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Demoro-me alguns instantes

espichando meu pescoço em meio


às mesas do bar à procura da
cabeleira alaranjada, aquela que
frequentemente confundo com um
dos raios de sol que invadem minha
janela logo ao amanhecer. Preocupo-
me pensando que talvez você não
esteja aqui já que não consigo vê-lo,
mas logo um lampejo roxo atinge
minha visão periférica e percebo sua
gravata púrpura que se destacava
em meio ao conjunto de terno preto
que resolveu usar esta noite.
Arrumando-se e aprumando o peito
feito um orgulhoso pavão, observo-o
subir no palco, toda a timidez se foi
no momento em que deixaste o
camarim, quebrando-se feito vidro
frágil, é como se nunca estivesse
estado lá.
Ali está, um jovem cavalheiro de
feições gentis e mãos suaves que
tocam em seu saxofone com a
suavidade de uma pluma, pergunto-
me se tu me tocarias da mesma
forma. Tão jovem mas já tens tanta
vivência, no oculto de sua mente tu
és, na verdade, mais velho do que
eu.

Mãos quentes seguram o metal


gelado do instrumento musical,
levando-o a teus lábios
rosados, soprando um som absurdo
que enche o lugar. Um presságio, um
aviso, um vislumbre das folhas de
bordô que caem das árvores,
ignoradas pela janela daquele
simples bar.
Onde tu faz daquele palanque de
madeira envelhecida seu próprio
palco, onde fazes dos ratos o teu
público.
Tocas de maneira tão apaixonada,
tão abençoada.

Não consigo te ver de outra forma


além de pura adoração. O deleite
que enche meu peito e transborda
carinho, carinho que nubla-me os
pensamentos e alejai-me as pernas
de modo que eu caia de joelhos á tua
frente, agarro-me as tuas coxas e o
adoro.
Cavalheiro de feições gentis, por
favor diga-me o seu nome. O sopre
no meu ouvido como sua mais bela
canção, que aquece minha alma,
que, sem saber, resfria-me no verão
e aquece-me no auge do inverno.
Arrasta-me para o inferno de desejo
ao mesmo tempo que me leva aos
céus.
Preciso alcança-lo. Mas eu estou tão
longe.
Solto um suspiro cansado e assisto
silenciosamente até o final da
apresentação, volto a mim mesma
quando você dá um sorriso brilhante
que ofusca os astros e acena para os
porcos que lhe assistem que mal o
dão uma segunda olhada. Mas eu
sou diferente, eu juro pra você. Eu
aprecio sua arte! Sou capaz de
alimentar-me de suas prosas e
poesias quando a seca me afetar,
estarei lá para você quando seus
lábios secos e rachados me
murmurarem uma canção á luz de
velas.
Eu sou melhor que seu público, eu
sou o melhor pra você.

Eu sei que sou apenas uma mulher


simples, mais velha, um rosto que
com certeza já viu anos melhores e
ralos cabelos negros que mal
passam dos ombros como cascata
ou como manchas de tinta. Apenas
olhos castanhos aflitos e um lábio
franzino.
Eu ainda tenho alcançar você,
porque você já toma conta de mim, e
você nem me conhece.

Eu me levanto de onde estou


sentada e vou até
os bastidores daquele bar caindo aos
pedaços, onde eu sei que os artistas
que se apresentam ficam. Não sou
louca o suficiente para invadir seu
camarim, mas sou, com certeza,
corajosa o suficiente para tentar
conseguir ao menos seu nome.
Meus pensamentos são
interrompidos quando bato de frente
ao que penso ser um muro de tijolos,
olho para cima apenas para me
deparar com um rosto desagradável.

- Senhora? - A outrora parede de


tijolos me pergunta. - O que veio
fazer aqui? Parente de algum dos
artistas?

Eu me afasto rapidamente do
homem forte, possivelmente um
segurança, que acabou esbarrando
em mim. Sua pele branca e cabelos
cacheados certamente fariam uma
visão incrível se ele estivesse
tentando, nada perto do jovem sem
nome no entanto.
Espano meu vestido amarelo com as
mãos, mais por nervosismo do que
por necessidade.

- Ah, sim, sim, sim- na verdade, o


artista... Hum...
O ruivo- eu- hm....

É tudo o que consigo soltar em meio


a suspiros exaltados e ganidos finos
como os de um cachorro atropelado
em via pública. É evidente que o Sr.
Olhar Assustador, Cachos Incríveis
está dando o máximo de si para não
me mandar calar a boca, ele é
surpreendentemente gentil quando
me empurra para o lado e passa por
mim sem dizer uma palavra,
deixando meu caminho livre para
passar para o camarim.
Hum, eu penso, não é como se este
fosse algum estabelecimento de
prestígio de qualquer maneira,
obviamente a segurança não dá a
mínima para nada. Penso ter ouvido
Sr. Suposto Segurança resmungar
algo enquanto se afastava, mas não
é importante.

Respiro fundo tentando acalmar o


tremor mas mãos enquanto faço um
drama muito justificável ao abrir a
porta do camarim.
E é ali que eu o encontro, em meio
ao lixo, ele se revela uma forma
divina.
Cabelos ruivos encaracolados, como
cobre em contraste as luzes que vem
do espelho sujo que
combina muito bem com o cenário
vagabundo e bagunçado do local.
Seu rosto no espelho, nunca o vi tão
de perto, não me olha diretamente,
como se não tivesse notado minha
presença ainda.
Seu blazer cinza jogado para o lado,
gravata ligeiramente solta, dando-me
espaço para ver sua pele leitosa e
branca implorando-me para deixar
uma marca.

Seus olhos castanhos de onix olham


diretamente para mim enquanto ele,
colocando uma presilha em suas
madeixas incríveis, levanta uma
sombrancelha perfeitamente
desenhada em minha direção, como
se ele perguntasse o que estou
fazendo aqui.
- Ah- senhor- eu... Hum, senhor
jovem cavalheiro. Esta aqui sabe que
é uma senhora já entrada em anos,
mas de onde vim nunca foi pecado
sonhar, eu venho lhe vendo se
apresentar desde que este fim de
mundo abriu e sempre fiquei tão
fascinada com suas apresentações.
Eu gostaria de ao menos saber seu
nome.
Não sei de onde tirei fôlego para
recitar metade deste discurso, mas
logo meu amado está virando para
mim, existe uma curva em seus
lábios e brilho em seus olhos que
posso ver que ele está claramente
segurando um sorriso.
Até que ele graciosamente, como um
rouxinol, gorjeia:

- Que porra cê tá falando? É a


primeira vez que eu me apresento
aqui

Ele solta em suspiro trêmulo,


soltando uma risada entre as frases
e sua voz é.... Diferente do que eu
havia imaginado, feminina, até.

- Amiga, quem é você? Por que tu ta


falando assim? Ta doida porra?
Aparentemente, o jovem cavalheiro
de feições gentis não era sequer um
cavalheiro.

Ruth.

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