que sempre preferia a transgressão
à vassalagem [...] é a sombra maligna por se haver considerada em pé de
igualdade com os homens [...] permanece demonizada por pretender certa
satisfação sexual e por abandonar Adão, enfurecida com a atitude do
marido de insistir em permanecer por cima da mulher durante a cópula.

Acreditamos que esses conceitos, religioso e mitológico, dentre outros,


ajudaram na construção das identidades da mulher e do homem, as quais perduram
até a presente data, porém com sinais de ruptura. Nota-se que o discurso (sentença)
do juiz afastado pelo CNJ utiliza-se dessas ideologias, dessas práticas discursivas,
que são transitórias e dinâmicas. A “Lei Maria da Penha” vem reforçar a
transitoriedade dos traços identitários moldados por força da relação de poder.
O desejo de socar, de ferir e espezinhar a mulher não são raros nas
canções brasileiras. Esses desejos enunciam o desconforto do homem em relação
às mudanças sociais através das quais a mulher estava, e está, afastando o
patriarcalismo. Revelam também a existência de um “homem machucado pela força
que o domina, um Adão implorando por sua costela rompida” (FERREIRA, 2006, p.
104). A canção É bom parar, de Rubens Soares, gravada por Francisco Alves em
95

1936, é um exemplo do desespero masculino pelos encantos da mulher, que “pratica


a vingança de Lilith”. Outro exemplo é o da música Está na hora, da década de 20,
do compositor Caninha. A violência contra a mulher e o preconceito machista
aparecem: “Mulher danada,/Toma vergonha na cara/ Se você não toma jeito/Dou-te
uma surra de vara”.
Em outras canções brasileiras já encontramos a mudança gradativa da
imagem discursiva da mulher que mantém a condição de mãe, de companheira, mas
também a de mulher realizadora de grandes feitos sociais, de conquistas, de novos
papéis sociais e identitários. Ferreira (2006, p. 107-110) apresenta a música Sob
medida, de Chico Buarque de Holanda, do filme República dos assassinos, de
Miguel Faria Jr.

Sob Medida

Se você crê em Deus


Erga as mãos para os céus
E agradeça
Quando me cobiçou
Sem querer acertou
Na cabeça
Eu sou sua fêmea
Seu par, sua irmã
Eu sou seu incesto (seu jeito, seu gesto)
Sou perfeita porque
Igualzinha a você
Eu não presto
Eu não presto
Traiçoeira e vulgar
Sou sem nome e sem lar
Sou aquela
Eu sou filha da rua
Eu sou cria da sua
Costela
Sou bandida
Sou solta na vida
E sob medida
Pros carinhos seus
Meu amigo
Se ajeite comigo
E dê graças a Deus
Se você crê em Deus
Encaminhe pros céus
Uma prece
E agradeça ao Senhor
Você tem o amor
Que merece.
96

Comparando as “evoluções” contidas nas músicas e nas leis,


constatamos que as mudanças sociais e a busca pela igualdade entre os gêneros se
conquistaram aos poucos, e essas conquistas foram sendo materializadas em
diversos discursos e em todos os gêneros discursivos. Na música Sob medida, a
igualdade entre os gêneros está presente. O enunciador (mulher) afirma ao seu
enunciatário (homem) a sua condição de igual, de perfeição, de paridade: “Sou
perfeita porque igualzinha a você”. Demonstra ainda que não mais se submete ao
patriarcalismo, ao machismo, porque o enunciador “tem o amor que merece” e ainda
deve dar “graças a Deus”.
Na “Lei Maria da Penha” o interdiscurso mostra-se presente ao remeter
a vários outros discursos, como o religioso, o poético e o de gênero. Na lei, nas
condutas adotadas pelo CNJ, nas canções, na sentença do juiz, enfim, em todos
esses discursos há outros dizeres reveladores das formações ideológicas e
discursivas.
Enfatizamos que na análise da “Lei Maria da Penha”, notadamente o
complexo processo legislativo, há a presença de interdiscursos nos vários momentos
de votação do projeto. Nessas votações, até que o projeto de lei seja transformado
definitivamente em lei, as ideologias, as formações discursivas e a memória
discursiva aparecem nos discursos verbais e se materializam no texto. Embora
exista o processo legislativo, ele só se legitima por existir um já-dito, um discurso
prévio, um sempre-já-aí, que impõe uma realidade. A existência da “Lei Maria da
Penha”, na verdade, remonta, reflete discursos anteriores que visam obter a
igualdade jurídica entre homem e mulher, discursos feministas que recusam a
supremacia do homem em face da mulher.
Nota-se que no processo legislativo houve modificações significativas
nas formações discursivas dominantes. Atualmente, existe um preceito
Constitucional e vários infraconstitucionais afirmando, ao menos sob o aspecto
jurídico e legal, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos
termos da lei, discurso esse totalmente impossível e inadmissível nos séculos
passados. Não existiam condições de produção para que esse tipo de discurso
surgisse anteriormente. Sabemos que o discurso é moldado pelas coerções
ideológicas e pelos discursos assimilados; portanto ele é determinado também pela
sociedade. A sociedade ainda é machista e, como tal, produz discursos que mantêm
97

as práticas discursivas (ideológicas) que o identificam. Com a lei e com a mudança


social, o machismo, o controle do masculino (homem) sobre o feminino (mulher),
vem perdendo força para o discurso da igualdade entre o masculino & feminino,
contrariando o discurso de luta, de disputa, masculino X feminino.
Sendo assim, se o interdiscurso é o lugar no qual o sujeito produz
sequência discursiva dominada por uma determinada formação discursiva e se os
objetos e articulações de que o sujeito enunciador se apropria dão coerência, na “Lei
Maria da Penha”, há uma nítida intenção de resguardar e proteger a mulher
vitimizada contra o homem agressor pelos poderes instituídos (Executivo, Legislativo
e Judiciário), os quais, cedendo às ideologias feministas, elaboraram e mantêm em
vigência uma lei atravessada por uma formação discursiva até então contrária à
formação dominante, de que o homem era superior à mulher.
É fato que o sujeito não consegue libertar-se totalmente das coerções
existentes nas formações discursivas, nem mesmo quando hipoteticamente cria ou
tem visão de mundos diferentes. As alterações nas condições de produção do
discurso são decorrentes das alterações nas relações sociais e, por consequência,
produzem alterações nas formações ideológicas e discursivas. Inegável que na lei,
em razão das árduas e progressivas conquistas pelas mulheres, notadamente no
que se refere à igualdade de “direitos”, é perceptível a modificação da ideologia
dominante e do dizível neste momento. Atualmente, pode-se dizer que a mulher tem
os mesmos direitos que o homem também por força do sujeito Estado, dotado de
poder/sanção.
O discurso é um produto histórico e social, e as modificações da
sociedade, de certa forma, podem modificá-lo. Ora, se o discurso não pode
transformar o mundo, mas a linguagem pode ser instrumento de libertação ou
opressão, de mudança ou de conservação, a lei, enquanto discurso/linguagem,
pretende libertar a mulher da opressão masculina, propõe um novo paradigma, qual
seja, a não preponderância do sexo masculino, mas a equivalência de poderes e
direitos.
Constatamos que o Legislativo/Executivo, ao utilizar outras formações
discursivas (feminismo) que não a dominante (machismo, patriarcalismo), deseja
modificar uma estrutura social existente contrária à igualdade de direitos para os
98

seres humanos (homem e mulher), almejando a construção de um mundo novo, um


discurso progressista.
Nesse sentido, são relevantes os ensinamentos de Fiorin (1988, p. 74):

Quando um enunciador reproduz em seu discurso elementos da formação


discursiva dominante, de certa forma, contribui para reforçar as estruturas
de dominação. Se se vale de outras formações discursivas, ajuda a colocar
em xeque as estruturas sociais. No entanto, pode-se estar em oposição a
estruturas econômico-sociais de uma maneira reacionária, em que se sonha
fazer voltar um mundo que não mais existe, ou de uma maneira
progressista, em que se deseja criar um mundo novo.

Compreendemos que as pessoas, apesar de serem declaradas


“iguais”, na verdade são discriminadas pela linguagem contida na própria “Lei Maria
da Penha”, podendo-se afirmar que somente por força desta linguagem jurídica
homens e mulheres se tornam iguais. No direito, a ideologia presente em sua
formação discursiva tem como finalidade gerar o bem social, o equilíbrio nas
relações sociais com igualdade de condições. A lei, por ser genérica e abstrata,
produz um discurso jurídico cuja existência decorre de uma representação do poder
estatal de um mundo social desejado. Como vimos, uma Lei passa por controles
exercidos pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e como os modos da
subjetividade enunciativa dependem da competência discursiva (considera o ponto
de vista que o enunciador tem de si e do enunciatário), a “Lei Maria da Penha”, o
discurso por ela produzido é legítimo, já que os Poderes constituídos reconhecem a
necessidade da mesma como forma de construir a igualdade inexistente.
99

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A “Lei Maria da Penha”, após analisá-la sob os fundamentos da Análise


de Discurso, é classificada como um texto/discurso marcado por contradições. Trata
a violência doméstica e familiar incluindo o homem e a mulher: esta é sempre
ofendida/vitimizada; aquele é sempre o agressor. Evidencia-se também uma ruptura
da memória discursiva referente à família que passa a ser reconhecida também por
outras formas de constituição que não seja a pautada no casamento e na união dos
sexos opostos e na coabitação.
Percebemos que houve alterações nas condições de produção do
discurso em decorrência das alterações nas relações sociais entre homens e
mulheres, as quais tornam possível a existência deste discurso. A igualdade de
“direitos” é uma modificação da ideologia dominante e do dizível neste momento.
Percebemos ainda que a ideologia feminista, como forma de conseguir libertar-se da
dominação machista, utiliza-se de algumas das práticas discursivas que por elas são
combatidas. Essa conclusão está na própria Lei, quando utiliza a expressão “toda
mulher” ao invés de utilizar “toda pessoa”. O Código Civil atual substituiu “todo
homem” utilizado por vários anos por “toda pessoa”, o que permite o efeito de
sentido de igualdade, universalidade, não existente na “Lei Maria da Penha”, que é
uma lei apenas para proteger as mulheres.
Na “Lei Maria da Penha” há, portanto, uma ideologia feminista contrária
à ideologia machista/patriarcal ainda existente em nossa sociedade, na qual à
mulher é destinado um lugar secundário que ela já não mais admite como sendo o
seu verdadeiro lugar. A ideologia machista durante anos serviu e ainda serve como
meio de manutenção de poder e do status garantido ao homem. A trajetória
legislativa que realizamos demonstrou que os Poderes constituídos em nossa
sociedade (Legislativo, Executivo e Judiciário) agem tardiamente na proteção e
reconhecimento dos direitos da mulher. O Estatuto da Mulher Casada e a “Lei Maria
da Penha” são decorrentes de punições que o Brasil sofreu internacionalmente.
100

Verificamos que, em nossa sociedade contemporânea, a mulher


institucional, legal e discursivamente, é considerada um ser frágil, que necessita de
proteção em razão de um posicionamento machista, ainda vigente na atualidade;
contudo, há mulheres que realizam grandes feitos e que já ocupam lugares até
então destinados ao homem, estabelecendo uma nova cristalização desses sentidos
em nossa cultura.
Acreditamos, por fim, ter alcançado os objetivos da nossa pesquisa. Ao
resgatarmos a trajetória discursivo-legislativo-jurídica da mulher, constatamos que o
reconhecimento de seus direitos deu-se de forma gradativa, lenta e progressiva, o
que foi determinante na construção discursiva da mulher e de seus respectivos
direitos. A “Lei Maria da Penha” é um reflexo dessa conquista e da ideologia
feminista contrária à dominante. A lei desconsidera o fato de existirem mulheres
fatais, que agridem, que atacam, que são más, características de todo ser humano;
nela há um apagamento dessas características, pois o homem é sempre o agressor
e a mulher sempre a ofendida.
Os poderes constituídos em nosso ordenamento jurídico (Legislativo,
Executivo e Judiciário) buscam efetivar a igualdade entre o homem e a mulher
através da “Lei Maria da Penha”. O discurso revela as relações de poder e a
ideologia do qual é formado, sendo que a linguagem é constituída também pelas
relações sociais constituídas pela linguagem.
A “Lei Maria da Penha” é um avanço, mas ainda incapaz de coibir e
prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Atos agressivos são
inerentes ao ser humano; a violência é uma agressividade com finalidade específica,
ou seja, a destruição do outro, é cultural.
Concluímos que a aceitação jurídica da “Lei Maria da Penha”
necessariamente passa pela aceitação da sociedade, pelas mudanças sociais e
históricas que são materializadas pelas formações ideológicas e discursivas. A
sociedade ainda é machista e continua produzindo discursos que mantêm as
práticas discursivas ideológicas que dessa forma a identificam. No entanto, com
essa lei, o controle do homem (masculino) sobre a mulher (feminino) vem
produzindo um discurso contrário à dominação e em direção à igualdade, podendo
ser identificado como masculino & feminino e não mais masculino x feminino.
101

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108

ANEXO A – “LEI MARIA DA PENHA”.

Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a


o
mulher, nos termos do § 8 do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de
Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso


Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
TÍTULO I
DISPOSIÇÕES PRELIMINARES
Art. 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8 o do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra
a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República
Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,
orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as
oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e
mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício
efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à
cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à
109

cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e


comunitária.
§ 1o O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os
direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no
sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.
§ 2o Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições
necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.
Art. 4o Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a
que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em
situação de violência doméstica e familiar.
TÍTULO II
DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e
familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe
cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de
convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as
esporadicamente agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada
por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por
afinidade ou por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou
tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo
independem de orientação sexual.
Art. 6o A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma
das formas de violação dos direitos humanos.
CAPÍTULO II
110

DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A


MULHER
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher,
entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua
integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe
cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe
o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar
ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite
ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure
calúnia, difamação ou injúria.
TÍTULO III
DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR
CAPÍTULO I
DAS MEDIDAS INTEGRADAS DE PREVENÇÃO
111

Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar


contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo
por diretrizes:
I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e
da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde,
educação, trabalho e habitação;
II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras
informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia,
concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e
familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados
nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas;
III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e
sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que
legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o
estabelecido no inciso III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221
da Constituição Federal;
IV - a implementação de atendimento policial especializado para as
mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher;
V - a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção
da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à
sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos
direitos humanos das mulheres;
VI - a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros
instrumentos de promoção de parceria entre órgãos governamentais ou entre estes
e entidades não-governamentais, tendo por objetivo a implementação de programas
de erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher;
VII - a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda
Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às
áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia;
VIII - a promoção de programas educacionais que disseminem valores
éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de
gênero e de raça ou etnia;
112

IX - o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino,


para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça
ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.
CAPÍTULO II
DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E FAMILIAR
Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e
familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes
previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no
Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de
proteção, e emergencialmente quando for o caso.
§ 1o O juiz determinará, por prazo certo, a inclusão da mulher em
situação de violência doméstica e familiar no cadastro de programas assistenciais do
governo federal, estadual e municipal.
§ 2o O juiz assegurará à mulher em situação de violência doméstica e
familiar, para preservar sua integridade física e psicológica:
I - acesso prioritário à remoção quando servidora pública, integrante da
administração direta ou indireta;
II - manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o
afastamento do local de trabalho, por até seis meses.
§ 3o A assistência à mulher em situação de violência doméstica e
familiar compreenderá o acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento
científico e tecnológico, incluindo os serviços de contracepção de emergência, a
profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e
cabíveis nos casos de violência sexual.
CAPÍTULO III
DO ATENDIMENTO PELA AUTORIDADE POLICIAL
Art. 10. Na hipótese da iminência ou da prática de violência doméstica
e familiar contra a mulher, a autoridade policial que tomar conhecimento da
ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput deste artigo ao
descumprimento de medida protetiva de urgência deferida.
113

Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica


e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:
I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de
imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;
II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto
Médico Legal;
III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para
abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;
IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada
de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os
serviços disponíveis.
Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de
imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código
de Processo Penal:
I - ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a
representação a termo, se apresentada;
II - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e
de suas circunstâncias;
III - remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente
apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas
de urgência;
IV - determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da
ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;
V - ouvir o agressor e as testemunhas;
VI - ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua
folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou
registro de outras ocorrências policiais contra ele;
VII - remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao
Ministério Público.
§ 1o O pedido da ofendida será tomado a termo pela autoridade
policial e deverá conter:
114

I - qualificação da ofendida e do agressor;


II - nome e idade dos dependentes;
III - descrição sucinta do fato e das medidas protetivas solicitadas pela
ofendida.
§ 2o A autoridade policial deverá anexar ao documento referido no § 1 o
o boletim de ocorrência e cópia de todos os documentos disponíveis em posse da
ofendida.
§ 3o Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários
médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde.
TÍTULO IV
DOS PROCEDIMENTOS
CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e
criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher
aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da
legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não
conflitarem com o estabelecido nesta Lei.
Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser
criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o
processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência
doméstica e familiar contra a mulher.
Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar-se em horário
noturno, conforme dispuserem as normas de organização judiciária.
Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos
cíveis regidos por esta Lei, o Juizado:
I - do seu domicílio ou de sua residência;
II - do lugar do fato em que se baseou a demanda;
III - do domicílio do agressor.
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da
ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante
115

o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do


recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e
familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação
pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de
multa.
CAPÍTULO II
DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
Seção I
Disposições Gerais
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao
juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas
protetivas de urgência;
II - determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência
judiciária, quando for o caso;
III - comunicar ao Ministério Público para que adote as providências
cabíveis.
Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas
pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.
§ 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de
imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do
Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado.
§ 2o As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou
cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior
eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou
violados.
§ 3o Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da
ofendida, conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já
concedidas, se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de
seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal,
caberá a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a
116

requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade


policial.
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão preventiva se, no
curso do processo, verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo
decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.
Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos
ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem
prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público.
Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou
notificação ao agressor.
Seção II
Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em
conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre
outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com
comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de
dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a
ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas,
fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer
meio de comunicação;
c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a
integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores,
ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de
outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as
117

circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério


Público.
§ 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se o agressor
nas condições mencionadas no caput e incisos do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de
dezembro de 2003, o juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou instituição
as medidas protetivas de urgência concedidas e determinará a restrição do porte de
armas, ficando o superior imediato do agressor responsável pelo cumprimento da
determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de prevaricação ou de
desobediência, conforme o caso.
§ 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência,
poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial.
§ 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que couber, o
disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de
1973 (Código de Processo Civil).
Seção III
Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras
medidas:
I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou
comunitário de proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao
respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos
direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação de corpos.
Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal
ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar,
liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à
ofendida;
II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de
compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização
judicial;
118

III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;


IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por
perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar
contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os
fins previstos nos incisos II e III deste artigo.

CAPÍTULO III
DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas
causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a
mulher.
Art. 26. Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de outras
atribuições, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, quando
necessário:
I - requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação,
de assistência social e de segurança, entre outros;
II - fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de
atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, e adotar, de
imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer
irregularidades constatadas;
III - cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a
mulher.
CAPÍTULO IV
DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em
situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado,
ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei.
Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica
e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária
Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento
específico e humanizado.
TÍTULO V
119

DA EQUIPE DE ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR


Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento
multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas
psicossocial, jurídica e de saúde.
Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras
atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por
escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou
verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento,
prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares,
com especial atenção às crianças e aos adolescentes.
Art. 31. Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais
aprofundada, o juiz poderá determinar a manifestação de profissional especializado,
mediante a indicação da equipe de atendimento multidisciplinar.
Art. 32. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta
orçamentária, poderá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de
atendimento multidisciplinar, nos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias.
TÍTULO VI
DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS
Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as
competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da
prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões
do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.
Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas
criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput.
TÍTULO VII
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 34. A instituição dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher poderá ser acompanhada pela implantação das curadorias
necessárias e do serviço de assistência judiciária.
Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios
poderão criar e promover, no limite das respectivas competências:
120

I - centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e


respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar;
II - casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores
em situação de violência doméstica e familiar;
III - delegacias, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde e
centros de perícia médico-legal especializados no atendimento à mulher em situação
de violência doméstica e familiar;
IV - programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica
e familiar;
V - centros de educação e de reabilitação para os agressores.
Art. 36. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
promoverão a adaptação de seus órgãos e de seus programas às diretrizes e aos
princípios desta Lei.
Art. 37. A defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos
nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por
associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano,
nos termos da legislação civil.
Parágrafo único. O requisito da pré-constituição poderá ser
dispensado pelo juiz quando entender que não há outra entidade com
representatividade adequada para o ajuizamento da demanda coletiva.
Art. 38. As estatísticas sobre a violência doméstica e familiar contra a
mulher serão incluídas nas bases de dados dos órgãos oficiais do Sistema de
Justiça e Segurança a fim de subsidiar o sistema nacional de dados e informações
relativo às mulheres.
Parágrafo único. As Secretarias de Segurança Pública dos Estados e
do Distrito Federal poderão remeter suas informações criminais para a base de
dados do Ministério da Justiça.
Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no
limite de suas competências e nos termos das respectivas leis de diretrizes
orçamentárias, poderão estabelecer dotações orçamentárias específicas, em cada
exercício financeiro, para a implementação das medidas estabelecidas nesta Lei.
Art. 40. As obrigações previstas nesta Lei não excluem outras
decorrentes dos princípios por ela adotados.
121

Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar


contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099,
de 26 de setembro de 1995.
Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941
(Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso IV:
“Art. 313.
IV - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher,
nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de
urgência.” (NR)
Art. 43. A alínea f do inciso II do art. 61 do Decreto-Lei no 2.848, de 7
de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 61.
II .
f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na
forma da lei específica.
.. ” (NR)
Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940
(Código Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 129.
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão,
cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda,
prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de
hospitalidade.
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um
terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.” (NR)
Art. 45. O art. 152 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de
Execução Penal), passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 152.
Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o
juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de
recuperação e reeducação.” (NR)
122

Art. 46. Esta Lei entra em vigor 45 (quarenta e cinco) dias após sua
publicação.
Brasília, 7 de agosto de 2006; 185o da Independência e 118o da
República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Dilma Rousseff
Este texto não substitui o publicado no D.O.U. de 8.8.2006
123

ANEXO B – CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – JORNADAS – “LEI MARIA


DA PENHA”

Jornadas Lei Maria da Penha


Terça, 31 de Março de 2009

Eventos Realizados | Documentos | Palestras


Sobre a Lei Maria da Penha...
Um balanço do funcionamento das Varas de Violência Doméstica e
Familiar contra a mulher no Brasil será apresentado, na próxima segunda-feira
(30/03), durante a 3ª Jornada de Trabalho sobre a lei Maria Penha. O evento será
aberto às 10h no plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em Brasília, pelo
presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, com a
participação da secretária Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República (SEPM), ministra Nilcéa Freire, e da farmacêutica Maria da Penha Maia
124

Fernandes, cujo caso inspirou a edição da Lei 11.340/2006. O objetivo da Jornada é


debater a efetividade da aplicação da lei, com vistas a melhorar as ações de
combate à violência contra as mulheres.
A 3ª Jornada de Trabalho sobre a lei Maria Penha é resultado de uma
parceria entre o CNJ, a Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça,
a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres e a Escola Nacional de Formação e
Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). A presidente da Comissão de Acesso à
Justiça e Juizados Especiais do CNJ, conselheira Andréa Pachá, é quem
apresentará o resultado da instalação das Varas de Violência Doméstica e Familiar
contra a mulher, cujo objetivo é inibir a prática dos maus tratos, além de atuar na
recuperação dos agressores com vistas à reabilitação familiar. Esse tipo de vara já
foi implantado aproximadamente 85% dos tribunais de Justiça brasileiros.
Na Jornada, os participantes também poderão conhecer o resultado
dos cursos de capacitação sobre a Lei Maria da Penha realizados pelo CNJ em
parceria com as Escolas de Magistratura, que já ofereceram mais de 750 vagas para
a formação de juízes com competência para tratar a matéria. A contribuição do
Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), do Ministério
da Justiça (MJ) para a efetivação da Lei Maria da Penha será outro dos temas
abordados no evento. No ano de 2008, a Secretaria de Reforma do Judiciário do MJ
destinou mais de R$ 16 milhões do programa à criação e aperfeiçoamento dos
organismos destinados à defesa dos direitos das mulheres vítimas de violência
doméstica e familiar. A parceria é resultado de um acordo firmado entre o CNJ e a
Secretaria de Reforma do Judiciário, no ano passado, com o intuito de conjugar
esforços para garantir a implementação e a efetividade da lei.
Um dos painéis previstos na programação da 3ª Jornada vai tratar
sobre a estrutura da rede de atendimento à mulher implantada no Brasil. Ao final do
evento, será criado um Fórum Permanente de Discussão entre os participantes, de
maneira a ampliar o debate e promover melhorias constantes na aplicação da lei. A
3ª Jornada de Trabalho sobre a lei Maria Penha é resultado de uma parceria entre o
CNJ, a Secretaria da Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, a Secretaria
Especial de Políticas para Mulheres e a Escola Nacional de Formação e
Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).
125

A Lei – Sancionada em 7 de agosto de 2006 pelo presidente Luiz


Inácio Lula da Silva, a Lei 11.340/2006 introduziu avanços significativos no combate
à violência contra a mulher. A lei aumentou o tempo de prisão dos agressores e
eliminou o pagamento de cestas básicas como forma de punição. Outra medida
importante com a edição da lei é o fato de que o agressor pode ser preso em
flagrante ou ter sua prisão preventiva decretada. A proteção às mulheres foi
estendida nos casos de violência física, psicológica, patrimonial, sexual e moral.
O nome Maria da Penha foi dado em homenagem ao caso da
farmacêutica bioquímica, Maria da Penha Maia Fernandes, que em 1983 ficou
paraplégica após ter sido vítima de uma tentativa de homicídio praticada por seu ex-
marido. Maria da Penha não só levou à frente o processo judicial contra seu
agressor no Brasil, como denunciou seu caso à Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Essa denúncia levou à
condenação do Brasil pela OEA em 2001, processo este que deu origem à criação
da Lei Federal 11.340.
MB/ SR
Agência CNJ de Notícias

Anexo I - Supremo Tribunal Federal, Praça dos Três Poderes, S/N - Brasília - DF -
Brasil - CEP: 70.175.901 - 55.61.2326-4607 ou 55.61.2326-4608 - Dúvidas? -
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126

ANEXO C – SITE DO CNJ – CAMPANHA “LEI MARIA DA PENHA”


127

ANEXO D – MATERIAL DE CAMPANHA DO CNJ – BANNERS PARA INTERNET


128

ANEXO E – CAMPANHA DO CNJ – VÍDEO – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E


FAMILIAR “LEI MARIA DA PENHA” (CD)

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