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Volume XXVIII, Número 1, (Edição 101): jan. / mar.

2009

FÉ, CULTURA E IMAGINÁRIO

Editor Responsável
Dom Edson de Castro Homem

Editores Assistentes
Alex Catharino
Márcia Xavier de Brito
EQUIPE EDITORIAL Imagem da Capa
Preparação dos originais Detalhe da pintura Alegoria ao Pelicano (1786), em óleo
e notas do editor sobre madeira com 117 x 57 cm, de José Joaquim da
Alex Catharino Rocha (1737-1807). A obra, atualmente, pertence a uma
coleção particular na Bahia.
Revisão Teológica
Dom Edson de Castro Homem O pintor, encarnador, dourador e restaurador José
Joaquim da Rocha é considerado o fundador da chamada
Revisão Ortográfica Escola Baiana de Pintura. Suas obras mais destacadas
Diácono Francisco Ferreira da Silva são as pinturas da Igreja do Convento de Santo Antonio
(1766) em João Pessoa na Paraíba e das igrejas de Nossa
Revisão Final Senhora da Conceição da Praia (1774), de Nossa Senhora
Márcia Xavier de Brito do Rosário dos Pretos (1780), da Ordem Terceira de São
Domingos (1781) e de Nossa Senhora da Palma (1785)
Seleção de Imagens
em Salvador na Bahia.
Dom Mauro Fragoso, O.S.B.
Francisco José Andrade Ramalho Na Europa medieval se acreditava que o pelicano possuía
Monsenhor José Roberto Devellard um zelo extremado por seus filhotes, ao ponto de dar o
próprio sangue como alimento para salvar-lhes a vida.
Diagramação e Capa Essa visão do imaginário levou os pintores e escultores a
Ricardo Araujo Bogéa Rodrigues retratarem o pelicano como uma alegoria da Caridade, da
www.artesanalmente.com.br Eucaristia e da própria Paixão de Cristo.

© Instituição COMMUNIO, Rio de Janeiro, 2009

Ficha Catalográfica
COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura / Instituição COMMUNIO
do Brasil. Vol. XXVIII, Nº 1 (Edição 101): jan./mar. 2009. Rio de Janeiro:
COMMUNIO, 2009. 300p.

COMMUNIO
Periodicidade trimestral
ISSN 0101-7942

1. Teologia. 2. Filosofia. 3. Literatura. 4. Cultura. 5. Mito. 6. Fantasia


Mitopoética. 7. Imaginário. I. Instituição COMMUNIO.

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sendo proibida a transcrição integral dos mesmos, cabendo aos infratores as sanções
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a fonte. Reproduções integrais somente com a devida autorização da Instituição
COMMUNIO, por intermédio de solicitação aos seus editores.
Aceitamos permutas com revistas congêneres e livros para recensões ou notas bibliográficas,
reservando-nos a decisão de sua publicação.
SUMÁRIO
Antonio Augusto Dias Duarte 5 Editorial

Artigos
Camillo Ruini 11 Teologia e Cultura: Terras dos confins

James V. Schall 23 A Cultura nunca é neutra

Bento XVI 39 A Europa na crise da cultura

Julien Ries 51 A linguagem e a mensagem do mito

Olivier Riaudel 61 Nem mito, nem desmitologização

José Tolentino Mendonça 77 A Bíblia e o Fantástico

David C. Schindler 85 Verdade e a imaginação cristã:


A reforma da causalidade e a iconoclas-
tia do espírito

Russell Kirk 103 A imaginação moral

Marek Oziewicz 121 Prolegômenos à fantasia mitopoética

Michaël Devaux 151 Itinerarium imaginationis ad Deum:


Viagem a Númenor na companhia
dos Inklings

Stephen Milne 173 C. S. Lewis e a imaginação moral

Owen Dudley Edwards 185 Gollum, Frodo e o romance católico

Stratford Caldecot 201 A Graça dos Vala: O filme O Senhor


dos Anéis

Ives Gandra Martins Filho 213 A “Comunhão dos Santos” na obra de


J. R. R. Tolkien

Alex Catharino 221 A imaginação moral em Star Wars

Isabelle Rak 253 Harry Potter: Quando a magia


liberta o discurso

Alberto da Costa e Silva 273 Histórias dos índios brasileiros


Especial
Hans Urs von Balthasar 277 Oração pela Communio

Resenhas de livros
Marcelo Coelho 278 Ortodoxia de G. K. Chesterton

Márcia Xavier de Brito 284 O Mundo do Senhor dos Anéis: Vida e


obra de J. R. R. Tolkien de Ives Gandra
Martins Filho

Ubiratan Iorio 287 O Saber dos Antigos de Giovanni Reale

Mauricio Dominguez Perez 289 Como a Igreja Católica construiu a


Civilização Ocidental de Thomas E.
Woods Jr.

Rodrigo Simonsen 293 Eliot and His Age: T. S. Eliot’s Moral


Imagination in the Twentieth Century
de Russell Kirk

Edson de Castro Homem 296 A Crítica da Religião de Urbano Zilles

Padre James V. Schall, S.J. 298 Smart Sex: Finding Life-Long Love in
a Hook-Up World de Jennifer Roback
Morse
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 5
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 5-9

EDITORIAL

O Santo Padre Bento XVI exaltou a valiosa contribuição da fé católica para a


cultura e a vida latino-americanas durante os cinco séculos de sua existência.
O discurso inaugural do Papa na V Conferência Geral do Episcopado da América
Latina e Caribe foi claro nesse sentido:
Do encontro dessa fé com as etnias originárias nasceu a rica cultura cristã deste
continente expressada na arte, na música, na literatura e, sobretudo, nas tradições
religiosas e na idiossincrasia de seus povos (Documento de Aparecida, p. 268).

Retornando a estas palavras e auscultando a história daquelas nações


européias que contemplavam perplexas e assustadas, no século XV, aquela descrição
da Terra, imaginariamente feita por geógrafos de gabinete, onde monstros
de orelhas compridas e ciclopes eram distribuídos no espaço físico e redondo,
margeado pelo “rio Oceano”, tendo como o centro desse disco o Santo Sepulcro,
pode parecer aos homens e mulheres do século XXI uma história fantástica, com
figuras e descrições dignas dos atuais escritores apreciados por um público cada vez
mais aberto ao imaginário do que à realidade.
Não faltaram, porém, naquela época espíritos bem mais esclarecidos e
bem pouco fantasiosos que refletiram, nos seus escritos e nas primeiras crônicas,
concepções menos imaginárias da Terra e dos homens que nela viviam, como por
exemplo, Marco Pólo (1254-1324) e o seu Livro da Maravilhas (1298). O cardeal
Pierre d’Ailly (1351-1420) foi outro escritor mais realista, que na sua obra, o
Quadro do Mundo (1410), descreveu a esfericidade da Terra, assinalando a Espanha
como ponto de partida do caminho que levaria os conquistadores à costa oriental
da Índia. Navegando na direção oeste, sobre o vasto oceano, ficava estabelecida,
com segurança, uma rota marítima rumo ao tão maravilhoso Novo Mundo.
O que levou o povo europeu ao encontro de povos com outras culturas e
outros costumes? A curiosidade científica? A intenção de fazer grandes negócios?
Um projeto de evangelização? Os sonhos embalados no seio da imaginação
humana? A satisfação de fantasias criadas pelas mentes exageradamente criativas?
Havia, certamente, tudo isso nas almas de muitos homens que viviam cada
vez mais confinados aos estreitos espaços dos seus feudos e castelos medievais. As
expedições compostas por comerciantes e evangelizadores, aventureiros e alguns
letrados, astrônomos, geógrafos e, obviamente, muitos sonhadores, saíam cheios
de esperança do extremo ocidental da Europa e viajavam em direção a essas novas
terras ambicionando novas riquezas materiais, mas também ansiosos por trazer
novos discípulos para Jesus Cristo.
6 COMMUNIO • Dom Antonio Augusto Dias Duarte

Terras, riquezas, sem dúvida nenhuma, mas sem deixarem de lado o


cumprimento do mandato imperativo de Cristo, Redentor da humanidade:
Ide, pois, fazei discípulos entre todas as nações, e batizai-os em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo. Ensinai-lhes a observar tudo o que vos tenho ordenado.
Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos (Mt 28,19-20)

A fé realmente animou a vida e a cultura dos povos americanos, antecessores das


atuais gerações que, na modernidade e pós-modernidade, estão muito familiarizadas com
os efeitos especiais do cinema, com as imagens ‘tolkienianas’ ou ‘lewisnianas’ bem como
com as espetaculares façanhas do jovem Harry Potter e dos seus fiéis amigos. Tudo leva a
pensar nesse início do século XXI que a fé católica não mais irriga a terra cotidiana de uma
humanidade formada dentro do fascinante mundo virtual dos computadores e mergulhada
nas águas dos novos costumes e do progresso científico acelerado e da tecnologia que tudo
soluciona para o homem deslumbrado da hodierna época.
O imaginário das pessoas, sobretudo das crianças e dos jovens, aliado ao profetismo
das ciências experimentais que só sabe denunciar o obscurantismo da civilização impregnada
pela fé católica, como foi, por exemplo, a rica Idade Média, coloca a inteligência humana no
reduzido raio das hipóteses e das pesquisas. Já não se analisa a partir do objetivo e nem se
estabelece conceitos conforme a realidade criada por Deus, mas se credita à imaginação e às
emoções um valor cada vez mais fechado e insensível à transcendência.
A Communio: Revista Internacional de Teologia e Cultura vem ao encontro, com
este seu número sobre a Fé, a Cultura e o Imaginário, desta “geração maravilhosa com suas
máquinas voadoras” para oferecer-lhe a visão das realidades terrenas e abertas ao Deus
que não só criou a Terra, mas também habitou entre os homens. A fé católica quando
autenticamente vivida no seio da sociedade se abre às novas culturas e às reais possibilidades
que o progresso humano oferece, e por ser universal acolhe também o imaginário para
acrescentar a esta dimensão humana o que é real e razoável, e, sobretudo, o que é de Deus e
favorece os homens e as mulheres de todas as épocas e realidades.
O artigo do cardeal Camillo Ruini ressalta esse papel central da fé cristã na cultura
da humanidade, pois só ela pode engrandecer e elevar a dignidade humana e evidenciar a
radical supremacia do homem sobre toda a Criação, sem anular o que a humanidade é capaz
de desenvolver como fruto da razão e da liberdade dos homens. Também, de modo original
como conseqüência da graça divina, o homem pode santificar todas as realidades terrenas,
conduzindo-as assim ao seu último e mais elevado fim: a glória de Deus, Uno e Trino.
A cultura humana relaciona-se com os princípios e com os valores transcendentes
sem ignorar a validade do que é particular de uma época, dado que o que é universal sempre
está presente no singular de cada civilização. O padre James V. Schall, SJ, traça uma síntese
histórica da Cultura para demonstrar que há diferentes maneiras de expressar a mesma
verdade, evitando a chamada “cultura neutra”, na qual se pretende excluir qualquer verdade
sobre a natureza das coisas e do destino último da pessoa humana dentro da sua própria
realidade. Afirma que há uma cultura universal que se expressa em uma multiplicidade de
maneiras sem perder a perenidade da verdade.
EDITORIAL 7

O papa Bento XVI, com sua rica inteligência teológica e filosófica, abrilhanta o tema
dessa edição de Communio. No seu artigo desenvolve a linha iniciada na crise da cultura que
remonta aos tempos do Renascimento e, de forma mais concreta e ampla, desde os tempos
do Iluminismo, com o surgimento da racionalidade científica. Ainda que, por um lado a
ciência imprime a sua marca inegável no progresso do mundo, por outro se atreve a excluir
Deus da consciência pública negando-O totalmente ou julgando-O como não conhecível
ou apenas encolhido no âmbito da escolha subjetiva. Neste momento histórico-cultural
Bento XVI indica como necessidade de primeira ordem a existência de homens que, através
da fé iluminada e vivida, dão a Deus uma maior presença no meio do mundo, falando d’Ele
e vivendo a favor d’Ele, aprendendo d’Ele a cultivar humildade tal como Ele a projetou
desde toda a eternidade.
O mito, o fantástico, a imaginação cristã, o gênero literário mitopoético
de O Senhor dos Anéis, a dupla trilogia Guerra nas Estrelas, o sucesso mundial de
Harry Potter e as lendas indígenas brasileiras completam o restante dessa edição de
Communio.
A riqueza e a profundidade dos pensamentos e das obras de Homero,
Hesíodo e Platão (428-347 a.C.), contribuíram para um comportamento mítico
regulador das relações entre o homem e o sagrado. Julien Ries desenvolve com
simplicidade o conceito de mito segundo Mircea Eliade (1907-1986) e Paul
Ricoeur (1913-2005), que se unem nessa compreensão do homem em si mesmo
e do mundo onde vive, desenvolvendo-se como ser natural, vivo, mas com uma
imagem e semelhança divina impressa na sua pessoa.
O padre Olivier Riaudel, OP, limita a definição do mito, mas não o
considera um discurso irracional. Considera o uso teológico da noção de mito
como um portador da oscilação própria da história dessa palavra. Interessa nesse
estudo sua conclusão que não se encerra em afirmações irredutíveis, mas deixa o
leitor com uma boa curiosidade sobre as pesquisas, para que não acabem ficando
com o mito identificado com a crença de poucos, nem com um conceito de mito
que cega a inteligência para que não se abra à fé.
Ao servir-se de todas as possibilidades da linguagem humana a Palavra
Eterna de Deus vai se tornando perceptível, tornando-se um laboratório
imenso e desconcertante das possibilidades culturais. O padre José Tolentino
Mendonça, com sua rica e profunda formação bíblica, menciona a finalidade
suprema da Bíblia segundo o evangelista João, quando explica que tudo que se
escreveu é “para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e, acreditando,
terdes a vida n’Ele” (Jo 20,31).
Para que tal finalidade seja realmente atingida, os hagiógrafos, com
sua cultura própria e sob a inspiração do Espírito Santo, utilizam-se das
ferramentas que a linguagem humana oferece; na Bíblia encontram-se
entrelaçadas a história e a poesia, a imaginação e a realidade, o fantástico e
o natural, tudo, porém, como gêneros concordantes com a coerência interna
inspirada da Revelação divina.
8 COMMUNIO • Dom Antonio Augusto Dias Duarte

David C. Schindler apóia-se num ensaio do poeta Paul Claudel (1868-


1955) sobre o século XIX classificado como uma época de imaginação desnutrida.
Sabiamente revela ao leitor da Communio que o início da explosão científica-
tecnológica não fez nada – como continua até hoje – para alimentar a imaginação,
muito pelo contrário, a nutriu com comidas indigestas. Este filósofo norte-
americano oferece uma reflexão sobre a transformação da noção de causalidade
no século XVII e sobre o que essa mudança implica para o sentido da experiência
sensorial que, evidentemente, corresponde ao fundamento da imaginação.
Cultivar uma imaginação bem nutrida pela realidade e, sobretudo, pela fé exige a
redescoberta do significado ontológico do bem e do belo, da verdade e do mundo
material. Para o autor é necessário resgatar uma cultura genuinamente cristã a
partir do resgate do belo e do bem, da verdade e do natural em todo seu significado
metafísico, teológico e, até mesmo, físico, para que não se perca na humanidade
o único responsável causal de tudo – Deus – e a identidade sublime da causa
segunda o homem como “imagem de Deus” presente na criação. Daí, a afirmação
riquíssima sobre a imaginação que este artigo introduz: “imaginação, se não é o
centro do ser humano, é ao menos aquilo sem o qual não pode haver centro [...] é o
lugar onde a fé no Deus encarnado se torna, ela mesma, encarnada e, portanto, uma
fé verdadeira”.
A imaginação moral – expressão de Edmund Burke (1729-1797) – descreveu
o que aconteceu no século XVIII – a destruição dos costumes morais e da civilização
–, uma vez que os revolucionários desse tempo “rasgaram” toda a roupagem
decente da vida. Para Russell Kirk (1918-1994) a expressão “imaginação moral”
designa aquele poder de percepção ética que atravessa as barreiras da experiência
individual e de eventos momentâneos para apreender a ordem correta na alma e
na comunidade política. É esta imaginação que informa à pessoa humana sobre a
sua excelência e dignidade que lhe é inata e a protege da imaginação idílica e da
imaginação diabólica, duas outras formas que rejeitam, respectivamente, os valores
e deleita-se no perverso e no sub-humano. Nesse esclarecedor artigo encontram-
se, pela via da literatura, as formas de educar para o genuinamente humano. A
fantasia e o mágico estimulam a imaginação moral e conferem vitalidade e força,
sobretudo às crianças orientadas a lerem bons livros; as histórias narradas e as
biografias animam ao estudo correto das humanidades e para a construção de
vidas decentes. Da prosa refletida e da ficção poética é possível herdar a sabedoria
destilada de homens sábios, cuja compreensão da natureza humana leva mais além
das conclusões das ciências experimentais. Finalmente, a Filosofia e a Teologia
conduzem à formação da consciência reanimando a imaginação moral, onde a
natureza humana se vê a si mesma como ser ético.
Em nove densos artigos que completam essa edição de Communio
encontram-se estudos críticos relacionados com a sophia perennis (sabedoria
perene) interrompida, ao menos, desde o Iluminismo. Na literatura infantil,
na ficção pseudo-histórica e nas estórias pseudo-medievais personificam-se as
EDITORIAL 9

velhas verdades ou os valores perenes sob a forma da fantasia mitopoética – como


ressaltadas nos artigos de Marek Oziewicz, Michael Devaux, Owen Dudley
Edwards e Stratford Caldecott –, ou retornando à imaginação moral – nos ensaios
de Stephen Milne e Alberto da Costa e Silva – encontramos verdades consoladoras
da fé cristã, como a da realidade de que não estamos sós como pessoas e como
batizados. Na análise de Ives Gandra da Silva Martins Filho verificamos como
a comunhão dos santos, comunicação invisível ou mística, permeia a obra de J.
R. R. Tolkein (1892-1973). Da sétima arte procede a série Guerra das Estrelas,
analisada por Alex Catharino desde a perspectiva social, onde se busca no coração
humano as raízes das desordens individuais e sociais. A série Harry Potter é o
objeto do artigo de Isabelle Rak, que partindo do ponto de vista das imagens
da paternidade e da objetividade do mal, aborda os aspectos positivos da saga,
como o sacrifício e vitória sobre a morte, de uma forma palatável aos leitores
atuais. Enriquecer a imaginação moral, para que as pessoas percebam que ainda
são capazes de grandes ideais na vida e de viver em equilíbrio com a realidade, é o
propósito de tais estórias na existência do homem.
Com o tema Fé, Cultura e Imaginário a revista Communio ajuda o
progresso na direção do discernimento do que há de cristão, ainda que implícito,
nas diversas manifestações culturais que o homem é capaz de criar.
Hans Urs von Balthasar (1905-1988) encerra essas páginas com a oração
por ele composta a favor da Communio, onde faz o seu agradecimento a Deus
Uno e Trino pela bênção abundante dada à Comunhão entre os homens e as
culturas. Uno-me a este trecho imperativo como ato de gratidão pelo trabalho
realizado a favor dessa edição 101 (janeiro / março de 2009) de Communio: Revista
Internacional de Teologia e Cultura, no seu constante serviço à catolicidade da Igreja
encarnada em novas formas de vida no mundo.

Dom Antonio Augusto Dias Duarte


Bispo Auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Vice- Presidente da Instituição COMMUNIO do Brasil
Alegoria ao Pelicano (1786) Alegoria ao Cordeiro de Deus (1786)
Óleo sobre madeira de José Joaquim da Óleo sobre madeira de José Joaquim da
Rocha (1737-1807) Rocha (1737-1807)
Coleção Particular, Bahia Coleção Particular, Bahia
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 11
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 11-22

TEOLOGIA E CULTURA: TERRAS DOS CONFINS*


Cardeal Camillo Ruini

I - AS RAÍZES HISTÓRICAS

A relação entre Teologia e Cultura foi fundamental no passado, seja para


a Teologia, e mais amplamente para o cristianismo e a sua expansão
missionária, seja para a Cultura, ou melhor, para as várias culturas e civilizações
nas quais o cristianismo foi inserido, e que ele mesmo tem em grande medida
formado ou gerado. Isto aconteceu, já na época do Novo Testamento, quando
a fé em Jesus Cristo nasceu no mundo cultural judaico e logo depois entrou no
ambiente helênico-romano, iniciando a transformação entre estas culturas, que
não eram rigidamente separadas, mas já estavam bastante entrelaçadas.
Então, este processo caracterizou toda a época patrística, através de
um confronto cerrado da teologia dos Padres (não só os apologistas) com a
Filosofia e os estilos de vida então dominantes. Isto foi do mesmo modo com o
afirmar-se da missão cristã e que construiu uma dimensão essencial. Ao término
deste itinerário, a fé cristã transformou o fator mais influente e determinante
daquela cultura, e que, assim, mantinha os seus aspectos próprios e específicos
e, naturalmente, o seu dinamismo de evolução histórica.
Demoradamente, e através de complexas fases sucessivas, que teve a ver
com as grandes migrações dos povos submetidos à passagem da Antiguidade a
Idade Média, e com as posteriores fases de expansão missionária do cristianismo
através dos povos germânicos e eslavos, perdurou por vários aspectos e também
institucionalizado esse papel central do cristianismo na sua cultura. Uma
formulação clássica e exemplar de tal centralidade pode ser verificada, na
primeira questão da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino (1225-1274),
dedicada à Sacra Doctrina, onde se afirma não só que esta doutrina é ciência,
num sentido superior, e sapiência, mas que, sendo uma em si mesma, se estende
a tudo que pertence às diversas ciências filosóficas, especulativas e práticas, e,
entretanto, tem o mesmo respeito que lhes dá uma dignidade transcendente e
uma radical supremacia, todavia, deve valer-se delas, segundo o princípio de
que a graça não tolhe, mas aperfeiçoa a natureza.
*
O presente artigo é a versão escrita da conferência ministrada, em 11 de maio de 2007, pelo
autor para a Associazione Sant’Anselmo durante a Fiera Internazionale del Libro, em Torino, na
Itália. Publicado originalmente em Rivista Internazionale di Teologia e Cultura: Communio, Numero
213, luglio-agosto-settembre 2007. Texto traduzido, do original em italiano para o português, por
Ilduara Santos.
12 COMMUNIO • Cardeal Camillo Ruini

Sabemos bem que não só tem esta primazia, mas a relação entre Cultura
e cristianismo, Teologia e Cultura, progressivamente, tenha entrado em crise
desde o início da época moderna, a partir daquela que foi chamada de “guinada
antropológica”, que pôs o homem no centro, além do nascimento da ciência
chamada “galileiana” e das guerras das religiões européias, o que tornou necessária
alguma forma de conceber e gerir a esfera pública, etsi Deus non daretur.
Não é o caso de nos determos sobre estes problemas. Queria, antes, lembrar que
no interior da teologia medieval, e de forma eminente com Santo Tomás de Aquino, a
distinção, e nela, a relação recíproca entre razão e fé, Filosofia e Teologia, foram objetos
de aprofundamento sistemático como mostrou, magistralmente, Étienne Gilson
(1884-1978) num estudo publicado em 1927 sobre os motivos pelos quais o Aquinate
criticou Santo Agostinho (354-430)1, a base especulativa deste aprofundamento deve
ser encontrado na Gnoseologia e Ontologia de matriz aristotélica, que consentiu
precisamente uma distinção mais clara e sistemática entre a capacidade cognitiva
intrínseca ao homem e a luz que recebe da presença divina em si mesmo.
Uma tese histórica-teológica difundida, e desenvolvida, sobretudo por um
autor de importância como Henri de Lubac (1896-1991), sob a orientação de
Maurice Blondel (1861-1949), considera que a existência unilateral sob esta distinção
consagrada na “segunda escolástica”, isto é, precisamente aos primeiros anos da
Idade Moderna, tenha contribuído à marginalização do cristianismo, da Teologia e
do desenvolvimento da Cultura, representando involuntariamente uma legitimação
teológica. Pessoalmente posso concordar com esta avaliação com o compromisso
de não exagerar no seu concreto peso histórico. Devo sublinhar que ela não deve
portar um juízo negativo sobre a validade intrínseca, e, também, sobre a necessidade
e fecundidade histórica, daquela distinção sistemática. Ela, de fato, nasce, em última
análise, do reconhecimento do caráter divino e transcendente da revelação cristã,
antes de tudo no seu centro que é Jesus Cristo, mas também pelo que diz respeito à
vocação da humanidade a participar gratuitamente, no Espírito Santo, da relação filial
que Cristo tem com o Pai. De outra parte, nasce do reconhecimento da consciência
interna das criaturas, mesmo porque elas são obras de Deus2. Somente com base
nesta distinção é possível uma relação com a razão moderna e contemporânea e com
o pleito de liberdade que invade a nossa cultura, respeitando e valorizando aquele
dinamismo próprio alcançou, nos últimos séculos, resultados extraordinários.

II - A IDADE MODERNA
Na crise das relações entre cristianismo e cultura ocidental, é importante
distinguir, pelo menos, duas fases históricas principais. A primeira ainda reconhece
1
GILSON, Étienne. “Pourquoi saint Thomas a critiqué saint Augustin”. In: Archives d’Histoire
Doctrinale et Littéraire du Moyen-Age, Volume 1 (1926). pp. 55-127.
2
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição pastoral Gaudium et Spes: Sobre a
Igreja no mundo atual. (7 de dezembro de 1965). §36.
TEOLOGIA E CULTURA: TERRAS DOS CONFINS 13

o valor e a importância da fé cristã e, a seu modo, procura recuperar a verdade


desta fé. Novamente, em G. W. F. Hegel (1770-1831) se encontra, de qualquer
modo, esta postura, se bem que nele fica particularmente claro que a verdade e a
validade do cristianismo está subordinada à supremacia da Filosofia e comporta,
na verdade, um esvaziamento do interior do próprio cristianismo, ou seja, a sua
“transcendência” filosófica. Mas já antes de Hegel, o Iluminismo, sobretudo na
França, tinha visto emergir uma crítica radical à igreja e à fé cristã. Esta crítica,
que se conclui na negação da divindade de Cristo e da própria existência de Deus,
com a redução do homem a um simples ser do mundo, tem o seu desenvolvimento
cultural mais significativo na Alemanha, no período histórico que vai de Hegel a
Friedrich Nietzsche (1844-1900) e que foi descrita por Karl Löwith (1897-1973)
com rara profundidade3.
O século XIX é, também, o tempo no qual o cristianismo ocidental percebeu
plenamente a radicalidade desta ameaça e procurou reagir contra ela, segundo duas
grandes diretrizes, que, simplificando, podem ser levadas uma ao protestantismo
e a outra, ao catolicismo. A primeira é caracterizada pela tentativa de reformular
o cristianismo, de modo a deixá-lo aceitável ao novo contexto cultural e idôneo
não só a sobreviver nele, mas colocar-se como a sua maior dimensão: é a linha
do protestantismo liberal, de Friedrich Schleiermacher (1768-1834) a Adolf von
Harnack (1851-1930), que teve, certamente, notável influência até no âmbito
católico, sobretudo no caso do modernismo. Esta linha foi, na verdade, um
esvaziamento do centro vital do cristianismo, de seu conteúdo de fé, daquilo que
podemos chamar de “o cristianismo que crê”. Do ponto de vista histórico, ela se
concluiu, na verdade provisoriamente, com a Primeira Guerra Mundial e com a
forte afirmação da fé promovida, sobretudo, por Karl Barth (1886-1968).
A outra diretriz, que encontrou a sua expressão mais significativa e
respeitável no Concílio Vaticano I, particularmente na constituição dogmática
Dei Filius sobre fé católica (24 de abril de 1870), consistiu em relançar as
verdades fundamentais do cristianismo que apareceram negadas ou postas em
dúvida pelas formas de pensamento ainda vigentes. A abordagem de tais formas
de pensamento foi, portanto, fortemente dialética, marcada pela contestação e
pela crítica, muito mais do que pelo empenho de valorizar os aspectos positivos
que poderiam estar presentes. Tal atenção, sem dúvida, não faltou ao catolicismo
do século XIX, basta recordar a chamada Escola Católica Teológica de Tübingen*,
ou dois pensadores como o cardeal John Henry Newman (1801-1890) e padre
3
LÖWITH, Karl. Da Hegel a Nietzsche: La Frattura Rivoluzionaria nel Pensiero del secolo XIX.
Torino: Einaudi, 2000.
*
N. do E.: Os principais expoentes desse grupo de professores da Universidade de Tübingen foram
os teólogos católicos Johann Adam Möhler (1796-1838), Johann Sebastian von Drey (1777-1853),
Johann Baptist von Hirscher (1788-1865), Benedict Welte (1825-1885), Johann Evangelist von
Kuhn (1806-1887), Karl Joseph von Hefele (1809-1893), Moritz von Aberle (1819-1875), Felix
Himpel (1821-1890), Franz Quirin von Kober (1821-1897), Franz Xaver von Linsenmann (1835-
1898), Franz Xaver von Funk (1840-1907), Paul Schanz (1841-1905) e Paul Vetter (1850-1906).
14 COMMUNIO • Cardeal Camillo Ruini

Antonio Rosmini-Serbati (1797-1855), mas a linha predominante foi diferente.


Gostaria de evitar as caricaturas e as simplificações sumárias: na verdade, o trabalho
teológico e filosófico subtendido no Concilio Vaticano I, e depois continuado
com a afirmação do neotomismo, teve uma grande vivacidade cultural, por um
lado, ao revelar explicitamente os limites e contradições presentes no pensamento
moderno, e por outro, ao recuperar e repensar a herança da teologia medieval, em
diálogo com a problemática dos nossos tempos.

III - O CONCÍLIO E O PÓS-CONCÍLIO


No período entre as duas guerras mundiais, o cristianismo ocidental, seja
católico ou protestante, conheceu um período mais favorável, como vitalidade
religiosa interna, ou como acolhida no contexto geral da cultura. Ainda neste
período, aconteceu o retorno ao interior da teologia e da filosofia neotomista
e, contextualmente, o trabalho de reapropriação e valorização das grandes
riquezas bíblicas, patrísticas e litúrgicas, que constituíram a plataforma de base
do decisivo, e de muitos modos, inesperado, desenvolvimento constituído pelo
Concílio Vaticano II. Com isso, foi profundamente modificada a abordagem da
cultura do nosso tempo, passando de uma atitude crítica à busca de um lugar de
encontro, através de um diálogo marcado pela simpatia e apreciação, mas que
não significava uma aceitação unilateral e acrítica. Isso diz respeito à centralidade
do homem, principalmente pela virada antropológica da época moderna,
à autonomia da realidade terrena, à liberdade religiosa, e ao desenvolvimento
favorável da democracia e do Estado de Direito. A força do Vaticano II consistiu
em ter operado esta abertura a partir do centro vital do cristianismo, repensado
na sua extraordinária fecundidade humana e cultural.
Logo após a conclusão do Vaticano II, e não sem relação com o fenômeno
histórico e cultural que fez referência ao ano de 1968, foi intensamente posto
o problema da interpretação do próprio Concílio, com a afirmação de linhas
divergentes que dividiram a teologia católica e influenciaram a própria vida da
Igreja. Então, enquanto havia aqueles que substancialmente, ou até abertamente,
refutavam o Concílio como uma ruptura na tradição católica, outros, ainda mais
numerosos e influentes, consideravam que a novidade trazida pelo Vaticano II
deveria conduzir a uma abertura radical através da cultura do nosso tempo, como à
superação, a todo custo, das diferentes confissões cristãs, até aquela, que a meu ver,
teria representado uma ruptura da “forma católica” do cristianismo. É importante
recordar o livro Unfehlbar?: Eine Anfrage [Infalível?: Uma investigação]4 de
Hans Küng, mas também é importante o que escreveu um teólogo como Otto
H. Pesch, na obra Mysterium Salutis: “A respeito do conceito corrente de ortodoxia,
deve-se dizer hoje que ninguém pode mais ignorar a quantidade de heresia, não só
4
KÜNG, Hans. Unfehlbar?: Eine Anfrage. Zürich: Benziger, 1970.
TEOLOGIA E CULTURA: TERRAS DOS CONFINS 15

material, mas também ‘formal’, que existe hoje na igreja”5. Trata-se para ele de uma
situação positiva, que consiste particularmente em afirmar, finalmente, também
no interior da igreja católica, a primazia da fé pessoal que diz respeito a cada
norma ou condição eclesiástica.
De fato, começou e, rapidamente, se difundiu, logo após o Concílio, a
prática de uma interpretação bastante desenvolta, reducionista, e até evasiva da
mesma realidade essencial da fé. Portanto, houve, assim, uma cisão entre aqueles
teólogos que mais contribuíram para amadurecer as premissas do Concílio,
bem como seus desdobramentos. Nos decênios mais recentes, esta situação está,
ainda que com esforço, se restabelecendo: para a plena e positiva superação, que
não significa a supressão da justa e indispensável liberdade de pesquisa e de um
pluralismo teológico integro, é muito importante a linha hermenêutica do Vaticano
II que Bento XVI propôs no discurso na Cúria Romana, em 22 de dezembro de
2005, onde ele mesmo a qualificou como “hermenêutica da reforma”.
Como disse, de forma muito pertinente, o Papa naquele discurso, o
grande programa do Concílio, de um “sim” fundamental, ainda que não acrítico,
para a Idade Moderna, não deve absolutamente ser abandonado, mas deve ser
desenvolvido e concretizado nos diversos aspectos: nas relações entre ciências
empíricas e históricas, nas relações entre Igreja e instituições políticas. Sobre este
aspecto, Bento XVI ressalta que há uma evolução positiva, como uma maior
consciência, adquirida a partir das ciências empíricas, dos limites intrínsecos
aos próprios métodos ou como a difundida noção, que exclui a contribuição da
religião para a vida social e pública, que acaba por ser perigosa para a sociedade,
além de anacrônica.

IV - POR UM DISCERNIMENTO DO TEMPO QUE ESTAMOS VIVENDO


Para continuar por esta estrada, vale tentar um juízo, sempre difícil e audaz,
da época que vivemos. O então professor Walter Kasper, no livro Einführung in
den Glauben [Introdução à fé], publicado em 1972, falava do nosso tempo como
um “segundo iluminismo”, isto é, uma “revelação do iluminismo em si mesmo”, uma
“metacrítica” da crítica iluminista, que é exercida com relação às duas grandes
reivindicações do iluminismo: a razão e a liberdade, ao passo que a própria
crítica mostrou como as duas estão em grande parte condicionadas e marcadas
por múltiplos pressupostos, que, no fim, são altamente problemáticos. Assim,
nos damos conta, de novo, da limitação do homem, da historicidade e do fato
irredutível da realidade na qual vivemos, e da precariedade dos nossos esquemas
de pensamento e projetos de vida pessoal e pública. Em tal situação, na opinião de
Kasper, abrem-se diante da humanidade ocidental duas possíveis estradas. Uma

5
FEINER, Johannes & LÖHRER, Magnus (Edd.). Mysterium Salutis – Volume IX: L’evento salvifico
nella comunità di Gesù Cristo (Parte III). Brescia: Queriniana, 1975. pp. 388-389.
16 COMMUNIO • Cardeal Camillo Ruini

é a de permanecer dentro dos próprios limites, se contentando somente nisso,


considerando-os intransponíveis: refutando, portanto, como privadas de sentido
as problemáticas religiosas, assim como as metafísicas. A outra estrada reconhece
a própria limitação, ou, melhor, a miséria profunda, mas deixa em aberto para
as perguntas e às aspirações que o homem continua a carregar dentro de si; em
última análise aberta à necessidade de salvação, e à busca de uma existência feliz e
completa, de uma resposta às perguntas sobre o sentido da vida e sobre a origem
da realidade6.
A meu ver, esse ponto de vista de Kasper, bastante visionário para seu tempo
– basta pensar quão difundida era a crença na primazia cultural do marxismo – que
após trinta e cinco anos, continua, em grande parte, válida. Entretanto, porém, têm
ocorrido grandes novidades não só nas atitudes espirituais, mas nos fatos históricos.
Refiro-me ao nascimento da nova “questão antropológica” e da problemática
conexa da “ética pública”, seguidas das descobertas das ciências e da biotecnologia,
que tornaram possíveis intervenções diretas sobre a realidade física e biológica
do ser humano, como as grandes mudanças dos cenários mundiais, que tiveram
sua data emblemática no dia 11 de setembro de 2001, mas que consideram mais
amplamente a rápida afirmação de grandes nações e civilizações pouco dispostas a
aceitar o predomínio do ocidente.
Quanto às atitudes do espírito, nos decênios sucessivos ao diagnóstico de
Kasper, elas ficaram mais evidentes. A pretensão do relativismo de agir como critério
insuperável, e paradoxalmente “absoluto’, seja da realidade, seja do bem moral e, ao
mesmo tempo, a semelhança com o fenômeno, talvez ainda mais amplo e profundo,
do niilismo, parece quase ratificar a tese de Nietzsche e Martin Heidegger (1889-
1976) de que o destino do nosso tempo estaria intimamente ligado à ‘morte de Deus’.
Um exemplo muito recente da influência penetrante do niilismo num âmbito como
o do Direito, pode ser representado pelo livro de Natalino Irti Il salvagente della forma
[O salva-vidas da forma]7 e pelo diálogo ainda de Irti com Claudio Magris, publicado,
em 6 de abril de 2007, no jornal italiano Corriere della Sera.
As formas pelas quais a ‘morte de Deus’ faz incursões na cultura ocidental de
hoje são diversas. Uma delas é a afirmação do ateísmo, motivada, principalmente,
pela absolutização da interpretação evolucionista do universo, como se esta fosse
bem mais que uma teoria científica, fosse “como se uma teoria universal de toda a
realidade, para além das perguntas sobre a origem e a natureza das coisas não fossem
mais lícitas nem necessárias”8.

6
KASPER, Walter. Introduzione alla fede. Brescia: Queriniana, 2003. pp. 27-31.
7
IRTI, Natalino. Il salvagente della forma. Bari: Laterza, 2007.
8
RATZINGER, Joseph. Fede Verità Tolleranza: Il cristianesimo e le religioni del mondo. Siena:
Cantagalli, 2005. pp. 189-190. [N. do T.: Em língua portuguesa a obra se encontra na seguinte
edição brasileira: RATZINGER, Joseph. Fé, verdade e tolerância: O cristianismo e as grandes religiões
do mundo. (Tradução de Sivar Hoeppner Ferreira; revisão de Edson Dognaldo Gil). São Paulo:
Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2007].
TEOLOGIA E CULTURA: TERRAS DOS CONFINS 17

As afirmações do ateísmo ainda são muito exigentes no que se refere aos


limites da consciência. Bem mais difundidas são as posições agnósticas, que
se reconduzem àquela idéia, ou postura espiritual, latet omne verum, de que
toda verdade está escondida9. Poderia ser dito que o niilismo tem, assim, uma
feição relativista, aparentemente bem mais benigna e tolerante, e talvez até mais
coerente com sua natureza mais profunda. Em todo o caso, ainda nos afastamos
radicalmente do conteúdo essencial e do próprio horizonte do cristianismo,
porque um Deus de quem não se pode saber nada, certamente, não é o Deus que
fala conosco e entra na história.
Nos decênios mais recentes, houve até, com características bem diferentes,
o desenvolvimento e a recuperação de um forte do sentido religioso e o declínio
da idéia de que a secularização como um processo irreversível, destinado a
levar se não ao desaparecimento, mas à irrelevância da religião, ao menos no
ocidente e a nível público. A razão intrínseca de tal declínio repousa, sobretudo,
na incapacidade de responder, por parte da cultura secularista, às perguntas
fundamentais e concretamente inevitáveis sobre o sentido e a direção da nossa
existência.
Sobretudo, a partir do dia 11 de setembro de 2001, foi acrescentada uma
outra motivação, ligada à percepção difusa sobre a ameaça que parece vir da
pressão fundamentalista do islã: esta percepção orientou o despertar do sentido
religioso a assumir mais precisamente um perfil cristão e, num país como a Itália,
mais católico. Trata-se de um fenômeno amplamente presente e sentido com
bastante força na população, e que está assumindo grande relevância até mesmo
no plano cultural.
Entre o despertar religioso e as tendências relativistas e niilistas existe,
objetivamente, um profundo contraste: esta é a razão substancial pela qual,
na Itália assim como em muitos outros países, a religião, e em particular, o
cristianismo – e para outros, o islã –, se transformou desde já, na cultura e na
sociedade, um dos mais relevantes terrenos de confronto e até de polêmica, e que
fica se torna ainda mais concreto e envolvente pelo surgimento da nova questão
antropológica, com as suas implicações na ética pública.

V - TENTATIVAS DE RESPOSTA ANTROPOLÓGICA


Numa situação deste gênero, há um espaço muito grande, e até mesmo a
necessidade, de contribuição da Teologia. Para delinear a fisionomia que a religião
poderia assumir, parece útil recordar as limitações de algumas tentativas já tentadas
e, ao menos em parte, ainda atuantes. Uma delas, atualmente em desuso por causa
da secularização, foi a chamada ‘teologia da secularização’, de origem, sobretudo
protestante, mas que se infiltrou, também, no âmbito católico. Ela ratificava, como
9
Idem. Ibidem. pp. 184-186.
18 COMMUNIO • Cardeal Camillo Ruini

resultado de uma dinâmica interna do cristianismo, a separação crescente entre


fé e Cultura, e confiava a mediação das partes somente à afirmação da origem
cristã de tal processo. Ainda assim ficava aberto o caminho para a exclusão
progressiva do cristianismo, enquanto, gradualmente, ocorriam os processos de
secularização que o afastavam da própria origem, como normalmente acontece
na história.
Uma outra abordagem teológica, ainda hoje bastante presente, embora
radicalmente ferida pelos eventos de 1989, que destacou a insustentabilidade,
não só política e econômica, mas antropológica e ética dos modelos de vida
associados ao marxismo, é a da Teologia da Libertação. Nas suas origens está a
intenção de recuperar, em vista do futuro, o papel histórico do cristianismo. Mas
a limitação substancial consiste em confiar este papel, principalmente, à práxis
política, deixando, assim, por conta da política, o próprio problema da salvação
do homem e do sentido da existência. Isso provoca uma absolutização falsa e
destrutiva da própria política.
A profunda desilusão gerada no âmbito da Teologia da Libertação,
pelos fatos ocorridos em 1989, levou vários de seus expoentes a tomar posições
marcadamente relativistas. Eles encontraram, assim como muitos outros teólogos,
aquela orientação, que tem vários nomes, dentre eles o de “Teologia da Religião”.
Segundo essa orientação, não só o cristianismo, mas também as muitas outras
religiões do mundo, com as populações e as culturas a que se referem – muitas
vezes vistas como tendo sido objeto, por parte dos cristãos, de um imperialismo
e colonialismo não apenas político, mas também religioso – e se constituiriam,
na verdade, juntamente com o cristianismo histórico, em caminhos autônomos e
legítimos para a salvação.
Foi abandonada a fundamental e realmente originária verdade da
fé, muito evidente no Novo Testamento e fonte primária do dinamismo
missionário da igreja dos primeiros séculos, segundo a qual Jesus Cristo, na sua
concretude de Filho de Deus que se fez homem e viveu na história, é o único
Salvador de todo o gênero humano, ou melhor, do universo. A declaração
Dominus Iesus (6 de agosto de 2000) da Congregação para a Doutrina da
Fé, reafirma com força esta verdade e nada mais fez senão dar voz à missão
essencial da Igreja. O já citado livro Fé, verdade e tolerância do, então, cardeal
Joseph Ratzinger, destaca como, em determinadas formas de Teologia da
Religião, está em ação o princípio da latet omne verum, que combina certos
aspectos do atual relativismo generalizado no ocidente com a abordagem do
divino das grandes religiões orientais, e até do pensamento tardio que, nesses
termos, se opõe ao cristianismo. Em diversos teólogos essa virada relativista é
seguida pela afirmação, não abandonada, da primazia da práxis: isto é, onde a
consciência não pudesse chegar, seria possível, ao contrário, alcançar a prática.
Somente ela seria decisiva para a salvação e o diálogo, ou mesmo a unidade
entre as religiões, deveria ser resolvida por seu intermédio.
TEOLOGIA E CULTURA: TERRAS DOS CONFINS 19

VI - CONTRIBUIÇÕES A SEREM AVALIADAS POSTERIORMENTE


Naturalmente, em cada uma dessas três definições teológicas estão presentes
instâncias que não podem ser deixadas de lado; da vontade de superar uma visão
“catastrófica” da modernidade, a relação que a fé cristã não pode deixar de se
relacionar com a humanização do mundo, até a necessidade de uma perspectiva
realmente universal que tenha espaço concreto, no seio do cristianismo, à
pluralidade da cultura e da civilização. Deste último ponto de vista, o, então,
cardeal Joseph Ratzinger adiantou10 uma proposta muito inovadora no que diz
respeito à hipótese teológica muito difundida atualmente e, para mim, bastante
convincente: abandonar a idéia de inculturação de uma fé, em si, culturalmente
neutra, e que poderia ser transplantada às diversas culturas, independente de suas
religiões, e passar a nos referirmos, ao contrário, ao encontro de culturas (ou
“interculturalidade”), com base em dois fortes pontos de apoio. Por um lado,
o encontro das culturas é possível e acontece continuamente porque, apesar de
todas as diferenças, os homens que a produzem têm em comum a mesma natureza
e a mesma abertura da razão para a verdade. Por outro lado, a fé cristã, que nasce
da revelação da própria verdade produz o que podemos chamar de ‘cultura da fé’,
cuja característica é o não pertencer a um determinado povo, mas a capacidade
de subsistir em cada povo ou sujeito cultural, entrando em relação com a cultura
individual e nela se encontrando penetrando. Concretamente, esta é a unidade, e
ao mesmo tempo, a multiplicidade e universalidade cultural do cristianismo.
Uma contribuição ainda hoje bastante relevante à realização das tarefas que
a Teologia tem, hoje, diante de si, pode vir, na minha opinião, do grande impulso
de renovação que percorreu a própria Teologia nos anos que precederam o Concílio
Vaticano II, e também pela herança da teologia neotomista, apesar de suas limitações,
que podem ser definidas mais precisamente, por um lado, pela sub-valorização da
distância histórica que separa Santo Tomás de Aquino e toda a grande escolástica
do nosso tempo, e concretamente das grandes descobertas, teóricas e práticas, que
ocorreram ao longo dos séculos; por outro lado, elas podem ser vistas nas tentativas de
demonstrar a verdade das premissas do cristianismo (i praembula fidei) por intermédio
de um raciocínio rigorosamente independente da própria fé.
Esta tentativa verdadeiramente falhou, como observou o cardeal Ratzinger
na já citada obra11, e quaisquer outras eventuais tentativas análogas estão
propensas a falhar, pois as grandes questões a respeito do homem e de Deus (e,
igualmente, a respeito de Jesus Cristo), que inevitavelmente chamam a atenção
e envolvem o sentido e a direção de nossa vida, colocam em jogo nosso próprio
ser e, portanto, embora necessitem de todo o rigor e capacidades críticas da nossa
inteligência, não podem ser decididas independentemente das escolhas segundo
as quais orientamos nossas vidas.
10
Idem. Ibidem. pp. 57-58.
11
Idem. Ibidem. pp. 141-142.
20 COMMUNIO • Cardeal Camillo Ruini

Reciprocamente, e em substância, por razões análogas, falhou a tentativa


contrária de Karl Barth de apresentar a fé como um simples paradoxo que
somente pode subsistir em total independência da razão. A propósito disto, não
só relembrando Barth, mas a todo o importante filão da “teologia querigmática”,
se pode observar que é fundamental e indiscutível, mas não suficiente, apresentar
a enorme riqueza e beleza do mistério cristão, tal como emerge das fontes bíblicas,
patrísticas e litúrgicas e que foram enriquecidos no decorrer da história. Para que
tal riqueza e beleza permaneçam vivas e eloqüentes nos dias de hoje, é, de fato,
necessário que entrem em diálogo com a razão crítica e com a busca pela liberdade
que as caracterizam, de modo que abram esta razão e esta liberdade, por assim dizer,
‘desde dentro’, e passem a assimilar na fé cristã e os valores que elas contêm.

VII - UMA TEOLOGIA CRISTOCÊNTRICA E, PORTANTO, TEOLOGIA E


ANTROPOLOGIA VERDADEIRAS

No centro e no coração de uma aproximação teológica mais bem adequada


às interrogativas do tempo que está diante de nós, permanece, ao que me parece,
a forma de teologia radicalmente cristológica e cristocêntrica, e mesmo por isso
radicalmente teológica e antropológica, que é proposta, implicitamente, no
parágrafo 22 da Gaudium et Spes:
Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece
verdadeiramente. [...] Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai
e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime.
Não é por isso de admirar que as verdades acima ditas tenham n’Ele a sua fonte e
n’Ele atinjam a plenitude.

Por isso a atenção do teólogo deve se concentrar principalmente em


Jesus Cristo, compreendendo sua realidade histórica e a profundidade do seu
mistério. O papa Bento XVI, no livro Jesus de Nazaré12, indicou um caminho
e uma metodologia de trabalho que podem se revelar bastante fecundas para
o desenvolvimento da Teologia, especialmente naquela fronteira inevitável
representada pela união das exigências da crítica histórica e as de uma hermenêutica
autenticamente teológica.
À luz da verdade e do mistério de Jesus Cristo, podem ser confrontados
os dois pólos do discurso teológico, Deus e o homem que são assim, de modo
explícito ou implícito, as dúvidas da cultura do nosso tempo. No que diz respeito
a estes dois dilemas, o atual contexto cultural – em que as ciências empíricas,
com o tipo de racionalidade e a mentalidade que criaram, exercem um papel
propulsor e de certo modo hegemônico – põem a Teologia num confronto bem
mais aprofundado com tais ciências do que tudo o que já aconteceu até agora: um
12
RATZINGER, Joseph. L’Europa di Benedetto nella crisi dele culture. (Introduzione di Marcello Pera). Siena:
Cantagalli, 2005. pp. 115-124.
TEOLOGIA E CULTURA: TERRAS DOS CONFINS 21

confronto que, ademais, não pode ocorrer sem uma dimensão filosófica autêntica
e não reduzida. Por isso, no que diz respeito a Deus, assume particular relevância
a reflexão que se concentra sob a estrutura e os pressupostos do conhecimento
científico para demonstrar que, exatamente a partir deles, novamente é proposta
a questão sobre a inteligência criadora.
Analogamente, naquilo que diz respeito ao homem, o confronto é decisivo
seja tanto com a Teologia da evolução quanto com as neurociências, para mostrar,
sobretudo à luz da própria capacidade exclusiva de produzir cultura, que o
homem emerge da natureza, não no sentido de uma simples origem, mas de
uma autêntica transcendência. Somente sob esta base antropológica é possível
e consistente a promoção e defesa da dignidade humana tal como Teologia é
chamada a fazer, particularmente hoje, no plano da ética pública.
É este o sentido do programa de “alargar espaços da racionalidade” que
Bento XVI propõe com insistência, também no que diz respeito tanto à razão
científica quanto à razão histórica. Este programa implica a dupla convicção
de que a revelação de Deus em Jesus Cristo oferece à razão uma ajuda preciosa
para seguir seu caminho, sempre mais articulado, complexo e especializado, sem
perder de vista o horizonte global e as perguntas fundamentais, e, além disso,
precisamente através do confronto com a razão contemporânea, a fé e a Teologia
são estimuladas a aprofundar posteriormente a novidade no que diz respeito ao
mistério de Deus e do homem que nos veio através de Jesus Cristo.
Ao contribuir para semelhante programa, a Teologia não deve ter a
pretensão racionalista de demonstrações obrigatórias, como já chamei atenção
para as praeambula fidei, mas deve estar mais consciente dos limites do próprio
discurso: assim, Joseph Ratzinger afirma que a propósito do Lógos criador, do
ponto de vista racional, continua sendo a ‘melhor hipótese’, que pede ao homem
e à razão a renúncia de sua posição de domínio e se dedique à humildade escuta13.

VIII - REVELAÇÃO, IGREJA, TEOLOGIA


Em suma, a proposta foi uma grande e corajosa saída dos discursos
auto-referenciais da Teologia, de seus próprios cantos e recantos, que podem,
inevitavelmente, subsistir, mesmo quando os interlocutores “externos”, por sua
vez, estiverem bem separados dos reais problemas de hoje. Esta abertura coincide,
na verdade, com a total coerência interna da teologia cristã e católica, e se alimenta
de tal coerência. Tivemos um bom exemplo na dinâmica espiritual, cultural
e histórica no pontificado de João Paulo II e temos agora um outro exemplo
significativo, mais diretamente teológico, no pontificado de Bento XVI.
13
RATZINGER, Joseph. L’Europa di Benedetto nella crisi dele culture. (Introduzione di Marcello
Pera). Siena: Cantagalli, 2005. pp. 115-124.
22 COMMUNIO • Cardeal Camillo Ruini

Concluo procurando explicar o sentido e o fundamento teológico de tal


coerência, e, portanto, também indicando o caminho para superar, a partir do
interior, a fratura que se verificou na Teologia católica logo após o Concilio Vaticano
II. Faço isso ao referir-me a análise da natureza da divina revelação que Joseph
Ratzinger elaborou no estudo sobre São Boaventura (1221-1274), com o qual
pretendia a habilitação para lecionar na universidade, e que propôs, sinteticamente,
na sua autobiografia14. A revelação é, sobretudo, o ato pelo qual Deus Se manifesta;
não o resultado objetivo (escrito) deste ato. Conseqüentemente, o próprio conceito
de revelação, inclui o sujeito que a recebe e a compreende – o povo de Deus do
Antigo e do Novo Testamento – dado que, se ninguém percebesse a revelação,
nada teria sido desvelado; nenhuma revelação teria acontecido. Por isso, a revelação
precede a Escritura, e nela se reflete, mas não é simplesmente idêntica. A própria
Escritura está ligada ao sujeito que recebe e compreende tanto a revelação quanto
a Escritura, ou seja, está ligada à Igreja. Concretamente, a Escritura nasce e vive no
interior deste sujeito. Com isto, surge o significado essencial da tradição e também
o motivo profundo do caráter eclesiástico da fé e da Teologia, não considerando
o fundamento de validade de uma abordagem da Escritura que seja, ao mesmo
tempo, histórica e teológica. É, então, com boa consciência crítica que podemos
dar boas vindas, como teólogos, para a última relação entre Escritura e tradição com
toda a Igreja e seu magistério, como é apresentado no parágrafo 10, da Constituição
dogmática Dei Verbum (18 de novembro de 1965), sobre a revelação divina.

Cardeal Camillo Ruini nasceu em 19 de fevereiro de 1931, em Reggio Emilia, na Emilia-


Romagna, na Itália, recebeu a ordenação presbiteral, na Diocese de Roma, em 8 de dezembro
de 1954, recebeu a ordenação episcopal em 29 de junho de 1983 e foi criado cardeal pelo
papa João Paulo II em 28 de junho de 2001. Cursou a graduação em Filosofia e em Teologia
na Pontificia Università Lateranense, em Roma. Recebeu o Doutorado honoris causa em
Comunicação Social da Pontificia Università della Santa Croce. Foi Bispo Auxiliar da
Diocese de Reggio Emilia de 1983 á 1991, Vigário Geral de Sua Santidade para a Diocese
de Roma de 1991 à 2008, e Chanceler da Pontificia Università Lateranense de 1991 à
2008, além de ter ocupado os cargos de Secretário Geral, de 1986 à 1991, e de Presidente, de
1991 à 2008, da Conferência Episcopal Italiana. É autor, dentre outros, dos seguintes livros:
Il Vangelo nella nostra storia: Chiesa, cultura e società in Italia (Città Nuova, 1989),
La ragioni della fede: Indicazioni di percorso (Paoline, 1993), Nuovi segni dei tempi:
Le sorti della fede nell’età dei mutamenti (Mondadori, 2005), Verità è liberta: Il ruolo
della Chiesa in uma società aperta (Mondadori, 2006), Alla sequela di Cristo: Giovanni
Paolo II, il servo dei servi di Dio (Cantagalli, 2007), e Verità di Dio e verità dell’uomo:
Benedetto XVI e le grandi domande del nostro tempo (Cantagalli, 2007).
14
RATZINGER, Joseph. La Mia Vita: Autobiografia. (Traduzione di Giuseppe Reguzzoni). Cinisello
Balsamo: San Paolo, 2005. pp. 72, 88-93. [N. do E.: Em língua portuguesa a obra se encontra na
seguinte edição brasileira: RATZINGER, Joseph. Lembranças da minha vida: Autobiografia parcial
(1927-1877). (Tradução de Frederico Stein). São Paulo: Paulinas, 2006].
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 23
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 23-38

A CULTURA NUNCA É NEUTRA*


Padre James V. Schall, S.J.

“Ut ager quanvis fertilis sine cultura fructuosus esse non potest, sic sine doctrina
animus” [Assim como um campo, ainda que fértil, não pode dar frutos sem
cultivo, também é um espírito sem cultura].
Cícero. Tusculanae Disputationes, II, 41

Quais, então, são as condições que tornaram possível uma cooperação frutífera
entre religião e cultura? Por um lado, a asserção dos juízos espirituais absolutos
e transcendentes não deve ser interpretada como uma negação dos valores
limitados, temporais e historicamente condicionados da cultura; e por outro,
as formas de uma cultura particular, mesmo quando inspiradas ou consagradas
por um ideal religioso, não devem ser vistas como possuidoras de uma validade
religiosa universal.
Christopher Dawson2

O próprio Aristóteles pode nos dar a pista para a razão de tal falta de conclusões
(de uma nova cultura sobre uma anterior), quando observa que não devemos
esperar alcançar conclusões precisas a partir de ciências subordinadas, categoria na
qual podemos incluir as análises de culturas, quando a indeterminação do assunto
não o permite. É evidente, pode-se dizer, com justiça, que no caso da cultura da
natureza humana de Jesus, que foi possuída por Ele que era a Segunda Pessoa
divina da Trindade [...] havia uma cultura completamente não contaminada por
elementos estranhos.
E. B. F. Midgley3

I
Tornamo-nos familiarizados com termos como “multiculturalismo”,
“relativismo cultural”, “cultura aristocrática”, “inculturação”, “cultura democrática”,
* O presente artigo é a versão escrita da conferência apresentada, em 15 de outubro de 2004, pelo
autor no Ingersoll Symposium: “The Importance of Culture”, realizado em Belmont Abbey, em
North Carolina. Publicado, originalmente, em Communio: International Catholic Review, Volume
XXXIV, Number 1 (Spring 2007): 150-161. Texto traduzido do original em inglês para o português
por Marcio de Paula S. Hack.
1
Citado em: JOHN PAUL II, Pope. “Anniversary of the Polish University of Opole (17 February
2004)”. In: L’Osservatore Romano, English edition, 3 March 2004. p. 2.
2
DAWSON, Christopher. Religion and Culture: The Gifford Lectures, 1947. New York: Sheed &
Ward, 1948. pp. 208-209.
3
Carta de E. B. F. Midgley para James V. Schall, S.J., datada de 20 de abril de 2004, Aberdeen, Escócia.
24 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.

“cultura de massa”, “diversidade cultural” ou mesmo “cultura do crime”,


“cultura latino-americana” e “cultura empresarial”. Na superfície, embora
não filosoficamente indiferente em termos do que pressupõem, tais palavras e
expressões procuram valorizar a variedade das maneiras de ser, desde a alimentação
até o pensamento, da adoração à venda de mercadorias, de falar inglês até falar
mandarim, para não mencionar o aramaico, o sânscrito ou a língua árabe.
Além disso, a noção antropológica de culturas antigas e modernas se
esforça, essencialmente, para descrever, quase como artefatos, como um dado
grupo ou raça de pessoas pensou ou agiu, da procriação até o funeral, do roubar
até o cantar. Nenhum esforço é feito, a princípio, para julgar se este modo de vida
é mais válido do que qualquer outro modo de vida igualmente peculiar. De fato,
encontramos uma tendência científica, análoga à preocupação com espécies de
animais e plantas, de preservar um modo de vida “cultivado” apenas por preservá-
lo, como se fosse meramente um precioso e estático objeto de estudo científico.
Este “espécime” seria ameaçado por qualquer mudança radical em seus costumes
e modos culturais. Os objetos de “cultura” estão, assim, presos em sua própria
ordem fechada, precisamente porque um padrão universal é, por princípio,
rejeitado. De fato, a “ciência” cultural moderna é, ironicamente, muitas vezes
usada para impedir qualquer mudança. Queremos que os aborígines permaneçam
aborígines, para que possamos estudá-los. Qualquer idéia de “melhoria” é rejeitada,
já que implica um padrão pelo qual sabemos o que o “melhor” pode significar.
O que age por detrás de todas estas expressões que incluem a palavra
“cultura” é, normalmente, a noção de “neutralidade cultural”. Isto é, uma “alta
cultura”, uma “cultura certa”, uma “cultura universal” não podem ser concebidas
ou admitidas. Uma “alta cultura” imporia limites à diversidade cultural e
questionaria a filosofia predominante, que defende o primado. Qualquer tentativa
de distinguir entre judeus e gentios, bárbaros e gregos, primitivos e modernos, na
base do melhor e do pior, mesmo do bom e do melhor, vai contra a tese de que
não existe uma alta cultura em que certas distinções sejam fundamentais para
o entendimento do bem humano em si mesmo, em qualquer forma que possa
assumir.
Do ponto de vista “neutro”, quando comparamos culturas, parece que
estamos tentando “impor”, como dizem, um conjunto de valores duvidosos
sobre outro conjunto de valores igualmente dúbios. Ambas estão certas, se diz,
simplesmente porque existem, não importa como sejam. A palavra “impor”
tomou o lugar de “persuadir”, já que no mundo relativista não existe qualquer
base para a mudança razoável ou para a comparação erudita. A presunção é
a de que ninguém pode mostrar ou demonstrar que uma coisa é superior ou
preferível a outra. O princípio moral que deriva desta posição é que tudo deve ser
preservado no estado puro. Nada numa cultura é “melhor” do que noutra, então
porque mudar? O padrão universal é o de que não existe um padrão universal – e
esta é a grande contradição cultural. Desnecessário dizer, esta posição faz com que
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 25

todos os esforços “missionários” que buscam “mudar” almas sejam, no mínimo,


problemáticos, senão proibidos por “respeito” à cultura.

II
A própria palavra “valor”, ademais, é uma palavra filosófica
moderna deliberada e metodologicamente privada de qualquer conteúdo
substancialmente embasado. Seguindo a idéia de Max Weber (1864-1920), um
“valor” significa basicamente o que desejamos que signifique. A vontade é o
seu único fundamento. E a vontade como vontade é vazia de conteúdo. Um
“valor”, como dizem, tem o status de uma “opção”. Não podemos, neste modo
de ver, estabelecer ou construir firmes objetos ou princípios primeiros. Podemos
apenas “optar” por aqueles de que “gostamos”. Nenhuma “razão” pode ser dada
para explicar plenamente qualquer opção. Nossa epistemologia não nos permite
conhecer as coisas reais ou a sua ordem. O “valor” do valor, como teoria, é que
não tem valor nenhum, nenhum conteúdo estabelecido.
Diz-se que esta “abertura” a todas as posições previne o “fanatismo”, o
pior dos males num mundo culturalmente neutro, já que sugere uma suspeita
persistente da existência de um padrão. Nesta perspectiva, o “fanatismo” serve,
geralmente, como definição para qualquer afirmação de que exista uma verdade
objetiva nas coisas, incluindo coisas humanas e divinas. Podemos, portanto,
louvar os “valores” um do outro, sem fazer qualquer esforço para determinar
se são dignos de louvor comparados com algum padrão que possa dar base a
todo significado. Assim, podemos detectar coisas por trás da mera aparência
que assume a apaixonada oposição ao “fanatismo” no mundo moderno. O
problema não é tanto com aquilo que defendem alguns “extremistas”. É com
o fato de que qualquer coisa possa ser defendida como verdade. A oposição
ao “fanatismo”, hoje, é, na verdade, uma oposição à verdade. E não podemos
falar de verdade, já que isto sugeriria um padrão. A alternativa é simplesmente
negar que qualquer verdade, não importando de que maneira foi afirmada,
seja possível. É sobre isso que realmente versam muitas preocupações sobre o
“fanatismo”, o medo de que a verdade seja possível, com direito e argumento
válidos para a sua afirmação.
Tais visões sobre a cultura e seus valores, sem dúvida, são, em si mesmas,
proposições filosóficas que requerem um teste cuidadoso. Uma das origens da
“neutralidade valorativa” é Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cujo termo
“vontade geral” é deliberadamente construído para evitar qualquer confronto
com algum padrão abrangente. Leo Strauss (1899-1973) formulou corretamente
o problema:
A vontade geral, a vontade imanente em sociedades de certo tipo, substitui o
direito natural transcendente […]. A dificuldade a que Rousseau nos leva está
26 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.

mais no fundo. Se o critério último de justiça se torna a vontade geral, i.e., a


vontade de uma sociedade livre, o canibalismo é exatamente igual ao seu oposto.
Toda instituição consagrada por um povo tem de ser considerada sagrada4.

Hoje, porém, não são apenas as “vontades do povo” que praticam


“canibalismo” no que toca o “valor” da vida humana. Tais práticas, em suas formas
recentes e mais “sofisticadas”, têm bem mais probabilidade de serem defendidas
por cientistas e intelectuais do que pelos caçadores de cabeça contemporâneos, se
é que eles ainda existem.
De fato, já que a própria vida humana, neste meio, é apenas outro “valor” – e
um “valor” é o que determinamos que seja – então, pelo princípio da “neutralidade
valorativa”, não possuímos padrão para julgar se o canibalismo, o aborto, o uso
de seres humanos como cobaias, ou qualquer outra coisa esteja certa ou errada,
se a “vontade geral” a aprova ou a promove. O que os tribunais ou legislações
disserem “se torna” a lei, mesmo o aborto tardio, algo bem pior até mesmo do
que o canibalismo. O “direito natural transcendente” é substituído pela volátil
“vontade geral”. Por esse critério, uma sociedade que pratica o canibalismo, como
forma de nutrição ou de demonstração de bravura, é, moralmente, uma sociedade
melhor do que a que pratica livremente o aborto ou a eutanásia por conveniência.
O moderno e o primitivo, nesse sentido, somente diferem em matéria de gosto –
o canibal usa o corpo humano como alimento, a cultura moderna, quando o usa,
usa o corpo do feto para fazer cosméticos e transplantes de órgãos. Para justificar
nossa posição, pensamos ter o “direito” – outra palavra baseada na vontade, de
acordo com o pensamento moderno – de corrigir nossos próprios “erros” por
intermédio da eliminação das conseqüências, como se apenas importasse a nossa
intenção, e não nossas ações sobre uma realidade objetiva.

III
Em seu livro sobre a noção de Cultura na Constituição Pastoral Gaudim et
Spes (7 de dezembro de 1965), o documento do Vaticano II que abriu a Igreja aos
“direitos” e “valores” da “cultura” moderna, a professora Tracey Rowland escreve:
No pensamento pós-conciliar, é possível encontrar várias antíteses: entre a ênfase
sobre a “autonomia da cultura”, um conceito endossado no parágrafo 59 da
Gaudium et Spes, mas não definido e interpretado de formas várias, e a idéia de
que nenhum ambiente cultural seja realmente neutro em relação à Teologia ou
completamente autônomo de qualquer outro; entre um endosso acrítico à cultura
de massa […] e a idéia de que a cultura de massa seja tóxica para a virtude e
resistente à graça; entre uma concepção da liturgia como necessariamente
incorporando as normas estéticas e lingüísticas do mundano e uma concepção
da liturgia como necessariamente transcendente ao mundano; entre a promoção
4
STRAUSS, Leo. “What Is Political Philosophy?”. In: What Is Political Philosophy? and Other Essays.
Glencoe: The Press, 1959. p. 51.
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 27

da tradição iluminista como “realizações magníficas” e uma crítica das tradições


iluministas como “fragmentos divididos” ou “mutações” ou “reconstruções
heréticas” ou “paródias seculares da síntese teísta clássica”5.

Obviamente, muita coisa está em jogo, caso admitamos que determinada


cultura não traga em si quaisquer hábitos ou costumes, qualquer instituição que
milite contra uma filosofia ou religião universal baseada na verdade das coisas.
Estamos igualmente enrascados se postulamos que não existe uma cultura
universal, mas somente uma série de modos de vida relativamente fechados, um
não possuindo mais ou menos “valor” do que o outro.
Ao supor que a cultura moderna era teoricamente neutra em relação aos
princípios básicos do cristianismo, os autores da Gaudium et Spes se mostraram
um tanto despreparados para a facilidade com que a cultura moderna pôde
se modificar e destruir qualquer aceitação de coisas com base em princípios
derivados de uma fonte transcendente. Sem afirmar que há algo especificamente
“herético” na Gaudium et Spes, ainda assim, podemos admitir que o documento
falhou na compreensão de muitos dos assuntos em voga na cultura moderna.
Essa deficiência representa uma das maiores falhas intelectuais e teológicas de
julgamento do que acontece no mundo, e resultou numa grande ferida auto-
infligida. Certamente, tal falha provou ser algo tão prejudicial para a missão da
Igreja quanto os problemas, agora, associados às famosas controvérsias sobre ritos
chineses do século XVII. Isso nos serve como um lembrete constante de que a
Igreja também depende da qualidade do intelecto de seus bispos e teólogos.

IV
No início destas reflexões, citei três observações sobre Cultura que servirão
para indicar a direção que desejo seguir para entender a relação da cultura com
aqueles princípios e propósitos transcendentes que marcam presença em todas
as culturas particulares, sem, ao mesmo tempo, rejeitar totalmente a validade de
qualquer particularidade dada, em que princípios universais devam aparecer. Ao
considerar essas coisas, estou consciente da idéia de Edmund Burke (1729-1797)
de que, devido ao costume e à razoabilidade prática, até mesmo leis ou práticas
objetivamente erradas em sua formulação podem ser modificadas de tal modo
que a forma como elas são, de fato, trabalhadas já modifica ou elimina o problema
da posição errônea inicial.
O contrário deste fenômeno também é verdadeiro. Declarações e leis que
são formuladas com o devido respeito à transcendência – penso na Declaração
de Independência dos Estados Unidos – podem ser interpretadas de tal modo a
justificar o exato oposto do que defendiam. O “direito” à vida chegou a abranger
5
ROWLAND, Tracey. Culture and the Thomist Tradition: After Vatican II. London: Routledge,
2003. p. 167.
28 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.

o “direito” de assassinar os inocentes. Os “direitos” à igualdade e liberdade são


usados para destruir qualquer padrão objetivo. “Sem uma religião viva, uma
cultura perece e se desintegra como o corpo humano, quando a alma já partiu”6,
escreveu Edward Ingram Watkin (1888-1981), em 1932. O argumento de
Rowland é o de que uma religião não pode salvar uma cultura, se insiste em
falar em termos que, quando entendidos no devido sentido cultural, também
debilitam a capacidade da religião de entender a si mesma como distinta das
aberrações da cultura. O constante apelo religioso aos “direitos” e “valores” teve o
efeito geral de importar as compreensões relativistas modernas dessas noções para
dentro do discurso religioso7. O resultado é que, culturamente sintonizados com
o costume moderno, não mais percebemos a mensagem transcendente, mesmo
que ela possa estar presente em intenção, ou mesmo, no significado original.
A primeira citação no início deste artigo é tirada das Tusculanae Disputationes
de Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.). Ela contém a explicação clássica mais famosa
de cultura humana. Se dissermos, ao menos para argumentar, que cultura inclui
traduzir, com precisão, coisas de uma linguagem para outra, estarei citando a
passagem de Cícero extraída de um discurso que João Paulo II fez para um grupo de
acadêmicos-visitantes poloneses. O discurso original foi em polonês, embora Cícero
tenha sido citado em latim. Temos também uma tradução inglesa no L’Osservatore
Romano, quer do latim ou de uma tradução do latim para o polonês.
É bem sabido que a noção original de cultura tinha relação com o ato de
lavrar o campo – a agricultura. Um pedaço de terra, ainda que muito fértil, não
podia produzir no máximo de sua capacidade, a menos que fosse apropriadamente
cultivado. Tanto o homem quanto a natureza, parece, foram projetados para ser
completados pelo conhecimento humano e pelo trabalho ativo. A natureza – assim
se aprendia – por vezes, muito lentamente, outras, com grande velocidade, podia
ser melhorada pelo empreendimento humano. Esta “melhora”, é claro, pressupõe
o princípio tirado do Gênese de que o cosmo é criado para o homem, como
se a finalidade do primeiro fosse dirigida à finalidade do segundo. As opiniões
ecológicas contemporâneas, que declaram qualquer desvio do estado natural
da Terra causado pelos humanos como errado, obviamente pressupõem outra
filosofia sobre a natureza da realidade. A ecologia moderna está, muitas vezes,
mais próxima de uma nova religião ou ideologia do que da ciência.
Cícero compara o cultivo da terra com o cultivo da alma humana. A
tradução do latim “animus” por “spirit” [espírito] não é a melhor. Um “espírito” é
6
WATKIN, E. I. Catholic Art and Culture: Na Essay on Catholic Culture. London: Burns & Oates,
1932. p. 17.
7
Ver: GLENDON, Mary Ann. Rights Talk: The Impoverishment of Political Discourse. New York: The
Free Press, 1991; VOEGELIN, Eric. The New Science of Politics. Chicago: University of Chicago
Press, 1952. [N. do E.: O livro de Eric Voegelin (1901-1985) se encontra em língua portuguesa
na seguinte edição brasileira: VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. (Apresentação de José
Pedro Galvão de Sousa; Tradução de José Viegas Filho). Brasília: Editora Universidade de Brasília,
2ª edição, 1982].
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 29

tecnicamente um ser sem nenhum corpo próprio à sua existência ou natureza. Um


anjo, portanto, é precisamente um espírito. A alma, embora possa ter existência
independente, não é um “espírito” neste sentido. É um princípio imaterial
diretamente relacionado a um corpo. O resultado da combinação corpo e alma é
uma pessoa singular e una.
A tradução inglesa do substantivo latino, “doctrina”, é, inesperadamente,
“culture” [cultura]. Esta tradução também parece estar errada. No contexto,
“cultura” significava “cultivo”, o arar ou aplainar um campo. Nesta analogia
com animus, Cícero não usa cultura, mas sim a palavra “doctrina”. A mente
inteligente precisa mais do que de si mesma para saber o que é, ou pode ser,
capaz de conhecer. A analogia é: o campo está para o cultivo (cultura) como
a alma está para a doutrina, isto é, o ensino ou instrução. Sozinhos, nem o
campo nem a alma podem atingir os seus máximos. Por melhores que sejam,
ambos devem ser levados à perfeição. Este fato sugere que algumas coisas
são inicialmente projetadas para a imperfeição, de modo que outros agentes
possam agir para melhorá-las ou torná-las perfeitos.
Na citação de Christopher Dawson (1889-1970), o grande historiador
inglês da Cultura e da Religião está preocupado em mostrar a existência de
juízos religiosos absolutos e transcendentes, válidos para todas as culturas. A
negação de tais juízos leva ao risco da perda do significado de nossa humanidade
comum com seu próprio destino. Mas, a expressão de tais posições muda
no tempo e no espaço. Ao reconhecer tais expressões diferentes da mesma
verdade, Dawson procura preservar a relativa “autonomia” ou legitimidade de
diferentes culturas e linguagens. Uma liberdade válida existe, mas não na base
da aprovação de tudo, independente do que seja proposto. Dawson não nega
que os padrões universais permaneçam. Todos os homens compartilham destas
verdades mesmo se, por causa de uma liberdade que inclua a possibilidade
de rejeitar a verdade, qualquer um seja capaz de rejeitá-las. O fato de que
alguns ou muitos neguem proposições universais não necessariamente diz
algo contra as suas verdades, da mesma forma que a prevalência do assassinato
não significa a sua licitude.
A terceira citação é de Ernest Brian Francis Midgley, o muito pouco
conhecido filósofo de Aberdeen, Escócia8. Ele também aborda indiretamente a
questão de Dawson sobre a validade de modos diferentes de exprimir as mesmas
verdades universais. Não podemos decidir se, digamos, ajoelhar, curvar ou
prostrar seja o único jeito, ou o absolutamente melhor, para um ser corpóreo
reconhecer a divindade. Excetuando uma revelação que nos instruísse de outra
maneira, a forma particular de honrar à Deus está aberta a uma ampla, mas não
infinita, gama de alternativas. A proposição universal de que a origem divina deve
ser reconhecida, no entanto, não muda. A análise da Cultura, onde muitas coisas
podem ser de outro modo, é uma ciência subordinada à Metafísica e à Teologia.
8
Ver: MIDGLEY, I. B. F. The Ideology of Max Weber: A Thomist Critique. Aldershot: Grower, 1983.
30 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.

Podemos pensar, por exemplo, que há algo de errado no jeito como os


gregos faziam as coisas. Podemos pensar também que há algo certo na maneira
como os romanos faziam as coisas. Ambas as proposições podem ser válidas, se
lidam com alternativas livres. O que não podemos concluir é que, portanto, os
gregos devam fazer o que os romanos fazem, mesmo que aquilo que os romanos
fazem seja correto. Voltando a Cícero, existem muitas maneiras de melhorar um
campo, mas nem tudo que fazemos a ele o melhora.
O ponto a que I. B. F. Midgley quer chegar, para voltar ao “direito natural
transcendente” de Leo Strauss, é que o que Cristo fez, ou melhor, o que ele foi,
não é “relativo” nesse sentido. A cultura dele era, por assim dizer, uma “cultura
completamente não contaminada por elementos estranhos”. Esta própria afirmação
justifica as longas e, às vezes, amargas controvérsias sobre as definições exatas
da natureza humana e divina, ou sobre o fato de que ele é a Segunda Pessoa da
Trindade. Erre nisto, e nenhuma expressão ou sistematização cultural pode salvar
a verdade contida neles, ou as conseqüências que afetam o modo como vivemos e
concebemos o nosso destino.
Mas podem existir diferentes maneiras de expressar a mesma verdade. As
raízes fundamentais da diferença entre o islã e o cristianismo estão na negação,
pelo primeiro, de uma Trindade na divindade e de uma Encarnação. As diferenças
culturais não são neutras, o que quer que façamos delas. Como disse certa vez
Russell Kirk (1918-1994), “uma cultura – que surge de um culto – não pode tolerar
duas religiões radicalmente diferentes”9. A razão para esta dificuldade em tolerar não
está nos variados costumes, linguagens, ou práticas – mas no que elas defendem a
respeito da realidade, e se a realidade corresponde ao que é sustentado. Nem todas
religiões ou filosofias defendem a mesma coisa.

V
No seu estilo confuso, Friedrich Nietzsche (1844-1900) viu, muito
claramente, que a “Cultura” é a figura da sociedade que deve ser radicalmente
mudada, caso alguma nova visão de vontade tenha de aparecer. Viu, com efeito,
que, historicamente, a Europa era produto da fé na Cultura. Essa cultura era o
resultado daquilo que era tido como verdadeiro. “Supondo verdadeira a idéia, na
qual, hoje, muitos crêem como se fosse ‘a verdade’”, Nietzsche escreveu na sua obra,
de 1887, Zur Genealogie der Moral: Eine Streitschrift [Genealogia da Moral: Uma
polêmica]:
O sentido de toda a cultura é amestrar o animal de rapina “homem”, reduzi-lo a um
animal manso e civilizado, doméstico, então deveríamos sem dúvida tomar aqueles
instintos de reação e ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas
e vencidas as estirpes nobres e os seus ideais, como os autênticos instrumentos
9
KIRK, Russell. “T. S. Eliot on Literary Morals”. In: Creed & Culture. (Edited by James M.
Kushiner). Wilmington: ISI Books, 2003. p. 59.
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 31

da cultura; com o que, no entanto, não se estaria dizendo que os seus portadores
representem eles mesmos a cultura. O contrário é que seria não apenas provável
– Não! Atualmente é palpável! Os portadores dos instintos depressores e sedentos
de desforra, os descendentes de toda escravatura européia e não européia, de toda
população pré-ariana especialmente – eles representam o retrocesso da humanidade!
Esses “instrumentos da cultura” são a vergonha para o homem, e na verdade uma
acusação, um argumento contrário à “cultura”!10.

Os “instrumentos da cultura” que fizeram os europeus escravos eram,


é claro, as doutrinas cristãs básicas de Lei Natural, de perdão e humildade.
Nietzsche via a civilização européia ou a Cultura como o resultado de uma
revolta dos fracos sobre os fortes, causada por uma mudança na doutrina, uma
mudança causada tanto por Platão (428-347 a.C.) quanto pelo cristianismo.
Sua “vontade de poder” não foi projetada para debater com o cristianismo e
com o platonismo, identificados na obra, de 1886, Jenseits von Gut und Bose:
Vorspiel einer Philosophie der Zukunft [Além do bem e do mal: Prelúdio a uma
Filosofia do Futuro]*, mas para destruí-los e substituí-los.
O que, então, se pretende com a proposição de que “nenhuma cultura
é neutra”? Antes de tudo, não queremos que qualquer “cultura” seja neutra,
caso o significado de neutralidade signifique tentar excluir da expressão
externa qualquer verdade sobre a natureza das coisas e do nosso destino
dentro da realidade. Comumente, esta posição é o que está por trás do
termo “cultura secular”. Isto é, uma cultura militante, que funciona como
censor e agência de controle da mente. De fato, muitas culturas operam
desta maneira, mesmo culturas religiosas, como grande parte do islã, ou
culturas seculares como o comunismo chinês.
“Não é menos impossível para a mesma mente, quer seja individual ou
coletiva”, Henri De Lubac (1896-1991) escreveu sobre este ponto:
Separar, radicalmente, a fé cristã e a cultura humana, como alguns teólogos
ensinam, hoje, em busca de uma “secularização” da qual eles pensam que
resultaria uma perfeita pureza de fé […]. Estes adversários de toda “cultura
cristã” não poderiam mais sustentar o apostolado missionário do que
poderiam apoiar uma fé viva dentro de um ambiente cristão; eles não sabem
o que dizem11.
10
NIETZSCHE, Friedrich. On the Genealogy of Morality. (Translated by M. Clark and J.Swensen).
Indianapolis: Hackett, 1988. p. 23. [N. do E.: Substituímos a passagem em inglês pela versão
em português da seguinte edição brasileira: NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: Uma
polêmica. (Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras,
1998. pp. 33-34].
*
N. do E.: Em português a obra pode ser encontrada na seguinte edição: NIETZSCHE. Friedrich.
Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. (Tradução, notas e posfácio de Paulo
César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
11
DE LUBAC, Henri. The Motherhood of the Church. (Translated by S. Englund). San Francisco:
Ignatius Press, 1982. p. 217.
32 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.

Estas palavras bruscas confirmam a idéia de que os propósitos e verdades


transcendentais não existem fora de um esforço para expressá-los e pô-los em
prática, mesmo quando seu significado universal é admitido e compreendido. Fé
– seja qual for o seu conteúdo – e cultura não são a mesma coisa, mas não podem
ser separadas. Por isto é que a cultura nunca é neutra.
A palavra “culto”, sem dúvida, enfrenta tempos difíceis. O fato é que a
origem da maioria das “culturas”, como as conhecemos, não é tanto a “agricultura”,
o cultivo dos campos, embora não exclua isto, mas sim o modo de adorar os
deuses. Este modo incluirá, implicitamente, uma teologia para explicar o que
defendem que são e a nossa relação com eles, isto é, uma moralidade explicando
como agimos em vista da nossa compreensão dos deuses. A ironia do esforço
político moderno para domar os “cultos em guerra”, para usar a expressão de
Russell Kirk12, e nos livrar do “fanatismo”, é que escolhe fazê-lo se tornando, ele
mesmo, um “culto” secular. O problema não é evitado, pela teoria da tolerância
democrática, ao se ignorar a questão do culto correto, de onde se encontra a
adoração válida.

VI
No livro, Work, Society, and Culture [Trabalho, sociedade e cultura]13,
Yves Simon (1903-1961) procurou reconciliar, se posso dizê-lo deste modo, as
altas e baixas culturas. Isto é, ele queria superar o preconceito histórico contra
o trabalho, que o identificava com a escravidão ou com o servilismo, ou com
o meramente “útil”. Ele estava, num certo sentido, tentando aceitar a noção
de Joseph Pieper (1904-1997) sobre lazer e liberdade, sem denegrir o trabalho
necessário, que tem de ser feito com o suor do rosto14. Este esforço levou
Simon a reconsiderar as distinções de Aristóteles (384-322 a.C.) entre arte e
discernimento, intelecto contemplativo e calculativo15.
A questão essencial era a redenção da noção do trabalho, ela mesma em
grande parte instigada pela Revelação. São José era um carpinteiro. Os apóstolos
eram pescadores. Este esforço requeria uma análise dos processos intelectuais
que estão presentes mesmo no trabalho físico mais difícil e maçante. Mas, Yves
Simon, também, não queria sacrificar o fabuloso florescimento cultural, cujos
esplendores manifestaram a glória da humanidade, tanto no campo intra-
mundano quanto no transcendente. Ele não queria conceder nada à posição
relativista que procurava justificar costumes, instituições, e leis que eram, de
12
KIRK. Op. cit.
13
SIMON, Yves. Work, Society and Culture. (Preface by Vukan Kuic). New York: Fordham
University Press, 1986.
14
PIEPER, Joseph. Leisure: The Basis of Culture. (Translated by G. Malsbery). South Bend: St.
Augustine Press, 1998.
15
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, Livro VI.
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 33

fato, contrárias à natureza humana e ao bem humano, mesmo que fossem


práticas antigas e aparentemente baseadas em preceitos veneráveis e talvez
sofisticados.
Joseph Pieper procurou reconciliar a vida contemplativa grega com a
teologia cristã, enquanto Yves Simon buscou reconciliar, ou pelo menos apontar,
como a idéia grega de trabalho, e sua relação com a escravidão, podiam ser
transformadas em termos que fossem válidos para a filosofia grega. A questão não
é sobre se a cultura é “neutra”: não é, nem deve ser, mesmo na relação com os
mais altos conceitos filosóficos e teológicos. A questão é se o ataque nietzscheano
a determinada cultura, tida como fraqueza anti-humana, pode ser desfeito.
Yves Simon não deseja colocar o trabalho em oposição à vida
contemplativa, mas, sim, examinar como a vida prática, por assim dizer, possui
aspectos contemplativos, enquanto ao mesmo tempo realiza o seu próprio bem
no que é produzido. Mesmo em deliberações práticas, quer sejam de arte ou de
discernimento, nas quais o resultado é o produto de uma escolha consciente,
permanece um momento contemplativo inicial, no qual a mente simplesmente
contempla ou alegra-se na verdade da posição a ser tomada ou da coisa a ser feita.
Esta é a razão pela qual Aristóteles foi capaz de dizer que todas as
capacidade humanas detalhadas no livro VI da Ética a Nicômacos – sabedoria
filosófica, inteligência (princípios primeiros), ciência, discernimento e arte – são
devotadas, em primeiro lugar, precisamente, à verdade. Nos dois últimos casos,
arte e discernimento, a “verdade” não significa necessariamente que a coisa a ser
realizada ou feita não pudesse ser realizada de outro modo. Significa que aquilo
sobre o que se agia possuía uma inteligibilidade válida que realmente guia a ação
ou objeto para o seu fim, para aquilo que ele é.
Anteriormente, citei a observação de Henri De Lubac sobre aqueles que
desejam eliminar completamente qualquer conteúdo “cultural” do cristianismo.
Se o fizessem, pensava De Lubac, debilitariam o seu “apostolado missionário”. O
que significa este “debilitar”?
Cito aqui, ilustrando de forma agradável este ponto, uma estória em
quadrinhos de Charles Schulz (1922-2000): A personagem Lucy é vista pulando
corda, enquanto Charlie Brown está com o olhar perdido na distância. Ele diz em
voz alta, “É realmente bom que as pessoas sejam diferentes”. Na cena seguinte, Lucy
continua a pular corda com vigor, e Charlie diz, “Não seria uma coisa horrível se
todos concordassem sobre tudo?” Na terceira cena, como se ela enxergasse claramente
para onde a lógica dele está levando a questão, Lucy subitamente pára. Olha
direto nos olhos de Charlie e pergunta, “Por quê?” E finalmente, enquanto Charlie
continua olhando para ela, numa espécie de transe, Lucy conclui, triunfante, “Se
todos concordassem comigo, estariam todos certos!”16.
Se examinarmos mais de perto esta divertida cena, entretanto, podemos
ver que, realmente, possui alguma relevância para a nossa discussão sobre Cultura.
16
SCHULZ, Charles. Peanuts, 19 May 1970, United Features.
34 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.

Uma proposição universal declara que “as pessoas são diferentes”. Seria “terrível”
se todos concordassem sobre tudo. Mencionada, apenas por dedução, está a
contra-proposição de que seria igualmente terrível se ninguém concordasse sobre
coisa alguma. A graça de Lucy equivale à sua lógica. Esta conclusão, no entanto,
significa que as opiniões de Lucy sobre todas as coisas não são apenas as suas
opiniões, mas as opiniões corretas.
Temos aqui um padrão ou critério implícito que rejeita a simples proposição
de que, porque as pessoas diferem em algumas coisas, elas devem diferir em
todas as coisas. Mas, se alguma coisa é “certa”, não queremos discordar dela. E se
alguém tão divertidamente irritante, como Lucy, conhece, de fato, o que é “certo”,
devemos concordar com ela, não por ser a opinião de Lucy, mas por que é a
opinião correta. Ser um “missionário” da verdade é algo que está implícito na lógica
desta cena. Não queremos diferir quanto à verdade. Mesmo quando diferimos,
implicitamente reconhecemos que apelamos a algum fundamento para a nossa
verdade, que não é simplesmente uma vontade arbitrária. Em outras palavras,
rejeitamos o relativismo baseado na vontade, rejeitamos Nietzsche. Desta forma,
não é algo terrível todos concordarmos sobre alguma coisa, mesmo que sejamos
todos diferentes. Nossas diferenças não invalidam o fato de que somos, todos,
seres humanos com mentes ordenadas para a verdade das coisas. O que é “diverso”
não é a verdade, mas a maneira de expressá-la. Mesmo então, presumimos que
por trás de suas variadas expressões existe algo aberto a todos, algo que podemos
resolver por meio de discussões e do entendimento, que as “discordâncias” não
são simplesmente, em teoria, diferenças irresolvidas e irresolvíveis.
O que Yves Simon fez, portanto, foi identificar as áreas nas quais as coisas,
ao mesmo tempo, são e, talvez, devessem ser diferentes – “não seria terrível se
todo mundo concordasse sobre tudo?” – e aquelas nas quais elas são e devem ser a
mesma – “então, todos estariam certos!”. A contribuição de Simon para a idéia de
cultura é uma sólida explicação filosófica do porque a clássica distinção grega
entre trabalho e lazer, mesmo que baseada em algo verdadeiro, não precisa acabar
por identificar trabalhadores braçais com escravos, mesmo que seja isso o que
muitos historiadores tenham concluído.
Mas, como Joseph Pieper observou, o próprio Aristóteles pensava que a
escravidão, excetuando a anormalidade médica, era, em grande parte, relacionava-
se ao enfado e à brutalidade do trabalho que deveria ser feito. Ele não se referia
ao ser ontológico do trabalhador. Isto é, o próprio labor seria algo tão absorvente
ou exigente que não daria tempo ou forças para nada mais. Os gregos aplicavam
até mesmo esta análise aos negócios. O resgate do comércio também é uma
das realizações da cultura moderna. Este resgate, contudo, pode ser mais bem
compreendido por uma análise mais favorável das visões de Aristóteles sobre a
arte e o raciocínio prático17.
17
SIMON. Work, Society and Culture. pp. 143-148. Ver também: SCHALL, S.J., James V. “On
the ‘Prospects of Paradise on Earth’: Maritain on Action and Contemplation”. In: Truth Matters:
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 35

Numa passagem sobre Henry Ford (1863-1947), que tem um grande


poder de corrigir muitos mal-entendidos sobre o capitalismo e sobre o que,
hoje, é chamado, dubiamente, de “justiça social”, Yves Simon explica como os
requisitos da tecnologia moderna, tanto do lado especializado quanto do não
especializado, podem ser vistos como meios projetados para ordenar o raciocínio
prático. Escreveu Simon:
Todos sabem que uma das principais idéias de Henry Ford era a de que para
produzir automóveis em série e a baixo custo, seria necessário organizar o trabalho
de tal maneira que pudesse ser bem feito por trabalhadores completamente não
especializados [...]. Para produzir automóveis em série e a baixo custo, seria
necessário dividir o processo de tal maneira que os trabalhadores não especializados
– camponeses vindos da Irlanda, Polônia, Portugal, Itália e de outros cantos –
pudessem fazer o trabalho com um mínimo de treino e supervisão. Apesar do
que dizem os senhores eruditos, isso é extremamente significativo do ponto de
vista social. Foi assim que pessoas comuns, sem quaisquer habilidades especiais,
conseguiram bons salários, quiçá pela primeira vez na história da humanidade.
Isto também é aquilo que distingue as sociedades modernas e as antigas18.

Yves Simon observa que as sociedades antigas também demandavam muito


trabalho pesado, mas não usavam sistemas técnicos que treinassem trabalhadores
não especializados para as tarefas. O trabalho é substituído, por intermédio da
tecnologia, por máquinas, como Aristóteles suspeitou que aconteceria. Estas
máquinas são os resultados da aplicação da inteligência ao trabalho. Ademais,
este processo de importar trabalho não especializado ainda continua na primeira
década do século XXI com outros povos além de irlandeses e italianos, mas com
o mesmo efeito de ordenar as vidas e, aos poucos, desenvolver as capacidades de
trabalhadores não especializados.
O que Simon procura fazer é mostrar que, dos cinco caminhos para a
verdade de Aristóteles, como são discutidos no livro 6 da Ética, somente a
prudência é realmente uma “virtude” no sentido próprio de um hábito intelectual
que guia todas as atividades, incluindo as virtudes intelectuais (habitus), para a
finalidade humana. Ele prova esse argumento mostrando que a idéia de David
Hume (1711-1776) de que a natureza é simplesmente uma repetição de atos, algo
mais do reino da psicologia do que do da realidade, é incorreta.
Quantas vezes as regras de ação foram tidas como axiomáticas, quando na
verdade eram meramente costumes que nunca foram submetidos a uma
análise racional? Quantas muitas vezes tais costumes sociais não estiveram
em divergência com as conclusões da análise racional? Todos sabemos
que tais casos têm sido muito freqüentes na história, e todos apontam
para a diferença entre o tipo de necessidade que surge dos objetos de

Essays in Honor of Jacques Maritain. (Edited by John G. Trapani Jr.). Washington, D.C.: American
Maritain Society / The Catholic University of America Press, 2004. pp. 12-25.
18
SIMON. Op. cit., p. 153.
36 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.

pensamento. O ceticismo desesperador de Hume consiste precisamente


em dizer “Não existe necessidade objetiva, tudo o que se pode achar
na mente é a compulsão subjetiva do hábito”. Assim, chamar a ciência
de um hábito intelectual (como fazem muitas traduções) é perder o
que há, nela, de essencial: ou seja, a busca pela compreensão (e, nos
melhores casos, a realização dela) de uma necessidade que não é efeito
de atividades repetitivas da mente, mas a expressão do que constitui uma
forma de ser19.

Mesmo que muitas confusões possam existir, e de fato existem, é possível


ver a forma ou verdade de uma coisa. Simon está, aqui, negando que os próprios
costumes ou variedades de expressão provem que não há um universal operativo
por trás deles.

VII
Mas enquanto a defesa da ordem intelectual baseada numa ordem nas
coisas é, de fato, possível e necessária, algo que não é bem compreendido na
modernidade, ainda assim Yves Simon reconhece o outro lado da discussão
clássica sobre culto e cultura, ou seja, seu florescimento, aquela área de liberdade
para ver o que não pode ser de outro jeito e reagir com uma variedade infinita
de respostas. “Uma natureza racional compreende o paradoxo de um sistema de
necessidades aberto para o infinito”, Simon escreve, numa frase admirável.
Quando dizemos “natureza”, referimo-nos a algo definido; mas quando
dizemos “racional”, postulamos uma natureza que, além de suas necessidades
definidas, goza de uma abertura para o infinito. Este paradoxo não é meramente
humano: é universal. Olhe o universo à sua volta. A superabundância e o luxo
predominam no mundo da experiência. Um especialista em psicologia animal,
de inclinações românticas e filosóficas, disse-me certa vez que, na primavera,
os pássaros cantam muito mais do que é permitido pela teoria darwinista. Para
que a espécie sobreviva, o galo não precisa cantar muito: uns poucos sons são o
bastante para atrair a atenção da fêmea. Mas os pássaros cantam cem vezes mais
do que é necessário para os fins da espécie20.

A natureza, até mesmo a natureza animal, se a examinarmos, é aberta para


o infinito, para a superabundância, para a liberdade. É neste ponto que as teses
de Joseph Pieper e Yves Simon sobre o lazer se juntam num todo coerente21.
19
Idem. Ibidem., pp. 164-165.
20
Idem. Ibidem., p. 169. A mesma visão científica se encontra em: AUGROS, Robert. “Beauty
Visible and Divine”. In: The Aquinas Review, 2 (2004): 85-134.
Ver: SCHALL, S.J., James V. “The Law of Superabundance”. In: Gregorianum, 72, No. 3 (1991):
21

515-542; SCHALL, S.J., James V. On the Unseriousness of Human Affairs: Teaching, Writing, Playing,
Beliving, Lecturing, Philosophizing, Singing, Dancing. Wilmington: ISI Books, 2001.
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 37

Desta forma, para concluir, o fato de nenhuma cultura ser “neutra” não
é um argumento de que deva ser. Em vez disso é, na verdade, uma explicação
tanto do fato de que existe uma cultura universal, e de que esta cultura universal
pode ser expressa numa multiplicidade de formas: não meramente “possa ser”,
mas deva ser. Não há nada que seja tão abstrato na inteligência humana que
não busque algum tipo de encarnação. Ainda assim, a tradição do “lazer” como
base da cultura, a idéia grega das coisas que valem por si mesmas, folguedos ou
coisas solenes, são expressões da abundância, na verdade, da superabundância
das coisas. Simon bem expressa: “O que é necessário para a plenitude de cultura é
algo mais, algo que de algum modo está acima da necessidade, é independente dela,
e não seguem nenhuma lei exceto, talvez, as próprias”22. As culturas, certamente,
têm de passar pelos testes da Filosofia e da Revelação.
Necessitamos, portanto, saber a “forma” daquilo que são feitas as culturas.
Este “saber” é um exigente exercício intelectual, uma “obra”, por assim dizer,
de inteligência, um empenho para conhecer o que são até mesmo as “coisas
que poderiam ser de outro modo”. Mas, embora tenhamos que viver, comer, e
preparar a terra, por si um esforço de inteligência cada vez mais prática, e não
mero trabalho monótono, estamos abertos para o infinito, mesmo neste mundo
e nesta vida. O extraordinário desafio de Friedrich Nietzsche à nossa cultura
vem em grande parte de seu próprio escândalo com aqueles que não punham
em prática aquilo em que diziam acreditar. Tudo o que ele podia ver para
substituir a fé e a razão era a pura vontade, destituída de qualquer conteúdo.
Existe, de fato, uma cultura “completamente não contaminada por
elementos estranhos”, mas ela também precisa ser expressa e ganhar vida, em
bases verdadeiras. O lazer é a base da cultura. Assim o é para a verdade. Também
o é a liberdade, para o trabalho e para a adoração. Procuramos conhecer as
coisas que não podem ser “de outro modo”. Mas, ao encontrá-las, procuramos
as expressar de uma forma mais próxima do motivo dos pássaros cantarem
canções desnecessariamente maravilhosas do que da autocriação de um mundo
baseado numa vontade arbitrária, que nada enxerga além de si mesma, e que vê
todas as coisas simplesmente como diferentes e relativas.
Não seria terrível se todos concordassem em tudo?
Assim como um campo, mesmo quando fértil, não pode dar frutos sem
cultivo, da mesma forma é uma alma sem doutrina.
Mas os pássaros cantam cem vezes mais do que é preciso para preservar
a espécie.
A cultura nunca é neutra.

Padre James V. Schall, S.J. é sacerdote jesuíta da Província da Califórnia, professor


titular de Ciência Política da Georgetown University e membro do Conselho Editorial
22
SIMON. Op. cit., p. 170.
38 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.

do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP). Cursou a


graduação e o mestrado em Filosofia na Gonzaga University, o mestrado em Teologia
na Santa Clara University e o doutorado em Filosofia Política na Georgetown
University, além de diferentes cursos de especialização nos Estados Unidos, na Bélgica
e na Itália. Foi professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma e da
University of San Francisco na Califórnia, além de membro da Pontifícia Comissão
Justiça e Paz do Vaticano e membro do National Endowment for the Humanities. É
autor de mais de trinta livros sobre Teologia, Filosofia, Ciência Política, Literatura
e humanidades, além de ter publicado centenas de artigos acadêmicos. Dentre suas
publicações mais recentes, merecem destaque os livros: Roman Catholic Political
Philosophy (Lexington Books, 2004), Sum Total Of Human Happiness (St.
Augustine’s Press, 2006), The Regensburg Lecture (St. Augustine’s Press, 2007), The
Order of Things (Ignatius Press, 2007), The Life of the Mind: On the Joys and
Travails of Thinking (ISI, 2008), The Mind That Is Catholic: Philosophical &
Political Essays (Catholic University of America Press, 2008).

Cordeiro de Deus (1795-1800)


Talha em madeira dourada atribuída a Inácio Ferreira Pinto (1765-1828)
Capela do Santíssimo Sacramento, Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, RJ
Fotografia de Maria Zélia Ferreira da Fonseca
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 39
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 39-49

A EUROPA NA CRISE DA CULTURA*


Papa Bento XVI

I - REFLEXÕES SOBRE A CULTURA QUE HOJE ENFRENTAMOS

V ivemos um momento de grandes perigos e grandes oportunidades para


o homem e para o mundo, um momento que é também de grande
responsabilidade para todos nós. Durante o século passado, as possibilidades
e o domínio que o homem adquiriu sobre a matéria cresceram em dimensões
realmente impensáveis. Mas o poder de dispor do mundo foi tal, e atingiu tamanha
capacidade de destruição, que isso, às vezes, nos apavora. Aliado a isso, nos vem
à mente, sem querer, a ameaça do terrorismo, a nova guerra sem fronteiras ou
frentes de batalha.
O temor de que o terrorismo possa rapidamente se apoderar de armas
nucleares e biológicas não é infundado e fez com que os Estado legítimos
adotassem sistemas de segurança similares àqueles que só existiam nas ditaduras.
Contudo, permanece, em todo caso, a sensação de que todas essas precauções, na
realidade, podem não bastar, já que o controle global não é possível nem desejável.
Menos visível, mas não menos inquietante, são as possibilidades de
automanipulação conquistadas pelo homem. Sondou as profundidades do ser,
decifrou os componentes do ser humano, e, agora, está a um passo, digamos,
de construir o próprio homem, que assim deixa de vir ao mundo como dom do
Criador, mas como produto de nosso agir, produto que, portanto, também pode ser
selecionado segundo as exigências que nós mesmos determinarmos. O esplendor
de ser a imagem de Deus não brilha mais sobre o homem, que é o que lhe confere
sua dignidade e inviolabilidade, e só lhe resta o poder das próprias capacidades
humanas. Ele não é outra coisa que a imagem do homem – mas, de qual homem?
A isso se somam os grandes problemas planetários: a desigualdade na
repartição dos bens da Terra, a pobreza crescente e assim o empobrecimento, a
exploração da Terra e de seus recursos, a fome, as doenças que ameaçam todo o
mundo, o choque de culturas.

*
O presente artigo é a versão escrita e revisada da conferência ministrada, em 1º de abril de 2005,
no Convento de Santa Escolástica, em Subiaco na Itália, pelo então Cardeal Joseph Ratzinger,
quando recebeu o Prêmio São Bento pela promoção da vida e da família na Europa. Publicado
originalmente em Rivista Internazionale di Teologia e Cultura: Communio, Numero 200, marzo-
aprile 2005: 18-28. Texto traduzido, do original em italiano para o português, por Silvio Grimaldo.
40 COMMUNIO • Papa Bento XVI

Tudo isso mostra que ao crescimento de nossas possibilidades não


corresponde um desenvolvimento similar de nossa energia moral. A força moral
não cresce junto com o desenvolvimento da ciência, pelo contrário, antes, diminui,
porque a mentalidade técnica confina a moral no âmbito subjetivo, enquanto
precisamos de uma moral pública, uma moral que saiba responder a ameaça que
pesa sobre todos nós. O verdadeiro perigo, o mais grave, desse momento está
justamente nesse desequilíbrio entre a possibilidade técnica e energia moral.
A segurança, que nos é necessária como pressuposto da liberdade e da
dignidade, não pode vir, em última análise, dos sistemas técnicos de controle,
mas só poderá surgir, precisamente, da força moral do homem: onde quer que
a última falte ou seja insuficiente, o poder do homem se transformará, cada vez
mais, em poder de destruição.

I.1 - UM NOVO MORALISMO

É verdade que hoje existe um novo moralismo cujas palavras-chave são:


justiça, paz, conservação da natureza – palavras que ligamos aos valores morais
essenciais que, realmente, precisamos. Esse moralismo, contudo, permanece vago
e desliza assim, quase inevitavelmente, para a esfera político-partidária. Ele é, antes
de tudo, um ditame dirigido aos outros e não um dever pessoal de nossa vida
quotidiana. De fato, o que significa justiça? Quem a define? O que serve à paz?
No último decênio, vimos amplamente em nossas ruas e praças como o
pacifismo pode se voltar para um anarquismo destrutivo e para o terrorismo.
O moralismo político dos anos setenta, cujas raízes não estão de modo algum
mortas, foi um moralismo que conseguiu fascinar também os jovens cheios de
ideais. Todavia era um moralismo com direção errada, assim como era privado de
uma racionalidade serena, e porque, em última análise, colocava a utopia política
acima da dignidade do homem singular, mostrando até mesmo que poderia, em
nome de grandes objetivos, chegar a desprezar o homem. O moralismo político
como conhecemos no passado e como o vivemos agora, não abre uma via de
regeneração, e até mesmo a bloqueia. Por conseguinte, o mesmo vale para um
cristianismo e uma teologia que reduzem o núcleo da mensagem de Jesus, o
“Reino de Deus”, aos “valores do Reino”, identificando esses valores com as
grandes palavras de ordem do moralismo político e proclamando-as, ao mesmo
tempo, como síntese da religião. Esquecendo-se, assim, de Deus, não obstante
seja Ele próprio o sujeito e a causa do Reino de Deus, ficando em seu lugar as
graves palavras (e valores) que se prestam a qualquer tipo de discurso.
Este breve olhar sobre a situação do mundo nos faz refletir sobre condição
atual do cristianismo, e, portanto, sobre as bases da Europa; aquela Europa que
numa época, podemos dizer, era o continente cristão, mas que foi também o
ponto de partida daquela nova racionalidade científica que nos deu grandes
A EUROPA NA CRISE DA CULTURA 41

possibilidades, bem como grandes ameaças. O cristianismo certamente não surgiu


na Europa, e não pode nem mesmo ser classificado como uma religião européia,
a religião do âmbito cultural europeu. Mas justamente na Europa ele recebeu
sua marca cultural e intelectual mais impressionante e permanece, portanto,
identificado de modo especial à Europa. Por outro lado, também é verdade que
essa Europa, desde os tempos do Renascimento, e num sentido mais completo,
desde os tempos do Iluminismo, desenvolveu justamente aquela racionalidade
científica que não só na época das descobertas trouxe a unidade geográfica do
mundo, o encontro dos continentes e culturas, mas agora, de forma muito mais
profunda, graças à cultura técnica possibilitada pela ciência, imprime sua marca
em todo o mundo, e assim, de certo modo, lhe dá uniformidade.

I.2 - SOCIEDADE SEM DEUS

E no rastro dessa forma de racionalidade, a Europa desenvolveu uma


cultura que, de um modo antes desconhecido pela humanidade, exclui Deus
da consciência pública, seja negando-o totalmente, seja julgando sua existência
como não demonstrável, incerta, e, portanto, pertencente ao âmbito da escolha
subjetiva, algo, em todo caso, irrelevante para a vida pública.
Essa racionalidade puramente funcional, por assim dizer, implicou num
desarranjo da consciência moral igualmente novo para a cultura até então
existente, pois sustentava que era racional apenas aquilo que pudesse ser provado
com experimentos. Apesar da moral pertencer a uma esfera completamente
diversa, ela, como categoria em si, desaparece e deve ser investigada de outro
modo, uma vez que é preciso admitir que, de algum modo, a moral é essencial.
Num mundo baseado no cálculo, é o cálculo das conseqüências que
determina se algo deve ser considerado moral ou não. E assim, a categoria do
bem, como foi claramente evidenciada por Immanuel Kant (1724-1804),
desaparece. Nada é bom ou mau em si, tudo depende das conseqüências que uma
ação permite antever.
Se o cristianismo, por um lado, encontrou sua forma mais efetiva na
Europa, é necessário dizer, por outro lado, que na Europa se desenvolveu uma
cultura que é a absoluta e mais radical contradição não apenas do cristianismo,
mas das tradições religiosas e morais da humanidade. Por onde se entende que
a Europa está experimentando uma verdadeira e peculiar “prova de tensão”. Daí
se compreende, também, a radicalidade das tensões às quais o continente deve
enfrentar. Disso, contudo, emerge também, e, sobretudo, a responsabilidade que
nós, europeus, devemos assumir nesse momento histórico: no debate em torno da
definição da Europa, sobre sua nova forma política, não está em jogo uma batalha
nostálgica na retaguarda da História, mas antes uma grande responsabilidade para
a humanidade de hoje.
42 COMMUNIO • Papa Bento XVI

Examinemos mais de perto essa oposição entre as duas culturas com que
caracterizamos a Europa. No debate sobre o Preâmbulo da Constituição Européia,
essa contraposição é vista em dois pontos controversos: a questão da referência
a Deus na Constituição e a menção das raízes cristãs da Europa. Visto que no
artigo 52 da Constituição Européia estão garantidos os direitos institucionais das
Igrejas, se diz que podemos ficar tranqüilos. Mas isso significa que, na vida da
Europa, a Igreja encontrou um lugar no âmbito do compromisso político, ao
passo que, no âmbito dos fundamentos da Europa, a marca de seu conteúdo não
encontrou espaço algum. As razões que se dão no debate para esse claro “não” são
superficiais, e é óbvio que mais do que indicar as reais motivações, elas as ocultam.
A afirmação de que a menção das raízes cristãs da Europa fere o sentimento de
muitos não-cristãos que estão na Europa não é muito convincente, visto se tratar,
sobretudo, de um fato histórico que ninguém, seriamente, pode negar.
Por certo essa menção histórica se refere ao presente. No momento em que
se mencionam as raízes, significa também apontar resíduos de orientação moral,
o que é um fator da identidade européia. Quem se ofenderia? A identidade de
quem está ameaçada?
Os muçulmanos, que a esse respeito são constante e prontamente
lembrados, não se sentem ameaçados por nossos fundamentos morais cristãos,
mas pelo cinismo de uma cultura secularizada que nega seu próprio fundamento.
Nem nossos concidadãos judeus se sentem ofendidos pela referência às raízes
cristãs da Europa, uma vez que essas raízes se prolongam até o Monte Sinai: elas
trazem o sinal da voz que se fez ouvir na montanha de Deus e que nos uniu nas
grandes orientações fundamentais que o Decálogo deu à humanidade. O mesmo
vale para a referência a Deus: não é a menção a Deus que ofende quem pertence
a outras religiões, mas sim a tentativa de construir uma comunidade humana
absolutamente sem Deus.
As motivações desse duplo “não” são mais profundas que nos deixam
pensar as razões apresentadas. Elas pressupõem a idéia de que apenas a cultura
iluminista radical, que atingiu o desenvolvimento pleno em nosso tempo, poderia
ser constitutiva da identidade européia. Próximo a ela, portanto, diferentes
culturas religiosas podem coexistir com seus respectivos direitos, sob a condição e
à medida que respeitem o critério da cultura iluminista e se subordinem a ela.

I.3 - CULTURA DE DIREITOS

Essa cultura iluminista é definida, essencialmente, pelo direito à liberdade.


Ela parte da liberdade como um valor fundamental que mensura tudo: a
liberdade de escolha religiosa, que inclui a neutralidade religiosa do Estado; a
liberdade de expressar opinião, desde que não coloque em dúvida esse cânon em
especial; o ordenamento democrático do Estado, ou seja, o controle parlamentar
A EUROPA NA CRISE DA CULTURA 43

dos organismos estatais; a formação livre de partidos; a independência do


judiciário; e, finalmente, a salvaguarda dos direitos do homem e a proibição de
discriminações. Aqui o cânon ainda está sendo elaborado, já que há direitos que
estão em contradição, como, por exemplo, no caso do conflito entre a vontade de
liberdade da mulher e o direito à vida do nascituro.
O conceito de discriminação é muito mais ampliado e, portanto, a
proibição da discriminação pode se transformar, cada vez mais, numa limitação
da liberdade de opinião e da liberdade religiosa. Muito em breve, não se poderá
mais afirmar que o homossexualismo, como ensina a Igreja Católica, é uma
desordem objetiva na estruturação da existência humana. E o fato de que a Igreja
está convencida de não ter o direito de dar ordenação sacerdotal a mulheres é
considerado, por alguns, já agora, como algo inconciliável com o espírito da
Constituição Européia.
É evidente que essa lei da cultura iluminista, de maneira alguma definitiva,
contém valores importantes que nós, precisamente como cristãos, não queremos
nem podemos renunciar. Contudo, é também evidente que o conceito de liberdade
mal definido ou indefinido, que está na base dessa cultura, inevitavelmente,
comporta contradições. É óbvio que justamente por causa do uso (um uso que
parece radical), a cultura iluminista trouxe limitações à liberdade que a geração
anterior não poderia nem imaginar. Uma confusa ideologia da liberdade conduz
ao dogmatismo, que se revela sempre mais hostil à liberdade.
Devemos, agora, voltar à questão das contradições internas das formas
atuais da cultura iluminista. Contudo, precisamos terminar de descrevê-la.
Faz parte de sua natureza, visto que é a cultura de uma razão que, finalmente,
tem consciência total de si, invoca uma pretensão universal e se concebe como
completa, sem necessidade de qualquer retoque por meio de outros fatores
culturais. Tais características são claramente observadas quando surge a questão
de quem pode se tornar membro da Comunidade Européia, e, sobretudo, no
debate sobre o ingresso da Turquia nessa Comunidade. Trata-se de um Estado, ou
melhor, de um âmbito cultural que tem raízes cristãs, mas que foi influenciado
pela cultura islâmica. Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938) procurou transformar
a Turquia num Estado laico, tentando implantar no território muçulmano o
secularismo amadurecido no mundo cristão da Europa.

I.4 - CULTURA UNIVERSAL?

Podemos nos perguntar se isso seria possível: segundo a tese da cultura


iluminista e secular da Europa, apenas as normas e conteúdos dessa mesma
cultura poderão determinar a identidade da Europa, e, por conseguinte, todo o
Estado que adotar esse critério poderá pertencer à Europa. Não importa, no final,
em que enredo as raízes dessa cultura de liberdade e democracia são implantadas.
44 COMMUNIO • Papa Bento XVI

E precisamente por isso, se afirma que as raízes não podem entrar na definição dos
fundamentos da Europa, pois são raízes mortas que não fazem parte da identidade
atual. Em conseqüência, essa nova identidade, determinada exclusivamente pela
cultura iluminista, também exige que Deus não entre de forma alguma na vida
pública e nos fundamentos do Estado.
Assim, tudo se torna lógico e, num certo sentido, plausível. De fato, o
que podemos desejar de mais belo do que saber que em todo lugar se respeitam
a democracia e os direitos humanos? Mas aqui se impõe a pergunta de se a
cultura iluminista secular é verdadeiramente a cultura, finalmente descoberta
como universal, de uma razão comum a todos os homens; uma cultura a que
deveria ter acesso de qualquer lugar, mesmo que esteja sobre um humus histórico
e culturalmente diferenciado. E nos perguntamos, também, se ela é realmente
completa em si mesma, de forma a não precisar de qualquer raiz fora de si.

II - SIGNIFICADO E LIMITE DA ATUAL CULTURA RACIONALISTA


Vamos, agora, tratar dessas duas últimas questões. À primeira, ou seja, à
questão de se já se alcançou uma filosofia universalmente válida e completamente
científica, na qual se expresse a razão comum a todos os homens, devemos
responder que chegamos, sem dúvida, a conquistas importantes que podem
pretender uma validade universal. Dentre essas se incluem: a conquista de que
a religião não pode ser imposta pelo Estado, mas pode, apenas, ser aceita em
liberdade; o respeito aos direitos fundamentais do homem, tidos como iguais
para todos; a separação e controle dos poderes políticos.
Não se pode pensar, contudo, que esses valores fundamentais, que
reconhecemos como portadores de validade geral, possam se realizar do mesmo
modo em todo contexto histórico. Nem todas as sociedades possuem os
pressupostos sociológicos para uma democracia baseada em partidos, como se
dá no ocidente. Desse modo, a completa neutralidade religiosa do Estado, na
maioria dos contextos históricos, deve ser considerada uma ilusão.
E com isso chegamos aos problemas levantados pela segunda questão.
Mas esclareçamos, primeiramente, se as modernas filosofias iluministas,
consideradas na totalidade, podem conter a última palavra da razão comum a
todos os homens. Essas filosofias se caracterizam pelo fato de serem positivistas
e, portanto, antimetafísicas, a ponto de negarem nelas qualquer lugar a Deus.
Elas se baseiam na autolimitação do positivismo racional, que é adequado
no âmbito técnico, mas que, quando generalizada, implica numa mutilação
do homem. Ela faz com que o homem não admita mais nenhuma instância
moral além de seus cálculos e, como vimos, o conceito de liberdade, que à
primeira vista parecia se estender de modo ilimitado, no final conduz para a
autodestruição da liberdade.
A EUROPA NA CRISE DA CULTURA 45

É verdade que as filosofias positivistas contêm elementos importantes de


verdade. No entanto, eles estão baseados em limitações impostas à razão, típicas de
uma determinada situação cultural – a do ocidente moderno –, não podendo ser,
assim, a última palavra da razão. Não obstante parecerem totalmente racionais,
elas não são a voz da própria razão, e também estão vinculadas culturalmente com
a presente situação do ocidente.
Por essa razão, elas não são, de modo algum, a Filosofia que, um dia,
pode ser válida em todo o mundo. Acima de tudo, porém, é preciso dizer que
esta filosofia iluminista e a sua respectiva cultura são incompletas. Ela corta,
conscientemente, suas raízes históricas, privando-se da força regeneradora da qual
ela mesma brotou, daquela memória fundamental da humanidade, por assim
dizer, sem a qual a razão perde sua orientação.

II.1 - SABER É FAZER

De fato, agora vale o principio segundo o qual a capacidade do homem


deve ser medida pela sua ação. Aquilo que se sabe fazer pode ser feito. Um saber
fazer separado de um poder fazer não existe mais, porque seria contra a liberdade,
que é o valor supremo e absoluto. Mas o homem sabe fazer muitas coisas, e sabe
fazer cada vez mais; e se esse saber fazer não encontra sua medida numa normal
moral, ele se torna, como já podemos ver, um poder de destruição.
O homem sabe como clonar os homens, e por isso o faz. O homem sabe
como usar os homens como estoque de órgãos para outros homens, e por isso o
faz. Ele o faz porque isso lhe parece ser uma exigência da sua liberdade. O homem
sabe como construir a bomba atômica e então ele a faz, estando, em princípio,
disposto a usá-la. No final, o terrorismo também está baseado nessa modalidade
de auto-realização do homem, e não nos ensinamentos do Corão.
A separação radical da filosofia iluminista de suas raízes, em última análise,
diminuiu o homem. Ele, no fundo, não tem liberdade alguma, nos dizem os
porta-vozes das ciências naturais, em contradição total com o ponto de partida de
toda a questão. O homem não deve acreditar que é algo mais que todos os outros
seres vivos, e por isso deve ser tratado como eles, é o que nos dizem os porta-
vozes mais avançados de uma filosofia que, claramente, se separou das raízes da
memória histórica da humanidade.
Fizemos duas perguntas: se a filosofia racionalista (positivista) era
estritamente racional e, portanto, universalmente válida, e se era completa,
se bastava a si mesma. Ela pode, ou mais diretamente, deve relegar suas raízes
históricas ao reino do puro passado e, portanto, ao reino do que pode ser válido
apenas subjetivamente?
Devemos responder às duas questões com um claro “não”. Essa filosofia
não expressa a completa razão do homem, mas apenas uma parte dela, e por conta
46 COMMUNIO • Papa Bento XVI

dessa mutilação da razão, ela não pode ser considerada inteiramente racional. Por
isso é incompleta, e pode ser remediada apenas pelo restabelecimento do contato
com suas raízes. Uma árvore sem raízes seca...

II.2 - BANINDO DEUS

Ao afirmar isso, não negamos tudo que esta filosofia disse de positivo e
importante, mas se afirma principalmente a necessidade de complementação,
sua profunda deficiência. E aqui nos encontramos novamente a tratar dos dois
pontos controversos do Preâmbulo da Constituição Européia. O banimento das
raízes cristãs não se revela como expressão de uma tolerância superior que respeita
igualmente todas as culturas, sem pretender privilegiar nenhuma, mas, antes, como
uma absolutização de um modo de pensar e viver que se contrapõem radicalmente,
entre outras coisas, a outras culturas históricas da humanidade.
A contradição real que caracteriza o mundo de hoje não é aquela entre as
várias culturas religiosas, mas aquela entre a emancipação radical do homem de
Deus, das raízes da vida, de um lado, e das grandes culturas religiosas, de outro.
Se haverá um choque de culturas, não será por causa do choque entre as grandes
religiões – sempre em luta, mas sempre sabendo viver uma com a outra –, mas por
causa do choque entre essa emancipação radical do homem e as grandes culturas
históricas.
Assim, mesmo a rejeição de referência a Deus não é expressão de tolerância
que deseja proteger as religiões não-teístas e a dignidade dos ateístas e agnósticos,
mas a expressão de uma consciência que desejaria ver Deus suprimido,
definitivamente, da vida pública da humanidade e relegado ao reino subjetivo das
culturas residuais do passado. O relativismo, que constitui o ponto de partida de
tudo isso, se torna, desse modo, um dogmatismo que acredita estar em posse da
idéia definitiva de razão, e ter o direito de considerar todo o resto apenas como
um estágio da humanidade, finalmente superado, e que pode ser adequadamente
relativizado. Na realidade, isso significa que temos necessidade de raízes para
sobreviver e que não devemos perder de vista Deus, se não quisermos que a
dignidade humana desapareça.

III - O SIGNIFICADO PERMANENTE DA FÉ CRISTÃ


Será que isto é apenas uma simples rejeição do Iluminismo e da
modernidade? Absolutamente, não. O cristianismo, desde o início, compreende-
se como a religião do Lógos, como a religião de acordo com a razão. Ele não
identificou seus precursores em outras religiões, mas, em primeiro lugar, naquele
iluminismo filosófico clareou o caminho das tradições para que se voltassem
à busca da verdade e do bem, para o único Deus acima de todos os deuses.
A EUROPA NA CRISE DA CULTURA 47

Enquanto religião dos perseguidos, enquanto uma religião universal, além dos
diferentes Estados e povos, ela negou, ao Estado, o direito de considerar a religião
como parte do ordenamento estatal, postulando assim a liberdade da fé. Sempre
definiu o homem, todos os homens sem distinção, como criaturas e imagens
de Deus, proclamando para eles, como princípio, embora dentro dos limites
imprescindíveis da ordem social, a mesma dignidade.
Neste sentido, o Iluminismo tem uma origem cristã e não foi por acaso
que ele nasceu no âmbito próprio e exclusivamente cristão, onde quer que o
cristianismo, contra sua própria natureza e infelizmente, tenha se tornado a
tradição e a religião do Estado. Não obstante, a Filosofia, na medida em que
procurava a racionalidade – também da nossa fé – sempre foi uma prerrogativa
do cristianismo, a voz da razão foi por demais domesticada.
Foi e é mérito do Iluminismo ter proposto novamente esses valores originais
do cristianismo e ter dado à razão novamente sua própria voz. O Concílio Vaticano
II, na Constituição Gaudium et Spes (7 de dezembro de 1965), sobre a Igreja no
mundo contemporâneo, sublinhou novamente esta profunda correspondência
entre o cristianismo e o Iluminismo, procurando chegar a uma conciliação entre
a Igreja e a modernidade, que é o grande patrimônio a ser defendido por ambos.
Dado tudo isso, é necessário que os dois lados reflitam sobre si mesmos e
estejam preparados para se corrigirem. O cristianismo deve sempre recordar que
é a religião do Lógos. Ele é a fé no “Creator Spiritus”, no espírito criador, do qual
provém todo o real. Esta deve ser precisamente sua força filosófica, uma vez que
o problema é saber se o mundo provém do irracional, e a razão não é outra coisa
senão um subproduto, quiçá mais prejudicial, do seu desenvolvimento; ou se o
mundo provém da razão, e ela seja, conseqüentemente, seu critério e sua meta.
A fé cristã tende para a segunda tese, possuindo assim, do ponto de vista
puramente filosófico, cartas muito boas para jogar, apesar de que muitos, hoje,
considerem apenas a primeira tese como a única moderna e racional. Contudo,
uma razão que surge do irracional, e que é, afinal, ela mesma irracional, não
constitui uma solução aos nossos problemas. Apenas a razão criativa, que se
manifesta como amor no Deus crucificado, pode verdadeiramente mostrar o
caminho.
No tão necessário diálogo entre católicos e secularistas, nós, cristãos,
devemos ter muito cuidado para permanecermos fiéis a esta linha fundamental:
viver uma fé que provenha do Lógos, da razão criativa, e que, por isso, está aberta a
tudo que é verdadeiramente racional. Mas desejaria fazer, na minha qualidade de
crente, uma proposta aos laicistas. Na época do Iluminismo se tentou entender e
definir as normas morais essenciais, dizendo que elas seriam válidas etsi Deus non
daretur, mesmo no caso de Deus não existir. Na contraposição entre as confissões
e na crise iminente da imagem de Deus foi feita uma tentativa de deixar os valores
essenciais da moral fora das contradições e de procurar para eles uma evidência que
os tornasse independentes das múltiplas divisões e incertezas das várias filosofias
48 COMMUNIO • Papa Bento XVI

e confissões. Desse modo, queriam assegurar as bases da coexistência e, em


geral, os fundamentos da humanidade. Naquela época, se pensava que isso era
possível, uma vez que as convicções profundas criadas pelo cristianismo, em
grande medida, ainda sobreviviam. Mas esse não é mais o caso. A busca por
uma certeza tranqüilizadora, que pudesse permanecer incontestável além de
todas as diferenças, fracassou. Nem mesmo os grandes esforços de Immanuel
Kant foram capazes de criar a certeza comum necessária. Kant negou que
Deus pudesse ser conhecido no âmbito da razão pura, mas, ao mesmo tempo,
ele havia representado Deus, a liberdade e a imortalidade, como postulados
da razão prática, sem o que, coerentemente, para ele nenhum agir moral seria
possível. A situação atual do mundo não nos faz pensar que, talvez, ele tivesse
razão? Direi de outro modo: a tentativa, levada ao extremo, de lidar com as
coisas humanas desprezando Deus completamente nos conduz cada vez mais
à beira do abismo, ao isolamento total do homem. Devemos, agora, reverter o
axioma do Iluminismo e dizer: mesmo aquele que não conseguir encontrar o
caminho de aceitação de Deus, deveria, contudo, viver e dirigir sua vida veluti
si Deus daretur, como se Deus existisse. Esse conselho era dado por Blaise
Pascal (1623-1662) aos amigos que não acreditavam. Desse modo, ninguém
se vê limitado em sua liberdade, mas todas as nossas coisas encontram o apoio
e o critério dos quais precisam urgentemente.
Acima de tudo, aquilo que precisamos, nesse momento da história,
são homens que, através da fé iluminada e vivida, tornem Deus crível nesse
mundo. O testemunho negativo dos cristãos que falam sobre Deus e vivem
contra ele obscureceu a imagem de Deus e abriu a porta da descrença.
Precisamos de homens que têm o olhar fixado diretamente em Deus,
aprendendo Dele a verdadeira humanidade. Precisamos de homens cujos
intelectos sejam iluminados pela luz de Deus e cujos corações sejam abertos
por Deus, de modo que seus intelectos possam falar ao intelecto de outros,
e que seus corações sejam capazes de abrir o coração de outros. Apenas por
intermédio de homens tocados por Deus que Ele pode retornar para perto dos
homens. Precisamos de homens como São Bento de Núrsia (480-547), que,
numa época de dissipação e decadência, mergulhou na mais profunda solidão,
conseguindo, depois de toda a purificação sofrida, subir novamente à luz,
para retornar e fundar o mosteiro de Montecassino, a cidade na montanha
que, com tantas ruínas, uniu as forças pelas quais foi formado um novo
mundo. Assim, São Bento, como Abraão, tornou-se pai de muitas nações.
As recomendações aos seus monges apresentadas no final de sua Regra são
indicações que nos mostram também a via que leva ao alto, além das crises e
ruínas.
Assim como há um zelo mau, de amargura, que separa de Deus e conduz ao
inferno, assim também há o zelo bom, que separa dos vícios e conduz a Deus e à
vida eterna.
A EUROPA NA CRISE DA CULTURA 49

Exerçam, portanto, os monges este zelo com amor ardentíssimo, isto é, antecipem-
se uns aos outros em honra. Tolerem pacientissimamente suas fraquezas, quer do
corpo quer morais [...] ponham em ação castamente a caridade fraterna.
Temam a Deus com amor.
[...] Nada absolutamente anteponham a Cristo, que nos conduza juntos para a
vida eterna*.

Papa Bento XVI nasceu Joseph Ratzinger, no dia 16 de abril de 1927, em Marktl
am Inn, na Baviera. Fez seus estudos universitários no seminário católico de Freising
e na Universidade Ludwig-Maximilian em Munique, defendendo sua dissertação em
1953 e a tese em 1957. Foi ordenado sacerdote em 29 de Junho de 1951. Atuou como
professor das universidades de Freising, Bonn, Munique, Tübingen e Regensburg.
Participou, como perito teológico, do Concílio Vaticano II. Junto com os teólogos Hans
Urs von Balthasar (1905-1988) e Henri de Lubac (1896-1991), fundou, em 1972,
a revista Communio. Paulo VI o nomeou Arcebispo de Munique, em 25 de março de
1977, e o criou cardeal no consistório de 27 de junho de 1977. Em 25 de novembro de
1981, foi apontado, por João Paulo II, como prefeito da Congregação para a Doutrina
da Fé, presidente da Comissão Teológica Internacional e presidente da Pontifícia
Comissão Bíblica. Tornou-se Decano do Colégio Cardinalício, em 30 de novembro
de 2002. Foi eleito papa em 19 de abril de 2005, assumindo, solenemente, a cátedra
de São Pedro, em 24 de abril de 2005, sob o nome de Bento XVI. É um dos mais
influentes teólogos do século XX e o mais importante pensador católico da atualidade,
sendo autor de uma obra monumental com mais de seiscentos textos publicados em
diferentes idiomas e abrangendo diversos temas.

*
N. do E.: Substituímos a citação pelo trecho da seguinte edição brasileira: BENTO, São. A Regra
de São Bento. (Edição bilíngüe em Latim e Português; tradução e notas de Dom João Evangelista
Enout, O.S.B.) Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1992. Capítulo 72.
Pelicano erguendo uma Hóstias (1795-1800)
Talha em madeira dourada atribuída a Inácio Ferreira Pinto (1765-1828)
Capela do Santíssimo Sacramento, Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, RJ
Fotografia de Maria Zélia Ferreira da Fonseca
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 51
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 51-59

A LINGUAGEM E A MENSAGEM DO MITO*


Julien Ries

I - A PESQUISA SOBRE O MITO

P ara os gregos, o termo mythos fazia referência ao que era maravilhoso,


enquanto lógos era um modo de expressão da aletheia, a verdade. O radical
indo-europeu meudh-, mudh-, orienta-nos através da rememoração. Desde
os primeiros textos escritos, na Suméria e no Egito, somos confrontados
com os mitos. E não é só isso: os estudiosos da arte e os paleontólogos os
descobrem nas pinturas das cavernas do Paleolítico superior, nas paredes, ao
redor de Lascaux e de Roufignac1.
Após Homero e Hesíodo, os filósofos jônicos realizaram uma exegese
crítica dos seus mitos, aos quais opunham uma concepção “científica” da
natureza. Foi a primeira manifestação da oposição entre ciência e mito. Na
conclusão de sua própria crítica à mitologia antiga, Platão (428-347 a.C.)
restituiu o mito, conferindo-lhe uma função nobre: a transmissão de uma
mensagem de verdade. Com o escritor hermeneuta Evêmero (330-250 a.C.),
temos uma primeira corrente de secularização dos deuses da mitologia,
recuperada, mais tarde, pelos padres da Igreja, mas a reação neoplatônica
não se aplica. A Homero é conferida uma sapiência que Platão lhe tinha
refutado: Heráclito, o Retórico, Plutarco (46-127), Máximo de Tiro (125-
185), Plotino (205-270) e Porfírio (232-304) inauguram uma exegese
teológica da mitologia antiga, a partir do momento em que, a seus olhos,
Homero, Hesíodo e Platão foram portadores de uma mensagem divina2.
Estas posições voltaram com os humanistas do Renascimento, depois houve
uma decadência durante o período do Iluminismo, e retornaram no século
do romantismo3.

*
Artigo traduzido do francês para o italiano por Riccardo Nanini e publicado originalmente em
Rivista Internazionale di Teologia e Cultura: Communio, Numero 218, ottobre-novembre-dicembre
2008. Texto traduzido, do italiano para o português, por Ilduara Santos.
1
RUSPOLI, M. Lascaux. Paris: Bordas, 1968; ANATI, E. Les origines de l’art et la formation de
l’espirit humain. Paris: Michel Albin, 1986; NOUGIER, L. R. Les gottes préhistoriques ornéss de
France, d’Espagne et d’Italie. Paris: Balland, 1990.
2
PÉPIN, J. Mythe et allégorie: Les origines grecques et les contestations judéo-chrétiennes. Paris: Études
Augustiniennes, 1976.
3
RIES, J. “Langage et message du mythe d’Homère au xixe siêcle”. In: LIMET, H. & RIES, J.
(Org.). Le mythe, son langage et son message. Louvain-la-Neuve: Centre d’Histoire dês Religions,
1983. pp. 9-33.
52 COMMUNIO • Julien Ries

A pesquisa moderna vê no mito ora uma explicação do universo [Alexandre


Haggerty Krappe (1894-1947)4], ora uma união de fatos anteriores à história
[Pierre Commelin (1837-1926)5 e Pierre Lavedan (1885-1982)6], ora uma
narração em volta do sagrado [Jan de Vries (1890-1964)7, Mircea Eliade (1907-
1986)8 e Edmond Ortigues (1917-2005)9], ora uma representação coletiva de
origem social [Émile Durkheim (1858-1917)10 e Victor Larock (1904-1977)11].
Até as obras especializadas ousam tomar posição, mostrando as hesitações dos
pesquisadores12.
Um fato é evidente: a cada passo, a pesquisa tropeça no mito. As exegeses
bíblicas não podem evitá-lo, e a experiência de Rudolf Bultmann (1884-1976)
não se mostra feliz13. A etimologia e a sociologia da escola durkheimiana deram
uma explicação pouco satisfatória, até o dia em que Georges Dumézil (1898-
1986) renovou todas as posições, mostrando como a religião e a sociedade se
encontram na encruzilhada do mito14. Carl Gustav Jung (1875-1961) deixou
4
KRAPPE, A. H. Mythologie universelle. Paris: Payot, 1930.
5
COMMELIN, P. Nouvelle Mythologie Grecque et Romaine. Paris: Garnier, 1909.
6
LAVEDAN, P. Dictionnaire illustré de la mythologie et des antiquités grecques et romaines. Paris:
Hachette, 1931.
7
DE VRIES, J. Altgermanische Religionsgeschichte I. Berlin-Leipzig: De Gruyter, 1935; DE
VRIES, J. Altgermanische Religionsgeschichte II. Berlin-Leipzig: De Gruyter, 1937; DE VRIES, J.
Altnordische Literaturgeschichte I. Berlin-Leipzig: De Gruyter, 1941; DE VRIES, J. Altnordische
Literaturgeschichte II. Berlin: De Gruyter, 1942.
8
ELIADE, M. Le mythe de l’éternel retour: Archétypes et répétition. Paris: Gallimard, 1949; ELIADE,
M. Mythes, rêves et mystères. Paris: Gallimard, 1957; ELIADE, M. Aspectes du mythe. Paris: Gallimard,
1963; ELIADE, M. Le sacré et le profane. Paris: Gallimard, 1965; ELIADE, M. La nostalgie des
origini. Paris: Gallimard, 1971.
9
ORTIGUES, E. Le Discours et le Symbole. Paris: Aubier, 1962; ORTIGUES, E. & Ortigues, M.-
C. Oedipe africain. Paris: Plon, 1966; ORTIGUES, E. Religions du Livre, religions de la Coutume.
Paris: Le Sycomore, 1981.
10
DURKHEIM, E. Les Formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: Plon, 1912.
11
LAROCK, V. La Pensee mythique. Bruxelles: Office de publicite, 1945.
12
Um bom exemplo dessa afirmação se encontra em dois importantes dicionários:
BONNEFOY, Y. de (Org.). Dictionnaire des mythologies des sociétés traditionnelles et du monde
antique. Paris: Flamarion, 1981. 2v.
BRUNEL, P. (Org.). dictionnaire des mythes littéraires. Monaco: Éditions du Rocher, 1988.
Enquanto na primeira obra não há um artigo dedicado à análise do mito, a segunda limita-se, na
introdução de Pierre Brunel, a narrar as discordâncias sobre a temática, presenciadas pelo autor em
seu grupo de trabalho, em Paris IV, sobre literatura comparada, contentando-se, apenas, em definir
o mito através de sua função.
13
BULTMANN, R. “Neues Testament und Mythologie: Das Problem der Entmythologisierung
der neutestamentlichen Verkündigung”. In: BARTSCH, H. W. (Hg.). Kerygma und Mythos: Ein
theologisches Gesprach. Hamburg: Reich & Heidrich, 1948.
14
DUMÉZIL, G. Les dieux indo-européens. Paris: PUF, 1952; DUMÉZIL, G. L’idéologie des trois fonctions dans
les épopées des peuples indo-européens. Paris: Gallimard, 1968; DUMÉZIL, G. Types épiques indo-européens: Un
héros, un sorcier, un roi. Paris: Gallimard, 1971; DUMÉZIL, G. Histoires romaines. Paris: Gallimard, 1973.
A LINGUAGEM E A MENSAGEM DO MITO 53

o mito falar, escutou-o, e com ele, uniu a infância da pessoa à infância da


humanidade15. Giambattista Vico (1668-1744) já havia pensado sobre isso16.
Claude Lévi-Strauss completou uma ampla obra de análise do mito17. Através
de um estruturalismo sintagmático, criou uma gramática e uma sintaxe do
mito, mas deixou um vazio por medo do sentido; quem afirmou isso foi Paul
Ricoeur (1913-2005) que disse: “trata-se de um admirável acomodamento de
discurso que diz nada”18.
Enquanto C. G. Jung prosseguia, pacientemente, a sua pesquisa sobre os
arquétipos, e Mircea Eliade trabalhava sobre os traços do homo religiosus para
entender a sua vivência no sagrado, Gilbert Durand propunha uma evidência à
estrutura antropológica do imaginário19. Por imaginário, Durand entende como
“a união das imagens e das relações das imagens que constituem o capital pensado
do homo sapiens”20. Para estudar este imaginário, ele se coloca deliberadamente,
no que chama de percurso antropológico, vale dizer “a incessante troca que existe
no nível do imaginário entre os impulsos subjetivos e assimiladores, e as intimações
objetivas que resultam do ambiente cósmico e social”21. Esta descoberta consiste em
compreender como se operou a lenta formação da consciência do homem, do seu
pensamento, da sua consciência mítica22.

II - O HOMO RELIGIOSUS E O MITO

II.1 - O SAGRADO E O SÍMBOLO

Manifestando-se, o sagrado entra no mundo dos fenômenos. Deixa-se


descrever, mostrando-se como uma realidade que depende de uma ordem além
da natural. Para designar, com uma palavra prática, o ato de manifestação do
sagrado, Eliade criou o vocábulo ‘hierofania’. Em cada hierofania, temos um
objeto e uma pessoa, isto é, um meio pelo qual o sagrado se manifesta, por
exemplo, uma pedra ou uma árvore sagrada. Um segundo elemento é a realidade
15
JUNG, C G. Introduction à l’essence de la mythologie. Paris: Payot, 1941.
16
VICO, G. La Scienza Nuova. Bari: Laterza, 1974. 2v.
17
LÉVI-STRAUSS, C. Anthropologie structurale. Paris: Plon, 1958; LÉVI-STRAUSS, C.
Anthropologie structurale deux. Paris: Plon, 1973.
18
RICOEUR, P. “Structure et herméneutique”. In: Espirit, 1963. pp. 596-626; RICOEUR, P. “La
structure, le mot, l’événement”. In: Espirit, 1967. pp. 801-821.
19
DURAND, G. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1960.
20
Idem. Ibidem., p. XIV.
21
Idem. Ibidem., p.38
22
BERNOT, L. (Org.). Ande Leroi-Gourhan ou les voies d’homme: Actes du Colloque du CNRS, mars
1987. Paris: Albin Michel, 1988; ANATI, E. Origini dell’arte e della concettualità. Milano: Jaca
Book, 1988.
54 COMMUNIO • Julien Ries

invisível proveniente do mundo da transcendência. Enfim, um terceiro ator é o


elemento visível revestido de uma dimensão nova: a dimensão sagrada. Trata-se
do mediador que permite ao homem entrar em contato com o sagrado23.
No centro do percurso antropológico, no qual fala Gilbert Durand, se situa
o símbolo, cuja metade visível é o significante, com as suas três dimensões: cósmica,
onírica e poética. A outra metade é o significado, que aparece transparente. O
significante é concreto, sensível, tem a ver com a imagem: árvore, sol etc... Faz
conhecer e revelar o significado, que não pode ser percebido sem a ajuda do
significante. No aparato simbólico, Durand distingue três dimensões. A primeira
é o capital de referência de todos os gestos possíveis do homo sapiens: mímicas,
danças, gestos em referência à palavra e à escritura. A estes esquemas se unem
os arquétipos, vale dizer, as imagens primárias e universais: luz, trevas, abismo,
menino, lua, cruz, círculo. Estes arquétipos substantivos são completados por
epítetos: alto, baixo, quente, frio, seco, puro, profundo. O símbolo em sentido
estrito se especifica segundo estes arquétipos. A segunda dimensão do símbolo é a
genética, que permite ao homo sapiens, graças a sua consciência simbólica, realizar
o seu desenvolvimento com a educação cultural e religiosa. Mas segundo
Gilbert Durand existe uma terceira dimensão simbólica: o mito. Este
precede a história, antecipando-a, atestando-a, e a legitimando. O autor
cita como exemplo típico a fundação de Roma, que constituiu o paradigma
mítico de toda história romana. Foi necessário Geoges Dumézil para que os
historiadores de Roma tivessem consciência disto24.

II.2 - O MITO SEGUNDO MIRCEA ELIADE E PAUL RICOEUR

Mircea Eliade, antes de tudo, questionou os mitos ainda vivos nas sociedades
primitivas dos dias de hoje, para, então, se dedicar à mitologia dos povos que tiveram
um grande papel na história da Grécia, Egito, Oriente Médio, Índia. A partir desta
ampla documentação, tenta penetrar no mito, para determinar seu lugar na vida
do homo religiosus. Arriscou dar uma definição: “O mito conta uma história sagrada;
refere-se a um evento que teve lugar em tempos primordiais, o tempo mítico do início”25.
Segundo Eliade, o mito é uma narrativa verdadeira, sagrada e exemplar, que
tem o seu significado específico e que, graças à repetição, torna-se uma tradição.
Fornece ao homem modelos de conduta. Sua existência dá um sentido autêntico
e determina o comportamento do homem.
Com Eliade, continuamos na sociedade tradicional, na qual mito e
ritual estão ligados, já que o ritual permite a atualização do mito, isto é, um

23
RIES, J. Les chemins du sacré dans l’histoire. Paris: Aubier, 1985.
24
DURAND, G. L’imagination symbolique. Paris: PUF, 1964; DURAND, G. “L’univers du
symbole”. In: MÉNARD, J. E. (Org.). Le symbole. Strasbourg: Palais universitaire, 1975. pp. 7-23.
25
ELIADE, M. Aspectes du mythe. p. 15.
A LINGUAGEM E A MENSAGEM DO MITO 55

retorno regular às origens. Do ponto de vista da narrativa, o mito constitui


uma história que transporta a uma realidade existente, por exemplo, à
existência da tribo. Em conseqüência, em sua referência à criação, esta
permite uma verdade. Do ponto de vista do ouvinte, o mito inicia os
adolescentes à consciência das origens, e nesta iniciação, faz reviver uma
experiência sagrada. Graças a esta revelação e a esta re-atualização do evento
primordial, há o início de uma nova existência.
Sabemos que Paul Ricoeur se encontrou com regularidade com Mircea
Eliade, em Chicago, e com ele, dirigiu, duas vezes, um seminário sobre o mito:
O mito é uma narrativa tradicional que resgata os acontecimentos da origem
dos tempos, destinados a fornecer as bases ritualísticas dos homens de hoje,
e em sentido geral, a instituir todas as formas de ação e pensamento pelas
quais o homem compreende a si mesmo no seu mundo26.

O homem perdeu a dimensão do mito como retorno às origens, ao


illud tempus, já que não liga mais o mito à história arcaica da qual faz
críticas, e também não liga a lugares do mito na geografia atual. Todavia,
para o homem moderno, segundo Ricoeur, o mito conserva a potência
exploradora: com a função simbólica, revela a ligação com o sagrado.

III - UMA HIERARQUIA DOS MITOS

III.1 - MITOS COSMOGÔNICOS

Segundo Mircea Eliade, os mitos cosmogônicos constituem a história santa


dos povos, porque a cosmogonia se torna o modelo exemplar de cada criação27.
Andrew Lang (1844-1912)28, James Frazer (1854-1941)29, Lucien Lévy-Bruhl
(1857-1939)30, Bronislaw Malinowski (1884-1942)31 e Claude Lévi-Strauss32
estudaram os mitos cosmogônicos dos primórdios, mas deixaram de situá-los
numa escala de valores religiosos. Estes mitos são uma referência coerente às
origens. Revelando o drama da criação e da condição humana, dos princípios que
regem o cosmo. Fundam as ações dos deuses criadores.

26
RICOUER, P. Le symbolique du mal. Paris: Aubier-Montaigne, 1960. pp. 12-13.
27
ELIADE, M. La nostalgie des origini. pp. 150-177.
28
LANG, A. Custom and Myth. London: Longmans, Green and Co., 1884; LANG, A. Myth, Ritual
and Religion. London: Longmans, Green and Co., 1887. 2v.
29
FRAZER, J. Creation and Evolution in Primitive Cosmogenies. London & New York: Macmillan, 1935.
30
LÉVY-BRUHL, L. La Mythologie primitive: Le mode mythique des Australiens et des Papous. Paris: Alcan, 1935.
31
MALINOWSKI, B. Magic, Science, and Religion. Boston: Beacon Press, 1948.
32
LÉVI-STRAUSS, C. L’origine des manières de table. Paris: Plon, 1968.
56 COMMUNIO • Julien Ries

III.2 - MITOS DE ORIGENS

Próximo ao mito cosmogônico, o mito de origem revela e justifica uma situação


nova que não existia no início. Trata-se de uma modificação do mundo: cantos e rituais
genealógicos, mitos de cura, mitos de origem, da farmacologia e das terapias.

III.3 - MITOS DE RENOVAÇÃO

São numerosos os mitos de renovação. Cada entronização de rei é a criação.


Os mitos do ano novo e os mitos de retorno das estações mostram uma renovatio
do mundo. Nesta categoria, também, temos a modificação das pinturas rupestres.
Os mitos de renovação se conservaram nas religiões do Oriente Médio antigo e os
levaram, sobretudo, à restauração do tempo. Um dos mais importantes era celebrado
para a festa do akitu na Babilônia. O ano novo sinaliza o fim de um período de tempo:
é a expulsão dos demônios e a expiação dos pecados. Nestes mitos, encontramos as
cerimônias de iniciação, de reanimação do fogo, e até o ritual do bode expiatório33.

III.4 - MITOS ESCATOLÓGICOS

Os mitos do fim do mundo, tanto no passado quanto no futuro, são muito


numerosos; dilúvio, desmoronamento de montanhas, terremotos, incêndios,
epidemias. Muitas vezes, os mitos de dilúvio fazem menção de uma culpa que provoca
a cólera divina. A mitologia indo-européia conservou os traços de uma configuração
universal, seguida por uma nova criação. Entre estes mitos podem-se enumerar os
mitos da idade do mundo que tiveram certo eco com os padres da Igreja34.
As diferentes categorias de mitos têm como base o mito cosmogônico que
sinaliza a entrada do sagrado no mundo, e a fixação dos modelos humanos e que
revela uma história sagrada ao mesmo tempo normativa e exemplificativa35.

IV - MITOS E AÇÃO HUMANA

IV.1 - OS MITOS APRESENTAM MODELOS EXEMPLARES PARA A AÇÃO HUMANA

O homem é convidado a refazer o ato inicial, o arquétipo. Neste âmbito,


os mitos cosmogônicos comandam um importante ritual de renovação do mundo
e da criação: trata-se de manter o cosmo no sagrado das origens.
33
ELIADE, M. Le mythe de l’éternel retour. pp. 83-136.
34
LUNEAU, A. L’histoire du salut chez les Pères de l’Église: La doctrine des ages du monde. Paris:
Beauchesne, 1964.
35
ELIADE, M. “Prestige du mythe cosmogonique”. In: Diogène, 83 (1958): 3-17.
A LINGUAGEM E A MENSAGEM DO MITO 57

Segundo Mircea Eliade, o comportamento mítico regula as relações entre


o homem e o sagrado. Ao passo que repete o ato primordial, a ação humana
obtém a autêntica eficácia. Com isto, o homem se refere ao illud tempus. Assim,
cada sacrifício védico imita o sacrifício do purusha. Com o sábado, o homem da
Bíblia imita o descanso de Deus no sétimo dia. Com a ritualização do mito, o
homem se aproxima do tempo primordial, mantendo assim, uma abertura com o
mundo sobre-humano, no qual se situam os valores transcendentes. Para explicar,
Eliade confrontou seu estudo, em primeiro lugar, com as sociedades nas quais os
mitos estavam vivos até bem pouco tempo, que aos seus olhos, não só permitem
elucidar uma etapa na história do pensamento humano, como também ajudam a
compreender melhor certa categoria de pensamento de nossos contemporâneos36.

IV.2 - O MITO É NORMATIVO PARA O COMPORTAMENTO HUMANO

Como conclusão das respeitáveis análises sobre os mitos, Claude Lévi-


Strauss tentou centralizar algumas modalidades de operação do espírito humano,
modalidades constantes no curso dos séculos, e modalidades difusas em grandes
espaços geográficos. Aos seus olhos, uma lógica secreta regula todas as relações entre
os aparentes absurdos dos mitos. Assim, um pensamento que parece irracional
está, na verdade, impregnado de racionalidade. E nosso autor conclui que o
estruturalismo descobre a unidade e a coerência das coisas, reintegrando o homem à
natureza. A análise estrutural pode, unicamente, emergir no espírito humano, já que
seu modelo já está no corpo. Aqui começa a refutação da mensagem, no mito, pois
para Lévi-Strauss, os mitos não fazem afirmações sobre a ordem do mundo, sobre a
natureza do real, sobre a origem do homem e o seu destino. Enfim, a teleologia do
mito consiste em fornecer informações sobre o funcionamento do córtex cerebral37.
Segundo Mircea Eliade, refutamos uma posição neopositivista semelhante,
porque é contrária a toda a história dos povos. O estudo das sociedades arcaicas
mostra, claramente, que o mito contém uma mensagem ética que serve como guia
para as ações humanas, pelo fato de que, graças ao arquétipo, o homo religiosus tem
consciência de que entra em transcendência. Em conseqüência, afirma Eliade, a
aproximação com a qual o homem imerge nos tesouros imemoráveis das origens, não
explica o inconsciente coletivo, como pensa C. G. Jung, mas o “trans-consciente”
que o homem entra, graças ao símbolo.

IV.3 - O MITO EXIGE UMA DINÂMICA AO MESMO TEMPO REAL E SIMBÓLICA

A experiência da relação à transcendência postulada pelo mito exige uma


dinâmica ao mesmo tempo real e simbólica, pois se trata do tempo profano para o
36
ELIADE, M. Aspectes du mythe. pp. 33-53.
37
LÉVI-STRAUSS, C. L’homme nu. Paris: Plon, 1971. pp. 571-573.
58 COMMUNIO • Julien Ries

tempo sagrado das origens. Esta dinâmica é possível graças ao rito através do qual
o homem se torna contemporâneo do evento primordial. Destacando um lugar,
um território, um tempo profano, o rito os confere a sua autêntica realidade. É
o sentido dos numerosos gestos de consagração dos espaços, dos objetos e das
pessoas. Assim, os mitos de iniciação dão ao homem a sua completude38.

V - UMA NOTA SOBRE O PROBLEMA DO MITO NO CRISTIANISMO


A questão da relação entre cristianismo e mito não é nova, mas continua
nos dias de hoje. Uma das provas desta atualidade vem das exegeses do Novo
Testamento empreendidas por Rudolf Bultmann, que procurou desmistificar os
Evangelhos.
Até o século II, os docetistas negavam a humanidade de Jesus. Em nome
de seus mitos, os filósofos pagãos atacavam o cristianismo, enquanto os gnósticos
redigiam e divulgavam os evangelhos apócrifos. A Igreja não hesitou em travar
uma batalha contra este movimento, sobretudo contra os que consideravam
o Evangelho como um mito historicizado. A primeira resposta global veio de
Orígenes (185-253) que é o verdadeiro fundador da exegese bíblica.
Mircea Eliade conhecia este problema, e o tratou de modo particularmente
lúcido a partir da história das religiões39. Começou insistindo sobre a dúplice
especificidade do cristianismo. Antes de tudo, a fé cristã constituiu uma
experiência única na história da humanidade. Entre outras coisas, o cristianismo
é uma valorização da história como manifestação direta e irreversível de Deus
no mundo. Para o cristão, Jesus é uma pessoa histórica, inserida na história de
um povo, mas é também uma hierofania única. Entre o cristianismo e o mundo
arcaico, existe uma diferença radical no plano da vida de Cristo, no plano da
doutrina, no plano da realização do homem na história a partir da Encarnação.
Estamos na presença de uma ruptura, seja do tempo cíclico, seja do mito do
eterno retorno40.
Para a tradição judaico-cristã, a história começou com o drama do Paraíso
que fundou a atual condição humana. O Gênesis apresenta uma situação
primordial seguida por uma história que situa a condição humana definitiva. A
partir do qual se segue uma realização histórica, na qual se inserem os profetas e
Jesus Cristo. O illud tempus cristão não é um tempo mítico, mas histórico41.
Esta situação nos permite delimitar o problema do mito no cristianismo.
Certo é que os escritores dos Evangelhos utilizaram os símbolos, as figuras
38
RIES, J. & LIMET, H. (Org.). Les rites d’initiation: Actes du Colloque de 1984. Louvain-la-Neuve:
Centre d’Histoire dês Religions, 1986.
39
ELIADE, M. Aspectes du mythe. pp. 197-244; ELIADE, M. Mythes, rêves et mystères. pp. 24-28.
40
ELIADE, M. Le mythe de l’éternel retour. pp. 152-166.
41
ELIADE, M. Le sacré et le profane. pp. 94-98.
A LINGUAGEM E A MENSAGEM DO MITO 59

e os elementos dos rituais judaicos e os do mundo mediterrâneo, mas a estes


elementos deram um sentido totalmente diferente, a partir do mistério de Jesus
Cristo e da fé dos cristãos. No que diz respeito a Rudolf Bultmann, pode-se
dizer que há um erro fundamental: ele utiliza o conceito de mito no sentido
da Religionsgeschichtliche Schule do século XIX, o que falseia a sua perspectiva.
Segundo Eliade, o problema do mito não aparece no início do cristianismo, pois
a Igreja ligou Jesus à história do povo de Israel; uma história santa que anuncia o
messias, e os fundadores da igreja cristianizaram os símbolos, os ritos e os mitos do
mundo religioso mediterrâneo. O problema real surgiu quando os missionários
cristãos foram confrontados, na Europa central e ocidental, com as religiões
populares existentes e com os mitos pagãos das populações rurais42.
Eliade destaca um aspecto importante: o do comportamento mítico. O
homem arcaico se caracterizava pela imitação de um modelo arquetípico, pela
repetição de um drama exemplar e pela ruptura com a era profana. Não se trata de
um comportamento pueril, mas de uma atitude fundamental do homo religiosus.
Estas três características se reencontram no comportamento cristão, pois a
experiência religiosa foi fundada sobre a imitação de Cristo, que, na liturgia, é o
modelo exemplar: repetição litúrgica da sua vida, da sua morte, da sua ressurreição.
O tempo litúrgico é sagrado, em ruptura com o tempo profano. Com a liturgia, o
cristão se torna contemporâneo do illud tempus, que vai de Belém a Pentecostes.
O ano litúrgico se organiza sobre os mistérios históricos e a liturgia cristã realiza
a síntese do tempo linear e do tempo cíclico. Autêntico homo religiosus, o cristão
assume um modo específico de existência, fundado sobre a pessoa de Jesus Cristo
e sobre os mistérios da Encarnação e da Redenção.

Julien Ries nasceu em Fouches-Hachy, na Bélgica, em 1920. É professor de História


das Religiões e Presidente do Instituto de Estudos Orientais da Université Catholique de
Louvain, na Bélgica. Faz parte da direção editorial dos periódicos Revue Théologique
de Louvain e Muséon. É autor de diversos artigos e livros, dentre os quais destacamos
as seguintes obras: Les chemins du sacré dans l’histoire (Aubier Montaigne, 1992)
Traité d’anthropologie du sacré – Volume1: Les origines et le problème de l’homo
religiosus (Edisud, 1995), Traité d’anthropologie du sacré – Volume 2: L’Homme
indo-européen & le sacré (Edisud, 1995), Symbolisme et expérience de la lumière
dans les grandes religions (Brepols, 2003), Crises, ruptures, mutations dans les
grandes traditions religieuses (Brepols, 2005) e Le temps et la destinée humaine à
la lumière des religions et des cultures (Brepols, 2007).

42
ELIADE, M. Aspectes du mythe. pp. 207-219.
Alegoria aos quatro continentes: Europa (Século XVIII)
Óleo sobre tela de José Theophilo de Jesus (1758-1847)
Procedente do Engenho da Vitória, Cachoeira, BA
Museu de Arte da Bahia, Salvador, BA

Alegoria aos quatro continentes: Ásia (Século XVIII)


Óleo sobre tela de José Theophilo de Jesus (1758-1847)
Procedente do Engenho da Vitória, Cachoeira, BA
Museu de Arte da Bahia, Salvador, BA
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 61
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 61-75

NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO*


Padre Olivier Riaudel, O.P.

D esde o século XIX, um interesse renovado pela questão do mito e o


desenvolvimento dos estudos religiosos mantêm vivo e em constante
mutação o debate sobre o papel do mito na fé cristã. O cristianismo seria mítico
por inteiro? Conteria elementos míticos? Tais elementos seriam um componente
essencial do cristianismo ou uma deformação da mensagem? Após a Philosophie
der Mythologie [Filosofia da Mitologia] de Friedrich Schelling (1775-1854) ou Das
Leben Jesu [A vida de Jesus] de David Friedrich Strauss (1808-1874), como no
projeto de “desmitologização” de Rudolf Bultmann (1884-1976), ou, ao contrário,
na revalorização do mito como via de acesso, por excelência, a uma realidade
misteriosa, oculta ao conceito, passando pela Religionsgeschichtliche Schule [Escola
Religiosa] de Wilhelm Bousset (1865-1920) ou Hermann Gunkel (1862-1932)
a definição de mito e sua importância no cristianismo, embora não sejam pontos
centrais em dogmática, são constantemente revisitadas. A primeira dificuldade
encontrada na abordagem dessas questões é a ausência de unanimidade quanto à
definição de mito – algo que certamente terá peso na resposta que proporemos aqui.

I - A PROGRESSIVA DISTINÇÃO ENTRE MITO E OUTRAS FORMAS


DE DISCURSO

A palavra grega mûthos só se distingue de outros modos narrativos a partir


do século V a.C., quando a Grécia passa de civilização oral a civilização escrita. É
quando surgem duas formas de pensamento até então desconhecidas: a Filosofia e
a História. Antigamente, mûthos era sinônimo de lógos (palavra) ou epos (narrativa).
Assim, até mesmo o poema de Parmênides de Eléia (530-460 a.C.) qualifica como
“mito” (traduzível aqui por “palavra” ou “narrativa”) o ensino da divindade sobre o
caminho da certeza ou da persuasão que acompanha a verdade, segundo o qual “o
ser é e o não-ser não é”; principia de fato com essas afirmações: “Então, irei contar, e
você transmitirá o relato [mûthon] depois de tê-lo ouvido”1. Da mesma maneira, um
pouco adiante, lê-se: “Há apenas uma via para o discurso [mûthos]: o ser é”2.
*
Artigo publicado originalmente em Revue Catholique Internationale: Communio, Tome XXXIII,
6, novembre-décembre 2008: 81-98. Texto traduzido, do original em francês para o português, por
Norma Braga.
1
DIELS, H. & KRANZ, W. Die Fragmente der Vorsokratiker. Zurich: Weidmann, 1985. 28 B 2 1s.
2
Idem. Ibidem., 28 B 8,1.
62 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.

Já em Tucídides (460-395 a.C.), o surgimento da História é uma etapa


importante tanto na elaboração como na especificidade da noção de mito: história
e mito começam a se distinguir. Em História da Guerra do Peloponeso, o autor
diferencia seu próprio trabalho das mûthodes, elementos tradicionais recebidos
dos antigos e dos poetas, que para ele não devem ser dignos de crédito.
À luz da evidência apresentada até agora, todavia, ninguém, erraria se mantivesse
o ponto de vista de que os fatos na antiguidade foram muito próximos de como
os descrevi, não dando muito crédito, de um lado, às versões que os poetas
cantam, adornando e amplificando os seus temas, e de outro considerando que os
logógrafos compuseram as suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos
que de dizer a verdade, uma vez que suas estórias não podem ser verificadas, e
eles, em sua maioria, enveredam, com o passar do tempo, para a região da fábula
[mûthodes], perdendo, assim a credibilidade.
[...] Pode acontecer que a ausência do fabuloso [mûthodes] em minha narrativa
pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma idéia
clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que um dia voltarão a ocorrer
em circunstâncias idênticas ou semelhantes em conseqüência de seu conteúdo
humano, julgará a minha história útil e isto me bastará3

Nesse caso, mito é um relato incrível, fabuloso, sem fundamento,


elaborado pelos poetas para agradar a seu público. Nesse caso, cabe observar,
trata-se, sobretudo, de narrativas heróicas, e não de teogonias.
Mais tarde, Platão (428-347 a.C.) contribuiria para fazer emergir e fixar
o conceito de “mito” ao utilizá-lo como portador de uma realidade cultural
contestada em seus escritos. Assim, sua relação com o termo é ambígua. Nos
livros I e II d’A República, o mito, definido como relato sobre deuses, demônios,
heróis ou habitantes do Hades, é condenável por ser antropomórfico e imoral
ao atribuir aos deuses paixões humanas4. Além disso, segundo o filósofo, o mito
é inverificável e não contém argumentos, já que evolui segundo uma lógica
temporal, de acordo com as exigências narrativas. No entanto, Platão não deixa
de apelar para o mito, fazendo-o de duas formas. Por vezes, transforma-os em
alegorias, ou seja, narrativas imagéticas que remetem a outra coisa que não o que
é designado por elas. É o caso do mito da transformação dos homens em cigarras;
do deus Toth, inventor da escrita, em Fedro5; ou no célebre “mito” da caverna, no
livro VII d’A República6. Em outras, Platão vê, nos mitos, narrativas poéticas aptas
ao ensino, sem interpretação alegórica, como é o caso da origem das diferenças
3
THUCYDIDE. Oeuvres de Thucydide. (Édition et traduction de Jacqueline de Romilly, en
collaboration avec Louis Bodin et Raymond Weil). Paris: Les Belles Lettres, 1953-1972. 5v. I,21-22.
[N. do E.: Substituímos a citação pelo mesmo trecho da seguinte edição brasileira: TUCÍDIDES.
História da Guerra do Peloponeso. (Tradução do grego, introdução e notas de Mário da Gama Kury).
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1987].
4
PLATÃO. A República. 334a-383c.
5
Idem. Fedro. 274d-275b.
6
Idem. A República. 514a-517c.
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
63

sexuais, em O Banquete7; a origem de nossa ignorância sobre o momento de nossa


morte em Górgias8, ou o mito do anel de Giges n’A República9; e o relato da origem do
mundo pela ação do demiurgo, no Timeu10. Até mesmo A República, obra tão severa
em relação às mitologias, termina com o mito de Er, o Panfiliano11. Sócrates (470-399
a.C.) tira desse mito a seguinte lição: “Foi assim, ó Glauco, que o mito se salvou e não
pereceu. E poderá salvar-nos, se lhe dermos crédito”12. Talvez Sócrates tenha assumido
a mesma opinião desenvolvida por Timeu, no diálogo de mesmo nome:
Portanto, Sócrates, se há tantos detalhes em tantas questões que concernem os deuses
e a gênese do mundo, sem que sejamos incapazes de fornecer explicações absoluta e
perfeitamente coerentes e exatas, não fiques espantado; mas, se fornecemos alguma
que não ceda a nenhuma outra em verossimilhança, será preciso nos contentarmos,
lembrando que eu, que falo, e tu, que julgas, não passamos de homens, e que sobre tal
assunto convém aceitar o mito como verossímil, sem nada buscar além13.

Para Platão, portanto, o mito não é o mesmo que para Tucídides, um relato
fabuloso que se deve rejeitar; ao contrário, pode receber, em alguns casos, uma
interpretação alegórica, e por vezes será indispensável, caso seja “verossímil”, para
a abordagem tanto dos deuses quanto daquilo que ultrapassa nossa capacidade de
conhecimento. Cabe afirmar, no entanto, que ambos os autores só são capazes de
definir mito por efetuar a distinção entre os mitos e seus próprios discursos. O “mito”
só surge como gênero narrativo particular porque tanto a História como a Filosofia
pretenderam substituí-lo, pelo menos em parte.
Conformes a essa tradição, e até o Iluminismo, muitos pensadores definiriam
mito como uma forma primitiva de compreensão do mundo: seria, assim, um modo
de representação típico da “infância da humanidade” que, em ignorância acerca das
verdadeiras causas naturais, adotam uma forma poética de expressão como tentativa
de acesso à abstração. Mesmo o Novo Testamento faz referência a essa crítica do mito
como narrativa infundada. São Paulo escreve a Timóteo:
Se eu te recomendei permanecer em Éfeso, quando estava de viagem para a
Macedônia, foi para admoestares alguns a não ensinarem outra doutrina, nem se
ocuparem com fábulas (muthois) e genealogias sem fim, as quais favorecem mais as
discussões do que o desígnio de Deus, que se realiza na fé (1Tm 1,3-4)*.
7
Idem. O Banquete. 189d-193d.
8
Idem. Górgias. 523a-527b.
9
Idem. A República. 359c-360d.
10
Idem. Timeu. 29d-e
11
Idem. A República. 613e-621d.
12
Idem. Ibidem. 621a (grifo nosso).
13
Idem. Timeu. 29c (grifo nosso).
*
N. do E.: Todas as passagens da Sagrada Escritura citadas pelo autor ao longo do presente ensaio
foram substituídas pela versão em língua portuguesa da seguinte edição: BÍBLIA DE JERUSALÉM.
(Tradução do texto em língua portuguesa diretamente dos originais). São Paulo: Sociedade Bíblica
Católica Internacional / Paulus, 1995.
64 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.

Nessa mesma epístola à Timóteo, São Paulo opõe à escuta das “palavras da
fé e da boa doutrina” às “fábulas ímpias” (1Tm 4,6-7). Tal condenação do mito não
diz respeito somente ao pensamento grego, mas também a algumas especulações
(gnósticas) judaicas, já que Tito é encorajado dessa maneira:
Este testemunho é verdadeiro; repreende-os, portanto, severamente, para que
sejam sãos na fé, e não fiquem dando ouvidos a fábulas judaicas ou a mandamentos
de homens desviados da verdade (Tt 1,13-14).

A crítica ao mito como fábula sem fundamento seria, também, aplicada, por
Johann Gottfried Eichhorn (1753-1827), à Bíblia: textos do Antigo Testamento,
sobretudo no livro de Gênesis, passariam a ser vistos como mitologias14, visão
posteriormente reforçada pela descoberta de associações entre tais narrativas e
outras tradições orientais. E é a partir do final do século XVIII que as representações
apocalípticas do Novo Testamento seriam, também, consideradas, por Heinrich
Corrodi (1752-1793), como mitológicas, com a explicação de que as imagens
e figurações do final da história equivaliam-se àquelas presentes na história
primordial15. No entanto, tais considerações exigiriam a mutação do conceito de
mito, já que textos tardios como esses não poderiam ser exemplos de mentalidade
primitiva, anterior à literatura.
Assim, a noção de mito como erro é um dos sentidos modernos de
“mito” ou “mitologia”. Em um famoso estudo, Roland Barthes (1915-1980)
qualifica de mito o desdobramento de sentido que se produz quando o signo
de alguma coisa é empregado como significante de outra realidade16: de fato,
esta é a iconografia do abade Pierre, seu corte de cabelo, a barba e as roupas,
que se tornam significantes de santidade, signo da substituição da experiência
de um apostolado por um “mix” de santidade, e mais amplamente “da realidade
da justiça por signos de caridade”17. Nesse sentido, o mito é um instrumento
da ideologia burguesa18, transformando signo em significante de um conteúdo
ideológico: convém desmascará-lo.
Mas quem designa dessa maneira o mito, com vistas a desmascará-lo,
encontra uma dificuldade: “acabar” com o mito (o que não é o objetivo de
14
EICHHORN, J. G. Urgeschichte. (Herausgegeben mit Einleitung und Anmerkungen von Johann
Philipp Gabler). Nürnberg : Monath und Kubler, 1791-1793.
15
CORRODI, H. Kritische Geschichte des Chiliasmus, Zurique, 1794. De acordo com: HARTLICH
C. & SACHS, W. Der Ursprung des Mythosbegriffes in der modernen Bibelwissenschaft. Tübingen:
J. C. B. Mohr, 1952. p. 55. Citado por: PANNENBERG, W. “Christentum und Mythos”. In:
Grundfragen systematischer Theologie: Gesammelte Aufsätze II. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1980. pp. 13-65. Aqui página 19, nota 26.
16
BARTHES, R. Mythologies. Paris: Seuil, 1957.
17
Idem. Ibidem., p. 59.
18
“O status da burguesia é particular, histórico: o homem que ela representa será universal, eterno;
[...] Enfim, a idéia primordial de um mundo perfectível, móvel, produzirá a imagem invertida de
uma humanidade imóvel, definida por uma identidade infinitamente recomeçada”. (Idem. Ibidem.,
pp. 250-251).
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
65

Barthes, que fique claro) é um dos grandes “mitos” do ocidente moderno. Jacques
Derrida (1930-2004) o enfatiza com maestria num livro intitulado D’um ton
apocalyptique adopté naguère em philosophie [De um tom apocalíptico adotado
há pouco em Filosofia]19, em que analisa a primeira introdução da Kritik der
Urteilskraft [Crítica do Juízo] de Immanuel Kant (1724-1804), denominada “De
um tom senhorial adotado há pouco em Filosofia”. Kant critica os mistagogos,
não apenas porque anunciam o fim da Filosofia em nome de uma exaltação
mística, mas também por evitarem o rigor do conceito em nome do mistério que
não se saberia desvelar.
Nessa crítica kantiana de um discurso que pretende desvelar, mas não
muito, Derrida aponta para um segundo projeto de desvelamento, uma outra
apocalíptica – a do próprio Kant, que também anunciaria uma predição de fim:
o fim de certo tipo de metafísica. Algum tempo depois, G. W. F. Hegel (1770-
1831) anunciaria o fim da história, Friedrich Nietzsche (1844-1900) o advento
do super-homem, Karl Marx (1818-1883) do proletariado. Cada um deles “dá seu
lance cada vez maior de eloqüência escatológica”:
Cada recém chegado, mais lúcido que o anterior, mais vigilante e mais pródigo,
toma a palavra para anunciar: Estou dizendo a verdade. Não é apenas o fim disto,
mas também, e ainda de mais nada, o fim daquilo, o fim da História, o fim da
luta de classes, o fim da Filosofia, a morte de Deus, o fim das religiões, o fim do
cristianismo e da moral (esta, a ingenuidade mais grave), o fim do sujeito, o fim do
homem, o fim do ocidente, o fim de Édipo. [...] E quem quiser aprimorar, dizer o
fim do fim, a saber, o fim do fim, o fim dos fins [...] que ainda é preciso distinguir
entre fechamento e fim, este participaria, quisesse ou não, do concerto20.

Se não há fim, se “o apocalipse acabou” – como afirma Derrida, apontando


de modo bastante consciente para um sistema apocalíptico –, a saída do mito
anima boa parte da História da Filosofia: o mito é aquilo em que o outro crê,
enquanto eu sei que não é legítimo.

II - A REVALORIZAÇÃO ROMÂNTICA DO MITO


Até aqui, mencionamos apenas uma das fontes do sentido moderno de
mito. No início do século XIX, desenvolve-se um movimento de resistência tanto
à crítica iluminista da mitologia quanto à redução da religião a uma ética. Essa
mesma corrente romântica atrelará os ensaios de uma nova mitologia a debates
sobre a precedência da poesia sobre outras formas de conhecimento e de discurso.
É nesses meios que se elabora a acusação segundo a qual a Aufklärung [Ilustração /
Iluminismo], com sua redução do mito ao irracional, caracterizar-se-ia igualmente

19
DERRIDA, J. D’um ton apocalyptique adopté naguère em philosophie. Paris: Galilée, 1983.
20
Idem. Ibidem., p. 60.
66 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.

por um conceito mítico de razão21. O projeto desses autores não se limita à defesa
das mitologias antigas, mas inclui a produção de uma nova mitologia. Da mesma
forma, mas inversamente ao exemplo anterior, a noção de mito é definida e
desenvolvida com base em sua distinção de uma racionalidade considerada crítica
demais, calculada demais. Já o mito, para essa corrente, é a expressão original do
sagrado22, de uma sabedoria primordial23, a forma de expressão própria à religião,
de pensamento mais “vivo” e mais “fluido”.
Um dos exemplos mais claros desse projeto é Gespräch über die Poesie
[Conversa sobre a poesia], escrita por Friedrich Schlegel (1772-1829) após um
encontro em Jena, em novembro de 1799, em que, além do próprio Schlegel,
estiveram presentes Novalis (1772-1801) e Schelling, entre outros. Todos estão
no diálogo, sob pseudônimo. Após enfatizar, em um “discurso sobre a mitologia”,
que a força da inspiração poética não poderia repousar sobre indivíduos, mas sim
deve dispor de uma “captura sólida, um solo materno, um céu, um ar vivificante”24,
diz Ludoviko (que representa Schelling): “Afirmo que na poesia falta esse centro que
era a mitologia para os antigos, e que todo o essencial em que a poesia moderna cede à
antiga reside nisso: não temos mitologia”25. Prossegue Ludoviko:
A mitologia é uma [...] obra de arte da natureza: em sua trama, toma a forma
efetiva do que existe de mais alto; tudo nela é relação e metamorfose, conformação
e transformação, e assim são precisamente seus procedimentos, sua vida interna e
seus métodos, se posso me exprimir dessa maneira. [...] E eu não poderia concluir
sem exortá-los mais uma vez ao estudo da Física, cujos paradoxos dinâmicos são
responsáveis por fazer jorrar de toda parte, hoje, as revelações mais sagradas da
natureza26.

Nesses autores, que por vezes são influenciados por Johann Gottfried von
Herder (1744-1803)27 ou, de modo bastante diverso, por Schiller28, desenvolve-
se uma interpretação poética ou estética do mito, que Schelling denomina
tautegórica. Antes de tudo, tal interpretação se distingue da alegoria, de origem
21
Muito bem apresentados em: GOCKEL, H. Mythos und Poesie: Zum Mythosbegriff in Aufklärung
und Frühromantik. Frankfurt: Klostermann, 1981. pp. 1-27.
22
Georg Friedrich Creuzer (1771-1858) desenvolve, principalmente em Religion in der Geschicht
[Religião na História], a idéia de uma revelação primordial, exercendo influência sobre o romantismo,
que adotou de sua obra o parentesco entre o mito e um tempo original. Ver: CREUZER, G. F.
“Religion in der Geschichte”. In: Studien: Bd. 3. Heidelberg: Mohr und Zimmer, 1807.
23
GÖRRES, J. Mythengeschichte der asiatischen Welt. Heidelberg: Mohr und Zimmer, 1810.
24
Citado em: LACOUE-LABARTHE, P. ; NANCY, J.-L. & LANG, A.-M. L’absolu littéraire:
Théorie de la littérature du romantisme allemand. Paris, Seuil, 1978. p. 311.
25
Idem. Ibidem.
26
Idem. Ibidem., p. 315.
27
HERDER, J. G. Fragmente über die neue deutsche Literatu. In: Werke – Band 1. Frankfurt:
Suhrkamp, 1986. pp. 432-455.
28
SCHILLER, F. Lettre sur l´éducation esthétique de l´homme. (Traduction française par R. Leroux).
Paris: Aubier, 1943.
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
67

platônica: o mito transmite uma verdade que lhe é própria e que só pode ser
atingida através dele. O adjetivo “tautegórico” se opõe ao “alegórico” no sentido
de que o mito deve ser interpretado por si mesmo, tal como é formulado, e não
como expressão de outra realidade que possa ser enunciada de outras maneiras:
“a mitologia nasce diretamente como tal, e não possui outro sentido além daquele no
qual ela se anuncia”29. Esse sentido é, sobretudo, religioso: o mito não é apenas um
relato teogônico, mas também é em si mesmo uma teogonia: “o conteúdo último
da história dos deuses é a produção, o devir efetivo, de Deus na consciência”30.
As ciências das religiões, sem retomar o conjunto dessas teorias, prolongariam
algumas intuições esboçadas ali: primeiro, o mito é uma história sagrada cujo
relato tem em si mesmo uma eficácia, que é maior à medida que ele se alia (muito
frequentemente) ao culto; e a narrativa está ligada à origem de um elemento
essencial da existência humana: a idéia romântica de um tempo primordial é,
assim, especificada e reformulada numa perspectiva funcional de fundação. De
modo geral, em Antropologia ou Filosofia, a maior parte das teorias modernas
do mito contesta sua leitura alegórica: a função do mito não é explicativa, mas
sim de legitimação31. Mircea Eliade (1907-1986) é um autor representativo dessa
corrente, herdeira de uma tradição romântica que, ao empreender uma análise
mais precisa que a dos teóricos do século XIX, retoma, porém, uma definição do
mito de modo polêmico, contra toda desmitologização32, toda desqualificação,
toda redução do mito a explicações oriundas das ciências humanas.
A dificuldade dessa posição é formulada, talvez não intencionalmente, por
Thomas Mann (1875-1955) numa carta de 1941, endereçada a Károly Kerényi
(1897-1973), grande especialista em mitologia grega: “É preciso arrancar o mito do
fascismo intelectual e inverter sua função para um sentido humano”33. No entanto, há
nisso algumas dificuldades: seria o mito por excelência um meio de identificação
mimética34? O teórico do nazismo Alfred Rosenberg (1893-1946) teria intitulado
por acaso seu livro Der Mythus des zwanzigsten Jahrhunderts [O mito no século
XX]? O nazismo não soube se construir e se desenvolver a partir de um mito
fundador35, sem prescindir de referências religiosas, de estética, de ritos? A função
do mito pode ser invertida, como o espera Thomas Mann? Ou podemos apenas
resistir a sua lógica? São dignas de nota, nesse sentido, as críticas recentes do
29
SCHELLING, F. W. J. Introduction à la mythologie. Paris: Gallimard, 1998. p. 195.
30
Idem. Ibidem., p. 197.
31
MALINOWSKI, B. Myth in Primitive Psychology. New York: Kegan Paul, 1926, p. 88.
Encontramos uma idéia semelhante de “modelo exemplar”, mas em perspectiva bem diversa, em:
ELIADE, M. Le sacré et le profane. Paris: Gallimard, 1965.
32
ELIADE, M. La nostalgie des origines. Paris: Gallimard, 1971.
33
Citado em: NANCY, J.-L. La communauté désoeuvrée. Paris: C. Bourgois, 1990, p. 107-174.
34
Quer seja feita ou não referência às análises de René Girard sobre os mitos como narrativas de
violência mimética na origem das comunidades humanas.
35
LACOUE-LABARTHE, P. & NANCY, J-L. Le mythe nazi. La Tour d’Aigues: Éd. de l’Aube, 1991.
68 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.

uso do storytelling, de histórias, no mundo da publicidade e da administração,


visando, “através da manipulação de pulsões e emoções, a produção e circulação de
modelos de comportamento e correntes de imitação”36.
Identificar o mito como tal, nomeá-lo, já equivale a interrompê-lo. E
convém proceder assim, já que o mito, como toda narrativa, pode envolver o
indivíduo e fazê-lo mergulhar em um universo de ficção desconectado de toda
referência crítica. Isso significa que podemos, ou devemos, proceder a uma
desmitologização?

III - O PROJETO DE “DESMITOLOGIZAÇÃO” DE BULTMANN


O projeto de “desmitologização” defendido por Rudolf Bultmann nasce
do cruzamento de duas convicções:
1) Os mitos são formas de representação da realidade que foram ultrapassadas pela
ciência;
2) “O pensamento mitológico objetiva, de modo ingênuo, o Além em aquém”37,
tratando-o como realidade objetiva, “objetivada em um evento mundano”38: dito de
outra maneira, o mito é uma penhora do ser humano sobre o divino.

Bultmann argumenta sempre em favor da legitimidade da


desmitologização em nome do que o homem moderno, científico e esclarecido,
considera inaceitável ou incompreensível no Novo Testamento. Para ele, é
preciso isolar o mito por não ser verdadeiro, ou então por não mais ser aceitável
ou compreensível para nossa época: “A linguagem mitológica da Escritura não
é mais crível”39. É verdade que a desmitologização não busca tornar a fé cristã
aceitável para o homem moderno, nem esclarecer seu verdadeiro conteúdo. Pois
a ciência pode ser tão objetivante quanto o mito40, que, aliás, é um “pensamento
científico primitivo, logo objetivante”41. Objetivante não por ser primitivo, mas,
sim, científico.
36
SALMON, C. Storytelling, la machine à fabriquer des histoires et à formatter les esprits, Paris, La
Découverte, 2007, p. 81.
37
BULTMANN, R. “À propos du problème de la démythologisation”. In: Foi et Compréhension:
Eschatologie et démythologisation. Paris: Seuil, 1969. p. 390.
38
Idem. Ibidem., p. 392.
39
BULTMANN, R. “Neues Testament und Mythologie: Das Problem der Entmythologisierung
der neutestamentlichen Verkündigung”. In: BARTSCH, H. W. (Hg.). Kerygma und Mythos: Ein
theologisches Gesprach. Hamburg: Reich & Heidrich, 1948. p. 16.
40
“Se insisti na oposição entre pensamento mítico e pensamento moderno, não deixei dúvida alguma
sobre o que têm em comum, ou seja, sobre o fato de que ambos são pensamentos objetivantes e que,
em certo sentido, podemos caracterizar o pensamento mítico como um pensamento científico primitivo”
(BULTMANN. R. Kerygma und Mythos. pp. 182s; BULTMANN, R. “À mon sujet”. In: Foi et
Compréhension. p. 210).
41
BULTMANN, R. “À propos du problème de la demythologization”. p. 390.
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
69

É verdade que Bultmann não se cansa de afirmar que a ciência objetivante


evacua os mitos, enquanto a desmitologização os interpreta. Mas também são
recorrentes em sua obra afirmações como essa: “A visão bíblica do mundo é
mitológica; ela é, de fato, inaceitável para o homem moderno, pois seu pensamento, em
vez de mitológico, é, hoje, modelado pela ciência”42. Essa contradição se correlaciona
à definição do mito como uma forma de pensamento. É quando tal interpretação
estima possível isolar uma forma “mítica” e tratá-la como expressão inadequada
de uma compreensão de si. Bultmann distingue uma forma que pode ser separada
do conteúdo, tipo de expressão de algo que, de fato, é outra coisa: uma forma
de pensamento que fala dos deuses de modo humano, sendo, no entanto, uma
questão da existência humana.
Por desmitologização, entendo um proceder hermenêutico que interroga os
enunciados ou os textos mitológicos num sentido real. Pressupõe-se assim que o
mito fala de uma realidade, mas de maneira inadequada43.

Com isso, Bultmann é vítima de uma dupla ilusão: ilusão de uma pura forma,
abstraída de todo conteúdo, e ilusão de um puro conteúdo, abstraída de toda forma
de expressão.
Além disso, impressiona observar a que ponto a noção de “mito” utilizada
por Bultmann em seu programa de desmitologização permanece aquém das
análises desenvolvidas pelas ciências da religião44. Para ele, o mito é um “modo de
representar para si” o mundo (Vorstellungsweise)45 que se encontra “ultrapassado”46
numa época marcada pela ciência. Não se trata, de modo algum, de uma
definição de mito como relato que busca legitimar uma situação, ou estabilizá-
la, na narração de fatos em um tempo primordial; trata-se, para o autor, de uma
forma de representação que tem como característica principal o falar daquilo
que “não é mundano (von Unweltlichen) de modo mundano (weltlich), falar dos
deuses humanamente (menshilich)”47. Ele se situa, aqui, na linhagem da escola da
História das Religiões (Religionsgeschichtliche Schule): Wilhelm Bousset, de quem
Bultmann foi aluno, de fato definia o mito como “relato sobre os deuses”48 cujo
“espírito ingênuo”, precisaria Hermann Gunkel, “considera o divino de maneira
viva, pintando-o com boa dose de imaginação”49. A realidade espiritual do divino é
descrita de maneira sensível e corporal.
42
BULTMANN, R. “Jésus-Christ et la mythologie”. In: Jésus. Paris: Seuil, 1968. pp. 205-206.
43
R. BULTMANN, «À propos du problème de la démythologisation », op. cit., p. 384.
44
Apesar das declarações contrárias: BULTMANN, R. “Neues Testament und Mythologie”. p. 23, n. 2.
45
Idem. Ibidem., p. 23.
46
Idem. Ibidem., p. 14 ou p. 16.
47
Idem. Ibidem., p. 23.
48
BOUSSET, W. Das Wesen der Religion dargestellt an ihrer Geschichte. Halle: Gebauer, 1904. p. 77.
49
GUNKEL, H. Zum religionsgeschichtlichen Verständnis des Neuen Testaments. Göttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht, 1903. p. 14.
70 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.

A transformação que Bultmann opera no seio dessa tradição, ao


definir o mito como um discurso que fala “de modo mundano daquilo
que não é mundano”, revela, na verdade, toda a sua concepção do divino,
na linha de uma teologia dialética: a realidade divina nada é no mundo,
mas surge como aquilo que põe o mundo em crise. Da mesma forma, tudo
o que se refere a uma inscrição divina no mundo, tudo o que exprime
uma relação positiva do divino no mundo ou no ser humano deve ser
considerado mitológico. Indagaria padre Pierre Benoit, O.P. (1906-1987):
Haveria entre Deus e o mundo criado tal incompatibilidade que todo
enunciado que pretenda descrever entre ambos relações reais e históricas
deveria ser rejeitado como “mitologia”? 50.

Igualmente, a definição do mito se estabelece como oposição ao


que não é mito: aqui, é oposto a uma concepção de divindade que acaba
determinando a definição do mito.
É inegável a legitimidade da questão em que se coloca Bultmann:
como interpretar conteúdos, formas de pensamento ou de representação
que provêm de uma concepção de mundo que não é mais a nossa? O
que leva ao erro é qualificar tais conteúdos como mitos e supor sua
pronta substituição. Talvez o exemplo mais claro seja o da escatologia 51.
Bultmann chama “mitológicas” 52 duas concepções de esperança que ele
identifica no Novo Testamento: uma, judaica, espera o fim do mundo e
o retorno do Cristo, e outra, “helenístico-gnóstica”, espera uma elevação
dos mortos na glória celeste. Segundo ele, é empreendida uma retirada
de tais concepções mitológicas no Evangelho de São João, com o tema da
vida: “O sentido dessas interpretações mitológicas da esperança cristã tal como
desvelado na desmitologização reside no fato de que tais representações nos
falam tanto do futuro de Deus quanto do cumprimento da vida humana” 53,
um futuro que, a cada instante, vem ao encontro do presente do homem.
A geração seguinte de teólogos, de Jürgen Moltmann a Johann Baptist
Metz, passando por Wolfhart Pannenberg ou Eberhard Jüngel, fará o
esforço oposto, em geral com a ajuda de filósofos marxistas judeus, como
Ernst Bloch (1885-1977) e Walter Benjamin (1892-1940), de repensar
teologicamente a questão da temporalidade, pondo-se à escuta dessas
fórmulas muitas vezes metafóricas.

50
BENOÎT, P. Exégèse et théologie 1. Paris: Cerf, 1961. p. 80.
51
Sobretudo no seguinte artigo: BULTMANN, R. “L’espérance chrétienne et le problème de la
démythologisation”. In: Foi et Compréhension. p. 101-111.
52
Idem. Ibidem., p. 103.
53
Idem. Ibidem., p. 111.
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
71

IV - OS LIMITES DA DEFINIÇÃO DO MITO, OU POR QUE


IGNORÁ-LO EM TEOLOGIA

O problema levantado por Rudolf Bultmann (como interpretar o que, na


Bíblia, está manifestamente ligado a uma compreensão de mundo que não é mais
a nossa) é legítimo. No entanto, é contestável que essa questão seja tratada no
âmbito de uma “desmitologização”. Ainda que isto não seja decisivo, a definição
de Bultmann para mito é demasiado simples. Porém, o motivo principal é que
a fronteira traçada entre o mitológico e o não-mitológico é muito semelhante à
distinção operada entre uma visão objetivante do homem e a análise existencial
de um sujeito, que pode ser “desmundanizado”54 na fé: tal fronteira faz com
que os ensinos de Jesus sejam abstraídos de seu contexto, sobretudo quanto
às representações escatológicas que a determinam tão fortemente, e que não
poderiam ser reduzidas ao instante histórico (geschichtlich) da decisão. Outro
motivo, ainda mais importante, reside no fato de que não poderíamos reduzir
a distância entre as representações de mundo, diversas, que povoam a Bíblia, e
nossa própria compreensão de mundo, também mais diversificada que Bultmann
parece supor na questão do mito. E ainda, assistimos no seio mesmo da Teologia,
principalmente na exegese, a uma grande incerteza acerca do sentido do termo
“mito”. Constata-se até mesmo uma curiosa dicotomia, ligada à extensão que se
atribui ao termo. Desde Hermann Gunkel55 e até muitos autores modernos56, a
exegese do Antigo Testamento lhe atribui uma definição muito restrita:
a) O mito é uma narrativa;
b) Tida como verdadeira (à diferença do conto), ou seja, que legitima de fato realidades;
c) Que põe em cena divindades como individualidades atuantes;
d) Situadas em um tempo originário, anterior à História.

Definido assim como “história dos deuses”, o mito está ausente do Antigo
Testamento, ou, ao menos, ali, os elementos mitológicos são transformados: “Não
há mito autêntico, transmitido por inteiro e sem alterações, em nenhum trecho do
Antigo Testamento” [...] “Só se encontram materiais míticos diversos, enfraquecidos
e abreviados de várias maneiras”57. Para muitos exegetas do Antigo Testamento, o
mito é uma realidade estranha à Bíblia, presente nela, mas de modo transformado.
O mito é politeísta, o Antigo Testamento monoteísta; é a-histórico, enquanto o
Antigo Testamento historiciza58 um material mitológico referindo-o a um evento
54
BULTMANN, R. “À mon sujet”. p. 213.
55
GUNKEL, H. Genesis. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1969; GUNKEL, H. Die
israelitische Literatur. Darmstadt: Wissenschaftl Buchgesellschaft, 1963.
56
Como, por exemplo: GIBERT, P. Bible, mythe et récits des commencements. Paris: Seuil, 1986.
57
GUNKEL, H. Die israelitische Literatur. p. 16.
58
NOTH, M. “Die Historisierung des Mythos im Alten Testament”. In: Gesammelte Studien zum
Alten Testament II. München: Kaiser, 1969. pp. 29-47.
72 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.

histórico, como, por exemplo, na luta contra o caos (e o mar, símbolo do caos),
relida a partir da saída do Egito (Sl 77; Is 51,10).
Mas tal definição leva a uma distinção bastante evidente entre as tradições
que deram origem ao Antigo Testamento e as demais religiões orientais antigas
(consideradas mitológicas): o mito é a crença do outro. O que é designado
como historicização do mito pode ser também qualificado de “mitologização
da História”59 por Martin Buber (1878-1965), que, aliás, define o mito como
“relato, sob a forma de uma realidade sensível, de uma ação divina”60. De modo
geral, essa definição muito restrita exclui o uso moderno do termo: afirmar que
o mito descreve divindades agindo em um tempo primordial parece retirar do
cenário tudo o que poderíamos qualificar de “mitologias modernas”, como relatos
transmitidos que constituem um sistema simbólico, estabilizando um estado que
o identifica, ou permitindo reger conflito entre várias exigências. No entanto,
é verdade que usar o termo “mito”, elaborado a partir da religião grega, para
designar uma religião monoteísta, é algo problemático. Também é verdade que os
textos do Antigo Testamento só conservam traços de relatos de deuses ou misturas
entre divino e humano (Gn 6,1-5), atribuindo peso maior à História – o que os
aproxima da religião romana, de que se falou, desde a Antiguidade com Dionísio
de Halicarnasso (60-7 a.C.), que era uma religião sem mito. Podemos concluir
que a noção de mito, elaborada em um contexto religioso grego, só se aplica
muito dificilmente a outros sistemas religiosos, servindo apenas para designar sob
um termo único realidades parcialmente comparáveis, mas não unificáveis.
Ao contrário da exegese do Antigo Testamento, constatamos em geral,
desde David Strauss, uma definição muito mais abrangente do mito na exegese
do Novo Testamento. O termo pode servir, como em Rudolf Bultmann, para
designar tudo o que não nos parece mais crível; pode também ser considerado,
como ocorre em Gerd Theissen, um relato que fala de “um tempo determinante
para o mundo, em que intervêm atores sobrenaturais, que fazem passar de um estado
instável a um estável”61. Theissen conclui:
Não é necessário [...] identificar pura e simplesmente “História” com o “Jesus
histórico”, nem “mito” com a “pregação do Cristo” pós-pascal. Podemos de fato
constatar que o Jesus histórico já vivia num mito, esperando a irrupção do Reino
de Deus e se apresentava como representante desse reino, num lugar central do
que advém entre Deus e o mundo. Ele historicizava, assim, um mito do tempo do
fim. Uma espera que se referia a um tempo incerto do porvir (próximo) era, então,
transformada numa experiência atual da História. A unidade entre mito e História
começava, assim, no Jesus histórico62.
59
BUBER, M. Moses. In: Werke – Band II. München / Heidelberg: Kosel / Lambert, 1964. p. 20.
60
BUBER, M. “Der Mythos der Juden”. In: Der Jude und sein Judentum, Köln: Joseph Melzer,
1963. p. 78.
61
THEISSEN, G. La religion des premiers chrétiens. Paris / Genève: Cerf / Labor et Fides, 2002. p.
50; Ver, também, a longa nota 5 da p. 16.
62
Idem. Ibidem., p. 49.
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
73

Note-se que não somente o autor atribui ao termo uma extensão maior, mas
também considera o mito um elemento constitutivo tanto da pregação cristã quanto da
pregação do Jesus histórico: por esses dois aspectos ele se opõe a uma tendência forte na
exegese do Antigo Testamento, tendência que restringe a definição do mito e o considera
um material estranho que foi assimilado e transformado pela Bíblia.
Quando percebemos as realidades que essa palavra pode reunir em si, sobretudo
quando tratamos das narrativas modernas ou contemporâneas que marcam nosso
imaginário, é possível uma definição ainda mais abrangente do mito. Como, por
exemplo, a de “ideologia em narrativa”63: o mito transforma em relato um conjunto de
crenças que se inscreve nas instituições, influencia ações e se inscreve no real. É próprio
ao mito a forma de narrativa. Consideramos que toda ideologia que toma essa forma
é um mito. Porém, por que nomear tal narrativa de “mito”? Apenas por ser objeto de
crença? Por ser infundado? Mas como, nesse caso, distinguir um mito de uma lenda,
um conto? Toda narrativa que justifica uma situação não é um mito: tal pode ser o efeito
de uma lenda, um conto, uma obra ou uma narrativa individual. Podemos escolher: ou
estimamos que é necessário distinguir os mitos de outras narrativas, explicando por que
os mitos pretendem expor uma verdade; ou decidimos chamar “mito” toda narrativa de
legitimação, narrativa “fundadora”, incluindo nisso os contos, os romances, as figuras
literárias, até ideologias (o “mito” da lei do mercado, da luta de classes etc.).
No primeiro caso, falar de mito pressupõe distinguir entre o mito e o
discurso que o nomeia. Até mesmo uma definição ampla – “narrativa de uma
história sagrada, primordial, que estrutura uma experiência do mundo” ou a já citada,
de Theissen, “narrativa de um tempo determinante para o mundo, em que intervêm
atores sobrenaturais, que fazem passar de um estado instável a outro estável” – exclui toda
mitologia contemporânea, deixando subentendido que o mito estaria ligado a um
tipo de cultura hoje ultrapassado. Sem contar o fato de que uma definição ainda mais
precisa produz uma cesura dificilmente justificável entre o mundo da Bíblia e seu
meio cultural e religioso.
Já no segundo caso, não se sabe mais onde termina o mito. Não questionamos a
abundância do uso do termo em nossa cultura, fruto da história de nossa compreensão
do mundo. Trata-se de considerá-lo não como conceito, mas como denominação,
no sentido de uma metalinguagem, para designar, a partir de sua origem grega,
fenômenos parecidos no seio de outras culturas, ou para designar – a partir de uma
expressão religiosa – outros fenômenos, literários ou psicológicos, por exemplo.
Mas isso significa que as narrativas legendárias, os contos de fadas, tudo o que
se relaciona à poesia ou ao imaginário deve ser considerado mitologia? Caso a resposta
seja sim, por quê? Talvez haja algo como uma necessária mitologia do mito para afirmar
que dois tipos de linguagem, ou de linguagem oriunda de culturas e épocas diferentes,
podem, no entanto, se informar, ressurgir em outros meios de modo reconhecível e,
63
LINCOLN, B. Theorizing Myth: Narrative, Ideology, and Scholarship. Chicago: University of
Chicago Press, 1999. Ver, também: CSAPO, E. Theories of Mythology. Malden / Oxford: Blackwell,
2005. pp. 301-315.
74 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.

para dizê-lo do modo mais trivial, “falar-nos”. Cabe a cada ramo do conhecimento dar
conta de seu interesse no uso dessa noção.
Mas por que usá-la em Teologia? Permito-me aqui uma hipótese. Falar de
mito, em Teologia, é distinguir, e mesmo separar, um determinado tipo de discurso
de outro discurso, conceitual e crítico. Nesse sentido, mostra-se com facilidade em
que o pensamento dito “científico” também origina mitos, narrativas, um tipo de
fabulação – como a ficção científica, por exemplo, que permite a abordagem das
grandes questões que uma sociedade se propõe.
Um exemplo evidente e ao mesmo tempo estimulante se encontra nos trabalhos
de Kurt Hübner64, no esforço de definir uma ontologia do mito, indagando-se, por
exemplo, o que caracteriza neles objetividade, substância, modalidades, lógica, tempo
ou espaço. Seu objetivo é mostrar que, longe de ser um discurso irracional, os mitos
têm uma racionalidade diversa da científica (por exemplo, separação ou não entre
material e ideal, presença ou não de contingência e de acaso etc.), mas igualmente
legítima. O mito “mediatiza, assim, um sistema de experiências, transmite legitimações
empíricas, trabalha com conceitos intersubjetivamente compreensíveis e, concluindo, é
capaz, por tudo isso, de deduções lógicas65”. O interesse nesse tipo de análise parece
ser o da distinção entre o que se relaciona com o mito e o que não se relaciona, já
que define uma ontologia do mito. Seu autor afirma, claramente, que esse elemento
mitológico não é o conjunto de uma religião (ainda que não haja religião viva sem
mito), enfatizando que o especificamente religioso deve ser distinto do mitológico.
Porém, definir uma ontologia do mito para distinguir outros tipos de ontologia é
definir uma relação com a experiência especificamente mitológica, irredutível a outra
racionalidade. É, portanto, fazer uso não de uma dicotomia entre mythos e lógos,
mas entre o que é definido como “mito” e o que é definido como “científico” ou
“conceitual”.
Duas objeções podem ser feitas contra tal “autonomização” do mito. A
primeira, já a vimos: seria de fato possível uma distinção real, do interior, entre
mitos “autênticos” e “pseudo-mitos políticos”66, degeneração de verdadeiros mitos?
A segunda: autonomizar a relação mítica com o mundo remete ao que Friedrich
Schleiermacher (1768-1834) faz com o sentimento, com relação ao saber e à ética. É,
portanto, declarar estranho ao mito qualquer relação com o conceito. O mesmo jamais
seria dito do símbolo, da comparação, da narrativa ou da metáfora, por exemplo,
que podem se distinguir do pensamento conceitual, mas não lhe são estranhos. Na
Teologia, permitir que seja definida e autonomizada uma ontologia do mito é correr o
risco de tratar sob essa única denominação os temas já citados, ligados de modo global
64
Seus escritos principais sobre o assunto são: HÜBNER, K. Die Wahrheit des Mythos. München: Beck, 1985;
HÜBNER, K. “Der Mythos, der Logos, und das spezifisch Religiöse. Drei Elemente des christlichen Glaubens”.
In: SCHMID, H. H. (Org.). Mythos und Rationalität. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 1988. pp. 27-41.
Pode-se também consultar o seguinte artigo: HÜBNER, K. “Mythos I. Philosophisch”. In: TER, 23 (1994):
597-608.
65
HÜBNER, K. “Mythos I. Philosophisch”. p. 604.
66
Idem. Ibidem.
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
75

ao fato literário que não é necessariamente relacionado ao mito, e que encontram


lugar em uma reflexão sobre a conceitualidade, sobre o papel do lógos em teo-logia.
O uso teológico da noção de “mito” (mesmo que se tenha chegado a um acordo
sobre sua definição) me parece sempre oscilar entre dois inconvenientes: estigmatizar
um tipo de discurso (o mito é a crença do outro) ou, ao contrário, valorizá-lo em
sua irredutibilidade (o mito é a parte do mundo que está cega para o conceito). Essa
oscilação é a mesma da própria história do termo. Da mesma forma, seu uso teológico
corre sempre o risco de sobredeterminar o que é designado: assim, falar de mitologia
acerca do que São Paulo afirma sobre os anjos (tronos, principados, potestades...),
algo herdado do judaísmo de seu tempo, parece-me sobrepor a esses textos uma
determinada concepção de mito, e com ela toda uma série de questões que turvam
a compreensão. Classificar sob a categoria de mito textos que levantam discussões
absolutamente apaixonantes em torno do interesse ou da função de um discurso
teológico (e, portanto, conceitual) do imaginário, do inconsciente, da metáfora, da
literatura etc., não deixa de se assemelhar ao uso de uma camisa de força. O projeto
bultmanniano de desmitologização cai no mesmo erro ao concentrar, na mesma
palavra, realidades tão diversas, propondo-se a tratar, com um conceito mal adaptado,
uma questão até legítima. Como afirmou Paul Valéry (1871-1945):
Mito é o nome de tudo o que só existe e subsiste tendo a palavra como causa [...].
Não podemos falar do mito sem mitificar novamente, e não estou eu, neste instante,
fazendo o mito do mito para responder ao capricho de um mito?67.

Padre Olivier Riaudel, O.P., nasceu em 1969 e ingressou na Ordem dos Pregadores
em 1989. Estudou em Lyon, Paris e Munique. Leciona Teologia Fundamental na
Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Publicou Le monde comme histoire
de Dieu: Foi et Raison dans l’oeuvre de Wolfhart Pannenberg (Cerf, 2007).

67
VALÉRY, Paul. “Petite lettre sur les mythes” In: Variétés II. Paris: Gallimard, 1929.
Alegoria aos quatro continentes: África (Século XVIII)
Óleo sobre tela de José Theophilo de Jesus (1758-1847)
Procedente do Engenho da Vitória, Cachoeira, BA
Museu de Arte da Bahia, Salvador, BA

Alegoria aos quatro continentes: América (Século XVIII)


Óleo sobre tela de José Theophilo de Jesus (1758-1847)
Procedente do Engenho da Vitória, Cachoeira, BA
Museu de Arte da Bahia, Salvador, BA
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 77
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 77-83

A BÍBLIA E O FANTÁSTICO*
Padre José Tolentino Mendonça

N o importante documento que, em 1993, a Comissão Pontifícia Bíblica


dedicou à Interpretação da Bíblia na Igreja escreve-se que, quem desejar
entender a Palavra Eterna, “deve humildemente procurá-la onde ela se tornou
perceptível”, pois “Deus serviu-se de todas as possibilidades da linguagem humana”1.
De fato, essa é a constatação de qualquer pesquisa literária que tome
a Bíblia por objeto: ela constitui um laboratório imenso e até desconcertante
das “possibilidades da linguagem humana”. Constrói-se no espaço temporal,
semântico e acústico de línguas diferentes e faz uso de tipologias, entre si tão
distantes, como a poesia e a crônica de corte, os oráculos proféticos e os livros de
viagens, os relatos históricos e as visões, etc.. É um tecido unitário e, ao mesmo
tempo, heterogêneo; simples, mas sofisticado, cheio de desdobramentos, remissões
e envios. Se pensarmos nos seus personagens, a amplidão só se adensa: nômades
e reis, pastores e sacerdotes, cobardes e heróis, criminais e mártires, ignorantes
e sábios, náufragos improváveis e vozes intensamente inspiradas dão corpo ao
drama, inclusivo e extenso, da Salvação. Podemos, assim, entender aquilo que
Northrop Frye (1912-1991) defende: “A Bíblia é o livro mais completo que existe,
o livro que engloba tudo”2.

I - QUE PRETENDE A BÍBLIA E COMO O CUMPRE?


A Bíblia, porém, não pretende apenas relatar, mas relata em vista de. O final
do Evangelho de João é esclarecedor quando explica que tudo o que se escreveu
é “para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e, acreditando, terdes a
vida nele” (Jo 20,31). Na mesma linha o Concílio Vaticano II aponta o ângulo da
verdade escriturística: os Livros da Escritura ensinam a “verdade que Deus, para
nossa salvação, quis que fosse consignada nas Sagradas Letras” (Dei Verbum §11).
Como cumpre a Bíblia este desígnio? Recorrendo às ferramentas diversas
que a linguagem oferece. À verdade revelada chega-se por múltiplos acessos e pelo
cruzamento entre eles. É evidente, por exemplo, que o gênero histórico tem nela,
*
Artigo publicado originalmente em Communio: Revista Internacional Católica, Ano XXV, Número
4, outubro/novembro/dezembro 2008: 407-414.
1
COMISSÃO PONTIFÍCIA BÍBLICA. A Interpretação da Bíblia na Igreja. Lisboa: Rei dos Livros,
1994. pp. 157-158.
2
FRYE, Northrop. Entretiens avec David Cayley. Québec: Bellarmin, 1996. p. 275.
78 COMMUNIO • Padre José Tolentino Mendonça

nas suas linhas e entrelinhas, uma relevância impagável. Mas igualmente a ficção
e a poesia, da qual Aristóteles (384-322 a.C.) dizia ser “algo mais sério do que a
história, pois refere principalmente o universal, enquanto esta, o particular”3.
De fato, a Revelação desenvolve-se coerentemente, do princípio ao fim,
mas não de maneira previsível. O sentido que ela constrói não é apenas emergente:
em grande medida permanece voluntariamente implícito, misterioso e submerso.
Muito naturalmente, o Novo e o Antigo Testamento avançam na
descontinuidade, problematizam o óbvio, confiam que a indeterminação possa
contribuir melhor para a aclaração do sentido do que a afirmação minuciosa,
preferem o esboço da metáfora ao desenho mais firme dos conceitos, contam com
a propagação semântica trazida pelo símbolo e pela pergunta, sobretudo quando
a esta não se cola imediatamente uma resposta.
Há a história e a seu lado a poética. Como, podemos dizer, que há
a Revelação e, ao serviço dela, a Imaginação Bíblica. Escreveu padre Adolphe
Gesché (1928-2003):
Não é distante a relação entre os que uns chamam “Revelação” (isto é, a abertura
de um espaço onde se des-cobre uma realidade invisível escondida no visível) e o
que outros chamam “Imaginação” (quer dizer, a abertura de um espaço onde se
descobre o visível escondido no invisível), pois, em ambos os casos, trata-se de
esclarecer o visível pelo invisível4.

II - O FANTÁSTICO É UM GÊNERO OU UM EFEITO?


A consideração do Fantástico como gênero literário é relativamente
recente. A sensibilidade romântica, com um programa fortemente onírico,
numa tentativa de temperar os excessos do racionalismo, funcionará como
alvéolo para essa germinação: o seu interesse pelas paisagens crepusculares, sejam
elas físicas ou puramente mentais; o regresso entusiasta ao imaginário medieval
e ao universo das lendas e fantasmagorias; o deslumbre pelo romance gótico,
etc.. Como gênero, o Fantástico conhece a sua consolidação entre os séculos
XVIII e XIX. É aí que se fixa como tipologia, com esquemas e a terminologia
próprias, mesmo se antecedentes seus se detectem já nos séculos anteriores.
Por exemplo, nas querelas sobre o recurso ao maravilhoso cristão na literatura
moderna, ou nos apaixonados debates em torno aos contos de fadas, depois da
recolha de Charles Perrault (1628-1703), e às traduções de clássicos como Mil
e uma noites. Perspectivado deste modo, o Fantástico enquanto gênero parece
irremediavelmente distante da Bíblia. E, atrever-se ao contrário, seria incorrer
num indefensável anacronismo.
3
ARISTÓTELES. Poética. IX, 50.
4
GESCHÉ, Adolphe. “Le mal et l’imaginaire en théologie”. In: WATTHEE-DELMOTTE,
Myriam & DEPROOST, Paul-Augustin (Eds.). Imaginaires du mal. Louvain-la-Neuve: / Paris
Presses Universitaires de Louvain / Cerf, 2000. pp. 15-16.
A BÍBLIA E O FANTÁSTICO 79

Porém, há no Fantástico uma natureza muito singular. A dificuldade em


delimitar satisfatoriamente as suas fronteiras é reconhecida, pois ele permanece
em grande medida ambíguo, indefinível, evanescente e transversal. Nessa linha,
alguns autores escolhem falar do Fantástico como “um sentimento”5 ou, muito
justamente, como “um efeito”6. Se assim for, podemos, de fato, perceber que a
utilização do Fantástico, de forma mais ou menos premeditada, acompanhou
desde sempre a arte de contar. O seu impulso e atmosfera “são tão antigos como
o homem”, garante H. P. Lovecraft (1890-1937)7. E não será assim tão estranho
detectar afinidades entre o mecanismo literário da Bíblia e aqueles utilizados por
E. T. A. Hoffmann (1776-1822), Edgar Allan Poe (1809-1849) ou Jorge Luis
Borges (1899-1986).

III - A NATUREZA DO FANTÁSTICO


Num ensaio, transformado já em clássico8, Tzvetan Todorov descreve
o Fantástico como uma hesitação fundamental acerca da natureza dos
acontecimentos contidos num relato. Estamos perante o Fantástico quando,
numa narrativa supostamente realista, atravessa-se um elemento inexplicável,
uma força sobrenatural cuja chave é e permanece inapreensível. A grande
diferença em relação ao Maravilhoso é que este “está naturalmente povoado de
dragões, unicórnios e fadas; os milagres e as metamorfoses são ali contínuos; a varinha
mágica é de utilização corrente; os talismãs, os gênios, os elfos e os animais agradecidos
abundam…”9. No Fantástico, pelo contrário, “o sobrenatural aparece como uma
ruptura da coerência universal”10.
O Fantástico é a emergência do sobrenatural e o efeito impressivo,
tumultuoso que ele provoca. O novo fator em jogo abala o quadro de convicções
tido, até então, por estável. H. P. Lovecraft é peremptório:
O único teste é simplesmente este – saber se é ou não estimulada no leitor uma
profunda sensação de temor, a par de um contacto com esferas e potências
desconhecidas; uma atitude subtil de expectativa e pavor, como se escutássemos o
bater de asas […] ou o remexer […] nos confins do universo11.

Avoluma-se, então, a suspeita de que outra ordem força as portas de um mundo


regulado apenas pelas leis da razão. Uma mudança do quadro de verossimilhança torna-
5
CORTAZAR, Julio. Entretiens avec Omar Prego. Paris: Gallimard, 1983. p. 72.
6
BOZZETTO, Roger. “Refléxions sur le statut des textes a effets de fantastique”. In: SIMÕES, M.
J. (Ed.). O Fantástico. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, 2007. p. 7.
7
LOVECRAFT, Howard Phillips. O terror sobrenatural na literatura. Lisboa: Veja, 2006. p. 25.
8
TODOROV, Tzvetan. Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuil, 2004.
9
CAILLOIS, Roger. Imágenes, imágenes. Buenos Aires: Sudamericana, 1970. p. 11.
10
Idem. Ibidem. p. 11.
11
LOVECRAFT. Op. cit., p. 17.
80 COMMUNIO • Padre José Tolentino Mendonça

se, a partir daqui, absolutamente inevitável. O que emerge estala a neutralidade em que a
história decorria, criando uma espécie de intervalo vazio, que Louis Marin (1931-1992)
define assim: “lugar potencial da aparição” da “figura” inclassificável ou do “sublime”12.
Na verdade, traços intrigantes, elementos insólitos, coincidências estranhas podemos
encontrar também em outros gêneros, mas no Fantástico eles constituem um verdadeiro
“obstáculo” que a razão e a ordem natural não conseguem explicar.

IV - OS ESCRITORES DA BÍBLIA TERÃO LIDO O PADRE BROWN?


O Padre Brown é um improvável, mas sagaz detective na criação magistral de G.
K. Chesterton (1874-1936), que o popularizou nas séries de novelas The Innocence of
Father Brown [A inocência do padre Brown] de 1911, The Wisdom of Father Brown [A
sabedoria do padre Brown] de 1914, The Incredulity of Father Brown [A incredulidade do
padre Brown] de 1926, The Secret of Father Brown [O segredo do padre Brown] de 1927
e The Scandal of Father Brown [O escândalo do padre Brown] de 1935. Figura pequena
e atarracada, atrás de uns óculos defensivos, mas munido de um humor desarmante, ele
atravessa enredos que são na aparência Fantásticos: o sobrenatural irrompe aí das formas
mais diversas, provocando reviravoltas espetaculares e inauditas. Ora, a missão do Padre
Brown é precisamente dissolver o “efeito do Fantástico”, encontrando uma explicação
racional para o que havia sido, demasiado rapidamente, declarado inexplicável.
Aos olhos dos outros personagens o Padre detetive não pode ser senão controverso:
mais descrente que os descrentes, irônico e minucioso, a agarrar-se convictamente à
racionalidade, quando tudo nos deveria deslocar para o âmbito das forças espirituais. No
fundo, ele combate para purificar o modo como o cristianismo e a religião são olhados,
num tempo que diz não acreditar em nada, mas que na verdade acredita em demasiadas
coisas e projeta-as caoticamente na cultura.
Não vos censuro – prosseguiu o Padre Brown – por terem tirado conclusões de
natureza sobrenatural em relação a este caso. A razão disso é, na verdade, muito
simples. Todos vocês afirmaram que eram materialistas convictos; quando, na
verdade, se encontravam à beira de acreditar fosse no que fosse. Hoje em dia, há
milhares de pessoas assim; e essa é uma posição muito incomoda. Não se descansa
enquanto não se encontrou algo em que acreditar; é por isso que o Sr. Vandam
esquadrinhou todas as religiões, o Sr. Alboin cita as Sagradas Escrituras para apoiar
a sua seita de exercícios respiratórios e o Sr. Fenner se queixa do próprio Deus que
renega. É aí que vocês quebram; então é fácil crer no sobrenatural. Não é natural
acreditar apenas em coisas naturais. Mas muito embora bastasse apenas um pequeno
toque para vocês aceitarem estas coisas como sendo sobrenaturais, elas eram pura e
simplesmente naturais. E não só isso, eram quase sobrenaturalmente simples. Penso
até que nunca houve uma história tão simples como esta13.
12
MARIN, Louis. Du Fantastique dans l’Art Contemporain: Sur quelques aspects théoriques. in:
ALZIRA SEIXO, M. (Ed.). O Fantástico na Arte Contemporânea. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1992. pp. 106-107.
13
CHESTERTON, Gilbert Keith. A incredulidade do Padre Brown. Lisboa: Europa-América 1988. p. 82.
A BÍBLIA E O FANTÁSTICO 81

Os autores bíblicos terão lido as novelas do Padre Brown? É que a Bíblia


recorre amplamente, e com uma perícia assombrosa, a algumas características do
Fantástico, ao mesmo tempo que investe num movimento teológico contrário:
desvelando, traduzindo, aproximando. A Revelação deliberadamente vem
transcrita na linguagem e nos dinamismos da história.
Os elementos fantásticos estão presentes, mas tornam-se progressivamente
subsidiários da estratégia principal. Um exemplo, entre mil, é o do capítulo
terceiro do Êxodo. Temos o inexplicável espetáculo da sarça perante o qual Moisés
hesita, bem como o seu medo. Mas esses como que se “desfazem”, perante a
Revelação de Deus que investe Moisés de uma Missão.
Moisés estava a apascentar o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madian.
Conduziu o rebanho para além do deserto, e chegou à montanha de Deus, ao
Horeb. O anjo do Senhor apareceu-lhe numa chama de fogo, no meio da sarça.
Ele olhou e viu, e eis que a sarça ardia no fogo mas não era devorada. Moisés
disse: “Vou adentrar-me para ver esta grande visão: por que razão não se consome
a sarça?” O Senhor viu que ele se adentrava para ver; e Deus chamou-o do meio
da sarça: “Moisés! Moisés!” Ele disse: “Eis-me aqui!” Ele disse: “Não te aproximes
daqui; tira as tuas sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é uma terra
santa”. E continuou: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de
Isaac e o Deus de Jacob”. Moisés escondeu o seu rosto, porque tinha medo de
olhar para Deus. O Senhor disse: “Eu bem vi a opressão do meu povo que está no
Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus
sofrimentos. Desci a fim de o libertar da mão dos egípcios e de o fazer subir desta
terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel, terra do
cananeu, do hitita, do amorreu, do perizeu, do heveu e do jebuseu. E agora, eis
que o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e vi também a tirania que os
egípcios exercem sobre eles. E agora, vai; Eu te envio ao faraó, e faz sair do Egito
o meu povo, os filhos de Israel” (Ex 3,1-10).

Outro exemplo é o que podemos colher no livro de Tobias. Há o terror


do sobrenatural na figura desse monstro aquático que tenta, improvisamente,
ferir Tobias; tal como os demônios, inexplicavelmente, têm ferido, um a um,
os maridos daquela que será a sua futura mulher. A figura do anjo serve de
desembaraçador destes intrincados enredos, que – repare-se – não se procura
explicar, mas ultrapassar a partir de outra lógica: a da confiança em Deus e na
sabedoria de certas práticas curativas.
O jovem partiu juntamente com o anjo, e também o cão os seguiu. Caminharam
juntos até que veio a primeira noite. Então, pararam para passar a noite junto do
rio Tigre. O jovem desceu até ao rio, a fim de lavar os pés, e eis que um grande
peixe emergiu da água, tentando devorar-lhe o pé. Tobias deu um grande grito.
Disse-lhe então o anjo: “Agarra o peixe e domina-o!” O jovem apoderou-se do
peixe e levou-o para terra. Continuou o anjo: “Abre-o, tira-lhe o fel, o coração e
o fígado e guarda-os contigo. As vísceras, porém, deita-as fora. O fel, o coração e
o fígado desse peixe são um ótimo remédio”. O jovem abriu o peixe, tirou-lhe o
82 COMMUNIO • Padre José Tolentino Mendonça

fel, o coração e o fígado. Assou uma parte do peixe e comeu-a. O resto, guardou-o
depois de o ter salgado.
Em seguida, continuaram juntos a viagem até às proximidades da Média. Então,
Tobias perguntou ao anjo: “Irmão Azarias, que poder medicinal há no coração,
no fígado e no fel do peixe?” Ele respondeu: “O coração e o fígado queimados
sobre as brasas afugentarão com o seu fumo toda a espécie de maus espíritos ou
demônios, de um homem ou mulher. Desaparecerão definitivamente, sem deixar
nenhum rasto. Quanto ao fel, serve para ungir quem sofra de cataratas, pois com
ele ficará curado” (Tb 6,1-9).

O Apocalipse recorre evidentemente a um imaginário fantástico. A gramática


simbólica com que o sobrenatural se (re)presenta é tão cerrada, que bem se pode
descrever como o estalar de “trovões, estrondos, relâmpagos e terremoto” (Ap 8,5). O seu
impacto é demolidor como se vê nas reações: “cair como morto” (Ap 1,17), dizer “às
montanhas e aos rochedos: Caí sobre nós e escondei-nos” (Ap 6,16) ou “prostrar-se, com a
face por terra” (Ap 7,11).
A estrutura do Apocalipse, porém, vive de quadros. E os quadros de terror
sobrenatural não são absolutos, mas provisórios. Ao contrário do que acontece no
gênero fantástico, fornece-se a chave do que anteriormente se viu, transformando
a convulsão numa nova ordem de esperança. Nem os personagens, nem o leitor
são deixados entregues ao medo. O paradigma é aquele cristológico: “Estive morto,
mas agora vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Abismo”.
Voltei-me para ver de quem era a voz que me falava. E, ao voltar-me, vi sete
candelabros de ouro; no meio dos candelabros, vi alguém com aparência
humana; estava vestido de uma túnica comprida até aos pés e cingido
com um cinto de ouro em torno do peito; a sua cabeça e os seus cabelos
eram brancos, como a brancura da lã e da neve; os seus olhos eram como
uma chama de fogo; os seus pés assemelhavam-se ao bronze incandescente
numa forja, e a sua voz era como o rumor de águas caudalosas; Ele tinha
na mão direita sete estrelas e da sua boca saía uma aguda espada de dois
gumes; o seu rosto era como o Sol resplandecente com toda a sua força.
Ao vê-lo, caí como morto, a seus pés. Mas Ele colocou a mão direita sobre
mim, dizendo: “Não tenhas medo! Eu sou o Primeiro e o Último; aquele
que vive. Estive morto; mas, como vês, estou vivo pelos séculos dos séculos
e tenho as chaves da Morte e do Abismo! Escreve, pois, as coisas que vês,
as que estão a acontecer e as que vão acontecer, depois destas. E este é o
simbolismo das sete estrelas que viste na minha mão direita e dos sete
candelabros de ouro: as sete estrelas são os anjos das sete igrejas; e os sete
candelabros são as sete igrejas” (Ap 1,12-20).

O Fantástico é utilizado na Bíblia? Sim e abundantemente. Mas como


gênero modificado em vista da coerência própria à Revelação.
A BÍBLIA E O FANTÁSTICO 83

Padre José Tolentino Mendonça é um teólogo, escritor de peças de teatro e poeta


português. Nascido na Madeira em 1965, deu início ao estudo de Teologia em 1982.
Uma vez ordenado padre, em 28 de Julho de 1990, deslocou-se para a Roma, onde
terminou a licenciatura em Sagrada Escritura pelo Instituto Bíblico. Regressado a
Portugal, onde pertence ao clero da Diocese do Funchal, lecionou “Cristianismo e
Cultura” e “Hebraico” na Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, desempenhando
igualmente as funções de capelão na mesma universidade. Recebeu, em 2004, o
doutorado em Teologia Bíblica pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica
Portuguesa, em Lisboa. Atualmente é professor de Novo Testamento na Faculdade
de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, diretor do Secretariado Nacional
da Pastoral da Cultura da Conferência Episcopal Portuguesa e diretor da revista de
teologia Didaskalia. É autor do livro A construção de Jesus: Uma leitura narrativa
de Lc 7,36-50 (Assírio & Alvim, 2004).

Esplendor da Gloria do Divino Espirito Santo (Século XVIII)


Madeira dourada e policromada de Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), o Mestre Valentim
Procedente Igreja do Convento da Ajuda, Rio de Janeiro, RJ
Museu Arquidiocesano de Arte Sacra do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ
Sereia (1728)
Escultura em pedra de Manuel Ferreira Jácome (1677-1737)
Portada da Igreja de São Pedro dos Clérigos, Recife, PE
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 85
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 85-101

VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ:


A REFORMA DA CAUSALIDADE E A
ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO*
David C. Schindler

E m um ensaio sobre a perene importância de Dante Alighieri (1265-1321),


o poeta Paul Claudel (1868-1955) escreveu sobre a época que acabara de
passar: “A crise que alcançou seu ápice no século XIX” [...] “foi o drama de uma
imaginação desnutrida”1. Pode nos parecer estranha essa preocupação com o
que não parece ser nada mais que uma faculdade da criatividade estética em
relação a uma época em que o homem estava sendo radicalmente redefinido,
abstraído de qualquer destino sobrenatural ou de um horizonte de significado
transcendental, enquanto uma industrialização anti-humana crescia com o
enfraquecimento de uma fé cristã orgânica e cultural, deixando o ocidente
vulnerável a duas guerras mundiais. Mas o que está em jogo em relação à
imaginação é, na verdade, muito mais do que mera faculdade estética, como
convencionalmente se supõe. A imaginação, se não é o centro do ser humano,
é ao menos aquilo sem o qual não pode haver centro, pois ela marca o ponto de
convergência onde a alma e o corpo se encontram; é o lugar onde a fé no Deus
encarnado se torna, ela mesma, encarnada e, portanto, uma fé verdadeira; é
nela, lembra G. W. F. Hegel (1770-1831), onde a razão se torna concreta,
e a vida corporal dos sentidos se erguem para encontrar o espírito. Ela fica
num lugar mais profundo do que a esfera dos nossos pensamentos discretos e
escolhas, porque ela é o espaço organizado dentro do qual realmente pensamos
e escolhemos. Muito mais do que mera faculdade, a imaginação cristã é um
modo de vida, e é por isto que podemos dizer que ela representa o ponto
de interseção entre a cristandade e o mundo. Assim sendo, uma imaginação
desnutrida realmente significa uma crise.
*
Artigo publicado originalmente em Communio: International Catholic Review, Volume XXXIII,
Number 4 (Winter 2006): 521-539. Texto traduzido, do original em inglês para o português, por
Lucas Mafaldo.
1
CLAUDEL, Paul. “Introduction à un poème sur Dante”. In: Positions et propositions. Paris:
Gallimard, 1928. pp. 174-175. Para uma tradução para o inglês, ver: CLAUDEL, Paul. “Religion
and the Artist: Introduction to a Poem on Dante”. In: Communio: International Catholic Review,
Volume XXII, Number 2 (Summer 1995): 357-367.
86 COMMUNIO • David C. Schindler

Obviamente, não há dúvida de que a multiplicação quase maníaca de


imagens, causada pela explosão tecnológica do século XX, não fez nada para
alimentar a imaginação, mas, ao contrário, a alimentou com comidas indigestas.
Mas não é suficiente lançarmos um chamado para que se revigore a imaginação
ou que se cristianize a mídia. Ao invés disso, precisamos lidar com as raízes
do problema. Acredito que uma das fontes da desnutrição da imaginação
reside no empobrecimento geral da noção de verdade, por meio da qual toda
nossa experiência humana é mediada e, portanto, formada. No atual contexto,
evidentemente, não é possível expor um argumento satisfatório quanto à
história da noção de verdade; irei, portanto, oferecer em seu lugar uma reflexão
filosófica sobre um aspecto do problema, embora ele, inicialmente, pareça ser
tangencial à questão da saúde da imaginação. Pretendo apresentar uma reflexão
sobre a transformação da noção de causalidade no século XVII e sobre o que
essa transformação implica para o significado da experiência sensorial que,
evidentemente, corresponde ao fundamento da imaginação. Minha tese é que
uma concepção mecanicista do mundo natural esvaziou a experiência sensorial
de seu significado e, portanto, que o esforço de cultivar uma imaginação cristã
será em vão se ele não for acompanhado de uma redescoberta da significância
ontológica do bem e do belo e, portanto, de uma crítica da visão popular de
mundo herdada dos físicos clássicos. Essa é uma tarefa que poderíamos chamar
de “reimaginação do mundo natural”.

II
A cada semestre letivo, em cursos de Introdução à Filosofia por todo
o mundo, René Descartes (1596-1650) é apresentado à imaginação dos
jovens e impressionáveis como o proponente mais sistematicamente rigoroso
do “racionalismo”, a filosofia que Platão (428-347 a.C.) supostamente teria
criado. De acordo com o racionalismo, a experiência sensorial não possui as
qualidades necessárias para fornecer um objeto confiável à mente: ela não é nem
necessária nem universal, como os objetos racionais precisam ser. A inferência
que geralmente se faz disso é que os sentidos são enganadores e, portanto,
apresentam, na melhor das hipóteses, degraus em direção à verdadeira vida
da razão e, na pior, obstáculos que ativamente seduzem a mente, afastando-a
de tal vida. Quando esses cursos de introdução trazem um pouco de história
intelectual, eles ensinam que o desprezo pelo corpo, implícito no racionalismo
platônico e adotado por Plotino (205-270) e seus seguidores, fizeram do
neoplatonismo a filosofia mais apropriada para os primeiros pensadores cristãos
que, como Friedrich Nietzsche (1844-1900) depois escarneceria2, adicionariam
2
Falando dos filósofos antigos, Nietzsche escreveu: “Eles acreditavam, até desesperadamente, no que
deixava de ser. Mas como não podiam jamais agarrá-lo, buscavam motivos que explicassem porque
ele se afastava deles. ‘Deve haver meras aparências, deve haver algum tipo de engano que nos impede
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 87
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO

à motivação primariamente epistemológica de Platão motivos mais diretamente


morais para rejeitar o mundo sensível.
Existem, de fato, textos em abundância de Platão, Plotino e dos padres da
Igreja que parecem confirmar essa interpretação sem sombra de dúvida, textos que
colocariam os pensadores cristãos contemporâneos numa situação complicada.
Um exame mais atento desses textos, no entanto, e uma análise feita à luz da
visão geral de mundo que eles expressam, revelaria que a antipatia pelos sentidos
do mundo antigo é radicalmente diferente da antipatia do mundo moderno,
e apenas a anterior é compatível com uma aceitação amorosa do mundo dos
sentidos como algo maravilhosamente repleto de significado. O genuíno desprezo
pelos sentidos necessita que estes sejam considerados totalmente desprovidos de
qualquer importância e isso, como iremos ver, se segue das mudanças no nosso
modo de entender a natureza que ocorreram durante o que, hoje, é chamado de
“revolução científica”, da qual Descartes foi tanto participante como herdeiro
imediato. Para vermos isso, compararemos as respostas de Platão e Galileu Galilei
(1564-1642) para a questão: Qual é a causa das nossas experiências sensoriais? O
primeiro aspecto dessa questão com o qual devemos lidar é a noção sobre a qual
ela se fundamenta: O que, antes de tudo, significa ser uma causa?
A palavra grega para causa (aitía) é muito ampla; isto é, ela não tem,
inicialmente, um significado técnico unívoco. Usada em contexto filosófico, ela
significava qualquer coisa que fosse responsável por algo ser como ele é, ou seja,
o como e o porquê de uma coisa3. Num de seus diálogos tardios, o Timeu, Platão
começa a narrativa da causa do cosmo fazendo duas distinções fundamentais.
Primeiro, distingue entre aquilo que é e nunca está sendo (o ser / tò òn), e aquilo
que está sendo e nunca é (sendo / tò gignòmenon)4. “Tudo que está sendo”, afirma,
“precisa necessariamente seguir-se de alguma causa; pois sem causa, é impossível que
algo chegue a estar sendo”5. Entre as coisas que passam a existir por meio de uma
causa, Platão em seguida distingue entre aquelas que são belas e aquelas que não o
são. As primeiras são modeladas a partir daquilo que é, e as últimas a partir daquilo
que está sendo. Se perguntarmos, então, onde entre essas distinções colocaríamos
o cosmo em que vivemos como um todo – isto é, o cosmo que se manifesta aos
sentidos – teríamos de dizer que “sendo visível e tangível e possuindo um corpo”6,
é algo que está sendo e, por ser evidentemente belo e bem-ordenado, foi algo

de perceber o que deixa de ser: onde está o enganador?’ ‘Nós o encontramos’, eles gritavam, extasiados,
‘está nos sentidos! Estes sentidos, que são tão imorais de outros modos, também nos enganam em relação
ao mundo verdadeiro’” [NIETZSCHE, Friedrich. Twilight of the Idols. In: The Portable Nietzsche.
(Translated by Walter Kaufmann). New York: Penguin Books, 1976. p. 480].
3
SACHS, Joe. Aristotle’s Physics: A Guided Study. New Brunswick: Rutgers University Press, 1995.
p. 245.
4
PLATÃO. Timeu. 27d-28a.
5
Idem. Ibidem., 28a.
6
Idem. Ibidem., 28b.
88 COMMUNIO • David C. Schindler

modelado a partir do que é eterno e perfeito. Sugerir outra coisa é “impiedoso”, diz
Platão: “É evidente para todos que o olhar [do criador] estava voltado para o eterno;
pois o cosmo é mais belo do que tudo que veio a existir, e é a melhor das causas”7.
Por mais direta que essa passagem pareça ser, ela está repleta de significados, e
seria bom se os desdobrássemos. Como vemos aqui, Platão afirma que a causalidade
sempre ocorre de acordo com um modelo, o que é outro modo de dizer que aquilo
que está sendo não é simplesmente uma entidade que se basta a si mesma, mas uma
revelação, ou manifestação, de outra coisa. Dizer que o agente causal sempre cria de
acordo com um modelo significa que a agência é a comunicação de uma forma. A
causalidade não é, em outras palavras, simplesmente trazer algo ou colocar algo em
movimento; pois isso seria um evento ou atividade essencialmente sem forma, que pode
ou não subseqüentemente dar lugar a algo com forma e, portanto, a algo inteligível.
Se a causa é aquilo que é responsável por uma coisa, é a forma que para Platão é
a causa mais fundamental, sendo aquilo que é mais fundamentalmente responsável
pelo modo como as coisas são. Esse simples insight é magnífico: leva a um modo
particular de caracterizar absolutamente tudo que existe: “Sendo as coisas desse modo”,
escreve Platão, “decorre, por uma necessidade inquestionável, este mundo ser a imagem de
algo”8. Dizer que a representação é a comunicação de uma forma significa que todas
as coisas que venham a existir possuem o caráter de imagem – a palavra grega é eikón,
donde vem o termo inglês “icon” (em português, ícone) – ou, em outras palavras, elas
refletem um significado do qual não são, em si mesmas, a fonte. É crucial perceber
que não há dualismo algum aqui, por assim dizer, entre ser e significância, como se
as coisas fossem um tipo de realidade opaca que, subseqüentemente, indicasse um
conteúdo inteligível. Defender tal bifurcação seria negar o significado de causa como
Platão claramente o compreendia, isto é, como a comunicação de uma forma no ato
de fazer uma coisa passar a existir. Poderíamos dizer que, para Platão, a ontologia é
semiótica. Ser uma imagem é o que torna algo real.
Mas se a forma é responsável pelo modo como as coisas são, isso ainda não
explica o fato de que, antes de mais nada, existe um mundo sensível. É significativo que
Platão distinga no Timeu entre o que ele chama os modelos (paradeígmata) e a agência
que os “reproduz”, por assim dizer, na natureza – o famoso demiurgo ou artífice.
Perguntar qual é a causa última do mundo é perguntar porque a representação, no
fim das contas, o criou. A resposta de Platão ao que Martin Heidegger (1889-1976) se
refere como a mais radical das questões para o pensamento – “Por que há algo, e não
o nada?” – é, mais uma vez, ao mesmo tempo simples e infinitamente rica:
Anunciemos o motivo. Ele [o criador e pai do universo] era bom, e alguém que
é bom jamais poderia ter ciúme de algo. E, portanto, estando livre do ciúme,
queria que tudo se tornasse como ele mesmo, tanto quanto fosse possível9.

7
Idem. Ibidem., 29a.
8
Idem. Ibidem., 29b.
9
Idem. Ibidem., 29e.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 89
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO

Essa afirmação de Platão se coaduna com sua famosa alegação n’A


República de que a idéia do bem é a causa última de todo ser10. Temos
aqui a primeira expressão do que seria o axioma básico do neoplatonismo,
o qual seria adotado pelos padres da Igreja e pelos teólogos medievais:
é da própria natureza do bem ser auto-difusivo11. De fato, é justamente
esse caráter que requer que vejamos a bondade como a causa última: de
acordo com um axioma antigo, o que é perfeito não pode vir do que é
imperfeito, mas apenas o contrário; o que significa que a causa última de
tudo não pode ser imperfeita sob nenhum aspecto. Mas aquilo que é a
perfeição em si mesma não pode agir de modo a se tornar mais perfeita, o
que significa que sua causa precisa ser conseqüência de uma perfeição que
sempre possuíra, em vez de um meio para alcançar essa perfeição.
Além do mais, pelo mesmo motivo, aquilo que é resultado do bem
deve necessariamente refletir sua causa, posto que uma causalidade perfeita
não pode ser nada a não ser a comunicação da própria perfeição, isto é,
a comunicação do próprio ser para outro12. Nesse sentido, a forma que é
comunicada pela representação é necessariamente um reflexo do bem. E,
finalmente, visto que essa forma é o que fundamentalmente determina
aquilo que a coisa é, e sendo ela mesma uma imitação da causa primeira,
a dádiva do ser de cada coisa é, ao mesmo tempo, a dádiva do propósito
último de cada coisa; a saber, ser aquilo que se é por imitar, ao seu modo
particular, a fonte última de tudo que é, ou seja, buscar o bem. Em outras
palavras, o que, por fim, seria diferenciado por Aristóteles (384-322 a.C.)
em três causas, aparece em Platão na unidade: o quê das coisas é inseparável
do bem, do propósito e mesmo da concretude. Exatamente por essa razão,
o bem representa o paradigma da causalidade – o bem na origem do
cosmo, como vimos, é a “melhor de todas as causas” – e, desse modo, todas
as causas no cosmo são, enquanto causas, um reflexo do bem. Nada é tão
causal, para Platão, quanto o bem e o belo que toma por idênticos13.
10
PLATÃO. A República. VI, 509b.
11
DIONYSIUS. The Divine Names. IV.1; TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Theológica.
I.5.4.
12
Segundo Eric Perl, uma leitura atenta do Timeu revela que as formas por meio das quais
o Demiurgo cria o mundo não são nada mais que o próprio Demiurgo, ou seja, o conteúdo
da sua mente, que é idêntico a ele mesmo. Essa, demonstra o autor, era a interpretação
padrão de Platão na Antigüidade. Ver: PERL, Eric. “The Demiurge and the Forms: A
Return to the Ancient Interpretation of Plato’s Timaeus”. In: Ancient Philosophy, 18 (1998):
81-92.
13
Uma palavra deve ser dita aqui sobre a objeção óbvia de que pensar a respeito do pensador
do universo como “a melhor de todas as causas” é um exemplo padrão de ontoteologia.
O que Platão quer dizer por “melhor” é a forma, ou o ideal, que não pode ser, em si
mesma, contada entre as coisas nas quais ele está presente (ou não poderia estar presente
nelas, apenas sobreposta), mas, como está presente em cada uma, é transcendente a todas.
Desse modo, nesse caso seria mais apropriado chamar o bem de a “causalidade de todas as
90 COMMUNIO • David C. Schindler

O que, então, essa visão da causalidade sugere a respeito da condição


da experiência sensorial? No Fédon, Sócrates (470-399 a.C.) narra a surpresa
ao se deparar com os primeiros filósofos, que tentavam explicar o modo como
as coisas são, fazendo uso do que hoje chamaríamos de “causas mecanicistas”,
ou seja, por meio do movimento dos corpos materiais agindo uns sobre os
outros extrinsecamente. Embora não negue a realidade dessa atividade, ele
explica que o termo “causa” “não se refere a ela”14. No Timeu, ele se refere ao
que chamaríamos de causas mecanicistas como xunaítia, ou seja, como aquilo
que acompanha (xun-) a causa, embora afirme ainda que a maioria das pessoas
as confundem com as causas de fato. No contexto do Fédon, Sócrates insiste
que existe uma distinção entre o que é uma causa na realidade (tô ónti) e
aquilo sem o qual a verdadeira causa não poderia ser uma causa. A interação
mecânica dos corpos é, evidentemente, necessária para que as coisas sejam
como são, porém ela não é responsável por elas, não é o que as explica ou o
que revela o que elas são15. O que falta à explicação mecanicista (ou, melhor, o
que impede que ela seja, de fato, uma explicação), como Sócrates afirmará, é o
bem que “mantém [as coisas] juntas”16, porque o bem é, de fato, a causalidade
de todas as causas. Como Dionísio afirmaria vários séculos depois, todo tipo
de causa, de qualquer coisa que exista por causa de algo, por meio de algo, ou
em algo, é o belo e o bem17.
É nesse ponto que Sócrates oferece sua contraproposta para explicar a operação
da causa: o que faz algo belo, por exemplo, não é algo físico como uma cor, forma ou
ordenação das partes – embora essas coisas sejam evidentemente condições necessárias
para a beleza – mas é a beleza em si mesma que é sua causa. Mais especificamente, é
a presença (parousía) ou a comunhão (koinonía) da beleza “em si mesma” nas coisas18
que as tornam belas. A realidade sensível da beleza, em outras palavras, é causada pela
forma inteligível da beleza. Ora, é difícil ouvirmos tal explicação sem imaginar uma
“coisa” chamada beleza agindo sobre outra coisa – isto é, exercendo uma força em algo,
de modo a torná-lo belo –, mas isso é, precisamente, o tipo de atividade que, como
Sócrates acabou de afirmar, não chega a merecer o nome de “causa” porque, de fato,
não é o que é responsável pela coisa. Como, então, deveríamos entender o tipo de
causalidade que Sócrates está propondo em seu lugar?

causas”. Para uma interpretação nessa linha, ver: McGINLEY, John. “The Doctrine of the Good
in the Philebus”. Apeiron, 11 (1977): 27-57. esp. pp. 34-35. Segundo sua explicação, para Platão é
precisamente o bem que faz de uma causa, uma causa.
14
PLATÃO. Fédon. 99b.
15
No Timeu, Platão se refere à necessidade (mecânica) que deve ser levada em conta na explicação
do cosmos, mas, precisamente em oposição à inteligência, ela não é uma causa no sentido estrito do
termo. Ver: PLATÃO. Timeu. 46e, 47e-48a.
16
PLATÃO. Fédon. 99c.
17
DIONYSIUS. The Divine Names. IV.10.
18
PLATÃO. Fédon. 100d.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 91
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO

Dizer que a presença da beleza é a causa das coisas belas enquanto belas
é simplesmente dizer que a beleza sensível que percebemos nas coisas é a forma
inteligível da beleza manifesta no tempo e espaço. Em outras palavras, é dizer que
a experiência sensorial é a expressão de um significado, que ela tem um conteúdo
inteligível que, enquanto algo inteligível, não pode ser simplesmente identificado com
a particularidade de sua manifestação. Se relembrarmos a posição defendida no Timeu
– ou seja, a de que tudo que vem a ser é o resultado da comunicação de uma forma
–, veremos que o que Sócrates diz sobre a beleza aqui deve ser estendido para todas
as coisas no cosmo; os objetos físicos, visto que são inteligíveis, são a expressão de
um significado, de conteúdo inteligível num modo espacial e temporal. Podemos ir
além: não existe, de fato, conteúdo algum em nossa experiência sensível que não seja
a expressão de um significado inteligível. A palavra exigida por essa observação é a
palavra que Platão usa desde o início, uma palavra que ficaria para sempre associada
à filosofia de Platão: eikón, imagem. O mundo sensível, em sua inteireza, é imagem,
o que quer dizer que o mundo sensível é a expressão de um significado, isto é, de
um reflexo do bem. Na imagem da linha dividida d’A República19 de Platão, vemos
esse argumento ser exposto com toda a clareza desejável: aqui, Platão divide uma
linha em segmentos desiguais, os dois de cima representando diferentes modos de
inteligibilidade, e os dois de baixo representando diferentes modos de percepção
sensível; mas é uma linha contínua, de cima a baixo, o que quer dizer que a idéia e a
realidade sensível não são duas coisas diferentes, mas um único significado apreendido
ora intelectualmente, ora pelos sentidos corporais20. O ponto central de tudo isso é
que não há nada no que chamaríamos de mundo “físico” que não seja derivado de
uma forma, exceto aquilo que é, em si mesmo, forma – e isso é simplesmente um
modo de dizer que o mundo físico não é nada senão o significado tornado tangível.
O que, então, explica essa notória descrição da filosofia de Platão como um
meio para se libertar dos sentidos enganadores que aprisionam a alma no corpo?
Os amantes do conhecimento sabem que quando a filosofia toma posse de
suas almas, ela fica aprisionada no corpo, e se agarra a ele, sendo forçada a
examinar as outras coisas por meio dele, como se ele fosse uma cela, e não por
si mesma, misturando-se com todo tipo de ignorância. A filosofia observa que
a pior característica desse aprisionamento é devido aos desejos, pois é o próprio
prisioneiro que contribui mais do que ninguém para seu próprio aprisionamento.
Como sempre digo, os amantes do conhecimento sabem que a filosofia toma
posse de suas almas, quando estão nesse estado, e então gentilmente os encoraja
e tenta libertá-los, mostrando-lhes que a investigação pelos olhos está repleta
de enganos, assim como pelos ouvidos e pelos outros sentidos. A filosofia então
convence a alma a se abstrair dos sentidos à medida que não estiver compelida a
usá-los e recomenda que a alma se recolha sobre si mesma, que confie apenas em si
própria e em qualquer realidade que, existindo por si mesma, a própria alma possa
19
PLATÃO. A República. VI, 509d-511e.
20
Ver o artigo clássico de Henry Jackson (1839-1921): JACKSON, Henry. “On Plato’s Republic VI
509d sqq.”. In: The Journal of Philology, 10 (1882): 132-150.
92 COMMUNIO • David C. Schindler

compreender; não considerando como verdadeiro o que quer que examine por
outros meios, pois essas coisas são diferentes em circunstâncias diferentes, sendo
sensíveis e visíveis, enquanto o que a própria alma vê é inteligível e invisível. A
alma do verdadeiro filósofo considera que essa libertação não deve ser contrariada
e, portanto, se afasta dos prazeres e desejos e dores o quanto for possível [...]
porque todo prazer e toda dor traz, por assim dizer, mais um prego para firmar a
alma no corpo, soldando-os juntos. Eles tornam a alma corporal, de modo que ela
passa a acreditar que a verdade é aquilo que o corpo diz21.

Mas apesar de toda essa conversa sobre a beleza do cosmo, não seria Platão
apesar de tudo, no fundo, um dualista que relega o mundo material a uma
irrealidade fantasmagórica? Não faz ele da imaginação, eikasía, um poder trivial
da alma que precisaria ser transcendido em direção à pureza do exclusivamente
racional22? A interpretação que acabamos de expor, que apresenta a significância
da experiência sensorial e a suprema beleza do mundo físico, é não apenas capaz
de ser harmonizada com as passagens que expressam alguma hostilidade em
relação aos sentidos como, de fato, é capaz de explicar tais passagens.
A passagem do Fédon, que é um dos textos mais claramente “anti-
corporais” no corpus platônico, apresenta dois argumentos que são especialmente
significativos, dada a discussão até agora. Em primeiro lugar, ele não diz que o
corpo aprisiona a alma, mas antes, que a alma aprisiona a si mesma no corpo23,
o que constitui a pior característica dessa predicação. Em segundo lugar, o que
caracteriza esse aprisionamento é a inversão pela qual o aspecto corporal da
experiência é tomado como sendo mais real do que a dimensão não corporal. Para
elaborar essa questão na linguagem que estamos utilizando, isto quer dizer que
estaria se dando prioridade à expressão, ao invés de priorizar ao que é expresso.
Mas essa inversão seria, de fato, o próprio golpe que eliminaria o caráter próprio
do corpo e dos sentidos. Em outras palavras, tomar o mundo natural dentro de
sua materialidade como algo positivo em si mesmo, separado da subordinação ao
significado e, portanto, da expressividade, é destruí-lo como imagem, tornando-o
mudo. Desse modo, ele se torna uma “coisa” morta. O mundo abre mão do
seu significado, e a alma fica emaranhada em meio aos puxões e empurrões
do prazer e da dor, assim como de inúmeras forças não-causais mecânicas e,
portanto, ininteligíveis. De fato, se o corpo já não é mais uma “expressão”, então
a alma não é mais aquilo que expressa a si mesmo. Desse modo, ela se torna
ela própria uma “coisa”, ao lado da coisa chamada “corpo” e, evidentemente,
21
PLATÃO. Fédon. 82d-83d. Para interpretações divergentes é interessante ler: PICKSTOCK,
Catherine. “The Soul in Plato”. In: BAKER, D. & MAXWELL, P. (Ed.). Explorations in
Contemporary Continental Philosophy of Religion. New York: Radopi, 2003. pp. 115-126; SMITH,
James K. A. Introducing Radical Orthodoxy: Mapping a Post secular Theology. Grand Rapids: Baker
Academic, 2004. pp. 201-204. A interpretação de James K. A. Smith representa exatamente o que
este artigo pretende criticar.
22
PLATÃO. A República. VII, 532a-534b.
23
PLATÃO. Fédon. 82e.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 93
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO

ela será necessariamente um tipo de coisa impotente, pois que tipo de força
corporal poderia a alma exercer em comparação com os corpos? É por causa
dessa ininteligibilidade que Platão descreve essa inversão como um estado de
ignorância – o fracasso em perceber o mundo como algo que já é significante no
próprio ser é ignorar o sentido mais adequado do termo – e isso também esclarece
porque isso não é algo que o corpo enquanto corpo possa impor à alma: acreditar
que ele pode já é presumir que o corpo é uma coisa em si mesmo contra a alma,
ou seja, é tomar o estado de ignorância como sendo o estado de superioridade
a partir do qual se pode ver a verdade das coisas. Para a alma que vê por meio
do conhecimento, ao contrário, o mundo não é nada mais que uma epifania.
A ironia agora deve estar patente: Devido à natureza paradoxal da
imagem, a inversão da relação corpo-alma é profundamente problemática, e
não (apenas) por banalizar a alma, mas porque, consequentemente, banaliza
também o corpo. Em outras palavras, a absolutização do físico fracassa em
atribuir ao físico o seu devido bem – isto é, isto o esvazia do bem que ele poderia
possuir apenas como o receptor e, portanto, apenas na estação subordinada
como mediador, como imagem. Mas isso significa que as condenações, por
vezes veementes, que encontramos na literatura clássica, tanto pagã quanto
cristã, à tendência do corpo em adquirir proeminência sobre a alma, podem,
de fato, ser uma afirmação e uma proteção entusiasmadas da significância do
corpo. A questão decisiva é se o corpo e a alma e, portanto, os sentidos e
o intelecto, são tomados por coisas opacas sobrepostas uma à outra, ou se
o corpo é apresentado como uma imagem e, portanto, como uma expressão
do espírito. Não se pode insistir na significância do corpo sem, ao mesmo
tempo, insistir na sua relação hierárquica com o espírito. Como vimos, por
trás dessa questão reside outra ainda mais fundamental que é a da causalidade
compreendida primordialmente em termos do bem e do belo. Como Hans
Urs von Balthasar (1905-1988) nos ensinou, uma das considerações mais
importantes ao avaliar uma época intelectual é o status que ela concede à
beleza. Aqui nós encontramos um caminho onde a Cristandade aprofunda
e fornece a fundamentação última para uma das mais elevadas verdades do
pensamento pagão. A beleza que Santo Agostinho (354-430) amaria era a
beleza que corria pelo cosmo, uma beleza que o convidava nas coisas sensíveis
para Deus24. Recordemos que foi precisamente o encontro de Santo Agostinho
com o pensamento neoplatônico – provavelmente Plotino e Porfírio (232-
304) na tradução de Gaius Marius Victorinus (300-382) – que o libertou
da condenação maniqueísta da carne25. Não é de forma alguma um acidente
que essa libertação tenha consistido na descoberta de que o espírito deve ser
compreendido em termos não-materiais e, portanto, não como uma coisa que
24
AGOSTINHO, Santo. Confissões. X.xxvii(38). Santo Agostinho se refere aqui a cada um dos
cinco sentidos ao narrar o chamado de Deus a ele por meio do mundo criado.
25
Idem. Ibidem., VII.
94 COMMUNIO • David C. Schindler

se opõe a outra chamada corpo. Apenas assim pode o corpo e, por conseqüência,
o mundo material, ser expressivo da maneira como Santo Agostinho o celebra
nas Confissões. O próprio Plotino, que talvez seja famoso por causa de suas
passagens que parecem menosprezar o corpo, escreveu o que é um dos mais
apaixonados ataques ao gnosticismo no mundo antigo26. Quem quer que odeie
o corpo está blasfemando, ele escreveu, pois está demonstrando desprezo pelo
seu Criador27. É de fato o bem e o belo que residem diretamente no centro do
que poderíamos chamar, exatamente por essa razão, do “cosmo” de Plotino.
Mas o pensador cristão que adotaria e adaptaria essa posição de modo mais
decisivo certamente seria Dionísio, o Areopagita, para quem Deus é causa,
ou seja, é o criador precisamente enquanto bem e belo28, e, portanto, cuja
via negativa incansável percorre o mundo do início ao fim, onde as próprias
pedras proclamam o Senhor precisamente por meio de sua pedridade29. Ao
lado de Santo Agostinho, Dionísio foi legado aos grandes pensadores da Idade
Média como a autoridade em tais assuntos; pensadores estes que podem ser
considerados como os mais decisivos formadores da imaginação cristã30.

III
A luz trazida por nossa discussão até esse ponto colocará em relevo as
diferenças entre o racionalismo cartesiano e o assim chamado racionalismo
ou espiritualismo dos neoplatônicos cristãos e gregos. Em primeiro lugar,
René Descartes explicitamente distingue entre corpo e espírito como duas
coisas: a res cogitans e a res extensa31. Nisso, ele está muito mais próximo
dos maniqueístas ou, de qualquer modo, dos filósofos materialistas da
antigüidade tardia do que das tradições platônicas e agostinianas32. Pode-se
argumentar que Descartes estaria utilizando o termo “res”, aqui, de forma
26
PLOTINO. As Enéadas. II.9.
27
Idem. Ibidem., II.9.16.
28
DIONYSIUS. The Divine Names. IV.7.
29
Sobre uma leitura “esteticamente teológica” de Dionísio que interprete o movimento negativo
dentro de uma manifestação positiva, ver: BALTHASAR, Hans Urs von. The Glory of the Lord: A
Theological Asthetics – Volume 2: Studies in Theological Styles: Clerical Styles. San Francisco: Ignatius
Press, 1984. pp. 178-184.
30
Sobre a significância fundamental do corporal na visão de mundo cristã, ver: HEALY, Nicholas
J. The Eschatology of Hans Urs von Balthasar: Being as Communion. Oxford: Oxford University
Press, 2005. Para um estudo da abordagem de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) sobre o corpo
na mesma linha, ver: McALEER, Graham. Ecstatic Morality and Sexual Politics: A Catholic and
Nontotalitarian Theory of the Body. New York: Fordham University Press, 2005.
31
DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. I.8; II.4. Ver também: DESCARTES, René.
Meditações. II e VI.
32
Ver um excelente argumento a esse respeito em: HANBY, Michael. Augustine and Modernity.
London: Routledge, 2003. Capítulo 5, pp. 134-177.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 95
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO

totalmente equívoca, já que a mente, claramente, não é para ele de forma


alguma uma “coisa” como a matéria estendida no espaço, precisamente
porque se torna difícil para ele explicar como eles iriam interagir dentro de
um ser humano vivo. Embora não fosse difícil mostrar como essa objeção
está equivocada, de todo modo, estaríamos fugindo da questão que estamos
tratando. O ponto crucial é o seguinte: o corpo, para Descartes, já não é
mais imagem, ou seja, já não é a expressão de um significado que, enquanto
significado, não pode ser corpo em sentido algum.
A relação de Descartes com o mundo dos sentidos, portanto, é radicalmente
diferente do que vimos em Platão. Para Platão, a verdade está presente (parousía)
na experiência sensorial, mesmo que não enquanto experiência sensorial, de modo
que transcender os sentidos significa vê-los como imagens, isto é, como “janelas” de
significado. O corpo está repleto de significado, relembramos, precisamente por não
ser ele mesmo significado. Para Descartes, ao contrário, tudo que for qualitativo
(isto é, a expressão de significado) em experiências sensoriais deve ser simplesmente
deixado de lado como subjetivo, por razões que investigaremos em breve. O que
resta é essa “coisa” não-descrita, desprovida de qualquer natureza e reduzida à sua
dimensionalidade mensurável, perceptível apenas para a mente33. É digno de nota,
em relação ao nosso tema geral, que despir os objetivos sensíveis de sua sensibilidade
coincide com a eliminação da imaginação como parte essencial da alma34. Apontamos
no início que a imaginação opera como um tipo de estágio intermediário, conectando
o corpo à alma e, exatamente por esse motivo, conectando o homem ao mundo.
Desprovido de imaginação, Descartes reduz o real a uma pura abstração matemática,
a qual nem ele nem ninguém irá jamais encontrar. Pode-se argumentar que, nas
Meditações, Descartes finalmente resolve o assombroso problema de saber se o mundo
existe ou não ao, simplesmente, abolir o mundo.
Ora, tais observações em relação a Descartes ecoam críticas que têm sido
feitas a sua filosofia por séculos. Mas gostaria de apontar que essa destruição da
imaginação em Descartes não é a introdução de um problema, mas, ao invés
disso, é, em si mesma, a expressão de uma transformação mais profunda que
teria um impacto muito mais amplo na civilização ocidental do que mesmo o
dualismo cartesiano. Tal transformação é a “Revolução Científica”. A “reforma”
da Filosofia realizada por Descartes, pela introdução de um método que permitiria
a qualquer um, indiferentemente, progredir em conhecimentos antes reservados
para poucos35 é, em si mesma, uma repetição da reforma que Galileu Galilei

33
DESCARTES. Meditações. II,31.
34
“Além do mais, encontro em mim mesmo faculdades especiais para certos modos de pensar, a saber, as
faculdades da imaginação e da sensação. Posso claramente compreender a mim mesmo em minha inteireza
sem essas faculdades” (DESCARTES. Meditações. VI. Grifos arcrescentados pelo autor do artigo).
35
Ver, por exemplo, a primeira parte do Discurso sobre o Método de René Descartes, que começa
assim: “O bom senso é a coisa melhor distribuída no mundo...”. Em Descartes, a inteligência é
homogeneizada do mesmo modo como o movimento é homogeneizado em Galileu.
96 COMMUNIO • David C. Schindler

promovera na Física por meio da introdução de uma técnica que permitia que os
experimentos tomassem o lugar da intuição intelectual:
Considerações profundas desse tipo pertencem a uma ciência mais elevada que a
nossa. Devemos nos satisfazer em pertencer àquela classe dos trabalhadores menos
dignos, que obtêm da pedreira o mármore com o qual, depois, o talentoso escultor
irá produzir aquelas obras-primas que estavam escondidas nessa matéria bruta e
sem forma36.

Nossa tese é a de que a apreciação de toda a significância dos sentidos


repousa na primazia do bem e do belo na ordem da causalidade e, portando,
do entendimento. Não há dúvida de que é verdade que as raízes da perda
dessa primazia são muito profundas –podemos apontar para a perda do poder
de explicação do bem na nova Filosofia Política de Nicolau Maquiavel (1469-
1527)37, para a ascensão do poder ao lugar da bondade na teologia nominalista
dos atributos divinos, ou mesmo para a apropriação medieval de um aristotelismo
que separava o bem da verdade por ter pouco espaço para a beleza38 – mas,
quaisquer que estas sejam, o trabalho de Galileu dá à reforma da causalidade uma
expressão decisiva com o poder de transformar a cultura.
O centro da questão está na reinterpretação feita por Galileu da causalidade
em termos exclusivamente dinâmicos. Segundo Galileu, “isto, e nada mais, deve em
sentido próprio ser chamado de causa: aquilo em cuja presença o efeito sempre se segue, e
na ausência do qual, o efeito desaparece”39. A diferença entre a causa como é definida
aqui e a causa como aparece na visão clássica é notável. A causa para Galileu não é
aquilo que é responsável pelo efeito, mas o que produz um efeito e, de fato, o que o
faz, exclusivamente, por meio do contato material e direito. Além do mais, a única
relação que une, de algum modo essencial, a causa ao efeito é a sucessão temporal. Seria
preciso passar mais de uma geração antes que fosse descoberto, com David Hume
(1711-1776), que tal relação não é, de fato, inteligível no sentido estrito do termo.
Mas o próprio Galileu já tinha reconhecido que essa compreensão da causalidade –
que certamente abriria uma porta para um novo aspecto de mundo material, a saber,
um mundo que, em sua previsibilidade, permitia um novo tipo de domínio nunca
antes possível – vinha ao preço da renúncia à compreensão sobre a essência das coisas.
Como ele mesmo diz, por exemplo, enquanto investigamos a “essência” de uma coisa:
36
Citado em: BURTT, Edwin Arthur. The Metaphysical Foundations of Modern Physical Science: A
Historical and Critical Essay. London: Routledge, 1932. pp. 94-95.
37
Pierre Manent faz uma descrição brilhante da mudança do status “causal” do bem que ocorre
em Maquivael em: MANENT, Pierre. An Intellectual History of Liberalism. Princeton: Princeton
University Press, 1995. pp. 10-19. Sobre a rejeição da significância da imaginação por Maquiavel
ver o capítulo 15 de O Príncipe.
38
Ver a discussão de Hans Urs von Balthasar sobre o sutil início da separação entre o bem e o
verdadeiro em: BALTHASAR, Hans Urs von. “Theology and Sanctity”. In: Explorations in Theology
– Volume 1: The Word Made Flesh. (Translated by A. V. Littledale e Alexander Dru). San Francisco:
Ignatius Press, 1989. pp. 181-186.
39
Citado em: BURTT. Op. cit., p. 92.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 97
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO

[Não é] como se realmente entendêssemos mais, sobre o princípio ou a virtude


do quer que seja, sobre o que move uma pedra para baixo, do que o que sabemos
sobre quem a move para cima, quando está separada de quem a move, ou sobre
quem faz a lua se mover, não conhecemos mais que o nome que assinalamos a todo
movimento descente com mais particularidade e propriedade, isto é, a gravidade40.

Um “efeito” não é uma imagem; ele não revela a natureza de sua causa. Para
produzir um efeito, a causa precisa ser da mesma ordem do efeito e, portanto,
precisa ser igualmente material. Causa e efeito caem na mesma linha horizontal,
o que significa, como vimos, que não pode haver nenhuma manifestação de
significado; a revelação necessariamente implica numa hierarquia, visto que
aquilo que revela precisa ser, em algum sentido fundamental, subordinado ao que
revela. Investigar os efeitos, portanto, não nos ensina nada sobre as causas, por
mais precisos e completos que sejam os nossos conhecimentos desses efeitos. Por
isso, como Galileu explica, a palavra “gravidade” é apenas um mero nome. Não
sabemos o quê ela é. Somos deixados, ao invés disso, com a tarefa de calcular a
quantidade de movimento que ela produz por meio da observação controlada de
seus efeitos.
Para Platão, o bem é o paradigma da causalidade porque representa a auto-
comunicação e, já que todas as outras causalidades refletem, em algum grau, tal
causalidade fundamental, o que principalmente caracteriza a causa, como vimos
anteriormente, é a comunicação da forma. Para Galileu, ao contrário, nós talvez
pudéssemos dizer que a força está sendo comunicada da causa para o efeito, tal
como se revela pelo movimento produzido pelo efeito. Mas, seguindo os sentidos
mais rigorosos dos termos, teríamos de negar que qualquer coisa estivesse sendo
comunicada. A comunicação sugere que algo seja partilhado e, portanto, que
haja algo que una os comunicantes. Segundo a visão mecanicista da causalidade
encontrada em Galileu, no entanto, nada está sendo “partilhado”: a única coisa
que une causa e efeito, como vimos, é a sucessão no tempo e espaço. O movimento
físico (mecanicisticamente interpretado) é essencialmente atomista. Uma coisa
pode colocar outra em movimento, mas a conexão entre elas é extrínseca; é da
natureza da força operar externamente – em oposição, por exemplo, à atração,
que opera simultaneamente externa e internamente. Não temos espaço aqui
para abordar esse tema, mas apontamos para o modo como a quantificação do
estudo do movimento resulta naturalmente dessa transformação da noção de
causa. Nesse aspecto, Martin Heidegger estava profundamente certo: o advento
da ciência empírica é o resultado de uma mudança mais fundamental no nosso
modo de entendimento; a praxis é sempre e sem exceção fundamentada numa
teoria, assim como é a expressão dela41. Enquanto para Aristóteles o movimento
40
Idem. Ibidem., p. 93.
41
Ver o trecho da palestra de Heidegger Die Frage nach dem Ding: HEIDEGGER, Martin. “Modern
Science, Metaphysics, and Mathematics”. In: Basic Works. (Translated by David Krell). New York:
Harper and Row, 1977. pp. 247-282.
98 COMMUNIO • David C. Schindler

é a atualização de um potencial e, nesse aspecto, ele representa o desdobramento


da natureza, de modo que tenhamos de descrevê-lo em primeira instância na
relação com essa natureza e, portanto, em termos qualitativos – por exemplo,
Aristóteles demonstra o porquê do movimento circular ser o mais perfeito dos
movimentos, e, portanto, aquele que deve ser esperado das coisas mais elevadas
–, já para Galileu, o movimento não pode ter nenhum significado intrínseco: ele
é uma homogeneidade monótona que é melhor descrita por números, que são as
unidades sucessivas do mesmo42.
É nesse ponto em que podemos avaliar as deduções da reforma da
causalidade para o significado da experiência sensorial. Na imaginação científica
popular, Galileu aparece ao lado de Francis Bacon como um dos que resgataram
as ciências das fantasias estéreis e sem fundamentos do aristotelismo da escolástica
tardia, trazendo-a “de volta para a terra”, e depurando-a para mantê-la dentro dos
limites mais modestos do empírico. Embora esse julgamento seja verdadeiro em
certo aspecto, o aspecto de veracidade repousa numa inversão radical do significado
dos termos, de modo que o empírico perde qualquer conexão com a experiência
sensorial. Não foi simplesmente a insistência de Galileu na empiricidade que não
o impediu de fazer especulações arriscadas e presunçosas sobre coisas que ele não
poderia jamais determinar pela experiência sensorial43 – um fato que sugere que,
num sentido mais fundamental e primordial, “empírico” significa um estado de
espírito, uma disposição filosófica, antes de designar uma prática real – mas tal
método empírico realmente requer que se violente a experiência sensorial de modo
sistemático. No livro, Diálogo Sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo, Galileu
expressa uma admiração ilimitada na capacidade da razão “com Aristarco de Samos
(310-230 a.C.) e Nicolau Copérnico (1473-1543), em cometer tamanho estupro dos
sentidos, ao invés de tornar-se-lhes uma escrava crédula”44. Observem que a própria
imagem utilizada é inteiramente não-natural, mas traz um contraste revelador em
relação ao que vimos anteriormente. A violação dos sentidos recomendada nessa
passagem é estranha à tradição platônica, que jamais teria imaginado a razão e os
sentidos como duas “coisas” colocadas uma contra a outra. Para Platão, a razão,
se é que deve fazer algo, deve exercer uma espécie de domínio sobre si própria,
pois os enganos dos sentidos sempre terminam por se mostrar como sendo auto-
enganos da razão. Mas em Galileu, a razão e a experiência sensorial – apesar de,
42
Idem. Ibidem., p. 261. Simon Oliver mostra o contraste entre a hierarquia do movimento em
Aristóteles (e em Santo Tomás de Aquino) e a homogeneização do movimento em Isaac Newton
(1643-1727) em relação aos pressupostos teológicos subjacentes a essa mudança no modo de
entendimento em: OLIVER, Simon. Philosophy, God and Motion. London: Routledge, 2005.
43
Além das conjecturas bastante elaboradas sobre as manchas solares, sabe-se, por exemplo, que
os instrumentos disponíveis na época de Galileu para a mensuração do tempo não eram precisos
o suficiente para justificar suas inferências gerais sobre a natureza do movimento. Suas teorias,
portanto, possuíam um caráter apriorístico ao qual ele, posteriormente, acomodava as discrepâncias
dos dados experimentais.
44
Citado em: BURTT. Op. cit., p. 69.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 99
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO

na prática, poderem estar de acordo – estão, por natureza, necessariamente em


oposição mútua.
O motivo dessa oposição deriva diretamente da transformação na forma
de compreender a noção de causa. A experiência sensorial é um efeito produzido
em nós por uma causa externa. Mas os efeitos não são imagens que desvelam a
verdade de sua causa. Ao contrário, são movimentos individuais que não possuem
relação alguma com suas causas fora o fato de terem sido iniciados por elas. Desse
modo, depois de discutir como a sensação de cócegas surge em nós por meio do
toque de uma pena, Galileu conclui que:
Ora, essa cócega está inteiramente em nós, e não na pena, e se o corpo animado
e sensitivo fosse removido, ela não seria mais que um mero nome. De semelhante
e não muito maior existência, creio, tais qualidades a serem possuídas, e que são
atribuídas aos corpos naturais, tais como gostos, odores, cores e outras45.

A inferência de Galileu se aplica a tudo que, atualmente, é denominado


por qualidades secundárias da experiência sensorial: tudo é uma ilusão subjetiva,
porque não se comunica nada de inteligível sobre o real. Não há nada em nossa
experiência do calor, por exemplo, que revele a natureza da realidade objetiva
do calor. O que é real são os corpos em movimento, que é como se estivessem
por detrás da nossa experiência sensorial, e não nela. O mundo das qualidades
perceptíveis que preenchem a nossa vida consciente e, certamente, a imaginação,
não possuem nada significativo para nos dizer. Ele precisa ser mudo porque –
para falar de um modo algo anacrônico, mas nem por isso menos preciso – em si
mesmo, ele não é nada mais do que o movimento de partículas separadas, do que
a interação entre forças, do que a substância material dos nossos cérebros. Nossa
única relação com o mundo, nesse caso, é a contigüidade no tempo e espaço.
Há claramente apenas um pequeno passo – se muito – entre o mecanicismo de
Galileu e o dualismo mente-corpo de Descartes, que terminam por se mostrar
como sendo um inabalável monismo da inteligência racionalista.
Apontamos, anteriormente, a ironia de que a apaixonada linguagem
utilizada nos textos antigos para “condenar” a carne provavelmente representasse,
de fato, nada menos que uma proteção dada a sua importância. A ironia reversa
pode ser vista aqui: muitas vezes ouvimos dizer que a modernidade, com sua
religião mundana, teria sido a primeira época na História do ocidente a entrar
em acordo com o corpo e fazer as pazes com a carne. Mas nossa discussão,
aqui, sugere que aquilo que, superficialmente, parece em paz e respeitoso com
mundo dos sentidos surge, na verdade, de um desprezo muito profundo, tão
afastado que chegou ao ponto de se tornar indiferente. A vida dos sentidos pode
ser usufruída de modo distanciado ou, ao contrário, os sentidos podem ser
explorados friamente – “estuprados” – porque, em última instância, a experiência
sensorial não significaria nada em si mesma. Nesse caso, a imaginação se torna

45
Idem. Ibidem., pp. 75-76.
100 COMMUNIO • David C. Schindler

simplesmente banal e, logo, assim também se torna o mundo natural mediado


pela imaginação. A imaginação é onde o mundo pode ter um tipo de lar espiritual
em nós, e por essa mesma razão é o que nos permite ter um lar no mundo. A
destruição da imaginação – chamemo-la de iconoclastia do espírito46 – irá, desse
modo, necessariamente coincidir com a alienação e com a ansiedade subseqüente
que impulsiona o homem em direção a um esquema de auto-redenção por
meio da produtividade, que parece ser mais confiável, mas que é literalmente
desprovida de esperança47. Seria necessária uma investigação mais detalhada para
desenvolver e justificar essa observação, contudo, vale a pena refletir sobre o fato
de que a reforma da ciência em Galileu e a reforma da Filosofia em Descartes –
sem falar a reforma na Filosofia Política previamente executada por Maquiavel
ou na subseqüente reforma da Lógica e da Educação executada por Peter Ramus
(1515-1572)48 e talvez mesmo nas reformas eclesiásticas de Martinho Lutero
(1483-1546), João Calvino (1509-1564) e Ulrico Zuínglio (1484-1531) –
parecem todas partilhar das mesmas características em diferentes versões: negam
a substancial significância causal do bem e do belo, isto é, a realidade metafísica
dos transcendentais. Extirpam por completo a tradição mediadora, que logo após
passam a defender aos pedaços, seguindo como fundamento um novo critério
aplicado imediatamente pelo próprio indivíduo. Desenvolvem uma técnica, ou
um método, que tem o propósito de produzir resultados práticos, em vez de gerar
insights e entendimento... e eliminam todo o significado da imaginação.
Em suma, a raiz daquilo que Paul Claudel chamava de crise do antigo
mundo moderno, ou seja, a desnutrição da imaginação, é o eclipse do bem e do
belo da ordem da causalidade. Isso posto como verdadeiro, segue-se que o resgate
da arte cristã, da literatura cristã e, de fato, de uma cultura cristã em termos mais
gerais, não é em si mesmo suficiente para responder a essa crise. Ou, talvez em
termos mais adequados, segue-se que o resgate de uma cultura cristã genuína
– o mundo e a imaginação cristã – requer que seja feito um resgate do belo no
significado teológico, metafísico e, em última instância, mesmo físico. Qualquer
coisa aquém disso isso irá, sem dúvida, apenas banalizar inadvertidamente aquilo
que se busca restaurar. Não é apenas a Palavra, mas a Palavra que se fez Carne,
que foi enviada pelo Pai para viver no meio de nós, a Palavra feito Carne que
se juntou a nós para trazer a boa nova aos confins da Terra – ou seja, até aos
próprios extremos do ser. Foi Cristo quem disse: “Eis que eu faço novas todas as
46
A expressão foi inspirada em Frances Yates (1899-1981) que se referia à “iconoclastia interior”
gerada para reforma da lógica e da educação feita por Peter Ramus. Ver: YATES, Frances. The Art of
Memory. Chicago: University of Chicago Press, 1966. pp. 231-242. Yates observa que as reformas
ramistas foram mais bem sucedidas em “países protestantes, como a Ingaterra” (p. 234).
47
Sobre a conexão entre a perda de um sentido sacramental para o mundo e o crescimento de uma
ansiosa “ética do trabalho”, ver: WEBER, Max. The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism.
New York: Charles Scribner’s Sons, 1958.
48
Ver a discussão de Catherine Pickstock sobre Ramus em: PICKSTOCK, Catherine. After Writing:
On the Liturgical Consummation of Philosophy. Oxford: Blackwell, 1998. pp. 49-57.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 101
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO

coisas” (Ap 21,5)*, e foi Ele quem, desse modo, se revelou ser, como os escolásticos
diziam, a “imagem perfeita” do Pai, ou, como poderíamos dizer agora, a Verdade
da Imaginação do Pai.

David C. Schindler é professor de Filosofia da Villanova University na Filadélfia e


editor assistente de COMMUNIO: International Catholic Review. Cursou o B.A.
em Humanidades na The University of Notre Dame, o M.T.S. em Teologia no The
John Paul II Institute na The Catholic University of América, o M.A. em Filosofia na
The Catholic University of America e o Ph.D. em Filosofia na The Catholic University
of America.

*
N. do E.: Essa passagem da Sagrada Escritura citada pelo autor foi substituída pela versão em
língua portuguesa da seguinte edição: BÍBLIA DE JERUSALÉM. (Tradução do texto em língua
portuguesa diretamente dos originais). São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional /
Paulus, 1995.
Leão Funerário (Século XVIII)
Escultura em madeira de Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), o Alejadinho
Proveniente da Cripta de Nossa Senhora da Conceição na Matriz do Bairro de Antonio Dias
Museu do Aleijadinho, Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, Ouro Preto, MG
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 103
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 103-119

A IMAGINAÇÃO MORAL*
Russell Kirk

N as principais cadeias de livrarias, no ano da graça de mil novecentos e oitenta


e um, as estantes de livros encontram-se lotadas com as frutas espinhentas da
decadência literária. No entanto, nenhuma civilização consegue nutrir-se somente
de tédio e de violência literários. Uma vez mais, uma consciência pode falar a outra
através dos livros, e uma nova, mas ressecada geração pode caminhar às apalpadelas
em direção às fontes da imaginação moral. Esta primeira palestra anual, neste novo
Center for the Study of Christian Values in Literature [Centro para o Estudo de
Valores Cristãos na Literatura], é uma tentativa de descrever aquele grande poder de
percepção e descrição que já foi chamado de “imaginação moral” e relacionar essa
imaginação ao que François-René de Chateaubriand (1768-1848) definiu como “o
gênio do cristianismo”1. O que foi um dia pode voltar a sê-lo novamente.
Em que consiste essa “Imaginação Moral”? A expressão é de Edmund
Burke (1729-1797), e ela ocorre no contexto de suas Reflections on the Revolution
in France [Reflexões sobre a Revolução em França]. Burke descreve a destruição
dos costumes civilizatórios pelos revolucionários:
Agora, porém, tudo irá mudar. Todas as agradáveis ilusões, que tornaram o poder
gentil e a obediência liberal, que harmonizaram os diferentes tons da vida e que,
por branda assimilação, incorporaram na política os sentimentos que embelezam
e suavizam as relações particulares, deverão ser dissolvidas pela conquista recente
da luz e da razão. Toda a roupagem decente da vida deverá ser rudemente rasgada.
Todas as idéias decorrentes disso, guarnecidas pelo guarda-roupa da imaginação
moral, que vem do coração e que o entendimento ratifica como necessárias para
dissimular os defeitos de nossa natureza nua e elevá-la à dignidade de nossa estima,
deverão ser encostadas como moda ridícula, absurda e antiquada.
Nesse novo esquema de coisas, um rei é apenas um homem; uma rainha, uma
mulher; uma mulher, um animal, e não um animal de ordem muito elevada. Toda
a homenagem prestada ao sexo sem distinção, simplesmente porque é feminino,
devem ser consideradas romance ou loucura...
*
O presente artigo foi publicado, originalmente, em Literature and Belief, Volume 1 (1981), 37-49
e reimpresso na obra Essential Russell Kirk: Selected Essays (ISI Books, 2007), editada por George
Panichas. Os direitos autorais, em língua portuguesa, foram gentilmente fornecidos por Annette
Kirk, viúva do autor e presidente do Russell Kirk Center, para o Centro Interdisciplinar de Ética e
Economia Personalista (CIEEP), que autorizou a publicação do mesmo nessa edição da Communio.
Texto traduzido, do original em inglês para o português, por Gustavo Santos, com notas acrescidas
por Alex Catharino.
1
CHATEAUBRIAND, François-René de. O Gênio do Cristianismo. (Prefácio de Tristão de Athayde;
tradução de Camilo Castelo Branco). Rio de Janeiro: W. M. Jackson Editores, 1948. 2.v.
104 COMMUNIO • Russell Kirk

De acordo com o esquema dessa filosofia bárbara, fruto de corações frios e de


inteligências turvas – filosofia tão destituída de sabedoria sólida quanto de bom
gosto e de elegância –, as leis não devem ser sustentadas senão pelos horrores e
pela importância que as suas próprias especulações ou os seus interesses privados
permitem a cada cidadão atribuir-lhes. Em todos os bosques dos seus jardins,
nas extremidades de todas as suas perspectivas, o senhor não verá nada além do
cadafalso...
Nada é mais certo do que o fato de que nossos costumes e nossa civilização, e
todas as boas coisas que deles recorrem, dependem há séculos, na sua Europa, de
dois princípios; e resultam, sem dúvida, da combinação de ambos: quero dizer,
o espírito de cavalheirismo e o espírito de religião2.

Com a expressão “imaginação moral”, Burke está falando daquele


poder de percepção ética que atravessa as barreiras da experiência individual
e de eventos momentâneos – “especialmente”, segundo o dicionário, “a forma
mais alta desse poder, exercida na poesia e na arte”. A imaginação moral aspira
à apreensão da ordem correta na alma e da ordem correta na comunidade
política. Essa imaginação moral foi o dom e a obsessão de Platão (428-347
a.C.), de Virgílio (70-19 a.C.), de Dante Alighieri (1265-1321). Derivados
de séculos de consciência humana, esses conceitos da imaginação moral – tão
forçosa, ainda que resumidamente, expostos por Burke – são constantemente
re-expressos de geração em geração. Por essa razão é que os beletristas do século
XX, aqueles cujo trabalho tem a maior probabilidade de durar, não foram os
grandes inovadores, mas, ao contrário, os portadores de uma antiga bandeira,
balançada pelos ventos das doutrinas modernas: os nomes de T. S. Eliot (1888-
1965), Robert Frost (1874-1963), William Faulkner (1897-1962), Evelyn
Waugh (1903-1966) e W. B. Yeats (1865-1939) podem ser bastantes para
sugerir a variedade que a imaginação moral assumiu no século XX.
É a imaginação moral que nos informa sobre a dignidade da natureza
humana, e que nos instrui acerca do fato de que somos mais do que primatas
desnudos. Como sugeriu Burke em 1790, as letras e a erudição ficam ocas, se
esvaziadas da imaginação moral. E, como sugeriu Burke, foi o espírito religioso
que sustentou durante um longo tempo essa imaginação moral, ao lado de
todo um sistema de costumes. A nos faltar a imaginação moral, para citar outra
passagem de Burke, somos expulsos “do mundo da razão, da ordem, da paz, da
virtude, e da expiação fecunda, num mundo oposto à folia, ao vício, à confusão e à
dor ineficaz”3.
Burke dá a entender que existem outras formas de imaginação além da
imaginação moral. Ele estava bem consciente da força da imaginação de Jean

2
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. (Introdução de Connor Cruise O’Brien;
tradução de Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lídia Richter
Ribeiro Moura). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. pp. 101-102.
3
Idem. Ibidem., p. 117.
A IMAGINAÇÃO MORAL 105

Jacques Rousseau (1712-1778), “o Sócrates insano da Assembléia Nacional”4. Com


Irving Babbitt (1863-1933), podemos chamar o tipo de imaginação representado
por Rousseau de “imaginação idílica”5 – isto é, a imaginação que rejeita velhos
dogmas e costumes, e se alegra com a noção de emancipação dos deveres e
convenções. Vimos esta “imaginação idílica” seduzir um grande número de jovens
na América durante os anos de 1960 e 1970 – muito embora a maior parte desses
fiéis seguidores nunca tenha lido Rousseau. A imaginação idílica, de ordinário,
termina em desilusão e tédio.
Quando isso ocorre, freqüentemente uma terceira forma de imaginação
ganha ascendência. Nas conferências intituladas After Strange Gods [Em busca
de deuses estranhos], T. S. Eliot toca na questão da “imaginação diabólica”:
aquele tipo de imaginação que se deleita no perverso e sub-humano. O nome de
Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814), o marquês de Sade, nos vem
imediatamente à mente; mas Eliot também encontra “as frutíferas operações do Mau
Espírito” nos escritos de Thomas Hardy (1840-1928) e D. H. Lawrence (1885-
1930). Qualquer um que se interesse pela imaginação moral e pela imaginação
anti-moral deve ler After Strange Gods cuidadosamente. “O número de pessoas que
possuem quaisquer critérios para discriminar entre o bem e o mal é muito pequeno”,
conclui Eliot:
O número dos mortos-vivos famintos por qualquer forma de experiência espiritual,
ou por qualquer coisa que se ofereça com o nome de experiência espiritual, alta
ou baixa, boa ou má, é considerável. Minha própria geração não conseguiu servi-
los muito bem. A imprensa nunca esteve tão ocupada, e nunca houve tantas
variedades de asneiras e falsas doutrinas saindo de suas máquinas. Ai de vós, tolos
profetas, que seguem os vossos próprios espíritos, e nada virdes!6

Essa “imaginação diabólica” predomina na maior parte da ficção popular


de nossos dias; e, também na televisão e nos cinemas. A imaginação diabólica se
mostra sem nenhum pudor. A noite passada eu estava hospedado num novo hotel,
desses que hoje estão na moda; meu quarto single custava em torno de oitenta
dólares. Eu podia sintonizar o aparelho de TV do quarto para ver determinados
filmes, por mais cinco dólares. Depois das dez horas, todos os filmes oferecidos
eram horrivelmente pornográficos. Mas mesmo os filmes de antes das dez, sem
exceção, eram produtos da imaginação diabólica, na medida em que cediam ao
apelo da violência, destruição, crueldade e sensacional desordem. Aparentemente,
nunca ocorreu aos gerentes desse hotel da moda que qualquer um dos seus
endinheirados clientes, de qualquer idade, seja qual fosse o sexo, poderiam preferir
4
BURKE, Edmund. “A Letter to a Member of the National Assembly”. In: In: Futher Reflections
on the Revolution in France. (Edited by Daniel E. Ritchie). Indianapolis: Liberty Fund, 1992. p. 48.
5
BABBITT, Irving. Rousseau and Romanticism. New Brunswick: Transaction Publishers, 2004;
BABBITT, Irving. Democracia e Liderança. (Prefácio de Russell Kirk; tradução de Joubert de
Oliveira Brízida). Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
6
ELIOT, T. S. After Strange Gods: A Primer of Modern Heresy. London: Faber and Faber, 1934.
106 COMMUNIO • Russell Kirk

filmes decentes. Desde que T. S. Eliot proferiu essas palavras na Universidade de Virgínia
em 1933, nós já avançamos um longo percurso do caminho a Avernus, a mitológica
entrada para o mundo inferior. E à medida que a literatura se afunda na perversidade, da
mesma forma a civilização moderna se desfaz em ruínas: “A maré escurecida de vermelho
sangue está solta, e em todo lugar / A cerimônia da ignorância é afogada”7.
Portanto, uma vez tendo notado a existência da imaginação moral, da imaginação
idílica e da imaginação diabólica, aventuro-me agora a relembrar-lhes o verdadeiro
propósito das belles-lettres. Como C. E. M. Joad (1891-1953) aponta em seu livro
Decadence: A Philosophical Inquiry [Decadência: Uma investigação filosófica], aquilo a
que chamamos “decadência” traduz-se pela perda de um fim, um objetivo8. Quando a
literatura perde de vista seu real objeto ou propósito, ela encontra-se em decadência.
Qual é, então, o fim, objeto ou propósito das belas letras? Ora, a expressão da
imaginação moral, ou, para encapsular essa verdade numa expressão mais comum,
o objetivo dos grandes livros, tem a ver com a ética – ensinar o que significa ser
genuinamente humano.
Todas as formas significativas de arte literária adotaram, como temas mais
profundos, as normas da natureza humana. Aquilo que T. S. Eliot chama de “as
coisas permanentes”9 – as normas, os padrões – tem sido a preocupação dos poetas
desde o tempo de Jó, ou desde Homero: “o cego que vê”10 cantou sobre os caminhos
dos deuses com os homens. Até poucos anos atrás, os homens davam por evidente
7
“The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere / The ceremony of ignorance is drowned” (YEATS,
W. B. “The Second Coming”. In: The Collected Works of W.B. Yeats – Volume 1: The Poems. {Edited
by Richard J. Finneran}. New York: Scribner, 2nd Revised edition, 1996. p. 189).
8
JOAD, C. E. M. Decadence: A Philosophical Inquiry. London: C. A. Watts Co., 1948.
9
A defesa das “coisas permanentes” feita por T. S. Eliot é uma das características de sua vasta
produção literária, podendo ser encontrada nos poemas The Waste Land [A terra desolada] de
1922, nos coros de The Rock [A rocha] de 1934, nas peças de teatro The Cocktail Party de 1949
e The Confidential Clerk [O secretário particular] de 1953, e em diversos ensaios, dentre os quais
destacamos: “Tradition and the Individual Talent” [Tradição e o talento individual] de 1917,
“The Function of Criticism” [A função da crítica] de 1923, “Religion and Literature” [Religião e
literatura] de 1934 e Notes towards the Definition of Culture [Notas com vistas à definição de cultura]
de 1948. Essas obras de T. S. Eliot podem ser encontradas nas seguintes edições:
ELIOT, T. S. T. S. Eliot: Obra Completa – Volume I: Poesia. (Edição bilíngüe com texto original
em inglês e tradução para o português, com introdução e notas, de Ivan Junqueira). São
Paulo; Arx, 2004.
ELIOT, T. S. T. S. Eliot: Obra Completa – Volume II: Teatro. (Edição bilíngüe com texto original
em inglês e tradução para o português de Ivo Barroso). São Paulo; Arx, 2004.
ELIOT, T. S. Selected Essays: 1917-1932. San Diego / New York / London: Harcourt, 1950.
ELIOT, T. S. Christianity & Culture. San Diego / New York / London: Harcourt, 1976.
Uma boa análise do pensamento de T. S. Eliot se encontra na seguinte obra: KIRK, Russell. Eliot
and His Age: T. S. Eliot’s Moral Imagination in the Twentieth Century. (Introduction by Benjamin G.
Lockerd Jr.). Wilmington: ISI Books, 2nd Revised edition, 2008.
10
VOEGELIN, Eric. “The Age of Heroes”. In: Order and History – Volume II: The World of the Polis.
(Edited with an Introduction by Athanasios Moulakis). Columbia: University of Missouri Press,
2000. (The Collected Works of Eric Voegelin, Volume 15).
A IMAGINAÇÃO MORAL 107

que a literatura existe para formar a consciência normativa – isto é, ensinar aos seres
humanos a sua verdadeira natureza, sua dignidade e seu lugar na ordem das coisas.
Tal foi a empresa levada a cabo por Sófocles (496-406 a.C.) e Aristófanes (447-385
a.C.), por Tucídides (460-395 a.C.) e Tácito (55-120), por Platão e Cícero (106-43
a.C.), por Hesíodo e Virgílio, por Dante Alighieri e William Shakespeare (1564-
1616), por John Dryden (1631-1700) e Alexander Pope (1688-1744).
A própria expressão, “humane letters” [letras humanas ou belas letras, em
português], sugere que a grande literatura se destina a nos ensinar o que é ser
integralmente humano. Como observa Irving Babbitt em seu pequeno livro,
publicado originalmente em 1908, Literature and the American College [Literatura e
o ensino superior americano], o humanismo (derivado do latim Humanitas) é uma
disciplina ética, voltada ao desenvolvimento da pessoa verdadeiramente humana,
das qualidades relacionadas à hombridade, através do estudo dos grandes livros11.
A literatura do niilismo, da pornografia e do sensacionalismo, como sugere Albert
Salomon (1891-1966) na obra The Tyranny of Progress [A tirania do progresso], é
um desenvolvimento recente, surgido no século XVIII – embora tenha chegado ao
ápice nos nossos dias – com a desagregação da visão religiosa da vida e do declínio
do que foi chamado de “A Grande Tradição” em Filosofia12.
Esse propósito normativo das Letras é especialmente forte na literatura
inglesa, que nunca sucumbiu ao egocentrismo que veio a dominar as letras francesas
no final do século XVIII. Os nomes de John Milton (1608-1674), John Bunyan
(1628-1688) e Samuel Johnson (1709-1784) – ou, na América, de Ralph Waldo
Emerson (1803-1882), Nathaniel Hawthorne (1804-1864) e Herman Melville
(1819-1891) – deveriam ser suficientes para ilustrar esse ponto. Os grandes
romancistas populares do século XIX – Sir Walter Scott (1771-1832), Charles
Dickens (1812-1870), William Makepeace Thackeray (1811-1863), Anthony
Trollope (1815-1882) – todos eles pressupunham que o escritor possui uma
obrigação moral para com a normalidade – isto é, explicita ou implicitamente, para
com certos padrões permanentes de conduta pública e privada.
Agora, não quero com isto dizer que o grande escritor está sempre a se
expressar através de homilias e sermões. Com Ben Johnson (1572-1637), ele
pode “flagelar as loucuras expostas da época”13, mas não fica constantemente
murmurando, “Seja boazinha, doce donzela, e deixe quem quiser ser esperto”14. Ao
contrário, o homem de letras ensina as normas de nossa existência através da

11
BABBITT, Irving. Literature and the American College: Essays in Defense of the Humanities.
(Introduction by Russell Kirk). Washington, D.C.: The National Humanities Institute, 1986.
12
SALOMON, Albert. The Tyranny of Progress: Reflections on the Origins of Sociology. New York:
Noonday Press, 1955.
13
JOHNSON, Ben. Every Man in His Humour. (Edited by Gabriele Bernhard Jackson). New
Haven: Yale University Press, 1969.
14
“Be good, sweet maid, and let who will be clever” (KINGSLEY, Charles. “A Farewell” In: Poems.
London: Macmillan, 1889. p. 284).
108 COMMUNIO • Russell Kirk

alegoria, da analogia e através do espelho, por ele criado, onde a natureza humana
vê a si mesma. O escritor pode, como William Faulkner, escrever muito mais
sobre o mal do que sobre o que é bom; e ainda assim, ao exibir a depravação da
natureza humana, ele estabelece, na mente do leitor, a consciência de padrões que
perduram, dos quais nós é que nos afastamos; e essa natureza humana decaída é
uma visão da feiúra.
Ou o escritor pode lidar, como o fez John P. Marquand (1893-1960),
mormente com a trivialidade e o vazio de uma sociedade esquecida dos próprios
padrões. Muitas vezes, no apelo de uma consciência à outra, ele poderá remar
com remos silenciosos; por vezes estará apenas liminarmente consciente de sua
função normativa. Quanto melhor o artista, poder-se-ia quase dizer, mais sutil
o pregador. A persuasão imaginativa, e não a exortação direta, é comumente o
método utilizado pelo literato defensor das normas.
Vale a pena notar que o poeta mais influente de nosso tempo, T. S. Eliot,
procurou restaurar à poesia, ao drama e à crítica modernos suas funções normativas
tradicionais. Nisso ele se imaginou o herdeiro de Virgílio e Dante. O poeta não deve
forçar seu ego sobre o público; ao contrário, a missão do poeta é transcender o pessoal e
o particular. Como escreveu Eliot em “Tradition and the Individual Talent” [Tradição
e o talento individual] o primeiro ensaio encontrado em Selected Essays: 1917-1932
[Ensaios selecionados: 1917-1932]:
Não é por suas emoções pessoais, as emoções provocadas por eventos particulares
da própria vida, que o poeta é de alguma forma digno de nota, ou interessante.
Suas emoções particulares podem ser simples, ou rudes, ou sem graça. A emoção
em sua poesia será uma coisa bastante complexa, mas não com a complexidade das
emoções de pessoas que têm na vida emoções muito complexas ou incomuns. Um
erro, de fato, da excentricidade na poesia é buscar novas emoções humanas para
expressar; e, nessa busca por novidade no lugar errado, ela descobre o perverso.
O negócio do poeta não é encontrar novas emoções, mas usar as ordinárias e,
trabalhando-as em poesia, expressar sentimentos que não estão, em absoluto,
presentes nas emoções reais15.

Portanto, a poesia pura e outras formas de grande literatura perscrutam


o coração humano para ali encontrar as leis da existência moral, distinguindo
o homem da besta. Ou pelo menos era assim até quase o final do século XVIII.
Desde então, o egocentrismo de uma das escolas do Romantismo obscureceu
o propósito primeiro das letras humanas. E muitos dos realistas escreveram o
homem como se este fosse somente brutal – ou, na melhor das hipóteses,
brutalizado pelas instituições – Assim surgiu a definição de Ambrose Bierce
(1842-1914) no The Devil’s Dictionary [O dicionário do Diabo]: “Realismo - s.
Uma representação fiel da natureza humana, do ponto de vista dos sapos”16. Em
nosso tempo, e particularmente nos Estados Unidos, temos visto o crescimento
15
ELIOT, T. S. “Tradition and the Individual Talent”. In: Selected Essays: 1917-1932. pp. 3-11.
16
BIERCE, Ambrose. The Devil’s Dictionary. Rockville: Wildside Press, 2008.
A IMAGINAÇÃO MORAL 109

da popularidade de uma escola de escritores ainda mais niilista do que os niilistas


russos jamais foram: a literatura do nojo e da denúncia, descrita suficientemente
na obra de Edmund Fuller (1914-2001) Man in Modern Fiction [O homem
na ficção moderna]17. Para os membros dessa escola, o escritor não poderia ser
nenhum defensor ou expositor de padrões, pois não existiria padrão algum para
ser explicado ou defendido; o escritor meramente registraria, sem reservas, seu
nojo diante da humanidade e de si mesmo – Isso é diametralmente oposto a um
Jonathan Swift (1667-1745), que, apesar de seu ódio à maior parte dos seres
humanos, os detestava apenas porque eles não alcançavam a altura a que haviam
sido destinados.
Entretanto, suspeito que os nomes desses nossos autores niilistas do século
XX já terão sido esquecidos antes da passagem de uma geração, enquanto irão
perdurar para além de nossa época aqueles trabalhos de uns poucos beletristas
cujo apelo está nas coisas que permanecem, e por isso, na posteridade. Penso, por
exemplo, no romance de José María Gironella (1917-2003), Los cipreses creen en
Dios [Os ciprestes crêem em Deus]18. O manso noviço que apara os cabelos e lava
os corpos dos mais pobres entre os pobres da velha Gerona, embora tenha morrido
por tiros comunistas, viverá um longo tempo no reino das letras; enquanto
as mal-disfarçadas personalidades de nossos autores niilistas, pavoneando-se
indecorosamente sob a forma de personagens de best sellers, extinguir-se-ão no
momento em que as preferências do público começarem a se dirigir na direção de
alguma nova sensação. Pois, assim como a consciência normativa inspira a vida
na alma e na ordem social, da mesma forma a compreensão normativa confere a
um autor uma fama duradoura.
Malcolm Cowley (1898-1989), escrevendo há alguns anos na revista
Horizon sobre a recente safra de romancistas estreantes, observou que os diversos
autores por ele discutidos mal tinham ouvido falar das três virtudes teologais, das
quatro virtudes cardeais e dos sete pecados capitais. Crimes e pecados não são
mais do que acidentes para esses jovens romancistas; o amor e o ódio reais estão
ausentes dos seus trabalhos. Para essa nova geração de escritores, o mundo parece
sem propósito, e as ações dos homens, sem significado. Eles parecem expressar
nada além de um ego vadio – Jacques Barzun, no livro The House of Intellect [A
casa do intelecto], diz algumas coisas perspicazes sobre o orgulho injustificado do
conjunto de escritores aspirantes desta década19. E o Sr. Cowley sugere que esses
rapazes e moças, apresentados a nenhuma norma na infância e na juventude,
à exceção da vaga atitude de que a pessoa tem o direito de fazer o que queira
desde que não prejudique a outrem, são privados de disciplina espiritual e
intelectual – esvaziados, de fato, de desejo real pelo que quer que seja.
17
FULLER, Edmund. Man in Modern Fiction: Some Minority Opinions on Contemporart American
Writing. New York: Random House, 1958.
18
GIRONELLA, José María. Los cipreses creen en Dios. Barcelona: Editorial Planeta, 1953.
19
BARZUN, Jacques. The House of Intellect. London: Secker & Warburg, 1959.
110 COMMUNIO • Russell Kirk

Esse tipo de escritor, sem rumo e infeliz, é o produto de um tempo no qual


a função normativa das letras tem sido largamente negligenciada. Ignorante de
sua própria missão, tal escritor tende a pensar em sua ocupação como uma mera
técnica, possivelmente lucrativa, que por vezes satisfaz à própria vaidade, mas
dedicada a nenhum fim específico. Mesmo a escrita “proletária” dos anos 1920
e 1930 reconhecia a existência de um objetivo; mas ela morreu de desilusão e
inanição. Se os escritores se encontram neste apuro, como conseqüência do clima
de opinião predominante, o que dizer de seus leitores? Suspeito que relativamente
poucos leitores atualmente buscam um conhecimento normativo. Eles estão
mais à procura de entretenimento, por vezes de caráter indiretamente rude, ou
então perseguem uma vaga “consciência” das questões e correntes intelectuais
contemporâneas, apropriada para conversas casuais em coquetéis e festas.
Os jovens romancistas descritos pelo Sr. Cowley pertencem ao contingente
dos Hollow Man [Homens Ocos]20 de T. S. Eliot. A natureza tem aversão a vácuos;
alguma nova força precisa ocupar o interior de mentes que foram esvaziadas de
normas; e muitas vezes essa força é de caráter diabólico.
Um crítico perspicaz, Albert Fowler, escrevendo na revista Modern Age,
faz a pergunta: “A literatura pode corromper?” – e responde na afirmativa21. E, de
fato, ela pode corromper; mas também é possível ser corrompido pela ignorância
das belas letras, como boa parte de nosso conhecimento normativo é derivado
necessariamente da leitura. A pessoa que lê livros ruins, em vez de bons livros,
pode ser sutilmente corrompida; a pessoa que nada lê pode ficar vagando para
sempre pela vida, a não ser que ela se encontre numa comunidade que permaneça
fortemente influenciada por aquilo que Gustave Thibon (1903-2001) chama
de “hábitos morais”22 e pela tradição oral. E a abstinência absoluta de material
impresso tem se tornado rara. Se um menino não lê Treasure Island [A ilha do
tesouro] de Robert Louis Stevenson (1850-1894)23, provavelmente vai acabar
lendo Mad Ghoul Comics24.
Por isso, acho que vale a pena sugerir as linhas mestras da disciplina
literária que leva a alguma compreensão dos valores que não passam. Durante
séculos, semelhante programa de leitura – embora nunca caracterizado como
20
ELIOT, T. S. “Os Homens Ocos”. In: T. S. Eliot: Obra Completa – Volume I: Poesia. (Edição
bilíngüe com texto original em inglês e tradução para o português, com introdução e notas, de Ivan
Junqueira). São Paulo; Arx, 2004. pp. 175-183.
21
FOWLER, Albert. “Can Literature Corrupt?”. In: Modern Age: A Quarterly Review, Volume 3,
Number 2 (Spring 1959): 125-133.
22
THIBON, Gustave. Ce que Dieu a uni. Paris: Fayard, 1967.
23
STEVENSON, Robert Louis. A ilha do tesouro. (Tradução de William Lagos). Porto Alegre:
L&PM, 2001.
24
O autor faz aqui uma brincadeira, onde une o nome da popular revista cômica Mad com o título
do filme de ficção científica e terror The Mad Ghoul de 1943, dirigido por James Patrick Hogan
(1890-1943), distribuído pela Universal Pictures e estrelado por George Zucco (1886–1960),
David Bruce (1914-1976) e Evelyn Ankers (1918-1985).
A IMAGINAÇÃO MORAL 111

um programa – existiu nas nações ocidentais. Ele influenciou intensamente as


mentes e ações dos líderes da nascente República Americana, por exemplo. Ao
se vasculhar o conjunto de livros que foram lidos pelos líderes da Revolução
Americana, os idealizadores da Constituição dos Estados Unidos e os principais
homens dos Estados Unidos no período anterior a 1800, se descobrirá que quase
todos eles estavam familiarizados com alguns poucos, mas importantes, livros:
a Bíblia (na versão King James), as Vidas Paralelas de Plutarco (45-125)25 e
Shakespeare, bem como alguma coisa de Cícero e de Virgílio. Este era um corpus
de literatura altamente normativo. Os fundadores da república norte-americana
pensavam em sua nova comunidade política como uma mescla da república
romana com instituições prescritivas inglesas; e adotaram como modelos de
liderança os profetas, reis e apóstolos da Bíblia, os nobres gregos e romanos
de Plutarco. A teimosa virtude de Catão de Útica (95-46 a.C.), os vaticínios
eloqüentes de Demóstenes (384-322 a.C.), o temerário impulso reformador de
Cleômenes (260-219 a.C.) – todos esses foram objetos da contemplação dos pais
fundadores, de acordo com os quais estes últimos temperaram a sua conduta.
“Mas atualmente”, como escreveu Chateaubriand há mais de um século, “os
estadistas entendem apenas o mercado de ações – e mesmo assim, não muito bem”26.
É claro que não é somente por meio de livros que a compreensão
normativa dos redatores da Constituição dos Estados Unidos, por exemplo, foi
formada. Sua apreensão das normas se deu, também, no contexto da família,
igreja e escola, bem como em atividades da vida cotidiana. Mas a porção da
compreensão normativa adquirida a partir dos livros foi realmente importante.
De fato, não se pode efetivamente atingir padrões duradouros apenas apoiando-
se na mera experiência pessoal como a fonte das normas. A experiência pura,
conforme sugerido por Benjamin Franklin (1706-1790), é a mestra dos tolos de
nascença. Nossas vidas são demasiado breves e confusas para permitir à maioria
dos homens desenvolver qualquer padrão normativo a partir de sua experiência
individual; e como o cardeal John Henry Newman (1801-1890) escreveu: “a vida
é para a ação”27. Portanto, temos de nos remeter ao banco geral e ao capital dos
séculos, ao conhecimento normativo encontrado na Revelação, na autoridade e
na experiência histórica, se quisermos orientação na moral, no bom gosto e na
política. Desde a invenção da imprensa, esse conhecimento normativo tem sido
expresso, cada vez mais, nos livros, de modo que, hoje em dia, a maioria das
pessoas forma suas opiniões em boa parte a partir da página escrita. Isso pode ser,
por vezes, algo a se lamentar; pode significar aquilo a que D. H. Lawrence referiu
25
PLUTARCO. Vidas Paralelas. (Introdução e notas de Paulo Matos Peixoto; tradução do grego de
Gilson César Cardoso). São Paulo: Paumape, 1992. 5v.
26
CHATEAUBRIAND, François-René de. Réflexions politiques sur quelques écrits du jour et sur les
intérêts de tous les Français. Paris: Le Normant, 1814.
27
NEWMAN. John Henry Cardinal. Discussions and Arguments on Various Subjects. London:
Longmans, 1899. p. 295.
112 COMMUNIO • Russell Kirk

como “mastigar jornais”; mas é um fato. E negar um fato simplesmente concede,


ao mesmo fato, poder sobre quem o nega.
Outro fato é que já por uns trinta anos temos falhado, nos Estados Unidos, em
desenvolver a consciência normativa nos jovens através de um cuidadoso programa de
leitura da grande literatura. Temos falado sobre “educação para a vida” e “treinamento
em adaptação”; entretanto, muitos de nós parecemos ter esquecido de que as disciplinas
literárias estão entre os principais meios de aprendizagem para adaptar-se às necessidades
da vida. Além disso, a não ser que a vida à qual somos instados a nos adaptar seja
governada por normas, a vida pode acabar sendo muito ruim para todo mundo.
Uma das falhas do típico currículo permissivo, ou “adaptado para a vida,”
existente nas escolas – acompanhado, comumente, por atitudes igualmente indulgentes
na família – tem sido a substituição do estudo de uma literatura verdadeiramente
imaginativa por leituras de tipo “situações da vida real”. Essa tendência tem-se notado
especialmente nos primeiros anos de escola, mas ela se estende adiante, em um grau
ou outro, até o fim do ensino médio. A alfabetização do tipo “Dick and Jane” e “run,
Spot, run”28 não mexe muito com a imaginação; e transmite uma fraca apreensão de
normas. Os apologistas deste tipo de escolarização baseado na “adaptação para a vida”
acreditam estar inculcando o respeito por valores pela prescrição de leituras simples que
recomendam um tipo de comportamento tolerante, gentil e cooperativo. Mas isso não
é de modo algum um jeito eficaz de transmitir a consciência das normas: didatismo
moral, seja do tipo vitoriano, seja do século XX, geralmente cria resistências nos seus
recipientes, e particularmente naqueles que possuem algum poder intelectual inato.
O elogio que somente bajula a bondade pode causar aversão, e acabar aguçando
o apetite pelo fruto proibido. No conto “The Story-teller” [O contador de estórias],
de Saki [Hector Hugh Munro (1870-1916)], um indivíduo algo malicioso conta a
três crianças que encontra num trem uma história de uma menininha incrivelmente
bondosa, ganhadora até mesmo de medalhas por seu comportamento tão digno de
reconhecimento. Ocorre que ela encontrou um lobo na floresta; e apesar de muito
correr, o barulho das medalhas guiou o lobo até ela, que finalmente foi devorada pela
fera. Embora as crianças tivessem ficado maravilhadas com essa narrativa um tanto
incomum, a tia delas protestou, “Que história imprópria para essas jovens crianças!”
“Mulher infeliz!” murmurou o homem, ao se afastar. “Pelos próximos seis meses,
essas crianças não vão parar de importuná-la em público, pedindo outras histórias
impróprias!”29
28
Referências à cartilha de alfabetização, muito utilizada em língua inglesa, onde as personagens
Dick e Jane, criadas pelo Dr. William S. Gray (1885-1960), foram usadas para ensinar as crianças a
ler desde 1930 até os anos 1970, nos Estados Unidos. Nesse período de quarenta anos, a cartilha foi
utilizada por mais de 85 milhões de crianças americanas. A cartilha deu origem a uma série de livros
infantis, onde as personagens principais apareciam juntamente com o cachorro ‘Spot’ e o gatinho
‘Puff’. As estórias impregnaram o imaginário de várias gerações, de modo que a frase, “Run, Spot,
run!” [Corra, Spot, corra] é, até hoje, lembrada por milhões de norte-americanos como a primeira
coisa que conseguiram ler.
29
SAKI. The Complete Saki. London: Penguin, 1976.
A IMAGINAÇÃO MORAL 113

Bem, os mitos gregos e nórdicos, por exemplo, não são por vezes muito
“próprios;” mas do modo como mexem com a imaginação, contribuem mais
para a apreensão precoce das normas sociais do que qualquer número de
histórias, chatas e intermináveis, sobre as aventuras de Dick e Jane. A história
de Pandora, ou a aventura de Thor com a velha e seu gato, despertam em
qualquer criança um insight sobre as condições de existência – entendido
parcialmente, num primeiro momento, talvez, mas, crescente em força e
claridade com o passar dos anos – que ficção nenhuma que utiliza “situações
reais” pode esperar trazer. Por serem eternamente válidos, Hesíodo e os
cantadores de sagas são modernos. E as versões dos clássicos escritas por
Nathaniel Hawthorne ou por Andrew Lang (1844-1912) têm uma prosa
muito melhor do que o inglês “quase-básico” forçado sobre adolescentes e
jovens em vários livros-texto recentes.
Se privamos os jovens de imaginação, aventura e algum tipo de
heroísmo – para falar agora de um estágio mais avançado de aprendizagem
– eles provavelmente não gostarão de “Contos bons e aprovados sobre a vida
real para meninos e meninas reais”; ao contrário, eles poderão recorrer às
migalhas da literatura, para não se entediar completamente. Se eles não forem
apresentados a Robert Louis Stevenson e Joseph Conrad (1857-1924), por
exemplo – e isso, relativamente cedo – acabarão encontrando os pornógrafos
mais novos e acessíveis. E as conseqüências disso serão sentidas, não somente
na falta de bom gosto, mas na apreensão incorreta, e por toda a vida, da
natureza humana; e, por fim, em toda a atmosfera de uma nação. “Nesse novo
esquema de coisas” [...] uma mulher é apenas “um animal, e não um animal de
ordem muito elevada”30. A teoria do ‘macaco nu’ da natureza humana, a noção
“reducionista” do homem, visto como um autômato que respira, é reforçada
pela ignorância da imaginação moral da literatura.
Numa de suas Causeries du Lundi, Charles Augustin Sainte-Beuve
(1804-1869) fala de um dramaturgo que se posta na janela da casa de um
amigo para ver uma frenética multidão parisiense avançando pela rua: “Veja
o meu espetáculo passando!”, murmura esse autor com complacência31. A arte
é a natureza do homem; e é bem verdade, como disse Oscar Wilde (1854-
1900), caprichosamente, que a natureza imita a arte. Nossas ações públicas e
privadas, nos anos da maturidade, são determinadas pelas opiniões e gostos
que adquirimos durante a juventude. Grandes livros realmente influenciam
sociedades numa boa direção; e livros ruins podem realmente rebaixar o nível
geral de conduta pessoal e social. Tendo visto o espetáculo, a multidão passa
a se comportar conforme o dramaturgo acha que ela deveria se comportar.
Suponho que um público que assista com suficiente freqüência as peças de
Tennessee Williams (1911-1983) poderá começar a se portar como o Sr.
30
BURKE. Reflexões sobre a Revolução em França. p. 101.
31
SAINTE-BEUVE, Charles Augustin. Causeries du Lundi. Paris: Garnier, 1899. 15v.
114 COMMUNIO • Russell Kirk

Williams acha que os americanos já se comportam32. Nós nos tornamos aquilo


que outros, com voz de autoridade, nos dizem que somos, ou que deveríamos ser.
Por isso, acredito que, no ensino da literatura, algumas das teorias
educacionais de “adaptação para a vida”, e escolas permissivas, têm causado
problemas consideráveis. Hoje em dia, os defensores da educação de adaptação
para a vida estão cedendo terreno, queixosamente, diante de seus críticos. O
ancestral intelectual de suas doutrinas é Jean-Jacques Rousseau33. Embora
não seja um grande admirador das idéias de Rousseau, gosto ainda menos das
doutrinas de Sir Thomas Gradgring, no livro Hard Times [Tempos difíceis] de
Charles Dickens34; por isso, espero que os métodos de adaptação para a vida no
ensino da literatura não sejam suplantados por algo ainda pior. Afinal de contas,
a real adaptação às condições da existência humana é uma adaptação às normas
dessa existência. Mesmo um empenho ineficaz em ensinar normas é melhor do
que a ignorância ou a negação de todos os padrões. Um zelo equivocado por um
treinamento vocacional utilitário, em lugar de instrução normativa; uma ênfase
sobre as ciências físicas e biológicas, que acabaria colocando a literatura num canto
esquecido do currículo; uma tentativa de assegurar a competência lingüística em
línguas estrangeiras em detrimento do conhecimento das grandes obras de nossa
própria língua – essas seriam mudanças na Educação tão hostis à transmissão
de normas através da literatura quanto qualquer coisa que os especialistas em
adaptação para a vida e os educadores permissivos possam ter feito.
32
As peças de Tennessee Williams tendem a mostrar personagens frágeis, perdidos e insensatos,
quase sempre vítimas de desejos descomedidos. Depois de William Shakespeare, Tennessee Williams
foi o dramaturgo que mais teve suas obras adaptadas para o cinema. Dentre os dezessete filmes
cujo roteiro foi elaborado a partir das peças de Tennesse Williams se destacam A Streetcar Named
Desire [Um bonde chamado desejo], de 1951, dirigido por Elia Kazan (1909-2003) e estrelado por
Marlon Brando (1924- 2004) e Vivien Leigh (1913-1967); e Cat on a Hot Tin Roof [Gata em teto
de zinco quente], de 1958, dirigido por Richard Brooks (1912-1992) e estrelado por Paul Newman
(1925-2008) e Elizabeth Taylor.
33
O pensamento pedagógico de Jean-Jacques Rousseau se opõe à noção de educação como
transmissão de valores, conhecimentos e informações, por acreditar que as letras, as artes e as
ciências, junto com a propriedade privada, são os males que afastam o homem do estado natural.
O modelo educacional naturalista e romântico de Rousseau defende o retorno do homem ao
estado natural, que só poderá acontecer por intermédio da expansão das aptidões naturais e do
desenvolvimento interno da criança, pela ação de seus instintos e inclinações. A principal obra
do autor sobre a temática é: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da educação. (Introdução de
Michael Launey; tradução de Monica Stahel). São Paulo: Martins Fontes, 1995.
34
O romance Hard Times de Charles Dickens, publicado originalmente em 1854, é uma severa
crítica ao utilitarismo, onde são destacadas as pressões culturais, sociais e econômicas que algumas
pessoas estavam passando no início da Era Vitoriana. A personagem Sir Thomas Gradgring,
defensora dos “fatos, somente fatos”, como única coisa necessária, é uma caricatura do modelo
educacional tecnicista, pautado num empirismo exacerbado que rejeita a imaginação, defendido
pelos filósofos utilitaristas Jeremy Bentham (1748-1832) e James Mill (1773-1836), cuja cobaia de
tal experimento foi o filho de James Mill, o também filósofo utilitarista, John Stuart Mill (1806-
1873). A obra está disponível na seguinte edição: DICKENS, Charles. Hard Times. London:
Penguin, 1994.
A IMAGINAÇÃO MORAL 115

Dessa forma, ouso sugerir aqui, num brevíssimo esboço, como é possível
formar uma consciência normativa através do estudo das belas letras. O que tenho a
dizer deveria ser um lugar-comum; mas essas idéias parecem ter sido esquecidas em
muitos ambientes. Esse empenho normativo deveria ser a obra conjunta da família
e da escola. Da mesma forma que a arte da leitura é geralmente melhor ensinada
pelos pais do que poderia sê-lo em uma classe numerosa na escola, assim também
o conhecimento dos bons livros se origina pelo menos com a mesma freqüência em
casa como na escola. Meu próprio gosto pelos livros surgiu de ambas as fontes: as
estantes de livros de minha mãe e meu avô, e uma ótima e pequena biblioteca de
escola primária. E se uma escola falha em imbuir um gosto pelos bons livros, isso
pode, com freqüência, ser remediado pela atenção interessada da família.
De modo experimental, cheguei a distinguir quatro níveis de literatura através
dos quais uma consciência normativa pode se desenvolver. Os níveis superiores não
suplantam os anteriores, mas sim se unem e suplementam-nos; e o processo de tornar-
se familiarizado com esses quatro níveis ou corpos de conhecimento normativo se
estende da idade de três ou quatro anos até os estudos universitários. Podemos chamar
esses níveis de fantasia; narrativa histórica e biografia; prosa refletiva e ficção poética; e
Filosofia e Teologia.

I - FANTASIA
O fantástico e o mágico, longe de serem prejudiciais às crianças pequenas,
são precisamente o que uma criança saudável precisa; sob seu estímulo, a
imaginação moral de uma criança fica cheia de vitalidade e força. Dos primeiros
contos fantásticos provém um senso de reverência, e o início da Filosofia. Todas
as coisas começam e terminam em mistério. A esse respeito, a consciência
normativa pode ser despertada por temas menos impressionantes do que as lendas
do Ciclo Arturiano35 ou os contos nórdicos36. O segundo livro que li foi The
Story of Little Black Sambo [A estória do negrinho Sambo] de Helen Bannerman
35
O chamado Ciclo Arturiano é a parte mais conhecida da chamada Matter of Britain [Matéria da
Bretanha], um conjunto de lendas celtas, impregnadas de valores e símbolos cristãos, que narram
a história mítica da Grã-Bretanha, particularmente as aventuras do Rei Artur e dos cavaleiros da
Távola Redonta. Em língua portuguesa essas estórias podem ser encontradas nas seguintes edições
brasileiras:
Aventuras da Távola Redonda: Estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros. (Organização e
tradução de Antonio L. Furtado). Petrópolis: Vozes, 2003.
A Demanda do Santo Graal: Manuscrito do século XIII. (Edição sob os cuidados de Heitor
Megale). São Paulo: T.A. Queiroz / Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
TROYES, Chrétien de. Perceval ou O romance do Graal. (Tradução de Rosemary Costhek
Abílio). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
TROYES, Chrétien de. Romances da Távola Redonda. (Tradução de Rosemary Costhek Abílio).
São Paulo: Martins Fontes, 1991.
36
FRANCHINI, A. S. & SEGANFREDO, C. A. As melhores histórias da mitologia nórdica. São
Paulo: Artes e Ofícios, 2004.
116 COMMUNIO • Russell Kirk

(1862-1946)37. Tendo aprendido o livro de cor, posso recitá-lo ainda hoje (Um
sintoma da crescente tolice que caracteriza nosso tempo foi a exigência, alguns
anos atrás, de que The Story of Little Black Sambo fosse banido por “racista”).
Embora eu me arrisque a cair num emocionalismo, não posso deixar de notar
que mesmo um livro como The Story of Little Black Sambo toca na questão
das normas. Qual criança não acaba refletindo sobre a hubris (desmedida) dos
tigres, e a prudência de Sambo?
Se quisermos que as crianças comecem a entender a si mesmas, outras pessoas
e as leis que governam a nossa natureza, deveremos incentivá-las a ler a coleção de
contos de fadas de Andrew Lang38, e, mesmo os mais sinistros contos, dos irmãos
Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859)39, de Hans Christian
Andersen (1805-1875)40, As Mil e uma Noites41, e todo o resto; e, atualmente, os
melhores novelistas para jovens, como R. D. Blackmore (1825-1900)42, e Howard
Pyle (1853-1911)43. Mesmo a Bíblia, no começo, é fantasia para os mais novos. A
alegoria de Jonas e a baleia é aceita, inicialmente, como um conto maravilhoso, e
assim permanece na memória. Somente alguns anos depois a estória é reconhecida
como um símbolo do exílio do povo judeu na Babilônia, e de como a fé pode
preservar homens e nações, através das mais horríveis tribulações.

37
O livro infantil The Story of Little Black Sambo, publicada pela primeira vez em Londres em 1899,
foi criado por Helen Bannerman, uma escocesa que viveu por trinta anos em Madras, no sul da
Índia. Na estória, um menino hindu, chamado Sambo, convence um grupo de tigres famintos a
não o comer, dando a cada um dos tigres suas roupas coloridas, seus sapatos e guarda-chuva. Sambo
recupera seus pertences, quando, os tigres invejosos e arrogantes começam a disputar quem seria o
maioral. Os tigres começaram a brigar e se engalfinharam ao redor de uma palmeira. De tanto girar
em torno da árvore, eles derreteram e se transformaram numa deliciosa manteiga que Sambo levou
para casa, para que sua mãe cozinhasse deliciosas panquecas. Essa foi a estória predileta das crianças
de língua inglesa por mais de meio século, mas se tornou controversa pelo uso da palavra ‘Sambo’,
um insulto racial em alguns países. A obra nunca foi traduzida para o português, podendo ser
encontrada na seguinte edição em inglês: BANNERMAN, Helen. The Story of Little Black Sambo.
New York: HarperCollins, 1923.
38
LANG, Andrew. Andrew Lang’s Complete “Fairy Book” Series. London: Shoes and Ships and
Sealing Wax Ltd., 2006.
39
GRIMM, Jacob & GRIMM, Wilhelm. Contos dos Irmãos Grimm. (Seleção e prefácio explicativo
de Clarissa Pinkola Estes; ilustrações de Arthur Rackham; tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro:
Rocco, 2005.
40
ANDERSEN, Hans Christian. Contos de Andersen. (Tradução do dinamarquês por Guttorm
Hanssen; revisão estilística de Herberto Sales; ilustrações originais de Vilhelm Pedersen e Lorentz
Frolich). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
41
Livro das mil e uma noites. (Tradução do árabe de Mamede Mustafa Jarouche). São Paulo: Globo,
2007. 3v.
42
BLACKMORE, R. D. O encanto de Lorna Doone. (Tradução de Leyguarda Ferreira). Lisboa:
Romano Torres, 1958.
43
PYLE, Howard. Alegres Aventuras de Robim Hood. (Tradução de Stella Leonardos). Rio de Janeiro:
Ediouro, 1980.
A IMAGINAÇÃO MORAL 117

II - HISTÓRIA NARRADA E BIOGRAFIAS


Meu avô e eu, durante os longos passeios que dávamos, quando tinha
uns seis ou sete anos, conversávamos sobre o caráter do rei Ricardo II (1367-
1400), sobre a vida doméstica dos puritanos, e a ferocidade dos assírios. A
parceria intelectual de um homem de imaginação aos sessenta anos e um garoto
curioso de sete é algo edificante. A minha preparação para essas conversas veio
de livros da biblioteca do meu avô: A Child’s History of England [Uma história
da Inglaterra para crianças] de Charles Dickens44, Grandfather’s Chair [A cadeira
do avô] de Nathaniel Hawthorne45, e os quatro volumes ilustrados History of
the World [História do Mundo] de John Clark Ridpath (1840-1900)46. Mais
tarde, meu avô deu-me Outline of History [História Universal]47 de H. G. Wells
(1866-1946). Na maturidade, vim a discordar das interpretações da história de
Dickens e Wells; mas foi tudo para o bem, pois essas experiências estimularam
minhas faculdades críticas e me levaram ao estudo correto das humanidades – e
aos grandes historiadores Heródoto (484-425 a.C.), Tucídides, Xenofonte (430-
355 a.C.), Políbio (203-120 a.C.), Tácito e todos demais; às grandes biografias,
também, como as Vidas Paralelas de Plutarco48 e The Life of Samuel Johnson [A
vida de Samuel Johnson] de James Boswell (1740-1795)49, além de Memoirs of
the Life of Sir Walter Scott [Memórias da vida de Sir Walter Scott] de John Gibson
Lockhart (1794-1854)50. A leitura das grandes vidas de fato contribui para a
construção de vidas decentes.

III - PROSA REFLETIDA E FICÇÃO POÉTICA


Quando eu tinha sete anos, minha mãe deu-me uma coleção dos romances
de James Fenimore Cooper (1789-1851); e, por essa época, herdei de um tio-avô
minha coleção de Nathaniel Hawthorne. Com isso, comecei a me aventurar pela
leitura de romances, de modo que, quando tinha dez anos, já havia lido toda a
obra de Victor Hugo (1802-1885), Charles Dickens e Mark Twain (1835-1910).
A ficção contém mais verdade que os fatos: quero dizer que, na grande obra de
44
DICKENS, Charles. A Child’s History of England. (Edited by David Starkey). New York:
HarperCollins, 2006.
45
HAWTHORNE, Nathaniel. The Whole History of Grandfather’s Chair: True Stories from New
England History. Buhl: Edgewater Books, 2007
46
RIDPATH, John Clarke. History of the World. New York : Merrill & Baker, 1897. 4v.
47
WELLS, H. G. História Universal. (Tradução de Anísio Teixeira). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1939-1942. 3v.
48
PLUTARCO. Op. cit.
49
BOSWELL, James. The Life of Samuel Johnson. London: Henry Baldwin, 1791.
50
LOCKHART, John Gibson. Memoirs of the Life of Sir Walter Scott. Edinburgh: Robert Cadell,
2nd Edition, 1839. 10v.
118 COMMUNIO • Russell Kirk

ficção, é possível obter a sabedoria destilada de homens de gênio, compreensões


da natureza humana que somente se poderiam alcançar, sem a ajuda de livros, ao
fim da vida, ao cabo de inúmeras experiências dolorosas. Iniciei a leitura de Sir
Walter Scott aos doze ou treze anos; e acredito que aprendi no romance Waverley51
e nas obras de William Shakespeare mais sobre as variedades do caráter humano
do que consegui absorver, desde então, dos manuais de psicologia.
Essa busca miscelânea no campo da ficção raramente causa danos. Quando
eu tinha onze ou doze anos, fui bastante influenciado pelo livro The Mysterious
Stranger [O estranho misterioso] de Mark Twain, um panfleto ateísta mal
disfarçado de romance sobre a Áustria medieval52. Esse livro não me transformou
num jovem ateu; mas me provocou a questionar as primeiras causas – após um
tempo, paradoxalmente, me levou a Dante, onde permaneci desde então. De
certa forma, o grande romance e o grande poema podem ensinar mais sobre as
normas do que a Filosofia e a Teologia.

IV - FILOSOFIA E TEOLOGIA
Para a coroação dos estudos literários normativos, voltamo-nos, ao redor da
idade de dezenove ou vinte anos, para a abstração e a generalização, refinadas pela lógica.
Simplesmente não é verdade, como disse William Wordsworth (1770-1850), que:
Um impulso de um bosque vernal
Pode ensinar-lhe mais do homem,
De mal e de bem moral,
Do que todos os sábios podem53.

Não é da natureza vegetal que se adquire conhecimento das paixões e


aspirações humanas. Ao contrário, há, nas frases de Ralph Waldo Emerson, a
lei para o homem e a lei para a coisa. A lei para o homem se aprende de Platão,
Aristóteles (384-322 a.C.), Sêneca (4 a.C.-65 A.D.), Marco Aurélio (121-180);
dos profetas hebreus, São Paulo, Santo Agostinho (354-430), e tantos outros
escritores cristãos. Nossa pequena racionalidade privada está fundada sobre a
sabedoria dos homens das eras passadas; e se nos aventurarmos a nos guiar
apenas por nossos limitados insights particulares, acabamos por cair no poço da
irracionalidade.
A verdade “científica”, ou o que popularmente se toma por verdade de
ciência, se altera com freqüência anual – o que vem-se acelerando em nossos dias.
51
SCOTT, Sir Walter. Waverley. London: Penguin, 1994.
52
TWAIN, Mark. O estranho misterioso. (Posfácio de Michel Sokoloff; tradução de Merle Scoss).
São Paulo: Axis Mundi, 1999.
53
“One impulse from a vernal wood / May teach you more of man, / Of moral evil and of good, / Than
all the sages can” (WORDSWORTH, William. “The Tables Turned”. In: The Collected Poems of
William Wordsworth. London: Wordsworth Editions Ltd., 1998. p. 573).
A IMAGINAÇÃO MORAL 119

Mas a verdade poética e moral pouco muda com a passagem dos séculos. Para o
que não se altera na existência humana, as belas letras são um ótimo guia.
O que venho tentando descrever, na precedente, e sumária análise é aquele
corpo literário que auxilia na formação da consciência normativa da geração
vindoura: isto é, na reanimação da imaginação moral. Aqui fui historiador e
clínico; não procurei oferecer-lhes remédios fáceis para a presente condição.
Se o público literário não tiver a imaginação moral, como tenho dito, então
cairá primeiramente na imaginação idílica; e logo, na imaginação diabólica – esta
última tornando-se um estado de narcose, literal e figurativamente. Pois somos
criados como seres morais; e quando negamos nossa própria natureza, nas letras e
na ação, os deuses das cartilhas se voltam contra nós, com fogo e assassínio. Atesto
a visão moral de homens como Aleksandr Solzhenitsyn (1918-2008); alguns têm
esboçado uma reação, na república das letras, contra a imaginação diabólica e o
regime diabólico. Um corpo humano que não reage é um cadáver; e um corpo
literário que não consegue reagir a ilusões narcóticas, seria melhor que fosse
enterrado. As virtudes teológicas poderão ainda encontrar resistentes campeões
nesses últimos anos do século XX: homens e mulheres que se lembram de que, no
princípio, era o Verbo.

Russell Kirk nasceu em 19 de outubro de 1918, na cidade de Plymouth, no estado


de Michigan, nos Estados Unidos. Cursou o B.A. em História na Michigan State
University, o M.A. em História, na Duke University e o Ph.D. em Letras, na
University of Saint Andrews, na Escócia. Foi professor da Michigan State University,
da University of Detroit, da Long Island University, Los Angeles State University,
Pepperdine University, Central Michigan University, Hillsdale College Indiana
University, University of Colorado e Grand Valley State University. Foi um dos mais
influentes intelectuais católicos do século XX. Fundou e foi editor das revistas Modern
Age e The University Bookman. Trabalhou como colunista sindicalizado, escrevendo
inúmeros artigos para diversos jornais nos Estados Unidos. Recebeu doze doutorados
honoris causa de renomadas universidades norte-americanas, além de ter sido o único
intelectual que já recebeu a Presidential Citizen’s Medal for Distinguished Service
to the United States. Foi presidente da Philadelphia Society. Escreveu vinte e nove
livros, dentre os quais se destacam: The Conservative Mind: From Burke to Eliot
(Regnery, 1953), Edmund Burke: A Genius Reconsidered (ISI, 1967), Eliot and
His Age: T. S. Eliot’s Moral Imagination in the Twentieth Century (Sherwood
Sugden, 1971), The Roots of American Order (Regnery, 1974) e The Politics of
Prudence (ISI, 1994). Faleceu na cidade de Mecosta, em Michigan, no dia 29 de
abril de 1994.
Dragão (1735-1739)
Escultura em madeira dourada de Francisco Xavier de Brito (1715-1751)
Igreja de São Francisco da Penitência, Rio de Janeiro, RJ
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 121
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 121-149

PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA*


Marek Oziewicz

I - INTRODUÇÃO

U m estudioso que queira se aprofundar nas obras de fantasia logo é levado,


como o cavaleiro da Cruz Vermelha** de Edmund Spenser (1552-1599),
a descer à cova do Erro e enfrentar o monstro da Confusão a respeito da
terminologia mais básica. A tarefa é desanimadora, pois a despeito das numerosas
tentativas no século passado de sistematizar esse campo, o monstro está bem vivo
e, para prosseguir com a analogia spenseriana – ele tem de derramar “diante de
sua infernal fossa / a fecunda desova de amaldiçoadas serpentes / monstros deformados,
alados e negros como tinta / que, fervilhantes, rastejavam por suas pernas / e na ferida
molestada [...]”1, frustrando, portanto, qualquer consenso de diálogo crítico que
dentro da comunidade acadêmica se possa alcançar. A categoria “fantástico” é
deplorada em praticamente todas as obras acadêmicas, o que resulta no fato de: 1)
cada autor seja obrigado a introduzir sua própria definição do termo fantasia e, 2)
dessa forma contribua ainda mais para a proliferação da selva terminológica. Gary
K. Wolfe, cuja obra Critical Terms for Science Fiction and Fantasy [Termos críticos
para ficção científica e fantasia] possui vinte e duas definições de fantasia e vinte e
*Artigo publicado, originalmente, em The Chesterton Review, Volume XXXI, Numbers 3 & 4 (Fall
/ Winter 2005): 69-94. Os direitos autorais, em língua portuguesa, foram gentilmente fornecidos
pelo editor, padre Ian Boyd, C.S.B., para o Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista
(CIEEP), que autorizou a publicação do mesmo nesta edição da Communio. Texto traduzido, do
original em inglês para o português, por Márcia Xavier de Brito.1
** N. do T.: The Faerie Queene [A bela rainha] é considerado um dos mais belos poemas da língua
inglesa e foi escrito em homenagem a Rainha Elizabeth I (1533-1603). O poema sugere que a
dinastia Tudor descende do Rei Arthur, porém muito da linguagem e estilo da obra tem por base
os poemas épicos italianos como Orlando furioso de Ludovico Ariosto (1474-1533) ou Jerusalém
libertada de Torquato Tasso (1544-1595). O poema é dividido em seis livros, cada um representando
uma virtude (Santidade, Temperança, Castidade, Amizade, Justiça e Cortesia) A narrativa alegórica,
no primeiro livro, segue a personagem, o Cavaleiro da Cruz Vermelha, em busca da santificação
cristã. Edmund Spenser explora as duas virtudes que crê as mais importantes na religião cristã:
a castidade e a santidade. O cavaleiro deseja unir-se a bela Uma, uma mulher que representa a
verdade, no entanto, ele não pode alcançá-la sem o conhecimento da verdade cristã. O cavaleiro
enfrenta problemas quando confunde a verdade com a falsidade, ao encontrar a personagem de
Duessa, outra bela mulher, cuja beleza é apenas uma máscara. Duessa trabalha para Arquimago,
um feiticeiro satânico que, repetidamente, tenta os cavaleiros para o caminho do mal, e os mata,
caso não consiga.
1
She poured forth out of her hellish sinke / Her fruitfull cursed spawne of serpents small, / Deformed
monsters, fowle, and blacke as inke, / Which swarming all about his legs did crall, / And him encombred
sore […]. (SPENSER, Edmund. The Faerie Queene. I,I,22).
122 COMMUNIO • Marek Oziewicz

quatro subgêneros fantásticos2, admite que “poucos ramos de estudo da literatura


moderna têm permitido tantos neologismos, definições especializadas, tentativas
de identificação de subgêneros e apropriações de outros léxicos acadêmicos como o
estudo da literatura fantástica”3.
Tão impiedosos quanto possam parecer, à primeira vista, esses
desdobramentos, eles também têm um lado positivo. Inegavelmente, eles
estimularam um debate acadêmico e popular sobre o gênero que teria sido
impossível entre os contemporâneos de George MacDonald (1824-1905) e
que seria um sonho difícil de acreditar para pioneiros no gênero como C.
S. Lewis (1898-1963) e J. R. R. Tolkien (1892-1973), cujas gerações foram
extremamente relutantes em considerar o fantástico como um assunto
respeitável para o estudo acadêmico. O aumento do valor crítico tributado
ao gênero – simbioticamente ligado ao florescimento dramático de cursos
de literatura fantástica nos colleges e nas universidades que estimularam o
interesse popular sobre a natureza e os antecedentes desse fenômeno literário
– também pode ter encorajado aos escritores de fantasia a produzir mais
romances. Com o número crescente de leitores aficionados, determinados
autores podem, agora, se “especializar” no fantástico e produzir sagas épicas
em muitas seqüências – atualmente, uma das características mais distintivas
do gênero. Embora possamos questionar a superabundância, com a inevitável
conseqüência de decréscimo na qualidade, ela é tão danosa quanto a escassez,
com a marginalização e exclusão do gênero do escrutínio acadêmico, como
no presente. Se pudesse escolher, ainda iria preferir a superabundância, pois
considerando que o desafio agora consiste em separar os textos originais e
valorosos do refugo das produções recicladas e de segunda classe, é claro que
a “especialização genérica” tem feito maravilhas no caso de diversos autores
cujas narrativas estão classificadas dentre as melhores produções literárias do
século XX. Não há, podemos ser tentados a dizer, ganho sem perda.
No contexto das considerações acima, o texto a seguir é um esboço da
tentativa de delinear os perímetros de uma das tradições centrais do fantástico
– o gênero da fantasia mitopoética – e, brevemente, apresentar sua história,
para sugerir a direção a que deve tender no futuro.

2
A própria definição de fantasia de Wolfe – ou a mais citada, a esse respeito – como “uma narrativa
ficcional que descreve eventos que o leitor acredita ser impossíveis” é, como ele mesmo reconhece,
é cercado de dificuldades como a ênfase na resposta do leitor em detrimento das características
estruturais e temáticas. Ele falha ao definir “impossibilidade”, um termo bastante vago, e não
especifica sua relação com gêneros tais como ficção científica, fábulas, contos de fadas, terror etc.
o que gera incerteza se deve ser tratado numa categoria ampla de narrativa, englobando todos os
subgêneros, ou se os subgêneros são, de fato, distintos.
3
WOLFE, Gary K. Critical Terms for Science Fiction and Fantasy: A Glossary and Guide to Scholarship.
New York / London: Greenwood Press, 1986. p. vii.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 123

II - RESUMO HISTÓRICO E PROBLEMAS DE DEFINIÇÃO


Na crítica contemporânea, a fantasia mitopoética é identificada com o
trabalho de autores como George MacDonald, G. K. Chesterton (1874-1936),
Charles Williams (1886-1945), William Morris (1834-1896), David Lindsay
(1876-1945), C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien, Madeleine L’Engle (1918-2007),
Susan Cooper, Charles De Lint e Lloyd Alexander (1924-2007). Embora a lista
não seja exaustiva, é de grande ajuda, pois limita a busca pelas características
do gênero em obras específicas. Desde o declínio das teorias normativas de
gênero, a forma mais prática de definir os gêneros modernos é começar com
a(s) obra(s) específicas ou autor(es) mais influentes, e buscar a repercussão. No
caso da fantasia, no entanto, Ann Swiften, Garry K. Wolfe, T. E. Apter, Brian
Attebery e a maioria dos teóricos concordam que a forma adotada mais difundida
de descrever um gênero é defini-lo negativamente, por aquilo que ele não é – um
método muito imperfeito à luz das exigências da retórica aristotélica ou clássica a
respeito dos princípios de definição4. A observação de Wolfe de que “as discussões
críticas a respeito do fantástico, muitas vezes, foram defesas primitivas do gênero”5,
nesse ponto, é sintomática. O termo-chave, “defesa”, de fato, explica a tendência
às definições negativas por parte de autores e críticos que, como amantes ou
praticantes do gênero, tinham de defendê-lo contra o assalto do establishment das
idéias literárias de gosto, critérios de avaliação e concepções de literatura. Mesmo
para lidar com esse aspecto da “recepção cultural” da fantasia é perigoso. Cobrir
todo o seu espectro parece impossível, bem como as considerações envolvidas,
aqui, levam a discussão para longe do tópico da definição – reduzido, agora, a
uma questão secundária, mas ainda pendente – num amplo campo de contextos
sócio-culturais em que a literatura interage com a cultura e a civilização, num
sentido mais amplo.
Num certo sentido, de fato, é mais fácil discutir qualquer coisa, exceto a
definição desse tipo específico de escrita cujos próprios autores têm permanecido
mudos e os críticos se tornado demasiado imprecisos e metafóricos. Já que muitos
autores mitopoéticos, também, produziram ensaios críticos, defesas, explicações,
análises técnicas e temáticas de seus próprios escritos, o esboço da reflexão teórica
a respeito do fantástico de Wolfe combina duas qualidades e estabelece certos
fatos relevantes para essa discussão. Um feito importante, que chama a atenção
do leitor, é seu glossário e a possibilidade de identificar duas grandes escolas de
4
Edward P. J. Corbett e Robert J. Connors, na obra Classical Rhetoric for the Modern Student
[Retórica clássica para o aluno moderno], na p. 37, definem três princípios essenciais a esse respeito:
a definição de termos deve ser clara e mais familiar do que o termo a ser definido; A definição não
deve repetir o termo a ser definido ou usar sinônimos ou termos derivativos; e a definição, sempre
que possível, deve ser enunciada de forma positiva, e não negativamente. Ver: CORBETT, Edward
P. J. & CONNORS, Robert J. Classical Rhetoric for the Modern Student. Oxford: Oxford University
Press, 1991.
5
WOLFE. Op. cit., p. xviii.
124 COMMUNIO • Marek Oziewicz

crítica ao gênero. Por um lado, críticos como E. M. Forster (1879-1970), Ann


Swinfen, Diana Waggoner, Eric S. Rabkin e Bruno Bettelheim (1903-1990),
bem como autores críticos como J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis, Charles Williams,
G. K. Chesterton, Madeleine L’Engle e Ursula LeGuin, para enumerar os mais
importantes, seguem a “tendência transcendental”. De diferentes formas, esses
autores defendem a fantasia como uma espécie de busca literária ou um modo de
levar em conta o sentido supremo da vida humana, um olhar para a transcendência
como o fundamento do Eu por intermédio e na imaginação criativa.
Outros críticos como Jack Zipes, Robert Ellwood, Rosemary Jackson, C.
N. Manlove, W. R. Irwin, Christine Brooke-Rose, Tzvetan Todorov, Stephen
Prickett e Brian Attebury, consideram a fantasia, em grande parte, à luz de
suas implicações sociais, políticas, retóricas, culturais, psicológicas e estruturais.
Essa divisão elementar, obviamente, simplifica um quadro que não é o de dois
campos que competem entre si, mas o de todo um espectro de abordagens
individuais que, em alguns aspectos, se sobrepõem umas às outras e, em outros,
divergem. No entanto, essa divisão é mais útil nas discussões a respeito de fantasia
mitopoética do que as que tratam da similaridade dos gêneros6 porque reflete
certas posturas, preocupações e conjecturas (sobre o ser humano e o mundo),
bem como, as prioridades que delas resultam e que são manifestas na obra desses
autores e nos tributos dos críticos do gênero. Uma das conseqüências é que os
membros da primeira “escola” sempre, veementemente, se opuseram à conclusão
de que o fantástico é, em última análise, uma diversão baseada na inteligência
viva, na brincadeira e na fantasia, e que isso não tem espaço nas principais
correntes tradicionais do pensamento humano ou da literatura. Ao contrário,
eles sempre o relacionam com a antiga tradição da sophia perennis [sabedoria
perene], interrompida e em decadência na cultura ocidental, ao menos desde o
Iluminismo, mas, não obstante central para nossa herança cultural, no mínimo
desde o tempo da grande literatura da Grécia antiga (século V a.C.) e, como
alguns podem argumentar, a caminho de se tornar novamente central por meio
da fantasia mitopoética, dentre outras, na segunda parte do século XX.
Outra implicação interessante da visão de Wolfe é que quando a
mitopoética e outros tipos de fantasia começam a surgir na segunda metade do
século XIX, chegam à cena, disfarçadas como algo a mais e como um fenômeno
inominado. Na opinião de Wolfe os três disfarces mais comuns foram: a literatura
infantil, a ficção pseudo-histórica e as estórias pseudo-medievais7. As designações
errôneas eram a regra; em reação, houve a tentativa dos mitopoetas pioneiros

6
Nos gêneros de Diana Waggoner relacionados à fantasia e agrupados por ela sob o mesmo título
de “literatura especulativa” estão: a alegoria, a sátira, a utopia, as viagens imaginárias, as estórias de
viajantes, as estórias de fantasmas, os contos de fadas de Perrault, os Kunstmärchen, os contos orientais,
as estórias oníricas, os romances góticos, as estórias de horror ou ficção científica. Ver: WAGGONER,
Diana. The Hills of Faraway: A Guide to Fantasy. New York: Atheneum, 1978. pp. 8-9.
7
WOLFE. Op. cit., p. xviii.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 125

de especificar o cerne do gênero contra todas as possíveis variantes. Quando seu


trabalho foi, por falta de termo melhor, chamado de alegoria, George MacDonald
tentou esclarecer a questão num ensaio chamado “The Fantastic Imagination” [A
imaginação fantástica] de 1893, onde argumentava que o que escrevia não eram
alegorias, mas produtos de uma faculdade mais elevada da imaginação. Wolfe vê
a argumentação de MacDonald como típica de um pastor escocês e influenciado
somente pelas duas críticas, então, disponíveis: de um lado, a distinção de
William Blake (1757-1827) entre imaginação alegórica e imaginação visionária,
e, por outro, a distinção de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) entre fantasia
e imaginação.
O ponto mais importante de MacDonald, no entanto, foi o de afirmar
que a literatura que escreveu tinha sido inspirada por uma percepção intuitiva
do universo e tinha produzido, em suas próprias palavras, “novas personificações
de velhas verdades”8. Dentre essas afirmações centrais estava a de que o universo
físico dá as leis morais e de que “as leis do espírito do homem devem se manter
iguais nesse mundo ou em qualquer mundo que possa inventar”9. Outro autor que
insistia no núcleo profundamente transcendental da fantasia e, portanto, na sua
seriedade, era G. K. Chesterton, que na obra Ortodoxia de 1908, dedica um
capítulo a “Ética da terra dos Elfos”. Aí, o referido autor definiu os contos de
fadas – e implicitamente todas as narrativas “míticas” e fantásticas – como estórias
que confirmam o leitor na convicção de que o universo é governado por ações
humanas e escolhas morais em vez de frias forças mecanicistas10.
Essas convicções, centrais para a fantasia mitopoética, e um tanto
relacionada aos seus subgêneros, foram reconhecidas como parte constituinte de
uma vasta classe da ficção moderna com a obra de 1927 de E. M. Forster, Aspects
of the Novel [Aspectos do romance], que inclui um capítulo chamado “Fantastic-
prophetical axis” [O eixo fantástico-profético] da ficção. A definição de Forster
dessa categoria, almejava englobar as obras de MacDonald, Chesterton, Oscar
Wilde (1854-1900), William Morris e vários outros, parece ser o primeiro rótulo
preciso da fantasia mitopoética, que, de fato: 1) emprega um tempo mítico; 2)
infere uma presença palpável do mundo sobrenatural; e 3) está conectada a fontes
8
SANDNER, David. Fantastic Literature: A Critical Reader. Westport / London: Praeger, 2004. p. 65.
9
Idem. Ibidem., p. 66. Wolfe explica o poder do gênero emergente contra as noções culturais
dominantes da época por afirmar que, dentre outros, aos olhos do público do século XIX, a
divina providência e o governo moral do universo, tão problemáticos para serem demonstrados
na realidade primária, “podiam ser seguramente reabilitados no contexto da narrativa fantástica”. Ver:
WOLFE. Op. cit., p. xix.
10
WOLFE. Op. cit., p. xix. Ver também: CHESTERTON, G. K. Orthodoxy In: Collected Works
– Volume I: Heretics, Orthodoxy, The Blatchford Controversies. San Francisco: Ignatius Press, 1986.
[N. do T.: Em língua portuguesa, há duas edições disponíveis da obra: CHESTERTON, G. K.
Ortodoxia. (Apresentação, notas e anexo de Ives Gandra da Silva Martins Filho; tradução de Cláudia
Albuquerque Tavares). São Paulo: Editora LTr, 2001. pp. 67-90; CHESTERTON, G. K. Ortodoxia.
(Tradução de Almiro Pisetta). São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2008. pp.77-108].
126 COMMUNIO • Marek Oziewicz

místicas, em que “re-trabalha” ou adapta seu material. Com isso, Wolfe é positivo
ao afirmar que “muito do conhecimento acadêmico do fantástico deriva de um único
ensaio de J. R. R. Tolkien” [...] “que destacou uma série de conceitos que desde então
se tornaram importantes na teoria fantástica”11. Embora o ensaio de Tolkien seja,
de fato, momentoso, penso que não seria inteligente desconsiderar o que C. S.
Lewis escreveu sobre o assunto, já que tanto como teórico quanto como escritor,
ele colaborou para a compreensão moderna da fantasia mitopoética num alcance
tal que Diana Waggoner o reconhece como um dos grandes gigantes do gênero12.
Não obstante os próprios feitos como escritores de fantasia, tanto
Lewis quanto Tolkien ainda estavam buscando em vão pelo rótulo correto
para caracterizar os seus escritos e explicar, nos mínimos detalhes, os traços
essenciais. Podemos julgar a enorme dificuldade desses autores pelo predomínio
das intenções dos criadores sobre os marcos estruturais compostos nas definições
que propuseram. Embora marcos estruturais sejam muito mais fáceis de discutir
na arte literária, que é uma construção propositada de significado sobre um
fundamento estético, a intenção dos criadores era, apesar da baixa estima da
crítica pós-moderna, primariamente, a estrutura13. O termo inadequado de
Tolkien, “Histórias de fadas” nunca vingou, embora ainda viva no título de
seu ensaio seminal de 193914. O nome que Lewis deu ao gênero, que em 1952
chamou de “fantasia ou (numa acepção ampla do termo) conto de fadas”15 era
melhor, mas do ponto de vista contemporâneo ainda é muito geral. A fantasia
se tornou uma categoria de alcances oceânicos. Apesar da aparente diferença
terminológica, as definições de Lewis e Tolkien do gênero são, essencialmente,
as mesmas, no que diz respeito ao número de intenções centrais dos criadores
e da projeção das mesmas linhas “transcendentais”. O ensaio de Tolkien “On
Fairy Stories” [Sobre histórias de fadas] correlaciona, explicitamente, a categoria
específica da fantasia que chama história de fadas com um “efeito mítico ou total
(não analisável)”16 e propõe uma definição de gênero por meio da descrição
ampliada de cinco características.
11
WOLFE. Op. cit. p. xix.
12
WAGGONER. Op.cit. pp. 34-35.
13
No ensaio “Intention” [Intenção], Annabel Patterson reconhece que apesar dos muitos problemas
envolvidos no tão debatido relacionamento entre intenção e interpretação, os textos podem revelar
certas intenções que não estão ligadas às circunstâncias de seu começo / criação, mas “são princípios
capazes de se estender a posteriores desenvolvimentos [...] cuja ocorrência não poderia ter sido prevista
naquela ocasião”. Ver: PATTERSON, Annabel, “Intention”. In: Critical Terms for Literary Study
(Organized by Frank Lentricchia and Thomas McLaughlin). University of Chicago Press, 1995.
14
TOLKIEN, J. R. R. “On fairy stories”. In: Tree and Leaf. (Edited by Christopher Tolkien).
London: Graffon, 1992. [N.do T.: Em português ver: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas.
(Tradução Ronald Kyrmse). São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2006].
15
LEWIS, C. S. “On Three Ways to Write for Children”. In: Of This and Other Worlds. (Edited by
Walter Hooper). London: Collins, 1982. p. 58.
16
TOLKIEN. Op.cit., p. 32 [N. do T.: Em português, p. 38].
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 127

A primeira característica é a verdade dessas estórias, no sentido de que são


pensadas seriamente e “não se ocupavam, em primeiro plano, da possibilidade, mas
sim da desejabilidade”17. Elas também oferecem quatro funções psicológicas ao
leitor que Tolkien chama de fantasia, recuperação, escape e consolo. Cada uma
dessas funções reflete a visão de mundo cristã de forma mais explícita do que em
seus romances e contos. A fantasia, diz ele, é uma expressão natural do espírito
humano porque somos imagens de um criador que é criativo18. A recuperação,
bem romântica na origem, é a recuperação do frescor paradisíaco da percepção
que nos faz cientes de quão maravilhoso é o Deus criador do mundo. O escape é
baseado no reconhecimento de Tolkien da crueza e feiúra da vida pós-expulsão do
Paraíso – a degeneração da moderna sociedade européia que mata a sede humana
pela beleza e trazendo pobres substitutos – o que torna natural que os seres
humanos anseiem por um retorno à condição original e pretendida no Paraíso.
Sob o título de escape, Tolkien discute quanto as míticas estórias imaginativas
alimentam os sonhos humanos primordiais de liberdade das limitações de nossa
natureza física; de conversas com os animais, de descida às profundezas do mar,
de voar como pássaros , de sentir-se em unidade com toda a criação e – por fim –
com o sonho de fugir da morte, que Tolkien identifica como “o desejo mais antigo
e profundo”19. Por último, a consolação é uma forma especificamente intensa,
improvável, mas miraculosamente verdadeira de nos livrar do mal, na forma de
um final feliz que Tolkien chama de eucatástrofe. “Nunca se pode confiar que ocorra
outra vez [...] Ela (a eucatástrofe) nega (em face das muitas evidências, por assim
dizer) a derrota final universal, e nessa medida é evangelium, dando um vislumbre
fugaz da Alegria, Alegria além das muralhas do mundo, pungente como o pesar”20.
Tolkien é muito mais explícito a respeito da perspectiva cristã no epílogo,
onde se centra mais na natureza da alegria eucatastrófica e a ilustra com a estória
cristã do nascimento e ressurreição de Cristo. O primeiro, explica, é a eucatástrofe
da história do Homem e o último – da história da Encarnação21. A alegria dessa
eucatástrofe é o Glória cristão, que tem “o próprio sabor da verdade primária”22.
Dessa forma, Tolkien afirma que “na Fantasia ele [o cristão] poderá de fato
auxiliar o desfolhamento e o múltiplo enriquecimento da criação”23. Escrever contos
17
Idem. Ibidem., p. 39 [em português, p. 47]. Outra escritora mitopoética, Ursula LeGuin, expõe
o mesmo ponto de vista em “Why are Americans Afraid of Dragons?” [Por que os americanos
têm medo de dragões?] ao dizer sucintamente “a fantasia é verdade, claro. Ela não é factual, mas é
verdadeira” (LeGUIN, Ursula. “Why are Americans Afraid of Dragons?” In: The Language of the
Night: Essays on Fantasy and Science Fiction. New York: G. P. Putnam’s Sons, 1979).
18
TOLKIEN. Op.cit. p. 52 [N. do T.: Em português, p. 63].
19
Idem. Ibidem., p. 61 [N. do T.: Em português, ver: TOLKIEN. Sobre histórias de fadas. p. 76].
20
Idem. Ibidem., p. 62 [N. do T.: Em português, ver: TOLKIEN. Sobre histórias de fadas. p. 77].
21
Idem. Ibidem., p. 65 [N. do T.: Em português, ver: TOLKIEN. Sobre histórias de fadas. p. 80].
22
Idem. Ibidem., p. 65 [N. do T.: Em português, ver: TOLKIEN. Sobre histórias de fadas. p. 81].
23
Idem. Ibidem., p. 66 [N. do T.: Em português, ver: TOLKIEN. Sobre histórias de fadas. p. 81].
128 COMMUNIO • Marek Oziewicz

de fadas desse tipo supremo é, portanto, para Tolkien, a própria participação


humana na grande e eterna batalha entre a luz e as trevas. A teoria da fantasia que
Lewis produziu, talvez, seja menos impressionante, em grande parte porque ele
concordava plenamente com o que Tolkien dissera sobre o assunto e não sentia
necessidade de formular os mesmos princípios com suas palavras24. Outro motivo
pode ser ele tender mais para o lado da apologética cristã do que para a defesa da
fantasia. O resultado é que ele se limitou a vários comentários sobre a natureza do
gênero específico que Tolkien queria definir, buscando em vão os termos, também
Lewis o chamou de “fantasia ou (numa acepção ampla do termo) conto de fadas”. –
ao longo de muitos ensaios. Como no caso de Tolkien, todos esses comentários
refletem a visão de mundo de Lewis de um “cristianismo puro e simples”.
No ensaio “Sometimes Fairy Stories May Say Best What’s to Be Said”
[Às vezes os contos de fadas podem dizer melhor o que tem de ser dito]. Lewis
insiste que a fantasia é um meio poderoso para um novo despertar e para o
enriquecimento genuíno de nossas vidas. Ele também defende sua universalidade
e a alegação de que “o fantástico ou o mítico é um modo à disposição de alguns
leitores, em todas as épocas; para outros, em nenhuma época”25sugere que a atração da
fantasia não é contingente à idade, mas depende se a pessoa tem a mente aberta
para o alimento espiritual ou se nega a realidade da dimensão espiritual. Que esse
gênero é uma grande ferramenta para aprender sobre os outros, bem como sobre
nós mesmos, ele deixa claro no ensaio “Três maneiras de escrever para crianças”.
Lewis insiste em dizer que, ao alimentar a imaginação, a fantasia dá, tanto às
crianças quanto aos adultos, uma impressão mais verdadeira do mundo real do
que a mais “realista” das literaturas26. É escapista de uma maneira positiva como
askesis, um exercício espiritual, que por suas experiências imaginativas de violência
e dor prepara os leitores para enfrentar os verdadeiros perigos da vida real, tais
como a morte, a violência, as feridas, a covardia e o mal. Lewis também sublinha
que a fantasia é, essencialmente, tingida de significado moral e de potencial para
mudar a vida. Na introdução que escreveu para a obra de George MacDonald,
Phantastes [Fantasmas], ao chamar a arte mitopoética de genialidade, dom ou
talento que não pode ser encerrado nos confins de uma única disciplina, Lewis
vai tão além que chega a afirmar que ela:
Pode até ser uma das maiores artes, pois produz obras que nos dão (no primeiro
contato) tanto prazer e (ao nos familiarizarmos) tanta sabedoria e força quanto
as obras dos grandes poetas. [...] Ela [a arte mitopoética] vai além da expressão
das coisas que já sentimos. Suscita-nos sensações que nunca sentíramos antes,
24
No ensaio “Três maneiras de escrever para crianças”, Lewis afirma que as teorias de Tolkien e
de Jung são as duas explicações mais importantes a respeito da natureza do apelo dos mitos e da
literatura mitopoética. Ver: LEWIS. Op.cit. p. 61 e seguintes.
25
LEWIS, C. S. “Sometimes Fairy Stories May Say Best What’s to Be Said”. In: Of This and Other
Worlds. (Edited by Walter Hooper). London: Collins, 1982. p. 74.
26
LEWIS, C. S. “On Three Ways to Write for Children”. In: Of This and Other Worlds. (Edited by
Walter Hooper). London: Collins, 1982. pp. 64-65.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 129

nunca havíamos pensado em tê-las, como se tivéssemos saído de nosso modo de


consciência normal e “possuíssemos alegrias nunca prometidas ao nascer”. Isso se
entranha na pele, nos toca num nível mais profundo do que os pensamentos ou
mesmo as paixões, perturba as antigas certezas até que todas as questões estejam
reabertas, e, em geral, abala e nos deixa mais plenamente despertos do que na
maior parte de nossas vidas27.

Assim, as afirmações fundamentais que Lewis e Tolkien fizeram a respeito


do que é definido pelo presente estudo como fantasia mitopoética foram,
primeiramente, as de que é uma experiência profundamente espiritual, uma
literatura holística, que alimenta a alma e lida com a realidade do coração, em
vez de lidar com a realidade da mente, e cria um mundo secundário onde tudo
é tingido de um sentido moral. Esse sentido moral, por sua vez, e o fato do
universo ser visto como uma arena da eterna luta entre o bem e o mal, faz originar
nesses autores a hipótese de que Deus, o transcendente, existe. Embora Tolkien
e Lewis fossem cristãos praticantes, as implicações de suas perspectivas teístas
transcendem os confins de qualquer religião particular e atraem, tanto cristãos
quanto não cristãos, especialmente pela aprovação de uma vida fundamentada em
valores tendentes à, e certamente necessários para, o pleno desfrute espiritual do
mundo e da vida humana. Provavelmente, a expressão mais sucinta dessa postura,
e que de modo explícito rejeita o materialismo, pode ser encontrada num poema
chamado “Mythopoeia” escrito por Tolkien, em 1931, como resposta poética a
Lewis, após a memorável discussão sobre o valor dos mitos como condutores
da verdade que se origina em Deus e, embora de forma distorcida, informa a
humanidade a Seu respeito:
Não seguirei seus símios progressivos,
eretos e sapientes. Caem vivos
nesse abismo ao qual seu progresso tende –
se por Deus o progresso um dia se emende
e não sem cessar revolva o batido
curso sem fruto com outro apelido28.

O segundo postulado, igualmente crucial de Lewis e Tolkien era de que a


fantasia, em especial o seu mundo secundário, tinha de ser construído de forma
tal que fosse totalmente crível segundo um critério realístico. Para alcançar essa
credibilidade ao expressar verdades do mundo interior, isso deveria empregar
27
LEWIS, C. S. “Introduction”. In: MACDONALD, George. Phantastes. Grand Rapids: Wm. B.
Eerdmans Publishing Co., 2000. pp. x-xi.
28
I will not walk with your progressive apes, / erect and sapient. Before them gapes / the dark abyss to
which their progress tends – / if by God’s mercy progress ever ends, / and does not ceaselessly revolve the
same / unfruitful course with changing of a name. (TOLKIEN. J. R. R. “Mythopoeia”. In: Tree and
Leaf. p. 100). [N. do T.: A presente tradução do poema foi feita pelo autor do seguinte trabalho:
LOPES, José Reinaldo. A árvore das estórias: Uma proposta de tradução para Tree and Leaf de J.
R. R. Tolkien. (Dissertação de mestrado orientada por Lenita Maria Rimoli Esteves). São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2006. p. 160].
130 COMMUNIO • Marek Oziewicz

os poderes regenerativos do mito e do processo de criação de mitos29. Embora


não usassem o termo, fica claro pelos inúmeros comentários que a verdadeira
fantasia mitopoética, já que seu componente indispensável é uma variedade de
materiais míticos artisticamente re-imaginados – isto é, arquétipos, estruturas de
enredo, personagens, acontecimentos, motivos etc. – derivaram tanto das antigas
mitologias clássicas bem como dos mitos contemporâneos produzidos por nossa
civilização e difusamente presentes nas nossas vidas cotidianas. Tolkien, e depois
Lewis, partilhavam a convicção de que a humanidade não pode existir sem os
“mitos”, estes compreendidos como narrativas culturalmente moldadas do que
é ser humano, ser feliz, viver no mundo, participar de um sistema de valores
e imaginar um futuro para si e para toda a raça humana. Assim como Roland
Barthes (1915-1980), cuja obra altamente influente Mythologies [Mitologias], de
1957, escolheu uma série de mitos modernos inquestionáveis em nossa cultura,
e por analogia, analisou o papel dos mitos em várias sociedades pré-modernas,
os autores viam que a morte de um mito antigo está sempre acompanhada pela
ascensão de outros que preenchem o quadro. Por terem testemunhado a devastação
de duas guerras mundiais e a industrialização desenfreada criada nas sociedades
modernas pelo racionalismo dogmático, pressentiam que a necessidade humana
dos mitos não podia ser suprimida ou eliminada na forma que postulavam os
seguidores de Max Müller30. No entanto, ela podia ser satisfeita com novos mitos,
tais como o do progresso, do ocidentalismo (ciência atéia), da eterna juventude,
do holocausto nuclear, da conquista do espaço ou da infalibilidade da ciência.
Vários gigantes intelectuais do século XX, como Joseph Campbell (1904-
1987), Mircea Eliade (1907-1986), Carl Jung (1875-1961), e James Hillman
insistem na mesma nota. Eles, também, estão cientes de que a qualidade do
mito que adotamos – especialmente se ele desperta e alimenta os potenciais
humanos mais elevados ou os imita ao projetar um senso de completude sobre
as obras mecanicistas e materiais – reflete não somente sobre a qualidade de vida
individual, mas também sobre a de toda a civilização. Para aqueles cujos “mitos
de rígida racionalidade” negavam qualquer valor à literatura imaginativa. Tolkien
e outros defensores da mitopoética responderam que escolheram um caminho
que é “poeirento e plano”. A mitologização, disse Tolkien, é a forma humana
29
Embora a importância crítica das estórias na vida humana seja, agora, afirmada por muitos
estudiosos contemporâneos, essa afirmação era vista como “não acadêmica” e envolvia considerável
desconforto quando foi primeiramente feita por Tolkien, em 1938, no ensaio “On Fairy Strories”
[Sobre histórias de fadas] e, em 1940, por C.S. Lewis no ensaio “On Stories” [Sobre estórias].
Ambos foram publicados, significativamente, na mesma coletânea Essays Presented to Charles
Williams, em 1947.
30
Se os mitos eram uma doença da linguagem, então a religião também seria. Max Müller não estava
só entre os intelectuais do século XIX ao afirmar que a religião constitui um estágio rudimentar do
desenvolvimento da humanidade e ao insistir que as “projeções de religião” são coisas do passado
a serem observadas nas culturas primitivas, especialmente aquelas de “desenvolvimento cultural
suspenso”. Tais pessoas, diriam Tolkien e Lewis, não compreenderam o que é a religião e qual o
papel da transcendência e da necessidade de transcendência na vida humana.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 131

mais fundamental de interagir e de dar sentido ao mundo. “Mas “árv’res” só são


“árv’res” nomeadas – / e só o foram quando captadas”31 e, mais adiante afirma: “Não
há um firmamento, / só vazio, se não tenda, paramento / por elfos desenhado; não
há terra, / se não ventre de mãe que a vida encerra”32. Também Lewis, inicialmente
cético a respeito dos mitos, que considerava “mentiras bafejadas através da prata”,
começou a apreciar seu valor, não somente como categorias cognitivas ou estéticas,
mas, mormente como um fator enriquecedor da vida humana. “O valor do mito é
tomar todas as coisas que conhecemos e lhes restaurar o rico significado oculto pelo ‘véu
da familiaridade’”. Ainda nesse ensaio sobre O Senhor dos Anéis, Lewis comentava:
[...] Ao colocar pão, ouro, cavalos, maçãs ou as próprias estradas no mito não
saímos da realidade, nós a redescobrimos. Enquanto a estória persistir na memória,
as coisas reais são mais do que elas mesmas. Isso [...] se aplica [...] não somente ao
pão ou às maçãs, mas ao bem e ao mal, aos perigos sem fim, às angústias e alegrias.
Ao mergulhá-las no mito, as vemos mais claramente33.

Tais palavras foram escritas em 1955, um ano antes da publicação de


Anatomy of Cristicism [Anatomia da crítica]34 de Northrop Frye (1912-1991), em
que o crítico canadense tenta redescobrir o conteúdo da literatura pela referência
à imagética arquetípica, e, especificamente, ao tratar a literatura como uma
mitologia “deslocada” com os trabalhos individuais mais bem compreendidos nos
corretos contextos míticos. As similaridades nos rumos do pensamento de Lewis
e Frye – especialmente sobre o valor culturalmente restaurador do mito – são
tão tocantes quanto as similaridades entre as hipóteses formuladas pelos autores
mitopoéticos e os críticos dos mitos.
Central a tais conjecturas era a certeza de que a fantasia mitopoética
endereçava necessidades humanas vitais, psicológicas, culturais e estéticas,
desconsideradas pela maior parte das outras literaturas contemporâneas. Frye
demonstrou que a mudança paradigmática do centro de gravidade da literatura
ocidental ao longo dos dois últimos séculos foi um movimento constante,
poderíamos dizer um declínio, de uma literatura mais ambiciosa, inspirada, séria,
holística, que afirmava a dignidade humana, alimentava a alma e preocupada com
o que realmente importa na vida humana em direção a literatura mais, “realista”,
31
“Yet trees are not trees until so named and seen” (TOLKIEN. J. R. R. “Mythopoeia”. In: Tree and
Leaf. p. 98). [N. do T.: A presente tradução do poema foi feita pelo autor do seguinte trabalho:
LOPES. Op. cit., p. 154].
32
“There’s no firmament, / only a void, unless a jeweled tent / myth-woven and elf-patterned; and no
earth, / unless a mother’s womb whence all have birth” (TOLKIEN. J. R. R. “Mythopoeia”. In: Tree
and Leaf. p. 98). [N. do T.: A presente tradução do poema foi feita pelo autor do seguinte trabalho:
LOPES. Op. cit., p. 156].
33
LEWIS, C. S. “Tolkien’s Lord of the Rings”. In: Of This and Other Worlds. (Edited by Walter
Hooper).London: Collins, 1982. p. .
34
FRYE, H. Northrop. Anatomy of Cristicism. New Jersey: Princeton University Press, 1973. [N.do
T.: No Brasil, a obra pode ser encontrada na seguinte edição: FRYE, H. Northrop. Anatomia da
Crítica. São Paulo: Cultrix, 1973].
132 COMMUNIO • Marek Oziewicz

mais centrada na racionalidade, cada vez mais dominada por interesses comerciais,
incapaz de formular, que dirá responder, as perguntas sobre o valor último da vida
humana. Na taxonomia de Frye, a maior parte da literatura inglesa contemporânea é
“irônica no método”35 , e por isso quer dizer que ela atrai o trágico sentido de perda dos
leitores modernos ao encorajá-los a prestar atenção a “cenas de servidão, frustração ou
de absurdos”36. Isso, por sua vez, tem como propósito fazê-los se sentirem superiores
ao protagonista e lhes permite esquecer, por um momento, quão famintas estão
suas almas. Lewis, Tolkien e muitos outros escritores de fantasia, creio, veriam a
avaliação de Frye como correta, ao menos, quanto à literatura moderna, que de fato,
parece-lhes incapaz de suportar as faculdades mais altas do humano.
De modo geral, a proliferação de obras fantásticas desde a década de 1950
até os anos de 1980 coincidiu e fez parte de uma corrente maior de inúmeros
críticos e de tentativas filosóficas cuja finalidade era reavaliar o papel do mito na
cultura moderna. Embora a reflexão sobre o mito encontrada nas obras de Ernst
Cassirer (1874-1945), Lucien Lévi-Bruhl (1857-1939), Émile Durkheim (1858-
1917), Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes e outros estivessem carregadas de
premissas ou disciplinas diversas das de Tolkien e Lewis, esses autores influenciaram
o valor crítico tributado ao gênero e suas relações com o mito de muitas formas
óbvias e sutis. Visto que uma análise abrangente do assunto está além do alcance
do presente artigo, devemos destacar dois efeitos colaterais importantes de tais
obras. O primeiro é a legitimação final da escola “transcendental” de crítica do
fantástico mencionada por Wolfe, segundo a qual ele é visto como uma reação ao
empobrecimento espiritual e imaginativo do homem moderno. O segundo efeito é
o endosso ao método literário mais eficaz na criação da estrutura da estória pelo uso
de reconfigurações artísticas dos elementos míticos ou arquetípicos.
Ambas as idéias – o reconhecimento da crise e a esperança de renovação
retirada das estórias míticas – estavam no ar, no início dos anos 1970, que
assistiu uma incipiente atenção à mudança de consciência global. Obras como
The Structure of Scientific Revolutions [A estrutura das revoluções científicas]37
de Thomas Kuhn (1922-1996), The Spectrum of Consciousness [O espectro da
consciência]38 de Ken Wilber e The Tao of Physics [O Tao da física]39 de Fritjof
35
Idem. Ibidem., p. 35.
36
Idem. Ibidem., p. 34.
37
KUHN, Thomas. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1977.
[N. do T.: Em português, ver a seguinte edição: KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas.
(Tradução de Beatriz Viana Boeira e Nelson Boeira). São Paulo: Perspectiva, 9ª Edição, 2009].
38
WILBER, Ken. The Spectrum of Consciousness. Wheaton: Quest Books, 1977. [N. do T.: Em
português, ver a seguinte edição: WILBER, Ken. O espectro da consciência. (Tradução de Octávio
Mendes Cajado). São Paulo: Cultrix, 10ª Edição, 1995].
39
CAPRA, Fritjof. The Tao of Physics: An Exploration of the Parallels Between Modern Physics and
Eastern Mysticism. Boston: Shambhala Publications, 1991. [N. do T.: Em português, ver a seguinte
edição: CAPRA, Fritjof. O Tao da Física: Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental.
(Tradução de José Fernandes Dias). São Paulo: Cultrix, 2ª Edição, 1983].
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 133

Capra testemunhavam que nossa cultura e ciência estavam remodelando os


antigos paradigmas locais rumo a um paradigma mais universal, mais de acordo
com as necessidades de um mundo moderno cada vez mais unificado. Já em
1974, Chad Walsh (1914-1991) afirmava que “uma verdadeira mudança de
consciência está acontecendo diante de nossos olhos confusos” e que certas obras de
literatura representam “subprodutos visíveis dessa mudança”40. Walsh chamou essa
transformação fundamental no modo de perceber a vida de “raridade histórica”
e a inscreveu entre sete elementos característicos41.
As implicações da mudança moderna na consciência foram explicadas
nos mínimos detalhes num contexto mais amplo na obra de Joseph Campbell
The Inner Reaches of Outer Space: Metaphor as Myth and as Religion [A extensão
interior do espaço exterior: A metáfora como mito e religião]42. No seu último
livro, Campbell identificou a mitologia, antiga e moderna, como metafórica
da postura psicológica de uma civilização e a localizou na “estrutura sociológica
coordenada a tal postura [...chamada] mônada cultural”43. Embora o papel
dessas “mônadas nucleares”, continua, seja investir na cultura com um sentido
espiritual, o predicamento moderno é o do vácuo. Campbell afirma que “não há
mais horizontes monádicos intactos; todos estão se dissolvendo” e que “certamente,
parece que uma transformação fundamental das condições históricas [do mundo] e
da humanidade que o habita estão em perspectiva”44. Isso envolve uma necessidade
urgente por “construir” uma nova mitologia adequada à situação moderna. Essa
nova mitologia, “que rapidamente está se tornando uma necessidade social, bem como

40
WALSH, Chad. “Charles William’s Novels and the Contemporary Mutation of Consciousness”. In:
Myth, Allegory and Gospel: An Interpretation of J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis, G.K. Chesterton and Charles
Williams. (Edited by John Warwick Montgomery). Minneapolis: Bethany Fellowship, 1974.
41
As características enumeradas por Chad Walsh se realizam na fantasia mitopoética. O âmbito
deste artigo é bastante limitado, no entanto, para explorar as obras específicas para demonstrar essa
hipótese. Walsh enumera as seguintes qualidades: 1) Uma reviravolta contra o tamanho excessivo da
super-organização, que ele chama de “novo personalismo”; 2) uma rejeição do código de ética e a sua
substituição por uma ética situacional, que estabelece um princípio básico, normalmente, o amor
como medida de julgamento da ação humana; 3) uma oposição à tirania do cérebro e às operações
de lógica formal que chama de “nova sensibilidade”; 4) uma mudança repentina e violenta contra a
tirania do tempo; 5) uma indiferença quase completa às formas organizadas de religião, conjugada
com uma intensa busca religiosa ou proto-religiosa; 6) um interesse intenso e ávido pelos povos e
culturas que, de uma forma ou de outra tenham fugido totalmente ao domínio do modo de vida
ocidental; 7) uma radical reavaliação do trabalho ético com base na convicção de que a vida é ‘ser’
em vez de ‘fazer’, que se manifesta na busca por um trabalho que seja inerentemente significante.
Ver: WALSH. Op. cit. pp. 59-62.
42
CAMPBELL, Joseph. The Inner Reaches of Outer Space: Metaphor as Myth and as Religion. New
York: Harper & Row, 1986. [N. do T.: Em português, ver: CAMPBELL, Joseph. A extensão interior
do espaço exterior: A metáfora como mito e religião. (Tradução de Waltensir Dutra). Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1991].
43
Idem. Ibidem., p. xiv.
44
Idem. Ibidem., p. xix.
134 COMMUNIO • Marek Oziewicz

espiritual”45, segundo a hipótese de Campbell, será a de toda a raça humana,


relevante ao nosso conhecimento presente, já está implícita dentre os homens
como conhecimento a priori, é natural à razão e será compreendida na e por
intermédio da arte.
A crítica literária também foi afetada. Em 1976, a estrutura quadripartite de
resposta ao leitor de Tolkien foi utilizada por Bruno Bettelheim no livro The Uses
of Enchantment [Os usos do encantamento (título em português: A psicanálise
dos contos de fadas)]46. O livro de Eric S. Rabkin, The Fantastic in Literature [O
fantástico na Literatura]47, publicado no mesmo ano, afirmava que os gêneros
fantásticos deveriam constituir, coletivamente, um modo básico de conhecimento
humano. O livro de Diana Waggoner, The Hills of Faraway: A Guide to Fantasy [As
colinas do longínquo: Um guia do fantástico], pela primeira vez propunha uma
classificação consistente para os gêneros fantásticos e reconhecia a importância do
componente mitopoético. Dois livros posteriores e importantes foram Fantasy:
The Literature of Subversion [Fantasia: a literatura de subversão]48 de Rosemary
Jackson, publicado pela primeira vez em 1981, que, embora estivesse em grande
parte preocupado com a estrutura de gênero a partir do modelo todoroviano, não
obstante, admitiu que “a fantasia é uma forma historicamente determinada que
expressa as ansiedades fundamentais e os desejos de uma cultura”49; e a obra de Ann
Swinfen, In Defence of Fantasy [Em defesa da fantasia]50, publicado primeiramente
em 1984, que retoma, claramente, Tolkien como modelo crítico.
Das propostas acima, a mais relevante para a presente discussão é a de Diana
Waggoner, principalmente porque ela intuiu, de forma tolkieana, que a relação
congênita da fantasia com o sobrenatural é a característica mais importante e que
deve ser tomada como a primeira categoria classificatória em qualquer discussão sobre
o gênero. Assim, ao mapear um panorama amplo da literatura ocidental, Waggoner
a classifica em “quatro grandes classes de ficção”51, dependendo do tratamento dado
ao sobrenatural, são elas: a literatura pré-realista, a realista, a fábula pós-realista e a
ficção especulativa. Na literatura pré-realista, diz a autora, “não há distinção entre os
fenômenos naturais e sobrenaturais, exceto no sentido teológico e religioso”52. No realismo,
45
Idem. Ibidem., p. xxii.
46
BETTELHEIM, Bruno. The Uses of Enchantment: The Meaning and Importance of Fairy Tales.
New York: Vintage Books, 1989. [N. do T.: Em português, o livro pode ser encontrado seguinte
edição brasileira: BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. (Tradução de Arlene
Caetano). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 16ª edição, 2002].
47
RABKIN, Eric S. The Fantastic in Literature. New Jersey: Princeton University Press, 1976.
48
JACKSON, Rosemary. Fantasy: The Literature of Subversion. London / New York: Routledge, 2003.
49
WOLFE. Op. cit. p. xxii.
50
SWINFEN. Ann. In Defence of Fantasy: A Study of the Genre in English an American Literature
since 1945. London: Routledge & Kegan Paul, 1984.
51
WAGGONER. Op.cit. p. 9.
52
Idem. Ibidem., p. 7.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 135

o sobrenatural é explicado como mentira, coincidência ou ilusão, já que sua influência


não pode ser cientificamente mensurada no mundo primário, e o sobrenatural não
pode ser crível nem mesmo no mundo secundário. Essa perspectiva, obviamente,
era muito restrita e, por vezes, deu ensejo à literatura de fabulação pós-realista em
que, diz Waggoner, o sobrenatural é tido como “uma realidade qualificada”, e assim,
é reconhecido como psicologicamente e subjetivamente real para algumas pessoas53.
No entanto, nem o realismo nem a fabulação pós-realista jamais consideraram a
possibilidade do sobrenatural ser um fato objetivamente real “uma realidade viva,
embora improvável”54. “Essa questão seminal”, afirma a autora, “gerou a moderna ficção
especulativa” como:
Um meio pelo qual o realismo pode especular sobre realidades improváveis e
os leitores podem lhes dar credibilidade literária. [Dentro dessa categoria] a
fantasia tem o maior impacto [...] por ir ao extremo mais distante para estabelecer
credenciais realistas – uma estória e um pano de fundo – para o sobrenatural55.

Ao discutir o modo das funções sobrenaturais na fantasia, Waggoner sublinha


que ele deve ser verdadeiro, embora não necessariamente sem senso de humor,
plenamente consistente e crível segundo critérios realísticos. Explica:
O mundo da fantasia não é o mundo primário: suas leis internas são diferentes das
nossas, e, portanto, são necessários preparativos e explicações. Em tais mundos,
o sobrenatural não é, meramente, uma possibilidade, mas um fato real. Um poder
numinoso – um poder supremo, para o bem ou para o mal – ordena o mundo e impele
a estória, agindo diretamente sobre as personagens e os acontecimentos. No mundo
primário, a existência e atividade de tais poderes são questões de fé religiosa: no mundo
secundário da fantasia, sua existência e atividade estão sujeitas à prova material56.

Embora esse princípio geral seja verdadeiro para todas as formas de


fantasia, cada autor retrata o sobrenatural de modo diferente, dependendo de
suas preferências estéticas. Como resultado, continua Waggoner: “Não há uma
única tradição fantástica central, embora algumas correntes sejam mais importantes
do que outras”57. Essas tendências, que diferem nas disposições dominantes,
constituem os oito principais subgêneros da fantasia. A característica comum
entre todos eles, no entanto, é que todos lidam com a realidade emocional, “as
razões do coração” em vez das razões da mente. Waggoner faz uma observação
interessante ao comentar que “o mundo fantástico imaginado deve fazer sentido
emocionalmente, mas só precisa fazer sentido físico dentro de seus próprios termos”58.
Livre para constituir o mundo que lhe aprouver, a fantasia é “o mais visionário dos
53
Idem. Ibidem., pp. 7-8.
54
Idem. Ibidem., pp. 8.
55
Idem. Ibidem., pp. 8-9.
56
Idem. Ibidem., pp. 9-10.
57
Idem. Ibidem., p. 30.
58
Idem. Ibidem., p. 25.
136 COMMUNIO • Marek Oziewicz

gêneros ficcionais: interligado a todas as artes pela verdade emocional, é mais livre do
que qualquer outra forma literária para escapar da mera realidade”59. Isso, por sua
vez, faz com que a fantasia seja extremamente dependente do relacionamento
pessoal do autor para com e diante do numinoso. Como Waggoner deixa claro, a
boa fantasia é arte inspirada da mais alta ordem: “o autor fantástico não emprega,
meramente, elementos de mito e de romance; ele é empregado por tais elementos” e
lhes dá novas corporeidades60. “O grande paradoxo e recompensa da fantasia é que”,
continua a autora, “a grande capacidade do artista em perceber a separação entre
os mundos natural e sobrenatural está na habilidade em expressar uma experiência
emocional de harmonia e reunificação”61.
Reunificação com o quê? – alguns poderiam perguntar. Waggoner, assim
como Tolkien e Lewis, sugere, nesse ponto, que é a restauração da divindade
e integridade humanas e o reconhecimento de nosso verdadeiro eu, embora,
explicitamente, fale em trazer os seres humanos, de novo, às maravilhas das coisas
quotidianas e em abrir seus olhos ao milagre da vida. “A fantasia desperta uma
nova visão”, assevera, “não de sonhos estranhos e exóticos, mas da realidade comum.
[...] A fantasia restaura e resgata nosso próprio mundo. [...] Ler fantasia é escapar
do mal não por ignorá-lo, mas por reconhecer o bem; fugir da realidade para vê-la
como realmente é”62. O que podemos deduzir dessa sentença é, claro, a reafirmação
59
Idem. Ibidem., p. 25.
60
Idem. Ibidem., p. 27.
61
Idem. Ibidem., p. 27.
62
Idem. Ibidem., p. 27.
*
N. do T.: O Role Playing Game (RPG, que pode ser traduzido como “jogo de interpretação de
personagens”) é um tipo de jogo em que os jogadores incorporam personagens, segundo um sistema
de regras pré-determinado, como num teatro, colaboram para a criação da narrativa e podem
improvisar livremente. O enredo é previamente definido num roteiro e segue um conjunto de regras
pré-estabelecidas numa espécie de livro-guia. Há sempre um jogador-mestre (narrador) que cria os
cenários e julga as ações dos demais. Ao término de cada “aventura” (partida), cada personagem
recebe pontos de experiência, que a tornam mais fortes, lhes dá vantagens e/ou habilidades. Os
testes de habilidades são feitos por jogadas de dados e a sucessão de aventuras com as mesmas
personagens na continuidade de um evento são chamadas campanhas. As escolhas dos jogadores
determinam a direção do jogo, logo, cada partida é única e é impossível prever os movimentos. Em
registros oficiais, o Role Playing Game ou RPG surgiu no ano de 1974. O primeiro lançamento foi
o jogo Dungeons & Dragons [Masmorras e Dragões] de Gary Gygax (1938-2008) e Dave Arneson.
No início, o jogo era um simples complemento para um outro jogo de peças de miniatura chamado
Chainmail [cota de malha], mas terminou dando origem a algo totalmente diferente e inovador.
No ano de 1983, Dungeons & Dragons virou desenho animado com três temporadas [no Brasil, a
série foi chamada de Caverna do Dragão e transmitido pela Rede Globo de Televisão nos anos 1980-
1990]. Este primeiro jogo era extremamente simples comparado aos jogos de RPG da atualidade
e tinha a origem nos jogos de guerra/estratégia. Foi sucedido por novos gêneros, como os jogos de
super-heróis, os Cyberpunk (que nos anos de 1980 discutiam o impacto da realidade virtual num
futuro próximo) e os de ficção científica. O primeiro RPG brasileiro, Tagmar, surgiu em 1991 e teve
sua ambientação nos livros de J. R. R. Tolkien. Outro gênero criado nos anos 1980 foram os RPGs
educativos, que visavam empregar a mecânica desses jogos nas atividades didáticas, como, por
exemplo, O desafio dos bandeirantes (1992), com ambientação baseada no folclore brasileiro. Outros
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 137

da profunda convicção espiritual que Tolkien chama de consolação, e que


significa, em última instância, que tudo vai bem com o universo e que os seres
humanos fazem parte de algo maior do que seus interesses individuais. Isso,
nenhuma insensatez, dos próprios humanos ou de qualquer outro ser, jamais
poderá retirar.
Os comentários de Waggoner a respeito da essência da fantasia são
mais perspicazes do que sua classificação dos tipos, especialmente quando
ela situa Lewis e Tolkien em duas grandes tradições do fantástico que chama,
respectivamente, de mitopoética e heróica. Não obstante a tentativa da
autora em diferenciar claramente os dois tipos, a classificação de Waggoner
– embora ajude em certos tipos de análises críticas – por fim, falha, pois O
Senhor dos Anéis de Tolkien, na verdade, preenche todos os critérios que ela
considera relevantes para a fantasia mitopoética. O motivo de Waggoner ter
visto essa obra como algo distinto, pode residir no fato dela não estar ciente
da “totalidade” do mito de Tolkien. O tão esperado livro, The Silmarillion
[O Silmarillion]63, editado por Christopher Tolkien, só apareceu em 1977,
quando o livro de Waggoner já estava no prelo. Igualmente importante
são os Unfinished Tales of Numenor and Middle-Earth [Contos Inacabados
de Númenor e da Terra-Média]64, uma seleção de escritos inacabados dos
últimos anos de Tolkien, publicados em 1980, também sob a editoria de
Christopher. Mesmo com essa lacuna de informação, a divisão de Waggoner
entre as categorias mitopoética e heróica, dificilmente, é viável, visto que a
fantasia mitopoética, segundo Waggoner, descreve uma jornada ao objetivo
espiritual - parte da qual é uma luta contra os poderes do mal, ao passo que
a fantasia heróica descreve a luta contra os poderes do mal, que é parte da
jornada para o fim espiritual. Isso faz da fantasia heróica fantasia mitopética,
com uma ligeira mudança de ênfase: a motivação das personagens em ambos
os casos está baseada em princípios transcendentais. A profundidade interna e
o esplendor da fantasia mitpoética são combinadas com a coragem externa e o
heroísmo da fantasia heróica. Waggoner sugere que a fantasia heróica deva se

desdobramentos do conceito RPG são os jogos “live action” [ação ao vivo], mais próximos de um
teatro de verdade, os RPGs para computador ou videogames e os via internet (Play by mail, Play
by forum ou Play by web). Para uma visão católica sobre o assunto ver: PERRIER, Philippe. “Note
d’information sur les jeux de role”. In: Revue Catholique Internationale Communio, no. XXXIII, 6,
novembre-décembre 2008. pp. 55-65.
63
TOLKIEN, J. R. R. The Silmarillion. (Edited by Christhopher Tolkien). Boston: Unwin, 1979.
[N. do T.: Em língua portuguesa essa estória se encontra na seguinte edição brasileira: TOLKIEN.
J. R. R. O Silmarillion. (Organizado por Christopher Tolkien; tradução de Waldéa Barcellos). São
Paulo: Martins Fontes, 2007].
64
TOLKIEN. J. R. R. Unfinished Tales of Numenor and Middle-Earth. (Edited by Christopher
Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2001 [N. do T.: Em língua portuguesa
essa estória se encontra na seguinte edição brasileira: TOLKIEN. J. R. R. Contos Inacabados.
(Tradução de Ronald Eduard Kyrmse). São Paulo: Martins Fontes, 2002].
138 COMMUNIO • Marek Oziewicz

prender mais ao heroísmo diante do mal, ao passo que a fantasia mitopoética


verse sobre nossas motivações pessoais, espirituais para enfrentá-lo. Para mim,
essas são duas faces, inseparáveis, da mesma moeda, e considero, tanto Lewis
quanto Tolkien representantes do mesmo gênero.

III - FANTASIA MITOPOÉTICA: UMA PROPOSTA EXPERIMENTAL

A definição de fantasia mitopoética que gostaria de apresentar é uma


versão ligeiramente ampliada da proposta por Waggoner e consistiria nas
seguintes camadas: o quê, quem, onde, como, e por quê. Portanto, a fantasia
mitopoética é: 1) uma narrativa ficcional, 2) sobre aventuras de heróis
psicologicamente humanos, 3) no mundo secundário – e, às vezes, também no
mundo primário, 4) construídas a partir de uma variedade de materiais míticos
artisticamente re-imaginados, apresentados como verdadeiros segundo critérios
realistas, 5) e escritos para criar uma experiência imaginativa de um mundo onde
os conceitos metafísicos são realidades objetivas – normalmente corporificados
em personagens numinosas – e a resposta do protagonista aos dilemas morais e
éticos pretendem mostrar por que tais imperativos morais no mundo primário
exigiriam determinados tipos de comportamento.
A definição, obviamente, é imperfeita, mas é prática em termos de análise
literária. Enfatiza a intencionalidade – o último ponto é um marco central
intencional da fantasia mitopoética – acima de outros elementos, pois, como
me parece, ela constitui o princípio básico por trás de outras características do
gênero e contém todo um espectro de conjecturas estéticas, morais e políticas de
julgamentos de valor do autor, não importando se conscientes ou não. A maioria
dos autores acredita na “equação pessoal”, a inevitável influência da personalidade
sobre as idéias.
Para qualificar a definição, podemos suplementá-la com uma série de
características úteis, com a advertência de que elas não precisam, necessariamente,
de ter um papel protagonista ou mesmo tenham, absolutamente, de aparecer
num determinado romance. A própria definição do gênero que apresento, sugere
que a fantasia mitopoética consegue obter certos efeitos psicológicos sobre o
leitor, mas a enumeração feita por Tolkien de fantasia, recuperação, escape e
consolação não esgota a enumeração. A fantasia mitopoética deve ser verdadeira,
ou seja, apresentada em bases sérias; real, o que significa ser consistente e crível;
e não didática ao valer-se da moralidade, em vez de ser moralizante. Ela deve
reunir um sentimento sobrenatural, místico e espiritual, mas deve estabelecer
as premissas morais para isso dentro da própria obra, já que hoje o mundo
não se baseia em nenhum corpo de crenças amplamente aceito, nem mesmo
no cristianismo. Embora esse tipo de obra seja muitas vezes, como apresenta
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 139

Waggoner, “evangélica”65, “as bases filosóficas das mais poderosas fantasias são dadas
por convicções morais e religiosas profundamente sentidas [pelos autores]”66, a fantasia
mitopoética não menciona a religião institucionalizada, que a substitui pela ética
humana pós-secular, para-religiosa e universal.
Por efeito das matérias-primas, a fantasia mitopoética partilha certas
qualidades com os mitos. Suas seqüências, muitas vezes, abrangem estórias
seminais sobre a origem do universo. As obras de fantasia mitopoética contêm
elementos etiológicos que explicam as instituições humanas e práticas de
funcionamento no mundo secundário, bem como elementos dos mitos da
natureza que explicam os fenômenos naturais do mundo secundário. Muitos
desses trabalhos – especialmente os que se baseiam no paradigma da jornada que,
normalmente, envolve o cumprimento de uma profecia – são apotropaicos*, no
sentido de que podem ser vistos como projetados para mostrar a obra do destino
e o triunfo. Ao contrário dos mitos clássicos que apresentam uma visão trágica
da vida onde prevalece o fado e os homens falham, a fantasia mitopoética, no
entanto, comumente relaciona o triunfo do destino com a vitória do bem sobre o
mal. Algumas obras do gênero, donde podemos destacar O Silmarillion como um
dos melhores exemplos, também são teogênicos ao mostrar os relacionamentos
entre vários deuses e personagens numinosas. Uma das conseqüências naturais
da participação da fantasia mitopoética no mito e nas estruturas mitológicas é
que, assim como os mitos não foram criados por autores individuais, os quais,
na maioria das vezes, somente os organizam e escrevem uma versão de um
determinado mito, da mesma forma, os “novos mitos” da fantasia mitopoética
tendem a adquirir vida própria, independente de seus criadores, e incitam outros
a participar da nova realidade mítica. Assim, os jogos de RPG*, de computador
ou videogames, as versões cinematográficas, atiçam a ficção e as imitações, cada
vez mais sérias, dos mundos de fantasia mitopoética e suas personagens podem
ser vistas como extensões do potencial imaginativo das estórias. Desse modo, tais
manifestações acenam para novas linhas na vasta tapeçaria mitológica que o autor,
com sucesso, criou.
Obviamente, as formas de exprimir todas essas coisas e de produzir
fantasia mitopoética são tão diversas e tantas que, por isso, a explicação dada
acima parece inadequada. Exemplos “puros” de um determinado gênero nunca
são encontrados, a menos que possamos adotar um determinado romance como
um exemplo par excellence. Aquilo que para mim pode ser fantasia mitopoética,
para outros pode parecer fantasia heróica ou mesmo ficção científica. Apesar
destas e de outras dificuldades, a tentativa generalizante de descrição do gênero
pode e dever ser feita, mesmo que seja somente para revelar áreas problemáticas
65
WAGGONER. Op. cit. p. 33.
66
SWINFEN. Op. cit. p. 10.
*
N. do T.: Apotropismo (do grego apotrópaios) é todo o conjunto de rituais, símbolos, deuses, mitos
que afastam a desgraça, a doença, ou qualquer outro tipo de malefício.
140 COMMUNIO • Marek Oziewicz

desse subgênero do fantástico. Na próxima seção, ao tomar como referência os


seis aspectos da poética de Aristóteles (384-322 a. C.) – mythos, ethos, dianoia,
melos, lexis e opsis, como definidas por Frye – tentarei delinear o que caracteriza a
fantasia mitopoética em cada uma dessas categorias.
O mythos ou trama da fantasia mitopoética consiste na reconfiguração
artística dos elementos dos mitos, aos quais é dado tratamento realista. O enredo,
normalmente, parte de determinada violação na ordem natural, uma intromissão
do sobrenatural na vida do protagonista, que é violentamente “sacudido da rotina”
e apresentado a exigências irresistíveis e imensas responsabilidades. A situação da
narrativa é sempre a do perigo eminente em escala global, universal ou cósmica,
com a qual o protagonista se envolve por uma série de acontecimentos. Muitas
vezes, o envolvimento se dá por eventos de natureza pessoal – proteger a família,
manter a promessa etc. – e a trama começa a partir das pequenas coisas. Sem
perceber, o protagonista se envolve em questões maiores e, ao fim, em questões
monumentais. Ele (ou ela) se sente algo inadequado e sobrecarregado por aquilo
que esperam que faça. Ao longo das aventuras, aos protagonistas é pedido que
façam escolhas éticas e morais. No entanto, as personagens não são fantoches de
poderes superiores, mas permanecem, do começo ao fim, como indivíduos livres.
Caso não fosse assim, suas escolhas morais e dilemas não seriam convincentes.
Os protagonistas são livres até para cometer erros, e tanto caem como aprendem
com os erros. Por outro lado, eles nunca são totalmente abandonados em sua
tarefa, não importando quão solitários possam estar. Sempre são assistidos por
ajudantes ou poderes sobrenaturais, mas não necessariamente quando crêem
precisar desesperadamente de ajuda, e normalmente, a ajuda não é do modo
como esperam. Nessa fórmula, os protagonistas continuamente anseiam pelo
auxílio do numinoso e a acreditam possível, mas nunca são deixados na crença
arrogante da própria invulnerabilidade, justamente porque pensam estar no lado
do bem. Assim, o enredo da fantasia mitopoética paira delicadamente entre
duas visões de mundo extremas: a pessimista-materialista (o homem solitário
num mundo de acasos, hostil, indiferente e sem Deus) e a arrogante-religiosa (o
homem como instrumento de um poder maior que o assistirá por intermédio
da realização dos objetivos). A fantasia mitopoética enfatiza a responsabilidade
pessoal e a necessidade de ação combinada no mundo, bem como a confiança
na existência de um poder superior, causal, ao qual estão ligados todos os seres e
que guia o universo e todas as suas criaturas rumo ao bem, para o cumprimento
supremo do destino prometido.
A fantasia mitopoética pode usar a mágica como fundamento lógico para
certos acontecimentos, embora não seja necessário. O tratamento depreciativo
do termo dado por Tolkien, como sinônimo de “manipulação”, e o uso do termo
alternativo “encantamento” para os aspectos positivos, reverenciais e libertadores,
revela não somente suas prioridades em termos fantásticos, mas também sua
percepção de quão facilmente o uso da mágica pode ser distorcido. Waggoner
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 141

comenta que “a mágica pode ser usada pelos poderes sobrenaturais no mundo
secundário, ou pode ser uma espécie de referência taquigráfica a tal poder; mas é a
presença do poder, e não a mágica, que [conta]”67, essa é uma boa reformulação da
idéia. Assim, onde quer que apareça a mágica na fantasia mitopoética, ela aponta
para além de si, indicando uma realidade maior, mesmo nos casos quando –
como nas obras de Madeleine L’Engle – é apresentada nas vestes notoriamente
científicas de telepatia, telecinese, viagem no tempo etc. Como um atalho para
as obras inexplicáveis da providência ou para os processos relacionados tanto
ao “universo maior” do espaço sideral quanto ao “universo interior” da mente
humana, a mágica na fantasia mitopoética pode ser de grande ajuda para legitimar
a realidade no mundo secundário68.
O enredo da fantasia mitopoética deve ter um final feliz, embora ao longo
da narrativa, mesmo perto da conclusão, tudo pareça indicar um final trágico.
Os reveses, na maioria das vezes, são muito grandes e não há um indício sequer
que prometa que tudo terminará bem. Nessas circunstâncias, ao chegar o final
feliz, ele possui as características de eucatástrofe: tal final é desejado, mas seu
veredicto miraculoso é extremamente improvável e difícil de imaginar, é uma
virada nos eventos que faz ascender um senso de alegria, semelhante à alegria da
revelação religiosa. Tolkien descreve essa alegria eucatastrófica como caracterizada
por uma “estranha qualidade mítica dos contos de fadas, [que é] maior do que o
evento descrito”69.
O ethos aristotélico inclui tanto as personagens quanto os locais. Na fantasia
mitopoética as personagens são, em primeiro lugar, seres humanos, na maioria das
vezes de classes mais baixas ou tipos bastante comuns. Caso sejam apresentados
como excepcionais, isso deverá ser quanto à sensibilidade ou predisposições éticas,
tais como responsabilidade, empatia, relativa generosidade etc, mas nunca serão
como os heróis míticos: perfeitos, impecáveis, irrepreensíveis, “sempre certos”. São
67
WAGGONER. Op. cit. p. 22.
68
Especialmente para aqueles leitores que sentem que a mágica, concebida dessa forma, não é
um fenômeno de outro mundo, mas uma realidade da vida moderna. Somos Neandertais
modernos e vivemos num flagrante mundo mágico, cuja maioria dos processos e tecnologias não
compreendemos. A grande maioria está alienada da tecnologia que nos rodeia, embora ela supere
totalmente nosso conhecimento, e suas obras sejam “pura mágica”, elas são aceitas como uma dura
realidade. Na nossa civilização, o pior ainda é o conhecimento das coisas do espírito, cuja realidade
das ciências materialmente tendenciosas, chamadas por James Hollis de “sistemas imaginais auto-
limitantes” (p. 11), na obra The Archetypal Imagination [A imaginação arquetípica], simplesmente
negam. Para Hollis e para os jungianos a ruptura resultante de nosso vínculo afetivo com o cosmo,
com a natureza, com a comunidade e suas almas é “a condição central de nossa época [...] que se
manifesta como uma ferida espiritual coletiva, talvez tão traumática quanto uma amputação” (p. 14).
Ver: HOLLIS, James. The Archetypal Imagination. Texas A&M University Press, 2000.
69
TOLKIEN. Op.cit., p. 63 [N. do T.: Em português, ver: TOLKIEN. Sobre histórias de fadas. p. 78].
*
N. do T.: Tipo de romance também conhecido como “romance de formação” ou “romance de
educação” em que a narrativa segue o desenvolvimento do protagonista da infância / imaturidade à
fase adulta e/ou à maturidade mental e emocional.
142 COMMUNIO • Marek Oziewicz

seres humanos que ganham a simpatia do leitor pelas combinações particulares de


virtudes e vícios. Às vezes são vistos como os escolhidos, aos quais é dado algo
mais daquilo que foi dado às pessoas que os cercam, mas que também carregam o
fardo de expectativas maiores. Não importam quais sejam as idades das personagens
– normalmente os protagonistas são bastante jovens e estão no ponto de tomar
decisões importantes acerca da vida – são sempre e de algum modo “aprendizes”
quanto ao que têm de aprender, crescer e compreender. É por isso que a fantasia
mitopoética muitas vezes usa motivos e estruturas do Bildungsroman* e, muitas
vezes, está associada à literatura infantil.
As personagens encontradas na fantasia mitopoética, não se limitam, mas
podem incluir os seguintes tipos: 1) raças e espécies imaginárias, tais como elfos,
gnomos, trolls, fadas, unicórnios etc; 2) personagens familiares arquetípicos numa
variedade de configurações tais como três filhos (as) ou irmãos (ãs), o (a) filho (a)
mais novo (a), a mãe, o pai ou o guardião terrível, o marido, a esposa ou o parceiro
monstruoso (questionável) etc; 3) personagens não-familiares arquetípicos como
membros, ajudantes ou inimigos, tais como os confiáveis companheiros, amigos
ou conselheiros, ajudantes invisíveis, gentis ou sobrenaturais – que podem ser
tanto figuras mitológicas quanto personificações de elementos naturais: seres
sobrenaturais misteriosos, ameaçadores ou indiferentes.
O local da fantasia mitopoética é o mundo secundário, cujas leis internas
são diferentes das leis do mundo primário, e precisam ser explicadas de forma
convincente. Muito importante para o local e suas personagens é a especificidade
do tempo e do espaço. Os lugares míticos encontrados na fantasia mitopoética,
normalmente, são lugares que se distinguem pela presença de um deus, deusa
ou entidades sobrenaturais, sejam do presente ou do passado. Dentre os locais,
podemos citar: 1) estruturas arquitetônicas tais como castelos e palácios reais,
torres, templos, casas ou outras moradas de seres sobrenaturais; 2) lugares da
natureza com características excepcionais, tais como bancos ou margens de
riachos, rios, oceanos, baías, ilhas, cadeias de altas montanhas, cascatas, fontes,
cavernas e minas; 3) lugares sobrenaturais como o mundo subterrâneo, o mundo
dos mortos, as costas do rio Estige*, o palácio de Plutão, cidades celestiais, o
futuro e o passado, o real e o alternativo.
A dianóia ou tema, é definido por Frye como “a idéia ou pensamento poético
[...] que o leitor recebe do autor”70, é o interesse conceitual de um determinado
*
N. do T.: Referência ao rio da mitologia grega cujo nome, em grego, significa “ódio” ou “execração”
e que traça a fronteira entre a Terra e o mundo inferior (também chamado de Hades, submundo ou
Inferno). Ele circunda o Hades por nove vezes e juntamente com os rios Flegetonte (rio de fogo),
Aqueronte (rio do infortúnio) e o Cócito (rio das lamentações), convergem num grande pântano. O
rio também aparece nas obras A Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321) e Paraíso perdido
de John Milton (1608-1674). No mundo imaginário de Robert E. Howard (1906-1936), criador
de Conan, o bárbaro, também aparece o rio Styx (ou Estige), que traça a fronteira setentrional da
Stygia cujos mapas da Hibória, local onde se desenvolvem as estórias de sua personagem, seus vários
acidentes e limites geográficos foram desenhados em 1932.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 143

romance. Na fantasia mitopoética é comum a existência real do sobrenatural num


mundo secundário e as ações humanas são transplantadas para esse mundo de
exigências numinosas. O pensamento poético da fantasia mitopoética é a ênfase na
qualidade moral da vida conjugada com “o reconhecimento do poder [da narrativa]
de penetrar além da superfície externa da realidade”71. Um tema comum é a luta
entre o bem e o mal, narrada sem simplificações, idealizações ou moralismos
baratos, mas com um olhar sobre as implicações psicológicas do gênero,
postuladas por Tolkien, faz essa generalização parecer patética. Os temas tratados
pela fantasia mitopoética estão relacionados ao lugar do homem no mundo, à
felicidade humana e sua realização; eles dizem respeito aos relacionamentos, ao
livre-arbítrio, ao processo de tomada de decisões, a realidade e as intenções da
transcendência, a necessidade de compreensão e perdão, dentre muitos outros.
Em minha opinião, dentre as idéias mais importantes alimentadas e promovidas
pela fantasia mitopoética estão: 1) a crença na suprema vitória sobre a morte
com base na convicção da solidariedade e na continuidade de toda a vida; 2) A
afirmação do valor da vida baseada em ideais72. A primeira delas, normalmente, é
desenvolvida na direção do holismo, do organicismo e de paradigmas unificantes
e antimaterialistas similares que reconhecem a profunda interconexão de todos
os níveis das realidades físicas, psicológicas e sociais. A segunda é o impulso
qualitativo que pode se manifestar como heroísmo, mas muitas vezes – L’Engle, Le
Guin e Cooper são bons exemplos aqui – aparecem como uma afirmação de que
a vida humana somente adquire valor por intermédio de nossas escolhas, embora
feitas num cenário “nada heróico”. A vida não é vivida, sugerem os mitopoetas,
por si mesma, mas pela busca da perfeição humana.
O melos ou a musicalidade aplicada à fantasia mitopoética – se isso não for
estender por demais o conceito de Aristóteles – está num aspecto que poderia ser
chamado de harmonia. Se Frye analisa os gêneros “com um olhar voltado para descobrir
70
FRYE. Op. cit. p. 52.
71
SWINFEN. Op. cit. p. 9.
72
Como invariavelmente está imbuída de um profundo propósito moral, a fantasia mitopoética
“apresenta uma preocupação pelos problemas contemporâneos e oferece uma crítica da sociedade atual”
(SWINFEN. Ann. Op. cit. p. 2). Portanto, poderia ser dito, para demonstrar, normalmente de
forma indireta, uma “função social utópica”, que esta assinala uma necessidade de luta para um
mundo melhor no presente, em vez de limitar-se a uma contemplação improdutiva e nostálgica de
um suposto passado ideal. Essa tendência confirma a necessidade daquilo que Jack Zipes chama
de “A luta efetiva contra condições injustas e bárbaras no mundo conduz ao lar, à utopia, um local que
ninguém jamais conheceu, mas que representa a humanidade tomando consciência de si” (ZIPES, Jack.
Fairy Tales and the Art of Subversion: The Classical Genre for Children and the Process of Civilization.
New York: Routledge, 1991. pp. 175-176). Ao citar Ernst Bloch (1885-1977), Zipes afirma que o
verdadeiro início não está no começo, mas no fim, e acrescenta: “Filosoficamente falando, então, a
verdadeira volta para casa ou recorrência do fantástico é um movimento em direção àquilo que foi
recalcado e nunca realizado. O modelo na maioria dos contos de fadas envolve a reconstituição do lar
num novo nível e isso esclarece o poder de atração dessas estórias tanto em crianças quanto em adultos”
(ZIPES. Op. cit. p. 176).
144 COMMUNIO • Marek Oziewicz

quais são suas principais características” e chama de epos o ritmo da repetição;


chama de prosa, o ritmo da continuidade, de drama, o ritmo do decoro e de
lírica, o ritmo da associação, então, pode não ser de todo impossível, por analogia,
chamar a fantasia mitopoética de ritmo da harmonia. Isso quer dizer que a fantasia
mitopoética reflete a crença numa harmonia mundi, uma unidade básica de todas
as formas de vida. Já que essa unidade há muito foi rompida – infelizmente,
pelo próprio abuso do homem pelo homem, pelo mau uso do meio ambiente
e de outras criaturas – ele não encontra exemplos no mundo primário, mas
segue vivendo com imagens de condição de vida paradisíacas e utópicas. Deste
ponto de vista, a fantasia mitopoética pode ser tomada como uma busca literária
por relacionamentos harmoniosos entre os seres humanos, entre o homem e a
natureza e entre o homem e o absoluto.
*
N. do T.: O “Ciclo de Terramar” é composto pelas seguintes obras: The Wizard of Earthsea [O
mago de Terramar] de 1968, The Tombs of Atuan [As tumbas de Atuan] de 1971, The Farthest Shore
[A praia mais longínqua] de 1972, Tehanu: The Last Book of Earthsea [Tehanu: O último livro de
Terramar] de 1991 e The Other Wind [O outro vento] de 2001, além da coletânea de pequenas
estórias, algumas publicadas originalmente em 1975, Tales from Earthsea [Contos de Terramar]
de 2001. No primeiro livro somos apresentados ao mundo de Terramar, um arquipélago. Ged
conhecido como “Gavião”, é um rapaz que nasceu com poderes mágicos e que vai estudar numa
escola de magia. Durante o período de aprendizagem aprende coisas sobre si mesmo e sobre a magia
que nunca devia ter descoberto. No segundo livro, somos apresentados a Tanar, uma menina que é
tirada dos pais aos cinco anos para se tornar “Arha a devorada”, a sacerdotisa dos “sem-nome”, por
ter nascido no mesmo dia da sacerdotisa anterior. Sua vida é condicionada à fortaleza conhecida
como “Túmulos de Atuan” e passa a aprender os rituais da escuridão para servir os “sem-nome”,
até que um dia descobre um jovem percorrendo os proibidos labirintos embaixo da fortaleza. No
terceiro livro da saga, somos apresentados a Arren, Príncipe de Enland, que viaja para a ilha de
Rouke, decidido a informar ao Arquimago que a magia deixou de funcionar no seu reino. Gavião,
agora Arquimago, desloca-se com Arren para descobrir a causa dos relatos cada vez mais constantes
da perda de magia nos cantos mais remotos de Terramar. O quarto livro continua a estória de Tanar,
que agora viúva de um fazendeiro e mãe de dois filhos já crescidos, decide adotar uma criança, a
menina Therru. Quando Ged retorna ao arquipélago, se casa com Tanar e a ajuda a criar Therru,
defendendo-a do verdadeiro pai. O quinto livro dá continuidade à estória de Therru, narrando os
eventos que acontecem quinze anos após o livro anterior. Nessa aventura Therru, uma jovem mulher
ainda dependente de sua mãe adotiva, precisa acompanhar o rei Lebannen em uma importante
missão. No Brasil foram publicados apenas dois livros do Ciclo de Terramar, nas seguintes edições:
LE GUIN, Ursula. O mago de Terramar. (Tradução de Noêmia R. A. Ramos; ilustrações de
Ruth Robbins). São Paulo: Brasiliense, 1994.
LE GUIN, Ursula. As tumbas de Atuan. (Tradução de Noêmia R. A. Ramos; ilustrações de
Ruth Robbins e Gail Garraty). São Paulo: Brasiliense, 1994.
Em Portugal os cinco livros da série foram publicados nas seguintes edições:
LE GUIN, Ursula. O feiticeiro e a sombra. Lisboa: Editorial Presença, 2001.
LE GUIN, Ursula. Os túmulos de Atuan. Lisboa: Editorial Presença, 2002.
LE GUIN, Ursula. A praia mais longínqua. Lisboa: Editorial Presença, 2002.
LE GUIN, Ursula. Tehanu: O nome da estrela. Lisboa: Editorial Presença, 2002.
LE GUIN, Ursula. Num vento diferente. Lisboa: Editorial Presença, 2005.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 145

A lexis aristotélica ou dicção, a seqüência narrativa de sons, que produz uma


visão ou apreensão de imagens, em nossas mentes, pode ser aplicada à fantasia
mitopoética, no sentido metafórico de “imagens que produzem certas impressões na
mente”. Mais especificamente, toda a fantasia retrata certos nomes de pronúncia
estranha, feitiços e linguagens, mormente relacionadas ao uso da mágica no
mundo secundário. Na fantasia mitopoética, a indispensável realidade do mundo
secundário também pode ser criada por uma criativa composição lingüística. O uso
da linguagem élfica por Tolkien, que para ele não era um mero elemento exótico,
mas um elemento da Terra Média, completamente desenvolvido e historicamente
justificável, é, nesse ponto, um exemplo espetacular. Outros escritores também
prestaram atenção a esse aspecto, a saber, Ursula Le Guin na elaborada explicação
do estado da antiga linguagem no ciclo de Terramar*, e a série do Tempo de
Madeleine L’Engle*. A crença na existência de uma linguagem primária, a linguagem
do criador, um sistema de comunicação universal anterior à Babel, é essencialmente
mítica e ocupa um lugar de destaque nas tradições míticas e religiosas do mundo. A
cabala como um modo de decodificar as palavras de Deus; o sânscrito tido por alguns
como a língua original, cujas letras refletem as verdadeiras formas das vibrações sonoras;
o conceito dos mantras, sons sagrados como preces e invocações; sons criativos como o
“ser” bíblico e a idéia de um som / palavra corretos, num dado momento, para produzir
*
N. do T.: O primeiro livro da série é A Wrinkle in Time [Uma dobra no tempo], é uma estória
de ficção científica juvenil, publicada em 1962, que recebeu a Newbery Medal, importante prêmio
da literatura infanto-juvenil norte-americana. Foi seguido por quatro seqüências. O terceiro livro
da série, A Swiftly Tilting Planet [Um planeta ligeiramente inclinado] de 1978, foi vencedor do
prestigioso American Book Award, na categoria de livro para crianças. Os outros livros da série são:
A Wind in the Door [Um vento na porta] de 1973 e Many Waters [Muitas águas] de 1986. A história
de Uma dobra no tempo está centrada na aventura de duas crianças em busca do pai, que viajam,
no tempo e no espaço, para encontrá-lo. A estória tem a aparência de fábula cristã e se opõe à
padronização da vida norte-americana moderna. Recentemente, a estória tem despertado o interesse
do público brasileiro por ter aparecido como um dos livros lidos pela personagem Sawyer, do
seriado de televisão Lost. Em língua portuguesa a obras está disponível na seguinte edição brasileira:
L’ENGLE, Madeleine. Uma dobra no tempo. São Paulo: Mundo Cristão, 2000.
**
N. do T.: Philip Pullman, nascido em 1946, é um escritor britânico e ateu militante, autor
da trilogia His Dark Materials [Fronteiras do Universo] que compreende The Golden Compass [A
Bússola Dourada] de 1995, The Subtle Knife [A Faca Sutil] de 1997 e The Amber Spyglass [A Luneta
Âmbar] de 2000. Nas suas estórias há uma mistura de religião, física e mundos paralelos. Embora a
narrativa retrate crianças tendo de fazer escolhas morais, tenham animais falantes, mundos paralelos
e pareçam demonstrar uma preocupação com o destino desses mundos, as estórias possuem forte
conteúdo anti-cristão. O autor já ganhou vários prêmios de literatura no mundo todo e a adaptação
cinematográfica da primeira estória da trilogia foi lançada em dezembro de 2007, pela New Line
Cinema, dirigida por Chris Weitz e estrelada por Nicole Kidman, Ian McKellen, Daniel Craig,
Sam Elliott, Christopher Lee e Dakota Blue Richards. Em língua portuguesa os livros da trilogia
Fronteiras do Universo podem ser encontrados nas seguintes edições:
PULLMAN, Philip. A Bússola de Ouro. (Tradução de Eliana Sabino). Rio de Janeiro: Objetiva,
2007.
PULLMAN, Philip. A Faca Sutil. (Tradução de Ana Deiró). Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
PULLMAN, Philip. A Luneta Âmbar. (Tradução de Ana Deiró). Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
146 COMMUNIO • Marek Oziewicz

um determinado efeito – todas essas idéias possuem uma longa tradição na literatura
mundial e, sem dúvida, contribuíram para dar forma à moderna fantasia.
A última categoria, a opsis – a estrutura, gramática ou lógica interna de uma obra
– de muitas formas se sobrepõe ao mythos, já que o enredo é o elemento mais importante
e a estrutura básica de uma obra literária. No entanto, cada escritor mitopoético
apresenta sua própria abordagem cultural ao que é representativo como padrões míticos,
como a jornada ao mundo subterrâneo, o casamento sagrado; a interação entre destino
e livre-arbítrio; a escatologia do fim do mundo, dentre outros. Cada um desses aspectos
é tingido pelas preferências do autor por determinadas disposições, tensões, suspense,
estilo, atmosferas e daí por diante, que contribuem para a atmosfera exclusiva da obra.
A escatologia do fim do mundo, apesar das similitudes estruturais e gerais, é muito
diferente nas obras de autores como Lewis, L’Engle, Le Guin ou Philip Pullman*. Os
estudos que faço no gênero sugerem que dentre os vários padrões arquetípicos
que os autores acrescentam à lógica interna das obras, há três que são quase
onipresentes: o auto-sacrifício, a justiça compensatória e o tempo mítico. O
modelo do auto-sacrifício é um dos princípios éticos centrais nas obras de
fantasia mitopoética em virtude do qual o mundo é redimido do mal. O auto-
sacrifício também é a medida da importância universal da jornada e enfatiza
a necessidade comportamental da “auto-doação” em assuntos que somente a
plena concentração na tarefa em mãos e uma completa dedicação oferece uma
promessa de sucesso. O modelo de justiça compensatória se relaciona ao final
feliz eucatastrófico de Tolkien, mas se expande emocionalmente a toda a tarefa
e satisfaz a sede de justiça do leitor pela compensação em vez de se dar por
decreto. Os autores de fantasia mitopoética reconhecem que há um conflito
entre nosso senso de justiça costumeiro, que aplicamos e esperamos encontrar
nas relações humanas quotidianas, e o senso de justiça legalista imposto pelo
Estado. Enquanto o primeiro fomenta a responsabilidade pessoal, o respeito
mútuo e o sentido de exclusividade de cada pessoa, o último encoraja a
impessoalidade, evitando a responsabilidade pessoal e frustrando nosso senso
interno de justiça73.
Muitos autores mitopoéticos sugerem que nas sociedades antigas que
possuíam códigos de justiça míticos, as pessoas estavam bem mais próximas da
realização dessa justiça compensatória do que hoje em dia. O modelo do tempo
mítico é uma das formas pela qual a fantasia mitopoética relativiza o tempo –
algumas obras sugerem a irrealidade essencial do tempo – e demonstram que assim
como o espaço, ele pode ser transcendido. A interação característica da existência
temporal dos protagonistas e a atemporalidade de suas “centelhas internas”

73
Ver, por exemplo, o debate de Stephen F. Walker sobre a função compensatória das narrativas
míticas, que “compensam uma cultura de atitudes perigosamente unilaterais” (In: WALKER, Stephen
F. Jung and the Jungians on Myth. New York / London: Routledge, 2002. p. 97). A maioria dos
capítulos de Jung and the Jungians on Myth [Jung e os junguianos sobre o mito] também é relevante
e ajuda a compreender a fantasia mitopoética.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 147

toma várias formas nas diversas obras, mas, invariavelmente, é o distanciamento


de um tempo linear, objetivo, newtoniano que pode ser: 1) tanto diminuído,
revertido quanto acelerado, ou 2) substituído pelo tempo circular. Este último,
como demonstrou Mircea Eliade, é essencialmente mítico, com suas ênfases na
repetição, nas fases e eras em que nada de bom jamais é perdido e há sempre a
chance de corrigir os passos errados, mesmo mil anos depois.
Como ficou demonstrado pelo esboço traçado acima, a fantasia
mitopoética pode ser diferenciada dos outros gêneros em vários níveis: enredo,
estrutura, personagens, locações, disposições de humor, temáticas, dentre outros.
A distinção baseada somente no critério literário não é suficiente porque muitos
elementos míticos – personagens, ajudantes sobrenaturais, locações, objetos ou
tramas – acharam espaço nos vários gêneros de ficção, percorrendo um amplo
espectro de cenários culturais e históricos. O critério mais valioso para um crítico
literário de fantasia mitopoética poderia ser chamado de funcional, pois ajuda
a centralizar na pergunta: “O que essa estória pretende?”, uma pergunta cuja
importância primária fica evidente numa pletora de artigos críticos escritos por
autores de fantasia que se engalfinham para respondê-la e o fazem a seu modo.
A maioria das respostas propostas sugere que as obras fantásticas expressam
os desejos mais básicos, a saber, o desejo de viver uma vida plena, de ver o
próximo ser tratado com justiça, e de fazer parte de uma boa sociedade. A fantasia
mitopoética, em especial, merece ser descrita como uma ficção moral porque nos
deixa experimentar as mais profundas esperanças de emancipação e felicidade. É
uma expressão dos desejos da humanidade de alcançar a liberdade e aprender as
verdades da condição humana. Por fim, a avaliação da fantasia mitopoética tem
por base uma visão ética que julga cada obra individual pelo modo como contribui
para a nossa busca por uma vida mais rica e por uma sociedade melhor. Essa visão
a julga ao perguntar se a obra encoraja os leitores a usar suas potencialidades para
buscar formas de liberdade verdadeiras ou falsas.

IV - CONCLUSÃO
Embora esteja convencido de que o gênero fantasia mitopoética é um
fenômeno literário importante que participa da construção campbelliana da “nova
mitologia da raça humana”, também estou ciente de que uma análise de teoria
literária, tal como foi apresentada aqui, é, intrinsecamente, incompleta. Mesmo
que minhas afirmações estejam respaldadas em vastas provas críticas tiradas de
uma série de obras de fantasia mitopoética, minha tese não seria nada mais do que
uma interpretação, por sinal, perigosa, já que estaria preocupada, principalmente,
com o esquivo conceito do significado, extremamente impopular nos dias de
hoje. Não obstante essa quebra do significado na cultura moderna – que segundo
Colin Falck, no livro Myth, Truth, Literature: Towards a True Postmodernism [Mito,
148 COMMUNIO • Marek Oziewicz

verdade e literatura: rumo a um verdadeiro pós-modernismo], “é [...] a descoberta


de uma verdade necessária [que] a apreensão da natureza da realidade é simplesmente
uma ilusão filosófica” 74 – pode, de fato, ser tomada como o reconhecimento da
presença permanente do senso de maravilha mítica que está refletida na fantasia
mitopoética. Isso não equivale dizer que há claras analogias entre as situações
cognitivas das sociedades modernas e míticas. Ao contrário, o maravilhamento
mítico é, talvez, uma parte indispensável da existência humana – o temor
reverente diante de um universo que não pode ser plenamente compreendido e,
que, no entanto, os seres humanos sentem como um lar, como um lugar natural.
Em comparação à visão materialista, mecanicista e inerte do universo, a visão
“mítica” é percebida como algo vivo, vibrante, receptivo e, embora não seja auto-
reveladora para os humanos que são guiados pela dúvida, definitivamente não lhes
é nem indiferente nem hostil. Ao levar essa visão de mundo da fantasia mitopoética
ainda mais adiante, percebemos que ela não bajula a vaidade humana, ao contrário,
dá esperança e propósito por lembrar que temos, como seres humanos, um potencial
mais elevado. A avaliação de Colin Falck é altamente relevante neste particular:
Há uma necessidade, no atual estado dessacralizado de nossa cultura, de uma poesia ou
literatura verdadeiramente essencial ou reveladora. Tal literatura não precisa implicar
numa superioridade arnoldiana “altamente séria” que se ponha acima do lúdico. No
sentido lúdico de Friedrich Schiller (1759-1805), toda a arte é divertimento. Mas seria
necessária uma arte que fosse além das atuais interpretações triviais do lúdico. Uma
literatura essencial do tipo que, agora, é culturalmente mais necessário, com efeito,
seria [...] profunda e [...] culturalmente regeneradora. Tal literatura não será um mero
divertimento [...], mas não se renderá facilmente a uma fácil decodificação moral e,
portanto, seu aspecto prático não sobrepujará seu potencial estético75.

Não é irreal, creio, afirmar que as melhores obras de fantasia mitopoética


são as que se encaixam, exatamente, no tipo de literatura vislumbrada por Falck.
Também, para aqueles que concordam com Martha Nussbaum que “alguns
romances são, insubstituivelmente, obras de filosofia moral [... cuja] contribuição
[... é] narrar experiências de seres comprometidos com valores”76. O gênero é,
claramente, uma tentativa de auxiliar os leitores no desenvolvimento de suas
capacidades humanas de ver, sentir, conhecer, julgar e, portanto, de viver, mais
plenamente, as capacidades emocional, imaginativa e intelectual. Por fim, mas
não que seja menos importante, ao passo que a fantasia mitopoética promove
um mundo de idéias e valores miticamente unificado, ela também explora as
conseqüências do holismo, do organicismo da ecologia e traz alguns insights de
muitas ciências modernas. Ao dar aos leitores uma sensação de participação jovial
74
FALCK, Colin. Myth, Truth, Literature: Towards a True Postmodernism. Cambridge: Cambridge
University Press, 1991. p. 158.
75
Idem. Ibidem., p. 148.
76
NUSSBAUM, Martha. Love’s Knowledge: Essays on Philosophy and Literature. New York: Oxford
University Press, 1992. pp. 148-149.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 149

na ampla perspectiva, negada pela modernidade, e por explorar a necessidade


de tolerância e compreensão, o gênero não somente faz crescer a consciência de
quão cruciais são tais valores para a sobrevivência de nosso mundo primário, mas
também expressa os princípios básicos do paradigma emergente de um futuro em
que a ciência e a espiritualidade não estarão mais em discordância.

Marek Oziewicz é Ph.D. pela Universidade de Wroclaw, na Polônia, onde ministra


cursos de Literatura e Mitopoética desde 1997. É o diretor e um dos fundadores do
Centro de ficção adulta e infantil nessa mesma universidade. Em 2005, ganhou uma
bolsa de estudos da Fundação Fulbright e pesquisou Literatura Fantástica Norte-
americana, no Asbury College, em Kentucky, nos Estados Unidos. Escreveu, em 2005,
a primeira monografia em polonês sobre C. S. Lewis (A mágica de Nárnia: Poética
e Filosofia nas “Crônicas de Nárnia” de C. S. Lewis) e recentemente lançou o livro
One Earth, One People: The Mythopoeic Fantasy Series of Ursula K. Le Guin,
Lloyd Alexander, Madeleine L’Engle and Orson Scott Card (McFarland, 2008). É
membro de inúmeras associações acadêmicas, dentre as quais se destaca a Mythopoeic
Society.

Dragão (Século XIX)


Relevo em latão de Alabarda de soldado da Imperial Guarda de Archeiros
Museu Paulista da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP
A Sabedoria protegendo a Inocência (Século XIX)
Escultura em Terracota de Joseph Chinard (1756-1813)
Palácio das Laranjeiras, Rio de Janeiro, RJ
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 151
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 151-172

ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM:


VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA
DOS INKLINGS*
Michaël Devaux

A imaginação nas obras The Lord of the Rings [O Senhor dos Anéis] ou
The Chronicles of Narnia [As Crônicas de Nárnia], de que o cinema
regurlarmente oferece “adaptações”, neste início do século XXI1, oferece
*
Artigo publicado originalmente em Revue Catholique Internationale: Communio, Tome XXXIII,
6, novembre-décembre 2008: 19-36. Texto traduzido, do original em francês para o português, por
Maria Francisca Alves de Souza.
1
No caso de O Senhor dos Anéis ver os filmes de Peter Jackson A Sociedade do Anel, As Duas Torres
e O Retorno do Rei lançados, respectivamente, nos Natais de 2001, 2002 e 2003. No caso de As
Crônicas de Narnia ver os filmes de Andrew Adamson O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa e O
Princípe Caspian, lançados, respectivamente, no Natal de 2005 e no inverno de 2008. [N. do E.:
A trilogia de filmes O Senhor dos Anéis está disponível no Brasil em DVDs duplos, com extras, na
seguinte edição:
O SENHOR DOS ANÉIS: A SOCIEDADE DO ANEL. Direção: Peter Jackson. Produção: Peter Jackson.
Roteiro: Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson. Intérpretes: Elijah Wood, Ian
McKellen, Liv Tyler, Viggo Mortensen, Sean Astin, Cate Blanchett, John Rhys-Davies,
Billy Boyd, Dominic Monaghan, Orlando Bloom, Christopher Lee, Hugo Weaving, Sean
Bean, Ian Holm, Andy Serkis e outros. Manaus: Warner Bros Entertainment do Brasil,
2005. DVD (178 minutos).
O SENHOR DOS ANÉIS: AS DUAS TORRES. Direção: Peter Jackson. Produção: Peter Jackson. Roteiro:
Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson. Intérpretes: Elijah Wood, Ian McKellen,
Liv Tyler, Viggo Mortensen, Sean Astin, Cate Blanchett, John Rhys-Davies, Bernard Hill,
Christopher Lee, Billy Boyd, Dominic Monaghan, Orlando Bloom, Hugo Weaving,
Miranda Otto, David Wenham, Brad Dourif, Karl Urban, Andy Serkis e outros. Manaus:
Warner Bros Entertainment do Brasil, 2005. DVD (179 minutos).
O SENHOR DOS ANÉIS: O RETORNO DO REI. Direção: Peter Jackson. Produção: Peter Jackson.
Roteiro: Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson. Intérpretes: Elijah Wood, Ian
McKellen, Liv Tyler, Viggo Mortensen, Sean Astin, Cate Blanchett, John Rhys-Davies,
Bernard Hill, Billy Boyd, Dominic Monaghan, Orlando Bloom, Hugo Weaving, Miranda
Otto, David Wenham, Karl Urban, John Noble, Andy Serkis, Ian Holm, Sean Bean e
outros. Manaus: Warner Bros Entertainment do Brasil, 2005. DVD (201 minutos).
Os filmes da série As Crônicas de Nárnia, lançados até o momento, estão disponíveis nas seguintes
edições de DVD:
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA: O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA. Direção: Andrew Adamson.
Produção: Mark Johnson. Roteiro: Ann Peacock, Andrew Adamson, Christopher Markus
e Stephen McFeely. Intérpretes: Georgie Henley, Skandar Keynes, William Moseley, Anna
Popplewell, Tilda Swinton, James McAvoy, Jim Broadbent, Ray Winstone, Dawn French,
152 COMMUNIO • Michaël Devaux

apenas um divertimento e uma evasão da realidade? O projeto dos autores não


seria mais sério? Não poderíamos, com efeito, esperá-lo de dois dos melhores
especialistas de literatura medieval que a Universidade de Oxford já produziu:
John Ronald Teuel Tolkien (1892-1972) e Clives Staples Lewis (1893-1963)?
Como compreender seu projeto? Qual é sua concepção de Fantasia e, mais
especificamente, desta imaginação que qualificam de mitopoética?
O filósofo Emmanuel Martineau alertava-nos, não faz tanto tempo,
com relação à determinada Fantasia como um empobrecimento do imaginário
e, assim, pôde [...] denunciar a confusão corrente entre o imaginário e a
“ficção”, como dizem, indulgentemente, os “escritores” atuais: longe de
atestar uma vitalidade e uma riqueza do imaginário – pensemos, dentre uma
centena de exemplos, nos danos causados ao cinema pela fantasia heróica [...]
–, a inflação do ficcional resulta do empobrecimento. Em regime de “ficção”,
o “homem imaginário” dá lugar ao homem imaginado, moldado, fabricado,
inventado. O homem não se apropria mais de seu imaginário, deixando-o
entrar nele, é ele que entra num falso imaginário que, assim, se torna ídolo
entre os ídolos2.
Não haverá, portanto, salvação filosófica para o imaginário a não ser
fora da Fantasia ou, por outro lado, pode ter esta uma pertinência filosófica,
ou até mesmo teológica, a ponto que possamos dizer, em contrapartida, que
a imaginação pode operar a Salvação? Não haverá alternativa senão entre ver
nosso mundo com as possibilidades da fenomenologia dando livre curso à
nossa imaginação3 ou, então, imaginar um outro mundo, “fantástico” que
não tem nenhuma relação com nosso mundo, para nele refugiarmos-nos,
evadirmos-nos, e divertirmo-nos?
Que o cinema, e o imaginário que este pode veicular, tenham sofrido com os
filmes de fantasia heróica está aqui, na verdade, fora de questão. Com efeito, de um
lado, o (sub)gênero de que trataremos infra não é o da fantasia heróica – inaugurada

Rupert Everett, Liam Neeson e outros. Manaus: Buena Vista Home Entertainment, 2006.
DVD (143 minutos).
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA: O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA. Direção: Andrew Adamson.
Produção: Mark Johnson. Roteiro: Andrew Adamson, Christopher Markus e Stephen
McFeely. Intérpretes: Ben Barnes, Georgie Henley, Skandar Keynes, William Moseley,
Anna Popplewell, Sergio Castellitto, Eddie Izzard, Peter Dinklage, Liam Neeson e outros.
Manaus: Buena Vista Home Entertainment, 2008. DVD (150 minutos)].

N. do T.: O autor, embora escrevendo em francês, usa os termos “Fantasy”, “high fantasy”, bem
como “heroic fantasy” em inglês. Optou-se pela tradução dos mesmos, vistos terem uso corrente no
Brasil, mantendo, contudo, o grifo do autor.
2
MARTINEAU, Emmanuel. “Le Plan de l’Image”. In: Les Cahiers du Collège Iconique, II, 1994,
p. 31.
3
“Aluno de Husserl bem como de Heidegger, considero o irreal como o terreno natal da fenomenologia”.
MARTINEAU, Emmanuel. “Heidegger et la France”. In: Conférence, no 14, printemps de 2002,
p. 220.
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 153
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS

pela série Conan, criada, em 1932, por Robert Ervin Howard (1906-1936)4 –, mas
o da alta fantasia – inaugurada por O Senhor dos Anéis de Tolkien5, publicado em
três volumes entre 1954 e 1955. E, por outro lado, a desqualificação filosófica que
consiste em descartar a ficção como algo que não dá acesso a nosso mundo, mas a
um outro mundo6, repleto de homens imaginados, bem poderia se acompanhar das
declarações expressas de um Tolkien, justamente, quando ele escreve que:
A recuperação (que inclui um retorno e uma renovação da saúde) é uma re-
tomada – a retomada de uma visão clara. Não digo “ver as coisas como elas são”,
4
Podemos agora ler em francês os textos do próprio Howard, sem intervenção das penas de Lin Carter (1930-
1988) ou de Lyon Sprague de Camp (1907-2000), graças aos esforços de Patrice Louinet, organizadora da
edição em inglês e de sua tradução francesa. Ver:
HOWARD, Robert Ervin. Conan l’Intégrale – Tome 1: Le Cimmérien. (Sous la direction de Patrice
Louinet; Introduction et traduction de Patrice Louinet, Illustrations de Mark Schultz). Paris:
Bragelonne, 2007.
HOWARD, Robert Ervin. Conan l’Intégrale – Tome 2: L’Heure du Dragon. (Sous la direction
de Patrice Louinet; Introduction et traduction de Patrice Louinet, Illustrations de Gary
Gianni). Paris: Bragelonne, 2008.
HOWARD, Robert Ervin. Conan l’Intégrale – Tome 3: Les clous rouges. (Sous la direction
de Patrice Louinet; Introduction et traduction de Patrice Louinet, Illustrations de Greg
Manchess). Paris: Bragelonne, 2008.
[N. do E.: As estórias de Conan estão disponíveis, em língua inglesa, em diferentes edições
inglesas e norte-americanas, dentre as quais destacamos a seguinte: HOWARD, Robert Ervin. The
Complete Chronicles of Conan. London: Gollancz, 2009. Em língua portuguesa, algumas das estórias
de Conan, foram publicadas na seguinte edição: HOWARD, Robert Ervin. Conan, o Cimério.
(Tradução de Claudio Salles Carina). São Paulo: Conrad, 2006. 2v].
5
Exceto em caso de indicação contrária, utilizamos a seguinte tradução francesa: TOLKIEN, J. R.
R. Le Seigneur des anneaux. (Traduit par Francis Ledoux; Illustrations de Allan Lee). Paris: Christian
Bourgois, 2003. Para a versão inglesa da obra ver: TOLKIEN, J. R. R. The Lord of the Rings.
London: Harper Collins Publishers, 1994.
[N. do T.: Os livros da trilogia O Senhor dos Anéis estão disponíveis em língua portuguesa nas
seguintes edições brasileiras:
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: As duas torres. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.]
6
“A liberdade ou a originalidade do imaginário de que estamos à procura na iniciação a Aristóteles
não deve ser confundida com uma ‘separação’, um chôrismos. Trata-se de uma originalidade, ou de
uma especificidade ‘intencional’ e não real: para assegurar a possibilidade de um mundo do imaginário,
em nada é necessário representar o imaginário como um outro mundo. Muito pelo contrário, o ‘outro’
mundo talvez seja este mundo da percepção que espontaneamente tomamos como sendo nosso único
mundo, mas que já constitui uma alteração, em todo caso uma interpretação deste mundo do ser pelo
qual lutam em comum o pensamento grego e a fenomenologia”. MARTINEAU, Emmanuel. “Mimesis
dans la Poétique: Pour une solution phenoménologique (à propos d’un livre récent)”. In: Revue de
Métaphysique et de Morale, 1976, 4, p. 459.
154 COMMUNIO • Michaël Devaux

porque assim me envolveria com os filósofos, porém posso arriscar-me a dizer “ver
as coisas como nós devemos (ou deveríamos) vê-las” – como coisas à parte de nós
mesmos.
[...] As histórias de fadas tratam, em grande parte, ou (as melhores) principalmente,
de coisas simples e fundamentais, intocadas pela Fantasia, mas essas simplicidades
tornam-se mais luminosas pelo seu ambiente. Porque o criador de histórias que se
permite “tomar liberdades” com a Natureza pode ser seu amante, não seu escravo7.

Tolkien aproxima-se talvez aqui o mais perto da palavra de ordem


fenomenólogica de retorno às coisas mesmas (nach die Sachen selbst) de Edmund
Husserl (1859-1938)8. Não é, portanto, a abundância de seres imaginados (elfos,
ogros, gnomos, goblins, etc.) ou o recurso à magia, que define, para Tolkien, uma
“boa” Fantasia  muito pelo contrário; mas sim a possiblidade que abre uma
narrativa de dar novamente acesso a evidências da vida que a banalidade tornou
obscuras. A Fantasia tem por objetivo voltar a nos dar acesso a nosso mundo,
percebê-lo de outra maneira. E para tanto, ela não recorre necessariamente a
um mundo totalmente outro: assim, a Terra Média de Tolkien (com efeito, a
oikoumene, a terra habitável dos gregos), nunca é nada além do nosso mundo
num passado ucrônico9. E o verdadeiro meio da libertação de nossa percepção do
mundo se apóia na fé.
Para tentar mostrar que a Fantasia não conduz obrigatoriamente a um
empobrecimento do imaginário10, teremos que considerar o (re)nascimento
do gênero mitopoético em Tolkien e Lewis, sem esquecer aquele com quem
7
TOLKIEN. J. R. R. “Du conte de fées”. In: Les monstres et les critiques et autres essais. (Traduit par
Christine Laferrière). Paris: Christian Bourgois, 2006. pp. 181, 183 (tradução modificada). [N.
do T.: A conferência citada, cujo título original é “On Fairy-Stories”, está disponível na seguinte
edição brasileira: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. (Tradução de Ronald Kyrmse). São
Paulo: Conrad, 2006. Todas as citações da obra ao longo desse ensaio serão substituídas pelo trecho
equivalente dessa edição brasileira. Aqui ver: pp. 63, 67-68].
8
Idem. Ibidem., §19. [N. do E: “Por trás da fantasia existem vontades e poderes reais, independentes
da mente e dos propósitos dos homens. De qualquer modo, é essencial à história de fadas genuína,
diferentemente do uso dessa forma para fins menores ou aviltados, que ela seja apresentada como
‘verdadeira’” (TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. p. 20)].
9
Tolkien escreveu principalmente as lendas da primeira, segunda, terceira e princípios da quarta eras
da Terra Média. Acerca de sua identificação da Terra Média com a oikoumene, ver: TOLKIEN. J. R.
R. The Letters of J. R. R. Tolkien. (Selected and edited by Humphrey Carpenter, with the assistance
of Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Company, 1981. pp. 186, 197,
239 e 282. Ao fazer tal identificação Tolkien tinha por ambição, como dizemos informalmente,
escrever uma “mitologia para a Inglaterra” (Ibidem. p. 144), com nossa época representando a sexta
ou sétima era (Ibidem. p. 283).
10
Para ir a fundo no que está em questão na crítica de Emmanuel Martineau, temos o projeto de
estudar, em outra ocasião, a relação entre a époché fenomenológica e a suspensão da incredulidade
de Samuel Taylor Coleridge (1772-1834). Acerca desta questão, ver as seguintes obras: RUTHROF,
H. G. “Reading Works of Literary Art”. In: The Journal of Aesthetic Education, 8, 1974, 4, p. 75-
90; NATANSON, M. Literature, Philosophy and the Social Sciences: Essays in Existentialism and
Phenomenology. The Hague: Martinus Nijhoff, 1962.
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 155
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS

sua dívida é confessa: George MacDonald (1824-1905). Apresentaremos estes


autores brevemente, antes de considerar sua concepção do conto de fadas. In fine,
nos concentraremos nos contos contemporâneos e nas reflexões teóricas.

I - AMIGOS ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA: OS “INKLINGS”

I.1 - O AUTOR DE O SENHOR DOS ANÉIS

John Ronald Reuel Tolkien nasceu em 3 de janeiro de 1892, na cidade


de Bloemfontein, na África do Sul, e faleceu em 2 de setembro de 1973, em
Bournemouth, no Reino Unido. Após a morte prematura do pai, Arthur Reuel
Tolkien (1857-1896), ele viveu com a mãe, Mabel Suffield (1870-1904), que,
retornando ao Reino Unido, se converteu à fé católica e morreu quando Tolkien
tinha doze anos de idade. Ficando só com seu irmão mais novo, Hilary Arthur
Reuel Tolkien (1894-1976), sua educação é confiada ao padre Francis Xavier
Morgan (1857-1933), do Oratório de Birmingham. Ele fará, em seguida, seus
estudos na Oxford University, antes de conhecer o horror, na batalha da Somme,
durante a Primeira Guerra Mundial. Ele volta para casa devido à “febre das
trincheiras”. Sua hospitalização lhe dará tempo para escrever, por volta de 1917,
The Book of Lost Tales [O livro das lendas perdidas] em que ganha corpo uma
mitologia que desenvolverá por toda a vida e que se tornará a obra The Silmarillion
[O Silmarillion]*, publicada pela primeira vez 1977. Este legendarium começa
com elementos bem próximos da mitologia escandinava que o estudante, em
seguida professor, Tolkien tanto amava, mas suas sucessivas redações o levaram a
cristianizá-lo. Assim, os deuses não se casam mais e não têm mais filhos, mas os
deuses “menores” são pensados de acordo com a hierarquia angelical11. Tolkien
conhece o sucesso com a publicação, em 1937, de The Hobbit [O Hobbit]12 
conto que ele havia escrito para ninar os filhos John, Michael, Christopher e
Priscilla, e que não tem relação, nesta época, com O Silmarillion que relata a
história da Terra Média. A pedido de seu editor, Sir Stanley Unwin (1885-1968),
que deseja uma continuação para O Hobbit, escreve O Senhor dos Anéis, que é, de
*
N.do T: Disponível em português na seguinte edição brasileira: TOLKIEN. J. R. R. O Silmarillion.
(Organizado por Christopher Tolkien; tradução de Waldéa Barcellos). São Paulo: Martins Fontes,
2007.
11
Ver: DEVAUX, Michaël. “Les anges de l’Ombre: Chair, corps et corruption chez Tolkien”. In:
Tolkien, Les racines du légendaire. Genève: Ad Solem, 2003. pp. 191-245.
12
A composição da primeira versão completa de O Hobbit data de fins de 1932, ver: RATELIFF,
John D. The History of The Hobbit. 2007. Volume I, p. xvi. Tolkien modificou a narrativa para
colocá-la em “concordância” com O Senhor dos Anéis, ver: TOLKIEN. J. R. R. The Annotated
Hobbit. (Edited by de Douglas Anderson). Boston: Houghton Mifflin, 2nd Edition, 2002. [N. do
T.: A obra O Hobbit foi publicada em português na seguinte edição brasileira: TOLKIEN. J. R. R.
O Hobbit. (Tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves). São Paulo: Martins Fontes, 2002].
156 COMMUNIO • Michaël Devaux

fato, bem mais uma continuação de O Silmarillion. O Senhor dos Anéis detalha o
final da Terceira Era, enquanto O Silmarillion narra a criação do mundo e alguns
acontecimentos da Primeira Era e da Segunda Era.
Tolkien escreveu também outros contos muito mais breves e menos
desenvolvidos no que diz respeito à Terra Média13. Ele tinha, igualmente, o hábito
13
TOLKIEN. J. R. R. Faërie et autres textes. (Nouvelle édition établie par Vicent Ferré). Paris:
Christian Bourgois, 2003. [N. do E.: As denomidas “Histórias da Terra-Média”, escritas
por J. R. R. Tolkien, publicadas após a morte do autor, foram organizadas por seu filho,
Christopher Tolkien, e estão disponíveis, em dez volumes, nas seguintes edições em inglês:
TOLKIEN. J. R. R. The Book of Lost Tales: Part One. (Edited by Christopher Tolkien).
Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1984. (The History of Middle-
Earth, Volume 1).
TOLKIEN. J. R. R. The Book of Lost Tales: Part Two. (Edited by Christopher Tolkien).
Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1984. (The History of Middle-
Earth, Volume 2).
TOLKIEN. J. R. R. The Lays of Beleriand. (Edited by Christopher Tolkien). Boston
/ New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1985. (The History of Middle-Earth,
Volume 3).
TOLKIEN. J. R. R. The Shaping of Middle-Earth: The Quenta, the Ambarkanta and the
Annals. (Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin
Harcourt, 1986. (The History of Middle-Earth, Volume 4).
TOLKIEN. J. R. R. The Lost Road and Other Writings. (Edited by Christopher Tolkien).
Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1987. (The History of Middle-
Earth, Volume 5).
TOLKIEN. J. R. R. The Return of the Shadow: The History of The Lord of the Rings,
Part One. (Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin
Harcourt, 1989. (The History of Middle-Earth, Volume 6).
TOLKIEN. J. R. R. Treason of Isengard: The History of The Lord of the Rings, Part Two.
(Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt,
1989. (The History of Middle-Earth, Volume 7).
TOLKIEN. J. R. R. The War of the Ring: The History of The Lord of the Rings, Part Three.
(Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt,
1990. (The History of Middle-Earth, Volume 8).
TOLKIEN. J. R. R. Sauron Defeated: The History of The Lord of the Rings, Part Four.
(Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt,
1992. (The History of Middle-Earth, Volume 9).
TOLKIEN. J. R. R. Morgoth’s Ring: The Later Silmarillion, Part One. (Edited by
Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1994. (The
History of Middle-Earth, Volume 10).
TOLKIEN. J. R. R. The War of the Jewels: The Later Silmarillion, Part One. (Edited by
Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1994. (The
History of Middle-Earth, Volume 11).
TOLKIEN. J. R. R. The Peoples of Middle-Earth. (Edited by Christopher Tolkien).
Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1996. (The History of Middle-
Earth, Volume 12).
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 157
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS

de enviar a seus filhos cartas do Papai Noel14 absolutamente críveis! Tolkien era,
enfim, um professor universitário que desenvolveu sua carreira principalmente em
Oxford, onde ensinou o inglês antigo no Pembroke College, de 1925 a 1945, e no
Merton College, de 1945 a 1959. Especialista notadamente em Beowulf, poema
do inglês antigo, composto, aproximadamente, no século X, publica, em 1936,
um artigo a este respeito que se tornou famoso e é sempre reeditado nas antologias
críticas15. Suas publicações universitárias, raras, permanecem, entretanto,
referências até hoje. Filólogo, ele uniu suas preocupações “profissionais” a seu
hobby, inventando idiomas. Para ele, as histórias eram secundárias em relação
ao idioma: ele inventou as histórias para fazer seus idiomas terem vida. Dois
deles são objeto de estudos: o Quenya e o Sindarin, os idiomas dos elfos. Tolkien
divertia-se inclusive fazendo a tradução, do latim para o Quenya, do Pater Noster
e da Ave Maria16. Acrescentemos, por fim, que era um católico, muito apegado à
liturgia latina e que foi amigo pessoal do padre Louis Bouyer (1913-2004), um
dos fundadores da edição francesa de COMMUNIO*.

Christopher Tolkien, também, editou mais três obras inéditas de seu pai, que, em inglês,
estão disponíveis nas seguintes edições:
TOLKIEN. J. R. R. Unfinished Tales of Numenor and Middle-Earth. (Edited by
Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. The Children of Hurin. (Edited by Christopher Tolkien). Boston /
New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2007.
TOLKIEN. J. R. R. The Legend of Sigurd and Gudrun. (Edited by Christopher Tolkien).
Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2009.
Dentre todas essas obras, somente os Contos Inacabados foram publicados no Brasil, que
estão disponíveis na seguinte edição: TOLKIEN. J. R. R. Contos Inacabados. (Tradução de
Ronald Eduard Kyrmse). São Paulo: Martins Fontes, 2002].
14
TOLKIEN. J. R. R. The Father Christmas Letters. (Edited by Baillie Tolkien; with Illustrations by
J. R. R. Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, Revised Edition, 1999.
15
Ver a, já citada, coletânea: Les monstres et les critiques et autres essais. [N. do E.: O texto foi
publicado originalmete em inglês na seguinte edição: TOLKIEN. J. R. R. “Beowulf: The Monsters
and the Critics”. In: Proceedings of the British Academy, 22 (1936): 245-295. O texto, também, se
encontra em língua inglesa na seguinte coletânea: TOLKIEN, J. R. R. The Monsters and the Critics.
London: George Allen & Unwin, 1983].
16
Publicados em Vinyar Tengwar, janeiro de 2002, no 43, disponível na Internet no endereço:
http://www.elvish.org/VT/VT43sample.pdf
O leitor que tiver curiosidade de escutar como são lidos estes textos, poderá fazê-lo nos seguintes
endereços:
http://www.jrrvf.com/~glaemscrafu/audio/ataremma.mp3
http://www.jrrvf.com/~glaemscrafu/audio/aiamaria.mp3
Acessados em 26 de agosto de 2008.
*
N. do E.: Devemos, também, destacar que J. R. R. Tolkien foi um dos colaboradores da edição em
língua inglesa da Bíblia de Jerusalém, tendo trabalhado nos livros de Jó e de Jonas.
158 COMMUNIO • Michaël Devaux

I.2 - O AUTOR DE AS CRÔNICAS DE NÁRNIA

Clives Staples Lewis, por sua vez, nasceu perto de Belfast na Irlanda,
em 29 de novembro de 1893, e faleceu em 22 de novembro de 1963, em
Oxford17. “Jack”, como era conhecido pelos parentes e amigos, era o irmão
mais novo da família: seu irmão Warren Hamilton Lewis (1895-1973),
conhecido como “Warnie”, se tornou um major do exército britânico,
e permaneceu, depois de aposentar-se, ao lado de Jack, tornando-se seu
secretário e editor post-mortem. Warnie também fazia parte dos Inklings e
publicou diversos livros sobre a História da França, sendo o século XVII seu
tema de predileção.
Em 1908, os dois irmãos tinham perdido a mãe, Florence Augusta
Hamilton (1862-1908), o que havia trazido o luto para a infância. Pouco
afeito para a vida escolar, Lewis conclui seus estudos secundários, de 1914
a 1917, com um tutor privado, William T. Kirkpatrick (1848-1921). Já
interessado nas mitologias célticas e nórdicas, quando de seu ano no Malvern
College, entre 1913 e 1914, se apaixonaria logo a seguir pela literatura
clássica. Serviu na Primeira Guerra Mundial e foi ferido na batalha de Arras.
Em 1919, começou os estudos, particularmente brilhantes, na Oxford
University. Vem em seguida o período em que será professor assistente,
entre 1925 e 1964, no Magdalen College, na Oxford University. É então,
em 1926, que ele conhece Tolkien, cujo papel será muito importante na
conversão ao cristianismo anglicano18, em 29 de setembro de 1931, após ter
17
Data de triste memória, já que trata-se do dia do atentado contra John F. Kennedy (1917-1963)
e da morte de Aldous Huxley (1894-1963)! [N. do E.: Acreditamos que o autor fez essa nota por
causa do livro Between Heaven and Hell {Entre o Céu e o Inferno} do filósofo e apologista católico
Peter Kreeft, em que o autor, aproveitando a coincidência da morte das três personagens históricas,
faz o relato de uma diálogo fictício entre os três sobre a morte e a religião. Nesse diálogo Huxley
propõe uma forma de panteísmo cristão orientalizado, Kennedy advoga o moderno humanismo
cristão e Lewis defende a tradicional visão conservadora do cristianismo. A obra foi publicada,
originalmente, na seguinte edição em inglês: KREEFT, Peter. Between Heaven and Hell: A Dialog
Somewhere Beyond Death with John F. Kennedy, C. S. Lewis, & Aldous Huxley. Downers Grove:
InterVarsity Press, 1982. Em língua portuguesa o livro está disponível na seguinte edição brasileira:
KREEFT, Peter. O Diálogo: Um debate além da morte entre John F. Kennedy, C. S. Lewis e Aldous
Huxley. (Tradução de Wanda de Assumpção). São Paulo: Mundo Cristão, 1986].
18
Ele havia perdido a fé com a idade de treze anos. No livro Surprised by Joy [Surpreendido pela
Alegria], sua autobiografia espiritual publicada em 1955, ele apresenta Tolkien da seguinte forma:
“Minha amizade com ele marcou a derrocada de dois de meus antigos preconceitos. Em minha entrada
no mundo, aconselharam-me fortemente (e implicitamente) a nunca confiar num papista e, em minha
entrada na faculdade de letras (explicitamente), a nunca acreditar num filólogo. Tolkien era uma coisa
e outra” (LEWIS, C. S. Surpris par la joie: Le profil de mes jeunes années. {Traduit de l’anglais par
Denis Ducatel}. Le Mont-Pèlerin: Raphaël, 1998. Capítulo XIV, p. 278). [N. do E: A obra em
inglês foi publicada na seguinte edição: LEWIS, C. S. Surprised by Joy: The Shape of My Early
Life. Harvest Books: Forth Washington, 1955. Em língua portuguesa a obra está, até o presente
momento, esgotada, mas foi publicada na seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. Surpreendido
pela Alegria. (Tradução de Eduardo Pereira e Ferreira). São Paulo: Editora Mundo Cristão, 1998.
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 159
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS

se tornado ateu, em 192919, ano da morte de seu pai, Albert James Lewis
(1863-1929). Durante a Segunda Gerra Mundial, de 1941 a 1944, Lewis
faz uma série de programas na rádio BBC que tiveram grande audiência20.
A partir de 1954, será professor no Magdalene College na Cambridge
University, onde a cadeira de literatura medieval e renascentista fora criada
para ele. Casa-se em 1956 com a poetisa e escritora Joy Gresham (1915-
1960)21.
Lewis publicou cerca de quarenta livros. Sua obra apresenta três facetas. Ela
é, primeiramente, a de um universitário: Lewis leu muito, chegando a publicar sua
concepção de leitura e crítica na obra An Experiment in Criticism [Um experimento
em crítica literária]22 de 1961; também publicou livros importantes, constituindo-
se em autoridade em sua área de especialização, tal como English Literature in
the Sixteenth Century [Literatura inglesa no século XVI]23 de 1954. Mas Lewis é
também, e sobretudo, conhecido por sua obra apologética The Problem of Pain
[O problema do sofrimento]24 de 1940, Miracles: A Preliminary Study [Milagres:
Um estudo preliminar]25 de 1947, Reflections on the Psalms [Reflexões sobre os

19
Acerca desta evolução, ver sua, já citada, autobiografia parcial Surpreendido pela Alegria. [N. do E.:
Outro fator decisivo na conversão de C. S. Lewis ao cristianismo foi a leitura do livro The Everlasting
Man {O homem eterno} de G. K. Chesterton (1874-1936), publicado originalmente em 1925 e
disponível, atualmente, na seguinte edição em inglês: CHESTERTON, G. K. The Everlasting Man.
In: Collected Works – Volume II: St. Francis of Assisi, the Everlasting Man, St. Thomas Aquinas. San
Francisco: Ignatius Press, 1986].
20
Reunidos, 1952, sob a forma do livro Mere Christianity. Em francês ver: LEWIS, C. S. Voilà
pourquoi je suis chrétien. (Traduit de l’anglais par Aimé Viala). Guebwiller: Ligue pour la lecture de la
Bible, 1979. A obra em francês foi reeditada como: LEWIS, C. S. Les Fondements du christianisme.
(Traduit de l’anglais par Aimé Viala). Guebwiller: Ligue pour la lecture de la Bible, 1985. [N. do T.:
A obra foi publicada em português na seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e
Simples. (Tradução de Álvaro Oppermann e Marcelo Brandão Cipolla). São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2008].
21
O casamento e luto de C. S. Lewis foram objeto, em 1993, do filme Shadowlands [Terra das
sombras], dirigido por Richard Attenborough, com Anthony Hopkins no papel de Lewis e Debra
Winger como Joy. Entretanto, vale mais ler o livro que o próprio Lewis consagrou-lhes: LEWIS,
C. S. Apprendre la mort. (Traduit de l’anglais par J. Prignaud et T. Radcliffe). Paris: Cerf, 1974. [N.
do T.: Em língua portuguesa ver a seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. A anatomia de uma dor:
Um luto em observação. São Paulo: Editora Vida, 2006].
22
LEWIS, C. S. Une expérience de critique littéraire. (Traduit de l’anglais par Jean Autret). Paris:
Gallimard, 1965.
23
LEWIS, C. S. English Literature in the Sixteenth Century: Excluding Drama. Oxford: Clarendon
Press, 1954.
24
LEWIS, C. S. Le Problème de la souffrance. (Traduit de l’anglais par Marguerite Faguer; préface de
Maurice Nédoncelle). Le Mont-Pèlerin: Raphaël, 2001. [N. do T.: Em português ver: LEWIS, C.
S. O problema do sofrimento. São Paulo: Editora Vida, 2006].
25
LEWIS, C. S. Les miracles: Étude préliminaire. (Traduit de l’anglais par Jacques Blondel). Paris: S.
P. B., 1985. [N. do T.: Em português ver: LEWIS, C. S. Milagres. São Paulo: Editora Vida, 2006]
160 COMMUNIO • Michaël Devaux

salmos]26 de 1958, The Four Loves [Os quatro amores] de 196027, e as Letters to
Malcom: Chiefly on prayer [Cartas a Malcolm: Principalmente sobre a oração]28
de 1963. Fazendo a ponte entre a apologética e as obras de ficção, encontra-se a
muito célebre The Screwtape Letters [Cartas de um diabo a seu aprendiz] de 194229,
onde vemos um jovem demônio tentar desviar do caminho certo seu “protegido”
e que, para tanto, pede conselhos a seu tio, mais elevado na hierarquia infernal
[...] em vão! As obras ficcionais consistem principalmente em duas séries: a The
Space Trilogy [Trilogia Espacial]30, de que voltaremos a falar, e as celebríssimas The
Chronicles of Narnia [As Crônicas de Nárnia]31, sete livros publicados entre 1950
26
LEWIS, C. S. Réflexions sur les Psaumes. (Traduit de l’anglais par Denis Ducatel). Le Mont-
Pèlerin: Raphaël, 1999.
27
LEWIS, C. S. Les Quatre amours. (Traduit de l’anglais par Denis Ducatel et Jean-Léon Müller).
Le Mont-Pèlerin: Raphaël, 2005. [N. do T.: Em português ver: LEWIS, C. S. Os quatro amores.
(Tradução de Paulo Salles). São Paulo: Martins Fontes, 2005].
28
LEWIS, C. S. Lettres à Malcom: Principalement sur la prière. (Traduit de l’anglais par Denis
Ducatel). Le Mont-Pèlerin: Raphaël, 2000.
29
LEWIS, C. S. Tactique du diable: Lettres d’un vétéran de la tentation à un novice. (Traduit de
l’anglais par Étienne Huser). Bâle: EBV, 7e édition, 2007. [N. do T.: Em português ver: LEWIS,
C. S. Cartas de um Diabo a seu Aprendiz. (Tradução de Juliana Lemos). São Paulo: Martins Fontes,
2005].
30
LEWIS, C. S. La Trilogie Cosmique: Au-delà de la planète silencieuse, Perelandra, Cette hideuse
puissance. (Traduction de Maurice Le Péchoux). Lausanne: Éditions L’Âge d’Homme, 1997.
31
Em fancês a obra foi publicada em diferentes edições, sendo as mais recentes as seguintes:
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 1: Le neveu du magicien. (Illustrations de
Pauline Baynes; traduction de Cécile Dutheil de la Rochère). Paris: Gallimard-
Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 2: Le lion, la sorcière blanche et l’armoire
magique. (Illustrations de Pauline Baynes; traduction de Anne-Marie Dalmais). Paris:
Gallimard-Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 3: Le cheval et son écuyer. (Illustrations de
Pauline Baynes; traduction de Philippe Morgaut). Paris: Gallimard-Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 4: Le prince Caspian. (Illustrations de Pauline
Baynes; traduction de Anne-Marie Dalmais). Paris: Gallimard-Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 5: L’odyssée du passeur d’aurore. (Illustrations
de Pauline Baynes; traduction de Philippe Morgaut). Paris: Gallimard-Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 6: Le fauteuil d’argent. (Illustrations de Pauline
Baynes; traduction de Philippe Morgaut). Paris: Gallimard-Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 7: La dernière bataille. (Illustrations de Pauline
Baynes; traduction de Philippe Morgaut). Paris: Gallimard-Jeunesse, 2008.
[N. do E.: Em língua portuguesa a obra está disponível em três edições diferentes, todas publicadas
pela Martins Fontes. Uma edição de luxo reúne os sete livros num único volume, em papel couchê,
com capa dura e com ilustrações coloridas de Pauline Baynes (1922-2008). Outra edição num
único volume, em brochura, reúne, também, as sete estórias e apresenta as ilustrações de Pauline
Baynes em preto e branco. Por fim, destacamos a edição da obra em sete volumes:
LEWIS, C. S. Crônicas de Nárnia – Volume I: O Sobrinho do Mago. (Ilustração de Pauline
Baynes; tradução de Paulo Mendes Campos). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 161
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS

e 1956, onde vemos um “mundo” constituir-se da gênese ao apocalipse, mas


sem a premeditação presente na obra de Tolkien, mesmo quando Lewis reutiliza
imagens que tem guardadas há anos. Mencionaremos igualmente Till We Have
Faces: A Myth Retold [Até que tenhamos um rosto: Um mito revisitado]32 de
1956, no qual o mito de Psiquê é reinventado.

I.3 - OS INKLINGS

Tolkien e Lewis pertenciam a um grupo  que, segundo Warnie, “não


era nem um clube, nem uma sociedade literária, ainda que participasse da
natureza de ambos”33  bastante informal: os Inklings34. Apesar deste nome,
que significa “suspeitas”, nenhum dos participantes aderiria às filosofias atéias
da suspeita de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Karl Marx (1818-1883) e
Sigmund Freud (1856-1939). A suspeita de que se trata é melhor dizendo
a da intuição vaga35. Se acreditarmos em Lewis, o clube começa a existir
stricto sensu sob este nome a partir de 1936, mesmo caso tenham pré-existido
reuniões bastante semelhantes: “Temos uma espécie de clube informal chamado
os Inklings: as qualificações” para ser membro “são um gosto pela escrita, e o
cristianismo”36. O grupo se reunia, notadamente, durante a Segunda Guerra

LEWIS, C. S. Crônicas de Nárnia – Volume II: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa.


(Ilustração de Pauline Baynes; tradução de Paulo Mendes Campos). São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
LEWIS, C. S. Crônicas de Nárnia – Volume III: O Cavalo e seu Menino. (Ilustração de
Pauline Baynes; tradução de Paulo Mendes Campos). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
LEWIS, C. S. Crônicas de Nárnia – Volume IV: Príncipe Caspian. (Ilustração de Pauline
Baynes; tradução de Paulo Mendes Campos). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
LEWIS, C. S. Crônicas de Nárnia – Volume V: A viagem do Peregrino da Alvorada. (Ilustração
de Pauline Baynes; tradução de Paulo Mendes Campos). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
LEWIS, C. S. Crônicas de Nárnia – Volume VI: A Cadeira de Prata. (Ilustração de Pauline
Baynes; tradução de Paulo Mendes Campos). São Paulo: Martins Fontes, 2002
LEWIS, C. S. Crônicas de Nárnia – Volume VII: A Última Batalha. (Ilustração de Pauline
Baynes; tradução de Silêda Steuernagel). São Paulo: Martins Fontes, 2003].
32
LEWIS, C. S. Un visage pour l’éternité: Un mythe réinterprété. (Traduit de l’anglais par M. Le
Péchoux et D. Le Péchoux). Paris: LGF, 2007. [N. do E.: Em Portugal, o livro foi lançado com o
título de No reino de Glome]
33
LEWIS, Warren H. “Memoir”. In: Letter of C. S. Lewis. London: Geoffrey Bles, 1966. p. 13.
34
CARPENTER, Humphrey. The Inklings: C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien, Charles Williams and their
friends. London: George Allen & Unwin, 1978.
35
“Chamei de ‘brincadeira’ a este nome Inklings, pois era um jogo de palavras engenhoso e divertido à sua
maneira, evocando pessoas que possuem idéias e intenções vagas ou imprecisas, e outras que chafurdam
na tinta [ink] por diletantismo” (TOLKIEN, J. R. R. “Tolkein to William Luther White”. {11
September 1967}. In: The Letters of J. R. R. Tolkien. p. 388).
36
The Collected Letters of C. S. Lewis: Volume II – Books, Broadcasts, and the War: 1931-1949. (Edited
by W. Hooper). London: Harper Collins, 2004. p. 183.
162 COMMUNIO • Michaël Devaux

Mundial, na maior parte das vezes às terças-feiras ao final da manhã, no pub


The Eagle & Child. As leituras dos textos em curso eram feitas, por sua vez, nas
quintas-feiras depois do jantar, na residência de Lewis, no Magdalen College.
Estas reuniões continuaram a existir até à morte de Lewis, tornando-se mais
regulares a partir de 1949. Tolkien e Lewis eram os pilares deste grupo que reunia
cerca de vinte pessoas*. Tolkien leu ali O Hobbit, O Senhor dos Anéis, e as The
Notion Club Papers [Os papéis do clube Notion]** (que coloca em cena o grupo
dos Inklings propriamente dito!), e Lewis apresentou Além do planeta silencioso,
Perelandra, O problema do sofrimento e The Great Divorce [O grande abismo]37.

I.4 - A DÍVIDA PARA COM GEORGE MACDONALD

Na origem das preocupações e de certas realizações de Tolkien e de Lewis,


encontra-se a obra de George MacDonald. Nascido, em 10 de dezembro de
1824, numa família próxima do calvinismo, fez seus estudos na Universidade
de Aberdeen e em seguida no Highbury College em Londres. Torna-se pastor em
1850, mas seu questionamento da predestinação para pregar38 o universalismo do
amor de Deus não agrada em nada. Ele faz cursos, em seguida, em Londres e nos
Estados Unidos, entre 1871 e 1872. Próximo de Lewis Carroll (1832-1898), a
recepção de Alice’s Adventures in Wonderland [Alice no país das maravilhas] pelas
três filhas de MacDonald convence Carroll a publicar seu livro. Sua obra é muito
prolífica e nos limitaremos aqui ao que reteve a atenção de nossos Inklings. Esta se

*
N. do E.: Além dos já citados J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis e W. H. Lewis, o grupo dos Inklings era
formado por Charles Williams (1886-1945), Sir Percy Bates (1879-1946), Adam Fox (1883-1977),
Charles Leslie Wrenn (1895-1969), Hugo Dyson (1896-1975), James Dundas-Grant (1896-
1985), Owen Barfield (1898-1997), R. B. McCallum (1898-1973), Nevill Coghill (1899-1980),
Robert Havard (1901-1985), Lord David Cecil (1902-1986), Gervase Mathew (1905-1976), C. E.
Stevens (1905-1976), Colin Hardie (1906-1998), J. A. W. Bennett (1911-1981), Roger Lancelyn
Green (1918-1987), John Wain (1925-1994) e Christopher Tolkien. Para maiores informações
sobre o grupo dos Inklings, além da supracitada obra The Inklings: C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien,
Charles Williams and their friends de Humphrey Carpenter (1946-2005), ver: DURIEZ, Colin &
PORTER, David. The Inklings Handbook: The Lives, Thought and Writings of C. S. Lewis, J. R. R.
Tolkien, Charles Williams, Owen Barfield, and Their Friends. Atlanta: Chalice Press, 2001.
**
N. do E.: A estória The Notion Club Papers, escrita por Tolkien em 1945, foi publicada pela
primeira vez em 1992 no livro Sauron Defeated, nono volume da The History of Middle-Earth,
editada por Christopher Tolkien.
38
LEWIS, C. S. Le Grand divorce: Entre le ciel et la terre. Le Mont-Pèlerin: Raphaël, 1998. [N.
do T.: Em português ver: LEWIS, C. S. O grande abismo. (Tradução de Ana Schäffer). São Paulo:
Editora Vida, 2006].
38
George MacDonald publicou três séries de Unspoken Sermons [Sermões não proferidos], em
1867, 1885 e 1889. Lewis baseou-se em grande parte nessas séries para sua edição, de 1946, da
obra: George MacDonald: An Anthology – 365 Readings. [Edited by C. S. Lewis]. London: Harper
One, 2001.
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 163
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS

volta sobretudo a seus contos, quer se trate dos clássicos da literatura infantil39, ou
dos contos para adultos tais como Phantastes40 de 1858 e Lilith41 de 1895. Nestes,
trata-se de “viagens” em que a questão é atingir finalmente um estado espiritual
superior. Mencionaremos igualmente dois textos teóricos: “The Imagination: Its
Functions and its Culture” [A imaginação: Suas funções e cultura] de 1882 e “The
Fantastic Imagination” [A imaginação fantástica] de 189342. Neles, MacDonald
desenvolve a idéia segundo a qual o uso da imaginação é indispensável à nossa
humanidade: a imaginação humana é, na finitude, o equivalente ao poder criador
infinito de Deus. Em sendo a imaginação a faculdade de todas as percepções,
pode-se (especialmente o artista) perceber, assim, as verdades que Deus colocou
no seio do mundo.
A dívida confessa de Lewis para com MacDonald não é pequena: a
leitura de Phantaste, diz ele, “batizou” sua imaginação43 e, segundo o próprio
testemunho, nunca escreveu um único livro sem citar o escocês44. Chegou até ao
ponto de imaginar reencontrá-lo no purgatório em O grande abismo45. Citemos
ainda a influência da edição de 1884, prefaciada por MacDonald, das Letters from
Hell [Cartas do Inferno], de Valdemar Adolph Thisted (1815-1887), que deu a
Lewis a idéia de seu famoso Cartas de um diabo a seu aprendiz.
39
George MacDonald publicou The Princess and the Goblins [A princesa e o Goblin] em 1872,
The Princess and Curdie [A princesa e Curdie] em 1883, e algumas outras estórias infantis,
das quais várias foram traduzidos para o francês por Pierre Leyris (1907-2001) e publicadas
na seguinte edição: MacDONALD, George. Contes du jour et de la nuit. (Illustrations de
Georges Lemoine; traduction de Pierre Leyris). Paris: Bordas, 1980. As duas principais obras
infantis de George MacDonald, nunca publicadas em francês, estão disponiveis nas seguintes
edições em inglês:
MacDONALD, George. The Princess and the Goblin. (Illustrated by Arthur Hughes).
London: Puffin, 1996.
MacDONALD, George. The Princess and Curdie. (Illustrated by Helen Stratton).
London: Puffin, 1996.
[N. do T.: Em língua portuguesa apenas a seguinte obra desse autor: MacDONALD, George.
A princesa e o Goblin. (Tradução de Keila Litvak). São Paulo: Landy, 2003].
40
MacDONALD, George. Phantastes: A Faerie Romance for Men and Women. (With an Introduction
by C. S. Lewis). Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1981.
41
MacDONALD, George. Lilith. (Traduction et introduction de Françoise Dupeyron-Lafay).
Paris: Michel Houdiard Editeur, 2007. Para as variantes manuscritas ver: MacDONALD, George.
Lilith: A Variorum Edition. (Edited by Rolland Hein; Foreword by Elizabeth McDonald Weinrich).
Whitethorn: Johannesen, 1997. 2v.
42
Reeditados em: MacDONALD, George. In: A Dish of Orts. Charleston: BiblioBazaar, 2006. pp.
11-43; pp. 258-264. Estes textos estão disponíveis em: http://www.george-macdonald.com/etexts.
htm (acessado em 26 de agosto de 2008).
43
LEWIS, C. S. Surpris par la Joie. Capítulo XI, p. 232; LEWIS, C. S. “Preface”. In: George
MacDonald: An Anthology – 365 Readings. p. xxxxviii.
44
“Com efeito, creio que nunca escrevi um livro em que não o cite” (LEWIS, C. S. “Preface”. p. xxxxvii).
45
LEWIS, C. S. Le Grand divorce. Capítulo IX.
164 COMMUNIO • Michaël Devaux

A dívida contraída por Tolkien é, sem dúvida, menos vasta46. Este partilha
com aquele a morte, como tema de predileção47. Tolkien também quis “prefaciar”
uma reedição da obra The Golden Key [A chave dourada] de MacDonald, mas, por
querer, também, explicar o que é um conto de fada, após quatro páginas, começou
a escrever mais um, que se tornou Smith of Wootton Major [Smith de Wootton
Major]48! Contudo, a dívida mais evidente é teórica: a idéia de “subcriação” ou de
mundo secundário lhe vem de MacDonald, mesmo se a palavra não se encontra
neste útimo. Vejamos portanto qual é sua concepção dos contos de fadas.

II - UMA IMAGINAÇÃO SUSPEITA: O “BELO REINO”*, UM MUNDO


PARA CRIANÇAS?

Antes de tudo, aquele que lê contos de fadas é sempre suspeito de ser


infantil, o que é pejorativo. Que o Evangelho segundo São Mateus diga que ser
“como as crianças” é a chave para entrar no Reino dos Céus (Mt 18,3-4)** não
muda muita coisa, em geral, nas discussões doutas e sérias. Para nossos autores,
o conto de fadas não é escrito apenas “para as crianças”. Existem contos de fadas
“para adultos”. Phantastes: A Faerie Romance for Men and Women [Phantastes:
Um conto de fadas para homens e mulheres] de George MacDonald, O Senhor
dos Anéis, de J. R. R. Tolkien49 e That Hideous Strenght: A Modern Fairy Tale for
46
BERGMAN, Frank. “Roots of Tolkien’s Tree: The Influence of George MacDonald and German
Romanticism Upon Tolkien’s Essay On Fairy-Stories”. In: Mosaic: A Journal for the Comparative
Study of Literature and Ideas, 10, 1977, 2, pp. 5-14.
47
TOLKIEN, J. R. R. Tolkien On Fairy-Stories. (Expanded edition, with Commentary and Notes
by Verlyn Flieger and Douglas A. Anderson). London: HarperCollins Publishers, 2008. p. 75;
TOLKIEN, J. R. R. The Letters of J. R. R. Tolkien. pp. 246, 262, 284.
48
TOLKIEN, J. R. R. “Draft Preface to The Golden Key”. In: Smith of Wootton Major. (Extended
version edited by Verlyn Flieger). London: HarperCollins Publishers, 2005. pp. 71-75. [ N. do E.:
Smith of Wootton Major é um conto de Tolkien, publicado em 1967 e ainda inédito em português.
O conto começou como uma tentativa de explicação do significado de Faërie, o Belo Reino, via
uma história curta cujo título original deveria ser “O Grande Bolo”. Na estória, um garoto encontra
uma fada-estrela num pedaço de bolo durante o Banquete Vinte-e-Quatro, e a explora até que
seja servido o próximo banquete. O título final da obra remete a uma das primeiras obras de P.G.
Wodehouse (1881-1975), bem como sugere ter sido escrita por um menino de sobrenome Smith].
*
N. do E.: No original o autor utiliza o termo ‘Faërie’, cuja sonoridade remete a palavra inglesa ‘fair’
(belo). Seguimos aqui a mesma opção de Ronald Kyrmse, ao traduzir a obra Sobre histórias de fadas
de J. R. R. Tolkien, que opta por utilizar a expressão “Belo Reino” no lugar desse termo.
**
N. do E.: Todas as passagens da Sagrada Escritura citadas pelo autor ao longo do presente ensaio
foram substituídas pela versão em língua portuguesa da seguinte edição: BÍBLIA DE JERUSALÉM.
(Tradução do texto em língua portuguesa diretamente dos originais). São Paulo: Sociedade Bíblica
Católica Internacional / Paulus, 1995.
49
O Senhor dos Anéis, para J. R. R. Tolkien, é um “conto de fadas”, mas, escreve ele, “conforme
a convicção que já exprimi em um longo ensaio ‘Sobre histórias de fadas’, em se tratando do público
adequado - para adultos” (TOLKIEN, J. R. R. The Letters of J. R. R. Tolkien. pp. 232-233).
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 165
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS

Grown-Ups [Aquela força medonha: Um conto de fadas moderno para adultos]


de C. S. Lewis, são explicitamente alguns deles. Tolkien, em sua conferência
de 1939 na University of Saint-Andrews, On Fairy Tales [Sobre histórias de
fadas], consagra a esta questão a seção “On Children” [Crianças]. Segundo o
senso comum, o conto de fadas é feito para elas. Todavia, trata-se de um erro da
parte daqueles que consideram as crianças como uma espécie de raça à parte. As
crianças não compreendem melhor os contos de fadas do que os adultos! Apenas
certas crianças e certos adultos têm o gosto por eles. Para Lewis, também, a idade
não poderia ser um critério objetivo: “Você sabe, não penso que a idade seja tão
importante quanto se crê. Uma parte de mim sempre tem doze anos, uma outra parte
de mim já tinha cinqüenta anos”50. Da mesma forma, certas crianças gostam do
sobrenatural e do maravilhoso, outras não; e certos adultos também se sentem, ao
mesmo tempo, na obrigação de excusarem-se por isso; mas, se uma história é boa,
ela o é quando se tem dez ou cinqüenta anos51. Enfim, como disse MacDonald
no ensaio “A imaginação fantástica”: “De minha parte, não escrevo para as crianças,
mas para aqueles que são como crianças, quer tenham cinco, cinqüenta ou setenta e
cinco anos”52.

II.1 - A SUBCRIAÇÃO

Entretanto, o que George MacDonald mais influenciou os Inklings reside,


sem dúvida, no conceito de subcriação de J. R. R. Tolkien53. Esta é pensada,
evidentemente, em relação à Criação divina. Da mesma forma que Deus criou
o mundo, o ser humano, feito “a imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26),
pode, por sua vez, criar um mundo no mundo: tal é a subcriação, um mundo
secundário em relação ao mundo real (primário). O meio que o homem tem para
subcriar é a arte literária. É uma forma de cooperar com Deus, como dizia Hans
Urs von Balthasar (1905-1988)54. O subcriador faz uma obra de arte se o leitor
50
LEWIS, C. S. Letters to Children. (Edited by Lyle W. Dorsett and Marjorie Lamp Mead). London:
Collins, 1985. p. 34. Essa passagem foi traduzida para o francês e comentada na seguinte obra:
FERNANDEZ, Irène. Mythe, raison ardente: Imagination et réalité selon C. S. Lewis. Genève: Ad
Solem, 2005. p. 267.
51
LEWIS, C. S. “On Stories”. In: Essays Presented to Charles Williams. (Edited by C. S. Lewis).
Oxford: Oxford University Press, 1947. p. 98.
52
“For my part, I do write not for children, but for the childlike, whether of five, or fifty or seventy-five”
(MacDONALD, George. A dish of Orts. p. 261). Ver: KING, Don. “The Childlike in George
MacDonald and C. S. Lewis”. In: Mythlore, 46, Summer 1986, pp. 17a-22b e 26b. Ver, também:
http://cslewis.drzeus.net/papers/childlike.html (acessado em 6 de setembro de 2008).
53
MADDUX, John S. “Tolkien: Du bon usage des autres mondes”. In: Revue Catholique
Internationale: Communio, Tome VI, 5, septembre-octobre 1981: 41-52. Disponível na internet
em: http://www.communio.fr/article.php3?id_article=1083 (acesso em 27 de agosto de 2008).
54
BALTHASAR, Hans Urs von. La Gloire et la Croix Volume I: Apparition. (Traduction de R.
Givord). Paris: Cerf / DDB, 1990. p. 30. O teólogo de Lucerna cita As Crônicas de Narnia pelo
166 COMMUNIO • Michaël Devaux

entrar no mundo secundário e continuar a “crer” no mesmo, enquanto lê. Tudo o


que é dito nesse mundo deve ser articulado como “verdadeiro” e deve ser coerente
em relação às leis deste mundo. O mundo secundário tem, portanto, sua lógica
própria. Se o autor intervém na narração, o encanto se quebra. A subcriação, para
Tolkien, tem de ser autônoma frente ao mundo real.
Devemos dizer que o mundo subcriado não tem relação com a realidade?
Esta autonomia seria uma fuga? A história e o conto podem ter algo em comum?
A distinção da História (real) e do conto (irreal) pode conhecer um “bemol” que
dê, em realidade o “lá” de uma e de outra. Com o Natal, “a lenda e a História
encontraram-se e fundiram-se”55. Com a encarnação do Cristo, a beleza do contode
fadas entrou na vida real. Se o cristão é aquele que supera o ceticismo daquele
que profere que “é belo demais para ser verdade”, para professar sua fé no Deus
feito homem, então trata-se de tomar consciência de que os Evangelhos tornam
disponível a essência mesma do conto de fadas e que, como dirá Lewis, com
Natal, trata-se de um mito verdadeiro, “Um mito que se fez realidade”56. A união
da História e do conto realiza a assunção dos contos em Deus. Tolkien, ainda
no epílogo do ensaio Sobre histórias de fadas, chega a dizer que “Deus é o senhor
dos anjos e dos homens - e dos elfos”57. “O nascimento de Cristo é a eucatástrofe da
história do Homem. A Ressurreição é a eucatástrofe da história da Encarnação”58.
Com a expressão “eucatástrofe”, Tolkien significa uma catástrofe feliz (da mesma
forma que a felix culpa nos valeu o Redentor). Se a Revelação (a Encarnação,
a Ressureição e, portanto, a promessa de salvação) é nisso a ponta ou o pivô,
o ponto de junção em que se articulam os dois perfis da face da realidade do
homem  aquilo que é e aquilo que gostaríamos de ter/ver, a saber a história
e o conto , podemos então compreender por que o conto, melhor do que a

menos uma vez em: France Catholique, no 2081 (21 novembre 1986). Quanto à sua relação com os
Inklings, ver: MORROW, Jeffrey. “J. R. R. Tolkien and C. S. Lewis in the Light of Hans Urs von
Balthasar”. In: Renascence, 56, 2004, 3, pp. 181-196. Disponível na internet no seguinte endereço:
http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3777/is_200404/ai_n9392570 (acesso em 27 de agosto de
2008).
55
TOLKIEN, J. R. R. On Fairy-Stories. §105, p. 78 (TOLKIEN, J. R. R. “Du conte de fées”. p.
140) [N. do T.: Em português ver: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. p. 81]. Nessa mesma
linha C. S. Lewis afirma que: “a distinção entre história e mitologia bem poderia não ter nenhum
sentido fora da Terra” (LEWIS, C. S. Au-delà de la planète silencieuse. In: La Trilogie Cosmique.
Capítulo XXI, p. 115).
56
LEWIS, C. S. “Un mythe qui s’est fait réalité”. (Traduction de Irène Fernandez). In: Conférence,
no 7, automne 1998, pp. 439-445. Ver, também: SCHÖNBORN, Cardinal Christoph von. Noël:
Quand le mythe devient réalité. Paris: Desclée, 1995. (Citado em: BENOÎT XVI. Jésus de Nazareth –
Tome I: Du baptême dans le Jourdain à la transfiguration. Paris: Flammarion, 2007. p. 299) [p. 309].
57
TOLKIEN, J. R. R. On Fairy-Stories, §105, p. 78 [N. do T.: Em português ver: TOLKIEN, J. R.
R. Sobre histórias de fadas. p. 81]. Tomaremos o hífem em consideração, marcador tipográfico da
derivação da subcriação.
58
Idem. Ibidem. [N. do T.: Em português ver: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. p. 80].
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 167
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS

realidade, pode permitir recuperar uma visão clara59. Podemos ver, pelo prisma do
conto, as coisas como elas teriam sido e os sacramentos, a começar pela eucaristia,
nos fazem tocar com o dedo esta outra dimensão da realidade.
Devemos dizer, por conseqüência, que este recurso ao conto para ver a
realidade deve ou até mesmo pode (permitir-se) ser irracional? Se a essência do
conto reside na encarnação do Lógos, isso parece bem improvável. Trataria-se,
portanto, de revermos nossas concepções sobre a irracionalidade dos contos.
Assim, para prosseguirmos com Lewis60, desta feita, o conto de fadas não é um
abandono da razão, uma fuga rumo a um esoterismo ou uma gnose. Precisemos,
inicialmente, que Lewis é um racionalista, que foi professor de Filosofia e que
sabe o que é um conceito e não o confunde com uma imagem; ou, pelo menos,
não podemos confundir seu uso poético e seu uso corrente: “O poeta usa imagens
por si mesmas” [...] “o homem comum (quer dizer, nós na maior parte do tempo) as
usamos como instrumento de conhecimento na falta de algo melhor”61. Qual é então
o lugar da razão e o da imaginação? Sem a razão, o pensamento desmoronaria.
As construções da imaginação ou são um jogo de ilusões, ou a abertura para
uma verdade. O aspecto sério do mito ou do conto de fadas, para Lewis, reside
nesta abertura. O conceito é, por definição, abstrato. Nisso, ele está sempre em
segundo plano em relação à realidade visada. Dando seguimento a Henri Bergson
(1859-1941), Lewis fala do conceito como uma moeda, que marca o limite.
Como suportar a separação entre o conceito e a experiência? Lewis pensa que a
imaginação pode realizar este prodígio. O mito é uma experiência do universal,
sua poesia dá vida às abstrações. Ele se interessado pela realidade, não pela
verdade. Por certo que o mito não tem um realismo de conteúdo, mas ele fala
da realidade. A mitologia não imagina que sabe, mas sabe que imagina: trata-se
de uma imaginação que leva à pensar. A imagem permite, quanto a isso, ir mais
longe que o conceito. O mito atinge a qualidade das coisas, o que o adjetivo diz
melhor do que tudo62. O melhor exemplo é talvez o do perigo, de que fala Lewis
em seu ensaio “On Stories” [Sobre estórias]63: num romance de aventuras, todo
59
Ver a citação de J. R. R. Tolkien na nota 7 do presente artigo e a cena narrada por George
MacDonald em que, ao ver seu quarto num espelho mágico, Cosmo diz que “Toda sua familiaridade
desapareceu. O espelho o tirou do mundo dos fatos para o mundo da arte” [...] “A arte salva a natureza do
olhar cansado e farto de nossos sentidos, e da injustiça degradante de nossa vida cotidiana e angustiada,
e ao apelar à imaginação que nela reside, revela a Natureza, até um certo ponto, como ela é realmente, e
como ela se apresenta aos olhos de uma criança” (MacDONALD, George. Phantastes. p. 90).
60
Nos esforçamos em resumir aqui as análises de Irène Fernandez na, já citada, obra Mythe, raison
ardente e, também, no seguinte trabalho: FERNANDEZ, Irène. “Imagination et raison, même
combat”. In: Au commencement était la Raison. Paris: Philippe Rey, 2008.
61
The Collected Letters of C. S. Lewis: Volume II. p. 193.
62
LEWIS, C. S. Cette hideuse puissance. In: La Trilogie Cosmique. Capítulo XIV, p. 548; TOLKIEN,
J. R. R. On Fairy-Stories, §27, p. 41 (TOLKIEN, J. R. R. “Du conte de fées”. p. 77) [N. do T.: Em
português ver: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. pp. 25-26].
63
LEWIS, C. S. “On Stories”. In: Essays Presented to Charles Williams.
168 COMMUNIO • Michaël Devaux

perigo é semelhante a outro; num texto mitopoético, a qualidade imaginativa


é determinante. Não se trata da excitação, do sensacional, do que mobiliza um
maior número de efeitos especiais que mais amedronta, mas a qualidade da
evocação. A imaginação permite, portanto, para Lewis, complementar a razão e...
prepará-la para o Evangelho. Decorre de uma teologia modesta, um catecismo
lacunar: há um Deus, mas não religião, em Nárnia, tanto quanto na Terra Média.
É o que podemos ver a seguir, para terminar não com as As Crônicas de Nárnia ou
O Senhor dos Anéis, mas com textos menos conhecidos dos leitores francófonos.

III - O ESPAÇO E O TEMPO: NUMINOR E NÚMENOR


Numa data que se conserva relativamente indeterminada, em 1936 ou 1937,
Tolkien e Lewis discutiram as narrativas que gostariam de ter lido e que, por não
existirem, teriam que escrever eles mesmos! Lewis deveria escrever sobre as viagens
no espaço, e Tolkien sobre as viagens no tempo. Um acaba de conhecer seu primeiro
sucesso com The Allegory of Love [A alegoria do amor]64 de 1936, um estudo sobre
a tradição literária medieval contendo, em especial, um estudo notável sobre The
Faerie Queene [A bela rainha], de Edmund Spenser (1552-1599). O outro, por sua
vez, publica, em 1937, O Hobbit, cujo sucesso é imediato. A decisão e a inspiração
comuns terão sortes diversas. Lewis publicará três romances: composta pelos livros
Out of the Silent Planet [Além do planeta silencioso] em 1938, Perelandra em
1943, e That Hideous Strength [Aquela força medonha] de 1945, que formam o
que chamamos de Trilogia Espacial ou Trilogia de Ransom65. Tolkien não terminará
nenhuma obra, mas começará um romance66, cujo conteúdo iria constituir um
64
LEWIS, C. S. The Allegory of Love: A Study in Medieval Tradition. Oxford: Oxford University
Press, 1985.
65
É sob o título La Trilogie Cosmique [A Trilogia Cósmica] que os três volumes foram traduzidos
para o francês por Maurice Le Péchoux para editora L’Âge d’Homme. Exintem outras traduções
francesas com títulos “livres”, desde 1952, como Le Silence de la Terre (O silêncio da Terra), e, em
1967, Voyage à Vénus (Viagem à Vênus) e Cette hideuse puissance (Este poder feio). Lewis havia,
segundo Walter Hooper, seu editor, começado um “quarto” romance da série, The Dark Tower [A
torre escura], editado, originalmente em 1977, e atualmente disponível na seguinte edição: LEWIS,
C. S. The Dark Tower. In: The Dark Tower and Other Stories. (Edited, with Preface and Notes by
Walter Hooper). Fort Washington: Harvest Books, 2002. pp. 15-98. [N. do E.: A especialista em
C. S. Lewis, Kathryn Lindskoog (1934-2003), defendia a tese que este conto não foi, de fato,
escrito pelo autor. Ver: LINDSKOOG, Kathryn. Light in the Shadowlands: Protecting the Real C. S.
Lewis. Multnomah Pub., 1994. Entretanto, o enteado de Lewis, Douglas Gresham, numa entrevista
para Jonathon Svendsen, publicada on-line em 27 de setembro de 2007, desacredita a teoria de
Lindskoog sobre a inautenticidade da obra. Ver: http://www.narniafans.com/archives/1235].
66
Na verdade, ele começará dois, pois em 1945 escreveu The Notion Club Papers, que retoma alguns
pontos de The Lost Road and Other Writings [A rua perdida e outros escritos] e que faz eco também
a Out of the Silent Planet de Lewis já que o subtítulo da obra de Tolkien é Beyond Lewis. Out of the
Talkative Planet [Além de Lewis. Fora do planeta falante]. Ver: TOLKIEN. J. R. R. La Route perdue.
(Traduction française par Daniel Lauzon). Paris: Christian Bourgois, 2008.p. 148.
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 169
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS

apêndice de O Silmarillion: o Akallabeth ou “A queda de Númenor”*. Façamos a


viagem imaginária para Deus com eles, no espaço e no tempo.

III.1 - O OYARSA DE MALACANDRA, A TINIDRIL DE PERELANDRA E A


NUMINOR DE MERLIN

O projeto da Trilogia Espacial é duplo: trata-se, de fato, de escrever uma


história de viagem ao espaço que responda às expectativas de nossos Inklings, e
procede também de uma resposta a uma certa filosofia materialista67. Em termos
mais específicos, podemos considerá-la a contraparte do livro de Olaf Stapledon
(1886-1950), Last and First Men [Os últimos e os primeiros homens]68 de 1930,
que Lewis cita, aliás, no prefácio de Aquela força abominável. Nas décadas de 1920-
1930, pessoas como Olaf Stapledon ou John Burdon Sanderson Haldane (1892-
1964), na obra Possible Worlds [Mundos possíveis]69 de 1927, levam a sério as
viagens ao espaço, a ponto de pensar que a humanidade poderia escapar da morte
viajando de planeta em planeta e adaptando-se a eles (evoluindo). Esta posição
é representada pelo personagem de Weston. Ora, esta esperança científica, esta
forma de conceber a colonização do espaço como meio de perpetuar a espécie,
de fazê-la evoluir, parece a Lewis como rival do cristianismo e de sua doutrina da
morte, em especial70. Seria uma versão moderna da tentação de Eva: o homem
seria como um deus.
Além do planeta silencioso começa como um romance de ficção-científica:
dois sábios seqüestram o Dr. Elwin Ramsom, um filólogo de Cambridge, para
levá-lo a Malacandra (Marte). Para alguns, a história se torna logo, no nono
capítulo, razoavelmente maravilhosa: assim, encontramos diversas criaturas que
falam, como o hross, o sorn ou o pfiftrigg. Estas três raças não decaíram e não
*
N.do T: Em português ver: TOLKIEN. J. R. R. “Akallabêth”. In: O Silmarillion. pp. 327-359.
67
A respeito disso, ver: DOWNING, David C. “‘Smuggled Theology’: The Christian Vision of the
Trilogy”. In: Planets in Perils: A Critical Study of C. S. Lewis’s Ransom Trilogy. Amherst: The University
of Massachussetts Press, 1992. pp. 34-59. Em relação à dimensão de “aventura espiritual” pessoal de
Ransom, ver: FERNANDEZ, Irene. Mythe, raison ardente. pp. 358-365. Ver, também: The Collected
Letters of C. S. Lewis: Volume II. p. 753; The Collected Letters of C. S. Lewis: Volume III – Narnia,
Cambridge, and Joy: 1950-1963. (Edited by W. Hooper). London: Harper Collins, 2007. p. 314.
68
STAPLEDON, Olaf. Les Derniers et les premiers. (Traduction française de Claude Saunier). Paris:
Denoël, 1972. Também são fontes de inspiração de C. S. Lewis as obras The First Men in the
Moon [Os primeiros homens na Lua] de H. G. Wells (1866-1946), publicado originalmente em
1901, e A voyage to Arcturus [Uma viagem a Arcturus] de David Lindsay (1876-1945), publicado
originalmente em 1920. Ver: WELLS, H. G. Les Premiers hommes dans la lune. (Roman traduit de
l’anglais par Henry D. Davray). Paris: Société du Mercure de France, 1901; LINDSAY, David. Un
Voyage en Arcturus. (Traduction française de Claude Saunier). Paris: Denoël, 1976.
69
HALDANE, J. B. S. Worlds: And Other Essays. London: Chatto and Windus, 1932.
70
The Collected Letters of C. S. Lewis: Volume I – Family Letters: 1905-1931. (Edited by W. Hooper).
London: Harper Collins, 2004. p. 262.
170 COMMUNIO • Michaël Devaux

fizeram o mal. Elas pertencem à categoria dos hnau, das criaturas racionais71. O
hnau é um ser bom, criado à imagem de Maleldil.
Nos damos conta, ao descobrir as realidades que estão por detrás destes
nomes exóticos, e o autor se aprofunda em doutrinas bem conhecidas! Trata-
se de Maleldil o Jovem, e o Velho, por detrás dos traços dos quais não é difícil
reconhecer Deus Pai, e Filho. Da mesma forma, ouvimos falar de um Oyarsa
do planeta. Lewis revela inclusive que esse termo advem de Bernardo Silvestre
de Chartres (1085-1178), um platônico do século XII, que empregava, em sua
Cosmographia, Oyarses, na verdade ousiarchès (o arconte), como “a ‘inteligência’ ou
espírito tutelar de uma esfera celeste”72. Lewis mobiliza aqui noções de astronomia
medieval. O Oyarsa é uma espécie de arcanjo, que venera Maleldil. São-lhe
inferiores os eldila, os anjos. No fundo, Lewis, com essa história, transmite
Teologia “fraudulentamente”73. Estamos num planeta onde o anjo que o rege
não se perdeu: Satanás, o príncipe deste mundo, que é o nosso, por sua vez,
desvirtuou-se e é por isso que nosso planeta é silencioso74. Os outros Oyéresu não
tem mais relação com ele e ninguém tem conhecimento do que se passa na Terra.
Assim, é Ramsom quem diz ao Oyarsa de Malacandra que Jesus Cristo, Maleldil
o Jovem, encarnou, embora aqui tampouco nada seja contado diretamente no
romance. Uma primeira vez, Ramsom é interrompido75 e, em seguida, sabemos
apenas que contou toda a estória76.
O cristianismo é mais explícito em Perelandra77. Estamos, desta vez, em
Vênus, que é outro mundo não-caído. Ramsom chega antes que Tinidril (Eva)
tenha decaído. Ele a ajuda, aliás, para que não sucumba. Para tanto, o herói tem
de lutar contra Weston, que se tornou seguidor de Satanás, e matá-lo fisicamente.
A autonomia dessa história frente ao mundo primário não é, aqui, tão nítida
quanto o é em Tolkien. Lewis faz o mundo real e a ficção se interpenetrarem.
Assim, certas personagens são intencionalmente inspiradas em pessoas reais. O
autor tem por bem, igualmente, convocar autoridades bastante críveis, tais como
Natvilcius, que teria publicado um De Aethero et aerio corpore, na cidade de Bâle,
em 1627, acerca da forma com que os eldila aparecem a nossos sentidos78. Se
71
O termo pode ter sido influenciado, diz Lewis, pelo grego nous (The Collected Letters of C. S.
Lewis: Volume III. p. 1005).
72
LEWIS, C. S. Au-delà de la planète silencieuse. In: La Trilogie Cosmique. Capítulo XXII, p. 121.
73
The Collected Letters of C. S. Lewis: Volume I. p. 262.
74
LEWIS, C. S. Au-delà de la planète silencieuse. In: La Trilogie Cosmique. Capítulo XVIII, p. 97.
75
Idem. Ibidem. Capítulo XVIII, p. 100.
76
Idem. Ibidem. Capítulo XXI, p. 113.
77
Acerca desta obra, ver as análises no seguinte artigo: LACOSTE, Jean-Yves. “Anges et hobbits:
Le sens des mondes possibles”. In: Freiburger Zeitschrift für Philosophie, 36, 1989, 3, pp. 341-373
(notadamente a página 363 e as seguintes).
78
“Na realidade, Natvilcius é a forma latina do anglosaxão Nat Whilk, ‘eu não sei quem’” (LEWIS, C.
S. Perelandra. In: La Trilogie Cosmique. p. 139, n. 1).
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 171
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS

Lewis está de acordo com Tolkien a respeito da autonomia teórica da subcriação


em relação ao mundo real, na prática, sua estratégia difere aqui. A ficção se revela
mais real do que previsto e, como resultado, o mundo real pode aparecer como
sendo mais fantástico do que alguns pensam. Tal é o caso dos sacramentos, por
exemplo.
Aquela força medonha é um romance muito mais longo, e temos de
ser breves: a ação, desta vez, se desenrola na Terra e Lewis vai de encontro à
idéia de Stapledon: em questão, o N.I.C.E, uma instituição demoniaca, no
sentido próprio, que deseja prosseguir a expansão interplanetária de que já
falamos, mas quer, antes, dominar a Terra. Certos personagens são seduzidos
por esta aventura, ao passo que Ramsom organiza a resistência e triunfa, com
a ajuda de Merlin! O prefácio da obra faz alusão explícita a Tolkien, com o
nome de “Numinor”79. Em Tolkien, trata-se, na verdade, de “Númenor”80, a
ilha submersa, cuja história é uma reinterpretação deste mito de Atlântida que
assolava sua imaginação tão intensamente81.

IV - CONCLUSÃO
Parece-nos que se vê bem, por esses exemplos, que a abertura que permite
a alta fantasia nada tem em comum com o empobrecimento do imaginário da
fantasia heróica. Sua relação com a Teologia e com a razão é, sem dúvida, bem
diferente. A imaginação, no caso da alta fantasia, pode ser um meio de ir até onde a
razão não pode nos levar. Se uma imagem pode conduzir-nos em direção à realidade,
tal como a fé ou os sacramentos podem nos dar acesso a ela, por que a Teologia
deveria privar-se, denegrir ou ter medo das narrativas imaginárias? A Faërie pode ser
um meio de aproximarmo-nos de Deus ao subcriar, continuando o que ele criou.
Ela pode assim ajudar-nos a perceber, indiretamente, alguma coisa da natureza do
Evangelho, conto de fadas eucatastrófico, o verdadeiro final feliz...
A força destas narrativas reside em sua ambigüidade. Se a alegoria é, por
vezes, mais nítida em Lewis do que em Tolkien, o julgamento último que faremos
sobre suas histórias redundará sempre em dizer que os crentes nelas reconhecerão
seu bom Deus; os outros, sem dúvida, nada. Com efeito, se em Tolkien, Eru é
o nome de Deus, Melkor, o do demônio, os Valar, que são os anjos, são, não
obstante, deuses pagãos! Da mesma forma, Aslam, que representa o Cristo e o
torna presente, não é o Cristo. Este equívoco intrínseco dos textos faz com que
os tenhamos podido ler sem ver a relação com o cristianismo. E, contudo, como
vimos na Trilogia Espacial, de Lewis, as correspondências são bem evidentes.
79
LEWIS, C. S. Cette hideuse puissance. In: La Trilogie Cosmique. p. 296.
80
Sobre as relações entre Numinor e Númenor, e sua origem céltica comum, remetemos ao seguinte
trabalho: DEVAUX, Michaël. “Númenor, centre celtique”. In: Tolkien, Les racines du légendaire. pp.
147-156.
81
Ver: The Letters of J. R. R. Tolkien. Cartas 154, 227, 257 e 276.
172 COMMUNIO • Michaël Devaux

A história, a narrativa, é, portanto, de fato o mais importante. Trata-se


de uma literatura teológica ou teologizada82, e não de uma teologia literária ou
“literarizada”. A Teologia não está em primeiro plano. O interesse desta literatura
reside, antes de tudo, no prazer da história. É este prazer que explica o fenômeno
dos fãs. Os mundos descritos são atrações (quando veremos parques temáticos d’O
Senhor dos Anéis?), nos quais alguns são tentados a entrar, sem ver onde vão nem onde
estão. Contudo, entram em mundos que podem “batizar” sua imaginação, como
a de Lewis o foi por MacDonald e, assim, desempenhar um papel de praeparatio
evangelica, de uma preparação para o Evangelho83.

Michaël Devaux, nascido em 1971, é doutor em Filosofia e professor da IUFM de


Alençon (Université de Caen, Basse-Normandie). Publicou em colaboração com Jean-
Robert Armogathe e Vicent Carraud a obra Bibliographie Cartésienne 1960-1996
(Conte, 2003) e organizou as coletâneas Tolkien: Les racines du légendaire (Ad
Solem, 2003) e Tolkien: L’éffigie des elfes (Ad Solem, 2008).

82
Lewis fala de “theologised science-fiction” (The Collected Letters of C. S. Lewis: Volume III. p. 517).
83
Ver: LACOSTE, Jean-Yves. “Une préparation à l’Évangile”. In: Narnia, monde théologique?
Genève: Ad Solem, 2005. pp. 35-46.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 173
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 173-183

C. S. LEWIS E A IMAGINAÇÃO MORAL*


Stephen Milne

– “Filho! Estou contando a sua história, não a dela. A cada um só conto a história que
lhe pertence”.
– “Quem é você?”
– “Eu mesmo” – respondeu a voz, com uma entonação tão profunda que a terra
estremeceu.
C. S. Lewis, O Cavalo e seu Menino1

Quando o jovem Shasta encontra o grande leão Aslam, na aventura O


Cavalo e seu Menino [The Horse and His Boy], de As Crônicas de Nárnia, de C. S.
Lewis (1898-1965), lhe são ditas muitas coisas surpreendentes, muitas das quais
desafiam sua percepção de acontecimentos passados e presentes, na estória da
qual ele é uma parte. Muitos perigos o confrontaram na estória e muitas escolhas;
escutando a voz de Aslam, na escuridão da noite, ele percebe como estava
enganado, assim como, o pouco que sabe sobre as estórias de outros, mesmo
daqueles com quem ele tem viajado por muitas milhas.
De fato, há um modo no qual esta passagem do livro de C. S. Lewis ilustra
um princípio essencial acerca da importância das estórias e de contar estórias. Só
podemos vivenciar nossa própria estória à medida que é vivida dia-a-dia. Um bom
contador de estórias, entretanto, pode nos permitir vivenciar, pelo menos como
sentido por outros, outras vidas em outras épocas e lugares. Aravis, a corajosa
companheira de Shasta em O Cavalo e seu Menino, cresceu numa cultura que
encoraja o contar estórias como uma atividade prazerosa e social. Quando ela
encontra Shasta pela primeira vez na sua aventura saindo da Calormânia em direção
à Nárnia ela conta a estória da sua fuga do palácio do pai:
*
Artigo publicado, originalmente, em The Chesterton Review, Volume XXXI, Numbers 3 & 4 (Fall
/ Winter 2005): 97-107. Os direitos autorais, em língua portuguesa, foram gentilmente fornecidos
pelo editor, padre Ian Boyd, C. S. B., para o Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista
(CIEEP), que autorizou a publicação do mesmo nessa edição da Communio. Texto traduzido, do
original em inglês para o português, por Patrícia Carol Dwyer.
1
LEWIS, C. S. The Horse and His Boy. In: The Chronicles of Narnia. London: HarperCollins, 2001.
p. 281. [N. do E.: Substituímos todas as citações da obra em inglês pela passagem equivalente
na seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. O Cavalo e seu Menino. (Tradução de Paulo Mendes
Campos). In: As Crônicas de Nárnia. (Edição com ilustrações coloriadas à mão pela artista Pauline
Baynes e com uma introdução de Douglas Gresham). São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 135-
210. Esse diálogo entre Aslam e Shasta se encontra na página 191 desta edição brasileira. Nas
demais citações dessa obra, a referência de página da versão brasileira virá entre parênteses após a
referência da edição em inglês utilizada pelo autor desse artigo].
174 COMMUNIO • Stephen Milne

– Agora, tarcaína, conte-nos a sua história. E não tenha pressa... Estou me sentindo
tão bem...
Aravis não fez cerimônia. Sentou-se quase imóvel e começou a falar, num tom
de voz e num linguajar bem diferentes. Pois acontece o seguinte: na Calormânia,
aprende-se a contar uma história (seja ela verdadeira ou inventada) [...]2.

Ela começa sua estória num “tom diferente” porque tem algo importante a
compartilhar, um mundo não vivenciado por seus ouvintes, uma vida que nunca poderiam
ter.

I - ACERCA DE ESTÓRIAS: A EXPERIÊNCIA DE OUTROS MUNDOS


Para C. S. Lewis uma estória é um “mundo inventado”. Descrevendo contos de
fadas e fantasia em particular, ele sugere que estórias têm o poder de apresentar aspectos
permanentes da experiência humana, e como a arte, funcionam “para apresentar o que as
perspectivas estreitas e desesperadamente práticas da vida excluem”3. Isto é, elas nos dão um tipo
de acesso às experiências que, de outra forma, não poderíamos ter. Elas estão, entretanto,
ainda intimamente ligadas ao nosso mundo vivido de todos os dias. Como Leland Ryken
propõe, a teoria de leitura de Lewis é baseada na idéia de “entrar num mundo alternativo que
é meramente imaginado, e, assim mesmo, intimamente relacionado ao mundo empírico no qual
vivemos”4. Para Lewis, estórias como “outros mundos” têm, necessariamente, uma dimensão
moral e espiritual tirada parcialmente do “único ‘outro mundo’ real que conhecemos, aquele
do espírito”5. Neste sentido, Lewis sugere, as estórias nos permitem uma perspectiva alterada
sobre as ações e comportamento de outros, assim como potencialmente nós mesmos6.
Permitindo que enxerguemos, por dentro, as vidas dos outros, suas intenções,
motivos e raciocínios, algumas estórias, alega Lewis, também nos permitem ver como
“destino e livre arbítrio podem ser combinados”7. Elas têm uma função adicional àquelas de
prazer e entretenimento:
2
Idem. Ibidem., p. 221. (p. 150).
3
LEWIS, C.S. “On Stories”. In: C. S. Lewis Essay Collection: Literature, Philosophy and Short Stories.
(Edited by L. Walmsley). London: HarperCollins, 2000. pp. 83-96.
4
RYKEN, L. “Reading literature with C. S. Lewis”. In: Reading the Classics with C. S. Lewis. (Edited
by T. L. Martin). Grand Rapids: Baker Academic, 2000. p. 23.
5
LEWIS. “On Stories”. p. 90.
6
Leland Ryken, também, observa que o processo de entrar em “mundos alternativos”, para Lewis,
tem pelo menos quatro valores especiais: 1) prazer, 2) aumento de “encanto” pela vida real, 3)
expansão do ser, e 4) um valor intelectual em permitir-nos “clarificar valores e pontos de vista do
mundo” (RYKEN. Op. cit., p. 25).Os dois últimos poderiam parecer altamente relevantes aos
modos nos quais a literatura poderia desenvolver a imaginação moral da criança, permitindo que
ela clarifique valores morais, aumente seu estoque de perspectivas morais pelo exemplo e empatia.
7
LEWIS, C.S. “On Stories”. p. 92. Isto pareceria especialmente relevante à fantasia ou estória de
aventura como David Barratt assinala: “A procura é a aventura, contada não só pela sua excitação, mas
para testar moral e espiritualmente” (BARRATT, D. “Children’s literature”. In: Reading the Classics
with C. S. Lewis. {Edited by T. L. Martin}. Grand Rapids: Baker Academic, 2000. p. 324).
C. S. LEWIS E A IMAGINAÇÃO MORAL 175

A estória faz o que nenhum teorema consegue fazer tão bem. Pode não ser como
“vida real” no sentido superficial: mas coloca à nossa frente uma imagem do que a
realidade pode muito bem ser em uma região mais central8.

Pode ser possível, então, que estórias possam nos dar insights sobre
realidades centrais acerca da experiência humana e, assim, sobre a vida moral,
nossas escolhas e decisões e nossas compreensões do que constituem o bem e
o mal. A trama, ou acontecimentos relacionados em uma estória, diz Lewis, “é
apenas uma rede pela qual se alcança alguma outra coisa” – um estado ou qualidade
que vivenciamos ao ler que “nunca está completamente incorporada” na trama em
si mesma. Essa tensão entre tema e trama, é, segundo Lewis, “o coração de toda
estória”. É aqui que, estórias, como arte, têm a capacidade de capturar o que é
permanente no meio da impermanência que é a vida:
Tanto na vida como na arte, como me parece, estamos sempre tentando alcançar,
na nossa rede de momentos sucessivos, alguma coisa que não seja sucessiva. Se
na vida real existe algum médico que possa nos ensinar como fazê-lo, para que
finalmente as malhas se tornem finas que cheguem para prender o pássaro, ou
nós sermos tão mudados de forma que possamos jogar fora nossas redes e seguir o
pássaro até seu próprio país, não é uma questão para este ensaio. Mas penso que,
algumas vezes, é feito – ou quase, quase feito – em estórias. Acredito que vale
muito a pena o esforço para fazê-lo9.

A metáfora de Lewis sugere que as estórias não apenas têm o poder de


causar mudança na nossa perspectiva, mas também que elas podem ser um
meio pelo qual podemos compreender “momentos sucessivos” de modo que
possam, de alguma forma, se tornar compreensíveis ou acessíveis de uma
maneira que não o são na nossa vida diária. Estórias, Lewis parece sugerir,
podem dar-nos acesso às realidades permanentes da experiência humana que
na nossa vida ordinária não valorizamos; elas podem nos permitir contemplar e
apreender realidades centrais à experiência de sermos humanos – literal, moral
e espiritual. Este é um ponto bem fixado por David Barratt num artigo sobre
Lewis e literatura infantil, no qual discute o amor inicial de Lewis pela leitura
de fantasia animal:
A experiência transcendente [...] veio [...] através de um livro para crianças, em
particular [The Tale of Squirrel Nutkin]*, que para ele [Lewis] enraizou a convicção

8
LEWIS, C.S. “On Stories”. p. 93.
9
Idem. Ibidem., pp. 95-96.
*
N. do E.: O livro The Tale of Squirrel Nutkin [A estória do esquilo Nutkin] da escritora e ilustradora
Beatrix Potter (1866-1943), publicado originalmente em 1903, é a segunda obra da autora. Miss
Potter, uma bióloga especialista em fungos, é autora de vinte e três livros infantis, que a tornaram
uma das mais respeitadas escritoras inglesas de literatura infantil do século XX. O primeiro livro
de Beatrix Potter, The Tale of Peter Rabbit [A estória do coelho Peter], foi publicado em 1902 e o
vigésimo terceiro, The Tale of Little Pig Robinson [A estória do porquinho Robinson], em 1930.
As obras infantis de Miss Potter, publicadas em formato pequeno, sempre retratam aventuras de
176 COMMUNIO • Stephen Milne

de que a literatura infantil é tão genuína como fonte de vida espiritual quanto
qualquer outra literatura10.

Para Lewis a relação entre trama e tema parece permitir isso, a tensão
resultante, incorporando características permanentes e duradouras de experiência
vivenciada pelos protagonistas, que o leitor pode vivenciar por si próprio, embora
vivenciada através de outros. Num sentido moral, aos leitores é permitido,
portanto, segundo Lewis, “alcançar” momentos morais importantes, seja de
intenção, escolha e ação por causa das tensões internas entre trama e tema.
Se isso é fato, deveríamos esperar que a leitura fosse um processo
ativo. No nível moral, deveríamos esperar que os leitores imaginativamente
experimentassem novas perspectivas nas vidas de outros e em suas próprias vidas
através da leitura de estórias, assim como tomar contato com experiência moral e
normas que resultam de ambos, as tensões internas dentro do texto, e também as
da sua própria compreensão disso. A compreensão moral e a percepção deveriam,
portanto, ser aumentadas e aprofundadas através de um processo imaginativo
resultante do encontro do leitor com a própria estória.
A imaginação moral, para Lewis, é desenvolvida na busca de sentido e
ao recorrer às estórias como exemplos de perspectiva moral e de experiência,
personificação de permanência e referencial – por exemplo, justiça, amor ou
coragem. Uma boa estória deveria ter, portanto, tensão interna entre trama e
tema que permitisse surgir o tipo de drama moral que levará a novos significados
para o leitor ou as experiências dos mundos de outros, de formas não possíveis de
nenhum outro modo. Uma imaginação moral em desenvolvimento pode, dessa
forma, conduzir a mudanças no leitor através de uma perspectiva alterada e por
meio da busca por incorporar atitudes morais ou significados aprendidos nas
próprias vidas11.

animais, ilustradas pela própria autora. A vida de Beatrix Potter é retratada no filme britânico
Miss Potter, dirigido por Chris Noonan, estrelado por Renée Zellweger e Ewan McGregor, lançado
originalmente em 2006 e distribuído pelo estúdio Metro-Goldwyn-Mayer (MGM).
10
BARRATT. Op. cit., p. 315.
11
Isto é provavelmente porque, na grande obra de teoria literária de C. S. Lewis An Experiment in
Criticism [Um experimento em criticismo] ele rejeita a idéia de que a literatura deveria ser avaliada
primeiramente pela sua habilidade em nos contar “verdades sobre a vida”. Da mesma maneira, Lewis
afirmaria que uma obra literária pode contar aos seus leitores, falsidades sob o disfarce de “verdades
sobre a vida” e que não é o propósito da literatura fazer o trabalho da Teologia e da Filosofia. Que
a literatura pode nos contar “verdades sobre a vida” acredito que Lewis não teria negado, mas este
cuidado em atribuir esse papel à literatura estava baseado, penso, na sua compreensão cristã e
clássica da verdade – de que é objetiva e permanente. E nesse caso, claro, é possível professar e
acreditar em falsidades sobre a natureza da realidade e contadores de estórias provavelmente fazem
isso como qualquer outra pessoa, seja deliberadamente ou inconscientemente. Ver: LEWIS, C.S. An
Experiment in Criticism. Cambridge: Cambridge University Press, 1961.
C. S. LEWIS E A IMAGINAÇÃO MORAL 177

II - ESCREVENDO PARA CRIANÇAS:


CONHECIMENTO DO BEM E DO MAL

Entre pelos portões de ouro ou não,


Apanhe o meu fruto para outro ou não,
Aquele que roubar ou escalar os meus muros
Encontrará desespero, junto com o desejo do seu coração.
C. S. Lewis, O Sobrinho do Mágico12.

Na estória de C. S. Lewis, O Sobrinho do Mágico [The Magician’s


Nephew], quando Digory alcança o Ermo ocidental, além de Nárnia,
para encontrar uma maçã mágica que curará a doença de sua mãe, ele
encontra um jardim particular, onde as maçãs crescem, portões dourados e
uma cerca alta de relva verde em torno das árvores mágicas. Uma imagem
do Éden, as palavras nos portões avisando os visitantes que eles devem
entrar “pelos portões de ouro ou não” entrar de nenhuma maneira, e que só
devem levar o “fruto para outro”. As conseqüências da desobediência estão
claramente citadas na proibição: “desejo do seu coração”, mas acima disso o
“desespero”.
Digory, como Adão na estória bíblica, é tentado a desobedecer, a comer o
fruto e “viver para sempre” com Jadis, a Feiticeira Branca, que sobe para dentro
do jardim e come a fruta ela mesma. Sua fidelidade, entretanto, prevalece graças,
apenas, ao seu amor pela amiga Polly que viajara com ele ao Ermo ocidental em
busca da maçã. Por causa da força da sua amizade com Polly, ele percebe que está
sendo tentado ao mal e age de acordo, rejeitando as falsas afirmações da feiticeira.
Para o leitor, é um exemplo convincente da imaginação moral, trazendo o bem
que aprendemos a levar, para a incerteza moral do momento presente; permite
uma visão mais clara, por contraste e iluminação, e abre caminho para a ação
moral clara.
Os insights de Lewis sobre a natureza das estórias e seu aporte moral estão
diretamente relacionados, é claro, a experiências tais como estas, como escritor
de fantasia tanto para crianças quanto para adultos. No seu ensaio “On Three
Ways of Writing for Children” [Sobre três modos de escrever para crianças],
Lewis estende sua teoria da estória, descrevendo a natureza da fantasia e do

12
LEWIS, C. S. The Magician’s Nephew. In: The Chronicles of Narnia. London: HarperCollins,
2001. p. 92. [N. do E.: Substituímos todas as citações da obra em inglês pela passagem equivalente
na seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. O Sobrinho do Mago. (Tradução de Paulo Mendes
Campos). In: As Crônicas de Nárnia. (Edição com ilustrações coloriadas à mão pela artista Pauline
Baynes e com uma introdução de Douglas Gresham). São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 7-72.
Essas palavras, escritas com letras de prata, nos portões de ouro do jardim se encontram na página
62 desta edição brasileira].
178 COMMUNIO • Stephen Milne

conto de fadas13. Aqui, também, ele aplica à estória o mesmo método que aquele
no ensaio considerado acima – sua importância para o leitor, tanto quanto sua
natureza como texto. Ao considerar o conto de fadas, Lewis vê sua atração como
um exemplo de como o escritor se torna um “subcriador” ao criar um “mundo
subordinado” para si próprio14. O valor desse tipo de “subcriação”, de acordo
com Lewis, é que permite que o leitor (e aqui ele se refere a crianças tanto quanto
a adultos) vivencie “um certo tipo de desejo” por “algo fora do seu alcance” e, no
processo, dá ao mundo real “uma nova dimensão de profundidade” ao retornar:
Longe de entediar ou esvaziar o mundo real, [o conto de fadas] lhe dá uma nova
dimensão de profundidade. [A criança] não despreza as florestas verdadeiras
porque leu sobre florestas encantadas: essa leitura faz com que todas as florestas
verdadeiras pareçam um pouquinho encantadas15.

Aqui o princípio, novamente, parece ser o de mudança de percepção como


resultado da leitura. Que tais estórias podem ajudar a desenvolver a imaginação moral,
Lewis explica ao responder a alegação de que tais estórias podem ser muito assustadoras
para crianças, lembrando-nos de que as crianças provavelmente “encontrarão inimigos
cruéis, deixemos, pelo menos, que tenham ouvido sobre [...] coragem heróica”16.
As estórias, então, podem permitir que crianças encontrem virtudes de
formas acessíveis e significativas, embora não em modos apenas didáticos. De fato,
como escritor, Lewis rejeita a idéia de que estórias deveriam tentar uma abordagem
didática, pois “a moral inerente nelas surgirá através de quaisquer raízes espirituais que
[o autor] tenha conseguido atingir durante todo o curso da vida [delas]”17. Além disso,
rejeita a idéia de que as crianças sejam, de alguma forma, inferiores aos adultos em
moral ou imaginação, e que não conseguem alcançar idéias difíceis ou importantes,
preocupações importantes para a existência humana ou interesses vitais para ambos,
adultos e crianças:
13
LEWIS, C.S. “On three ways of writing for children”. In: C. S. Lewis Essay Collection: Literature,
Philosophy and Short Stories. (Edited by L. Walmsley). London: HarperCollins, 2000. pp. 97-106.
Contos de fadas e fantasia, diz Lewis, fornecem um tipo de estória em que tais questões podem
ser levantadas, embora se possa argumentar – assim como faz o próprio Lewis – que estórias com
mais realismo de conteúdo e apresentação também podem levantar tais questões para as crianças de
modos acessíveis e imaginativos. Deveria ser lembrado, como o próprio Lewis assinala que “muitas
crianças não gostam delas [contos de fadas] e muitos adultos gostam” (LEWIS, C.S. “Sometimes Fairy
Stories may say best what’s to be said”. In: C. S. Lewis Essay Collection: Literature, Philosophy and
Short Stories. {Edited by L. Walmsley}. London: HarperCollins, 2000. pp. 118-120).
14
LEWIS. “On three ways of writing for children”. Aqui C. S. Lewis está seguindo a análise de
J. R. R. Tolkien (1892-1973) sobre a natureza dos contos de fadas. TOLKIEN, J.R.R. “On Fairy
Stories”. In: The Tolkien Reader. (Edited by P. S. Beagle). New York: Ballantine Books, 1966. pp.
3-73. [N. do E.: Em língua portuguesa esse ensaio de Tolkien se encontra na seguinte edição
brasileira: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. (Tradução de Ronald Kyrmse). São Paulo:
Conrad, 2006].
15
LEWIS. “On three ways of writing for children”. p. 104.
16
Idem. Ibidem., p. 104.
17
Idem. Ibidem., p. 105.
C. S. LEWIS E A IMAGINAÇÃO MORAL 179

Na esfera moral são, provavelmente, ao menos tão sábios quanto nós [...]
devemos ver as crianças como nossos iguais naquela área da nossa natureza onde
somos seus iguais18.

Com isto quer dizer que os escritores e as estórias que escrevem deveriam
lembrar que as crianças estão tão preocupadas com questões de natureza moral e
existencial quanto os adultos estão19. As estórias podem e deveriam explorar estas
questões por modos que não sejam paternalistas nem negligenciem este aspecto
da vida da criança, mas que permitam que a imaginação moral se desenvolva
através de experimentação com exemplos, percebendo tais questões nas vidas
das personagens e de suas escolhas, e encontrando tais desafios com os quais
talvez ela se depare na sua própria vida. Um conhecimento do bem e do mal não
pode, poder-se-ia dizer, ser obtido sem tais encontros; para a criança, um ensaio
imaginativo de tais situações e desafios pode dar a base para o drama da realidade
onde a vida moral deve ser vivida nas decisões menores e maiores do dia-a-dia.

III - ÍCONES MORAIS: LITERATURA COMO INICIAÇÃO


Foi uma conversa cansativa e muito desagradável para Ransom. Mas quando,
finalmente, ele se deitou para dormir não foi sobre a nudez humana nem sobre sua
própria ignorância que ele estava pensando. Ele pensava apenas sobre as antigas
florestas de Malacandra e o que poderia significar crescer vendo sempre a tão poucas
milhas de distância uma terra de cor que nunca poderia ser alcançada e que havia sido
habitada em certa ocasião.
C. S. Lewis, Out of the Silent Planet20.

Ao chegar em Malacandra, Ransom, o protagonista da fantasia de ficção


científica de C. S. Lewis Out of the Silent Planet [Além do planeta silencioso],
conhece entre seus habitantes, criaturas chamadas sorns. Inteligentes e curiosos,
os sorns entrevistam Ransom sobre seu mundo, sua história, geografia e povos.
No final de um de seus primeiros dias entre eles, exausto, ele deita para dormir,
mas não consegue deixar de pensar como teria sido a vida, se ele tivesse crescido
em Malacandra como um de seus habitantes. Ele não pode ter essa experiência,
mas aquilo que imagina reflete um desejo de ver além da experiência imediata, ou
como Lewis coloca “ver com outros olhos”21. Isto, para Lewis, é uma das funções
centrais da literatura e remete à questão freqüentemente perguntada sobre a
justificativa da leitura de literatura:
18
Idem. Ibidem., p. 106.
19
Robert Coles explora essa dimensão importante das vidas de crianças em: COLES, R. The Moral
Life of Children. New York: Atlantic Monthly Press, 1986; COLES, R. The Spiritual Life of Children.
Boston: Houghton Miffin, 1990.
20
LEWIS, C. S. Out of the Silent Planet. London: Pan Books, 1938. p. 91.
21
LEWIS. An Experiment in Criticism. p. 137.
180 COMMUNIO • Stephen Milne

De que serve então – qual é até a defesa que se pode fazer – para ocupar nossos
corações com estórias sobre coisas que nunca aconteceram e penetrar através de
sentimentos de outros, em sentimentos os quais deveríamos tentar evitar ter na
nossa própria pessoa? Ou de fixar nosso olhar interior [...] sobre coisas que nunca
poderão existir [...]?22.

A resposta, diz Lewis, é que procuramos uma expansão para nosso ser.
Queremos ser mais do que somos. Ler estórias, afirma Lewis, é um modo de vivenciar
o mundo de outros pontos de vista além do nosso próprio; a literatura “admite que
vivenciemos outras coisas além das nossas próprias”23. Essa expansão, para o leitor, pode
fornecer “janelas, até [...] portas” para outros mundos e para os mundos de outros –
janelas para a experiência moral de outros que pode lhes permitir ganhar compreensão
da vida moral não alcançada através de experiência de primeira mão.
A boa leitura, para Lewis, é uma “atividade afetiva, moral e intelectual”
através da qual, na esfera moral, “todo ato de justiça ou caridade envolve nos
colocarmos no lugar do outro e assim, transcendermos nossa própria particularidade
competitiva”24. Como Leland Ryken assinala, Lewis vê a leitura como um processo
que “desperta” uma extensão de grande alcance de faculdades humanas, incluindo
“percepção [...] (metafórica assim como visual), [...] imaginação, [...] afeições ou
emoções”25. Neste sentido, a boa leitura pode fornecer à criança oportunidades
para obter empatia, para ter participação nas vidas de outros, o que não é tão
facilmente alcançado na vida diária. Diz Lewis:
Ao ler nos tornamos [...] outros. Não apenas, nem principalmente, para ver como eles
são, mas para ver o que eles vêem, para ocupar, por algum tempo, o lugar deles no
grande teatro [...]26.

A metáfora, aqui, sugere, na espécie de ensaio, que através da participação


o leitor tome uma nova parte, pelo menos momentânea, para conseguir descobrir
como é; uma parte que não é possível no dia-a-dia, mas, uma que pode preparar
a criança para seus desafios, caso surjam experiências semelhantes, mais tarde na
vida27. Rejeitando a idéia de que a literatura deveria, apenas, ser lida para descobrir
o que há de universal nela, Lewis, referindo-se à leitura de textos medievais, sugere
que há outro, “melhor” modo para abordar a leitura:
22
Idem. Ibidem., p. 137.
23
Idem. Ibidem., pp. 130s.
24
Idem. Ibidem., p. 138.
25
RYKEN. Op. cit., p. 23.
26
LEWIS. An Experiment in Criticism. p. 139.
27
Uma afirmação parecida é feita por Bruno Bettelheim (1903-1990) com referência ao
desenvolvimento da identidade da criança pela identificação baseada na simpatia por personagens
nas estórias: a pergunta para a criança não é “Eu quero ser boa?” mas “Com quem quero me parecer?”
(BETTELHEIM, B. The Uses of Enchantment: The Meaning and Importance of Fairy Tales. New
York: Vantage Books, 1975. p. 10). [N. do E.: BETTELHEIM, B. A Psicanálise dos Contos de Fadas.
(Tradução de Arlene Caetano). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 16ª edição, 2002].
C. S. LEWIS E A IMAGINAÇÃO MORAL 181

Em vez de tentar arrancar a armadura do cavaleiro você pode tentar usar a


armadura em si mesmo; em vez de visualizar como o cortesão pareceria sem sua
renda, você pode tentar ver como você se sentiria com a renda dele; isto é, com sua
honra, sua esperteza, sua realeza [...]28.

Aqui, Lewis está interessado em como a leitura pode permitir-nos vivenciar,


de alguma maneira, “os modos de sentir e pensar pelos quais o homem passou”29. Isto,
claro, incluirá as formas de pensamento moral e experiência, inerentes a alguns
indivíduos, dentro de culturas e tempos particulares. Desta forma, a leitura de
estórias pode fornecer um meio para a compreensão da rica diversidade da reação
humana e da experiência de que somos capazes – tanto a boa, a má e a indiferente
– e que formam uma parte necessária da condição humana.
Ler estórias, portanto, pode permitir que a criança vivencie as vidas morais
de outros por dentro – incluindo os motivos, intenções, raciocínios e valores que
moldam um ato moral. Neste sentido, a experiência literária permite ao leitor
ensaiar na imaginação as reações a situações morais, desenvolver sua percepção
de situações morais ou escolhas e descobrir o que constitui a gama de experiência
moral vivida, sem as conseqüências, inevitável no real, em oposição ao mundo
imaginário.
Para Lewis, isto é parte de um propósito mais amplo na experiência
literária, uma que ele equaciona a experiências de saber, de amor, de adoração
e ação moral no mundo real:
A experiência literária cura a ferida, sem solapar o privilégio, de individualismo
[...] ao ler [...] literatura eu me torno mil homens e ainda assim permaneço eu
mesmo [...] vejo com olhos inumeráveis, mais ainda sou eu quem vê. Aqui, como
na adoração, no amor, na ação moral, e no saber, transcendo a mim mesmo: e
nunca sou mais eu do que quando o faço30.

Lewis, aqui, assinala a função social da literatura, que ela pode ajudar a
ligar vidas em modos que não diminuem a individualidade, até aumentam-na ao
criar uma compreensão maior entre nós e outros. A literatura pode nos ajudar a
compreender as experiências de vida de outros sem destruir a liberdade que temos
de reagir individualmente ao que encontramos e aprendemos sobre suas vidas.
No campo moral, a literatura nos permite fazer ligações entre as nossas vidas e
as de outros, a ver como e por que outros fazem suas escolhas para bem ou mal,
a acompanhá-los nas nossas imaginações e descobrir o que significa ser um ente
moral. Neste sentido, pode ser uma iniciação na vida moral31.
28
LEWIS, C.S. A Preface to Paradise Lost. London: Oxford University Press, 1967. pp. 63-64.
29
Idem. Ibidem., p. 64.
30
LEWIS. An Experiment in Criticism. pp. 140-141.
31
No seu ensaio “Christianity and Culture” [Cristianismo e Cultura], Lewis descreve a literatura e a
cultura como um “depósito dos melhores valores (sub-cristãos) os quais, até certo ponto, imitam os mais
elevados valores espirituais da fé cristã”. Seu argumento é que, ao ler, entramos nesta imitação e que,
como propõe, a “imitação pode passar à iniciação”. Ver: LEWIS, C.S. “Christianity and Culture”
182 COMMUNIO • Stephen Milne

O modo como reagem a tal participação pode ou não informar as vidas


e ações das crianças; com certeza lhes dará novos pontos de referência, imagens
e “ícones” pelos quais possam “interpretar ou avaliar sua própria experiência”32.
Se isso procede, então a literatura poderia ter uma função valiosa ao fornecer à
criança “ícones” morais ou pontos de referência pelos quais possam interpretar
seu mundo – imagens de bem e mal, virtude ou escolha moral diante dos quais
possam aferir a experiência futura33. Se for assim, devemos esperar que as crianças
reajam em modos diversos à dimensão moral de estórias, e a ver que as estórias
diferem na medida em que podem prover tais “ícones” à criança.

IV - CONCLUSÕES
Descrevendo a relação entre a leitura e o amor na obra de Lewis, Bruce
Edwards assinala que o melhor tipo de leitura, para Lewis, “tem alguma coisa em
comum com o melhor tipo de escuta. E, igualmente, a escuta amorosa depende da
imaginação tanto quanto a leitura imaginativa depende do amor”34. Essa dimensão
imaginativa, moral em relação à leitura pode nos conduzir a “aprender alguma coisa
– sobre outros e até nós mesmos no processo”35. Para crianças essa leitura imaginativa
pode ter muitas finalidades, como tenho tentado sugerir. Ao desenvolver a
imaginação moral, elas incluem a vivência do mundo como os outros o vêem,
estendendo sua empatia para as vidas dos outros, compreendendo a permanência
de normas morais, incorporando exemplos de bem e de mal, virtude e escolha
moral, desenvolvendo o que o filósofo católico Russell Kirk (1918-1994) chama
“o poder da percepção ética”36 e permitindo que crianças ensaiem situações nas
quais isto é necessário.
A literatura também pode dar “ícones” para uma vida moral a uma
criança, pontos de apoio imaginários pelos quais interpretar sua experiência e
pelos quais podem ser iniciados na vida moral sem as conseqüências desagradáveis
resultantes em algumas escolhas no mundo real. Como tal, as estórias têm um
papel importante a desempenhar na formação moral da criança, especialmente –
como propõe o filósofo católico Peter Kreeft37 – porque vivemos numa época que
In: C. S. Lewis Essay Collection: Literature, Philosophy and Short Stories. (Edited by L. Walmsley).
London: HarperCollins, 2000. pp. 71-92.
32
LEWIS. An Experiment in Criticism. p. 3.
33
Exemplos do modo pelo qual isso ocorre podem ser encontrados em: COLES, R. The Moral Life
of Children.
34
EDWARDS, B. L. “Literary Criticism”. In: Reading the Classics with C. S. Lewis. (Edited by T. L.
Martin). Grand Rapids: Baker Academic, 2000. p. 387.
35
Idem. Ibidem., p. 387.
36
KIRK. R. Redeeming the Time. Wilmington: Intercollegiate Studies Institute, 1996. p. 71.
37
KREEFT, P. C. S. Lewis for The Third Millennium: Six Essays on The Abolition of Man. San
Francisco: Ignatius Press, 1994.
C. S. LEWIS E A IMAGINAÇÃO MORAL 183

rejeita cada vez mais, “as coisas permanentes” incluindo as normas morais que
têm informado a cultura ocidental por muitos milhares de anos. Como William
Kilpatrick coloca, “o dom supremo das estórias é sua reafirmação” de que:
Nossas lutas e sofrimentos têm sentido. [...] Uma estória pode nos ajudar
a encontrar sentido em experiências que poderiam de outra forma parecer
caóticas ou sem finalidade38.

O mundo moral da criança, suas simpatias e reflexões podem, certamente,


ser expandidas ao ler estórias; o uso que se faz de tal expansão é com a criança, a
sabedoria dos seus professores, a vontade de seus pais e o comprometimento dos
seus amigos.

Stephen Milne é professor de inglês numa escola católica na cidade de Lincoln,


em Nebraska, nos EUA. Recebeu o M.A. em Literatura com uma dissertação sobre
O Paraíso Perdido de John Milton (1608-1674) e o Ph.D. em Filosofia pela The
University of Nottingham, na Inglaterra, com uma tese sobre as reações de crianças à
literatura e à imaginação moral, baseada em estudos de caso. É casado, tem seis filhos
e está escrevendo um romance para crianças.

38
KILPATRICK, W. Books That Build Character: A Guide to Teaching Your Child Moral Values
Through Stories. New York: Touchstone, 1994. p. 47.
Inspiração (1941)
Escultura em mármore de Albert Freyhoffer
Igreja de Santa Terezinha do Menino Jesus, Rio de Janeiro, RJ
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 185
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 185-200

GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO*


Owen Dudley Edwards

– Bem, este é o fim, Sam Gamgi – disse um voz ao seu lado. E ali estava Frodo,
pálido e exausto, e apesar disso era Frodo novamente; agora em seus olhos só
havia paz; nem luta de vontade, nem loucura, nem qualquer temor. Seu fardo fora
levado. Ali estava o querido mestre dos doce dias no Condado.
– Mestre! – gritou Sam, caindo de joelhos. Em meio a toda aquela ruína do
mundo, naquele momento ele só sentiu alegria, uma grande alegria. O fardo se
fora. Seu mestre se salvara; voltara a si de novo, estava livre. E então Sam viu a mão
mutilada, sangrando.
– Sua pobre mão! – disse ele. – E não tenho nada que sirva como atadura, ou que
possa confortá-la. Eu preferia dar-lhe uma das minhas mãos inteira. Mas agora ele
se foi, e está além de qualquer alcance. Ele se foi para sempre.
– Sim – disse Frodo – Mas você se lembra das palavras de Gandalf: Até mesmo
Gollum pode ter ainda algo a fazer? Se não fosse por ele, Sam, eu não poderia ter
destruído o Anel. A Demanda teria sido em vão, no fim de tanta amargura. Então
vamos perdoá-lo! Pois a Demanda está terminada, e com sucesso, e tudo está
acabado. Estou contente por tê-lo comigo. Aqui, no fim de todas as coisas, Sam.
J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei. Livro VI, capítulo III,
paragráfos finais, pp. 222-223**.

*
Artigo publicado originalmente em The Chesterton Review, Volume XXVIII, Numbers 1 & 2
(February / May 2002): 57-71. O presente ensaio foi republicado, nas páginas 27 a 41, no livro
A Hidden Presence: The Catholic Imagination of J. R. R. Tolkien, editado por padre Ian Boyd, C. S.
B. e Stratford Caldecott (The Chesterton Press, 2003). Os direitos autorais, em língua portuguesa,
foram gentilmente fornecidos pelo editor, padre Ian Boyd, C. S. B., para o Centro Interdisciplinar
de Ética e Economia Personalista (CIEEP), que autorizou a publicação do mesmo nessa edição da
Communio. Texto traduzido, do original em inglês para o português, por Márcia Xavier de Brito.
**
N. do T.: Todas as passagens do livro O Hobbit e da trilogia O Senhor dos Anéis, citadas pelo autor
no presente artigo, foram substituídas pelo trecho equivalente, em língua portuguesa, das seguintes
edições brasileiras:
TOLKIEN. J. R. R. O Hobbit. (Tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves). São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: As duas torres. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
186 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards

J. R. R. Tolkien (1892-1973) foi um católico, por razões tão dramáticas


quanto quaisquer outras em sua ficção1. Seu pai morrera na África do Sul, em
1
Ao escrever esse ensaio para a The Cheserton Review meus agradecimentos, como sempre, vão para
o padre Ian Boyd C.S.B., pelo apoio e pelo desafio, a partir de uma única frase (sobre Frodo); para
Stratford e Léonie Caldecott pela gentileza; para minhas filhas Leila e Sara, pelos incisivos debates
sobre Tolkien; ao professor Alastair Fowler pelas conversas e lembranças. A erudição de Tolkien era
enorme, passando por muitos campos, até mesmo pelas grosseiras imitações baratas. Seus filhos deram
notáveis contribuições. John F. R. Tolkien (1917-2003) e Priscilla M. A. R. Tolkien com o encantador
Tolkien Family Album [álbum da família Tolkien] de 1992, Christopher J. R. Tolkien, com as valiosas
publicações póstumas dos escritos de seu pai, que mais recentemente incluíram os primeiros rascunhos
d’O Senhor dos Anéis, editados como The History of Middle-Earth [A história da Terra Média] vols.
VI-IX (The Return of the Shadow, The Treason of Isengard, The War of the Ring, Sauron Defeated) e de
1988 a 1992, embora compense a consulta a toda a série, publicada entre 1983 e 1996. A biografia
autorizada Tolkien de Humphrey Carpenter (1946-2005), publicada em 1977, sua edição das Letters
of J. R. R. Tolkien [Cartas de J. R. R. Tolkien], de 1981, e, marginalmente, a obra The Inklings, de
1978, muito me ajudaram. O The Tolkien Reader, de 1966, está repleto de valiosas informações e inclui
os poemas; o ensaio “On Fairy Stories” [Sobre Histórias de Fadas], o qual conferi superficialmente
na primeira versão publicada em Essays Presented to Charles Williams [Ensaios para Charles Williams]
de 1947; “The Homecoming of Beorhtnoth Beorthhelm’s Son” [O retorno de Beorhtnoth, filho de
Beorhthelm], muito importante para a crítica de Tolkien ao orgulho cavaleiresco como receita para o
desastre e a tradução de Tolkien de Sir Gawain and the Green Knight [Sir Gawain e o cavaleiro verde],
editada por Christopher Tolkien, em 1975, traz mais elementos a essa crítica, muito instrutiva para
o posterior Frodo. O livro de Robert Giddings e Elizabeth Holland, The Shores of Middle-Earth [As
costas da Terra-Média], de 1981, lançam luz e trevas ao uso feito por Tolkien dos modernos escritores
de aventura, muito limitado em seu alcance, muito pálido na interpretação {por exemplo, The Thirty-
Nine Steps [Os trinta e nove passos] de John Buchan (1875-1940) é uma fonte, claramente, negada
para os hobbits e para os anéis, mas dificilmente tem ligação com Mithras porque o herói de Buchan,
Richard Hannay encontra pessoas chamadas Sir Walter Bullivant e Turnbull} – talvez devamos ficar
agradecidos por eles ignorarem outra fonte óbvia na obra de G. K. Chesterton (1874-1936), The
Flying Inn [A estalagem voadora] em que a defesa do meio-ambiente celebra uma deferência ao rural
(Humphrey Pump precursor de Sam Gamgi) numa revolta idônea, retrata os sedentos pelo poder
como traidores (Ivywood levando a Saruman), todos convidam a uma análise sensata. A obra de Tom
Shippey, J. R. R. Tolkien, de 2000, e The Road to Middle-Earth [A estrada para a Terra Média] estão
repletos de informações úteis. Utilizei as edições de 1937, 1951 e 1966 do The Hobbit [O Hobbit]
e me alegro com a obra de Douglas A. Anderson, The Annotated Hobbit [O Hobbit anotado], de
1988, muito superior as obras desse tipo. A versão de The Hobbit da The Collins Modern Classics, de
1998, detestavelmente copidescada, faz com que Gollum prometa obedecer Bilbo caso Bilbo erre a
charada, quando ele deveria prometer devorá-lo nessa ocasião, mas o cito como um texto de uso geral
(quando não é exigida nenhuma outra edição). Da mesma forma, utilizo a versão em um volume do
The Lord of the Rings, de 1995, também em brochura. O livro Master of Middle-Earth [Mestre da Terra
Média] de Paul Kocher, publicado em 1972, é um bom estudo, embora sofra, como outras críticas
contemporâneas de Tolkien, de certo esnobismo acerca da ficção infantil. A obra, de 1972, J. R. R.
Tolkien de Robley Evans é um estudo fascinante, porém esquecido, unindo sua mensagem a de Hesse,
Vonnegut e Brautigan numa série sobre “Escritores dos anos 1970”. Mary Salu e Robert T. Farrell,
na obra J. R. R. Tolkien: Essays in Memoriam [J. R. R. Tolkien: Ensaios in memoriam], de 1979, traz
um ensaio brilhante, ainda que, às vezes, instrutivamente obstinado chamado “The Lord of the Rings
as Romance” [O Senhor dos Anéis como romance] de Derek Brewer (1923-2008), o medievalista e
folclorista de Oxford. Assim como Tolkien, admite que o anti-romantismo ostensivo de Miguel de
Cervantes (1547-1616) o retira do cânone romântico, mas as obrigações de Frodo/Sam para Quixote/
Sancho resolve tudo muito claramente.
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 187

1896, quando tinha quatro anos de idade. Tinham se encontrado, pela última
vez, no ano anterior, quando, juntamente com a mãe e o irmão mais jovem
haviam sido mandados de volta para a Inglaterra. Em 1900, sua mãe ingressou na
Igreja Católica, para a fúria de seus parentes e dos de seu falecido marido. Agora,
recusavam-lhe o apoio financeiro com que contara anteriormente, se opuseram
à decisão dela criar os filhos como católicos e, por falta de cuidados médicos,
ela morreu quatro anos depois, deixando os meninos sob a guarda do padre
oratoriano Francis Xavier Morgan (1857-1933), que usou os próprios recursos
para sustentar as crianças. Nove anos depois, Tolkien escreveu que sua mãe “foi,
de fato, uma mártir e não é para todos que Deus abre tão facilmente os caminhos de
seus grandes dons [...] dando-nos uma mãe que se matou de trabalhar e de problemas
para garantir que mantivéssemos a fé”2. Isso significa que o catolicismo de Tolkien
era fundido à sua identidade nos pontos mais básicos da autoconsciência. Clichês
sobre a influência de mães dedicadas não descrevem a força de uma herança como
essa. Nem um convertido nem um católico de berço pode experimentar algo
parecido. G. K. Chesterton gostava de citar William Cobbett (1763-1835) a
respeito da perda do catolicismo medieval inglês pela Reforma como algo que se
assemelhava à descoberta do corpo da mãe no bosque3. Tolkien viu sua verdadeira
mãe sofrer um colapso, que mostrou ser um coma diabético, e morrer seis dias
depois: Não precisava de nenhum passeio rural para descobrir o fado de sua mãe
ou o significado religioso disso. O que quer que fosse, ele seria católico.
Nesse ponto há uma analogia com o meio nacionalista católico irlandês
em que nasci. A fusão das identidades religiosa e nacional significa, para nós, que
ambas são direitos de nascença, e que uma é inseparável da outra. Não foi somente
Cristo que morreu por nós: o país também. Alguns irlandeses católicos fizeram
pouco disso, mas caso se importe, isso se torna o tutano de seus ossos. Tolkien, ao
escrever sobre o martírio da mãe deve ter sentido o que muitos irlandeses católicos
sentiram, mas de forma muito mais vigorosa. Muitos irlandeses católicos sabem
que seus ancestrais – especialmente os maternos – se sacrificaram para a salvação
da descendência, mas Tolkien viu, com os próprios olhos, a mãe morrer pela sua
alma. Nem mesmo um sobrevivente da Grande Fome poderia pedir mais.
Pensar as obras de Tolkien como algo apartado de sua igreja é, portanto,
tão absurdo quanto pensá-las como algo separado de sua vida. Ele não pôs seus
escritos num desfile sectário, como podemos crer que fez Hilarie Belloc (1870-
1953). Ele não precisava apresentar exércitos católicos. A fé estava consigo. A
ficção católica, em geral, pode parecer o resultado de algum processo – dúvida,

2
A biografia escrita por Humphrey Carpenter traz 31 citações de J. R. R.Tolkien sobre o martírio
da mãe. Ver: CARPENTER, Humphrey. Tolkien: A Biography. New York: Ballantine Books, 1977.
3
BOYD, Ian. The Novels of G. K. Chesterton: A Study in Art and Propaganda. London: Paul Elek.
1975. p. 212, n. 60 citando o livro de Maisie Ward (1889-1975), Gilbert Keith Chesterton de 1944,
p. 412, cita seu William Cobbett, de 1925, pp. 176-177: “Ele era como aquele que encontrou, num
bosque escuro, os ossos de sua mãe, e, de repente, soube que ela havia sido assassinada”.
188 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards

reconversão, controvésia, novo público, novo local, tentação – mas, Tolkien não
escreveu para uma causa católica. Ele pode não ter estado particularmente cônscio
de escrever como um católico, não mais do que estou consciente de escrever
na minha língua natal – ciente, mas não inclinado a discussões, a menos que
desafiado por alguma outra língua. Ele insistia não estar escrevendo alegorias, e
não as apreciava4, talvez impelido pelas famosas alegorias anticatólicas como The
Faerie Queene [A bela rainha] de Edmund Spenser (1552-1599) e The Pilgrim’s
Progress [O peregrino] de John Bunyan (1628-1688). Por outro lado, ele não
tinha objeção à parábolas. As alegorias são formas encobertas de falar de coisas
que podemos conhecer; as parábolas são modos abertos de falar de coisas que
podemos conhecer.
Os romances de Tolkien têm muita relação com a morte, e, é bastante
natural que tenham relação com a expiação – com a busca católica por uma boa
morte que, em Tolkien, significa certificar-se de que a pessoa fez o que pôde
para reparar os males que causou, ou fazer o bem, ao menos o suficiente, para
que ele tenha mais valor que o dano. Thorin Escudo de Carvalho n’O Hobbit
e Boromir n’O Senhor dos Anéis ambos morrem de modo que, ao morrer, usam
suas últimas palavras para esse fim. Gollum, é claro, também morre com tais
efeitos, embora não intencionalmente, e a esse caso devo retornar. Mas à parte
dos penitentes, as personagens de incontestável virtude ou inocência acreditam
dar suas vidas por outros: Gandalf, Éowyn, Samwise, Pippin. Éowyn, é uma
mulher, embora em trajes masculinos, descrita, de modo significativo, ao entrar
na corrida para Gondor com “o rosto de alguém que vai em busca da morte, sem
qualquer esperança”5: um rosto tal como o menino Tolkien, de oito anos de
4
“Mas eu cordialmente desgosto de alegorias em todas as suas manifestações, e sempre foi assim desde que
me tornei adulto e perspicaz o suficiente para detectar a sua presença” [N. do T.: O Senhor dos Anéis:
A Sociedade do Anel. Prefácio, p. xiii]. Afirmaria que as obras de C. S. Lewis (1898-1965) Out of
the Silent Planet [Longe do planeta silencioso] de 1938 e Perelandra de 1943, que Tolkien gostava,
são parábolas; ao passo que a série de Nárnia é, obviamente, uma alegoria. Aslam é uma alegoria
de Jesus Cristo – com conseqüentes problemas como observou minha filha Sara Dudley Edwards,
no artigo “The Theological Dimensions of the Narnia Stories” [A dimensão teológica das estórias
de Nárnia] na edição da The Chesterton Review dedicada a C. S. Lewis (Volume XVII, Number 3
& 4, August / November 1991: 429-435). Gandalf, certamente, não o é, apesar de sua ressureição
(outros também ressuscitaram, por exemplo, Lázaro). Tolkien desaprovava As Crônicas de Nárnia.
5
TOLKIEN, J.R.R. The Lord of the Rings. p. 823 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: O retorno do
rei. Livro V, capítulo VI, p. 107]. Novamente o maravilhoso senso cômico de Tolkien, embora
secundário, preenche o momento. Ele era um crítico das bruxas e das profecias em Macbeth, de
William Shakespeare (1564-1616), tendo ficado amargamente desapontado, em menino, quando a
floresta de Birnam não foi até as alturas de Dunsinane, a não ser como camuflagem. Isso é remediado
na Floresta Ent de Isengard. Da mesma forma, a resposta do nazgûl: “Nenhum homem mortal pode
me impedir!” para Éowyn, sendo ela uma mulher (e Merry, um hobbit) é muito mais lógica do que
a insistência de Macduff em Macbeth de que o nascimento por cesariana não é nascimento. O “The
Lord of the Rings as Romance” de Derek Brewer pouco considera a morte dos companheiros da
sociedade do anel (pp. 260-261) defendendo as mortes de Sam numa luta, tipo Holmes-Moriarty,
com Gollum caindo do penhasco (hipótese desde cedo descartada por Tolkien); de Merry ao ser
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 189

idade, pode ter visto, inesperadamente, a morte, na forma enfraquecida de sua


mãe. Éowyn somente está certa da morte ao iniciar o combate com o Espectro
do Anel em defesa do rei Théoden. Até então, ela, Théoden e Merry se lançam
– como Faramir antes deles – na expectativa, mas não a certeza da morte. Frodo
conduziu toda a missão e inspirou seus colegas, não obstante a convicção de que
ela terminaria em morte. No caso, é somente por causa de Sam, repetidas vezes,
que ele chega ao final, e então, sua repentina capitulação ao Anel quase arruína
Sam e os vários aliados. Mas, uma vez que Gollum salvara a todos, Frodo está
certo da morte. E parece mais feliz por saber disso, pois esse conhecimento traz
mais bem consigo do que qualquer outro acontecimento posterior, até a partida
final nos Portos Cinzentos. Mas nenhuma dessas conjecturas e aceitações de
auto-sacrifício podem ser tidas como suicidas. Até mesmo Frodo, assombrado
pelo iminente desastre que quase provocou, seguiu Sam na descida da montanha
em vez de, indolentemente, esperar a destruição. Somente Denethor comete
suicídio, e isso é, enfaticamente, condenado. Tolkien não irá aprovar a auto-
destruição:
– A autoridade não lhe foi dada, Regente de Gondor, para ordenar a hora de
sua morte – respondeu Gandalf – E apenas os reis bárbaros, sob o domínio do
Poder Escuro, fizeram isso, matando-se por orgulho e desespero, assassinando
seus parentes para aliviar a própria morte6.

O argumento de que Deus nunca apareceu n’O Senhor dos Anéis é


respondido, da forma mais óbvia, ao dizer que Deus nunca esteve fora da
estória.
Gollum, certamente, não cometeu suicídio, mas levanta outra questão,
crucial ao catolicismo, o livre-arbítrio versus predestinação. Catolicismo significa
liberdade, mas o determinismo, constantemente, corrói a base doutrinária,
dentro e fora das fronteiras católicas – Santo Agostinho (354-430), Martinho
Lutero (1483-1546), João Calvino (1509-1564) e Cornélio Jansênio (1585-
1638) são, obviamente, os pontos altos. Tolkien sai desse caminho para mostrar
como a conduta de suas personagens em momentos vitais é determinada por
elas mesmas. É claro que a sorte tem seu papel, como deve ter em toda as boas
estórias, e a mágica também pode, legitimamente, ter sua vez. Mas Bilbo, por
exemplo, prova ser um herói para o leitor quando ouve, pela primeira vez, o
som de Smaug, o enorme dragão vermelho-dourado, ao aproximar-se dele no
túnel:
Foi nesse ponto que Bilbo parou. Ultrapassá-lo foi o gesto mais corajoso de toda
a sua vida. As coisas tremendas que aconteceram depois não eram quase nada

atacado pelo nazgûl (mas, ele é necessário como testemunha da morte do rei Theóden, com Éowyn
aparentemente morta); e de Gimli, nos portões de Mordor (presumivelmente, por erro, pois Pippin
pensa estar morrendo com grande brio, mas sessenta páginas adiante, Gimli mostra tê-lo resgatado).
6
TOLKIEN. The Lord of the Rings. p. 835 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. Livro V,
capítulo VII, p. 120].
190 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards

comparadas àquilo. Lutou a veradeira batalha sozinho no túnel, antes mesmo de


perceber o enorme perigo que estava à sua espera. De qualquer forma, depois de
uma breve parada, ele avançou [...]7.

Isso, como é clássico nos livros para crianças, muitas vezes fica enfraquecido,
em mãos alheias, pelas qualidades semi-divinas dos protagonistas jovens – assim,
o normalmente repulsivo Billy Bunter*, nos raros momentos de coragem física,
excede em brilho seus confiáveis colegas de classe que nunca enfrentaram aflições
desse tipo8. Mas, por trás do artifício padrão, do se não-realmente-covarde ou
7
TOLKIEN. Hobbit. p. 260 [N. do T.: O Hobbit. pp. 209-210].
*
Billy Bunter é uma personagem infantil de grande popularidade na Grã-Bretanha, criada por
Charles Hamilton (1876-1961) com o pseudônimo de Frank Richards. Apareceu pela primeira
vez na revista para meninos The Magnet, na Inglaterra, em 1908, e perdurou até 1940 nessa
mesma revista. Billy Bunter é, essencialmente, um anti-herói cômico, cujas ações invalidam ou
ridicularizam as escolas públicas inglesas (as estórias se passam na Escola Greyfriars), invertendo
os valores convencionais como um “Senhor da desordem”. Suas principais características físicas são
obesidade e miopia. É desonesto, ganancioso, centrado em si mesmo, esnobe, arrogante, preguiçoso,
covarde, malvado e obtuso. Não obstante, é bem-sucedido em conquistar a simpatia do leitor pela
virtude de seu descaramento e persistência diante do inevitável fracasso. As estórias de Billy Bunter,
também, foram objeto de livros durante os anos de 1940 a 1961, séries de televisão nos anos 1950
e 1960, peças de teatro anos 1950 e revistas em quadrinhos.
8
The Magnet, XLIX, no. 1465 (14 março de 1936) é um bom exemplo, onde Bunter resgata um
índio brasileiro de um jacaré:
“Alarmado, fora de seus obesos juízos, não ousou ver o perigo diante de si. Sabia, contudo, que não
podia dar as costas e deixar um homem morrer de forma tão horrorosa. O que quer que pudesse
acontecer, ele não permitiria.
– Ele não pode, e não vai! – De alguma forma Billy Bunter instigou sua coragem até chegar a um ponto
em que ela pudesse se agarrar – e ela se fixou!” (Tolkien não foi o único a escarnecer de Macbeth).
Tolkien foi tratado de forma áspera e esnobe pelo poeta Edwin Muir (1887-1959), que deveria tê-
lo conhecido melhor, e outros, por retirar elementos das estórias de Frank Richards, na revista The
Magnet, sobre os meninos da escola Greyfriars. (MUIR, Edwin. “A Boy’s World”. In: The Observer,
27th november 1955). Ele os tirou, inicialmente, para O Hobbit, onde no nome e na natureza,
Bilbo Baggings certamente lembra Billy Bunter, quando o encontramos pela primeira vez, como,
certamente, também lembra Gollum, especialmente ao mentir. N’O Senhor dos Anéis, Merry fica
a dever algo a outra personagem da escola Greyfriars, o impetuoso e amável Bob Cherry. Aragorn
fica a dever ao carismático, porém arrogante e irritadiço Harry Whaton. Boromir se parece com o
corajoso, mas voluntarioso, e algo brigão e rebelde Bounder (Herbert Vernon-Smith), cujo coração
está no amigo muito mais altruísta e calmo, o marujo Tom Redwing, cujas qualidades vemos em
Faramir. Sam tem a honestidade, a falta de tato – e, em momentos cruciais e extemporâneamente
– a insistência de Jonny Bull ao falar francamente. Realmente, sua franqueza a respeito de Gollum
acaba com o momentâneo arrependimento de Gollum pela traição que pretendia cometer contra
Frodo na toca da Laracna (Ver o rascunho da carta de Tolkien a Eileen Elgar, de setembro de
1963, em: TOLKIEN, J. R. R. The Letters of J. R. R. Tolkien. {Selected and edited by Humphrey
Carpenter, with the assistance of Christopher Tolkien}. Boston / New York: Houghton Mifflin
Company, 1981. p. 330) [N. do T.: Em língua portuguesa ver: TOLKIEN, J. R. R. “Carta 246:
De uma carta para a Sra. Eileen Elgar (rascunhos) – setembro de 1963”. In: Cartas de J. R. R.
Tolkien. (Organização de Humphrey Carpenter, com a assistência de Christopher Tolkien; tradução
de Gabriel Blum Oliva). Curitiba: Arte e Letra Editora, 2006. pp. 309-316]. Não é necessário
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 191

uma-só-vez-covarde, repousa a questão da vontade. Bilbo escolhe continuar. E,


depois, n’O Hobbit, Thorin escolhe repudiar a inimizade que tinha para com os
não-anões em geral [“Aqui! Aqui! Elfos e Homens! Aqui! Ó, meu povo!”], e contra
Bilbo, em particular [“desejo partir com a sua amizade, e retiro minhas palavras e ações
junto ao Portão”]9. O leitor, provavelmente, já veio a gostar de Bilbo e a respeitar
Thorin – sem ser obrigado a concordar vez ou outra com qualquer um deles – mas,
com base nos feitos anteriores, o leitor não tem o direito de supor a inevitabilidade
de tais ações. Nosso prazer em tais decisões tem um toque de alívio.
O Senhor dos Anéis oferece muito mais decisões multi-motivadas, assim como
quando Frodo primeiramente aceita ser o portador do Anel [sem esperar nenhum
companheiro além da vaga promessa de ajuda de Gandalf:
– Bem – disse Gandalf finalmente. – Em que está pensando? Já decidiu o que fazer?
– Não! – respondeu Frodo, saindo da escuridão e voltando a si, surpreso ao descobrir
que não estava escuro, e que da janela podia ver o jardim iluminado pelo sol. – Ou,
talvez, sim. Pelo que entendi do que você disse, suponho que devo manter o Anel e
guardá-lo, pelo menos por agora, não importa o que isso me acarrete.
– O que quer que aconteça, será lento, lento para o mal, se guardá-lo com esse
propósito.
– Espero que sim – disse Frodo – Mas espero que possa encontrar logo algum outro
guardião melhor. Mas por enquanto parece que represento um perigo para todos
os que vivem perto de mim. Não posso guardar o Anel e ficar aqui. Devo deixar o
Bolsão, o Condado, deixar tudo e ir embora. – Ele suspirou.
– Gostaria de salvar o Condado, se pudesse – embora tenha havido ocasiões em que
pensei não ter palavras para descrever a estupidez e idiotice dos habitantes daqui, e
senti que o bom para eles seria um terremoto ou uma invasão de dragões. Mas não
sinto assim agora. Sinto que enquanto o Condado permanecer a salvo e tranqüilo
atrás de mim, a minha andança será mais suportável: saberei que em algum lugar
existe um chão seguro, mesmo que meus pés não possam pisá-lo de novo10.
Isso resume o que é vocação, e Frodo aqui parece fazer eco a São Francisco
de Assis (1181-1226) e à idéia dos frades. A alienação esmorece no momento que é
chegado o resultado pleno: o sacrifício do seu mundo é minorado no sacrifício por
ele. A pessoa deixa o seu lugar na comunidade para preservá-la como totalidade. É

dizer que, essas são, senão uma, das muitas origens. Sam deve muito a Xanto, da comédia As rãs de
Aristófanes (447-385 a.C.), a Sancho Pança de Cervantes, a Ariel d’A Tempestade de Shakespeare,
ao Dr. Johnson, ao Dr. Watson de Arthur Conan Doyle (1859-1930), a Reginald Jeeves de P. G.
Wodehouse (1881-1975) e ao dedicado escudeiro, talvez, numa versão mais refinada, a Clarence, da
obra A Connecticut Yankee at King Arthur’s Court [Um ianque de Connecticut na corte do rei Artur]
de Mark Twain (1835-1910), publicada em 1889. Mas aqui há outros modelos chaucerianos e
medievais tanto para ele, quanto para os outros hobbits. Merry e Pippin são escudeiros chaucerianos
e, de alguma forma, lembram os escudeiros do romance de cavalaria de Conan Doyle, The White
Company [A companhia branca] de 1891, mais vivazes do que dedicados.
9
TOLKIEN. Hobbit. pp. 341, 346 [N. do T.: O Hobbit. pp. 276 e 281].
10
TOLKIEN. The Lord of the Rings. pp. 60-61 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel.
Livro I, capítulo II, p. 64].
192 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards

um tipo de coragem mais mental e espiritual do que demonstrou Bilbo, e como,


infelizmente, fica evidente quando Frodo o reencontra. As próprias qualidades
de Frodo ficam mais evidentes no amor que conquista de Sam, Merry e Pippin
[todos ingressam na jornada unicamente por Frodo], mas seu melhor amor é
dado a Bilbo, mesmo na última grande ironia:
– Agora, onde estávamos? Sim, é claro, dando presentes. E isso me faz lembrar: O
que aconteceu com o meu Anel, Frodo, que você levou embora?
– Eu o perdi, Bilbo querido – disse Frodo. – Livrei-me dele, você sabe.
– Que pena! – Gostaria de vê-lo mais uma vez. Mas não, que tolo eu sou! Foi por
isso que você foi, não é? Para livrar-se dele? Mas tudo é tão complicado [...]11.

Nesse estágio, a prova da paciência e do amor de Frodo, certamente, é


necessária, já que ele esgotou a nossa e – acima de tudo – a de Sam, ao quase falhar
em derrotar o Anel. Bilbo, da perspectiva da infância – agora da segunda infância
– mais uma vez produz uma versão quase cômica da tragédia da incapacidade de
Frodo de apartar-se do Anel.
Uma das grandes forças de ambos os livros é o senso de humor que aparece
repentinamente em alguns momentos. Afirmar que O Senhor dos Anéis é uma obra-
prima para todas as idades, seqüência de O Hobbit, um bom livro para crianças, está
longe do problema que normalmente críticos cônscios, tais como Paul H. Kocher
(1907-1998), apresentam. As aventuras de Huckleberry Finn de 1884, também, é uma
obra-prima, baseada num bom livro para criança, As aventuras de Tom Sawyer de 1876.
Tanto Twain quanto Tolkien terminaram seus segundos livros em óbvios abismos entre
as percepções dos protagonistas das duas estórias. Huckleberry ainda admira Tom,
assim como Frodo ainda admira Bilbo, mas agora cada um deles vê o antigo herói por
um outro prisma a partir da jornada que, acima de tudo, os legou a auto-descoberta.
Huckleberry descobriu o amor pelo “Negro Jim”, o que o tornou um apóstata para a
cultura pró-escravagista do Sul dos Estados Unidos, e Tom nunca entenderia isso. Bilbo
não só não entendeu a profundidade da tragédia de Frodo, acima de tudo porque Bilbo
partilha com Tom Sawyer o ardor por transformar suas aventuras em boas estórias. O
título dado por Bilbo para seu relato da estória do Anel parecem as memórias do Sr.
Sapo de Toad Hall*. Frodo exala o seco profissionalismo de um historiador [mas, como
Tucídides (460-400 a.C.), um historiador cujo conhecimento e sabedoria estão, em
parte, fundamentados nos próprios infortúnios e erros].
11
TOLKIEN. The Lord of the Rings. p. 965 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. Livro
VI, capítulo VI, p. 267].
*
N. do T.: O Sr. Sapo é uma das personagens de The Wind in the Willows [O vento nos salgueiros],
famoso livro infantil de Kenneth Grahame, cujas aventuras da personagem Sr. Sapo foram adaptadas
para o teatro por A. A. Milne com o título de Toad of Toad Hall [O Sapo da mansão Sapo]. No
Brasil, a versão disponível das aventuras do Sr. Sapo pode ser encontrada no longa-metragem de
animação dos estúdios Disney “As aventuras de Ichabod e o Sr. Sapo” de 1949. A personagem Sr.
Sapo é um rico proprietário rural que satisfaz todos os impulsos aventureiros, como corridas de
carros e balões de ar. Embora seja arrogante, egoísta e não tenha bom-senso, o Sr. Sapo possui um
bom coração.
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 193

Tolkien, como um católico que se viu escrevendo romances, teria


conhecido os mestres da ficção católica na Inglaterra e na França de sua época12.
Os que leu e admirou, isso é outra coisa. Mas partilhou com eles o fascínio pelo
herói vulnerável e predestinado, pré-eminentes nas obras de François Mauriac
(1885-1970), Le noeud de vipères [O ninho de víboras] (1932); de George
Bernanos (1888-1948) Journal d’um curé de campagne [Diário de um pároco de
aldeia] (1936); de Graham Greene (1904-1991) The Power and the Glory [O
poder e a glória] (1940); de Evelyn Waugh (1903-1966) A Handful of Dust [Um
punhado de pó] (1934) e Brideshead Revisited [Memórias de Brideshead] (1945).
A condenação varia: as personagens em questão todas morrem, mas claramente
salvam suas almas (A personagem Tony Last termina numa espécie de limbo
terrestre, firmemente recomendado à misericórdia). Os pecados também variam:
avareza e misantropia no advogado de Mauriac; desespero e escrúpulos no padre
de Bernanos; alcoolismo e concupisciência em Greene; lascívia nos Marchmain
e um materialismo ancestral em Tony Last de Waugh. Frodo partilha muitas
qualidades com essas personagens, particularmente o orgulho (de uma forma
ou de outra) embora sua expressão em Frodo, a fome de poder, somente esteja
presente de forma oblíqua nos demais, se é que está. Frodo é um aristrocrata
natural, bem diferente do aburguesamento boêmio de Bilbo (e muito menos
consciente disso do que a aristocracia de Waugh). O mais perto que chega do
alcoolismo é a voracidade habitual dos hobbits, embora o seu caso seja moderado.
Sua tendência misantrópica (ou o equivalente hobbit), podemos testemunhar.
Compreensivelmente, ele está quase sempre a beira do desespero. Sua avareza se
limita ao Anel, embora da forma mais crucial e desagradável, com efeitos muito
mais desagradáveis do que vemos em Bilbo. Mas, acima de tudo, ele sabe que
as almas, muitas almas, se fiam em sua missão e está horrivelmente consciente
de que não será moralmente forte o suficiente para completá-la. Ele é, de fato,
pessoalmente corajoso, como o são a maioria dos heróis apresentados por esse
grupo de romancistas católicos. No entanto, duvida de si de modo mais profundo
do que os outros. Embora esteja pronto a sacrificar-se em corpo, e talvez em alma
– um bem bastante evidente n’O Senhor dos Anéis – e fazê-lo por toda a Terra
Média, bem como pelo seu tão conhecido, ainda que nem sempre tão amado,
Condado. Aqui, ele nos recorda os padres de Bernanos e de Greene. Sam, Merry
12
Fui profundamente influenciado pela obra-prima Maria Cross (1954) de Donat O’Donnell,
pseudônimo de Conor Cuise O’Brien (1917-2008), em que esses autores – embora, nem sempre,
as obras – são discutidos com perspicácia e talento artístico quase inacreditáveis. Esta revista deve
observar a conclusão do referido autor no seu prefácio, citando a introdução de G. K. Chesterton a
The Old Curiosity Shop [A loja de antiguidades] de Charles Dickens (1812-1870):
A função da crítica, se é que possui uma função legítima, só pode ser uma – a de lidar com
a parte subconsciente da mente do autor que somente o crítico pode expressar e não com a
parte consciente da mente do autor com a qual ele mesmo pode se expressar. Tanto a crítica
não é absolutamente boa (uma postura muito defensável) ou criticar significa dizer coisas sobre
determinado autor, as mesmas coisas que o fariam “subir nas tamancas”.
194 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards

e Pippin estão mais próximos dos feridos ambulantes de Mauricac ou de Waugh:


os sacrifícios são para os entes queridos.
Onde Frodo difere de todos é no momento supremo. A lição, em todos os
casos, é quase sempre a mesma: de que os heróis, hoje em dia (e Tolkien sempre
insistia nisso), são humanos, pecadores, muitas vezes deploráveis e, como tais,
podem ser mais úteis para os leitores do que são os edificantes, mas moralmente
inatacáveis, heróis exemplares. O Scobie* de Greene em The Heart of the Matter
[O cerne da questão] (1948) pode estar mais próximo de Frodo, e embora cometa
suicídio e assim capitule, ele é completamente – ou quase completamente –
altruísta. As várias rendições de Frodo ao Anel não têm tal desculpa. Sua piedade,
de fato, irá salvá-lo, ao passo que, em Scobie, ela o destruirá. Ele se torna uma
espécie de Mr. Hyde** quando ameaçado com a perda do Anel nas etapas finais
e – onde o misantropo de Mauriac ratificaria seus sentimentos – vê Mr. Hyde
naqueles que o ameaçam (ele literalmente vê Sam, acima de todos os outros, na
forma de Mr. Hyde, embora somente em momentos extremos). Tolkien, de fato,
vai além dos seus companheiros católicos, e se pauta numa base mais familiar do
que os demais postulam. Em 1956, escreveu:
No método da estória a “catástrofe” exemplifica (um aspecto) das palavras
familiares: “perdoai as nossas ofensas, assim como perdoamos a quem nos tem ofendido,
e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”.
“Não nos deixeis cair em tentação...” é o pedido mais difícil e menos levado em
conta [...] há situações anormais [...] em que o “bem” do mundo conta com o
comportamento de um indivíduo em circunstâncias que requerem sofrimento e
paciência muito além do normal – até mesmo [...] requerem uma força corporal
e mental que ele não possui: ele está, num certo sentido, condenado a falhar,
condenado a cair em tentação ou a ser subjugado contra a “vontade”, o que é
contra qualquer escolha que possa fazer ou que faria, livre, e não sob coação.

Aqui, evidentemente Tolkien se refere à tradição católica de que um


juramento obtido sob coação não é válido.

*
N. do T.: O romance O cerne da questão (São Paulo: Editora Globo, 2007) é o que podemos
chamar de um romance de provação: “Só os homens de boa vontade carregam sempre no coração essa
capacidade de danação” (p. 99). Ele conta a história de Scobie, um major da polícia colonial inglesa
em Serra Leoa, na África Ocidental. Scobie é um homem com seus 50 anos e cujo agudo senso
de responsabilidade vem aliado a um fortíssimo sentimento de piedade em relação ao mundo,
em relação às pessoas, em relação à sua mulher, em relação à amante, em relação a si mesmo. Ele
vai se envolvendo em vários incidentes e é envolvido pelas circunstâncias relacionadas, direta ou
indiretamente, com o pecado do adultério. É dessa forma, como católico e pecador, que percebe seu
caso amoroso com Helen. Logo, o conflito moral gera o dilema religioso que acabará por levá-lo
ao suicídio. Segundo Ronald Mattews, o próprio Greene dissera que o suicídio de Scobie não se dá
por obra da divina caridade que parece pautar sua conduta, mas pela “paixão destrutiva da piedade,
que faz parte de seu orgulho”.
**
N. do T.: Lado demoníaco e monstruoso da personagem Dr. Jekyll de Robert Louis Stevenson
(1850-1894) na obra O médico e o monstro de 1886.
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 195

Frodo estava em tal posição: uma armadilha aparentemente completa [...]. A busca
[...] estava destinada a terminar em desastre como a história do desenvolvimento
do humilde Frodo ao “nobre”, sua santificação. Falhar ela iria e falhou no que
dizia respeito a Frodo levado em consideração sozinho. Ele “apostatizou” [...].
Não antevi que antes da estória fosse publicada entraríamos em uma era das trevas
na qual as técnicas de tortura e de ruptura da personalidade rivalizariam com as
de Mordor e a do Anel e nos presenteariam com o problema prático de homens
honestos de boa vontade transformados em apóstatas e traidores.
Nesse ponto, porém, a “salvação” do mundo e a própria “salvação” de Frodo é
alcançada por sua piedade prévia e seu perdão aos ferimentos. Em qualquer
momento qualquer pessoa prudente teria dito a Frodo que Gollum certamente o
trairia e poderia roubá-lo no final. Ter “pena” dele, abster-se de matá-lo, foi uma
insensatez, ou uma crença mística no valor-por-si-só fundamental da piedade e da
generosidade ainda que desastrosa no mundo temporal. Ele o roubou e o feriu no
final – mas, por uma “graça”, essa última traição ocorreu em uma junção precisa,
quando a última má ação foi a coisa mais benéfica que alguém poderia ter feito
por Frodo!13

Tolkien, como um estudioso de mitologias antigas, poderia evocar tradições


muito antigas: e aqui ele estava valendo-se do folclore de viagem irlandês, onde
Judas é autorizado a ficar fora do Inferno por um dia em recompensa por uma
boa ação durante a vida.O Senhor dos Anéis estava sendo feito muito antes do livro
1984 (1949) de George Orwell (1903-1950), mas respondeu prematuramente ao
romance-pesadelo desse autor pelo capital moral de Frodo. Comparativamente,
Winston Smith e sua Julia haviam se declarado prontos, caso fosse necessário,
“para jogar ácido sulfúrico no rosto de uma criança”14, e por tal promessa, Smith é,
posteriormente, insultado sob tortura.
No entanto, Frodo levanta-se com instintos homicidas para Gollum:
É uma pena que Bilbo não tenha apunhalado aquela criatura vil, quando teve chance!
– Pena? Foi justamente Pena que ele teve. Pena e Misericórdia: não atacar sem
necessidade. E foi be recompensado, Frodo. Tenha certeza de que ele foi tão pouco
molestado pelo mal, e no final escapou, porque começou a possuir o Anel desse
modo. Com Pena.
– Sinto muito – disse Frodo. – Mas estou com medo; e não sinto nenhuma pena
de Gollum.
13
TOLKIEN. “Letter 181: To Michael Straight”. In: The Letters of J. R. R. Tolkien. pp. 233-234.
[N. do T.: Substituiímos o trecho original em inglês pela versão em português da seguinte edição:
TOLKIEN. “Carta 181: Para Michael Straight”. (janeiro ou fevereiro de 1963). In: Cartas de J. R.
R. Tolkien. pp. 224-225].
14
ORWELL, G. 1984. New York: Doubleday Anchor Books, 1954. p. 140. Assim como n’O
Senhor dos Anéis, a estória de 1984 gira em torno do poder, suas implicações e tentações. Orwell
estava valendo-se de Jack London (1876-1916), The Iron Heel [O tacão de ferro] de 1908. Será
que Tolkien sabia disso? O gigantesco alcance de London tinha mais em comum com Tolkien do
que com Orwell, mas Saruman parece mais sutil do que os celebrantes do poder de London ou
de Orwell, ao passo que Sauron, assim como o Professor Moriarty de Conan Doyle, funciona no
formidável princípio absenteísta.
196 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards

– Você não o viu – Gandalf interrompeu.


– Não vi e não quero ver – disse Frodo. Não consigo entender você. Quer dizer
que você e os elfos deixaram-no viver depois de todas as coisas horríveis que fez?
Agora, de qualquer modo, ele é tão mau quanto um orc, e um inimigo, merece a
morte.
– Merece! Ouso dizer que sim. Muitos que vivem merecem a morte. E alguns que
morrem merecem viver. Você pode dar-lhes vida? Então não seja tão ávido para
julgar e condenar alguém à morte. Pois mesmo os muito sábios não conseguem ver
os dois lados. Não tenho muita esperança de que Gollum possa se curar antes de
morrer, mas existe uma chance. Ele está ligado ao destino do Anel. Meu coração
me diz que ele ainda tem algum tipo de função a desempenhar, para o bem ou
para o mal, antes do fim; e quando a hora chegar, a pena de Bilbo pode governar
o destino de muitos – e o seu também. De qualquer forma não o matamos: está
muito velho e infeliz [...]15.

Mas, Frodo, ao encontrar realmente Gollum – quando evitou que ele


estrangulasse Samwise – insistiu em preservar-lhe a vida, com a lembrança das
doutrinas de Gandalf – e pensou “Pois, agora que o vejo, realmente sinto pena
dele”16.
Ao contrário de Frodo, Bilbo realmente não tinha uma alternativa
razoável para matar Gollum quando se encontraram. Após ter escrito O Senhor
dos Anéis, Tolkien revisou O Hobbit, em 1951, e o encontro de Bilbo-Gollum
foi modificado. O texto de 1937 nos leva a uma área óbvia, porém muito pouco
destacada, da especialidade de Tolkien em mitologia: os gregos. Como mostra
no ensaio “On Fairy Stories” [Sobre contos de fadas], Tolkien gostava muito
da estória de Perseu e da górgona Medusa. Para encontrar as górgonas, Perseu
teve de interrogar suas irmãs, as gréias, ao roubar o olho que partilhavam entre
si e, assim, chantageando-as, pediu a localização. Em alguns relatos ele pediu
o local onde conseguir o elmo da invisibilidade. A República de Platão (428-
347 a.C.) nos conta de Giges, o lídio, que obtém o anel da invisibilidade da
mão de um cadáver. E a estória de Édipo envolve uma série de enigmas com
a esfinge. Portanto, presumivelmente, a disputa de enigmas de Gollum com
Bilbo é um estágio necessário, senão inesperado, na jornada para o tesouro
do dragão Smaug. Gollum está pronto para comer Bilbo caso ele erre ao
responder as suas charadas, mas está perfeitamente pronto a dar-lhe o Anel da
invisibilidade, sem saber que, acidentalmente, Bilbo o tinha encontrado; e fica
certamente desolado quando não pode fazer o bem. Em vez disso, mostra a
saída para Bilbo. Foi somente quando Tolkien estava planejando uma seqüência
que percebeu a esplêndida personagem que era Gollum – discutivelmente a
personagem mais memorável n’O Hobbit – e nas versões em rascunho da nova

15
TOLKIEN. The Lord of the Rings. p. 58 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel. Livro
I, capítulo II, p. 61].
16
Idem. Ibidem. p. 601 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. Livro IV, capítulo I, p. 224].
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 197

obra sobre uma segunda caça ao tesouro (tanto para Bilbo, como para seu filho,
ou o sobrinho Bingo Bolseiro). Tolkien recordou-se do Anel, e criou a jornada
para destruí-lo, e não para descobrir o tesouro. Quanto mais pensava sobre
isso, mas trágicas tinham de ficar as personagens principais. O Bingo, cômico
como uma personagem de P. G. Wodehouse (1885-1975), foi substituído
por Frodo, potencialmente muito mais sério. Gollum ficou obsecado com a
perda do Anel, e a busca para recuperá-lo foi projetada para ser continuamente
entrecortada, senão atrasada, pela jornada de Frodo para destruí-lo. Tolkien,
nadando na ficção erudita, explicou a discrepância entre a primeira e as edições
subsequentes d’O Hobbit como prova das propriedades letais do Anel, de modo
que a honestidade normal de Bilbo fora subvertida nas explicações introdutórias
sobre a origem do Anel [Mark Twain recuperou qualquer perda de sincronização
entre Tom Saywer e sua seqüência ao colocar Huck Finn, como narrador da
última, culpando o Sr. Twain for algumas “interpretações forçadas” no primeiro
livro, de modo que, ao estabelecer a preferível veracidade do segundo texto,
Twain convidava os leitores a acreditar mais na sua criação do que nele mesmo.
Tolkien fez o oposto. Twain era uma inspiração óbvia para muitos escritores de
ficção para crianças]17.
17
Idem. Ibidem. p. 601 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. Livro IV, Capítulo I. p. 224];
PLATÃO. A República. 359d-362c.
Toda a discussão do uso do Anel pela pessoa justa e pela injusta é muito sugestiva, mas o contraste
rigoroso entre o gosto de Platão pela mitologia e a austera discussão de Heródoto (484-425 a.C.) do
mesmo Giges (História. I,8-12), indicam fortemente que os escritos contra a literatura imaginativa
em qualquer outro lugar d’A República era uma piada, acima ou abaixo da inteligência dos
subsequentes eruditos). Giges também era conhecido como Gugu (idioma acádio), que pode estar
relacionado com Gollum. Foi o primeiro governante a ser considerado “tirano”, e o primeiro a usar
moedas e, provavelmente, nenhuma dessas características o tornaram mais estimado por Tolkien.
A intertextualização d’O Hobbit e d’O Senhor dos Anéis chega ao cume da comoção nas últimas visões
de Bilbo e de Pippin, respectivamente, na Batalha dos Cinco Exércitos e na luta nos Portões de Mordor:
– As Águias! – gritou Bilbo mais um vez, mas, naquele momento, uma pedra veio rolando de
cima, bateu com toda a força em seu elmo; ele caiu com estrondo e perdeu os sentidos [N. do
T.: O Hobbit. p. 278].
Então Pippin deu um golpe para cima , e a espada com as letras do Ponente perfurou o couro
e penetrou fundo nas entranhas do troll, cujo sangue negro jorrou aos borbotões. A criatura
cambaleou para frente e foi ao chão, desmoronando como uma pedra, enterrando os que
estavam embaixo. Negrume, fedor e uma dor esmagadora dominaram Pippin, e a sua mente
caiu numa grande escuridão.
“Assim tudo termina como eu suspeitara”, disse seu pensamento, no instante em que se perdia;
riu um pouco ainda dentro de si mesmo antes de fugir, parecia quase alegre por estar afastando
finalmente toda a dúvida, a preocupação e o medo. E então, no momento em que o pensamento
voava para dentro do esquecimento, ouviu vozes, que pareciam estar gritando de algum modo
esquecido lá em cima:
– As Águias estão chegando! As Águias estão chegando!
Por mais um momento o pensamento de Pippin perdurou. – Bilbo! – disse ele. – Mas não!
Isso aconteceu na história dele, há muito e muito tempo. Esta é minha história, e agora está
198 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards

E o Anel aumentou horrivelmente suas potencialidades. Ele é, de fato, o


verdadeiro “Senhor” dos outros anéis, e justifica o título do livro como Sauron sozinho,
dificilmente, poderia fazer. A influência corruptora sobre Frodo é a mais óbvia; mas ele
bombardeia, brevemente, Sam com uma loucura pelo poder; seu efeito sobre Bilbo é
menor, mas repulsivo, e reduz Gollum ao que nos parece um assustador viciado em
drogas. Isso o levaria à um passo adiante do companheiro católico de Tolkien, Lord
Acton (1834-1902). Parece o equivalente espiritual da radiação nuclear. “O poder”, disse
Lord Acton, “tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente”. A toxicologia
do Anel de Tolkien realmente o reduz a análise médica. Os hobbits [incluindo o primo
distante, Gollum] praticamente se transformaram em ratos de laboratório para vivisecção
de Gandalf. Saruman tentou “derrotar os traficantes”; o temporário sucesso de Grima
Língua de Cobra no poder, determinando os caminhos de Rohan; a suprema auto-
destruição de Denethor num duelo com o poder são, todos, desdobramentos naturais.
Da mesma forma o são o orgulho, o ódio, a avareza, a ganância, a inveja, a preguiça e,
talvez, a luxúria que ele desperta. O Anel, de fato, se torna o Anticristo. A Sociedade do
Anel determina sua destruição e saem em sua busca no dia 25 de dezembro de 3018, dia
de Natal. O Anel, nas mãos de Gollum, cai no precipício, na Montanha da Perdição, no
dia 25 de março de 3019. No calendário católico, esta última data coincide com a festa
da Anunciação do Senhor, um memorial do dia em que Cristo “foi concebido pelo poder
do Espírito Santo”. Et Verbus Incarnatus est. Os hobbits, no seu triângulo de forças [apesar
de Sam ter sido o único que tinha a intenção de destruir o Anel até o fim] realizam a
não-criação da anticriação18.
Por isso, O Senhor dos Anéis se tornou o livro de sua época, ainda mais quando a
Inglaterra lutou para sobreviver, e o auto-sacrifício latente de seus soldados, tais como os
filhos de Tolkien, eram o pano de fundo dessa composição. A obra teve total relevância
ao mostrar os perigos do poder absoluto nas mãos de qualquer pessoa, não importando
quão boas fossem as intenções com as quais o tomavam. A própria crença em séculos
e séculos de língua e literatura inglesas o pôs, com certeza, dentre os grandes romances
ingleses do período pós-Segunda Guerra Mundial. Mas era uma Grã-Bretanha, do início
ao fim, ciente de suas derivações culturais em toda a Europa. O próprio catolicismo de
Tolkien assegurava isto. Sua própria crença no livre-arbítrio não o cegou a respeito do
papel do poder – o Anel – como seu próprio determinante. Se o perigo e a suprema
capitulação de Frodo foram males, Gollum (após seu renascimento pós-revisão) caíra
primeiro, assassinando seu amigo para obter o Anel. O antecedente literário era católico,
porém jansenista: a Ifigênia (1674) de Jean Racine (1639-1699). Tolkien no ensaio
terminada. Adeus! – E seu pensamento voou para longe; seus olhos não viram mais nada. [N.
do T.: O Senhor dos Anéis, Livro V, capítulo, X. p.163]
18
O calendário dos Hobbits contém meses de igual duração (não está claro para mim como, mas
o uso feito por Tolkien dos dias 25 de dezembro e de março, evidentemente, não se relacionam a
isso). Ver: TOLKIEN. O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. Apêndice B, “Os grandes anos”. pp.
380-387. “Anticristo” era um conceito que estava sendo refletido por Tolkien e seus companheiros
do grupo informal de debates sobre literatura, The Inklings, em Oxford. Charles Williams (1886-
1945) escreveu um poema com este título.
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 199

“Sobre histórias de fadas” mostrara seu fascínio pela lenda original, uma vez adquirida
a forma literária. Na peça Ifigênia, a personagem que dá nome à peça, quando estava
prestes a escapar da tentativa dos gregos de sacrificá-la, é traída pela misteriosa Erifila,
de quem ficara amiga, mas cujo amor por Aquiles levara a, implacavelmente, destruir a
mulher escolhida pelo guerreiro, a própria Ifigênia. Então, no último momento, Erifila
provou ser a vítima apropriada para o sacrificio e tira a própria vida. Erifila antecipa a
personagem Fedra da peça de mesmo nome (1677) do autor, como a traiçoeira obsessora
cujo amor irá passar por cima da gratidão, das obrigações, da honra, da verdade, da
vida, contanto que atinja seu objetivo, embora ambas sejam prisioneiras de um desígnio
sobrenatural. A salvação da vítima pretendida por Erifila parece um claro precursor de
Gollum. No entanto, Tolkien recusa a certeza de condenação tão evidente em Racine,
ao escrever para Michael Straight (1916-2004):
Não me importaria em indagar a respeito do julgamento final de Gollum. Isso seria
investigar a “Goddes privitee” [“os deuses privados”], como diriam os medievais. Gollum
era digno de pena, mas ele acabou em uma persistente perversidade, e o fato de que isso
causou o bem não lhe dava crédito. Sua coragem e resistência maravilhosa, tão grandes
ou maiores que as de Frodo e Sam, estando dedicadas ao mal, eram pressagiosas, mas
não honoráveis. Temo que, quaisquer que sejam nossas crenças, temos de encarar o fato
de que há pessoas que se rendem à tentação, rejeitam suas chances de nobreza ou de
salvação e parecem ser “condenáveis”. A “danação” delas não é mensurável nos termos
do macrocosmo (onde pode causar o bem). Mas nós, que estamos todos “no mesmo
barco”, não devemos usurpar o Juiz [...]. Por temporizar, não estabelecendo a ainda não
totalmente corrompida vontade de Sméagol em direção ao bem no debate dentro no
buraco de escória, ele enfraqueceu a si próprio para a última chance quando o emergente
amor por Frodo feneceu muito facilmente pelo ciúme de Sam diante da toca de Laracna.
Depois disso ele estava perdido19.

Ao contrário de Racine, no entanto, Tolkien não fez da condenação algo


inevitável. Tolkien acreditava no livre arbítrio: ele não acreditava na invencibilidade
humana. Em meados de 1956, escreveu: “é preciso encarar o fato: o poder do Mal no
mundo não é em última instância resistível por criaturas encarnadas”20, por isso queria
dizer que somos dependentes da graça divina, para a qual devemos rezar. Portanto, sua
estória é qualquer coisa, menos pessimista. Contudo, ele percebeu, muito ou pouco,
que também simbolizava a luta de seu país contra o Sauron moderno na forma de
Adolf Hitler (1889-1945), não obstante, estava dizendo que o pequeno, o solitário
19
TOLKIEN. “Letter 181: To Michael Straight”. In: The Letters of J. R. R. Tolkien. pp. 234-235.
[N. do T.: Substituiímos o trecho original em inglês pela versão em português da seguinte edição:
TOLKIEN. “Carta 181: Para Michael Straight”. (janeiro ou fevereiro de 1963). In: Cartas de J. R.
R. Tolkien. p. 225]. Sobre Ifigênia em Áulis, ver: TOLKIEN, J. R. R. “On Fairy Stories”. In: The
Tolkien Reader. New York: Del Rey, 1966. Note B. [N. do T.: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de
fadas. (Tradução de Ronald Kyrmse). São Paulo: Conrad, 2006. Nota B, p. 83].
20
TOLKIEN. “Letter 191: To Miss J. Burn”. In: The Letters of J. R. R. Tolkien. p. 252. [N. do T.:
Substituiímos o trecho original em inglês pela versão em português da seguinte edição: TOLKIEN.
“Carta 191: De uma carta para a Srta. J. Burn (rascunho)”. (26 de julho de 1956). In: Cartas de J.
R. R. Tolkien. p. 242].
200 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards

despercebido ou a dupla de agentes, despercebidos ou descartados com desdém pelo


inimigo, pode ter a chance de vitórias negadas aos grandes exércitos. Somente quando
tais pigmeus se acham grandes é que colocam em perigo tudo pelo qual lutaram.
E O Senhor dos Anéis tem outra mensagem para a Segunda Guerra Mundial.
Podemos amar Frodo, podemos concordar com James Edward Anthony Tyler (1943-
2006) que Gollum é a “mais trágica de todas as estórias pessoais associadas à história do
Grande Anel”21 e que por sua intervenção, ele “expiou todos os males cometidos durante
sua longa vida, e finalmente encontrou a paz que seus julgamentos mereceram” (o que é
mais do que diria seu criador). Mas o herói supremo não é nenhum desses. O humilde,
dedicado Sam Gamgi, tão banal, grosseiro, importuno, notório, provinciano, que
praticamente foi jogado na estória ao cair na primeira conversa privada entre Frodo
e Gandalf – possivelmente para a surpresa do autor – que até o último momento da
jornada não sabia “para onde estava indo”22 – que salva, carrega, alimenta e, acima de
tudo, ama Frodo em todos os perigos, até na rejeição – é o homem acima de todos
os outros a ser destacado, assim como seus pares, ingleses de classe social inferior, que
acima de tudo, merecem nosso obrigado por salvar, não só seu país, mas também nosso
confuso planeta Terra.

Owen Dudley Edwards nasceu em 1938, Dublin, na Irlanda, é casado, desde 1966, com
Barbara Balbirnie Lee, com quem teve duas filhas e um filho. É professor de História na
University of Edinburgh na Escócia, membro do Conselho Editorial da The Chesterton
Review, desde sua fundação em 1974, e editor geral da série de Sherlock Holmes da Oxford
University Press. Estudou no Belvedere College e na University College, ambos em Dublin,
e na The Johns Hopkins University, em Baltimore, Maryland, nos EUA, sendo uma
autoridade renomada em história da Commonwealth e dos estados Unidos, bem como na
obra literária de Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), P. G. Wodehouse (1881-1975) e
Oscar Wilde (1854-1900). É autor de diversos livros, dentre os quais se destacam: The Sins
of our Fathers: Roots of conflict in Northern Ireland (Gill and MacMillan, 1970), P. G.
Wodehouse: A Critical and Historical Essay (M. Brian & O’Keeffe, 1977), The Quest
for Sherlock Holmes: A biographical study of Arthur Conan Doyle (Mainstream, 1983)
e British Children’s Fiction in the Second World War (Edinburgh University Press, 2007).

21
TYLER, J. E. A. The New Tolkien Companion. London: Macmillan, 1979. pp. 536-538.
22
TOLKIEN. The Lord of the Rings. p. 920 [O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. LivroVI, capítulo
III, p. 216]:
Frodo abriu os olhos e respirou fundo. Era mais fácil respirar lá em cima, sobre os vapores
pestilentos que se enrolavam e flutuavam mais embaixo. – Obrigado, Sam. – disse ele num
sussuro falho. – Quanto caminho ainda resta?
– Não sei – disse Sam –, porque não sei para onde estamos indo.
Esse é o brado de cada soldado em todos os tempos.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 201
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 201-212

A GRAÇA DOS VALA:


O FILME O SENHOR DOS ANÉIS*
Stratford Caldecott

C ríticos de cinema e muitos fãs de J. R. R. Tolkien (1892-1973) reagiram com


louvor extático às três partes do filme The Lord of the Rings [O Senhor dos
Anéis], dirigidas por Peter Jackson, a saber: The Fellowship of the Ring [A sociedade
do anel] de 2001, The Two Towers [As duas torres] de 2002, e The Return of the King
[O retorno do rei] 2003**. Alguns o tomaram como o equivalente cinematográfico
*
O presente artigo é a versão revista do apêndice publicado em: CALDECOTT, Stratford. The
Power of the Ring: The Spiritual Vision Behind The Lord of the Rings. Nova York: Crossroad, 2005.
pp. 125-32. Uma versão anterior foi publicada em: Flickering Images: Theology and Film in Dialogue.
(Edited by Anthony J. Clarke e Paul S. Fiddes). Oxford: Regent’s Park College, 2005. pp. 193-205.
Essa versão atualizada foi publicada, originalmente, em Communio: International Catholic Review,
Volume XXXV, Number 1 (Spring 2008): 151-160. Texto traduzido, do original em inglês para o
português, por Márcio Nicodemos.
[N. do E.: Na mitologia de Tolkien, os Vala são espíritos angélicos (Ainur) de hierarquia superior,
que assumiram forma material criados como filhos do pensamento de Eru-Ilúvatar (o que seria o
Deus Criador). Toda a mitologia da criação desse mundo encontra-se na seguinte obra: TOLKIEN.
J. R. R. O Silmarillion. (Organizado por Christopher Tolkien; tradução de Waldéa Barcellos). São
Paulo: Martins Fontes, 2007].
**
N. do E.: A trilogia de filmes O Senhor dos Anéis está disponível no Brasil em DVDs duplos, com
extras, na seguinte edição:
O SENHOR DOS ANÉIS: A SOCIEDADE DO ANEL. Direção: Peter Jackson. Produção: Peter Jackson.
Roteiro: Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson. Intérpretes: Elijah Wood, Ian
McKellen, Liv Tyler, Viggo Mortensen, Sean Astin, Cate Blanchett, John Rhys-Davies,
Billy Boyd, Dominic Monaghan, Orlando Bloom, Christopher Lee, Hugo Weaving, Sean
Bean, Ian Holm, Andy Serkis e outros. Manaus: Warner Bros Entertainment do Brasil,
2005. DVD (178 minutos).
O SENHOR DOS ANÉIS: AS DUAS TORRES. Direção: Peter Jackson. Produção: Peter Jackson. Roteiro:
Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson. Intérpretes: Elijah Wood, Ian McKellen,
Liv Tyler, Viggo Mortensen, Sean Astin, Cate Blanchett, John Rhys-Davies, Bernard Hill,
Christopher Lee, Billy Boyd, Dominic Monaghan, Orlando Bloom, Hugo Weaving,
Miranda Otto, David Wenham, Brad Dourif, Karl Urban, Andy Serkis e outros. Manaus:
Warner Bros Entertainment do Brasil, 2005. DVD (179 minutos).
O SENHOR DOS ANÉIS: O RETORNO DO REI. Direção: Peter Jackson. Produção: Peter Jackson.
Roteiro: Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson. Intérpretes: Elijah Wood, Ian
McKellen, Liv Tyler, Viggo Mortensen, Sean Astin, Cate Blanchett, John Rhys-Davies,
Bernard Hill, Billy Boyd, Dominic Monaghan, Orlando Bloom, Hugo Weaving, Miranda
Otto, David Wenham, Karl Urban, John Noble, Andy Serkis, Ian Holm, Sean Bean e
outros. Manaus: Warner Bros Entertainment do Brasil, 2005. DVD (201 minutos).
Ao longo do texto, o autor se refere à versão estendida, lançada em DVDs quádruplos, que
infelizmente não foi comercializada no Brasil.
202 COMMUNIO • Stratford Caldecott

da Nona Sinfonia (Op. 125) de Ludwig van Beethoven (1770-1827), do Réquiem


(K 626) de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), ou do Hamlet de William
Shakespeare (1564-1616). Deixando de lado elogios exagerados desse tipo, há
de fato certo encanto em torno dos filmes – uma convergência providencial
da recentemente desenvolvida tecnologia CGI com brilhantes interpretações,
música e filmagem, tudo a serviço de uma história que possui um incomparável
eco mítico no mundo moderno.
Para J. R. R. Tolkien sua história foi uma resposta imaginativa de uma
alma européia culta às duas Guerras Mundiais que marcaram o triste advento
da experiência moderna. Tolkien serviu na Primeira Guerra, nas trincheiras do
Somme, e foi lá que sua imaginação começou a explorar as possibilidades mais
obscuras da fantasia. Seu filho serviu na Segunda Guerra, e as cartas trocadas
entre eles, nessa época, refletem tanto a intensidade do seu relacionamento como
o lento desenvolvimento de O Senhor dos Anéis* até à conclusão. Esta experiência
de duas guerras mundiais deixou Tolkien frente a frente com um dos maiores
males do nosso tempo, o poder tecnológico, que ele dramatizou na forma do
“Um Anel”.

I - ENTENDENDO O ANEL
É evidente que o público parece não ter tido qualquer dificuldade em
reconhecer a natureza do Anel, embora sua representação de seu poder no filme
possa ter sido levemente confusa. Está implícito que ele seja um Anel de supremo
poder, ainda que os únicos “poderes” que o vemos conceder são aqueles de
invisibilidade e vitalidade. Ele traz à criatura Gollum somente sofrimento durante
os séculos que ele o possui. No livro, temos a impressão de que uma vez dominado
pelo seu portador, poderia transmitir a ele grande parte do poder mágico do
Senhor do Escuro sobre a natureza e outras vontades. Dizem-nos que o portador
do Anel será capaz de ver e controlar aqueles que detêm os três Anéis Élficos
cujos destinos estão entrelaçados com o seu próprio. No filme, porém, o portador
do Anel de Poder parece tornar-se instantaneamente vulnerável – por tornar-se
altamente visível àqueles que ele mais desejaria evitar. No flashback, onde vemos
o seu criador, Sauron, usando o Anel três mil anos antes, achamos que ele nem o

*
N. do E.: Os livros da trilogia O Senhor dos Anéis estão disponíveis em língua portuguesa nas
seguintes edições brasileiras:
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: As duas torres. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
A GRAÇA DOS VALA: O FILME O SENHOR DOS ANÉIS 203

conferirá invisibilidade nem aparentemente o permitirá dominar o vasto exército


de Elfos e Homens reunidos contra ele. De fato, o Anel é cortado de sua mão pela
espada de Elendil. Muito tempo depois, Frodo, de posse do Anel, não pode evitar
que Gollum morda-o de seu dedo. Ainda vemos o efeito corruptor da tentação
que reclama o Anel a cada uma das principais personagens que tem contato
direto com ele e percebemos isso através de seus olhos como algo infinitamente
desejável, a essência concentrada de tudo o que é mais ardentemente cobiçado na
Terra-Média, como o fruto proibido oferecido pela serpente no Jardim do Éden.
Para as personagens no filme, o Anel parece oferecer não poder, mas a idéia de
poder. Ele promete algo que nunca poderá oferecer.
Assim, o filme preserva alguns dos significados simbólicos vinculados ao
Anel, senão todos eles. O Anel de Sauron é perfeitamente homogêneo e inteiriço,
sem rachaduras ou marcas. A inscrição que aparece sobre ele, quando aquecido
(“Um Anel para a todos governar [...] e na escuridão aprisioná-los”) é invisível à
temperatura ambiente. Ele é um círculo de ouro, representando o próprio
egoísmo, impregnável aos outros, isolado de um relacionamento verdadeiro,
fechado. Não é de surpreender que ele torna o seu portador invisível para os
outros, inalcançável pela luz! Também é um anel que nunca é recebido, mas
sempre tomado; não é colocado no dedo como um presente, mas reivindicado por
si mesmo. Desse modo, parece irônico que o acessório utilizado no filme tenha
sido um anel de casamento que pertencia a um membro da equipe de filmagem,
visto que o Um Anel na história é a maior antítese de um anel de casamento: ele
é o símbolo e o agente de isolamento e dominação, ao invés de comunhão.
Em suas Cartas e em vários lugares no décimo volume de History of Middle-
Earth [História da Terra-Média], postumamente publicado, o próprio Tolkien
explica o poder ambíguo do Anel de Sauron. Para ele o anel é o arquétipo da
máquina e possui todo o falso fascínio da tecnologia no mundo moderno1. Em sua
história, Tolkien explora dois tipos diferentes de tecnologia, duas compreensões
diferentes de ciência, através do contraste entre a magia dos Elfos e aquela do
Inimigo: o objetivo da primeira é a arte, enquanto o objetivo da segunda é “a
dominação e a reforma tirânica da Criação”. A tecnologia sempre oferece mais
poder do que pode proporcionar e seu real efeito é tornar-nos progressivamente
mais dependentes dela e, portanto, na realidade, menos poderosos em nós mesmos.
Sauron, irrevogavelmente, coloca uma parte de seu próprio espírito no Anel: o
1
Ver, por exemplo: TOLKIEN. J. R. R. “Letter 211”. In: The Letters of J. R. R. Tolkien. (Selected and
edited by Humphrey Carpenter, with the assistance of Christopher Tolkien). Boston / New York:
Houghton Mifflin Company [N. do E.: Em português, temos a seguinte edição brasileira: As cartas
de J.R.R. Tolkien. (org. Humphrey Carpenter com assistência de Christopher Tolkien; tradução de
Gabriel Blum Oliva).Curitiba: Arte e Letra Editora, 2006. p. 266.], 1981. Acerca da discussão sobre
tecnologia ver: CALDECOTT, Stratford. Secret Fire: The Spiritual Vision of J.R.R. Tolkien. London:
Darton, Longman & Todd, 2003. pp. 44-49. Ver, também: Morgoth’s Ring: The Later Silmarillion,
Part One. (Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1994.
(The History of Middle-Earth, Volume 10).
204 COMMUNIO • Stratford Caldecott

Anel o permite subjugar seus servos ao seu propósito, mas conforme ele o faz
(“propagar-se” entre aqueles que ele controla), seu poder pessoal é reduzido. A
perda ou a destruição do Anel, portanto, significam uma perda de controle, até
de sua forma física. O filme capta o tema da “má tecnologia” e o representa na
consciência ambiental contemporânea, opondo o mago Saruman – um ambicioso
servo de Sauron, engajado em experimentos genéticos e na destruição da natureza
para abastecer suas fábricas – contra os Ents, o povo-árvore, que realiza sua
vingança espetacular sobre Isengard no segundo filme.

II - A INSUFICIÊNCIA DO FILME
Todavia, é importante notar que o filme é falho em muitos aspectos
relevantes. O próprio Tolkien, sem dúvida, o teria detestado. A ação é barulhenta
e implacável, as cenas dramáticas, muitas vezes, são excessivamente sentimentais.
As personagens principais foram distorcidas. Talvez, o exemplo mais óbvio seja
o próprio Frodo. Infantilizado, como os outros hobbits, Frodo, também, foi
despojado de quase toda a força de caráter e nobreza interior que demonstra
no livro. Em certo momento, ele permite que Gollum o coloque contra Sam,
em outro momento, expõe o Anel para o Nazgûl (numa cena infundadamente
inventada, passada em Osgiliath – de modo divertido e com razão Sam protesta:
“nós nem mesmo devíamos estar aqui!”), e na Fenda da Perdição ele continua a lutar
com Gollum, quase caindo ele mesmo dentro do fogo. Outras personagens sofrem
quase tanto ou mais nas mãos de Jackson – não Gandalf, talvez, não Boromir,
que são bem construídos em sua maior parte, mas Faramir, Elrond, e até mesmo
Aragorn, em alguns aspectos, possuem pouca semelhança com as personagens
do livro. A Galadriel de Cate Blanchett teve uma interpretação ruim – talvez ela
estivesse tentando pôr algum mistério de outro mundo na personagem, mas, ao
contrário, ela fez uma Galadriel simplesmente estranha e um pouco sinistra. Em
geral, os outros Elfos parecem mais tediosos, afetados e pomposos do que fortes,
apesar de delicados, graves, contudo amáveis e divertidos Elfos da obra-prima
de Tolkien. Nós os vemos principalmente à noite ou no crepúsculo, enquanto
Tolkien, muitas vezes, os põe (e certamente em Lothlórien) se deleitando em
plena luz do dia, mais brilhante e mais colorida do que qualquer coisa no mundo
que conhecemos. O Condado, também, é ligeiramente mal construído pelos
criadores do filme (embora a reconstrução do Bolsão seja convincente o suficiente).
Provavelmente, só um diretor inglês poderia ter entendido completamente como
o equilíbrio de humor e seriedade deveria ser mantido no caso do Condado.
Afinal, ele deveria representar o mundo da vida real dentro do romance e as
vigorosas representações do folclore rural inglês de Tolkien eram delicadamente
carinhosas. Para Jackson, o elemento caricatural prevalece, os habitantes do
Condado tornam-se muito ridículos e muito da complexidade da exploração de
A GRAÇA DOS VALA: O FILME O SENHOR DOS ANÉIS 205

Tolkien sobre a psique inglesa se perde. Isto é mais visível no final do terceiro
filme, quando o Expurgo do Condado (a conclusão necessária da história de
Tolkien) é completamente omitida e os Viajantes retornam para uma terra natal
que não foi, de modo algum, afetada pelos grandes eventos ocorridos no Sul.
Claro que muito pode ser dito para mitigar essas falhas. Algumas cenas
correspondem muito de perto ao livro. Creio que, por exemplo, a queda de
Gandalf em Moria, a pesca de Gollum no Lago Proibido, a morte de Boromir,
o acendimento dos faróis nas Montanhas Brancas, a cavalgada dos Rohirrim
e a maravilhosa cena final ao lado da Montanha da Perdição enquanto as
chamas engolem Frodo e Sam e as águias descem. Alguns dos momentos mais
emocionantes, no filme, envolvem imagens visuais e musicais originárias mais de
Jackson e sua equipe do que de Tolkien – ainda que pareçam ser verdadeiras ao
espírito da história original. Por exemplo, quando Aragorn cavalga para Edoras,
uma flâmula arrancada pelo vento cai aos seus pés, como se fosse um tributo
silencioso ao futuro Rei. Outro exemplo é o momento em que Gandalf encontra
Theóden sofrendo por seu filho. A chegada dos reforços Élficos ao Abismo de
Helm e a própria batalha, com seu final inesperado, são uma mistura de inspiração
tolkieniana e jacksoniana que funcionaram bem. Parece claro que a equipe de
Jackson e especialmente os roteiristas Fran Walsh e Philippa Boyens tinham um
profundo respeito pelo “professor Tolkien” (como eles o chamam no documentário
anexo) e desejaram ser fiéis ao seu legado, ainda que não tenham conseguido em
todos os aspectos. A canção de encerramento Into the West, belamente cantada
por Annie Lennox, capta a preocupação de Tolkien com a morte e a tragédia da
história. Ela transmite precisamente o “clima” da história de Tolkien, transpassada
de esperança cristã, e somente poderia ter sido escrita por um amante do livro.
O Grande Mar, com o som de suas ondas incessantes e os grasnados das gaivotas
brancas, representa para Tolkien o mundo espiritual que envolve a Terra-Média.
Além desse mar, os angélicos Vala presidem todas as Terras Imortais e a música do
mar ecoa a Grande Música que existia antes do tempo e era o próprio arquétipo
do tempo. A luz das estrelas que recai sobre as ondas é bela, em parte porque luz
e música são profundamente semelhantes na cosmologia de Tolkien: vibrações no
tempo que transmitem a harmonia do Um que é secretamente Três.
O filme é sobre a morte, mas é também sobre um homem realizando seu
destino por intermédio do autodomínio e do serviço aos outros, e este homem é,
claramente, Aragorn, que se transforma de uma personagem periférica, quando o
encontramos em A sociedade do anel, para uma personagem muito mais central na
segunda e terceira partes do filme. Este não é, contudo, o Aragorn do romance,
mas uma personagem mais moderna, inicialmente muito mais confusa e, no fim,
menos majestosa. Ele começa em um estado de rejeição, tendo renunciado a seu
direito ao trono há muito tempo, temeroso da própria fraqueza, que é a fraqueza
dos homens e de seu ancestral Isildur. O Anel não seria mais um problema para
a Terra-Média (supomos) se Isildur não o tivesse tomado em proveito próprio,
206 COMMUNIO • Stratford Caldecott

apesar do conselho de Elrond. Assim, a Guerra do Anel é a guerra de Aragorn,


num sentido muito pessoal, e não apenas porque por meio dela ele ganhará o
trono de Gondor. A rejeição definitiva da tentação representada pelo Anel é sua
missão, ainda mais do que é para Frodo. A combinação da vontade e do auto-
sacrifício de Aragorn e Sam, conjuntamente, levam Frodo ao limiar de sua missão.
Aragorn ainda deixa Frodo e Sam partirem sozinhos para as cachoeiras de Rauros
ao fim da primeira parte, quando ele poderia tê-los detido facilmente. Fecha
suavemente a mão de Frodo ao redor do Anel. Visto que o Anel é de Aragorn por
direito de conquista, como o herdeiro de Isuldur, Frodo está levando o Anel para
onde Aragorn não pode ir, com sua permissão e auxílio. O telespectador pode ser
perdoado por pensar porque Aragorn não o leva para Mordor ele mesmo, se ele é
capaz, apesar de tudo, de resistir ao seu encanto. Aqui, podemos dizer, em defesa
de Jackson, que ele tomou essa característica emprestada do Faramir de Tolkien,
que, com sucesso, resiste à tentação do Anel, quando o encontra em Ithilien.
Considerando que a resistência ao Anel é a missão de Aragorn, Frodo precisa,
ele mesmo, levar o Anel: por isso ouvimos o grito inesperado de Aragorn “Por
Frodo!” durante o ataque final no Portão Negro e, embora Tolkien certamente
nunca tenha colocado tal expressão moderna em sua boca, ela é (discutivelmente)
apropriada ao contexto do filme. Jackson combina a luta de Frodo e Sam, na
Montanha da Perdição, com os eventos no Portão Negro, de modo a sugerir que,
para ele, estes eventos tendem a formar as duas metades de um único psicodrama.
De fato, a versão filmada da história de Aragon, apesar de uma distorção
radical do livro, pode também ter sido mais apropriada a nossa atual situação
cultural. A equipe de filmagem não alterou descuidadamente a história ou as
personagens. Observaram o tema de “esperança” que Tolkien teceu ao redor de
Aragorn, cujo nome élfico – Estel – significa exatamente isso e o preservaram com
grande cuidado e sutileza. Quiseram mostrar o homem lutando para encontrar
seu destino. Mais do que no romance, a força que impele Aragorn para a sua
última transformação é o amor da filha de Elrond: Arwen. No romance, o tema
nupcial entre homens e mulheres, entre Homens e Elfos, está presente de modo
delicado e fundamentalmente importante, embora o romance com Arwen tenha
sido inteiramente relegado a um Apêndice. É crédito do filme de Jackson que
isto receba grande ênfase, até mesmo na medida em que acrescenta um sabor de
“Intercessão Mariana” para a personagem de Arwen na história (por exemplo,
nos Vaus do Isen onde ela reza para a “graça dos Vala” descer sobre Frodo e
quando em Valfenda o livro cai de suas mãos como se recordasse imagens da
Anunciação). Na versão de Jackson, é a fé de Arwen no destino de seu amado e
em seu destino com ele como a mãe de seu filho que o transforma em Rei. Uma
das cenas mais comoventes, no terceiro filme, é aquela na qual Arwen, no decurso
de sua partida da Terra-Média, tendo aceitado a decisão de Aragorn de romper
o relacionamento, tem uma visão de seu futuro filho e cavalga de volta para
confrontar e contrariar seu pai em Valfenda. A belíssima visão de Arwen é um
A GRAÇA DOS VALA: O FILME O SENHOR DOS ANÉIS 207

momento de suprema beleza – talvez um dos mais poderosos momentos “pró-


vida” no cinema, e de modo adequado, à luz do foco das histórias de Tolkien,
na união de Elfos e Homens. Todavia, seu destino está atrelado ao de Aragorn
num modo mais complexo do que Tolkien jamais propôs. Ela fica mortalmente
doente, tendo renunciado à imortalidade Élfica, o que força Elrond a reconhecer
a necessidade de forjar novamente os restos de Narsil como Andúril, a Chama do
Oeste. Com a espada da realeza finalmente em suas mãos, sabendo que a vida de
Arwen depende da destruição do Anel, Aragorn, é finalmente capaz de superar
o medo de sua própria fraqueza que o tinha impedido e invocar os mortos para
lutar ao seu lado na batalha por Minas Tirith.

III - UMA HISTÓRIA VERDADEIRA


J. R. R. Tolkien criou uma mitologia não apenas para a Inglaterra como
originalmente tinha pretendido2, mas para todo o mundo moderno. “Mitologia”,
no sentido que Tolkien deu a esse termo, não é meramente um monte de mentiras
inventadas por homens muito primitivos para conhecer a verdade científica. É
um modo de capturar verdades que não podem ser adequadamente expressas,
exceto na história, e que precisam ser comunicadas em muitos níveis de uma só
vez. Peter Jackson manteve o suficiente da história original para conseguir um
impacto na psique popular que poucos diretores poderiam esperar alcançar.
O ator Viggo Mortensen, que interpreta Aragorn no filme, foi questionado
em várias entrevistas porque acreditava que o filme, assim como o livro, tenha se
mostrado tão incrivelmente popular. “Porque esta é uma história verdadeira”, ele
respondeu simplesmente. Ela é, de fato, uma história verdadeira, não uma completa
“fantasia”, apesar dos monstros CGI e de outros efeitos especiais. Em sua essência,
é uma nova narrativa, de modo mítico, de uma história verdadeira, o “conto de
fadas que se torna fato” no Evangelho. O Senhor dos Anéis (ambos, livro e filme)
é uma história sobre luz e trevas, heroísmo face ao que Théoden chama de “ódio
esmagador”, a vida afirmada face à morte. É a história da nossa civilização e o
grande discurso de Aragorn aos Homens do Oeste à frente do Portão Negro –
inteiramente uma invenção dos diretores, ainda que plenamente no espírito do
livro – é um desafio direto ao nosso próprio tempo, para não ceder e lutar por amor
a nossa civilização (da qual Gondor representa o ideal mitológico). Nós também
precisamos do “Rei” para assumir o seu trono. Para, então, podermos voltar à nossa
própria paisagem poluída, com suas medíocres casas de tijolos e seus funcionários
tacanhos, seus pomares devastados e avenidas sem árvores, mas podermos voltar
dotados da autoridade de servos e amigos do Rei, para iniciar nossa própria missão,
a missão que nos aguarda em casa: o “expurgo do Condado”.

2
TOLKIEN. “Letter 131”. In: The Letters of J.R.R. Tolkien. [N. do E.: Em português: As cartas de
J.R.R. Tolkien. p. 140.]
208 COMMUNIO • Stratford Caldecott

Como já mencionado, este importante clímax final da Guerra do Anel


– a purificação do Condado pelos heróis que retornam – foi, infelizmente,
omitido do filme (até mesmo da versão estendida). Ele poderia ter sido
incluído, se Jackson tivesse notado sua importância e estivesse preparado
para sacrificar algumas das demasiadamente longas cenas de lutas e monstros,
junto com outras bobagens como a embaraçosa “farra no quarto”, quando
Frodo retornou de Mordor.
No entanto, a mensagem de Tolkien sobreviveu, notavelmente bem, a
esta amputação. O Senhor dos Anéis encarna um sentimento de reverência por
toda a vida à qual a humanidade pertence. Este “toda” pode ser tomada em
três aspectos: como o mundo da natureza, o mundo da tradição e o mundo
espiritual da Providência. A modernidade, em seu aspecto negativo, é uma
rebelião contra estes três mundos. A despeito de minhas fortes críticas à série
dos filmes, acredito que a equipe de Peter Jackson captou o suficiente destas
preocupações no filme para nos lembrar de alguma coisa que foi quase perdida
para a nossa civilização. Permita-me considerar, brevemente, uma de cada vez.
A reverência pelo mundo da natureza está presente não apenas no
cuidado com seus climas, seus tempos e seus elementos que são afetuosamente
descritos em todo o romance e, é claro, vividamente representados no filme,
mas em sua imagem espiritualmente animada, às vezes (como no caso dos
Ents e das águias), até mesmo falando com linguagem humana. No entanto,
isto não é um perverso “paganismo bucólico”. O equivalente Élfico de Tolkien
para o “Velho Testamento”, The Silmarillion [O Silmarillion], torna claro
que a Terra-Média é a criação de Eru-Ilúvatar, o Deus acima de todos os
deuses, cuja proteção alcança os pequenos detalhes do grande drama, até
mesmo quando é exercida pela mediação das criaturas. Alusões a isso estão
dispersas por todo O Senhor dos Anéis. O filme também transmite vislumbres
de transcendência por intermédio da natureza. Duas pequenas cenas que os
admiradores do livro ficarão felizes em ver restauradas no DVD mostram bem
a questão: a coroa de flores na cabeça caída da estátua do velho Rei, iluminada
momentaneamente pelo pôr-do-sol em Ithilien e o amável momento quando
Sam avisa de uma estrela brilhando através da nuvem nas ruínas de Mordor,
falando de uma beleza acima do mundo que o mal pode obscurecer, mas
nunca tocar. Tolkien sabia que o monoteísmo, e em última análise o próprio
cristianismo, é perfeitamente compatível com o forte sentimento de uma
presença sagrada na própria natureza e, de fato, proporciona a única base
segura para acreditar no valor inerente do mundo natural (sobre o qual o
Deus do Gênesis repetidamente pronuncia “bom”).
A reverência pela tradição vai diretamente de encontro à moderna obsessão
com igualdade e é, talvez, a menos realçada nos filmes de Jackson. Como G. K.
Chesterton (1874-1936) escreveu, a tradição é a “democracia dos mortos” na qual
a um grupo de vivos não é permitido ignorar seus ancestrais somente por terem a
A GRAÇA DOS VALA: O FILME O SENHOR DOS ANÉIS 209

sorte de estarem vivos3. Os costumes e as culturas são santificadas pelo tempo, seja
pelo bem ou pelo mal. No romance (ao contrário do filme), quando os homens
de Gondor sob o comando de Faramir comem juntos, primeiro eles ficam em
silêncio e fitam o oeste: olhando “para Númenor que era, e além para Eldamar
que é, e para o que está além de Eldamar e sempre estará”. Viver a lembrança do
passado, celebrá-lo, recitá-lo, é algo essencial para manter qualquer cultura viva e
em crescimento – ou de renová-la, quando estiver quase esgotada. Assim, quando
Aragorn é coroado Rei, faz eco às palavras de seu antepassado Elendil quando
este caminhou para enxugar a terra das ruínas de Númenor, milhares de anos
antes: “Do Grande Mar à Terra-Média eu venho. Neste lugar eu e meus herdeiros
permaneceremos até o fim do mundo”. No filme, o ator canta a letra para a música
que ele mesmo compôs, tão grande é sua identificação com o papel. Foi uma pena
que os diretores tenham insistido em pôr na boca de Aragorn, logo após a canção,
um discurso mais que desnecessário e desajeitado sobre “reconstruir nosso mundo”.
Da primeira à última, as civilizações da Terra-Média, sejam as sociedades
guerreiras de Rohan e Gondor ou as pacíficas comunidades agrícolas e
comerciantes que compõem o Condado, estão fundadas na memória e no
costume. É um erro moderno pensar que grandes personalidades podem crescer
sem estarem enraizadas no rico solo do passado, na memória de grandes feitos
e na fidelidade às promessas feitas ao longo de gerações. A civilização está
fundamentada em acordos que não podem ser quebrados sem conseqüências.
O grande exército dos mortos lutará para reconquistar sua honra a serviço do
Rei.
A reverência pelo mundo spiritual fundamenta a reverência que Tolkien
mostra pela Natureza e pela Tradição. O mundo da natureza e o mundo da
cultura têm uma importância para além de si mesmos. Eles possuem uma forma,
um significado. Eles revelam algo, uma beleza, que não está simplesmente
além de si mesmos, mas é intrínseca. O mundo é uma história, que um mestre
contador de histórias não poderia senão reconhecer. Histórias têm começo,
meio e fim; e têm um narrador. Há um padrão para a História do Mundo, além
do alcance ou domínio das personagens, como Gandalf, Aragorn, Sam e Frodo,
que, nela, atuam e nos diversos modos, tomar parte em diferentes momentos
da aventura. Cada acontecimento que ocorre, não importa o quão trivial ou
aparentemente acidental, tem um propósito no todo, e forma um zigue-zague
3
Esta famosa frase de G. K. Chesterton está no terceiro capítulo, “The Ethics of Elfland” [A ética
da Terra dos Elfos], de Orthodoxy [Ortodoxia] de 1908: “A tradição pode ser definida como uma
extensão do direito de voto, pois significa, apenas, que concedemos o voto às mais obscuras de todas as
classes, ou seja, a dos nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição se recusa a submeter-se
à pequena e arrogante oligarquia daqueles que parecem estar por aí meramente de passagem”. [N. do
E.: Substituímos a citação original em inglês pela passagem equivalente em português da seguinte
edição brasileira: CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. (Apresentação, notas e anexo de Ives Gandra
da Silva Martins Filho; tradução de Cláudia Albuquerque Tavares). São Paulo: Editora LTr, 2001.
pp. 69-70].
210 COMMUNIO • Stratford Caldecott

ou dão um colorido a um tapete que é tecido pelas escolhas e decisões que


fazemos ou somos forçados a fazer a cada momento.
E não é simplesmente, como Aragorn diz a Éomer no livro, que
caminhamos tanto em lendas como em plena luz do dia porque “aqueles que
virão depois farão as lendas do nosso tempo”. Mais precisamente, algumas coisas
estão destinadas a acontecer – como, por exemplo, somos informados, tanto
no livro como no filme, que Bilbo estava “destinado a encontrar o Anel e não o
seu criador”. Todo o modelo é obscuro até ser visto sub specie aeternitatis. Pode
não estar claro por que estamos aqui, o que estamos fazendo na Terra ou o que
estamos fazendo errado, pois ainda não entramos no mundo da visão que está
“além da memória e do tempo”, mas quando agimos, nossa fé nos diz que até
o aparentemente mais insignificante sofrimento será visto como possuidor de
uma razão suficiente e de um lugar no todo.

IV - UM ALERTA
A natureza, a tradição e a religião estão sob ataque no mundo moderno. Se
Tolkien conseguiu evocar uma nostalgia por essas coisas no mundo da imaginação,
isso não é fuga, mas terapia. Há três possíveis respostas a tal nostalgia. Uma é recuar.
Isso seria a verdadeira fuga, a fuga do sinistro “realista” que quer enterrar sua face no
mundo moderno para se esconder das profundas verdades despertadas para a vida
pelo O Senhor dos Anéis. Outra resposta é reavivar as memórias desta tripla reverência
em nossas vidas, tentando preservar a natureza, respeitando as tradições valiosas
de nossa cultura (chame, se quiser, de “conservadorismo com discernimento”)
e, finalmente, aprofundando a vida espiritual. Para católicos e ortodoxos, isto
significará uma participação nos sacramentos que celebram e renovam o significado
da História.
A terceira resposta, que é igualmente necessária, se tivermos sido “despertados”
por Tolkien, é discernir as maneiras em que o estilo moderno de vida abala a
segunda resposta, o retorno à religião. Em suas cartas publicadas, por exemplo,
Tolkien refere-se ao que chama de “tragédia e desespero” da confiança em relação à
tecnologia4. Na história, esta tragédia é vividamente ilustrada de diversas maneiras,
não menos pelo corrupto mago Saruman, a quem Barbárvore (a voz da natureza)
o chama “mente de metal e rodas” (para enfatizar esse ponto, Jackson faz Saruman
encontrar a morte no maquinário de Isengard). No mundo moderno, com desastres
ecológicos e agricultura mecanizada, vemos os devastadores e desumanos efeitos da
exploração puramente pragmática da natureza de Saruman.
O movimento romântico inglês, de William Blake (1757-1827) e Samuel
T. Coleridge (1772-1834) aos próprios membros do grupo The Inklings, acreditava

4
TOLKIEN. “Letter 75”. In: The Letters of J.R.R. Tolkien. [N. do E.: Em português: As cartas de
J.R.R. Tolkien. p. 88-89.].
A GRAÇA DOS VALA: O FILME O SENHOR DOS ANÉIS 211

que deve haver uma alternativa. Ao final do maravilhoso ensaio sobre educação, The
Abolition of Man [A abolição do homem], C. S. Lewis (1898-1963) escreve sobre
uma “ciência regenerada” do futuro que “não faria nem mesmo a minerais e vegetais o
que a ciência moderna ameaça fazer com o próprio homem. Quando explicasse algo, ela
não aboliria algo. Quando tratasse das partes, não esqueceria do todo”5.O objetivo da
nossa ciência atual, de modo geral, é obter poder sobre as forças da natureza [claro,
a busca também é por conhecimento, mas desde Francis Bacon (1561-1626) a
identificação do conhecimento com poder tem sido cada vez maior]. De acordo
com Lewis, a “oferta do bruxo” diz-nos o preço de todo esse poder: nada menos que
nossas próprias almas. A conquista da natureza transforma-se na conquista pela
natureza, isto é, pelos nossos próprios desejos ou pelos de outros; e aquele que aspira
ser o mestre do mundo, torna-se, no fim, um escravo6.
Tolkien sempre insistiu que sua fantasia não era uma alegoria. Mordor
não é supostamente a Alemanha Nazista ou a Rússia Soviética. “Perguntar se os
orcs ‘são’ comunistas é, para mim, é tão sensato quanto perguntar se os comunistas
são orcs”, escreveu certa vez7. Porém, ao mesmo tempo, não nega que a história
é “aplicável” aos assuntos contemporâneos e, de fato, afirmou isso8. É aplicável
não simplesmente por prover uma parábola para ilustrar o perigo da máquina,
mas para mostrar as razões desse perigo: preguiça e estupidez, orgulho, cobiça,
loucura e volúpia pelo poder, todos exemplificados nas diversas raças da Terra-
Média. Contra esses vícios apresentou coragem e cortesia, gentileza e humildade,
generosidade e sabedoria, naqueles mesmos corações. Há uma lei moral universal,
demonstra, mas essa não é a lei de um tirano. É uma lei de amor e perdão – a
única lei que torna possível que sejamos livres.
Nosso mundo tem mostrado muitas imagens do mal, e muito poucas
de heroísmo e atraente bondade. É triste que muitas das visões de humildade e
grandeza espiritual de Tolkien não tenham sido transportadas para as telas com
sucesso, mas devemos ser profundamente gratos a Peter Jackson e sua equipe pelos
elementos que foram para a tela. O panorama do cinema mudou para sempre.

Stratford Caldecott é o diretor do G. K. Chesterton Institute for Faith and Culture in


Europe do Thomas More College of Liberal Art, na University of Oxford, na Inglaterra,
membro dos conselhos editoriais da The Chesterton Review e de COMMUNIO:

5
LEWIS, C. S. The Abolition of Man: or Reflections on education with special reference to the teaching
of English in the upper forms of school. London: Fount, 1978. p. 47. [N. do E.: Os trechos citados
foram extraídos da seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. A Abolição do homem. (Tradução de
Remo Manarinno Filho). São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 75].
6
Idem. Ibidem. Capítulo 3, especialmente p. 43 [N. do. E: Na edição brasileira, ver: pp. 72-74].
7
TOLKIEN. “Letter 203”. In: The Letters of J.R.R. Tolkien. [N. do E.: Em português: As cartas de
J.R.R. Tolkien. p. 250.].
8
Idem. Ibidem.
212 COMMUNIO • Stratford Caldecott

International Catholic Review, e editor da revista Second Spring. É casado com a


escritora Léonie Caldecott, com quem teve três filhas. É autor de inúmeros artigos
acadêmicos e dos livros Eternity in Time: Christopher Dawson & the Catholic Idea
of History (T. & T. Clark, 1997), Beyond the Prosaic: Renewing the Liturgical
Movement (T. & T. Clark, 1999), Catholic Social Teaching (Catholic Truth Society,
2001), Secret Fire: The Spiritual Vision of J. R. R. Tolkien (Darton, Longman
& Todd, 2003), The Power of the Ring: The Spiritual Vision Behind the Lord
of the Rings (Crossroad, 2005), The Seven Sacraments: Entering the Mysteries of
God (Crossroad, 2006), Companion to the Book of Revelation (Catholic Truth
Society, 2008), Catholicism and Other Religions: Introducing Interfaith Dialogue
(Catholic Truth Society, 2009) e Beauty for Truth’s Sake: On the Re-enchantment
of Education (Brazos Press, 2009).

A luta dos Dragões (1967)


Óleo sobre tela de Chico da Silva (1910-1985)
Coleção Ernesto Kawall, São Paulo, SP
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 213
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 213-220

A “COMUNHÃO DOS SANTOS” NA OBRA DE


J. R. R. TOLKIEN
Ives Gandra da Silva Martins Filho

H á uma verdade da fé católica que permeia toda a obra de J. R. R.


Tolkien (1892-1973), talvez não percebida claramente pelos seus lei-
tores cristãos, que é a “Comunhão dos Santos”. Colin Duriez, em seu J. R.
R. Tolkien Handbook [Manual J. R. R. Tolkien], lembra:
Particularmente, Tolkien está preocupado com o tempo e o apocalipse cris-
tão. Ou seja, sua temática é revelar o significado essencial por trás da história
humana. Além disso, assim como o Apocalipse bíblico, ele está preocupado
em trazer esperança e consolação nos dias de trevas e dificuldades1.

Com efeito, a realidade da “Comunhão dos Santos” é uma das ver-


dades mais consoladoras da fé cristã: a realidade de que não estamos sós.
Impressiona verificar, especialmente nas obras O Senhor dos Anéis e O Sil-
marillion, como as vitórias e derrotas pessoais de muitos personagens são
sentidas, à distância, pelos demais protagonistas das sagas, que se fortalecem
ou se entristecem, sem motivo aparente, mas concomitantemente. Nota-se
uma “comunicação invisível” ou “comunhão mística” entre os protagonistas
da Guerra dos Anéis.
Essa ligação inexplicável que se capta entre as pessoas é reconhecida
no “Credo”, que os católicos recitam todos os domingos na Missa, plasmada
na expressão “Comunhão dos Santos”, como uma das verdades reveladas
por Cristo e verbalizada por São Paulo nos seguintes termos, ao falar do
“Corpo Místico de Cristo”, ou seja, da união invisível e, por isso, misterio-
sa, que existe entre Cristo e todos os cristãos:
Como o corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os membros
do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo.
Em um só Espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo,
judeus ou gregos, escravos ou livres; e todos fomos impregnados do mesmo
Espírito. Assim o corpo não consiste em um só membro, mas em muitos.
[...] Se um membro sofre, todos os membros padecem com ele; e se um membro
é tratado com carinho, todos os outros se congratulam por ele. Ora, vós sois
o corpo de Cristo e cada um, de sua parte, é um dos seus membros (1Cor
12,12-27) (grifos nossos).
1
DURIEZ, Colin. J. R. R. Tolkien Handbook: A Concise Guide to His Life, Writings, and World of
Middle-Earth. Grand Rapids: Baker Books, 1992. p. 59.
214 COMMUNIO •Ives Gandra da Silva Martins Filho

Santo Tomás de Aquino (1225-1274) fala de forma concisa dessa realidade


sobrenatural: “Uma vez que todos os crentes formam um só corpo, o bem de uns é
comunicado aos outros”2. Não é uma realidade meramente natural, uma vez que o
fundamento está na união espiritual de todos os cristãos-membros com Cristo-
Cabeça, por Quem nos vêm todas as graças, ou seja, as ajudas espirituais que
iluminam a inteligência e movem a vontade para a prática do bem. O Catecismo
da Igreja Católica resume essa verdade da fé nos seguintes termos:
Cremos na comunhão de todos os fiéis de Cristo, dos que são peregrinos na terra,
dos defuntos que estão terminando a sua purificação, dos bem-aventurados do
céu, formando, todos juntos, uma só Igreja, e cremos que nesta comunhão o amor
misericordioso de Deus e de seus santos está sempre à escuta de nossas orações
(CIC §962).

Portanto, a realidade da “Comunhão dos Santos” é mais ampla do que


se possa imaginar: abarca a Igreja Militante (os que ainda peregrinam pela Terra
em busca de sua salvação), a Igreja Padecente (das almas que se encontram
purificando no Purgatório) e a Igreja Triunfante (dos santos que já se encontram
gozando da visão de Deus no Paraíso). “A visão de Deus fará que o homem conheça
melhor a si mesmo, não somente na dimensão individual e particular, senão como
união com os demais por intermédio da comunhão”3. Ou seja, a relação de cada
um com a cabeça – Deus Pai Criador –, de verdadeira filiação, estabelece um
laço de fraternidade não meramente retórica, mas palpavelmente sentida. Ora,
essa comunhão significa, fundamentalmente, um laço espiritual entre todos os
cristãos em particular e entre todos os homens em geral, pela qual as orações
e sacrifícios de uns lucram misteriosamente para todos aqueles para quem eles
são dirigidos. Ou seja, mesmo isolado, o cristão sabe que conta com o apoio, as
orações e os sacrifícios de todos os seus irmãos na fé, que lhe aumenta a graça
santificante e o fortalece na refrega. A idéia central da “Comunhão dos Santos”,
que se percebe também na saga tolkieana, é a de que, na luta cósmica entre o Bem
e o Mal, que se plasma na luta interior que cada um trava consigo mesmo para
viver de acordo com a dignidade humana, nunca estamos sozinhos, mesmo que,
fisicamente, possamos estar isolados. Há uma relação misteriosa entre todos os
seres, pela qual a vitória de um no caminho do Bem é um pouquinho a vitória de
todos e a derrota de um é um pouquinho a derrota de todos.
Fazendo o paralelismo da “Comunhão dos Santos” com O Senhor dos Anéis,
o diálogo entre Pippin e Beregond, enquanto visitam as muralhas de Gondor, dá-
nos uma primeira pista de que não se está sozinho na grande batalha da vida e que
se sente a alegria ou tristeza no coração com a presença do Bem ou do Mal:
– Mas, se quer saber qual, na minha opinião, seria o motivo de os faróis se
acenderem, foi a noticia que chegou ontem á noite de Lebennin. Há uma grande
2
Expositio in Symbolum Apostolicum, 10.
3
CASTILLA Y CORTÁZAR, Blanca. “Comunión de Personas y Dualidad Varón-Mujer”. In:
Estudios sobre el Catecismo de la Iglesia Católica. Madrid: Unión Editorial, 1996. p. 191.
A “COMUNHÃO DOS SANTOS” NA OBRA DE J. R. R. TOLKIEN 215

esquadra se aproximando da foz do Anduin, liderada pelos corsários de Umbar


no sul. Já faz tempo que deixaram de temer o poder de Gondor, e se aliaram ao
Inimigo, e agora desferem um pesado golpe a favor dele. Pois esse ataque retirará
grande parte da ajuda que procurávamos conseguir de Lebennin e Belfalas, onde
o povo é valente e numeroso. Mais que nunca voltamos nossos pensamentos para o
norte e para Rohan, e estamos muito alegres por essa noticia de vitória que vocês trazem
agora.
– E mesmo assim – ele parou e se levantou, olhando em volta, para o norte, o
leste e o sul - os acontecimentos em Isengard devem nos advertir de que estamos
presos numa grande rede e estratégia. Não é mais uma contenda nos vaus, atacando
por Ithilien e por Anórien, com emboscadas e pilhagens. Esta é uma grande guerra
planejada há muito tempo, e nela somos apenas uma peça, não importa o que o orgulho
possa dizer. As coisas estão se movendo no extremo leste, além do Mar Interno,
sabemos pelos relatos; e também no norte, na Floresta das Trevas e mais além; e
ao sul em Harad. E agora todos os reinos deverão ser submetidos à prova, para resistir
ou cair sob a Sombra.
– Apesar disso, Mestre Peregrin, temos esta honra: sempre fomos o alvo do maior
ódio do Senhor do Escuro, pois esse ódio vem das profundezas do tempo, por
sobre as profundidades do Mar. Aqui o golpe do martelo será mais forte. E por
esse motivo Mithrandir veio até aqui com tanta pressa. Pois, se cairmos, quem
resistirá? E, Mestre Peregrin, você tem alguma esperança de que possamos resistir?
Pippin não respondeu. Olhou as grandes muralhas, e as torres e as altivas bandeiras,
e o sol no céu alto, e depois para a escuridão que se adensava no leste; pensou nos
longos dedos daquela Sombra: os orcs das florestas e montanhas, a traição de
Isengard, os pássaros de olhos malévolos, e os Cavaleiros Negros até mesmo nas
alamedas do Condado – e pensou também no terror alado, os nazgúl. Estremeceu,
e teve a impressão de que a esperança definhava. E naquele exato momento o sol,
por um instante, vacilou e foi obscurecido, como se uma asa negra tivesse passado
por ele. Quase inaudível ele teve a impressão de captar, alto e muito acima nos
céus, um grito: fraco, mas de estremecer o coração, cruel e frio. Ficou branco e
encolheu-se contra a muralha.
– Que foi isso? – perguntou Beregond. – Você também sentiu alguma coisa?
– Senti – murmurou Pippin. – É o sinal de nossa queda, e a sombra da destruição,
um Cavaleiro Cruel dos ares.
– Sim, a sombra da destruição – disse Beregond. – Receio que Minas Tirith deva
cair. A noite se aproxima. O próprio calor de meu sangue parece que me foi
roubado.
Por um tempo ficaram sentados juntos, cabisbaixos e calados. Então, de repente,
Pippin ergueu os olhos e viu que o sol ainda estava brilhando e as bandeiras
continuavam tremulando ao vento. Sacudiu o corpo. – Passou – disse ele. – Não,
meu coração ainda não vai se desesperar. Gandalf pereceu, retornou e está conosco.
Podemos resistir, nem que seja numa só perna, ou até mesmo de joelhos.
– Muito bem dito! – exclamou Beregond, levantando-se e andando de um lado
para o outro em largas passadas. – Não, embora todas as coisas irremediavelmente
devam chegar a um fim em determinada hora, Gondor ainda não perecerá. Nem
mesmo se as muralhas forem tomadas por um inimigo impiedoso que construa
216 COMMUNIO •Ives Gandra da Silva Martins Filho

uma parede de cadáveres diante delas. Ainda há outras fortalezas, e caminhos


secretos de fuga para dentro das montanhas. A esperança e a memória ainda
viverão em algum vale oculto, onde a relva é verde4.

No caso das forças do Mal, a relação de dependência fica ainda mais patente
na passagem em que Sauron descobre, no último momento, a estratégia de seus
inimigos:
[...] De repente o Senhor do Escuro percebeu a presença do hobbit, e seu Olho,
penetrando todas as sombras, atravessou a planície na direção da porta que ele
fizera; e a magnitude de sua própria loucura revelou-se a ele num clarão cegante,
e todas as estratégias de seus inimigos foram finalmente desnudadas diante de
seus olhos. Então sua ira incandesceu-se numa chama devoradora, mas seu medo
ergueu-se como uma vasta fumaça para sufocá-lo. Pois ele sabia do perigo mortal
que estava correndo, e percebia o fio pelo qual estava agora pendurado seu destino.
De todas as suas estratégias e teias de medo e traição, de todos os seus estrategemas
e suas guerras sua mente se libertou, e todo o seu reino foi atravessado por um
temor, seus escravos vacilaram, seus exércitos pararam e seus capitães, subitamente sem
liderança, desprovidos de vontade, hesitaram e se desesperaram. Pois foram esquecidos.
Toda a mente e o propósito do Poder que os controlava concentravam-se agora
com uma força arrasadora na Montanha. A um chamado seu, rodopiando com
um grito lancinante, numa última corrida desesperada voaram, mais rápidos
que os ventos, os nazgûl, os Espectros do Anel, e com uma tempestade de asas
arremessaram-se em direção ao sul para a Montanha da Perdição5.

Além da idéia da “comunhão invisível” que existia entre Sauron e seus


comandados, essa passagem traz à reflexão (e que poderia ser objeto de um estudo
exclusivo sobre ela) a necessidade de concentração no que é o principal. Quantas
vezes gastamos nosso tempo e mente no supérfluo e esquecemos do necessário, do
essencial para nossa vida.
Como não lembrar, também, que a morte de Boromir é pressentida ao
longe por seu pai Dénethor e seu irmão Faramir, conforme o relato que segue:
Apesar disso, sentia em seu coração que Faramir, embora fosse muito semelhante
ao irmão na aparência, era um homem menos arrogante, ao mesmo tempo mais
austero e mais sábio.
– Recordo-me de que Boromir levava uma corneta – disse Frodo finalmente.
– Recorda-se bem, e como uma pessoa que esteve realmente com ele – disse
Faramir. – Então talvez consiga ver com os olhos de sua mente: uma grande corneta,
feita do chifre do boi selvagem do leste, adornada de prata, e com inscrições em
caracteres antigos. Essa corneta os primogênitos de nossa casa carregaram por
várias gerações; e afirma-se que se ela fosse tocada num momento de necessidade em
qualquer lugar dentro das fronteiras de Gondor, como era o reinado antigamente, sua
voz não passaria despercebida.
4
TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Piseta). São Paulo: Martins Fontes, 2001. Livro V, capítulo I, pp. 24-25 (grifos
nossos).
5
Idem. Ibidem., Livro VI, capítulo III, p. 221 (grifos nossos).
A “COMUNHÃO DOS SANTOS” NA OBRA DE J. R. R. TOLKIEN 217

– Cinco dias antes de minha partida nesta jornada, há onze dias, por volta desta
hora, ouvi o soar daquela corneta: parecia vir do norte, mas chegava fraco, como se
fosse um eco na mente. Achamos que era um mau presságio, meu pai e eu, pois não
tivéramos notícias de Boromir desde sua partida, e nenhuma sentinela em nossas
fronteiras o tinha visto passar. E três noites depois uma outra coisa, ainda mais
estranha, me aconteceu.
– Estava sentado á noite à beira do Anduin, na escuridão cinzenta sob uma pálida
lua nova, observando a correnteza sempre em movimento, e ouvindo o farfalhar
dos juncos tristonhos. Temos sempre o costume de vigiar as margens perto de
Osgiliath, que nossos inimigos agora em parte detém, e através das quais enviam
expedições para saquear nossas terras. Mas naquele dia o mundo todo adormeceu
à meia-noite. Então eu vi, ou tive a impressão de ter visto, um barco flutuando na
água, emitindo um vago brilho cinzento, um pequeno barco de formato esquisito com
uma proa alta, e não havia ninguém para remar ou conduzi-lo.
– Fui tomado de espanto, pois uma luz pálida o envolvia. Mas levantei-me e me
dirigi à margem, e comecei a caminhar para dentro da correnteza, pois me sentia
atraído por ele. Então o barco se virou na minha direção, diminuindo de velocida-
de e flutuando lentamente até chegar ao alcance de minha mão, mas eu não ousei
tocá-lo. Calava fundo, como se carregasse um grande peso, e conforme passou sob
meu olhar tive a impressão de que estava quase totalmente repleto de água limpa,
da qual emanava a luz; no seio da água, um guerreiro jazia dormindo.
– Havia uma espada quebrada sobre seu joelho. Vi muitos ferimentos em seu
corpo. Era Boromir, meu irmão, morto. Reconheci seus indumentos, sua espada,
seu amado rosto. De uma coisa apenas senti falta: a corneta. Uma coisa apenas não
reconheci: um belo cinto, que parecia ser feito de folhas de ouro, cingindo-lhe a
cintura. Boromir!, gritei eu. Onde está tua corneta? Aonde vais tu, ó Boromir? Mas
ele se fora, O barco voltou a acompanhar a correnteza e desapareceu tremeluzindo
noite adentro. Foi como um sonho, mas não foi um sonho, pois não houve despertar.
E não tenho dúvidas de que ele está morto e passou descendo o Rio em direção
ao Mar6.

A realidade da “Comunhão dos Santos” tem também como derivativo a


conclusão de que, pelo fato de ninguém estar nos vendo, não deixamos de estar
obrigados a nos comportar bem, ou que o ato heróico que devamos praticar não
mereça ser feito. Sam fala a respeito disso com Frodo, quando estão prestes a
entrar no Reino de Mordor:
– É, é isso mesmo – disse Sam. – E de modo algum estaríamos aqui se estivéssemos
mais bem informados antes de partir. Mas suponho que seja sempre assim. Os
feitos corajosos das velhas canções e histórias, Sr. Frodo: aventuras, como eu
as costumava chamar. Costumava pensar que eram coisas à procura das quais
as pessoas maravilhosas das histórias saiam, porque as queriam, porque eram
excitantes e a vida era um pouco enfadonha, um tipo de esporte, como se poderia
dizer. Mas não foi assim com as histórias que realmente importaram, ou aquelas
que ficam na memória. As pessoas parecem ter sido simplesmente embarcadas
6
TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis: As Duas Torres. (Tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves
e Almiro Piseta). São Paulo: Martins Fontes, 2001. Livro IV, capítulo V, pp. 280-281.
218 COMMUNIO •Ives Gandra da Silva Martins Filho

nelas, geralmente - seus caminhos apontavam naquela direção, como se diz. Mas
acho que eles tiveram um monte de oportunidades, como nós, de dar as costas, apenas
não o fizeram. E, se tivessem feito, não saberíamos, porque eles seriam esquecidos.
Ouvimos sobre aqueles que simplesmente continuaram – nem todos para chegar a
um final feliz, veja bem; pelo menos não para chegar àquilo que as pessoas dentro
de uma história, e não fora dela, chamam de final feliz. O senhor sabe, voltar para
casa, descobrir que as coisas estão muito bem, embora não sejam exatamente iguais
ao que eram – como aconteceu com o velho Sr. Bilbo. Mas essas não são sempre
as melhores histórias de se escutar, embora possam ser as melhores histórias para
se embarcar nelas! Em que tipo de história teremos caído?
– Também fico pensando – disse Frodo. – Mas não sei. E é assim que acontece
com uma história de verdade. Pegue qualquer uma de que você goste. Você pode
saber, ou supor, que tipo de história é, com final triste ou final feliz, mas as pessoas
que fazem parte dela não sabem. E você não quer que elas saibam.
– Não, senhor, claro que não. Veja o caso de Beren: ele nunca pensou que ia pegar
aquela Silmaril da Coroa de Ferro em Thangorodrim. E apesar disso ele conseguiu,
e aquele lugar era pior e o perigo era mais negro que o nosso. Mas é uma longa
história, é claro, e passa da alegria para a tristeza e além dela - e a Silmaril foi
adiante e chegou a Eãrendil. E veja, senhor, eu nunca tinha pensado nisso antes!
Nós temos - o senhor tem um pouco da luz dele naquela estrela de cristal que a
Senhora lhe deu! Veja só, pensando assim, estamos ainda na mesma história! Ela está
continuando. Será que as grandes histórias nunca terminam?
– Não, nunca terminam como histórias - disse Frodo. – Mas as pessoas nelas vêm e
vão quando seu papel termina. Nosso papel vai terminar mais tarde - ou mais cedo.
– E então poderemos descansar e dormir um pouco – disse Sam. Sorriu de um
modo sombrio. – E quero dizer exatamente isso, Sr. Frodo. Quero dizer um
simples descanso comum, e sono, e acordar para uma manhã de trabalho no
jardim. Receio que isso seja tudo que estou esperando todo o tempo. Todos
os grandes planos importantes não são para pessoas como eu. Mesmo assim,
fico imaginando se seremos colocados em canções e histórias. Estamos numa,
é claro; mas quero dizer: transformados em palavras, o senhor sabe, contadas
perto da lareira, ou lidas de grandes livros com letras pretas e vermelhas, anos
e anos depois. E as pessoas vão dizer: “Vamos escutar sobre Frodo e o Anel!” E
eles vão dizer: “Sim, essa é uma de minhas histórias favoritas. Frodo foi muito
corajoso, não foi, papai?” “Sim, meu filho, o mais famoso dos hobbits, e isso
significa muito”.
– Significa muito demais – disse Frodo e riu, um riso longo e claro, que vinha do
fundo de seu coração. Um som assim não se ouvia naquelas partes desde que Sauron
chegara à Terra-média. Sam de repente teve a impressão de que todas as pedras
estavam escutando e todas as rochas se debruçavam sobre eles. Mas Frodo não
deu atenção a elas e riu de novo. – Olhe, Sam, ouvir você me faz rir como se a
história já estivesse escrita. Mas você deixou de fora um dos principais personagens
Samwise, o bravo. “Quero ouvir mais sobre Sam, papai. Por que ele não falou mais
coisas, papai? É disso que eu gosto. Acho engraçado. E Frodo não teria ido muito
longe sem Sam, teria, papai?”
– Ora, Sr. Frodo – disse Sam –, o senhor não devia caçoar. Eu estava falando sério.
A “COMUNHÃO DOS SANTOS” NA OBRA DE J. R. R. TOLKIEN 219

– Eu também estava – disse Frodo. – Eu também estou. Estamos indo meio rápido
demais. Você e eu, Sam, ainda estamos enfiados nos piores lugares da história, e é
bem provável que alguns digam neste ponto: “Feche o livro, papai, não queremos
ler mais nada”.
– Pode ser – disse Sam –: mas eu não diria isso. Coisas feitas e terminadas, que já
fazem parte das grandes histórias, são diferentes. Veja bem, até Gollum poderia ser
bom numa história, melhor do que tê-lo ao seu lado, de qualquer forma. E houve
um tempo em que ele mesmo gostava de histórias, por conta própria. Será que ele se
considera o herói ou o vilão?
– Gollum! – chamou ele – Você gostaria de ser o herói ora, onde ele se meteu de novo?7

Essa espécie de ligação mística entre todos os homens, pela qual uns
influenciam a vida de outros, não só pelo exemplo, mas pelas próprias ações
boas ou más, fazendo crescer ou diminuir o Bem no mundo, é lembrada em
outra conhecida saga do século XX: Guerra nas Estrelas. A percepção que Luke
Skywalker, Darth Vader, Obi-Wan-Kenobi, Yoda e a Princesa Leia Organa, para
citar apenas as principais personagens, têm do que está acontecendo com os
demais, é atribuída à Força que os sustêm, como o Deus que se confunde com a
Natureza e a Energia do Universo, típica da visão panteísta de Baruch Spinoza
(1632-1677), assumida por Einstein. Assim fala dela Stephen J. Sansweet:
A Força – tanto a presença mística quanto a natural, é um campo de energia que
infunde e conecta toda a galáxia. A força é gerada por todos os seres vivos, que a
cercam e a penetram com sua essência. Como a maioria das formas de energia, a
Força pode ser manipulada e o conhecimento e a predisposição para assim fazer,
dá forças aos cavaleiros Jedis, aos que estão do lado negro e aos Sith8.

Chame-se “Comunhão dos Santos”, “Força”, “Sexto Sentido”, o fato é que a


comunicação de bens espirituais se mostra uma realidade percebida e decantada não
apenas pela Fé Cristã, mas também por outras tradições. O importante é descobrir que,
em nossas batalhas cotidianas em busca da construção de um mundo melhor, mais digno
e solidário, não estamos sós, por mais que isso possa parecer. Nosso esforço, ainda que
pareça inútil e estéril, tem uma importância capital, pelo suporte que dá, imperceptível
talvez para nós, mas real, aos demais.
Esta perspectiva cristã da obra de Tolkien e que tanto me chamou a atenção
ao ler seus livros não a encontrei na excelente obra A Hidden Presence: The Catholic
Imagination of J. R. R. Tolkien [Uma presença oculta: A imaginação católica de J. R.
R. Tolkien], organizada por Ian Boyd e Stratford Caldecott9. Talvez não passe de uma
intuição pessoal, mas não consigo deixar de pensar nela ao ler a Saga dos Anéis do Poder.
7
Idem. Ibidem., Livro IV, capítulo VIII, pp. 330-332.
8
SANSWEET, Steve ; HIDALGO, Pablo ; VITAS, Bob ; WALLACE, Daniel ; KUSHINS, Josh ;
FRANKLIN, Mary & CASSIDY, Chris. The Complete Star Wars Encyclopedia. New York: Ballantine
Books, 2008.
9
A Hidden Presence: The Catholic Imagination of J. R. R. Tolkien. (Edited by Ian Boyd, C.S.B. and
Stratford Caldecott). South Orange: The Chesterton Press, 2003.
220 COMMUNIO •Ives Gandra da Silva Martins Filho

Para concluir, vêm bem a calhar alguns pontos do livro Caminho10 de


São Josemaria Escrivá (1902-1975), que tratam dessa relação misteriosa entre
todos os cristãos e que podem nos servir de estímulo e ânimo na luta cotidiana
no cumprimento de nossos deveres profissionais, familiares e sociais, e de nossa
missão na vida. Citemos apenas quatro:
544 Comunhão dos Santos. – Como dizer-te? – Sabes o que são as transfusões de
sangue para o corpo? Pois assim vem a ser a Comunhão dos Santos para a alma.

A imagem é paradigmática. E mais. Usava São Josemaria a figura dos “va-


sos comunicantes” da Física para explicar o fenômeno místico. O aumento de
graça em um dos vasos, se fosse líquido, faria aumentar um pouco a graça em
todos os demais, e vice-versa quanto à diminuição.
545 Vivei uma particular Comunhão dos Santos. E cada um sentirá, à hora da
luta interior, e à hora do trabalho profissional, a alegria e a força de não estar só.
546 Filho, que bem viveste a Comunhão dos Santos quando me escrevias: “On-
tem ‘senti’ que o senhor pedia por mim”!
549 Terás mais facilidade em cumprir o teu dever, se pensares na ajuda que te
prestam os teus irmãos e na que deixas de prestar-lhes se não és fiel.

Na verdade, essa perspectiva da inter-relação entre todos nós só se compre-


ende melhor tendo em vista a existência de um “Plano Superior” que dirige os
acontecimentos para um Fim, plano esse a que os cristãos chamam “Providência”.
Mas esse tema, ligado à Sinfonia Criadora proposta por Illúvatar no início do
Mundo11, vai além do proposto na presente reflexão.

Ives Gandra da Silva Martins Filho é ministro do Tribunal Superior do Trabalho


e professor de Filosofia do Direito do Instituto Brasiliense de Direito Público, professor
do Instituto Internacional de Ciências Sociais e membro do Conselho Editorial de
COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura. É formado pela Fa-
culdade de Direito da Universidade de São Paulo, com especialização em Direito
Empresarial, e fez mestrado em Direito Público na Universidade de Brasília. Dentre
outras obras de sua autoria, se destacam A Legitimidade do Direito Positivo (Fo-
rense Universitária, 1992), Manual Esquemático de História da Filosofia (LTr,
1997), Manual Esquemático de Direito e Processo do Trabalho (Saraiva, 1999) e
O mundo do Senhor dos Anéis: Vida e obra de J. R. R. Tolkien (Martins Fontes,
2006). Organizou a edição em português da obra Ortodoxia (LTr, 2001) de G. K.
Chesterton e foi o co-organizador de uma coletânea de encíclicas do papa João Paulo
II (LTr, 2004).

10
ESCRIVÁ, São Josemaria. Caminho. São Paulo: Quadrante, 9ª edição, 1999.
11
TOLKIEN, J. R. R. O Silmarillion. (Organizado por Christopher Tolkien; tradução de Waldéa
Barcellos). São Paulo: Martins Fontes, 2007. pp. 4-7.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 221
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 221-252

A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS*


Alex Catharino

A série de filmes Star Wars, criada pelo cineasta norte-americano George


Lucas, já faz parte do imaginário da civilização ocidental. A saga Star Wars,
ou Guerra nas Estrelas, foi popularizada, principalmente, por duas trilogias de
filmes. A trilogia mais antiga é composta pelos episódios IV, V e VI da série, que
são respectivamente os seguintes filmes: Guerra nas Estrelas, lançado em 25 de
maio de 1977 e denominado, posteriormente, por George Lucas como Uma nova
esperança; O Império contra-ataca, lançado em 21 de maio de 1980; e O retorno
de Jedi, lançado em 25 de maio de 19831. A trilogia mais recente é formada pelos
episódios I, II e III da série, a saber: A ameaça fantasma, lançado em 19 de maio
de 1999; Ataque dos clones, lançado em 16 de maio de 2002; e A vingança dos Sith,
lançado em 19 de maio de 20052.
*
O presente artigo é a versão revista da comunicação apresentada na mesa de debates Ficção, Valores
Culturais e Sociedade, em 5 de outubro de 2007, como parte integrante da programação da XVIII
Semana de Filosofia e Teologia: Filosofia, Cultura e Fé, organizada pela Faculdade Eclesiástica de
Filosofia João Paulo II e pelo Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista, e realizada,
de 3 a 5 de outubro, no Teatro João Teotônio da Universidade Candido Mendes, no Rio de
Janeiro. Aproveitamos a oportunidade para agradecer ao padre Ian Boyd, C.S.B., presidente do The
Chesterton Institute for Faith and Culture, por seus valiosos comentários sobre a apresentação, que
ajudaram a dar a forma final desse ensaio.
1
Os filmes dessa trilogia estão disponíveis, em DVDs simples, na seguinte edição:
STAR WARS: EPISÓDIO IV – UMA NOVA ESPERANÇA. Direção: George Lucas. Produção: Gary Kurtz.
Roteiro: George Lucas. Intérpretes: Mark Hamill, Harrison Ford, Carrie Fisher, Peter
Cushing, Alec Guinness e outros. Manaus: Twentieth Century Fox Home Entertainment
Brasil, 2004. DVD (121 minutos).
STAR WARS: EPISÓDIO V – O IMPÉRIO CONTRA-ATACA. Direção: Irvin Kershner. Produção: Gary Kurtz.
Roteiro: Leigh Brackett e Lawrence Kasdan, baseado numa estória de George Lucas. Intérpretes:
Mark Hamill, Harrison Ford, Carrie Fisher, Billy Dee Williams, Alec Guinness e outros.
Manaus: Twentieth Century Fox Home Entertainment Brasil, 2004. DVD (124 minutos).
STAR WARS: EPISÓDIO VI – O RETORNO DE JEDI. Direção: Richard Marquand. Produção: Howard G.
Kazanjian. Roteiro: George Lucas e Lawrence Kasdan, baseado numa estória de George Lucas.
Intérpretes: Mark Hamill, Harrison Ford, Carrie Fisher, Billy Dee Williams, Alec Guinness e
outros. Manaus: Twentieth Century Fox Home Entertainment Brasil, 2004. DVD (131 minutos).
Esses DVDs foram lançados numa caixa com um quarto disco de extras, que inclui o documentário
Empire of Dreams: The History of The Star Wars Trilogy [O Império dos Sonhos: A História da
Trilogia Star Wars], dirigido por Edith Becker e Kevin Burns.
2
Estes filmes estão disponíveis, em DVDs duplos, com extras, na seguinte edição:
STAR WARS: EPISÓDIO I – A AMEAÇA FANTASMA. Direção: George Lucas. Produção: Rick McCallum.
Roteiro: George Lucas. Intérpretes: Liam Neeson, Ewan McGregor, Natalie Portman, Jake
Lloyd, Ian McDiarmit e outros. Manaus: Twentieth Century Fox Home Entertainment
Brasil, 2000. DVD (131 minutos).
222 COMMUNIO • Alex Catharino

Em nosso ensaio pretendemos, a partir de uma leitura intertextual


dos filmes e dos livros3, destacar a imaginação moral de Star Wars. Faremos,
também, uma breve análise da teoria política contida em Star Wars, enfatizando
a idéia de que os problemas da sociedade encontram suas raízes nas desordens
interiores da alma dos indivíduos.

I - O GÊNERO LITERÁRIO DA SAGA STAR WARS


Antes de analisarmos o conteúdo da série Star Wars, cremos ser
importante discorrer sobre seu gênero literário. Já que a maioria dos críticos
classifica a série Star Wars como uma obra cinematográfica do gênero ‘ficção
científica’, tentaremos definir, em termos mais gerais, o que é ‘ficção’ e, de
forma mais específica, o que é ‘ficção-científica’, além de apresentarmos uma
análise crítica sobre esse gênero literário.
O “dicionário Aurélio” define ‘ficção’ da seguinte forma: “[Do lat.
fictione.] S. f. 1. Ato ou efeito de fingir; simulação, fingimento. 2. Coisa
imaginária; fantasia, invenção, criação (...). 3. V. literatura de ficção”4.

STAR WARS: EPISÓDIO II – ATAQUE DOS CLONES. Direção: George Lucas. Produção: Rick McCallum.
Roteiro: Jonathan Hales e George Lucas. Intérpretes: Ewan McGregor, Natalie Portman,
Hayden Christensen, Ian McDiarmit, Samuel L. Jackson, Christopher Lee e outros.
Manaus: Twentieth Century Fox Home Entertainment Brasil, 2002. DVD (144 minutos).
STAR WARS: EPISÓDIO III – A VINGANÇA DOS SITH. Direção: George Lucas. Produção: Rick
McCallum. Roteiro: George Lucas. Intérpretes: Ewan McGregor, Natalie Portman,
Hayden Christensen, Ian McDiarmit, Samuel L. Jackson, Christopher Lee e outros.
Manaus: Twentieth Century Fox Home Entertainment Brasil, 2005. DVD (146 minutos).
3
Além de dos dois DVDs dos desenhos animados Clone Wars [Guerra dos Clones] de Genny
Tartakovsky, do filme em 3D e seriado de televisão Star Wars: The Clone Wars [Guerra nas
Estrelas: Guerra dos Clones] de Dave Filoni, e dos seis filmes supracitados, diversas séries de
livros com estórias de Star Wars, escritas por diferentes autores, foram publicadas em língua
inglesa. Limitar-nos-emos, no presente ensaio, às obras literárias que narram o mesmo conteúdo
dos filmes, a saber:
BROOKS, Terry. Star Wars: Episode – I The Phantom Menace. (Based on the screenplay and
story by George Lucas). New York: Ballantine Books, 1999.
SALVATORE, S. A. Star Wars: Episode II – Attack of the Clones. (Based on the story and
screenplay by George Lucas). New York: Ballantine Books, 2002.
STOVER, Matthew. Star Wars: Episode III – Revenge of the Sith. (Based on the screenplay and
story by George Lucas). New York: Ballantine Books, 2005.
LUCAS, George. Star Wars: Episode IV – A New Hope. New York: Ballantine Books, 1976.
GLUT, Donald F. Star Wars: Episode V – The Empire Strikes Back. (Based on the story by George
Lucas and the screenplay by Leigh Brackett and Lawrence Kasdan). New York: Ballantine
Books, 1980.
KAHN, James. Star Wars: Episode VI – Return of Jedi. (Based on the story by George Lucas and
the screenplay by Lawrence Kasdan and George Lucas). New York: Ballantine Books, 1983.
4
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda et alli. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2ª edição revista e aumentada, 1986. p. 774.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 223

Por sua vez ‘literatura de ficção’ é definida, no chamado “pai dos burros”,
como: “O romance, a novela e o conto”5.
Na obra O problema da ficção na filosofia analítica, Mário A.
L. Guerreiro, ao buscar uma definição filosófica para o conceito de
‘ficção’, ressalta que a dicotomia entre a ‘ficção’ e a ‘não-ficção’ “atende
perfeitamente ao propósito informativo da linguagem jornalística, pois entre
os livros mais vendidos, temos de um lado romances e contos e de outro ensaios
e biografias”. Todavia, o professor de Filosofia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) ressalta que “de um ponto de vista filosófico, a
supramencionada dicotomia suscita algumas indagações bastante delicadas e
intrincadas” 6. Sobre o assunto, Guerreiro afirma que:
No mundo contemporâneo é bastante freqüente uma confusão das noções de
‘ficção’ e ‘romance’. A mera admissão de que ‘romance’ é um gênero ficcional
permite identificar prontamente uma confusão do tipo pars pro toto. […] Cabe
lembrar, no entanto, que há outros gêneros literários e alguns destes, como
é o caso da biografia, não são considerados ficcionais. É também bastante
freqüente a confusão das noções de ‘literatura’ e ‘ficção’. […] Não obstante,
há textos de ficção que não são literários e textos de literatura que não são
ficcionais7.
Ao partir da análise lógica da linguagem, promovida pela Filosofia
Analítica, Mário Guerreiro define ficção como um “produto da livre imaginação
humana apresentando ao menos uma estória”8. Com base nessa definição, o
autor afirma que:
Diferente da literatura, a ficção, como já vimos, não depende necessariamente
da linguagem comum. Ela pode ser do tipo iconográfico puro (quadrinhos
sem balões, painéis com narrativas pictóricas, etc) ou pode conjugar os tipos
iconográfico e verbal (cinema do gênero narrativo-romanesco)9.
A ‘ficção científica’ é definida pelo “dicionário Aurélio” como: “Ficção
(3) cujo enredo se baseia em geral, no desenvolvimento científico e nas situações
decorrentes de tal desenvolvimento no tempo e no espaço”10. Acreditamos que há
mais precisão na seguinte definição:
A ficção científica é uma forma de narrativa, desenvolvida a partir do século XIX, que
lida principalmente com o impacto da ciência, tanto a verdadeira como a imaginada,
sobre a sociedade ou os indivíduos. O termo é usado tanto na chamada versão ‘hard’,
para definir qualquer obra que inclua o fator ciência como componente essencial da

5
Idem. Ibidem., p. 1040.
6
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. O problema da ficção na filosofia analítica. Londrina:
Editora UEL, 1999. p. 7.
7
Idem. Ibidem., p. 8.
8
Idem. Ibidem., p. 16.
9
Idem. Ibdem., p. 17.
10
FERREIRA et alli. Op. cit., p. 774.
224 COMMUNIO • Alex Catharino

narrativa, quanto no sentido ‘soft’, para referenciar qualquer tipo de fantasia literária que
utilize a ciência no enredo11.

A ficção científica, de certa forma, poderia ser classificada como uma


forma de “imaginação idílica”, conforme o termo utilizado por Russell Kirk
(1918-1994) para definir o tipo de “imaginação que rejeita velhos dogmas
e costumes, e se alegra com a noção de emancipação dos deveres e convenções”12.
Mesmo ao fazer, por meio de um retrato alegórico, uma crítica às causas da
inquietude do homem moderno, esse gênero, na maioria dos casos, tende
a buscar a solução para os problemas humanos, seguindo a mesma linha da
maioria dos romances de H. G. Wells (1866-1946)13, na vitória da razão sobre a
natureza humana. Essa tendência da ficção científica reforça na mentalidade das
pessoas a postura denunciada por C. S. Lewis (1898-1963) como “a abolição
do homem”, quando a natureza ao ser conquistada totalmente pelo homem, de
forma racional, acaba transformando a humanidade em escrava da vontade dos
tecnocratas14. A ficção científica foi definida por J. R. R. Tolkien (1892-1973)

11
Nossa definição está fundamentada nas seguintes obras: SCHOEREDER, Gilberto. Ficção
Científica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986; TAVARES, Bráulio. O que é Ficção Científica. São
Paulo: Brasiliense, 1986.
12
KIRK, Russell. “A imaginação moral”. (Tradução de Gustavo Santos; notas de Alex Catharino).
In: COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVIII, Número 1, (Edição
101), janeiro / abril 2009: 103-119. p. 105.
13
As histórias de ficção científica de H. G. Wells são caracterizadas tanto por visões utópicas quanto
distópicas do futuro. Em algumas das estórias a humanidade caminha em direção à inexorável
catástrofe até que, por intermédio da razão ou de fatores externos, acabam atingindo a paz e o
progresso. Outras narrativas são marcadas pelo pessimismo, discutindo questões, ainda atuais,
como a ameaça de guerra nuclear, o advento do Estado Mundial e o problema da manipulação de
animais. Dentre as diversas obras de H. G. Wells, destacamos: The Time Machine [A máquina do
tempo] de 1896, The Island of Dr. Moreau [A ilha do Dr. Moreau] de 1896, The Invisible Man [O
homem invisível] de 1897, The War of the Worlds [A guerra dos mundos] de 1898 e The First Men in
the Moon [Os primeiros homens na Lua] de 1901. Em língua portuguesa essas obras se encontram
na seguinte edição: Obras de H. G. Wells. São Paulo: Cia. Nacional, 1956. 10v.
14
LEWIS, C. S. A abolição do homem. (Tradução de Remo Mannarino Filho). São Paulo: Martins
Fontes, 2005. pp. 51-77. Acreditamos que percepção de Lewis sobre o problema dessa forma de razão
instrumental, típica da modernidade, ajuda a esclarecer alguns pontos importantes da crítica de João Paulo
II ao irracionalismo e de Bento XVI aos excessos de um racionalismo que leva ao voluntarismo. Uma análise
mais profunda sobre a defesa da razão no pensamento de C. S. Lewis se encontra em: PATRICK, James A.
“A Razão em G. K. Chesterton e C. S. Lewis”. (Tradução de Márcia Xavier de Brito). In: COMMUNIO:
Revista Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVI, Número 2 (Edição 95), janeiro / abril 2007: 363-
370. Sobre a defesa do Magistério Romano ao equilíbrio entre fé e razão, ver:
JOÃO PAULO II, Papa. Carta encíclica Fides et Ratio: Sobre as relações entre fé e razão. São Paulo:
Paulinas, 2ª edição, 1998.
RATZINGER, Cardeal Joseph. “Fé, Verdade e Cultura: Reflexões sobre a encíclica Fides
et Ratio de João Paulo II”. (Tradução de Alex Catharino). In: COMMUNIO: Revista
Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVII, Número 1 (Edição 97), janeiro
/ abril 2008: 251-176.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 225

como a “mais escapista de todas as formas literárias”, cujos autores de tais obras
tentam agir como profetas de uma Nova Era. Sobre o assunto, afirma Tolkien:
Esses profetas freqüentemente predizem (e muitos parecem ansiar por isso) um
mundo como uma grande estação ferroviária de telhado de vidro. Mas para eles,
em regra, é muito difícil deduzir que as pessoas farão numa cidade mundial
como essa. Poderão abandonar a “plena panóplia vitoriana” em favor de trajes
mais folgados (com zíperes), mas usarão essa liberdade principalmente, ao que
parece, para brincar com brinquedos mecânicos no jogo de mover-se em alta
velocidade, que logo satura. A julgar por alguns desses contos, ainda serão
luxuriosos, vingativos e gananciosos como sempre, e os ideais de seus idealistas
mal chegam além da esplêndida idéia de construir mais cidades do mesmo
tipo em outros planetas. É de fato uma era de “meios aperfeiçoados para fins
deteriorados”. Faz parte da enfermidade essencial desses dias – produzindo o
desejo de escapar, não de fato da vida, mas sim de nosso tempo presente e da
miséria que nós mesmos fizemos – estarmos agudamente conscientes tanto da
feiúra de nossas obras quanto de seu mal. Assim, para nós o mal e a feiúra
parecem indissoluvelmente aliados. Achamos difícil conceber o mal e a beleza
juntos15.

A crítica de Tolkien à ficção científica é pertinente, visto que a maioria das


obras desse gênero, sejam literárias ou cinematográficas, está impregnada dos
vícios destacados pelo ilustre escritor e professor de filologia da Universidade
de Oxford. Entretanto, acreditamos que a série Star Wars, diferente do que
a maioria dos críticos defende, não é, de fato, uma obra de ficção científica,
no sentido estrito do gênero, visto que a narrativa e os valores defendidos são
mais importantes do que o ambiente futurista apresentado como cenário das
aventuras16.

BENTO XVI, Papa. “Fé, razão e universidade: Recordações e reflexões”. In: COMMUNIO:
Revista Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVI, Número 2 (Edição 95), janeiro
/ abril 2007: 177-188.
Sobre o discurso de Bento XVI na Universidade de Regensburg e suas relações com a tradição
filosófica ocidental e com os ensinamentos da teologia católica e do Magistério Romano, em
especial as reflexões de João Paulo II, ver: SCHALL S.J., James V. The Regensburg Lecture. South
Bend: St. Augustine’s Press, 2007. Escrevi uma resenha sobre esse importante livro do padre James
V. Schall S.J., que foi publicada em: COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura,
Volume XXVI, Número 2 (Edição 95), janeiro / abril 2007: 430-436.
15
TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. (Tradução de Ronald Kyrmse). São Paulo: Conrad, 2006. pp. 72-73.
16
George Lucas afirma, numa entrevista no documentário Empire of Dreams, que Star Wars é uma
Space Opera [Ópera espacial]. O conceito de Space Opera foi criado pelo escritor Wilson Tucker
(1941-2006), em 1941, para definir um tipo de ficção científica ‘soft’ que enfatiza o aspecto
dramático da narrativa e onde a tecnologia é utilizada apenas como um meio na luta entre o bem e
o mal. Além de Star Wars, incluímos nesse gênero as seguintes obras: 1) os livros da série Barsoom
de Edgar Rice Burroughs (1875-1950); 2) as estórias em quadrinhos de Buck Rogers, criada por
Philip Francis Nowlan (1888-1940), e de Flash Gordon, criada por Alex Raymond (1909-1956),
bem como os filmes e seriados de TV inspirados nessas aventuras; e 3) os seriados de TV e os filmes
da série Star Trek [Jornada nas Estrelas] de Gene Roddenberry (1921-1991).
226 COMMUNIO • Alex Catharino

As duas trilogias de filmes Star Wars estão mais próximas do gênero


de ‘fantasia mitopoética’17, como as séries O Senhor dos Anéis18 de J. R. R.
Tolkien e As Crônicas de Nárnia19 de C. S. Lewis, do que das inúmeras obras,
literárias ou cinematográficas, de ficção científica. O próprio George Lucas,
numa entrevista para Paul Scanlon na revista Rolling Stones em agosto de
1977, afirma que ao fazer Star Wars ele:
Simplesmente quis esquecer a ciência, ela se basta por si só. Stanley Kubrick*
fez o filme máximo da ficção científica, e vai ser muito difícil para qualquer
pessoa fazer um melhor. Queria uma fantasia espacial mais ao gênero de Edgar
Rice Burroughs**; toda aquela outra ponta de fantasia que existia antes de a
ciência se sobrepujar, nos anos 1950. Uma vez que a bomba atômica chegou,
todo mundo se interessou por monstros e pela ciência e com o que aconteceria
com isso e com aquilo. Acho que a ficção especulativa é muito válida, mas
17
Utilizamos a definição de Marek Oziewicz, segundo a qual “a fantasia mitopoética é: 1) uma
narrativa ficcional, 2) sobre aventuras de heróis psicologicamente humanos, 3) no mundo secundário – e,
às vezes, também no mundo primário, 4) construídas a partir de uma variedade de materiais míticos
artisticamente re-imaginados, apresentados como verdadeiros segundo critérios realistas, 5) e escritos para
criar uma experiência imaginativa de um mundo onde os conceitos metafísicos são realidades objetivas –
normalmente corporificados em personagens numinosas – e a resposta do protagonista aos dilemas morais
e éticos pretendem mostrar por que tais imperativos morais no mundo primário exigiriam determinados
tipos de comportamento”. Ver: OZIEWICZ, Marek. “Prolegômenos à Fantasia Mitopoética”.
(Tradução de Márcia Xavier de Brito). In: COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura,
Volume XXVIII, Número 1, (Edição 101), janeiro / abril 2009: 121-149. p. 138.
18
Os livros da trilogia O Senhor dos Anéis estão disponíveis em língua portuguesa em diferentes
edições. Utilizamos as seguintes edições brasileiras:
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: As duas torres. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.]
19
As Crônicas de Nárnia estão disponíveis em língua portuguesa em diferentes edições. Utilizamos a seguinte
edição brasileira: LEWIS, C. S. As Crônicas de Nárnia. (Edição com ilustrações coloridas à mão pela artista
Pauline Baynes e com uma introdução de Douglas Gresham; tradução de Paulo Mendes Campos e de
Silêda Steuernagel). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
*
O cineasta norte-americano Stanley Kubrick (1928-1999) escreveu o roteiro, junto com o escritor Arthur
C. Clarke (1917-2008), e dirigiu o filme 2001: Uma Odisséia no Espaço, lançado originalmente em 6 de
abril de 1968, distribuído pela Metro-Goldwyn-Mayer e estrelado por Keir Dullea e Gary Lockwood.
**
Edgar Rice Burroughs é autor de diferentes narrativas em diversos gêneros literários, como o
romance histórico, as aventuras na selva, os contos de faroeste e a ficção científica. O trabalho
mais famoso dele é a série de vinte e seis estórias sobre a personagem Tarzan, uma criança, filha de
um lorde inglês, que foi criada na África por gorilas. No campo da ficção científica Burroughs se
notabilizou por diferentes estórias, sendo a mais famosa a chamada série Barsoom, composta por
doze estórias, escritas entre 1912 e 1948, que narram as aventuras de John Carter, um herói da
Guerra Civil Norte Americana, em Marte. A série Barsson pode se encontra completa na seguinte
edição: BURROUGHS, Edgar Rice. John Carter of Mars. London: Leonaur Ltd, 2007. 6v.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 227

se esqueceram dos contos de fadas e dos dragões e de Tolkien e de todos os


heróis reais20.

II - OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA SAGA STAR W ARS


Comparada com a maioria das obras de ficção científica, principalmente
os filmes do gênero produzidos nas décadas de 1950 a 197021, Star Wars
apresenta algumas inovações significativas, a saber:
1ª) O abandono da obsessão pelo futuro, visto que todos os filmes da série
começam com a epigrama: “Há muito tempo, em uma galáxia muito, muito
distante...” [A long time ago in a galaxy far, far away...];
2ª) A recuperação do arquétipo do herói dotado de valores morais elevados
e obediente a um código de honra objetivo. Diferente dos protagonistas da
maioria dos filmes de ficção científica, pessoas “neutras” que agem somente em
resposta aos acontecimentos externos com que se deparam, os heróis de Star
Wars se assemelham aos protagonistas de sagas clássicas da literatura ocidental
como o poema épico grego Odisséia22, o poema épico medieval inglês Beowulf23,
ou as estórias medievais do Ciclo Arturiano24;
20
“The Force Behind Star Wars”. (An Interview with George Lucas by Paul Scanlon). In: Rolling
Stones, 246 (August 25, 1977). Disponível em:
http://www.rollingstone.com/news/story/7330268/the_force_behind_star_wars
21
Dentre as principais produções do período, destacamos os filmes: O Dia em que a Terra Parou
(1951) de Robert Wise (1914-2005), Guerra dos mundos (1954) de Byron Haskin (1899-1984),
Invasores de corpos (1956) de Don Siegel (1912-1991), O Planeta Proibido (1956) de Fred Wilcox
(1907-1964), Alphaville (1965) de Jean Luc Godard, Fahrenheit 451 (1966) de François Truffaut
(1932-1984), o já citado 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968) de Stanley Kubrick, Barbarella
(1968) de Roger Vadin (1928-2000), O Planeta dos Macacos (1968) de Franklin Schaffner (1920-
1989), De volta ao Planeta dos Macacos (1970) de Ted Post, THX 1138 (1971) do próprio George
Lucas, Fuga do Planeta dos Macacos (1971) de Don Taylor (1920-1998), A Laranja Mecânica
(1971) de Stanley Kubrick, Solaris (1972) de Andrei Tarkovski (1932-1986), A conquista do planeta
dos macacos (1972) e Batalha do Planeta dos Macacos (1973) de John Lee Thompson (1914-2002),
No mundo de 2020 (1973) de Richard Fleischer (1916-2006) e Zardoz (1974) de John Boorman.
22
HOMERO. Odisséia. (Edição bílingüe traduzida por Donaldo Schüler). Porto Alegre: L&PM,
2007. 3v. Dentre as diversas versões cintematográficas da obra, destacamos A Odisséia, de 1997,
dirigida por Andrei Konchalovsky e estrelada por Armand Assante, Greta Scacchi, Isabella Rossellini,
Vanessa L. Williams, Eric Roberts, Geraldine Chaplin e Christopher Lee.
23
Beowulf. (Edição bilíngüe com tradução, introdução e notas de Erick Ramalho). Belo
Horizonte: Tessitura, 2007. A obra recebeu duas versões cinematográficas, a primeira, de 1999,
é Beowulf: O guerreiro das sombras, dirigida por Graham Baker e estrelada por Christopher
Lambert e Rhona Mitra, a segunda, de 2007, é A Lenda de Beowulf, dirigida por Robert
Zemeckis e estrelada por Ray Winstone, Anthony Hopkins, John Malkovich, Robin Wright
Penn e Angelina Jolie.
24
O Ciclo Arturiano, parte da Matter of Britain [Matéria da Bretanha], é um conjunto de lendas
celtas, permeado por valores e símbolos cristãos, que narram a história mítica da Grã-Bretanha,
particularmente as aventuras do Rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda. Em língua portuguesa
algumas dessas estórias podem ser encontradas nas seguintes edições brasileiras:
228 COMMUNIO • Alex Catharino

3ª) A objetividade do mal, personificada em indivíduos degenerados e decaídos.


Em Star Wars o mal é fruto de escolhas individuais de sujeitos dotados de livre
arbítrio, que, para obter o poder ou saciar seus desejos pessoais, optam por um
caminho mais fácil em detrimento às normas objetivas de um código moral
pautado na tradição;
4ª) O caráter pedagógico da narrativa como meio de busca da felicidade mútua,
pois o próprio George Lucas assume publicamente que quando faz um filme
está ensinando milhares de jovens como devem se conduzir, o que o faz se
sentir responsável com os valores veiculados em sua obra. Para o cineasta norte-
americano um dos temas principais de Star Wars é fazer as pessoas compreenderem
que devem viver colaborando com outros seres humanos e demais organismos
vivos, para o benefício mútuo de toda a criação;
5ª) A importância do mito, a busca pelos valores da tradição e a universalidade
da mensagem, pois George Lucas, de forma consciente, recriou na saga Star
Wars os temas clássicos, extraindo as normas morais fundamentais comuns de
diferentes mitologias e crenças religiosas, para criar uma mensagem universal para
culturas distintas. Nesse processo, os mitos são um importante meio das pessoas
encontrarem a própria individualidade e entenderem seu devido lugar no mundo,
lembrando que cada indivíduo faz parte de algo maior, que transcende o auto-
interesse.
Os fundamentos teóricos por trás dessas inovações da série Star Wars
encontram-se nos profundos estudos que George Lucas fez sobre a teoria da
‘narratologia do monomito’ de Joseph Campbell (1904-1987). Podemos definir,
em linhas gerais, a narratologia do monomito como a teoria semiótica defensora
da hipótese de que todos os mitos, as lendas, os épicos e as narrativas sagradas
das diferentes culturas se referem essencialmente a uma mesma história. A
concepção de ‘monomito’ de Campbell têm suas bases no conceito de ‘arquétipo’,
desenvolvido por Carl Jung (1875-1961), na noção de ‘forças inconscientes’,
tal como proposta por Sigmund Freud (1856-1939), e na concepção de ‘ritos
de passagem’, segundo as análises de Arnold van Gennep (1873-1957), tendo
aparecido pela primeira vez, em 1949, na obra The Hero with a Thousand Faces [O

Aventuras da Távola Redonda: Estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros. (Organização e
tradução de Antonio L. Furtado). Petrópolis: Vozes, 2003.
A Demanda do Santo Graal: Manuscrito do século XIII. (Editado por Heitor Megale). São Paulo:
T. A. Queiroz / Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
TROYES, Chrétien de. Perceval ou O romance do Graal. (Tradução de Rosemary Costhek
Abílio). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
TROYES, Chrétien de. Romances da Távola Redonda. (Tradução de Rosemary Costhek Abílio).
São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Destacamos, também, o filme Excalibur, de 1981, baseado na versão da lenda do Rei Artur, escrita
por Sir Thomas Malory (1405-1471), dirigido por John Boorman e estrelado por Nigel Terry,
Helen Mirren, Nicol Williamson, Nicholas Clay, Cherie Lunghi, Liam Neeson, Patrick Stewart e
Gabriel Byrne.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 229

herói de mil faces]25. Numa entrevista para seu discípulo, o jornalista Bill Moyer,
Joseph Campbell afirma que:
Existe uma certa seqüência de ações heróicas, típica, que pode ser detectada em
histórias provenientes de todas as partes do mundo, de vários períodos da história.
Na essência, pode-se até afirmar que não existe senão um herói mítico arquetípico,
cuja vida se multiplicou em réplicas, em muitas terras, por muitos, muitos povos.
Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de uma nova era,
de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova modalidade de vida. Para fundar
algo novo ele deve, ele deve abandonar o velho e partir em busca da idéia-semente, a
idéia germinal que tenha a potencialidade de fazer aflorar aquele algo novo26.

A jornada do herói, segundo Joseph Campbell em O herói de mil faces, é


composta por três etapas principais, cada uma delas com fases distintas, a saber:
1ª) A Partida, quando o herói sai do mundo comum e parte para a aventura,
iniciando a jornada27;
2ª) A iniciação, etapa onde o herói vive as principais aventuras da jornada e, ao
mesmo tempo, aprofunda seu aprendizado, recebendo novos poderes e resolvendo
conflitos internos28;
3ª) O Retorno, quando o herói volta para o mundo comum com o conhecimento
e os poderes que adquiriu ao longo da jornada29.

As jornadas específicas de diferentes heróis, narradas em diversos mitos, não


necessitam seguir, de forma rígida, o esquema elaborado por Joseph Campbell.
Na realidade, acreditamos que nenhuma estória abrange todas as diferentes fases
das três etapas principais. Todavia, esse modelo ideal serve para orientar um
caminho seguro de compreensão de várias mitologias ou para criar narrativas
duradouras, que tratem de temas fundamentais. No que tange à criação de obras
cinematográficas, a proposta de Campbell foi o fundamento de alguns sucessos de
bilheteria. Além de ter servido como matriz teórica da saga Star Wars de George
Lucas, as idéias expostas em O herói de mil faces foi a base do, agora lendário, A
Practical Guide to The Hero With a Thousand Faces [Um Guia Prático para o Herói
de Mil Faces], um memorando corporativo interno de sete páginas, elaborado
por Christopher Vogler, para os roteiristas dos estúdios Disney, que deu origem
a dez longas-metragens de animação que marcam o denominado período ‘Disney
Renaissance’ [Renascimento da Disney]30. A partir desse memorando, Vogler
25
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. (Tradução de Adail Ubirajara Sobral). São Paulo:
Editora Pensamento, 11ª edição, 1995.
26
CAMPBELL, Joseph & MOYERS, Bill. O poder do mito. (Organização de Betty Sue Flowers;
tradução de Carlos Felipe Moisés). São Paulo: Palas Athena, 1992. p. 145.
27
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. pp. 59-94.
28
Idem. Ibidem., pp. 102-179.
29
Idem. Ibidem., pp. 195-236.
30
O estúdio de animação fundado, em 1923, por Walt Disney (1901-1966) foi responsável pela
criação dos mais famosos e bem-sucedidos desenhos animados de toda a história do cinema.
230 COMMUNIO • Alex Catharino

escreveu o livro The Writer’s Journey: Mythic Structure For Writers [A Jornada do
Escritor: Estrutura Mítica para Roteiristas]31, publicado originalmente em 1990,
que serviu como modelo para os irmãos Andy Wachowski e Larry Wachowski
criarem a trilogia Matrix32.
Joseph Campbell é uma referência obrigatória para todos os pesquisadores
de mitologia comparada e história das religiões, principalmente sua obra The
Masks of God [As máscaras de Deus]33, que estuda a evolução de diferentes
tradições religiosas e míticas, ressaltando seus principais pontos de convergência.

Entretanto, ao longo da década de 1980, a Walt Disney Company recebeu críticas negativas e
bilheterias abaixo do esperado com os longas-metragens de animação: The Fox and the Hound [O
cão e a raposa] de 1981, The Black Cauldron [O caldeirão mágico] de 1985, The Great Mouse
Detective [As peripécias do ratinho detetive] de 1986 e Oliver & Company [Oliver e sua turma] de
1988. O memorando de Christopher Vogler foi a base de uma formula de sucessos que revigorou
a Disney, criando um ‘renascimento’ dos estúdios, numa nova fase de críticas positivas e altas
bilheterias com os longas-metragens de animação: The Little Mermaid [A pequena sereia] de 1989,
The Rescuers Down Under [Bernardo e Bianca na terra dos cangurus] de 1990, Beauty and the Beast
[A bela e a fera] de 1991, Aladdin de 1992, The Lion King [O rei leão] de 1994, Pocahontas de 1995,
The Hunchback of Notre Dame [O corcunda de Notre Dame] de 1996, Hercules [Hércules] de 1997,
Mulan de 1998, e Tarzan de 1999.
VOGLER, Christopher. The Writer’s Journey: Mythic Structure For Writers. Studio City: Michael
31

Wiese Productions, 3rd Edition, 2007.


32
A trilogia de filmes Matrix é uma produção norte-americana e australiana, dos gêneros ação
e ficção científica, distribuída pela Warner Bros e protagonizada por Keanu Reeves no papel de
Neo, com a participação de Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss e Hugo Weaving. A trilogia
é composta pelos filmes Matrix de 1999, Matrix Reloaded de 2003 e Matrix Revolutions de 2003.
Os filmes, frutos da estética pós-moderna, têm como tema principal a luta dos seres humanos,
por volta do ano 2200, contra o domínio da das máquinas, que, por intermédio da inteligência
artificial, escravizaram a maioria das pessoas numa realidade virtual, conhecida como Matrix.
Além da estrutura básica da proposta de Christopher Vogler, a obra une diversos elementos da
ficção científica e da informática com artes marciais e reflexões das filosofias platônica, cartesiana e
nietzscheana, além das escolhas das personagens estarem pautadas em valores religiosos do budismo
tibetano e do messianismo judaico-cristão. Neo é o herói, que após passar por diferentes etapas
durante sua jornada, se sacrifica para impedir o ataque das máquinas às pessoas livres e salvar os
cativos, mesmo mantendo-os nessa condição, de um vírus que ameaçava destruir a realidade virtual
da Matrix.
33
Em língua portuguesa os três primeiros volumes da série estão disponíveis nas seguintes edições
brasileiras:
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus: Mitologia Primitiva. (Tradução de Carmen Fischer).
São Paulo: Palas Athena, 2004;
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus: Mitologia Oriental. (Tradução de Carmen Fischer).
São Paulo: Palas Athena, 2004;
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus: Mitologia Ocidental. (Tradução de Carmen Fischer).
São Paulo: Palas Athena, 2004.
Os três primeiros volumes da série foram publicados originalmente em inglês, respectivamente, nos
anos de 1959, 1962 e 1964. O quarto e último volume, intitulado Creative Mythology [Mitologia
Criativa] e publicado originalmente em inglês em 1968, continua sem uma edição em língua
portuguesa.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 231

Entretanto, uma parcela significativa das análises de Campbell foi adotada, nas
décadas de 1960 e 1970, como fundamento do modo de vida defendido por
diversas correntes do movimento hippie, transformando esse pesquisador, ao
lado do filósofo da ciência norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996)34 e do
físico austríaco Fritjof Capra35, num dos principais profetas da chamada New
Age ou Nova Era36. Dentre os grandes problemas das concepções de Campbell,
herdeiras, de certa forma, da psicologia junguiana, está a incapacidade de
compreender que no pluralismo das religiões existe uma unidade na verdade,
tal como ressaltado pelo filósofo e educador norte-americano Mortimer
Adler (1902-2001), ao destacar os erros desse autor nas análises acerca do
cristianismo37. A última obra de Joseph Campbell, The Inner Reaches of Outer
Space: Metaphor as Myth and as Religion [A extensão interior do espaço exterior:
A metáfora como mito e religião]38, publicada originalmente em 1986, é um
exemplo típico dessa visão New Age, que permeia o pensamento do autor, pois,
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. (Tradução de Beatriz Viana Boeira e Nelson
34

Boeira). São Paulo: Perspectiva, 9ª Edição, 2009.


35
CAPRA, Fritjof. O Tao da Física: Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental.
(Tradução de José Fernandes Dias). São Paulo: Cultrix, 2ª Edição, 1983.
36
Para demonstrar a incompatibilidade entre a Nova Era e o Catolicismo, o Magistério Romano,
em 2003, elaborou o documento Jesus Cristo portador da água viva: Uma reflexão cristã sobre a Nova
Era, que, também, oferece subsídios para a formação doutrinária dos católicos e para o diálogo com
os seguidores dessa espiritualidade ou filosofia de vida. Numa tentativa de definir o que é a Nova
Era, afirma o documento:
O New Age não é um movimento no sentido normalmente atribuído à expressão “Novo
movimento religioso”, nem é também o que se entende habitualmente com os termos “culto”
e “seita”. Sendo transversal às culturas e presente em vários fenômenos [...]. O New Age não
é um movimento único e uniforme: é uma rede de longas malhas de praticantes cujo critério
consiste em pensar globalmente, mas agir localmente. Quem faz parte dessa rede não conhece
necessariamente os outros seus componentes e os encontra raramente, e até mesmo nunca. [...]
Trata-se de uma estrutura sincrética que incorpora muitos elementos diversos, permitindo às
pessoas partilhar interesses ou liames em graus muito diferentes e em vários níveis de empenho.
Muitas tendências, práticas e posturas que, de alguma forma, fazem parte do New Age são, de
fato, parte de uma profunda reação, facilmente indentificável, contra a cultura dominante [...].
Além disso, no New Age é fundamental a convicção de que o tempo das religiões particulares
acabou [...]. De qualquer forma, é bastante correto situar o New Age no contexto mais amplo
de religiosidade esotérica, cuja fascinação continua a crescer (PONTIFÍCIO CONSELHO DA
CULTURA & PONTIFÍCIO CONSELHO PARA O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO.
Jesus Cristo portador da água viva: Uma reflexão cristã sobre a Nova Era. {Tradução de Antonio
Efro Feltrin}. São Paulo: Paulinas, 2003. pp. 20-23).
37
As principais críticas de Adler as teorias de Campbell aparecem nos capítulos 3, “The Study of
Religion and Mythology” [O estudo da religião e da mitologia], e 4, “Truth in Religion” [Verdade
na religião], da obra Truth in Religion: The Plurality of Religions and the Unity of Truth [Verdade na
religião: A pluralidade das religiões e a unidade da verdade]. Ver: ADLER, Mortimer J. Truth in
Religion: The Plurality of Religions and the Unity of Truth. New York: Macmillan, 1990.
38
CAMPBELL, Joseph. A extensão interior do espaço exterior: A metáfora como mito e religião.
(Tradução de Waltensir Dutra). Rio de Janeiro: Campus, 1991.
232 COMMUNIO • Alex Catharino

após uma correta descrição das mudanças ocorridas na consciência humana


durante a modernidade, ele procura demonstrar a necessidade urgente de se
“construir”, por intermédio da arte, uma nova mitologia adequada à nossa
época, que por sua vez, apresenta inúmeros elementos do subjetivismo e do
sincretismo, típicos da espiritualidade New Age.
Os erros teológicos das teorias de Joseph Campbell, não invalidam os
conteúdos de verdade semiótica e moral presentes na análise da narratologia
do monomito, fundamento utilizado por George Lucas na concepção de Star
Wars. Essa produção cinematográfica, em muitos aspectos, se opõe ao “mal da
degradação normativa”, denunciado por Russell Kirk, que, em nossa época, está
corroendo “a ordem no interior da pessoa e da república” e cuja solução passa pelo
“restabelecimento das normas”, por intermédio da compreensão dos modernos da
“maneira pela qual nos afastamos das antigas verdades”. Nesse processo se torna
necessário enriquecer a imaginação moral, possibilitando, assim, que as pessoas se
percebam “capazes de grandes coisas”39.
A imaginação moral é um “poder de percepção ética que atravessa as barreiras
da experiência individual e de eventos momentâneos”, aspirando “à apreensão da
ordem correta na alma e da ordem correta na comunidade política” e informando
“sobre a dignidade da natureza humana”40. O conceito de imaginação moral foi
retirado por Russell Kirk duma passagem da obra Reflections on the Revolution
in France [Reflexões sobre a Revolução em França] de Edmund Burke (1729-
1797)41 e foi enriquecido pelas idéias de ‘ética dos contos de fadas’ de G. K.
Chesterton (1874-1936)42, ‘imaginação idílica’ de Irving Babbitt (1865-1933)43
39
KIRK, Russell. “A arte normativa e os vícios modernos”. (Tradução de Gustavo Santos; notas de
Alex Catharino). In: COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVII,
Número 4, (Edição 100), outubro / dezembro 2008: 993-1017. p. 993.
40
KIRK. “A imaginação moral”. p. 104.
41
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. (Introdução de Connor Cruise O’Brien;
tradução de Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lídia Richter
Ribeiro Moura). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. pp. 101-102. Ver, também:
KIRK, Russell. Edmund Burke: A Genius Reconsidered. (Foreword by Roger Scruton). Wilmington:
ISI Books, 2nd Revised Edition, 1997.
42
CHESTERTON, G. K. “A ética da terra dos elfos”. In: Ortodoxia. (Apresentação, notas e anexo
de Ives Gandra da Silva Martins Filho; tradução de Cláudia Albuquerque Tavares). São Paulo: LTr,
2001. pp. 67-90; CHESTERTON, G. K. “A Ética do Reino Encantado”. (Tradução de Márcia
Xavier de Brito). In: The Chesterton Review: Edição Especial em Português, Volume I, Número 1
(Edição 1), janeiro / junho 2009; CHESTERTON, G. K. “A educação pelos contos de fadas”.
(Tradução de Márcia Xavier de Brito). In: The Chesterton Review: Edição Especial em Português,
Volume I, Número 1 (Edição 1), janeiro / junho 2009; CHESTERTON, G. K. “A Ética dos contos
de fadas”. (Tradução de Márcia Xavier de Brito). In: The Chesterton Review: Edição Especial em
Português, Volume I, Número 1 (Edição 1), janeiro / junho 2009.
43
BABBITT, Irving. Rousseau and Romanticism. New Brunswick: Transaction Publishers, 2004;
BABBITT, Irving. Democracia e Liderança. (Prefácio de Russell Kirk; tradução de Joubert
de Oliveira Brízida). Rio de Janeiro: Topbooks, 2003. Ver, também: KIRK, Russell. “Irving
Babbitt’s humanism: The higher will in a democracy”. In: The Conservative Mind: From Burke
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 233

e ‘imaginação diabólica’ de T. S. Eliot (1888-1965)44. A imaginação moral se


opõe à imaginação idílica e à imaginação diabólica, formas corrompidas e
anárquicas de imaginação que dominam o cenário cultural de nossa época
e que buscam, respectivamente, a emancipação, pela construção de utopias,
dos constrangimentos morais convencionais e a abolição, por intermédio do
relativismo, dos conceitos de pecado e de natureza humana45. O desrespeito a
certos padrões normativos de moralidade, causado por essas formas deturpadas
de imaginação, tem como resultado o surgimento de “uma geração anormal”,
“uma geração de monstros, escravizada pela vontade e pelo apetite”46. Um conjunto
objetivo de normas nos permite compreender não apenas a natureza humana,
mas, também, viver numa sociedade guiada por padrões morais e por princípios
de justiça, pois “uma visão desumana da vida”, pautada em ideologias, “leva,
rapidamente, a uma ordem social desumana”47. Kirk ressalta que “o triunfo da
ideologia poderá ser o triunfo” de um “mundo antagônico”, “o mundo da desordem”48.
Os ideólogos, ao rejeitarem as normas da religião e da metafísica, acreditam que
poderão descobrir, por intermédio da razão, um sistema de “leis naturais”, que
poderia se tornar, quando adotado pela sociedade, o fundamento da harmonia e
do bem-estar universais49. Entretanto, nossas modernas sociedades ideologizadas
são assombradas pela ansiedade, produzida pela “desordem na existência privada e
desordem na experiência social”, que cresce “na fraqueza, impotência e frustração” e,
apesar de nunca poder ser, totalmente, abolida, só recuará quando estivermos em
conformidade com as normas, recuperando, assim, “o propósito da existência do
homem”50. Não há possibilidade de vida em sociedade ou fora dela, segundo Kirk,
se faltar “uma apreensão das normas”, pois:
Na falta de convenções sensatas, a ordem civil e social se dissolve. E na falta da
variedade da vida e da diversidade das instituições, a normalidade sucumbe à
tirania da padronização sem padrões51.

to Eliot. (Introduction by Henry Regnery). Washington D.C.: Regnery, 7th Revised Edition,
2001. pp. 419-432.
44
ELIOT, T. S. After Strange Gods: A Primer of Modern Heresy. London: Faber and Faber, 1934;
ELIOT, T. S. Christianity & Culture. San Diego / New York / London: Harcourt, 1976. Ver,
também: KIRK, Russell. Eliot and His Age: T. S. Eliot’s Moral Imagination in the Twentieth Century.
(Introduction by Benjamin G. Lockerd Jr.). Wilmington: ISI Books, 2nd Revised Edition, 2008.
45
CATHARINO, Alex. “Russell Kirk (1918-1994)”. In: BARRETO, Vicente (Org.). Dicionário de
Filosofia Política. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.
46
KIRK. “A arte normativa e os vícios modernos”. p. 994.
47
Idem. Ibidem., p. 995.
KIRK, Russell. “The Errors of Ideology”. In: The Politics of Prudence. (Introduction by Mark C.
48

Henrie). Wilmington: ISI Books, 2nd Edition, 2004. p. 14.


49
Idem. Ibidem., p. 3.
50
KIRK. “A arte normativa e os vícios modernos”. pp. 1002-1003.
51
Idem. Ibidem., p. 1005.
234 COMMUNIO • Alex Catharino

O fio condutor da jornada dos heróis de Star Wars é essa busca por normas
que permitam a pessoa viver em equilíbrio com a realidade, superando os limites
externos impostos por forças malignas. Na já citada entrevista para o jornalista
Bill Moyers, Joseph Campbell afirma que:
Os mitos servem, primariamente, para fornecer instruções fundamentais [...]. A
sociedade atual não nos dá a instrução mítica adequada [...], e por isso os jovens
têm dificuldades de encontrar o seu caminho. [...] É perfeitamente possível alguém
ser influenciado pelos ideais e pela autoridade dos outros, a ponto de ignorar o
que desejaria e poderia ser. Quem cresce num ambiente extremamente restritivo
e autoritário dificilmente chegará a atingir o conhecimento de si mesmo. [...] A
história do filme [Guerra nas Estrelas] tem a ver com uma operação de princípios [...].
As máscaras de monstros, usadas pelos atores de Guerra nas Estrelas, representam
a verdadeira força monstruosa, no mundo moderno. Quando a máscara de Darth
Vader é retirada, você vê um rosto informe, de alguém que não se desenvolveu como
indivíduo humano. O que se vê é uma espécie de fase indiferenciada, estranha e
digna de pena. [...] Darth Vader não desenvolveu a própria humanidade. É um
robô. É um burocrata, vive não nos seus próprios termos, mas nos termos de um
sistema imposto [...]. O filme comunica. É concebido numa linguagem que fala
aos jovens, e isso é o que conta. Ele pergunta: Você será uma pessoa de coração,
verdadeiramente humana [...]. Guerra nas Estrelas não é apenas uma história de
moralidade, o filme tem a ver com os poderes da vida, conforme sejam plenamente
realizados ou cerceados e suprimidos pela ação do homem52.

III - A NARRATOLOGIA DE STAR WARS NA JORNADA DE ANAKIN


SKYWALKER / DARTH VADER
As produções cinematográficas da década de 1970 refletiam o contexto
cultural marcado pelo pessimismo, decorrente dos eventos históricos da Guerra
do Vietnã, da Crise Mundial do Petróleo e do Caso Watergate. George Lucas se
propôs, de forma consciente, a criar uma aventura que passasse valores positivos
para a juventude. Sua idéia era recuperar a imagem do herói, em oposição aos
modelos de anti-heróis ou justiceiros dos filmes do período, fazendo uma estória
com o otimismo das ‘aventuras de capa e espada’ que animaram sua infância
e juventude, durante as décadas de 1940 e 1950, nas matinês de sábado. Ao
escrever o roteiro do filme, George Lucas viu que a estória ficou muito maior do
que esperava e, como numa ópera, resolveu dividi-la em três partes, que viriam a
constituir, respectivamente, os episódios IV, V e VI da série. O cineasta também
elaborou um guia sobre cada uma das personagens, criando a história de vida de
cada uma delas, o que acabou servindo de base para a criação, posteriormente,
dos episódios I, II e III53.
52
CAMPBELL & MOYERS. O poder do mito. pp. 152-154.
53
A história da criação da série Star Wars se encontra no já citado documentário Empire of Dreams.
A intencionalidade do projeto moralizante de George Lucas é narrada pelo próprio autor nesse
documentário, bem como nos comentários de áudio nas edições em DVD dos seis filmes da série.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 235

A trilogia de Star Wars, composta pelos episódios IV, V e VI, narram,


principalmente, as aventuras de Luke Skywalker, um jovem fazendeiro órfão, que
após encontrar o Mestre Jedi Obi-Wan Kenobi, se tornou membro da Aliança
Rebelde e conseguiu destruir a Estrela da Morte, a estação de batalha do
Império Galáctico54. Após receber treinamento Jedi, por indicação do espírito
de Obi-Wan, com o Mestre Yoda, Luke travou, pela primeira vez, uma luta
com ‘sabre de luz’ contra Darth Vader, um cavalheiro Jedi seduzido pelo ‘Lado
Negro’ da ‘Força’, que, após derrotar Luke, revelou que era seu pai55. Yoda,
antes de morrer, confirmou que Darth Vader foi Anakin Skywalker, pai de
Luke. Durante uma missão da Aliança Rebelde para destruir uma nova Estrela
da Morte, Luke abandonou o grupo e se entregou à Vader, por acreditar que,
no pai-vilão ainda existia o bem e que poderia redimi-lo. Ao encontrar o pai,
buscou convencê-lo a abandonar o caminho das trevas, mas Vader rejeitou o
pedido do filho e o levou para o Imperador Palpatine, que tentou, sem sucesso,
corromper Luke, assim como fizera com Anakin. Quando Luke descobriu o
plano de Palpatine para esmagar definitivamente a Aliança Rebelde, tentou
matá-lo, mas foi impedido por Vader. Finalmente, Luke derrotou o pai numa
luta de sabre de luz e se recusou a matá-lo, causando a fúria do Imperador que
o atacou, mas Darth Vader salvou o filho, matando Palpatine, e, redimido,
morreu nos braços do filho. Luke, após fazer um funeral Jedi para o pai, teve
a certeza de ter salvado a alma de Anakin, ao ver o espírito dele junto dos
espíritos de Obi-Wan e Yoda56.
A figura de Darth Vader se transformou numa das mais fortes imagens
do mal em nossa cultura. Ele é um homem mutilado, que vive com o apóio de
um traje mecânico, uma assustadora armadura negra, e com o rosto oculto por
uma máscara negra, que produz a característica respiração mecânica, além de
usar um capacete e uma capa negros. O símbolo de Darth Vader no imaginário
contemporâneo e tão forte, que foi classificado, pela lista da American Film
Institute, como o terceiro maior vilão cinematográfico de todos os tempos57.
Sobre o impacto cultural de sua criação, George Lucas fez a seguinte declaração:
Darth Vader se tornou um símbolo no primeiro filme, o Episódio IV, e esse
símbolo do mal subjugou todas as minhas intenções. Se fosse um filme só, isso
54
Ver o filme Star Wars: Episódio IV – Uma nova esperança. Ver, também, o livro: LUCAS. Star Wars:
Episode IV – A New Hope.
55
Ver o filme Star Wars: Episódio V – O Império contra-ataca. Ver, também, o livro: GLUT. Star Wars:
Episode V – The Empire Strikes Back.
56
Ver o filme Star Wars: Episódio VI – O retorno de Jedi. Ver, também, o livro: KAHN. Star Wars:
Episode VI – Return of Jedi.
57
Darth Vader, nesta lista que escolheu os cinqüenta maiores vilões cinematográficos de todos os
tempos, só perdeu para as personagens Dr. Hannibal Lecter, de Anthony Hopkins, em O silêncio
dos inocentes de Jonathan Demme, e Norman Bates, de Anthony Perkins (1932-1992), em Psicose
de Alfred Hitchcock (1899-1980). A lista completa está disponível em:
http://www.afi.com/tvevents/100years/handv.aspx
236 COMMUNIO • Alex Catharino

não teria acontecido. Ele seria revelado como uma figura patética ao final do
filme. Mas agora, acrescentando os episódios I, II e III, as pessoas começam a
ver a tragédia de Darth Vader, como era minha intenção original58.

George Lucas expõe sua verdadeira intenção sobre a personagem Darth


Vader com as seguintes palavras:
Os filmes foram planejados como um só filme. Ele começa com a tragédia de
Darth Vader. Era para ser um só filme, o Episódio IV. Você não saberia o que viria
depois, nem o que veio antes. Para escrever o roteiro, precisei criar uma história
passada, que dizia quem era cada personagem, de onde vinha. O subtítulo do
filme era A Tragédia de Darth Vader. Começava com esse monstro aparecendo,
empurrando todo mundo, ameaçando, estrangulando pessoas. Na metade do
filme você descobre que o monstro é um homem. É o pai do herói. E, no final do
filme, você descobre que o filho inspira o monstro, ou o pai, a ser o herói do filme
e que ele tem vivido essa vida terrível, preso no traje, porque vendeu sua alma ao
Diabo. Tudo isso deveria ser mais forte do que era, mas acabei dividindo em três
partes. O símbolo de Darth Vader tornou-se tão forte como o símbolo do mal,
que era difícil pensar nele como uma personagem trágica. Foi uma das coisas que
me levou a fazer os três primeiros episódios, para dar uma idéia melhor de toda a
história. Mas agora com a última peça em seu lugar, espero que pensem em tudo
isso como um só filme e não como seis pequenos filmes, mas como um filme longo
sobre a tragédia de Darth Vader, que era a intenção original59.

Ao assistir os filmes na ordem correta, podemos compreender a jornada de


Anakin Skywalker, sua tragédia, ao transformar-se em Darth Vader, e sua redenção,
pela jornada de Luke Skywalker. Anakin era um jovem escravo, misteriosamente
gerado sem a existência de um pai, encontrado pelo Qui-Gon Jinn, um Mestre Jedi,
que, após verificar nele uma presença da Força acima da média, passou a acreditar
que o menino era “o Escolhido” anunciado por uma profecia Jedi. O Conselho Jedi
se recusou, num primeiro momento, a dar treinamento ao jovem, porque Mestre
Yoda sentiu sua vulnerabilidade diante do medo e viu que o futuro de Anakin era
incerto. Após a morte de Qui-Gon num combate, foi decidido que Anakin receberia
treinamento Jedi de Obi-Wan Kenobi60. Anakin, ainda em treinamento, se apaixonou
pela senadora Padmé Amidala, o que era proibido, pois a Ordem Jedi era celibatária.
Contudo, Anakin casou secretamente com a senadora61. O medo de que a esposa
grávida morresse durante o parto, aliado ao orgulho e aos desejos de alcançar mais
poderes, possibilitou ao Chanceler Palpatine, na verdade um Lorde Sith, seduzir
58
Declaração feita no documentário The Chosen One [O Escolhido], de 2005, dirigido por Tippy
Bushkin, que aparece como um dos extras do segundo disco da edição de DVD dupla do filme A
vingança dos Sith.
59
Declaração feita nos comentários de áudio ao filme A vingança dos Sith.
Ver o filme Star Wars: Episódio I – A ameaça fantasma. Ver, também, o livro: BROOKS. Star Wars:
60

Episode I – The Phantom Menace.


Ver o filme Star Wars: Episódio II – Ataque dos clones. Ver, também, o livro: SALVATORE. Star
61

Wars: Episode II – Attack of the Clones.


A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 237

Anakin e o transformar em Darth Vader, o Sith que destruiu a Ordem Jedi e ajudou
Palpatine a implantar o tirânico Império Galáctico. Após uma luta de sabres de luz,
em que foi derrotado por Obi-Wan, Darth Vader ficou mutilado e foi obrigado a viver
dentro do traje mecânico, servindo ao Imperador Palpatine e sofrendo pela morte da
esposa62. Vinte anos após a transformação em Darth Vader, ele, finalmente, matou
Obi-Wan numa luta com sabres de luz, mas não conseguiu impedir que o novo
discípulo do antigo mestre destruísse a Estrela da Morte63. Ao descobrir que o jovem
que destruiu a estação de combate era o filho de Anakin com Padmé, escondido por
Yoda e Obi-Wan, Darth Vader tentou capturar Luke, seduzi-lo para o Lado Negro da
Força, revelando que era seu pai, e, com o apóio dele, tomar o lugar do Imperador
Palpatine64. Percebendo que Luke era forte demais para ser seduzido apenas por ele,
Darth Vader levou o filho para o Imperador, que secretamente desejava colocar
o jovem no lugar do pai. Após ser derrotado por Luke, Darth Vader testemunha
o sofrimento do filho, que é atacado por Palpatine, e resolve salvar o jovem,
voltando a ser Anakin Skywalker e matando o Lorde Sith65.
A saga de Anakin Skywalker é resumida por George Lucas com as seguintes
palavras:
Ao assistir ao filme na ordem correta, a história esclarecerá que Anakin é “o
Escolhido”. Mesmo quando Anakin se transforma em Darth Vader, ele ainda é o
escolhido [...]. A profecia é que Anakin equilibrará a Força e destruirá os Sith. Ele
se torna Darth Vader. Darth Vader se torna o herói. Darth Vader destrói os Sith,
ou seja, ele mesmo e o Imperador. Ele faz isso porque é redimido por seu filho.
Então a profecia é real. Fazendo isso ele se redime, deixa de ser Darth Vader e volta
a ser Anakin66.

O criador dessa saga defende que ela é “a história da redenção de Darth Vader”.
É a jornada de uma pessoa que acreditávamos ser o vilão, mas que na verdade é a
vítima. É uma história “sobre o vilão tentando recuperar sua humanidade”. George
Lucas continua o seu comentário, afirmando que:
Todos imaginavam Darth Vader como um vilão sem coração, que era simplesmente
mau. Mas no fim não é nada disso, ele é, apenas, alguém que perdeu tudo67.

A relação, criada por George Lucas, entre a queda de um herói, que se


torna o vilão, com a implantação de um regime tirânico e sua redenção com o
62
Ver o filme Star Wars: Episódio III – A vingança dos Sith. Ver, também, o livro: STOVER. Star
Wars: Episode III – Revenge of the Sith.
Ver o filme Star Wars: Episódio IV – Uma nova esperança. Ver, também, o livro: LUCAS. Star Wars:
63

Episode IV – A New Hope.


Ver o filme Star Wars: Episódio V – O Império contra-ataca. Ver, também, o livro: GLUT. Star Wars:
64

Episode V – The Empire Strikes Back.


65
Ver o filme Star Wars: Episódio VI – O retorno de Jedi. Ver, também, o livro: KAHN. Star Wars:
Episode VI – Return of Jedi.
66
Declarações feitas no, já citado, documentário The Chosen One.
67
Comentários, também, retirados do documentário The Chosen One.
238 COMMUNIO • Alex Catharino

fim dessa ditadura, não é uma mera figura literária “eucatástrofica”68. Vivemos
num contexto marcado pelo fenômeno que o filósofo Eric Voegelin (1901-1985)
denominou “desculturação”69 e, por influência dessa desordem social, somos,
muitas vezes, levados, de forma inconsciente, a esquecer que a singularidade
da pessoa se manifesta em diferentes campos da ação humana e, como destaca
Russell Kirk, que as desordens institucionais que nos cercam são, na verdade,
reflexo da desordem espiritual dos indivíduos70. Da mesma forma que o mal pode
ser decorrente da ação de um único indivíduo, a redenção poderá ser obra de
um único homem. Devemos sempre ter em mente as palavras de São Paulo, na
Epístola aos Romanos, quando, ao tratar de Adão e de Jesus Cristo, afirma que:
Assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens,
do mesmo modo, da obra de justiça de um só, resultou para todos os homens
justificação que traz a vida. De modo que, como pela desobediência de um só
homem, todos se tornaram pecadores, assim pela obediência de um só, todos se
tornarão justos (Rm 5,18-19)71.

A riqueza simbólica da jornada de Anakin Skywalker / Darth Vader nessa


saga pode servir como um válido meio pedagógico para ilustrar inúmeras reflexões
teológicas e filosóficas, abrangendo diferentes temáticas. Todavia, nos limitaremos
à análise da Teoria Política subjacente ao universo ficcional de Star Wars.

68
O autor da série O Senhor dos Anéis, J. R. R. Tolkien, denominava “eucatástrofe” o ponto,
improvável e ao mesmo tempo verdadeiro, numa narrativa, quando tudo parece perdido e, uma
inesperada virada, garante um final feliz. Tolkien afirma que a eucatástrofe “nega a derrota final
universal, e nessa medida é evangelium, dando um vislumbre fugaz da Alegria, Alegria além das
muralhas do mundo, pungente como o pesar” (TOLKIEN. Sobre histórias de fadas. p. 77).
69
Um dos fenômenos significativos da crise da modernidade é a “desculturação”, fruto das
deformações ideológicas, que, ao distorcerem o entendimento da realidade, alijam a noção de
verdade da esfera política e fazem a prática política parecer sem sentido num mundo tecnocrático
e coletivista, dominado pelo relativismo moral. Na perspectiva voegeliniana a Ciência Política
deve ser a descrição verdadeira da realidade, captando a complexidade das instituições sociais e de
seus símbolos. Opondo-se às ideologias materialistas que, ao negar os aspectos espirituais da ação
humana, a reduzem apenas às relações de poder, Eric Voegelin trata a representação política como algo
inseparável da representação existencial do homem no universo, apontando para uma antropologia
filosófica que exalta a importância da composição entre razão e subjetividade, denominada ‘espírito’
(noûs). Ver: CATHARINO, Alex. “Eric Voegelin (1901-1985)”. In: BARRETO, Vicente (Org.).
Dicionário de Filosofia Política. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.
KIRK, Russell. The Roots of American Order. (Edited with a New Foreword by Forrest McDonald).
70

Wilmington: ISI Books, 4th Edition, 2003. p. 5.


71
Utilizamos aqui a seguinte edição: BÍBLIA DE JERUSALÉM. (Tradução do texto em língua
portuguesa diretamente dos originais). São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional /
Paulus, 1995.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 239

IV - A TEORIA POLÍTICA DE STAR WARS NA JORNADA DE ANAKIN


SKYWALKER / DARTH VADER
Nos seis filmes da saga Star Wars existe como pano de fundo de todos os
acontecimentos uma complexa trama política. Nos episódios I, II e III, vemos
como, gradativamente, as ações de Palpatine vão servir como meio para, de forma
democrática, substituir a República pelo Império. Nos episódios IV, V e VI, temos
por um lado a Aliança Rebelde tentando implantar novamente a República e por
outro lado o Império Galáctico buscando expandir seu poder sobre a sociedade,
ao mesmo tempo, que procura esmagar a oposição. Sobre a política em Star Wars
George Lucas faz o seguinte comentário:
Penso nestes filmes em grupos mais abrangentes. Penso neles como doze horas em
seis partes. Foi um desafio interessante refazer a história de fundo. O Star Wars
original foi criado para ser episódios IV, V e VI. Foi criado para ser algo que você
pega no meio. O que eu mais queria dos temas anteriores é poder mostrar como
o Império foi criado, como uma sociedade passa de democrática a ditatorial e ao
mesmo tempo contrastar com uma história pessoal, sobre como uma pessoa boa
torna-se má72.

No Episódio I, vemos como, num contexto de desentendimento político


e corrupção no Senado, o Senador Palpatine usou a ganância da Federação
de Comércio, manipulando-a para criar um bloqueio ao planeta Naboo que
desencadeou um conflito, para ascender ao cargo de Supremo Chanceler da
República Galáctica73. Devido ao surgimento de grupos separatistas comandados
por seu discípulo Conde Dookan, o Chanceler Palpatine conseguiu, no Episódio
II, a prorrogação de seu mandato e a ampliação de seus poderes, criando, assim,
um exército permanente de clones para a República e iniciando uma guerra civil
contra os exércitos de andróides dos separatistas74. Finalmente, no Episódio III,
Palpatine ampliou mais ainda seus poderes e, ao seduzir Anakin Skywalker para o
Lado Negro da Força, conseguiu destruir a Ordem Jedi e transformar a República
no Império Galáctico, sustentado seu poder no exército de clones e mantendo o
Senado como uma marionete em suas mãos75.
Ao criar Star Wars George Lucas se questionou sobre a forma “como as
democracias se tornam ditaduras”, não na perspectiva de como são derrubadas por
golpes, “mas como a democracia se empresta a um tirano”. Para criar esse pano
de fundo político ele estudou esse problema ao decorrer do processo histórico,
Ver o filme Star Wars: Episódio I – A ameaça fantasma. Ver, também, o livro: BROOKS. Star Wars:
72

Episode I – The Phantom Menace.


73
Ver o filme Star Wars: Episódio II – Ataque dos clones. Ver, também, o livro: SALVATORE. Star
Wars: Episode II – Attack of the Clones.
Ver o filme Star Wars: Episódio III – A vingança dos Sith. Ver, também, o livro: STOVER. Star
74

Wars: Episode III – Revenge of the Sith.


75
Declarações feitas nos comentários de áudio ao filme A vingança dos Sith.
240 COMMUNIO • Alex Catharino

buscando entender como o Senado Romano, após assassinar Júlio César (100-
44 a.C.), entregou o poder para Otávio Augusto (63 a.C.-14 A.D.) ou como
na Revolução Francesa, após a decapitação de Luís XVI (1754-1793), Napoleão
Bonaparte (1769-1821) se corou imperador dos franceses. O cineasta norte-
americano acredita que os riscos de uma democracia entregar os poderes a um
tirano “acontece muito mais do que se imagina”, “tem mais a ver com o precedente
histórico”, e continua afirmando que:
Geralmente, você imagina que um grupo assume o poder. […] Mas o processo
é mais interessante quando o governo é entregue para compensar o fato dos
representantes eleitos não concordarem em nada e serem corruptos. Portanto, para
limpar a bagunça, alguém precisa chegar e consertar tudo76.
Na República Galáctica podemos ver a crença num salvador da ordem pública
no seguinte diálogo entre a Senadora Padmé Amidala e Anakin Skywalker, onde este
último já está influenciado pela visão política autoritária do Chanceler Palpatine:
[Padmé]: Você não gosta mesmo de políticos!
[Anakin]: Gosto de dois ou três. Mas não estou certo sobre um deles. Não acho
que o sistema funcione!
[Padmé]: Como você o faria funcionar?
[Anakin]: Os políticos deveriam sentar, discutir o problema, concluir o que é
melhor para o povo, e agir.
[Padmé]: É o que fazemos! Mas nem sempre as pessoas estão de acordo.
[Anakin]: Então, deviam ser convencidas.
[Padmé]: Por quem?
[Anakin]: Não sei! Alguém.
[Padmé]: Você?
[Anakin]: Claro que não!
[Padmé]: Quem, então?
[Anakin]: Alguém sábio.
[Padmé]: Está me soando como uma ditadura.
[Anakin]: Bem... se é o que funciona...77

A postura de Anakin se assemelha ao que o filósofo Eric Voegelin, ao analisar


a ascensão do nacional-socialismo, denominou de conflito entre a ‘primeira realidade’
e a ‘segunda realidade’, quando, diante da desordem social, os indivíduos tentam
resolver a crise colocando uma pseudo-ordem no lugar da ordem real, substituindo
a realidade por uma falsa imagem da realidade78. O economista austríaco Ludwig
von Mises (1881-1973) explica os fundamentos psicológicos da popularidade das
ditaduras da seguinte forma:
76
Star Wars: Episódio II – Ataque dos clones. A partir de 0:48:25.
77
VOEGELIN, Eric. Hitler e os alemães. (Introdução e edição de texto por Detlev Clemens e
Brendan Purcell; tradução de Elpídio Mário Dantas Fonseca). São Paulo: É Realizações, 2007. pp.
143-148.
78
MISES, Ludwig von. Intervencionismo: Uma análise econômica. (Editado por Bettina Bien
Greaves; tradução e comentários de Donald Stewart Jr.). Rio de Janeiro: IL / EXPED, 1999. p. 146.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 241

A sociedade não é o que o indivíduo gostaria que fosse. [...] O neurótico tenta se
proteger desses desapontamentos sonhando acordado. Sonha com um mundo no
qual sua vontade seja decisiva. [...] Na sua fantasia, é um ditador. [...] Na vida real,
quando fala com os seus conterrâneos, tem que ser mais modesto. Contenta-se
em apoiar a ditadura de alguma outra pessoa. [...] Quem apóia uma ditadura, o
faz por achar que o ditador está fazendo o que, na sua opinião, precisa ser feito79.

Anakin cada vez menos seguia os conselhos de seu amigo Obi-Wan


Kenobi e, ao mesmo tempo, se deixava seduzir pelo Chanceler Palpatine. Uma
das artimanhas do malicioso Lorde Sith foi criar a desconfiança em Anakin,
fazendo-o acreditar que os Jedi, já pressentindo as verdadeiras intenções de
Palpatine, queriam assumir o poder político e que ele era o único defensor do
regime democrático. Um ponto decisivo nesse processo fica evidente no seguinte
diálogo entre os dois:
[Palpatine]: Anakin, você sabe que não posso contar com o Conselho Jedi. Se não
incluíram você na trama deles, logo o farão.
[Anakin]: Eu não entendo!
[Palpatine]: Já deve ter percebido quais são as minhas suspeitas. O Conselho Jedi
quer assumir o controle da República. Eles estão planejando me trair.
[Anakin]: Não acredito que...
[Palpatine]: Anakin use sua percepção! Você sabe, não é?
[Anakin]: Sei que eles não confiam em você.
[Palpatine]: Ou no Senado. Ou na República. Ou na democracia, melhor dizendo.
[Anakin]: Devo admitir que minha confiança neles está meio abalada.
[Palpatine]: Por quê? Pediram algo que o deixou constrangido, não foi? Queriam
que me espionasse, certo?
[Anakin]: Eu não... não sei o que dizer.
[Palpatine]: Tente se lembrar de meus primeiros ensinamentos para você: todos
que adquirem o poder têm medo de perdê-lo. Até mesmo um Jedi80.

O relacionamento entre Palpatine e Anakin se assemelha ao de Mefistófeles


e Fausto, onde o primeiro, num pacto satânico, corrompe o segundo81. Palpatine
é o arquétipo do tentador, que seduz Anakin ao lhe oferecer os poderes para
salvar a esposa da morte e, ao mesmo tempo, restaurar a ordem na sociedade,
que se encontra assolada pela corrupção e por uma guerra civil. Após sucumbir
a tentação de Palpatine, passar para o Lado Negro da Força, se transformar em
Darth Vader, assassinar junto com uma divisão de clones todos no Templo Jedi
79
Star Wars: Episódio III – A vingança dos Sith. A partir de 0:44:00.
80
Dentre as inúmeras narrativas sobre Fausto e Mefistófeles destacamos a peça teatral de Christopher
Marlowe (1563-1593) e o romance de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), que podem ser
encontrados, respectivamente, nas seguintes edições: MARLOWE, Christopher. A história trágica
do Doutor Fausto. (Introdução de Dirceu Villa, tradução de notas de A. de Oliveira Cabral). São
Paulo: Hedra, 2006.; GOETHE, Johann Wofgang von. Fausto: Uma tragédia. (Edição bilíngüe
traduzida por Jenny Klabin Segall). São Paulo: Editora 34, 2004 / 2007. 2v.
81
Declarações feitas nos comentários de áudio ao filme O ataque dos clones.
242 COMMUNIO • Alex Catharino

e ser encarregado por seu novo mestre de eliminar os líderes separatistas, ele se
encontra com Padmé, antes de cumprir a última missão, e tenta justificar seus
atos no seguinte diálogo:
[Padmé]: O que está havendo?
[Vader]: Os Jedi tentaram derrubar a República.
[Padmé]: Não posso acreditar nisso!
[Vader]: Vi o Mestre Windu tentar assassinar o Chanceler.
[Padmé]: Anakin, o que você vai fazer?
[Vader]: Não vou trair a República. Sou leal ao Chanceler. E ao Senado. E a você82.

George Lucas explica esse diálogo entre Vader e Padmé da seguinte forma:
Ninguém que é mau pensa em si mesmo assim. Sempre acha que está fazendo o
bem, mesmo que não esteja. Então é uma questão de como uma pessoa boa acaba
se tornando má83.

As estórias permeadas pela imaginação moral apresentam suas personagens


como criaturas dotadas de livre-arbítrio, logo a escolha entre o bem e o mal é
a decorrência de ações voluntárias. A opção entre fazer o que é certo, mesmo
contrariando a própria vontade e se sacrificando, ou seguir o caminho mais fácil,
tentando manipular a realidade, é o que diferencia uma personagem boa de
uma má. Assim como em O Senhor dos Anéis, em As Crônicas de Nárnia ou em
Harry Potter, em Star Wars verificamos que as personagens não são vitimas das
armadilhas do destino, mas são livres para escolher entre fazer o bem ou o mal.
Sobre esse importante aspecto moral, George Lucas afirma que:
Se você quer um maior poder, deve passar ao lado mais forte, que aparentemente
é o Lado Negro, mas a decisão será sua. Mas essa fome de poder e a necessidade
do poder são para satisfazer à sua ambição de não abdicar das coisas e permitir o
curso natural da vida, que é de que as coisas vêm e vão. O correto é ser capaz de
aceitar as mudanças que acontecem com você, e não querer manter os momentos
congelados no tempo eternamente84.

Outra questão moral importante apresentada em Star Wars é que, tanto


no plano pessoal quanto na esfera política, aquele que opta pelo caminho errado,
busca, para se justificar, corromper, também, outras pessoas. Verificamos isso no
seguinte diálogo:
[Vader]: O que você está fazendo aqui?
[Padmé]: Estava preocupada com você. Obi-Wan me contou coisas terríveis.
[Vader]: Que coisas?
[Padmé]: Disse que você passou para o Lado Negro. Que você... matou crianças.
[Vader]: Ele quer fazer você se voltar contra mim.
[Padmé]: Ele se importa conosco.
[Vader]: Conosco?
82
Star Wars: Episódio III – A vingança dos Sith. A partir de 1:27:56.
83
Declarações feitas no, já citado, documentário The Chosen One.
84
Declarações feitas nos comentários de áudio ao filme O ataque dos clones.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 243

[Padmé]: Ele sabe. Quer ajudar você. Anakin, tudo que eu quero é o seu amor.
[Vader]: O amor não salvará você. Só meus novos poderes podem fazer isso.
[Padmé]: A que preço? Você é uma pessoa boa. Não faça isso!
[Vader]: Não vou perder você como perdi a minha mãe. Estou me tornando mais
poderoso do que qualquer Jedi já sonhou. Faço isso para proteger você.
[Padmé]: Venha embora comigo. Ajude-me a criar nosso filho. Deixe tudo para
trás enquanto pode.
[Vader]: Você não me entende? Nós não temos mais que fugir. Eu trouxe a paz
para a República. Tenho mais poder que o Chanceler. Eu posso derrubá-lo e
nós dois juntos podemos governar a Galáxia! Fazer as coisas como queremos
que sejam!
[Padmé]: Não acredito no que estou ouvindo. Obi-Wan tinha razão. Você
mudou.
[Vader]: Não quero ouvir falar de Obi-Wan. Os Jedi se voltaram contra mim.
Não faça o mesmo.
[Padmé]: Não reconheço mais você. Anakin, você está partindo meu coração.
Está indo por um caminho que não posso trilhar.
[Vader]: Por causa de Obi-Wan?
[Padmé]: Por causa do que você fez. O que planeja fazer. Pare agora. Volte a ser
quem era! Eu amo você.
[Vader]: Mentirosa!85.

A já citada definição de Star Wars como uma Space Opera nos permite
entender o porquê da repetição de certos temas. Sobre esse assunto, explica
George Lucas:
Os filmes são compostos como se fosse música, onde vários temas acontecem. Os
temas se repetem com orquestrações diferentes. [...] É tudo orquestrado como uma
obra musical, onde você tem um tema melódico que é usado continuamente86.

Nesse sentido, podemos ver que a tentativa de Darth Vader corromper


Padmé, se repete, quando ele tenta fazer o mesmo com Luke Skywalker no
seguinte diálogo:
[Vader]: Você não tem saída. Não me obrigue a destruí-lo. Luke você não percebe
a sua importância. Você apenas começou a descobrir os seus poderes. Junte-se a
mim e eu terminarei o seu treinamento. Com nossas forças podemos terminar esse
conflito nefasto e pôr ordem na Galáxia.
[Luke]: Nunca irei me juntar a você!
[Vader]: Se ao menos você conhecesse o poder do Lado Negro. Obi-Wan nunca
contou o que aconteceu com o seu pai?
[Luke]: Ele me contou o suficiente! Ele disse que você o matou.
[Vader]: Não. Eu sou o seu pai.
[Luke]: Não. Não. Não é verdade. Isso é impossível!
[Vader]: Analise seus sentimentos. Você sabe que é verdade.
[Luke]: Não! Não!
85
Star Wars: Episódio III – A vingança dos Sith. A partir de 1:43:48.
86
Declarações feitas nos comentários de áudio ao filme A ameaça fantasma.
244 COMMUNIO • Alex Catharino

[Vader]: Luke, você pode destruir o Imperador. Ele já previu isso. É o seu destino.
Junte-se a mim. Junto poderemos governar a Galáxia como pai e filho. Venha
comigo. É sua única saída87.

Podemos nos questionar sobre a aparente mentira contada por Obi-Wan


Kenobi para Luke acerca do que aconteceu com seu pai88. Mas, como explicou
o Mestre Yoda, antes de morrer, o que, de fato, Obi-Wan fez foi tentar preservar
Luke desse pesado fardo, antes que ele estivesse preparado para carregá-lo, o que
pode ser visto no seguinte diálogo entre Luke e o espírito de Obi-Wan:
[Luke]: Por que não me contou? Contou-me que Vader traiu e matou o meu pai.
[Obi-Wan]: Seu pai foi seduzido pelo Lado Negro da Força. Deixou de ser Anakin
Skywalker e tornou-se Darth Vader. Quando isso aconteceu, o bom homem que
era seu pai foi destruído. Então e que lhe contei era verdade de certo ponto de
vista89.

Por outro lado, percebemos que a utilização da mentira e da malícia como


meios de persuasão e a defesa do relativismo moral são instrumentos empregados
constantemente pelos Sith. Vejamos um exemplo dessa postura no seguinte
diálogo entre Palpatine e Anakin:
[Palpatine]: Tente se lembrar de meus primeiros ensinamentos para você:
todos que adquirem o poder têm medo de perdê-lo. Até mesmo um Jedi.
[Anakin]: Um Jedi usa seus poderes para o bem.
[Palpatine]: Bem é um ponto de vista, Anakin. Os Sith e os Jedi são parecidos
em quase tudo... incluindo a busca por mais poder.
[Anakin]: Os Sith contam com uma paixão pela força e só pensam em si
próprios.
[Palpatine]: E os Jedi não?
[Anakin]: Os Jedi são altruístas, eles só se importam com os outros.
[Palpatine]: Já ouviu falar na tragédia de Darth Plagueis, o sábio?
[Anakin]: Não.
[Palpatine]: Imaginei que não. Um Jedi não contaria essa história para você. É
uma lenda Sith. Darth Plagueis era um Lorde das Trevas dos Sith, tão poderoso
e tão sábio que podia usar a Força para influenciar os midichlorians a criar
vida. Ele tinha um tal conhecimento do Lado Negro que podia até manter
vivos aqueles com quem se importava.
[Anakin]: Ele podia mesmo salvar as pessoas da morte?
[Palpatine]: O Lado Negro da Força é um caminho para muitas habilidades
que alguns não consideram como naturais.
[Anakin]: O que aconteceu com ele
[Palpatine]: Ele se tornou tão poderoso que a única coisa que tinha medo era
de perder seu poder... o que, finalmente, acabou acontecendo. Infelizmente,
ele ensinou ao seu aprendiz tudo o que sabia. Então o aprendiz o matou
87
Star Wars: Episódio V – O Império contra-ataca. A partir de 1:50:25.
88
Star Wars: Episódio IV – Uma nova esperança. A partir de 0:32:36.
89
Star Wars: Episódio VI – O retorno de Jedi. A partir de 0:45:58.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 245

enquanto ele dormia. É uma ironia. Ele podia salvar os outros da morte, mas
não a si próprio.
[Anakin]: É possível aprender a ter esse poder?
[Palpatine]: Não de um Jedi90.

Palpatine recorre aqui ao que Russell Kirk, seguindo T. S. Eliot, classificou


como “imaginação diabólica”, que por não aceitar nenhum critério objetivo de
diferenciação entre o bem e o mal, tende a se deleitar com o que é “perverso e
sub-humano”91. O relativismo moral, também, é uma das fontes do totalitarismo,
como destacou o papa João Paulo II na seguinte passagem da encíclica Centesimus
Annus (1ª de maio de 1991):
Se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a ação política, então as
idéias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder.
Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto
ou dissimulado, como a história demonstra. [...] Num mundo sem verdade,
a liberdade perde a sua consistência, e o homem acaba exposto à violência das
paixões e a condicionalismos visíveis ou ocultos (CA §46)92.

Os riscos de nossas democracias se transformarem em ditaduras são maiores


do que uma parcela significativa das pessoas imagina. Em 1835, no segundo livros
da obra De la démocratie en Amérique [A democracia na América], o sociólogo e
historiador católico francês Alexis de Tocqueville (1806-1859) nos alertou para
esse problema com as seguintes palavras:
Procuro descobrir sob que traços novos o despotismo poderia ser produzido
no mundo: vejo uma multidão inumerável de homens semelhantes e iguais,
que sem descanso se voltam sobre si mesmo à procura de pequenos e vulgares
prazeres, com os quais enchem a alma. Cada um deles, afastado dos demais,
é como um estranho ao destino de todos os outros [...]. Acima destes, eleva-
se um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de garantir o seu
prazer e velar sobre sua sorte. É absoluto, minucioso, regular, previdente e
brando. [...] Agrada-lhe que os cidadãos se rejubilem, desde que não pensem
senão em se rejubilar. Trabalha de bom grado para sua felicidade, mas deseja
ser o seu único agente e árbitro exclusivo [...]. É assim que, todos os dias,
torna menos útil e mais raro o emprego do livre arbítrio; é assim que encerra
a ação da vontade num pequeno espaço e, pouco a pouco, tira cada cidadão
até o emprego de si mesmo. A igualdade preparou os homens para todas
essas coisas, dispondo-os a sofrer e muitas vezes até a considera-las como
um benefício. [...] Nesse sistema, os cidadãos por um momento abandonam
a dependência, para indicar o seu senhor, e depois voltam a ela. Hoje em
dia, há muitas pessoas que se acomodam muito facilmente a essa espécie
de compromisso entre o despotismo administrativo e a soberania do povo,
90
Star Wars: Episódio III – A vingança dos Sith. A partir de 0:45:15.
91
KIRK. “A imaginação moral”. p. 105.
JOÃO PAULO II, Papa. Carta encíclica Centesimus Annus: Sobre a questão social no centenário da
92

Rerum Novarum. São Paulo: Paulinas, 3ª edição, 1991.


246 COMMUNIO • Alex Catharino

e que pensam ter garantido suficientemente a liberdade dos indivíduos,


quando é ao poder nacional que a entregam93.

O grande risco que nossas sociedades democráticas enfrentam, num contexto


cultural marcado pelo relativismo e pelo hedonismo, é o vivermos o que G. K.
Chesterton denominou de “padronização que nivela por baixo”94. A ‘desordem normativa’
das modernas sociedades democráticas, como nos alertou Russell Kirk, nos faz sucumbir
“à tirania da padronização sem padrões”95. Vivemos hoje num mundo, que pela ausência
de normas objetivas, é marcado por “uma visão desumana da vida”, que fundamenta
“uma ordem social desumana”96. Darth Vader pode ser visto como uma alegoria do
homem moderno, que vendeu sua alma ao diabo e se tornou parte do sistema, não
desenvolvendo a própria humanidade. Como destacou Joseph Campbell, Darth Vader
é um burocrata que “vive não nos seus próprios termos, mas nos termos de um sistema
imposto”97.
Anakin Skywalker se deixou seduzir pelas mentiras de Palpatine, aceitando
a idéia relativista de que não existe a verdade e o bem objetivos. Ao se tornar Darth
Vader, ele se assemelhou ao homem marcado pelo pecado, que tenta levar outras
pessoas para o mesmo caminho errado que está trilhando98. Somente, por ainda existir
uma centelha do bem em sua alma é que ele pode ser redimido pelo sacrifício de amor
do filho, se libertando do mal99. Tal redenção foi possível porque Luke Skywalker não
se deixou seduzir pelas falsas promessas de poder, feitas por Darth Vader100 ou pelo
Imperador Palpatine101.
93
TOCQUEVILLE, Alexis Charles Henri Maurice Clérel de. A democracia na América. (Prefácio de
Antônio Paim; tradução e notas de Neil Ribeiro da Silva). Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1987.
Livro II, Quarta Parte, Capítulo VI, pp. 531.
94
BOYD, C.S.B., Ian. “Chesterton e a padronização do mundo moderno: Estratégias para a
evangelização da cultura”. (Tradução de Márcia Xavier de Brito). In: COMMUNIO: Revista
Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVII, Número 1, (Edição 97), janeiro / março 2008:
203-220. p. 210.
95
KIRK, Russell. “A arte normativa e os vícios modernos”. p. 1005.
96
Idem. Ibidem. p. 995.
97
CAMPBELL & MOYERS. O poder do mito. p. 153.
98
Sobre a temática da proliferação do pecado o Catecismo da Igreja Católica faz a seguinte afirmação:
“O pecado cria uma propensão pelo pecado; gera o vício pela repetição dos mesmos atos. Disso resultam
inclinações perversas que obscurecem a consciência e corrompem a avaliação concreta do bem e do mal.
Assim, o pecado tende a reproduzir-se e a reforçar-se, mas não consegue destruir o senso moral até a raiz”
(§1865). Utilizamos aqui, a seguinte edição brasileira: Catecismo da Igreja Católica. (Edição Típica
Vaticana). São Paulo: Loyola, 2000.
99
Ver o filme Star Wars: Episódio VI – O retorno de Jedi. Ver, também, o livro: KAHN. Star Wars:
Episode VI – Return of Jedi.
Ver o filme Star Wars: Episódio V – O Império contra-ataca. Ver, também, o livro: GLUT. Star
100

Wars: Episode V – The Empire Strikes Back.


Ver o filme Star Wars: Episódio VI – O retorno de Jedi. Ver, também, o livro: KAHN. Star Wars:
101

Episode VI – Return of Jedi.


A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 247

O tentador costuma a utilizar a oferta de poder político como meio de


corromper a alma do homem, lembremos que, de acordo com as narrativas de
São Mateus (Mt 4,8-9) e de São Lucas (Lc 4,5-7), o próprio Jesus Cristo recebeu
essa proposta de Satanás. Uma bela alegoria sobre os riscos de perder a própria
alma em troca do poder, se encontra na peça Murder in the Cathedral [Assassinato
na Catedral] de T. S. Eliot, que narra de forma poética a morte de Santo Thomas
Becket (1118-1170), quando o bispo recusa trair a fé e se reconciliar com o
despótico rei Henry II (1133-1189) para salvar a própria vida102. Vale lembrar
aqui do conselho do historiador católico inglês John Emerich Edward Dalberg-
Acton (1834-1902), Lorde Acton, que, numa carta, de 5 de abril de 1887, para o
bispo anglicano Mandell Creighton (1843-1901), afirma que:
A responsabilidade histórica compensa a carência de responsabilidade jurídica. O
poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Grandes
homens são quase sempre os homens maus, mesmo quando exercem influência e
não autoridade, e, ainda mais, quando se acrescenta a tendência ou a certeza de
corrupção pela autoridade103.

Entretanto, na busca pelo poder, existe uma importante diferença entre Palpatine
e Anakin. Todas as tramas do primeiro tinham como finalidade alcançar o poder
absoluto. O segundo buscava o poder como um meio de salvar a vida da pessoa amada
e, ao mesmo tempo, trazer ordem à sociedade, implantando a paz e a justiça. Em termos
morais a finalidade dos atos de Palpatine era intrinsecamente má, já com Anakin o
problema reside nos meios errados utilizados na busca de fins corretos. Anakin se tornou
uma vítima dos planos de Palpatine porque tentou, por seus próprios meios, solucionar
os problemas da realidade que o cercava. A tragédia de Anakin Skywalker / Darth Vader
se assemelha ao drama da mente moderna indisciplinada, que, nas palavras de Russell
Kirk, “imaginando perseguir fatos, muitas vezes segue uma vela de defunto até a beira do
abismo – e, às vezes, por sobre essa beira”. Para Kirk:
Se o homem depender apenas de seus poderes racionais privados, ele perderá a sua
fé – e talvez o mundo, também, arriscando a sua própria natureza num jogo de
xadrez contra o Diabo. Mas se o homem se fortifica com disciplinas normativas, se
vale da imaginação e das lições do passado, e por isso é capaz de confrontar mesmo
um adversário diabólico104.

102
“O poder temporal de melhorar o mundo, / Manter a ordem, como o mundo a entende.. / Aqueles
que põem fé na lei do mundo / Não controlada pela lei de Deus, / Em sua altiva ignorância só provocam
desordem, / Tornando-a mais rápida, procriam doenças fatais, / Degradam aquilo que exaltam.
Compartilhar o poder com o Rei... / Eu era o Rei, era seu braço, sua melhor razão. / Mas o que já foi
exaltação / Seria agora degradação apenas”. Ver: ELIOT, T. S. Assassínio na Catedral. In: T. S. Eliot:
Obra Completa – Volume II: Teatro. (Edição bilíngüe com texto original em inglês e tradução para o
português de Ivo Barroso). São Paulo; Arx, 2004. p. 35.
103
ACTON, John Emerich Edward Dalberg-. “Acton-Creighton Correspondence”. In: Selected
Writings of Lord Acton – Volume II: Essays in the Study and Writing of History. (Edited by J. Rufus
Fears). Indianapolis: Liberty Classics, 1986. p. 383.
104
KIRK. “A arte normativa e os vícios modernos”. p. 1011.
248 COMMUNIO • Alex Catharino

De certa forma, essa é a principal diferença entre Anakin e Luke. O pai,


por uma boa causa, tentou depender apenas de suas capacidades, voltou-se contra
os amigos, e adotou meios reprováveis, que o levaram a se aliar ao que prometeu
combater. O filho na luta contra o mal se voltou para a tradição, ao seguir os
ensinamentos dos mestres Obi-Wan Kenobi e Yoda.
Um último tema, talvez o mais importante dentre todos os abordados pela
Filosofia Política, deve ser analisado na saga Star Wars, trata-se do conceito de
Ordem. Este foi o tema central do pensamento filosófico de Eric Voegelin, além
de permear uma parcela significativa dos escritos de Russell Kirk e ocupar um
lugar importante na obra do filósofo e economista austríaco Friedrich August von
Hayek (1899-1992).
A noção de Ordem é vista por Hayek como “um conceito indispensável ao
exame de todos os fenômenos complexos”105. Seguindo os ensinamentos de Kirk,
podemos afirmar que uma sociedade sem princípios é uma sociedade incivilizada106.
Kirk demonstra que todas as sociedade são compostas pelos seguintes subsistemas,
autônomos e interdependentes, que fornecem os princípios da vida social:
1º) o Sistema Moral, que, fundado na religião, garante uma correta definição de
homem, reconhecendo sua dignidade, apontando os direitos e deveres inerentes à
natureza humana, e demonstrando a imperfectibilidade dos projetos humanos107;
2º) o Sistema Político, que trata das relações públicas dos cidadãos entre si e com
o Estado, visto como autoridade legítima por ser o representante dos valores da
sociedade e o garantidor da ordem108;
3º) o Sistema Econômico, que abrange as relações privadas de produção e troca entre
indivíduos, além do papel do governo como colaborador do desenvolvimento
material da sociedade, enquanto árbitro de conflitos em potencial109.

A boa sociedade, segundo Kirk, deve ter suas bases nos princípios de
Ordem, Liberdade e Justiça110. A ordem, na perspectiva kirkeana, é a primeira
necessidade da alma e da sociedade111, pois a condição humana seria insuportável
se não houvesse a percepção de uma harmonia na existência112. Kirk afirma que:
A ordem, no campo da moral, é a concretização de um corpo de normas
transcendentes – de fato uma hierarquia de normas ou padrões – que conferem
105
HAYEK, Friedrich August von. Direito, Legislação e Liberdade: Uma nova formulação dos princípios
liberais de justiça e economia política – Volume I: Normas e Ordem. (Apresentação e supervisão da
tradução por Henry Maksoud; tradução de Anna Maria Copovilla, José Ítalo Stelle, Manuel Paulo
Ferreira e Maria Luiza X. de A. Borges). São Paulo: Visão, 1985. p. 33.
KIRK, Russell. The American Cause. (Edited with a New Introduction by Gleaves Whitney).
106

Wilmington: ISI Books, 3rd Edition, 2002. p. 11.


107
Idem. Ibidem. pp. 17-34.
108
Idem. Ibidem. pp. 47-66.
109
Idem. Ibidem. pp. 89-107.
110
KIRK. The Roots of American Order. p. 6; KIRK. The American Cause. p. 50.
111
Idem. Ibidem. p. 6.
112
KIRK. The Roots of American Order. p. 3.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 249

propósito à existência e motivam a conduta. A ordem, na sociedade, é o arranjo


harmonioso de classes e funções que preservam a justiça, obtém o consentimento
voluntário à lei e assegura que todos, juntos, estaremos a salvo. Embora não possa
haver liberdade sem ordem, num certo sentido, há sempre um conflito entre os
clamores da ordem e os da liberdade. Muitas vezes expressamos esse conflito como
a competição entre o desejo de liberdade e o desejo de segurança113.

O conceito de Ordem, para Kirk, está intimamente ligado à tradição


histórica da sociedade e sua relação com a ordem espiritual da pessoa. Essa
concepção kirkeana, em muitos aspectos, se assemelha à visão ontológica de
Voegelin, para o qual:
Ordem é a estrutura da realidade como experimentada pelo homem, bem como
a sintonia entre o homem e uma ordem não fabricada por ele, isto é, a ordem
cósmica114.

Na perspectiva voegeliniana “a realidade não é um sistema”, logo, quando “o


sujeito constrói um sistema, a falsificação da realidade” se torna inevitável115. Devido
ao fato da sociedade ser “iluminada por um complexo simbolismo, com vários graus de
compactação e diferenciação”, que é parte integrante da realidade, as análises da Ciência
Política devem elaborar seus conceitos “a partir do rico conjunto de auto-representações
da sociedade”116. Com base nesses pressupostos teóricos Voegelin afirma que:
A sociedade política pode dissolver-se não apenas pela desintegração das
crenças que fazem dela uma unidade atuante na história, mas também
pode ser destruída pela dispersão de seus membros de tal maneira que
a comunicação entre eles se torne fisicamente impossível ou, mais
radicalmente, por sua eliminação física; pode igualmente, sofrer danos
sérios, destruição parcial da tradição ou paralisia prolongada mediante o
extremismo ou opressão dos membros ativos que constituem as minorias
políticas e intelectuais que dirigem a sociedade 117.

O pensamento hayekiano faz uma importante distinção entre dois tipos


distintos e conflitantes de ordem social, a saber:
1º) a Ordem Espontânea, denominada por Hayek de Kosmos, que é uma ordem
endógena, não criada de forma deliberada e resultante da evolução social, sendo a
ordem correta da sociedade118;
113
KIRK, Russell. “The Tension of Order and Freedom in the University”. In: Redeeming the Time.
(Edited with a Introduction by Jeffrey O. Nelson). Wilmington: ISI Books, 1996. p. 33.
114
VOEGELIN, Eric. Reflexões autobiográficas. (Introdução e edição de texto por Ellis Sandoz;
tradução de Maria Inês de Carvalho; notas de Martim Vasques da Cunha). São Paulo: É Realizações,
2007. p. 117.
115
Idem. Ibidem. p. 119.
116
VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. (Apresentação de José Pedro Galvão de Sousa;
tradução de José Viegas Filho). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2ª edição, 1982. p. 33.
117
Idem. Ibidem. pp. 35-36.
118
HAYEK. Op. cit. p. 38.
250 COMMUNIO • Alex Catharino

2º) a Ordem Dirigida, denominada por Hayek de Taxis, que é uma ordem exógena
ou ordenação construída pela vontade humana, sendo uma ordem artificial119.

Unindo os ensinamentos desses três teóricos, podemos concluir que, assim


como a tentativa de limitar a compreensão da complexidade da realidade num
modelo intelectual é um erro, a criação de uma ordem política a partir de alguma
teoria ou ideologia é uma perversão. No caso específico de Star Wars, podemos
afirmar que a ordem do Império Galáctico é uma ordenação perversa e opressiva
criada pelas manipulações políticas de Palpatine, sendo mantida pelo controle
dos burocratas e pela violência dos militares, além de refletir as desordens da
alma de Anakin Skywalker / Darth Vader. O modelo de ordem representado
pelo Império Galáctico, apesar de ser artificial, tenta obter o monopólio sobre a
verdade da sociedade, entrando, assim, num conflito existencial com a maioria dos
indivíduos, que, ainda, são apegados à antiga ordem democrática da República
Galáctica. Esse modelo hegemônico de Império se assemelha às experiências reais
dos impérios antigos do oriente próximo e do extremo oriente, onde, segundo
Voegelin, “aqueles que estão do lado da ordem representam a verdade, enquanto seus
inimigos representam a desordem e a mentira”120.
Os maiores problemas da República Galáctica eram a falta de entendimento
entre os representantes e a corrupção dos políticos e burocratas, entretanto, havia,
nesse regime, a possibilidade do livre debate em busca de entendimento. Com a
promessa falaciosa de solucionar os problemas da sociedade, restaurando a paz e a
justiça, Palpatine conseguiu criar uma nova ordem política autoritária e pacifica.
Todavia, sob o domínio do Império Galáctico, toda possibilidade de oposição
deveria ser eliminada, o que acabou gerando um novo conflito. Acreditando que o
poder poderia ser mantido pelo medo da Estrela da Morte, o Imperador Palpatine
dissolveu o Senado, último resquício da antiga ordem121, e planejou destruir a
Aliança Rebelde, principal foco de resistência ao seu regime ditatorial122. Mas, toda
a luta política dos rebeldes só teve um desfecho positivo, conseguindo restaurar
a correta ordem da sociedade, porque a ordem da alma de Anakin Skywalker foi
restaurada. Como nos lembra Russell Kirk:
Uma existência desordenada é uma existência confusa e miserável. Se a sociedade
recair numa desordem geral, muitos de seus membros deixarão de existir. E, se os
membros de uma sociedade são desordenados em espírito, a ordem exterior da
comunidade não pode perdurar123.

119
Idem. Ibidem. p. 38.
120
VOEGELIN. A nova ciência da política. p. 50.
Ver o filme Star Wars: Episódio IV – Uma nova esperança. Ver, também, o livro: LUCAS. Star Wars:
121

Episode IV – A New Hope.


122
Ver o filme Star Wars: Episódio VI – O retorno de Jedi. Ver, também, o livro: KAHN. Star Wars:
Episode VI – Return of Jedi.
123
KIRK. The Roots of American Order. p. 5.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 251

V - CONCLUSÃO
O projeto original da revista Communio, elaborado por Hans Urs von
Balthasar (1905-1988), consiste em fazer ver como a fé católica “encarnou,
desde sempre, em fenômenos culturais”, discernindo o que há de cristão, mesmo
que implícito, “nas realidade culturais que vivemos”124. Nesse sentido, as obras de
fantasia mitopoética, como é o caso de Star Wars, podem desempenhar, num
ambiente cultural marcado pela ‘degradação normativa’ ou ‘desculturação’, uma
importante função catequética ao ressaltar valores morais, que se apresentados
de outra forma seriam rechaçados pela dominante mentalidade relativista e
hedonista. A imaginação moral veiculada pela série Star Wars pode ser um valioso
instrumento da nova evangelização, fornecendo alegorias capazes de colaborar na
formação integral da pessoa.
A saga Star Wars, ao longo dos seis filmes da série, ressalta alguns
ensinamentos importantes, que tentaremos resumir agora. A primeira lição é
que, apesar de muitas vezes estar oculto, a existência do mal é real e ele age no
mundo. Um segundo ponto a ser destacado são os riscos da corrupção pelo poder,
principalmente o poder político absoluto. Todavia, a primeira corrupção é a da
alma. Podemos nos corromper por boas causas. A corrupção da alma transforma
a pessoa num ser desorientado que é levado a lutar, às vezes inconscientemente,
contra o que pretendia defender, se voltando contra os verdadeiros valores da
Tradição. Uma alma desorientada tenta corromper outras pessoas, usando a
violência ou a malícia para corrompê-los. Outro ensinamento de Star Wars é que
o mal deve ser combatido com os valores e meios adequados, mas, sem nunca
se perder a dimensão do princípio da verdade e da caridade, pois, o que está em
jogo, nessa luta, é a salvação da alma do homem decaído.
Entretanto, da mesma forma que o papel pedagógico da fantasia
mitopoética não deve ser subvalorizado, não seria correto sobrevalorizar essas
narrativas ficcionais, buscando mensagens subliminares além das alegorias
apresentadas explicitamente. No caso específico de Star Wars, o próprio George
Lucas fez a seguinte advertência:
Outro aspecto destes filmes, que às vezes é esquecido, é que são vagamente frívolos,
já que não se levam muito a sério. Eles tentam ser muito realistas e tudo mais, mas
o objetivo é ter uma aventura hilariante e uma boa diversão. Às vezes as pessoas
tentam ver mais do que está neles ou descartá-los como sem importância, mas a
realidade está entre um extremo e o outro125.

Acima do importante arcabouço de imaginação moral existente nas obras de


fantasia mitopoética, como Star Wars, devemos sempre ter em mente que a principal
124
HENRICI, S.J., Peter. “Hans Urs von Balthasar e a Communio”. In: COMMUNIO: Revista
Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVII, Número 4, (Edição 100), outubro / dezembro
2008: 1081-1089. p. 1085.
125
Declaração feita nos comentários de áudio ao filme O retorno de Jedi.
252 COMMUNIO • Alex Catharino

função dessas narrativas é o entretenimento. O contato com essas estórias aumenta


o sentimento de alegria na pessoa que as lê ou assiste, e como, sabiamente, afirmou
G. K. Chesterton: “a alegria, que foi a pequena propaganda do pagão, é o gigantesco
segredo do cristão”126.

Alex Catharino cursou o bacharelado em História na Universidade Federal do Rio de


Janeiro (UFRJ) e fez cursos nas áreas de História, Filosofia, Teologia, Economia e Ciência
Política em diferentes instituições de ensino superior no Brasil, EUA, Portugal, Argentina,
Colômbia e Uruguai. Foi pesquisador do Laboratório de História Antiga da UFRJ, bolsista
do CNPq e do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), Visiting Fellow
da Atlas Economic Research Foundation, na Virginia, nos EUA e pesquisador do The Russell
Kirk Center, em Michigan, nos EUA. É co-autor dos livros Ensaios Sobre Liberdade e
Prosperidade (UNA, 2001) e Dicionário de Filosofia Política (UNISINOS, 2009), além
de ter publicado diversos artigos sobre Filosofia e História em revistas acadêmicas. Atualmente
é o Vice-Presidente Executivo do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista
(CIEEP), International Affiliate do Acton Institute for the Study of Religion and Liberty nos
EUA, Corresponding Fellow do Tocqueville-Acton: Centro Studi e Ricerche na Itália, Membro
do Conselho Editorial da The Chesterton Review do The Chesterton Institute for Faith and
Culture na Seton Hall University nos EUA e Editor Assistente de COMMUNIO: Revista
Internacional de Teologia e Cultura.

126
CHESTERTON, G. K. “A autoridade e o aventureiro”. In: Ortodoxia. p. 204.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 253
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 253-271

HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA


LIBERTA O DISCURSO*
Isabelle Rak

O quê explicaria o sucesso fenomenal da série de romances Harry Potter


de Joanne Kathleen Rowling, que poderia ter ficado, como tantas
outras, limitada às prateleiras “infantis” de nossas livrarias e bibliotecas,
com toda a condescendência que tal classificação inspira no leitor “adulto”,
sério e culto? Um romance fantástico a mais? A vida (idealizada) de um
colégio inglês um tanto peculiar, de onde a tecnologia moderna foi banida?
Ou, paradoxalmente, a reabilitação, sob a cobertura de magia, das ciências
e de sua prática (Harry Potter é particularmente apreciado pelos cientistas)?
A longa expectativa pela solução do enredo? A extraordinária presença das
personagens principais?
E se o entusiasmo em torno de Harry Potter viesse de sua insistência
em certos temas “ausentes” de nossas sociedades contemporâneas: o pai, o
mal e a morte? Convenhamos: nossa época discorre abundantemente sobre
estas questões, mas, para além dos “novos pais”, dos horrores passados e
presentes que a atualidade nos fornece em abundância, do matraquear
midiático sobre a eutanásia, somos pouco incitados a fazer uma reflexão,
por mais elementar que seja, sobre estes “ausentes”, salvo ao ser acusados
de restaurar a ordem patriarcal ou a ordem moral, ou o pesar cristão dos
séculos passados. Ora, graças à magia, cujo aspecto “maravilhoso” permite
contornar certas censuras, estas realidades fundamentais da vida humana
são abordadas com força e constância no conjunto da obra. Certamente,
o método não é novo: J. R. R. Tolkien (1892-1973) e C. S. Lewis (1898-
1963) se deram eles mesmos, também, tal liberdade. Todavia, o universo de
J. K. Rowling não é verdadeiramente um outro mundo criado com todas
as letras: a narrativa está inserida numa época  a nossa , num país, e o
uso abundante de criaturas mitológicas é constantemente coordenado com
a dramaticidade de uma narrativa em que a magia, no fim das contas, tem
pouca importância.

*
Artigo publicado originalmente em Revue Catholique Internationale: Communio, Tome XXXIII,
6, novembre-décembre 2008: 37-54. Texto traduzido, do original em francês para o português, por
Maria Francisca Alves de Souza.
254 COMMUNIO • Isabelle Rak

I - AS FIGURAS DESPEDAÇADAS DO PAI: A AUSÊNCIA


Harry Potter, órfão, encontra-se abundantemente dotado, ao longo dos
sete livros da série, de uma galeria de pais substitutos1 na qual quase todas as
tipologias (exceto, curiosamente, a do “papai protetor”) estão representadas. Um
primeiro grupo de figuras pertence à categoria da paternidade ausente. O tio de
Harry, Válter Dursley, é, por excelência, apesar de seus acessos de cólera e de auto-
satisfação, a caricatura do pai demissionário, por sua recusa tanto em cuidar do
sobrinho (a quem tudo, ou quase tudo, é proibido) ao passo que, ao educar seu
filho biológico, Duda, tudo é permitido. No sexto livro da série, Harry Potter e o
enigma do Príncipe, esta renúncia total à função paterna é evocada, sem rodeios,
por Alvo Dumbledore, quando se dirige aos tios Valter e Petúnia com as seguintes
palavras:
Os senhores não fizeram o que pedi. Nunca trataram Harry como um filho. Nas
suas mãos, ele só conheceu o descaso e muitas vezes a crueldade. O máximo que se
pode dizer a seu favor é que ele escapou do enorme dano que os senhores causaram
a esse pobre menino [Duda] sentado entre os dois2.

Não se poderia ser mais categórico do que isso.


Além da figura anti-ética de Válter Dursley, um outro pai ausente é
representado por Tiago Potter. Ausência não desejada, trágica e irremediável, pai
morto sem que seu filho tenha podido realmente conhecê-lo, pai inescrutável,
idealizado ao extremo por Harry que se identifica mais facilmente, visto que,
fisicamente, se parece com ele. Pelo vazio que deixou na existência de seu filho,
Tiago Potter ensina-lhe, ainda que involuntariamente, a viver com a falta. Frente a
seu primo Duda que tudo tem, Harry deve viver com este desejo jamais satisfeito
de conhecê-lo e imitá-lo. Contudo, mesmo esta figura exemplar da ausência se
despedaça: Harry descobre, durante seu quinto ano na escola de Hogwarts, que seu
pai adolescente podia mostrar-se odioso3; ele tem que viver, então, um outro luto.

II - O PAI AMIGO E CONFIDENTE


Um segundo grupo representa uma paternidade que poderíamos qualificar
de igualitária: o pai é o amigo, o confidente e o companheiro de aventura. É o
caso de Rúbeo Hagrid, com o qual Harry e seus amigos mantêm um vínculo
de amizade muito forte, mas que se funda, pelo menos nos primeiros volumes,
1
SAMJDA, Isabelle. Harry Potter, les raisons d’un succès, Paris: PUF, 2001. pp. 84-95.
2
ROWLING, J. K. Harry Potter et le prince de Sang-Mêlé. Paris: Gallimard, 2005. p. 65. [N. do
E.: ROWLING, J. K. Harry Potter e o enigma do Príncipe. (Tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 2005. p. 47].
3
ROWLING, J. K. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. Paris: Gallimard, 2003. [N. do E.: ROWLING,
J. K. Harry Potter e a Ordem da Fênix. (Tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro: Editora Rocco,
2003. pp. 522-527].
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 255

no caráter por sua vez infantil do Guardião das Chaves e das Terras de
Hogwarts, especialmente quando se trata de recolher ou cuidar das criaturas
muito perigosas ou impossíveis de domesticar. Observamos que os jovens
heróis apóiam Hagrid em suas provações (a condenação do hipogrifo Bicuço,
em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban4, e o enterro da aranha gigante
Aragogue, em Harry Potter e o enigma do Príncipe5), desempenhando em
relação a ele um papel consolador em que a relação paterna é praticamente
invertida. Trata-se ali de uma bela relação de troca e de afeição mútuas, mas
onde o papel protetor e pedagógico do pai aparece distribuído igualmente
entre Hagrid e seus jovens alunos.
Ainda que disponha de uma personalidade muito diferente, Sirius
Black pertence à mesma categoria. Como Hagrid, ele pouco se preocupa com
o perigo, e tem gosto pelo risco levado até à inconsciência, a ponto de se
fazer identificar pelos Malfoy quando, sob sua forma canina, ele acompanha
Harry até a estação de trem de King’s Cross6. Enquanto padrinho de Harry,
supostamente deve substituir-se ao pai e assumir junto àquele uma autêntica
função paterna. Ora, durante a estadia de Harry na casa do padrinho no
“Largo Grimmauld, número doze”, Sirius remói sua amargura e se isola
com seu hipogrifo Bicuço, ao invés de passar seu tempo com o afilhado7.
Mais ainda: Sirius leva Harry a assumir riscos, e lamenta amargamente que
o filho de seu melhor amigo não tenha herdado os talentos de seu pai neste
ponto8. Com efeito, Sirius busca, em Harry, o amigo muito querido que seu
pai fora para ele. Em contrapartida, é Harry quem protege Sirius: ele o salva
dos Dementadores, em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban9; e não pára
de correr em seu socorro quando, em Harry Potter e a Ordem da Fênix, o crê
prisioneiro de Lorde Voldemort no Ministério da Magia10. Por força de ser
igualitária, a relação pai-filho de Sirius com Harry, tal como de Harry com
Hagrid, inverte-se.

4
ROWLING, J. K. Harry Potter et le Prisonnier d’Azkaban. Paris: Gallimard, 1999. [N. do E.:
ROWLING, J. K. Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. (Tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 2000. pp. 265-267].
5
ROWLING. Harry Potter et le prince de Sang-Mêlé. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o enigma
do Príncipe. pp. 377-381].
6 ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da
Fênix. pp. 151-153, 162, 253-254].
7
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da Fênix. p. 132].
8
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da Fênix. p. 77-78].
9
ROWLING. Harry Potter et le Prisonnier d’Azkaban. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o
Prisioneiro de Azkaban. pp. 332-333].
10
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e a Ordem
da Fênix. pp. 589-634].
256 COMMUNIO • Isabelle Rak

III - AUTORIDADE E PROTEÇÃO


Restam a evocar as duas figuras que irão desvelar, para Harry, por vezes
de modo desconcertante, uma função paterna real, ainda que por vezes muito
conflituosa. Se, na galeria dos retratos que acabamos de evocar, a noção de
autoridade está praticamente ausente, ela é onipresente na personagem de
Severus Snape. O mestre das poções se compraz em implicar com Harry 
que muitas vezes lhe dá motivo, é verdade  e um ódio recíproco parece
constituir o essencial de sua relação. Estamos aqui em pleno Édipo de
Sófocles (496-406 a.C.), chegando à sua caricatura. Ora, Harry descobre
de repente, antes do combate supremo, que este professor detestado, este
antigo Comensal da Morte cujo arrependimento parecia problemático, é o
amigo fiel de sua mãe desde seus mais tenros anos até seu rompimento, na
adolescência. Descobriremos, em Harry Potter e as Relíquias da Morte, que
Snape, esta personagem tão pouco sedutora e que não tem nada de romântica,
guardou intacto seu amor de infância e de juventude para com Lílian Evans,
amor que será o instrumento de sua conversão e de sua fidelidade impecável
para com Dumbledore. Ele é aquele que poderia ter sido o pai de Harry se
não tivesse escolhido, aos dezesseis anos, o lado dos Comensais da Morte11.
Na lista de pais substitutos, é o primeiro, e um dos únicos, a representar
uma autoridade real, embora por vezes abusiva: sua severidade não se justifica
apenas pela antipatia que sente pelo filho do rival Tiago Potter, mas também
por sua vontade de armar Harry contra as forças do mal. É ele que lhe ensina
o feitiço de desarmamento (Expelliarmus)12 com o qual Harry saberá escapar
de Voldemort13 e, finalmente, vencê-lo14. Ele o protege e salva sua vida,
diretamente ou não, em múltiplas ocasiões. Ele chega a indignar-se quando
Dumbledore lhe diz que Harry está destinado à morte15. A paternidade de
Snape é ambivalente e paradoxal, mas tem uma consistência real, e será de
alguma forma reconhecida por Harry, que dará a seu terceiro filho o nome
desta personagem16 do qual ele só pôde descobrir o segredo após sua morte.
11
ROWLING, J. K. Harry Potter et les Reliques de la Mort. Paris: Gallimard, 2007. [N. do E.:
ROWLING, J. K. Harry Potter e as Relíquias da Morte. (Tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 2007. pp. 511-536].
12
ROWLING, J. K. Harry Potter et la Chambre des Secrets. Paris: Gallimard, 2000. [N. do E.:
ROWLING, J. K. Harry Potter e a Câmara Secreta. (Tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro: Editora
Rocco, 2000. p. 164].
13
ROWLING, J. K. Harry Potter et la Coupe de Feu. Paris: Gallimard, 2001. [N. do E.: ROWLING,
J. K. Harry Potter e o Cálice de Fogo. (Tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2001.
p. 527].
14
ROWLING, J. K. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e
as Relíquias da Morte. p. 578].
15
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. pp. 533-534].
16
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 589].
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 257

A paternidade consumada, equilibrada, não deveria ser identificada


unicamente na figura de Dumbledore? O diretor da Escola de Magia e Bruxaria
de Hogwarts é exigente, rigoroso, exemplar, mas, ao mesmo tempo, cheio de
bondade e de humor. Ele busca consolar Harry em suas provações, e reconhece
com bastante humildade seus erros para com ele. Exerce, em relação àquele,
uma pedagogia de descoberta, não-autoritária, mas ao mesmo tempo muito
estruturada, centrada no essencial, e que recusa dar ouvidos às elucubrações de
uma imaginação adolescente. A maneira com que Dumbledore deixa, a Harry e
seus amigos, o mínimo estritamente necessário para descobrirem as Horcruxes
pode ser comparada com a pedagogia divina, que permite ao homem fazer
uso de todo o “equipamento” que recebeu a fim de ampliar sua liberdade e sua
responsabilidade. Dumbledore não pretende fazer o trabalho de Harry em seu
lugar, ele não é um Deus ex machina que virá resolver as dificuldades com um
“golpe de varinha mágica”. A relação Dumbledore-Harry assemelha-se bastante, à
primeira vista, à relação Deus-homem, na Teologia cristã.
E, contudo, esta figura de uma paternidade ideal é comprometida pela
revelação da estranha amizade que ligara, é verdade que por pouco tempo,
Dumbledore ao bruxo das trevas Gerardo Grindelwald com suas conseqüências
trágicas17. Fascinado pelo poder supremo que buscava com seu amigo do
continente, Dumbledore dele se manteve criteriosamente distante na seqüência.
Encontramos aqui a fragilidade dos mais dotados e destacados frente à tentação
do poder, já evocada em O Senhor dos Anéis (Boromir, Galadriel)*, e a maior
solidariedade entre os menos brilhantes (os hobbits, Harry), em contrapartida.
A paternidade de Dumbledore, portanto, não é a do Pai dos Céus, ela, também,
é imperfeita, e a personagem é mortal. Mas é, por isso, a mais humana, a mais
crível e a mais amável. Rowling apresenta aos seus contemporâneos um quadro
contrastado, até mesmo pessimista, das diferentes figuras paternas possíveis, mas
lembra, com insistência, seu valor eminente, associado às noções de autoridade,
de vigilância, de distanciamento que têm pouco sucesso atualmente.

IV - SOBRE A REALIDADE DO MAL E DOS MEIOS PARA COMBATÊ-LO


Os erros do jovem Alvo Dumbledore mostram que não existe, no
universo de Rowling  que é, também, um pouco o nosso , um homem
absolutamente bom. Pelo contrário, as personagens com aparência
17
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. pp. 277-281, 441-
442, 556-558].
*
N. do E.: O episódio onde Galadriel é tentada pelo poder do Um Anel se encontra em “O espelho
de Galadriel”, capítulo VII do Livro II de A Sociedade do Anel, primeiro volume de O senhor dos
Anéis, enquanto o episódio com Boromir está em “O rompimento da sociedade”, capítulo X do
mesmo livro. Ver: TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel. (Tradução de Lenita
Maria Rímoli Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 388-389, 423-426.
258 COMMUNIO • Isabelle Rak

intrinsecamente má poderiam ter escolhido outra via: Tom Riddle, Fenrir


“Lobo” Greyback. “São as nossas escolhas, Harry, que revelam o que realmente
somos, muito mais do que as nossas qualidades”18, explica Dumbledore ao final
de Harry Potter e a Câmara Secreta. Construímo-nos com base em nossas livres
decisões e a partir não de um hipotético estado de natureza. A fronteira entre
o bem e o mal passa por cada homem, e mesmo os melhores são, por vezes,
fortemente tentados: Dumbledore pelo poder, Harry pelo ressentimento. Por
outro lado, em matéria de bem e de mal, as aparências são, com freqüência,
enganadoras: Rowling deleita-se, até o ponto de por vezes não ser mais crível,
em enganar o leitor com respeito a diversas personagens: Severo Snape, Sirius
Black, e o falso Alastor “Olho-Tonto” Moody (que na verdade era Bartolomeu
Crouch Jr.)... Entretanto, para além destes procedimentos próprios de um
romance de espionagem, a autora apresenta os dois bruxos mais maléficos do
século XX (Voldemort e Grindelwald) como sendo extremamente sedutores
e brilhantes em sua juventude. Tom Riddle atrai para si todas as honras de
Hogwarts sem que ninguém  exceto talvez Dumbledore  tenha podido
suspeitar o que quer que fosse de suas atividades criminais. O tema da “beleza
do Diabo” é, aqui, largamente explorado...
Ao mesmo tempo em que o universo de Harry Potter não é francamente
maniqueísta, Rowling, também, não cultiva o relativismo e não reduz
o mal à uma acumulação de falhas morais ou às deficiências intrínsecas à
natureza humana. O mal é de início identificado por seus efeitos, cujo caráter
dramático é muito fortemente realçado desde o início da narrativa. O mundo
da magia é, com efeito, profundamente marcado pelo sofrimento, e longa é a
lista das personagens principais que sofrem terríveis provações: Harry Potter,
Rúbeo Hagrid, Neville Longbottom, Remo Lupin, Sirius Black, Severo
Snape, Alvo Dumbledore... e mesmo Lorde Voldemort. A cicatriz de Harry
é testemunha do drama que marcou sua mais tenra infância: ela faz parte
de sua identidade, e lhe permite ser facilmente reconhecido. Ela é o sinal de
sua vitória (involuntária e incompleta, é verdade) sobre Voldemort, mas ela
continua a fazê-lo sofrer, sinal de que a “salvação” advinda da primeira queda
do mago das trevas não era senão uma graça, e que o preço a pagar por sua
eliminação será, como veremos, bem mais alto.

V-A FACE DO M AL
O mal não é apenas identificável por suas conseqüências, ele tem
uma face, a de Lorde Voldemort, é personificado. A analogia com o Satã
cristão é aqui transparente: a beleza e os talentos de Tom Riddle, sua

18
ROWLING. Harry Potter et la Chambre des Secrets. p. 349. [N. do T.: ROWLING. Harry Potter
e a Câmara Secreta. p. 280].
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 259

mudança de nome ao se engajar definitivamente no caminho do crime


e da conquista do poder, a associação com a serpente, remetem à figura
judaica e cristã de Lúcifer. O mal não é uma noção abstrata ou anônima,
ele está ligado a uma pessoa. O contraste com a extrema discrição do
ensinamento cristão atual sobre Satã é absolutamente notável, posto que
até mesmo a realidade da danação é, claramente, invocada em Harry
Potter e as Relíquias da Morte: quando Harry se encontra num mundo
intermediário entre a vida e a morte, percebe a existência de uma criatura
ao mesmo tempo miserável e assustadora, mesquinha e repugnante. Harry
pergunta então a Dumbledore a quem ele encontra:
 Que é aquilo, professor?
 Uma coisa além da nossa possibilidade de ajudar 19.

O estado de solidão e de agonia daquilo que representa a alma de


Voldemort é irremediável. Claro, os dois adversários retornam à vida e
se enfrentam uma última vez; Harry lhe dá então uma última chance,
pedindo-lhe que sinta remorso. Contudo, esta simples palavra não faz
senão aumentar a fúria daquele que escolheu a danação 20. Não encontramos
comumente, no ensinamento religioso atual, nem mesmo na literatura
profana, tal representação da escolha definitiva pelo mal e da condição
infernal que dela resulta.

VI - A HIDRA DE CEM CABEÇAS


Ao mesmo tempo, este mal personificado é multiforme, movediço, e
impossível erradicar. O mito da hidra de Lerna* é aqui explicitamente evocado
nas seguintes palavras de Snape:
As Artes das Trevas são muito variadas, inconstantes e eternas. Combatê-las é
como combater um monstro de muitas cabeças, no qual, cada vez que cortamos
uma cabeça, surge outra ainda mais feroz e inteligente do que a anterior. Vocês
estão combatendo algo que é instável, mutável e indestrutível21.

19
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. p. 756. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e as Relíquias da Morte. p. 550].
20
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 576].
*
N. do E.: A Hidra de Lerna é um animal fantástico da mitologia grega, cujas inúmeras cabeças
de serpente (diferentes versões dizem ser sete, oito, nove ou até dez cabeças) se regeneravam mal
fossem cortadas. O animal possuía um corpo de dragão (ou de cão em algumas versões) e morava
no pântano de Lerna. Uma das cabeças era imortal e parcialmente de ouro. Foi derrotada por
Hércules no segundo dos doze trabalhos, por uma pedra atirada na cabeça imortal ou, em outras
versões, pela queima de cada cabeça, pelo sobrinho de Hércules, Jolau, após o corte, de modo a
evitar regeneração.
21
ROWLING. Harry Potter et le prince de Sang-Mêlé. p. 198. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e o enigma do Príncipe. p. 142].
260 COMMUNIO • Isabelle Rak

As forças do mal são a “Legião”, como os demônios que o Cristo expulsa


do Geraseno (Mc 5,9). Elas são aquilo que divide e dilacera, como demonstra o
mecanismo de criação das Horcruxes e suas conseqüências no esfacelamento e na
divisão da alma.

VII - O PAI DA MENTIRA


Por outro lado, Rowling não deixa de lembrar ao leitor que “Satã é o pai
da mentira”, no extraordinário episódio intitulado “O ovo e o olho”22. Nesta
cena capital, Harry, que percorre os corredores da escola em plena noite sob a
capa da invisibilidade, quase é desmascarado por Snape, então ainda apresentado
como o inimigo jurado do herói. Harry é salvo in extremis pelo professor Moody,
que ficamos sabendo ao final de Harry Potter e o Cálice de Fogo ser a figura
metamorfoseada de Bartolomeu Crouch Jr., um temível Comensal da Morte.
O engodo tem êxito total, e Harry se persuade de ter saído bem. Ora, o que está
em jogo nesta cena é a posse do famoso Mapa do Maroto, que permite localizar,
em tempo real, todas as pessoas residentes no castelo. O falso Moody, que é
indicado neste mapa sob seu verdadeiro nome, toma posse dele por uma pequena
vantagem, e que lhe permitirá implementar a cilada por meio da qual entregará
Harry a Voldemort, para a regeneração deste último. Esta passagem vê triunfar
a mentira: aquele que parece salvar Harry de uma terrível punição o entregará a
Voldemort, ao passo que Snape, a despeito das aparências, tem por missão, do
início ao final da obra, proteger Harry do mesmo Voldemort. Trata-se aqui de
um anti-paralelismo surpreendente entre a metamorfose, que modifica o aspecto
externo do ser humano sem modificar suas disposições íntimas, e a conversão,
que transforma estas disposições e as orienta para o bem, sem necessariamente
modificar totalmente a aparência ou caráter. Snape, que escolheu o lado de
Dumbledore, havia já anos, mas não melhorara seu comportamento habitual: o
que tem de melhor em si mesmo permanecerá escondido até praticamente o final.
Em contraste, o falso Moody elabora seu plano sem ser incomodado, protegido
pela respeitabilidade da personagem de quem tomou o aspecto.

VIII - AUTO-SUFICIÊNCIA E VONTADE DE PODER


Entretanto, a principal mensagem de Harry Potter relativa ao mal é sua
identificação com o desejo de poder total e de auto-suficiência. As evocações do
jovem Voldemort, em Harry Potter e o enigma do Príncipe, são eloqüentes: desde a
idade de onze anos, Tom Riddle quer agir sozinho, sem depender de ninguém, a

22
ROWLING. Harry Potter et la Coupe de Feu. pp. 494-505. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e o Cálice de Fogo. pp. 364-380].
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 261

ponto de recusar a companhia de Dumbledore para comprar seu material escolar23.


Ele não tem amigos, mas apenas servidores que tremem diante dele. Encontramos
esta tendência a recusar ajuda em certas reações de Harry, durante missões difíceis
que deve empreender: ao final de Harry Potter e a Ordem da Fênix, ele busca
limitar o número de seus companheiros de aventura a Rony Weasley e Hermione
Granger, considerando que os outros (Luna Lovegood, Neville Longbottom e
Gina Weasley) serão incapazes de combater24, no que se engana redondamente. E,
quando começa a batalha de Hogwarts, em Harry Potter e as Relíquias da Morte,
Harry recusa, num primeiro momento, ajuda na busca das últimas Horcruxes,
tomando como pretexto o caráter secreto de sua missão25.
Esta recusa do outro vai de par com sua busca de poder total, cujo ponto
culminante é a vitória sobre a morte. Esta tentação de poder absoluto, este desejo de
controlar o mundo todo e de submetê-lo à sua lei é, como vimos, a dos elementos
mais dotados: Alvo Dumbledore, Gerardo Grindelwald, Lorde Voldemort. Harry
Potter, menos brilhante, dela escapa. Sua renúncia final à Varinha das Varinhas é
prova disso: o imenso poder que ela dá a seu detentor é portador de maldição26.
Desta vontade de controle absoluto sobre as coisas e as pessoas, deriva a obsessão,
ao menos para Voldemort, da “pureza do sangue”, sinal de medo do desconhecido
e da novidade que implica na irrupção de elementos novos e imprevisíveis no
mundo dos bruxos. Nisso reside a falta suprema, a de “querer possuir sua última
beatitude por meio de suas próprias forças”, segundo a fórmula de Santo Tomás de
Aquino (1225-1274)27.
Um outro aspecto desta aspiração ao controle do outro é ilustrada pela
figura do “justiceiro”, cujo zelo conduz diretamente à loucura. Bartolomeu Crouch
pai é disso um representante particularmente evocador: sua vontade de erradicar
os Comensais da Morte o leva a ridicularizar os direitos fundamentais de seus
prisioneiros, a prendê-los sem julgamento (é o caso de Sirius Black) e, ao fim das
contas, a utilizar os métodos de seus inimigos para buscar vencê-los28. A tentação
de fazer justiça com as próprias mãos aparece igualmente, de maneira fugaz, em
Harry e Snape quando, confrontados com Sirius Black e buscando fazê-lo pagar
por seus supostos crimes, ele o tomam por cúmplice de Voldemort: ambos são
tomados por um acesso de loucura assassina que não pode ser interrompido senão
23
ROWLING. Harry Potter et le prince de Sang-Mêlé. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o
enigma do Príncipe. p. 215].
24
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da
Fênix. pp. 616-618].
25
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as
Relíquias da Morte. pp. 451-454].
26
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 582].
27
THOMAS D’AQUIN, Saint. Somme de Théologie. I, q. 63, a. 3.
28
ROWLING. Harry Potter et la Coupe de Feu. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o Cálice de
Fogo. pp. 417-420].
262 COMMUNIO • Isabelle Rak

pela força29. Loucura que encontramos nos instantes derradeiros de Bartolomeu


Crouch pai, como se o fato de substituir-se à justiça não pudesse conduzir senão
à renúncia a toda razão30.
Mencionemos, por fim, uma outra forma de conivência com o mal: o fato
de ignorar e recusar admitir sua existência. É o caso de Cornélio Fudge, Dolores
Umbridge e das autoridades do Ministério da Magia, em Harry Potter e a Ordem
da Fênix, que se recusam a admitir que Voldemort retornou, a fim de criarem para
si a ilusão de ter o controle da situação. Parecemos estar longe de um desejo de
poder “ativo”, mas esta política de avestruz é semelhante, no fim das contas, ao
próprio desejo de todo-poder, aqui fundado na mais pura quimera, mas que pode
pesar sobejamente nas chances de vitória.

IX - COMBATER O MAL
Frente a esta multiplicação das forças do mal, um pacifismo ingênuo está
aqui fora de questão. A única escolha a considerar é a luta, que sabemos longa,
penosa e muito cara em vidas humanas. A “guerra de morte zero” não é aqui
senão ilusão. Toda vitória contra Voldemort, na primeira guerra e, sobretudo,
na segunda, tem um preço exorbitante. Durante a segunda guerra, Harry vê
desaparecer a quase totalidade de seus mentores e alguns de seus colegas (Cedrico
Diggory, Sirius Black, Alvo Dumbledore, a coruja Edwiges, Alastor “Olho-Tonto”
Moody, o elfo doméstico Dobby, Fred Weasley, Remo Lupin, Ninfadora Tonks,
Severo Snape). Percebemos que o número de personagens importantes caídas no
combate é muito maior do que n’O Senhor dos Anéis, em que desaparecem, dos
companheiros humanos dos Hobbits, apenas Boromir e o rei Théoden. A luta
contra o mal é um empreendimento dramático, diante do qual é preciso não
esconder o rosto. O final feliz do enredo também é, talvez, uma “eucatástrofe”*,
mas em Harry Potter ela é vencida a um alto preço.

*
N. do E.: O autor da série O Senhor dos Anéis, J. R. R. Tolkien, denominava “eucatástrofe” o ponto,
improvável e ao mesmo tempo verdadeiro, numa narrativa, quando tudo parece perdido e, uma
inesperada virada, garante um final feliz. Para maiores detalhes sobre esse conceito ver a seguinte
obra: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. (Tradução Ronald Kyrmse). São Paulo: Conrad
Editora do Brasil, 2006. Nessa obra Tolkien afirma que a eucatástrofe “nega a derrota final universal,
e nessa medida é evangelium, dando um vislumbre fugaz da Alegria, Alegria além das muralhas do
mundo, pungente como o pesar” (p. 77).
29
ROWLING. Harry Potter et le Prisonnier d’Azkaban. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o
Prisioneiro de Azkaban. pp. 274-276, 289-291].
30
ROWLING. Harry Potter et la Coupe de Feu. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o Cálice de
Fogo. pp. 440-442].
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 263

X - ESCOLHA E CONVERSÃO
Mais interiorizada, e, contudo, essencial para o engajamento neste combate
mortal, a “escolha” é um momento essencial na existência do ser humano. Esta
escolha começa já na distribuição dos alunos entre as diversas casas: contrariamente
às aparências, o Chapéu Seletor não dita ao jovem uma decisão que lhe é exterior,
mas o ajuda a discernir sua escolha mais profunda, que ele se contenta de ratificar.
Harry, na recusa de ir para Sonserina não é contrariado por este objeto mágico
que o envia, por fim, para Grifinória, a casa que ele prefere31. Encontramos, em
toda a obra, inúmeras alusões à necessidade de um engajamento concreto na
luta: “quando você tiver tido tempo de pensar nas coisas e decidir com quem está
sua lealdade”32, diz Snape a Quirino Quirrel, em Harry Potter e a Pedra Filosofal;
“chegou o momento em que os nossos caminhos se separam”33, sinaliza Dumbledore a
Fudge, o ministro da magia, ao final de Harry Potter e o Cálice de Fogo. E o lugar
em que se encontra Harry, após ter sido golpeado mortalmente por Voldemort, é
a estação de King’s Cross, a “Cruz”, mas, também, onde os caminhos se cruzam
e a escolha é proposta para “continuar” rumo ao verdadeiro além ou retornar
para o mundo dos vivos34. Mesmo a profecia, que parece introduzir um elemento
de fatalidade, não se realiza senão porque Voldemort nela acreditou, em vez de
colocar acima dela sua liberdade de ser humano35.
Observa-se, aliás, que é esta ausência de escolha que bem freqüentemente
leva as personagens para o mal: por oportunismo, no caso de Pedro Pettigrew,
que prefere seguir os mais fortes36; por desejo de ascensão social e de vingança,
no jovem Snape que não sabe escolher entre Voldemort e seu amor por Lílian37;
recusa de Fudge de tomar decisões corajosas, mas impopulares38. A não-escolha
é o que faz cair o ser humano na escravidão do mal. Inversamente, existe uma
possibilidade de conversão: é o caso do próprio Snape, cuja escolha então é total
31
ROWLING, J. K. Harry Potter à l’école des sorciers. Paris: Gallimard, 2000. [N. do E.: ROWLING,
J. K. Harry Potter e a Pedra Filosofal. (Tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2000.
pp. 107-108].
32
Idem. Ibidem. p. 224. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e a Pedra Filosofal. p. 195].
ROWLING. Harry Potter et la Coupe de Feu. p. 739. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o
33

Cálice de Fogo. p. 563].


34
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as
Relíquias da Morte. pp. 553-561].
35
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da
Fênix. pp. 678-682].
36
ROWLING. Harry Potter et le Prisonnier d’Azkaban. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o
Prisioneiro de Azkaban. pp. 297-299].
37
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as
Relíquias da Morte. pp. 523-525].
38
ROWLING. Harry Potter et la Coupe de Feu. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o Cálice de
Fogo. pp. 557-564].
264 COMMUNIO • Isabelle Rak

e definitiva. “O que quiser”39, responde ele a Dumbledore, que lhe pergunta o que
dará em troca por sua ajuda. Com este compromisso radical, Snape se tornará,
depois de Dumbledore, o inimigo mais encarniçado e mais eficaz de Voldemort.

XI - SOFRIMENTO E SACRIFÍCIO
Vimos que a vitória sobre o mal é extremamente custosa em vidas
humanas. Ela implica, da parte dos combatentes, na aceitação do sofrimento
e do dom de sua própria vida... temas que seriam provavelmente bem pouco
apreciados fora do mundo mágico de Harry Potter! Rowling não se contenta em
evocar, com variados níveis de detalhes, as numerosas provações por que passaram
suas personagens; algumas passagens mostram claramente que a provação é um
caminho de conversão. Disso testemunha o retorno de Snape, ditado pelo perigo
incorrido por Lílian Potter, e, em seguida, seu assassinato40, e o de Dumbledore,
quando sua irmã morre durante uma briga com seu melhor amigo Grindelwald41.
Sem falar de Harry, “homem marcado”42, que conheceu, muito jovem, terríveis
experiências; mas como Dumbledore lhe fez compreender, ao final de Harry Potter
e a Ordem da Fênix, “sofrer assim prova que você continua a ser homem! Esta dor faz
parte da sua humanidade...”43. A vitória contra o mal não pode ser obtida senão
sob esta condição: o dom das lágrimas. A dor é sempre um poderoso antídoto
contra o veneno material e espiritual que Voldemort tenta administrar a Harry;
em Harry Potter e a Câmara Secreta, a mordida do Basilisco, a princípio fatal, é
curada pelas lágrimas de Fawkes, a fênix de Dumbledore44; e, em Harry Potter e as
Relíquias da Morte, é enterrando Dobby, o elfo doméstico que morreu para salvá-
lo, que Harry consegue finalmente fechar seu espírito contra os pensamentos de
Voldemort:
Da mesma forma que Voldemort não conseguira possuir Harry quando o garoto
se consumira por pensar em Sirius, tampouco agora seus pensamentos conseguiam
penetrar Harry, enquanto chorava por Dobby. O pesar, aparentemente, repelia
Voldemort... embora Dumbledore, é claro, tivesse dito que era amor...45.

39
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as
Relíquias da Morte. pp. 526].
40
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. pp. 526-527].
41
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. pp. 557-558].
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. p. 1015. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a
42

Ordem da Fênix. p. 680].


43
Idem. Ibidem. p. 978. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da Fênix. p. 666].
44
ROWLING. Harry Potter et la Chambre des Secrets. [N. do T.: ROWLING. Harry Potter e a
Câmara Secreta. pp. 270-271].
45
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. p. 510. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e as Relíquias da Morte. p. 372].
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 265

A provação muda, também, o olhar do ser humano em relação ao mundo:


assim, só depois de vermos alguém morrer é que somos capazes de ver os Testrálios,
estes estranhos cavalos alados que puxam as diligências do colégio46. A longa explicação,
que Dumbledore ministra a Harry após a morte de Sirius Black, tem por objetivo
mostrar que o sofrimento deve ser encarado e aceito, pois está estreitamente ligado à
nossa capacidade de amar47.
O amor é, com efeito, a arma absoluta, “a outra forma de magia”, que
Voldemort despreza totalmente; e, em Harry Potter, não se trata de vagas noções
de filantropia, de solidariedade, de tolerância, de abertura de espírito. O amor não
é o tema de um longo discurso humanitário. Ele é essencialmente aquilo que o
sacrifício evidencia. Rowling não esquece, decididamente, de nenhum de nossos
tabus: em sua obra, o verdadeiro sinal de amor reside na capacidade de dar a vida.
Por certo, a afeição sincera para com o outro é fonte de felicidade e protege contra
certas criaturas maléficas como os Dementadores. Os Patronos, estes seres de luz
que são os únicos capazes de afastá-los, não aparecem senão por meio da evocação
de uma lembrança feliz, ligada à amizade ou ao amor: Harry pensa em Sirius ou
em seus amigos; Tonks, em Lupin; Snape, em Lílian... Mas a marca suprema do
amor, o que garante sua autenticidade, permanece sendo o sacrifício de si mesmo.
Sacrifício gerador de vida: o de Lílian Potter protege de forma duradoura seu
filho contra o perigo; o de Dumbledore permitirá o engendramento de uma vasta
maquinação contra Voldemort; o de Harry privará Voldemort de seus poderes, e
o tornará mortal.
Em contraste, Rowling coloca em cena uma forma “demoníaca” de sacrifício,
ao final de Harry Potter e o Cálice de Fogo: aquele por meio do qual Voldemort tira
uma porção do braço de seu servidor, Pettigrew, e em seguida do sangue de Harry,
para reconstruir seu corpo48. Aqui, nós assistimos a um “sacrifício captador”, em
que se toma a vida de outra pessoa, por via de seu sangue, para reconstituir-se.
Procedimento qualificado como “grosseiro” por Dumbledore quando, para aceder
à caverna de Voldemort, compreende que o visitante inopinado deve pagar sua
entrada com o próprio sangue: ele parece compungido pela bobagem de seu
adversário, “que não conseguiu compreender que há coisas bem mais terríveis do que
a lesão física”49.
Contudo, o sacrifício não poderia tornar-se uma pura injunção moral:
manifestamos um sentimento de desconforto quando Sirius Black condena sem
recurso  e com razão  a traição de Pettigrew, e contrapõe-lhe a obrigação que era
46
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da
Fênix. pp. 164-166, 366-369, 697].
47
Idem. Ibidem. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da Fênix. pp. 668-682].
48
ROWLING. Harry Potter et la Coupe de Feu. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o Cálice de
Fogo. pp. 509-511].
49
ROWLING. Harry Potter et le prince de Sang-Mêlé. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o
enigma do Príncipe. p. 439].
266 COMMUNIO • Isabelle Rak

a sua, de morrer por seus companheiros: “Você devia ter morrido! – rugiu Black – Morrer em
vez de trair seus amigos, como teríamos feito por você”50. Ora, pouco depois destas palavras,
Harry interpõe-se para impedir a morte de Pettigrew por Sirius e Lupin. Ele, que já havia
aprendido o valor do sacrifício nos dois episódios precedentes, sem dúvida sentiu o caráter
deslocado de tal injunção, não podendo o dom de si ser fruto de um imperativo externo,
mas de um ato de amor.
XII - DAR A VIDA
O tema do sacrifício está, evidentemente, onipresente ao final da narrativa e,
principalmente, quando Harry se dirige a Voldemort para salvar os defensores de Hogwarts
de uma morte certa. Apesar da aparente serenidade de sua atitude, este passo para a morte
é doloroso: porque ele se prepara para abandonar esta vida quando sua missão não está
concluída. Falta-lhe destruir uma Horcrux, Nagini, a grande serpente de Voldemort, e é a
Neville Longbottom, antes o menos dotado de seus camaradas, que ele confia esta tarefa
que ignora saber se será conduzida a termo51. Harry não está, portanto, seguro da utilidade
de seu próprio sacrifício, ele não vai para a morte com a certeza de haver concluído sua
obra. E ele não renuncia à vida com alegria no coração. Desde que sabe que seus dias estão
contados, ele subitamente aprecia seu valor e sua beleza:
[Ele] se sentiu mais vivo e mais cônscio de seu corpo vivente do qual jamais estivera. Por
que nunca apreciara o milagre que era, cérebro, nervos e coração pulsante? Tudo isso se
iria... ou pelo menos, ele os abandonaria52.

O sacrifício verdadeiro, o martírio, no sentido cristão, opõe-se ao desprezo do


mundo presente. Fabrice Hadjadj, em seu ensaio sobre a morte, cita, a este respeito, o
Segundo Macabeus, em que a mãe de um jovem judeu lembra-lhe a grandeza e a beleza
da Criação antes de encorajá-lo a manter-se firme no suplício: “Eu te suplico, meu filho,
contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe” (2Mc 7,28)*. Não é senão ao
maravilhar-se diante do mundo, que ele deve, entretanto, abandonar, que o mártir
encontra a força para dar sua vida, pois há alguma coisa  ou alguém  em nome de
que o sacrifício é digno de ser consumado. Encontramo-nos aqui no exato oposto do
suicídio, que não é nada mais que a conseqüência do desgosto pela vida. “O homem
do ressentimento acaba por dar-se a morte. O homem maravilhado não busca senão dar a

50
ROWLING. Harry Potter et le Prisonnier d’Azkaban. p. 400. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e o Prisioneiro de Azkaban. p. 302].
51
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as
Relíquias da Morte. pp. 538-541].
52
Idem. Ibidem. p. 739. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 538].
*
N. do E.: Todas as passagens da Sagrada Escritura citadas pelo autor ao longo do presente ensaio
foram substituídas pela versão em língua portuguesa da seguinte edição: BÍBLIA DE JERUSALÉM.
(Tradução do texto em língua portuguesa diretamente dos originais). São Paulo: Sociedade Bíblica
Católica Internacional / Paulus, 1995.
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 267

vida”53. Nesta perspectiva, Harry Potter é bem este homem maravilhado, cujo sacrifício é
realmente ditado pelo amor.

XIII - A MORTE HORRORÍFICA


Este último louvor das alegrias e esplendores da vida, de que Harry se lembra
com particular acuidade quando parte ao encontro de Voldemort, realça, em contraste,
o realismo da morte, e o horror que inspira. Harry não aceita se deixar consolar pelo
desaparecimento de seus próximos com boas palavras, ainda que fossem de Dumbledore54.
Diante do túmulo de seus pais, ele tem plenamente consciência de sua obra destrutiva:
As palavras vazias não podiam disfarçar que os restos dos seus pais jaziam sob a neve e o
mármore, indiferentes, inconscientes. E as suas lágrimas vieram antes que pudesse contê-
las, escaldantes e instantemente congeladas em seu rosto, de que adiantava enxugá-las ou
fingir? Deixou-as cair, seus lábios contraídos, os olhos fixos na neve espessa que ocultava o
lugar em que jaziam os despojos dos seus pais, agora, certamente apenas ossos ou pó, sem
saberem nem se importarem que seu filho sobrevivente se achasse tão perto, seu coração
ainda palpitando, vivo por causa do seu sacrifício e quase desejando, neste momento, que
estivesse dormindo com eles sob a neve55.

Por outro lado, ele sente dolorosamente em quê a morte de seus pais privou-o
de uma infinidade de momentos de felicidade... Se Rowling, como veremos, condena
firmemente aqueles que pretendem escapar à sua condição mortal, não é para fazer o elogio
da morte, mas para mostrar seu horror, a irreversibilidade e o escândalo que representa
para o gênero humano.
Todavia, a morte é igualmente destruidora para aquele que a comete,
para o assassino. O homicídio é o mais terrível dos pecados, o mais grave. A
extraordinária imagem das Horcruxes mostra a que ponto o fato de matar dilacera
e destrói a alma do criminoso*. Compreendemos então que Harry entenda, sem
53
HADJADJ, Fabrice. Réussir sa mort. Paris: Presses de la renaissance, 2005. pp. 136-137.
54
Idem. Ibidem. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da Fênix. pp. 665-674].
55
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. p. 355. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e as Relíquias da Morte. p. 259].
N. do E.: As Horcruxes são as maiores e mais violentas das artes das trevas. Em Harry Potter e o
enigma do Príncipe, o professor Horácio Slughorn, interrogado por seu aluno Tom Riddle, futuro
Lord Voldemort, fala sobre o assunto, sem saber que este já havia produzido uma, no seguinte
diálogo:
– Horcrux é a palavra usada para um objeto em que a pessoa ocultou parte da própria alma. [...]
A pessoa divide a alma [...] e esconde uma metade dela em um objeto externo ao corpo. Então,
mesmo que seu corpo seja atacado ou destruído, a pessoa não poderá morrer, porque parte
de sua alma continuará presa à terra, intacta. Mas, naturalmente, a existência sob tal forma...
poucas pessoas iriam querer, Tom, muito poucas. A morte seria preferível.
– E como é que se divide a alma?
– Bem – respondeu Slughorn, constrangido –, você deve compreender que a alma deve
permanecer intocada e una. A divisão é um ato de violação, é contra a natureza.
268 COMMUNIO • Isabelle Rak

a menor dúvida, que é preferível ser morto a matar, e que, desta tomada de
consciência, ele tire as conclusões necessárias. E Voldemort, ao final das contas,
perecerá, não pela mão de Harry, mas pela própria mão, com o sortilégio de
morte que lança voltando contra si mesmo.

XIV - A IMORTALIDADE MORTÍFERA


Contudo, apesar desta lembrança vigorosa do caráter repugnante da morte,
toda a história de Harry Potter mostra que a causa da perdição de Voldemort é
precisamente esta vontade de escapar à condição mortal do homem. A vida do
Senhor das Trevas pode ser resumida nestas palavras do Cristo: “Pois aquele que
quiser salvar a sua vida, vai perdê-la” (Mt 16,25). Obcecado por seu desejo de
tudo controlar e, em primeiro lugar, a própria vida, Voldemort não hesita em
semear a morte à sua volta para preservar sua preciosa existência. Voltamos aqui
às intuições de Fabrice Hadjadj:
Controlar plenamente a vida é, desde já, destruí-la naquilo que é sua abertura
intrínseca. Aí está o crime satânico, mais grave ainda que o suicídio [...]. A morte
é por excelência o que vem colocar termo o meu controle56.

No caso de Voldemort, como em certas tentações das biotecnologias atuais,


a imortalidade pretende ser adquirida ao preço da existência de outro. Em Harry
Potter, é necessário matar para produzir uma Horcrux, este objeto mágico no qual
podemos incluir uma parte de nossa alma e escapar assim a uma morte definitiva
quando o corpo humano é destruído. A alusão a um “melhor dos mundos”
onde o assassinato em massa (aborto, eutanásia) é praticado em nome de um
maior controle da vida e das condições de existência, e, até mesmo, em nome do
– Mas como é que se faz?
– Por meio de uma ação maligna: a suprema maldade. Matando alguém. Matar rompe a alma.
O bruxo que desejasse criar uma Horcrux usaria essa ruptura em seu proveito: encerraria a parte
que se rompeu...
– Encerraria? Mas como...?
– Há um feitiço, não me pergunte, eu não conheço! [...] Tenho cara de quem já experimentou
isso... Tenho cara de homicida? (ROWLING. Harry Potter e o enigma do Príncipe. p. 390).
O diálogo continua com o jovem Riddle se desculpando e buscando, aparentemente inocente
e curioso, uma opinião do professor, como se fosse apenas uma questão acadêmica, sobre a
possibilidade de dividir a alma em sete partes, ou seja, fazer seis Horcruxes. De forma consciente,
Lorde Voldemort fabricou cinco Horcruxes antes de atacar Harry Potter, a saber: o Anel de Gaunt, o
Diário de Tom Riddle, o Diadema de Rowena Ravenclaw, a Taça de Helga Hufflepuff e o Medalhão
de Salazar Slytherin. Sua idéia era fazer a sexta e última Horcrux ao assassinar “o Escolhido”,
entretanto, devido à instabilidade de sua alma, ao tentar matar o menino, Voldemort acabou
transferindo parte dela para Harry Potter, o transformando, sem saber, numa Horcrux. É pelo fato
de ser uma Horcrux, que Harry que para destruir Voldemort necessitava se dar em sacrifício. Antes
de recompor seu corpo, Voldemort fez mais uma Horcrux: a serpente Nagini.
56
HADJADJ. Op. cit., pp. 160-161.
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 269

tratamento futuro de doenças incuráveis, talvez não fosse desejada pela autora,
mas a mensagem, intencional ou não, contorna habilmente  ao transitar por
este mundo imaginário  a censura que afeta essas questões, desde que abordadas
de forma explícita. Talvez o sucesso atual de certos romances fantásticos resida,
pelo menos em parte, na capacidade de enunciar verdades incômodas  e que
precisamos tanto ouvir  sob a forma simbólica, a única a escapar à vigilância dos
bem-pensantes.
A imortalidade adquirida por estes meios demoníacos, que são o assassinato
e a formação consecutiva de Horcruxes, não é, contudo, senão uma forma muito
degradada de existência: depois de sua primeira queda/derrota, Voldemort leva
uma vida impotente, privado da maioria de suas faculdades físicas. Da mesma
forma, os fantasmas, que não tiveram a coragem de aceitar uma forma completa
e irreversível de repouso, se encontram num meio-caminho que, definitivamente,
não é senão “uma fraca imitação da vida”57. Enfim, a suposta “pedra da ressurreição”,
uma das três “relíquias da morte”, não faz retornar à existência senão os fantasmas,
com os quais uma vida comum não é possível, pois a separação operada pela
morte é radical e não há meios de superá-la. Ou ainda, dito de outra forma por
Fabrice Hadjadj:
O mundo [...] matou a morte, mas não se trata absolutamente por meio de uma
ressurreição, é por uma morte redobrada em si mesma, por uma despossessão de
sua morte humana [...]. O mundo já faz de nós, por desespero, almas de outro
mundo58.

XV - O SACRIFÍCIO, VITÓRIA SOBRE A MORTE


Frente a estas caricaturas de imortalidade, Harry mostra certa inquietude
na leitura do versículo bíblico, da primeira epístola da São Paulo aos Coríntios
(1Cor 15,26), inscrito no túmulo de seus pais: “ora, o último inimigo que há de ser
aniquilado é a morte”*. Hermione tem de explicar-lhe que se trata da verdadeira
vida eterna, que não faz economia da morte: uma vida após a morte, mas não sem

57
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. p. 1022. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a
Ordem da Fênix. p. 695].
58
HADJADJ. Op. cit., p. 209.
*
N. do E.: Diferente do texto original em inglês, ou da versão em francês, a tradução brasileira
(ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 259) não cita literalmente essa passagem da
Sagrada Escritura (“O último inimigo a ser destruído será a morte”). O mesmo não acontece com a
inscrição “Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará o vosso coração” (Idem. Ibidem. p. 257), retirada
do Evangelho de São Mateus (Mt 6,21), que se encontra no túmulo de Kendra Dumbledore e de
Ariana Dumbledore, respectivamente mãe e irmã de Alvo Dumbledore. Contrariando as críticas
de alguns cristãos, tanto católicos quanto protestantes, de que a série de livros e filmes Harry
Potter promove a bruxaria ou outras formas de ocultismo, a autora, J. K. Rowling, se defendeu,
numa entrevista, em 1999, para a CNN, dizendo que nunca tentou incentivar tais práticas.
270 COMMUNIO • Isabelle Rak

a morte59. Por esta via, é possível aceitar a morte para tornar-se seu verdadeiro
mestre. Aliás, Dumbledore trata, por vezes, a morte com certa desenvoltura,
e até mesmo com humor: “Afinal, para a mente equilibrada, a morte é apenas
a grande aventura seguinte”60. Atitude que não muda essencialmente quando a
morte se aproxima realmente dele, de início quando ela lhe é anunciada, e, em
seguida, quando ela lhe é finalmente administrada. O drama de Voldemort é
sua “incapacidade de compreender que há coisas muito piores do que a morte”61. A
tragédia da juventude de Dumbledore é disso prova. Contudo, é possível que o
velho diretor de Hogwarts talvez busque também reencontrar os seus no além?
De sua parte, Harry aceita a morte desde que compreende sua absoluta
necessidade, desde que entende sua dimensão salvadora, embora ele saiba que,
por outro lado, sua missão de destruir as Horcruxes não está cumprida. Ele só
se serve da pedra da ressurreição ao aproximar-se de seu próprio fim62. Situação
altamente paradoxal, mas que permite o único uso apropriado desta “relíquia
da morte”: aqueles que buscam reencontrar seus seres queridos, conservando ao
mesmo tempo sua própria vida, são mortos por ela, no final das contas, como é
o caso de Cadmo Peverell, o segundo irmão, em “O Conto dos Três Irmãos”63 ou
do próprio Dumbledore64. A pedra da ressurreição só é benéfica para aquele que
irá juntar-se aos que convoca ao utilizá-la. As personagens que estão em torno
de Harry (Lílian Potter, Tiago Potter, Sirius Black, Remo Lupin), quando de sua

Numa entrevista ao repórter Max Wyman, publicada em 26 de outubro de 2000 no Vancouver Sun,
J. K. Rowling afirmou: “Eu sou cristã e isso parece ofender bem mais os religiosos do que se eu dissesse que
não existe Deus. Sempre que fui perguntada se acreditava em Deus, eu respondi ‘sim’, porque acredito. Mas
ninguém nunca foi, realmente, mais fundo do que isso, e devo dizer que isso é bom para mim [...] Se eu
falar muito livremente sobre isso, acho que o leitor inteligente – tenha 10 ou 60 anos – poderá adivinhar
o que virá nos outros livros”. Um dos maiores defensores da importância catequética de Harry Potter
é o cardeal George Pell, Arcebispo de Sidney e Primaz da Austrália, que se declarou diversas vezes
um fã da série. Monsenhor Peter Fleetwood, na condição de conselheiro das conferências episcopais
européias, reafirmou, numa entrevista para a Rádio Vaticana em 2005, sua posição favorável à série,
demonstrando que ela pode ser um importante instrumento para a formação religiosa e moral de
crianças e adultos. A mesma defesa aparece nos artigos de Paolo Gulisano e de Edoardo Rialti,
publicados na edição em inglês, de 15 de janeiro de 2008, do L’Osservatore Romano. Todos os filmes
da série, até agora lançados, receberam críticas positivas da conferência episcopal norte-americana,
que os aconselha como um divertimento saudável para as famílias.
59
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as
Relíquias da Morte. p. 259].
60
ROWLING. Harry Potter à l’école des sorciers. p. 290. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e a
Pedra Filosofal. pp. 253-254].
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. p. 968. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a
61

Ordem da Fênix. p. 659].


62
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as
Relíquias da Morte. pp. 542-546].
63
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 317-319].
64
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 559].
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 271

última expedição, não são “almas do outro mundo”, eles parecem estranhamente
vivos, e o protegem realmente dos Dementadores65, numa espécie de “comunhão
dos santos”. Ao entregar-se livremente à morte, conservando ao mesmo tempo
intacto seu amor pela vida, Harry se torna verdadeiro mestre da morte, não
porque ele a tenha evitado, mas porque a atravessou. As conseqüências salvadoras
do sacrifício de Harry aparecem desde seu retorno à vida: Voldemort perdeu
quase todos os seus poderes e suas vítimas são misteriosamente poupadas: “Fiz o
que minha mãe fez. Protegi-os de você”, diz Harry a Voldemort antes de seu último
enfrentamento. “Você não reparou que nenhum dos feitiços que lançou neles são
duradouros?”66. Depois desta provação, ele renuncia então, muito logicamente,
às duas relíquias que representam a aspiração de Voldemort: o controle total do
mundo e a recusa da morte.
Assim como em O Senhor dos Anéis ou nas Crônicas de Nárnia, a dimensão
fantástica de Harry Potter permite exprimir realidades que seriam, sem dúvida,
razoavelmente mal aceitas, no mundo atual. O tema do herói sacrificado é,
certamente, sempre muito apreciado, mas raras são as obras deste gênero que
ressaltam, com tanta insistência, o preço deste sacrifício, o horror da morte, a
necessidade de deixar-se instruir pelo sofrimento. Mais raras ainda são aquelas
que mostram, com tanta profundidade, as conseqüências terríveis de um desejo
de imortalidade que passaria pela eliminação do outro. E o que dizer acerca da
alusão quase explícita à Satã e à possibilidade real da danação? Aquilo que está
ausente em nossos catecismos já se encontra nesta corrente literária que é objeto
deste número da Communio: se ali se encontra o meio, ao menos para um espírito
menos instruído sobre a Revelação, para suprir a estas falhas, então talvez certas
formas de Fantasia representem, para além de sua qualidade artística e do prazer
de sua leitura, uma forma original de pedagogia cristã.

Isabelle Ledoux-Rak nasceu em 1957. Antiga aluna da École Normal Supérieur (ENS),
apresentou tese de doutorado em Física na Universidade de Orsay. É professora e pesquisadora
em Fotônica na ENS em Cachan e membro do comitê de redação das revistas Communio e
Réssurection.

65
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. pp. 543-544].
66
Idem. Ibidem. p. 788. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 574].
Carranca (1962)
Escultura em madeira de Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany (1882-1985)
Proveniente de Juazeiro do Norte, CE
Coleção Paulo Pardal
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 273
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 273-276

HISTÓRIAS DOS ÍNDIOS BRASILEIROS


Alberto da Costa e Silva

M eu caro amigo, leia:


Na parte mais oriental do mundo, onde o sol nasce, vive um povo de cabelos
vermelhos. Como sol nasce muito perto deles, sofrem severamente por causa de
suas chamas e lhe têm um grande ódio. Cada manhã, ao romper do sol, atiram
flechas contra ele, mas de rostos virados para o lado, pois não podem suportar a
sua luz e o seu calor chamejante. Mas o sol se ergue muito depressa, de modo que
nunca o atingem.
Assim sendo, decidiram derrubar a viga que sustenta o céu, de modo a fazer com
que o céu caísse e o sol ficasse impedido de prosseguir sua viagem depois disso. Ele
a desbastaram e continuaram trabalhando até que o pilar ficou bastante fino. En-
tão, por causa da fadiga, tiveram de parar e, quando voltaram ao trabalho, a parte
que tinha sido cortada crescera outra vez e o pilar estava tão grosso quanto antes.
Estão nisso até hoje.

Continue lendo:
Contam que o mauari, querendo matar o sono, o esperou num galho de pau.
– Eu vou matar este sono; agora vou vigiar para matá-lo.
Esperou. Não demorou muito tempo. Viu vir um vulto.
– Parece ser o sono que vem.
Dizem que, quando o vulto estava já perto, e que quando o sono estava bem perto,
cochilou, e de repente voou gritando: Cuá! cuá! cuá!... E foi-se embora o mauari.
– Ora, veja, meu coração, não soube quando cochilei, mas agora eu o espero
outra vez.
Esperou. Então viu, ainda outra vez, perto uma escuridão que se aproximava.
– Ele aí vem, agora eu o flecho com o meu bico.
Já estava chegando perto, quando cochilou; de repente abriu os olhos, assustou-se
e foi-se embora, voando, a gritar:
– Cuá!... cuá!... cuá!...
Assim acontece todas as noites, desde a mais remota antiguidade.

Não sei se teve, ao ler esses dois textos, a mesma reação de surpresa e
pasmo que tive, há mais de cinqüenta anos, ao topar com eles: o primeiro, num
livro de Curt Nimuendaju (1883-1945), The Apinaye, publicado em inglês
em 1939; e o segundo, na Poranduba amazonense, de João Barbosa Rodrigues
(1842-1909), que é de 1890. Franz Kafka (1883-1924) ou Jorge Luis Borges
(1899-1986) poderiam ter escrito, de jeito mais conciso, qualquer um desses
dois contos. E você certamente se lembra daquela obra-prima recolhida por José
Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) em O selvagem (livro de 1876), “Como
274 COMMUNIO • Alberto da Costa e Silva

a noite apareceu”. Eu reencontrei-a muitas vezes, sempre misteriosa e densa de


inevitabilidade, nas antologias escolares de minha infância e nas coletâneas de contos
da minha adolescência. João Guimarães Rosa (1908-1967) disse-me, certa vez, que
gostaria de a ter escrito.
Entre os meus 19 e 21 anos, andei às voltas com os mitos, as lendas, as
fábulas, os apólogos, as alegorias e toda sorte de histórias recolhidas entre os índios
brasileiros. Augusto Meyer (1902-1970), que dirigia o Instituto Nacional do Livro,
tinha tido a temeridade de confiar-me a tarefa de organizar com esse material uma
pequena antologia, publicada pela primeira vez em 1957. Não demorou muito, e a
curiosidade com que me dei ao trabalho se transformou em entusiasmo. Eu saía de
um deslumbramento para outro, mas ficava a imaginar o que se perdera entre o relato
oral em língua indígena e a tradução escrita num português sem maiores qualidades.
Havia exceções, claro, pois foi então que descobri um excelente escritor que
não figurava nas histórias literárias, Antônio Brandão de Amorim (1865-1926). Não
me cansei de reler as suas Lendas em nheengatu e português, das quais – disto estou
convencido e se convencerá quem as percorra – foram devedores Mário de Andrade
(1893-1945) e Raul Bopp (1898-1984). Brandão de Amorim era rigoroso em suas
transcrições e, para ser fiel ao que ouvia, trouxe alguns recursos do nheengatu para o
seu português, tornando-o, assim, saborosamente novo. Como, por exemplo, ao usar
o que chamo de presente mais-que-perfeito: as suas crianças pulam-pulando e os seus
homens remam-remando.
Alguns desses racontos indígenas são curtos e lineares: um menino, num ato
de gula, se transforma em papagaio. Outros são longos, complexos, engenhosos, sutis.
Podem até ter uma ou mais histórias dentro da história, com enredos que se opõem à
trama principal ou que a explicam, completam ou lhe intensificam o mistério.
Dou um exemplo:
Numa lenda dos uananas, um grupo tucano do Amazonas, aparece inexplicavelmente
numa aldeia uma jovem bela como a lua. Todos os rapazes se apaixonam por ela, que
com todos conversava e dançava, mas com nenhum queria casar-se. Como, à meia
noite, a moça costumava sumir de casa, os rapazes resolveram segui-la sem ser notados.
Ela foi para a cachoeira, sentou-se numa pedra e olhou para a lua. Os rapazes –assim
escreve Antônio Brandão de Amorim – “então viram o retrato da lua brilhando no
rosto dela. Conforme no céu a lua, assim mesmo no rosto da moça a sua sombra”. Do
céu desceu uma outra jovem, ainda mais linda, e, quando a primeira se levantou para
enlaçá-la, os rapazes descobriram que a moça que cortejavam era um homem.
Voltaram para a aldeia cheios de medo e, ao acordar, não sabiam se haviam sonhado
o que não lembravam direito de ter visto. Uma noite depois, a moça que era o retrato
da lua contou às outras índias uma história que se passara na raiz do céu, numa terra
onde toda a gente era bonita. Nela havia um rapaz ainda mais belo – belo como o sol.
Por mais que as moças lhe fizessem agrados e o provocassem, ele não se interessava por
nenhuma delas. Uma noite, ele resolveu revelar a uma das mocinhas o seu segredo.
Tirou o pano que lhe cobria a virilha e mostrou-se liso, sem sexo, dizendo: “Repara,
sou será homem! Sou será mulher!” E a moça retrato da lua concluiu sua história: o
HISTÓRIAS DOS ÍNDIOS BRASILEIROS 275

rapaz que não era homem nem mulher mergulhou no rio, e as jovens apaixonadas o
imitaram e desapareceram para sempre.
Após ter contado essa história, a moça retrato da lua não mudou o seu comportamento.
Não se decidia por nenhum dos rapazes que continuavam a assediá-la. As raparigas da
aldeia, com dó, voltaram a interceder por eles. Então, a Retrato da Lua prometeu
que contaria, noite após noite, a cada uma delas, separadamente, a razão pela qual
não podia atendê-las. E a cada uma delas “essa parecença de moça mostrou que era
homem, não mulher”.
Uma noite, ela foi para o rio. As moças que a seguiram viram-na ser envolvida por
um grande fogo frio, que subiu para o céu e desapareceu na lua. Meses depois,
todas as raparigas estavam grávidas. Como os mais velhos perguntassem de quem
eram os filhos, elas responderam: –“Daquela moça retrato da lua que se sumiu do
meio de nós”.

O uanana que inventou esse enredo devia ser um grande contador


de histórias, um manipulador do maravilhoso. Não se trata de ocultação ou
simulação do sexo oposto, difícil de fazer-se numa sociedade em que as pessoas
usavam apenas uma tanga diminuta. O rapaz belo como o sol tanto poderia vir
a ser homem quanto mulher. E a Retrato de Lua, sendo homem, tinha as formas
femininas e, possivelmente, podia mudar de homem para mulher, e vice-versa.
Era bem espelho e sombra da lua,sempre a trocar de forma. Fico a imaginar o que
Freud faria com essa narrativa.
Outras, como as que trazem para a vida diária de um grupo os seus heróis
fundadores ou civilizadores, foram matéria de análise extensa e contraditória de
grandes antropólogos, etnólogos e sociólogos, não faltando historiadores que
ambicionaram delas retirar informações sobre o passado desses povos.
Mais de uma vez manifestei minha gratidão a Gilberto Freyre (1900-
1987), Herbert Baldus (1899-1970) e Luís da Câmara Cascudo (1898-1986)
pelo Brasil que, nos seus livros, me revelaram. Devo a muita gente mais. Como
Egon Schaden (1913-1991), que me aprofundou a perspectiva com o seu livro
Mitologia heróica de tribos indígenas do Brasil. Publicado pela primeira vez em
1945, com apenas 520 exemplares, só em 1959 teria uma edição de verdade,
graças a José Simeão Leal (1908-1996), que dirigia o Serviço de Documentação
do Ministério da Educação e Cultura. Como tantas obras fundamentais da cultura
brasileira, penso que nunca foi novamente reeditada.
Foi então, em 1959, que a li. Cinco anos depois de impressa a minha
Antologia de lendas do índio brasileiro (nas edições posteriores, apenas Lendas
do índio brasileiro). Se tivesse conhecido antes o livro de Schaden, eu teria sido
dado, no meu, maior espaço e ênfase aos heróis civilizadores como Jurupari,
Bahira, Poronominare, Macunaíma, Bacuroro e Itubore. E talvez tivesse até
mesmo citado, para explicá-los e a relação entre mito e história, aqueles versos de
Fernando Pessoa (1888-1935) – que valem um tratado sobre o tema – a propósito
de Ulisses, fundador de Lisboa:
276 COMMUNIO • Alberto da Costa e Silva

Este que aqui aportou,


Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não vindo foi vindo
E nos criou.

De Herbert Baldus não me esquece a lição de que, mal nos afastamos das
cidades, o índio se redesenha no brasileiro. Até mesmo em algumas cidades, num
passado recente, o índio estava em nós. Menino, armei arapucas como um curumim e
aprendi a descansar acocorado. Dormi em rede até a minha vinda, aos doze anos, para
o Rio de Janeiro. Gosto de banhos demorados. Não passo sem farinha de mandioca.
E, às vezes, a um canto de passarinho, surpreendo-me a perguntar de quem será a
alma que ele abriga.
Várias histórias de índios que encontrei nos livros, eu já as tinha ouvido em
minha infância. Não apenas as que todos conhecem, como a de Mani e a do veado e
da onça que dividiam a mesma casa, mas também a dos homens que dormiam como
morcegos, de cabeça para baixo, pendurados numa viga pelos joelhos. Lembro-me do
tom de voz e dos gestos com que minha ama Teté me explicava que os bichos podiam
sem esforço virar gente, e a gente, bicho, mas não saberia reproduzi-los. Recordo as
suas histórias, quase todas de índios. Como, porém, as que nos chegam nos livros,
muito delas se perdeu – às vezes, o que era essencial ou mais surpreendente – na
passagem da fala para o ouvido, e do ouvido para a mão que escreve, e desta para os
olhos que lêem.
Quando atingi a maioridade, o meu namoro com a África, que começara na
adolescência, transformou-se em paixão. Arrumei os livros sobre índios nas prateleiras
do alto das estantes. Continuei, no entanto, a ler com interesse os que me caíam nas
mãos. Não me derramo em exemplos, mas voltei mais de uma vez, atentíssimo, a
alguns dos textos incluídos na História dos Índios no Brasil, organizada por Manuela
Carneiro da Cunha, e aqui tenho, na estante ao meu lado, quatro obras de Betty
Mindlin, das quais saí com grande ganho. Pois o índio não deixou de ser a corda do
meu arco, que é o Atlântico, e me ajudou a compreender os povos da outra margem
e o que somos.

Alberto da Costa e Silva, nascido em 1931, é diplomata, poeta, ensaísta, memorialista,


historiador e membro da Academia Brasileira de Letras. Formado pelo Instituto Rio Branco,
em 1957, serviu como diplomata em Lisboa, Caracas, Washington, Madrid e Roma, tendo
ocupado os cargos embaixador do Brasil na Nigéria e no Benim, em Portugal, na Colômbia
e no Paraguai. Em em 1986 recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Letras pela
Universidade Obafemi Awolowo, da Nigéria. É membro do PEN Clube do Brasil, Sócio
honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), sócio correspondente da
Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente da Academia Portuguesa da História.
É autor de nove livros de poesia de seis livros de ensaios, de cinco livros de História, de seis
antologias, de um livros de memórias e de um livro infanto-juvenil.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 277
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 277

ORAÇÃO PELA COMMUNIO*


Hans Urs von Balthasar

S enhor, nosso Deus,


Tua vida trinitária é comunhão eterna em Ti mesmo. A participação dessa Vida, que
nos ofereces através do corpo de Cristo entregue por nós, é também Comunhão. A Tua
Igreja nada seria e nada poderia, se não existisse por força dessa Comunhão.
Agradecemos-Te, Senhor, que tão abundantemente tenhas abençoado o nosso trabalho ao
serviço da Tua Comunhão; e que o Teu Espírito, através de muitos países e culturas, de
forma tão sensível nos ajude a guardar e a alargar a unidade católica.
Não permitas que a vaidade humana falseie o nosso testemunho. Concede-nos a humildade
do homem espiritual, que o apóstolo diz tudo poder julgar retamente, pois não é guiado
pelo seu espírito, mas pelo Espírito de Cristo.
Dá-nos a graça de realizar, antecipadamente na Terra, algo da comunhão eterna dos
santos, com Maria no centro.
Por tudo isso, pedimos a Tua benção trinitária.
Amém

FORMA BREVE DA ORAÇÃO PELA COMMUNIO


Senhor, nosso Deus,
Tua Vida trinitária é Comunhão, e na Igreja nos ofereces dela participarmos. Agradecemos-
Te que tão visivelmente tenhas abençoado o nosso esforço por alargar, no mundo, essa
Comunhão divino-eclesial. Guarda em nós a humildade de irradiarmos não o nosso, mas
o Teu Espírito. Para isso, pedimos a Tua benção trinitária.
Amém

Hans Urs von Balthasar nasceu no dia 12 de agosto de 1905, em Lucerna, na Suíça. Fez os
estudos universitários em Viena, Berlim e Zurique, defendendo tese de doutorado em Literatura
Alemã, em 1928. Foi ordenado sacerdote em 1936. Autor de uma obra monumental, um dos
mais influentes teólogos do século XX e, com Henri De Lubac (1896-1991) e Joseph Ratzinger,
o fundador, em 1972, da revista Communio. Em 29 de maio de 1988, o Papa João Paulo II
anunciou que o criaria cardeal, no consistório de 28 de junho de 1988. Faleceu no dia 26 de
junho de 1988, em Basiléia, na Suíça.

*
Na festa da Ascensão, em 1983, na Reunião Internacional do editores da Communio, em Varsóvia,
na Polônia, Hans Urs von Banthasar apresentou esta oração, que foi publicada, em português, pela
primeira vez em Communio: Revista Internacional Católica, Ano IX, Número 4, julho / agosto 1992:
354.
278 COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 278-283

ORTODOXIA
G. K. Cherterton
Prefácio de Philip Yancey
Traduzido por Almiro Pisetta
São Paulo: Mundo Cristão, 2008. (263 páginas)

“ O cristianismo, mesmo quando diluído, londrino, Ortodoxia antecede em


é forte o suficiente para reduzir toda a muitos anos a conversão formal de
sociedade moderna a trapos”. Apesar Chesterton ao catolicismo – que só se
de todo o seu radicalismo e sem- daria em 1922.
cerimônia, esta frase de Gilbert Keith Mesmo assim, esta “espécie de
Chesterton (1874-1936) não faz o autobiografia desconjuntada”, como
leitor saltar da cadeira, quando aparece a descreve o autor, mostra de que
já no fim de sua obra mais importante, modo uma série de objeções ao
Ortodoxia. pensamento dominante na sua época
É que, desde as primeiras – feito de cientificismo, darwinismo,
páginas desse livro – recém-traduzido imperialismo, nietzscheanismo,
no Brasil, numa edição comemorativa decadentismo – terminou conduzindo
dos cem anos de sua publicação na Chesterton a uma “terra firme” de
Inglaterra –, está presente a capacidade idéias razoáveis e sensatas; para seu
de Chesterton para a surpresa, para a imenso espanto, essa terra firme que
gesticulação de efeito, para a fórmula ele julgava ter acabado de descobrir
brilhante e paradoxal. Nenhum autor nada mais era do que a antiqüíssima fé
foi tão original, e mesmo extravagante, cristã.
como Chesterton na defesa dos Cem anos depois, muitos dos
ensinamentos ortodoxos da Igreja, e adversários intelectuais de Chesterton
nenhuma apologia da religião cristã se mostram, mais do que nunca,
se mostra, como a deste livro, tão presentes no debate contemporâneo.
empenhada em reduzir alegremente O prestígio recente do neodarwinismo
“a trapos”, com efeito, as certezas nada tem a dever ao que vigorava
predominantes no público culto de sua na Inglaterra em inícios do século
época. XX. O novo ateísmo de Christopher
Publicado em 1908, quando Hitchens e Richard Dawkins (com o
seu autor tinha trinta e quatro anos qual, diga-se desde já, este resenhista
de idade, e já desfrutava de imenso concorda amplamente) reapresenta
reconhecimento como jornalista e idéias contra as quais Chesterton se
crítico literário no ambiente intelectual batia há um século. A tendência, mais
ORTODOXIA 279

ou menos nietzschiana, para relativizar não fossem tão pertinentes ao debate


conceitos como “realidade”, “verdade”, imediato.
“objetividade”, é hoje tão ou mais forte Trata-se, sobretudo, de uma
do que na época em que Ortodoxia foi obra-prima de retórica. Não no que
publicado. isso signifique de fraseologia oca,
Veja-se, por exemplo, um mas sim pelo que demonstra desse
trecho em que o autor contrasta a conhecimento, tão difícil de adquirir,
concepção cristã da Natureza com da simultaneidade que existe entre as
as interpretações correntes em seu leis da psicologia do leitor e as leis da
tempo, nada diversas das que circulam metáfora, da comparação, do ritmo e
hoje em dia: do equilíbrio da frase.
A essência de todo panteísmo, Desse ponto de vista, o ápice
evolucionismo e religião cósmica do livro de Chesterton é seu quarto
moderna está [...] nesta proposição: que capítulo, intitulado, na tradução
a natureza é a nossa mãe. Infelizmente, brasileira, “A Ética da Elfolândia”, mas
se você considerar a natureza como
que seria mais poético chamar de “A
mãe, vai descobrir que ela é madrasta.
O ponto principal do cristianismo era Ética do País dos Elfos”.
este: que a natureza não é a nossa mãe: Consciente, sem dúvida,
a natureza é nossa irmã. Podemos sentir dos riscos de seu procedimento
orgulho de sua beleza, uma vez que argumentativo (mas sua temeridade é a
temos o mesmo pai; mas ela não tem mesma dos santos), Chesterton resolve
autoridade sobre nós; temos de admirá- defender a religião cristã naquilo que
la, não de imitá-la. tem de mais frágil: sua semelhança
Isso confere ao prazer tipicamente com um conto de fadas. Sua apologia
cristão neste mundo um estranho do cristianismo aceita, neste capítulo, o
toque de leveza que é quase frivolidade.
desafio de ser uma apologia das histórias
A natureza foi mãe solene para os
adoradores de Ísis e Cibele. Foi mãe de Cinderela e da Bela Adormecida.
solene para Wordsworth ou para Há a lição de “Cinderela”, que é a
Emerson. Mas a natureza não é solene mesma do Magnificat – Exaltavit
para Francisco de Assis ou para George humiles. Há a grande lição de “A Bela
Herbert. Para Francisco de Assis ela é e a Fera”, dizendo que uma criatura
irmã, até mesmo uma irmã menor: deve ser amada antes de ser amável.
uma irmãzinha que dança, de quem se Há a terrível alegoria de “A Bela
ri e a quem se ama. Adormecida”, dizendo como a criatura
humana foi abençoada com todos os
seus dons recebidos ao nascer, e, no
A atualidade, paradoxalmente
entanto, amaldiçoada com a morte; e
“atemporal”, do livro de Chesterton se como a morte pode ser suavizada em
confirma em várias páginas desse tipo. sono.
Mas o vigor poético de suas frases, sua
“dança”, e seu “riso”, seriam suficientes Um parágrafo desses já é capaz
para torná-lo um clássico mesmo nos de chamar a atenção para o talento
períodos em que seus argumentos de Chesterton como crítico literário;
280 COMMUNIO • Marcelo Coelho

veremos que o autor não se contenta É inútil falar sempre da alternativa


com esse rápido tour de force. de razão e fé. A própria razão é uma
Mas não estou preocupado com questão de fé. É um ato de fé afirmar
nenhum dos estatutos da elfolândia que nossos pensamentos têm alguma
em separado, mas sim com o espírito relação com a realidade por mínima
de sua lei, que aprendi antes de saber que seja.
falar e que hei de reter quando não
mais puder escrever. Estou preocupado Assim como, no trecho anterior,
com certo modo de olhar para a vida, Chesterton “canibalizava” David
que foi criado em mim pelos contos Hume em defesa do cristianismo,
de fada, mas foi desde aquela época aqui o autor se apropria de um lugar-
humildemente ratificado pelos simples
comum relativista e nietzschiano para
fatos.
ganhar pontos com o leitor.
[...] Quando nos perguntam por que
os ovos se transformam em pássaros Para este leitor, pelo menos, o
ou porque as frutas caem no outono, que está em curso aqui é um mero jogo
devemos responder exatamente de palavras. O indivíduo destituído
como a fada madrinha responderia se de fé religiosa acredita, por certo, que
Cinderela lhe perguntasse por que os se jogar um tijolo contra uma vidraça
ratos se transformaram em cavalos ou esta se quebrará. Não se trata, aqui,
por que as roupas dela desapareceram de uma questão de “fé”. Trata-se de
depois da meia-noite. Devemos um acúmulo de experiência empírica.
responder que é mágica. Não é uma
Se disserem, a esse mesmo indivíduo,
“lei”, pois não entendemos sua fórmula
que uma criança pode nascer do ventre
geral. Não é uma necessidade, pois,
embora contemos com esse tipo de de uma virgem, ele não irá acreditar;
acontecimento na prática, não temos pois nenhuma experiência empírica
o direito de dizer que ele deve sempre haverá de convencê-lo disso. É na falta
acontecer. de uma experiência empírica que a fé
é chamada a intervir. A fé religiosa é
No fundo, estamos aqui diante uma coisa, a confiança na experiência
do argumento cético de David Hume empírica outra, e só por um jogo de
(1711-1776) contra qualquer certeza palavras se pode identificá-las.
humana nas leis da causalidade. Mas Um mesmo tipo de “truque”,
Chesterton faz a “mágica”, digamos se podemos dizer assim, está presente
assim, de inverter o ceticismo de Hume na defesa feita por Chesterton da
numa crença, numa fé, num tipo de monogamia.
encantamento. Eu nunca consegui envolver-me no
Muitas vezes, Chesterton abusa burburinho geral daquela nova geração
de sua capacidade argumentativa e contra a monogamia, porque nenhuma
restrição imposta ao sexo me parecia
literária. Há trechos de Ortodoxia
tão estranha e inesperada quanto o sexo
que parecem irrefutáveis na primeira em si. [...] Restringir-se a uma única
leitura, mas não tanto depois de um mulher é um preço pequeno diante
reexame. do simples fato de uma visita a uma
ORTODOXIA 281

única mulher. Queixar-me de que eu se tem a morbidez. O homem comum


só poderia casar-me uma vez era como sempre foi sadio porque o homem
queixar-me de ter nascido uma só vez. comum sempre foi um místico. Ele
Era algo desproporcionado em relação à aceitou a penumbra. Ele sempre teve
terrível emoção de que se estava falando. um pé na terra e outro num país
Aquilo mostrava, não uma sensibilidade encantado. Ele sempre se manteve
exagerada, mas sim uma curiosa livre para duvidar de seus deuses; mas,
insensibilidade ao sexo. Louco é quem ao contrário do agnóstico de hoje,
se queixa de não poder entrar no Éden livre também para acreditar neles. [...]
por cinco portas ao mesmo tempo. Assim, ele sempre acreditou que existia
A poligamia é a falta de realização do isso que se chama de destino, mas
sexo: é como quem apanha cinco peras também isso que se chama de livre-
de uma só vez num mero gesto de arbítrio. Assim, ele acreditava que as
insanidade. crianças eram de fato o reino do céu,
mas que deveriam obedecer ao reino
Por certo, o argumento funciona da terra. Ele admirava a juventude por
contra a poligamia, se a entendermos ser jovem e a velhice por não o ser. É
como o ato de casar com cinco mulheres exatamente esse equilíbrio de aparentes
contradições que tem sido a causa de
ao mesmo tempo. Mas nenhum polígamo
toda a vivacidade do homem sadio.
se casa com cinco mulheres ao mesmo Todo o segredo do misticismo é este:
tempo. Casa com uma, depois com outra. que o homem pode compreender
E o marido infiel poderia sempre dizer, tudo com a ajuda daquilo que não
no mesmo registro de Chesterton, que compreende. O lógico mórbido
seria insano o homem que se contentasse procura tornar tudo lúcido e consegue
com uma mesma sobremesa de peras ao tornar tudo misterioso. O místico
longo de décadas, sem querer pelo menos permite que uma coisa seja mística, e
experimentar uvas e maçãs. todo o resto se torna lúcido. [...] Sendo
A grandeza retórica de que tornamos o círculo como símbolo
da razão e da loucura, podemos muito
Chesterton pode ser avaliada melhor em
bem tomar a cruz como símbolo ao
outras passagens deste livro. A citação a mesmo tempo do mistério e da saúde.
seguir será longa, mas concentra muito [...] Pois o círculo é perfeito e infinito
do talento literário e da força intelectual em sua natureza; mas é fixo para sempre
do autor. Ousadia na aproximação de em seu tamanho; ele nunca pode ser
contrários; autoconfiança nas teses que maior ou menor. Mas a cruz, embora
expressa, com sinceridade pessoal e tendo no seu centro uma colisão e
artifício de sintaxe; clareza fulgurante contradição, pode estender seus quatro
dos paradoxos; sentido do ritmo, do braços eternamente sem alterar sua
“crescendo” da argumentação”; mais forma. Por ter um paradoxo em seu
centro ela pode crescer sem mudar. O
do que tudo, uma capacidade muito
círculo retorna sobre si mesmo e está
católica de transformar o raciocínio encarcerado. A cruz abre seus braços aos
abstrato em símbolo visual. Aqui vai: quatro ventos; é o poste de sinalização
Enquanto se tem um mistério se tem dos viajantes livres.
saúde; quando se destrói um mistério
282 COMMUNIO • Marcelo Coelho

Uma simples metáfora geomé- autoridade, e até mesmo a autoridade


trica – o círculo e a cruz – se torna, dos inquisidores para aterrorizar: essas
pela mágica de Chesterton, um todas são sombrias defesas erigidas em
argumento extremamente racional volta de uma autoridade central, mais
indemonstrável, mais sobrenatural de
em favor de um irracionalismo de
todas – a autoridade do homem de
base, e faz da obediência ao dogma
pensar.
um passaporte para a liberdade. Sem
dúvida, essa liberdade existe – e o livro A autoridade de Chesterton,
de Chesterton é um exemplo brilhante como pensador, é de fato
de como pode ser exercida. impressionante; mas o parágrafo acima
Mas seria preciso ser um não reconforta quem pense de modo
Chesterton para continuar sendo livre diverso do dele.
e alegre na obediência e na ortodoxia. É Houve na história exemplos
o privilégio de alguns santos. É também de autores que questionaram tudo
o pretexto dos espíritos sombrios, dos sem perder, com isso, a razão: Michel
inquisidores, dos que não vêem nos Montaigne (1533-1592) é um deles.
pecados e contradições do mundo Houve também visões de mundo
um motivo de celebração, mas sim de capazes de admitir a contraditória
anátema e de culpa. Um das grandezas, humanidade da coragem e do medo,
diria Chesterton, do catolicismo está no da compaixão e da justiça, do amor
fato de admitir todo tipo de impulsos doméstico e da lealdade cívica, sem
pessoais contraditórios dentro de si. acompanhar a ortodoxia cristã: o
Justifica, por exemplo, a valentia e a mundo de Homero e de Virgílio
cordura, a guerra e a paz, a severidade e (70-19 a.C.) nos fornece mitos
a bonomia. equivalentes aos da Bíblia nessa ordem
Sinal, a meu ver, de uma história de pensamento.
secular de acomodações institucionais Mas a “ortodoxia” de Chesterton
e doutrinárias que, no fundo, depõem é, no fundo, democrática e subversiva,
mais a respeito de sua vida terrena do e não hierárquica e submissa. Para ver
que de sua excepcionalidade espiritual. isso, basta encadear a citação inicial
Numa passagem de rara desta resenha com o raciocínio que
violência, Chesterton afirma que logo a acompanha.
Os credos e as cruzadas, as hierarquias O cristianismo, mesmo quando
e as horríveis perseguições não diluído, é forte o suficiente para
foram organizados, como dizem os reduzir toda a sociedade moderna a
ignorantes, para suprimir a razão. trapos [...] Você vai ouvir a vida inteira,
Foram organizados para a difícil defesa em todas as discussões sobre jornais,
da razão. O homem, por instinto cego, companhias, aristocracias ou partidos
sabia que, se uma única vez, as coisas políticos, o argumento de que o rico
fossem loucamente questionadas, a razão não pode ser subornado. O fato é,
poderia ser questionada primeiro. A naturalmente, que o rico é subornado;
autoridade dos sacerdotes para absolver, ele já foi subornado. É por isso que ele
a autoridade dos papas para definir a é rico.
ORTODOXIA 283

Apesar dos seus truques, dos seus fragilidades de raciocínio –, o autor


paradoxos, do seu humor, Chesterton de Ortodoxia é um grande, imenso
se mostra, num trecho como esse, autor. Tão imenso, tão contraditório e
altivo, desafiador e verdadeiro. Com questionável quanto as doutrinas que
tantas contradições – e, a meu ver, se dedicou a defender.

Marcelo Coelho
Professor de Jornalismo Cultural nas Faculdades Cásper Líbero, em São Paulo, e
colunista do jornal Folha de São Paulo

Cordeiro (1989)
Detalhe de afresco de Cláudio Pastro
Convento Maria Imaculada, Embu, SP
284 COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 284-286

O MUNDO DO SENHOR DOS ANÉIS:


VIDA E OBRA DE J. R. R. TOLKIEN
Ives Gandra Mantins Filho
São Paulo: Martins Fontes, 2ª edição, 2006. (157 páginas).

O s ingleses são mestres supremos na


arte de contar estórias. Os roman-
ces ingleses conjugam o elemento narra-
do da imaginação podem causar certa
estranheza aos leitores brasileiros, já
que nossa própria literatura foi muito
tivo com o elemento de surpresa como influenciada pelo estilo francês. Em-
nenhuma outra literatura e seguem bem bora os romancistas ingleses do século
de perto o princípio aristotélico de que XVIII tenham contribuído para conso-
uma obra de arte deve ter “começo, lidar o romance como gênero literário
meio e fim”. O que importa é o enredo e em nosso país, sua influência não se re-
não a atmosfera ou o estado psicológico fletiu no estilo da narrativa.
de determinada personagem. Acostumamos a pensar não
Desde o poema épico funda- existir o mundo autônomo da imagi-
mental da literatura inglesa, o Beowulf, nação. Temos o hábito de considerar
passando por Geoffrey Chaucer (1340- um bom romance aquele que repro-
1400), William Shakespeare (1564- duz a vida real em todas as incertezas,
1616) e John Milton (1608-1674), o tragédias; aquele que prescruta a alma
mitológico, o fantástico e o maravi- das personagens em busca das mais ín-
lhoso sempre estiveram presentes na timas reflexões. Assim como na vida, o
ficção inglesa. No século XIX, quan- romance pode terminar numa espécie
do segundo G. K. Chesterton (1874- de indecisão, deixando a porta aberta
1936), “A ciência anunciou o não-ente / para uma série de significados poste-
a arte admirava a decadência”, vemos a riores.
tentativa de recuperação da imaginação Ao lidar com a temática do fan-
em figuras como o cardeal John Henry tástico, os poucos escritores nacionais
Newman (1801-1890), um dos líderes que se dedicaram ou tentaram algo no
do movimento de Oxford, e em escri- gênero, como Murilo Rubião (1916-
tores como George MacDonald (1824- 1991) ou José J. Veiga (1915-1999),
1905) e, no início do século XX, o pró- acabaram por inserir os elementos
prio Chesterton, ao defender a ética do fantásticos na narrativa de modo a
reino encantado. “transfigurar” a realidade. Seja psico-
Tanto a ênfase na lógica do en- lógico ou fantástico, o realismo é a tô-
redo quanto a intimidade com o mun- nica da literatura nacional.
O MUNDO DO SENHOR DOS ANÉIS: 285
VIDA E OBRA DE J. R. R. TOLKIEN

A criação de um mundo secun- do e primosoramente editado em cores


dário, como nos mostra J. R. R. Tolkien e papel couché, tem como objetivo,
(1892-1973) em Sobre Contos de Fadas, exatamente, introduzir o leitor e o es-
nos assusta. Desde a infância fomos cria- pectador nesse mundo imaginado por
dos num “Sítio” onde o maravilhoso e o Tolkien.
fantástico vinham, de vez em quando, A trilogia O Senhor dos Anéis ser-
nos visitar, mas ao “Sítio” sempre retor- viu de mote para a apresentação do que
návamos. Nunca estivemos plenamente seria toda uma mitologia tolkieniana.
no mundo secundário. A obra, além de uma breve introdução
Portanto, para o leitor nacional, sobre o objeto das mitologias em geral,
“a chave do tamanho” da interpreta- traça alguns paralelismos entre o mun-
ção do mundo secundário tem de ser a do de Tolkien e a cosmovisão cristã e
crítica da realidade. Nossa imaginação entre os livros e a versão cinematográ-
tem de se ancorar no real e não admite fica. A seguir, apresenta uma breve bio-
a “fantasia pela fantasia”. E até hoje a grafia do autor e uma classificação dos
“imaginação” nacional tende a ser uti- seres que habitam as Terras de Tolkien
litária, “didatizante”, limitada e limi- segundo a própria natureza, num qua-
tante. Entendemos alegorias, mas não dro pictórico onde cada nome é gra-
metáforas. Não transcendemos. fado em cor diferente, o que facilita
Graças ao cinema, o imaginário bastante a compreensão do leitor não
nacional foi tomando ciência da existên- familiarizado com o universo do filó-
cia de um mundo secundário que pode- logo inglês. O estudo se completa com
mos confortavelmente habitar. Desde o árvores genealógicas de várias gerações
aparecimento de filmes como A história dos principais elfos, homens, ananos
sem fim (1984), baseado na estória do e hobbits que aparecem nas diversas
alemão Michel Ende (1929-1995) até obras e tabelas de correspondência de
o recente longa-metragem de animação nomes que levam e conta as várias tra-
Coraline (2009) de Neil Gaiman, per- duções para a língua portuguesa.
cebemos que certas questões humanas Além disso, o estudo de Ives
são tratadas com maior profundidade Gandra Martins Filho conta com o
ao adentrarmos nesse universo parale- resumo das quatro principais obras de
lo. Certamente, um dos marcos de tal Tolkien, O Silmarillion, O Hobbit, O
percepção foi o estrondoso sucesso da Senhor dos Anéis e Os contos inacabados
trilogia cinematográfica O Senhor dos de Númenor, segundo as tábuas cro-
Anéis (2001, 2002, 2003), do diretor nológicas apresentadas n’O Senhor dos
Peter Jackson, que também nos abriu as Anéis e obedecendo as marcações de
portas para as demais obras literárias do cores estabelecidas no quadro pictórico
Professor Tolkien. anteriormente apresentado, visando lo-
O estudo de Ives Gandra Mar- calizar os principais episódios da saga.
tins Filho, O mundo do Senhor dos Por fim, são acrescentados os mapas,
Anéis: vida e obra de J. R. R. Tolkien, já em cores, das diversas terras menciona-
em segunda edição, ricamente ilustra- das nas obras.
286 COMMUNIO • Márcia Xavier de Brito

O mundo do Senhor dos Anéis é temia os efeitos desumanizadores


obra de referência e consulta muito útil de uma visão de mundo que tenta
para todos os ensaístas e ficcionistas restringir a realidade ao sensível e
que se inspiram em Tolkien, bem como mensurável, ou que busca eliminar
para os estudiosos da obra tolkieniana e reduzir a dimensão espiritual. Nos
(confesso que o estudo foi bastante uti- versos relembra que aos homens cabe
lizado na revisão do presente número a co-criação: “homem, sub-criador,
de Communio). Para os iniciantes, é luz refratada / em quem a cor branca
uma excelente introdução ao maravi- é despedaçada / para muitos tons, e
lhoso universo dessa nova mitologia recombinada, / forma viva mente a mente
inglesa. passada” e adiante afirma a liberdade
Aos que condenam as obras de humana da criação, “Criamos tal como
Tolkien como inúteis e perigosas, e não fomos criados” sejam elfos, dragões
compreendem o valor das mitologias, ou fadas. O mal está na violência, na
vale lembrar a resposta que o próprio ignorância, no erro do olhar. “Benditos
autor deu ao amigo C. S. Lewis (1898- os que em rima fazem lenda”.
1963) no poema Mythopoeia. Tolkien

Márcia Xavier de Brito


Editora Assistente de COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura e
Vice-Presidente de Relações Institucionais do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia
Personalista (CIEEP).

Saudade de Santa Teresa (1975)


Óleo sobre tela de Otávio Araújo
Coleção Pereira de Magalhães, São Paulo, SP
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 287
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 287-288

O saber dos antigos: Terapia para


os tempos atuais
Giovanni Reale
Traduzido para o português por Silvana Corbucci Leite
São Paulo: Edições Loyola, 2ª edição, (261 páginas)

N ão há palavras suficientes que


descrevam a alegria intelectual e
espiritual proporcionadas pela leitura
automaticamente por milhões de
homens – o “homem-massa” de José
Ortega y Gasset (1883-1955) – na
de O saber dos antigos: Terapia para crença cega de que seja fé em coisas
os tempos atuais, do filósofo italiano verdadeiras – o que Eric Voegelin
Giovanni Reale. (1901-1985) chamava de “Segunda
A obra é uma crítica muito Realidade” –; adotada por outros
bem fundamentada ao niilismo de mediante simulação, em que se finge
Friedrich Nietzsche (1844-1900), acreditar em sua realidade; e utilizada
Martin Heidegger (1889-1976) e pelos ideólogos para levar multidões
outros sempre festejados “filósofos” de incautos sem qualquer capacidade
e escritores. O niilismo é um corpo de percepção da verdadeira realidade
de idéias apontado por Reale como – a “Primeira Realidade” de Voegelin
“a raiz de todos os males que atingem – a acreditarem que seja verdadeiro
o homem de hoje”, cuja erradicação aquilo que eles incitam a crer, quer
requer um tratamento enérgico, que eles próprios acreditem naquilo, quer
consiste em anulá-lo, por meio da não. Como aparece nos Fragmentos
recuperação de ideais e de valores Póstumos de Nietzsche, “é necessário
supremos, bem como a derrocada do que algo seja considerado verdadeiro;
ateísmo e do “assassinato de Deus”, não que algo seja verdadeiro”... Coisa
de que Nietzsche sempre fez questão digna de farsantes da pior espécie.
de se vangloriar. Reale sugere, com A afirmativa de que “Deus está
formidável erudição, que parcela morto” é, para o filósofo italiano, o
considerável dessa terapia pode emblema do niilismo, significando que
ser encontrada na sabedoria grega, o mundo meta-sensível ou metafísico
especialmente em Platão (428-347 dos ideais e dos valores supremos,
a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). concebido como um ser e como uma
O autor mostra, com clareza realidade em si, como causa e como
cristalina, que a ideologia não passa de fim, como aquilo que dá sentido
uma forma de fé imanente, abraçada a todas as coisas materiais e à vida
288 COMMUNIO • Ubiratan Iorio

humana, perdeu toda a consistência e à sabedoria (saggezza) dos antigos,


toda a importância. que pode proporcionar uma série
É naturalmente impossível de remédios que, se não eliminam
resumir em uma pequena resenha toda todos os males, podem, na pior das
a argumentação de Reale, mas vale hipóteses, mitigá-los profundamente,
reproduzir os dez itens aos quais dedica impondo-se como pólo dialético e,
dez capítulos, que são o cerne do livro portanto, como imprescindível termo
e que, para ele, enfeixam os males de comparação na árdua tarefa de
modernos e os disfarces niilistas dos reconduzir o homem moderno à sua
valores perdidos, que os vêm levando dignidade perdida e esquecida.
ao esquecimento: Em suma, o homem de hoje
1) O cientificismo e o redimen- tenta a todo o custo eliminar o passado,
sionamento da razão do homem em em nome de pretensos “avanços e
sentido tecnológico; progressos”, mas essa forma de tentar
2) A absolutização do ideologismo e a projetar-se no futuro é irracional,
rejeição do ideal do verdadeiro;
porque termina aniquilando o próprio
3) O praxismo, mediante sua exaltação
da ação pela ação, em detrimento do futuro, exatamente porque o desprovê
ideal da contemplação; de um necessário passado que lhe sirva
4) A identificação do bem-estar de termo de referência. Como observa
material como sinônimo da felicidade; Reale, não é extirpando as raízes de
5) a difusão da violência; uma planta que se joga fora eventuais
6) A perda do sentido da forma e a galhos que apodreceram com o tempo.
distorção da estética; O amanhã não pode existir sem o hoje
7) A redução do Eros à sua mera e este não pode ser real sem o ontem!
dimensão física, com o esquecimento Recomendo com todas as
da “escala de amor” platônica e a
estrelas possíveis a leitura de O Saber
deturpação do verdadeiro amor;
8) A redução do homem a uma dos Antigos, bem como de toda a
única dimensão e a exacerbação do obra de Giovanni Reale, um filósofo
individualismo; com F maiúsculo e com H, também,
9) A perda do sentido do cosmos e do maiúsculo de homem, no sentido de
fim último de todas as coisas; que assume a condição e a dignidade
10) O materialismo em todas as suas humanas em sua integridade.
formas e o conseqüente esquecimento Precisamos combater o niilismo
do ser. com todas nossas forças, para a nossa
própria felicidade, aquela que só é
Para curar esses terríveis males compatível com a Primeira Realidade.
do espírito, Giovanni Reale recorre

Ubiratan Iorio
Professor de Economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Presidente
Executivo do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP) e Membro
do Conselho Editorial de COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 289
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 289-292

COMO A IGREJA CATÓLICA


CONSTRUIU A CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL
Thomas E. Woods Jr.
Tradução de Élcio Carillo
São Paulo: Quadrante, 2008 (222 páginas)

V ocê não conhece Alfredo. Mas já


ouviu falar muito dele. Alguns
o retratam como uma pessoa de uma
polêmicos usados para criticar a Igreja.
Sempre se está à volta com a Inquisição,
Galileu Galilei (1564-1642), Pio XII,
magreza cadavérica, enquanto que as Cruzadas, etc. Não se percebe que
outros afirmam que ele sofre de uma o pior já aconteceu: uma geração de
obesidade doentia. Analogamente, católicos com um profundo complexo
uma situação desse tipo, contraditória de inferioridade. Em meio a uma roda
e esquisita acabou servindo como de ex-católicos, de agnósticos, ou
ocasião para G. K. Chesterton (1874- coisa que o valha, encontra-se um fiel
1936) se aproximar do cristianismo, envergonhado que, com muito custo,
estudá-lo, conhecê-lo e aderir-se no escurinho do cinema, admite certa
incondicionalmente. simpatia pela Igreja, apesar dos pesares.
Cem anos depois, qualquer Isso quando não encontramos um
pessoa que acompanhe a grande mídia, clérigo que pede perdão pelo passado
o adolescente que compra na banca da Igreja ante qualquer cientista social
da esquina as revistas ditas de ciência ou psicólogo que apareça com um
e história, ou ainda o estudante que lê novo discurso.
apostilas do vestibular têm todos ainda Quem sintetiza essa situação é
a mesma sensação. Ainda que não Léo Moulin (1906-1996), agnóstico,
costumem ter a mesma reação que teve professor durante cinqüenta anos de
o escritor inglês. Quando o assunto Historia e Sociologia na Universidade
é a Igreja Católica invariavelmente de Bruxelas:
o comentário é negativo: ela sempre Levai em conta este velho incrédulo
erra por falta ou por excesso. Numa que sabe o que diz: a obra mestra da
sociedade que pretende derrubar todos propaganda anticristã é ter conseguido
os preconceitos, alimenta-se o último criar nos próprios cristãos, sobretudo
nos católicos, uma consciência
preconceito válido: criticar a Igreja.
pesada, inculcando a inquietação,
A apologética cristã precisa a vergonha pela própria história. A
sair da defensiva. É cansativo ler força de insistir, da Reforma até hoje,
livros e artigos que procuram explicar conseguiram convencer-vos de que
e contextualizar os fatos e temas sois os responsáveis por quase todos
290 COMMUNIO • Mauricio Dominguez Perez

os males do mundo. Conseguiram de estudantes. A surpresa foi mútua: o


paralizar-vos na autocrítica masoquista alemão não entendia que eles tivessem
para neutralizar a crítica àqueles que como meta revolucionária a democracia
ocuparam vosso lugar (citado em: pluralista e os tchecos não saiam do
MESSORI, Vittorio. Leyendas de
assombro ao perceber que o grupo
Negras de la Iglesia. Barcelona: Editorial
Planeta, 1992. p. 11).
terrorista quisesse sair da democracia
para um regime marxista. Quando um
É necessário partir para o católico europeu ou sul-americano se
ataque, dar a conhecer as luzes que apresenta como um dissidente – o que
predominam amplamente no quadro normalmente leva consigo uma crítica
bimilenar do cristianismo. A tarefa às raízes cristãs do seu país – é de supor
mais urgente da apologética é recuperar que um católico chinês, indiano ou
para os católicos um sadio complexo de polonês (antes de 1989) deva reagir
superioridade. Por isso, chega em boa com espanto, imaginando que essa
hora a tradução para o português da atitude é semelhante a de uma criança
obra de Thomas Woods, How Catholic mimada que, tendo tudo, sempre
Church Built Western Civilization. reclama. É preciso fazer o esforço por
Ao longo de onze capítulos, o livro não se acostumar com o que se encontra
procura mostrar a contribuição da ao nascer, em não pensar que o que se
Igreja e do cristianismo em cada um tem hoje vem de sempre, antes é fruto
dos pilares da sociedade ocidental: na de uma conquista longa e difícil.
preservação e fomento da cultura, na Um exemplo interessante é
universidade, na ciência, na arte, no descrito no quinto capítulo. Sabe-
direito, na economia e na moral. Numa se que a universidade surgiu sob a
linguagem acessível, sem ser superficial, iniciativa e os cuidados da Igreja
atende tanto aqueles que confundem os Católica. Mas é pouco conhecido que
apóstolos com as epístolas, como para a ciência somente prosperou de modo
os que detêm um conhecimento mais estável e orgânico no ocidente e que isso
orgânico da religião cristã e da história foi possível graças ao papel da teologia
geral. e filosofia medieval. A ciência parte de
A chave para compreender o pressupostos. Uma visão panteísta do
conteúdo do livro, isto é, para perceber mundo torna-a inviável. Mas a certeza
o papel basilar da Igreja na formação de um Deus criador, que dotou o
da sociedade, é conseguir enxergar a mundo de ordem e razão e que criou
própria cultura em que se está inserido. um ser humano capaz de desvendar
Isso não é fácil. Um peixe não se as leis que regem o cosmo, tornou
sente molhado na água. Em 1968 possível um crescimento sustentável do
um integrante do grupo terrorista saber científico. Segundo o historiador
marxista alemão Baader-Meinhof foi a da ciência Thomas Goldstein:
Num período de 15 a 20 anos em
Tchecoslováquia, em plena primavera
torno da metade do século XII, um
de Praga, encontrar-se com um grupo grupo de homens conseguiu dar
COMO A IGREJA CATÓLICA CONSTRUIU A CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL 291

partida a evolução da ciência ocidental, solidariedade, o voluntariado, a


enfrentando com sucesso cada uma assistência social, é motivo de orgulho
das etapas necessárias para atingir essa para qualquer cristão saber que nesse
finalidade. campo a Igreja não só se excedeu
ao longo de 2000 anos, mas foi,
Quando o Papa Paulo VI sobretudo, quem incutiu no mundo
nomeou São Bento (480-547) ocidental esses valores. A certeza de
patrono da Europa, é comum pensar que toda pessoa é um ser humano,
em primeiro lugar no papel que filho de Deus, que todos são irmãos,
teve a espiritualidade beneditina possibilitou o espírito de compaixão e
na mentalidade do europeu. Mas é o heroísmo de tantos cristãos em doar
gratificante saber da contribuição dos a vida para atender leprosos, famintos
monges num aspecto tão profano e e todo o tipo de miseráveis. Isso não é
material: como afirma Henry Goodell, trivial. Para Sêneca (4 a.C.-65 A.D.),
que foi presidente do Massachusetts por exemplo, o sábio consolará os que
Agricultural College: choram, mas, sem chorar com eles,
Devemos celebrar o trabalho desses
não sentirá pena. Sua compaixão e
antigos monges ao longo de 1500 anos.
Eles salvaram a agricultura quando
sua alma não manifestarão nenhuma
ninguém mais teria podido fazê-lo. emoção ao olhar para um coxo ou
Elas a praticaram sob condições que miserável esfarrapado. Essa mudança
ninguém teria conseguido. de mentalidade é que credita aos
cristãos serem os criadores do hospital,
Quando William Blake (1757- instituição hoje assimilada por todos,
1827) escreveu o seu famoso poema gregos e troianos.
Jerusalém, certamente não tinha Também é bastante admirável
presente que a “England’s green and o papel da Igreja na reformulação da
pleasant lands” não nasceu assim. Onde moral ao longo dos cinco primeiros
antes era nada mais que um mangue, séculos. Aboliu o infanticídio, a luta
canais escuros, lagoas, pântanos, capim de gladiadores, a escravidão e o aborto.
e fentos, com o trabalho feito a partir Para a sensibilidade contemporânea há
dos mosteiros apareceram as vinhas, ideal mais nobre que a defesa da vida?
árvores frutíferas e até os famosos Não é este um motivo que por si só
gramados ingleses. Num momento ilumina todo o passado católico?
em que a catequese é tão mal vista nos O autor aborda outros temas
ambientes intelectuais, é oportuno de grande interesse como a separação
recordar que São Bonifácio (672-754), entre Igreja e Estado, as origens do
apóstolo da Alemanha, abriu uma direito internacional e a elaboração
escola em cada mosteiro que fundou, das bases da economia de mercado ao
assim como Santo Agostinho de longo da idade média. Neste último
Canterbury (†604) na Inglaterra. caso, Woods leva em conta a sua
Num mundo moderno paixão particular pela escola liberal. Ao
que privilegia e valoriza tanto a rebater as incoerências do pensamento
292 COMMUNIO • Mauricio Dominguez Perez

econômico marxista deixa de levar do cristianismo são a sua arte e os


em conta todo o trabalho recolhido seus santos. Numa palavra, a beleza.
na Doutrina Social da Igreja, que vai Thomas Wood recorda no seu livro
muito além dessas dicotomias. que a história da Igreja também tem
Também se sente a falta de um uma grande beleza, não só para os
capítulo que trate do papel da Igreja em seus fiéis, mas para todo o mundo
promove o respeito e a dignidade da civilizado. É muito importante que
mulher. Tema que foi objeto de estudo colégios, catequeses, enfim, todo o
pela historiadora francesa Régine ensino cristão, trabalhe também com
Pernoud (1909-1998) e recolhido em essa dimensão e recuperem para os fiéis
seus diversos livros e artigos. o bom orgulho de ser cristãos.
Quando era cardeal, Joseph
Ratzinger dizia que a melhor apologia

Mauricio Dominguez Perez


Professor do Instituto Brasileiro de Mercados e Capitais do Rio de Janeiro (IBMEC-RJ),
Mestre em Marketing pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas (EAESP-FGV) e Doutor em História pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ)

Sereias e Golfinhos (Século XX)


Escultura em bronze de Emile Guillaume (1867-1942)
Palácio das Laranjeiras, Rio de Janeiro, RJ
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 293
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 293-295

ELIOT AND HIS AGE: T. S. ELIOT


MORAL MAGINATION IN
TWENTIETH CENTURY
Russell Kirk
Introdução de Benjamin G. Lockerd Jr.
Wilmington: ISI Books, 2ª edição, 2008. (408 páginas).

S em dar sinais de que percebe a


movimentação, o Ocidente vai, aos
pouquinhos, apertando a corda que
harmônica entre Jerusalém e Atenas.
Mas, pergunto, será que estes valores
feneceram mesmo, de uma vez por
circunda seu próprio pescoço. Tempos todas, c’est fini? Afinal de contas, quem
esquisitos, estes. Antes de aprender foi lá sentir seu pulso?
com o passado, devemos modificar o Ai daquele que, sentindo o
presente. Antes de continuar, devemos cheiro acre do enxofre, ciente de que
romper. Antes de proteger, devemos é muito mais fácil destruir do que
mudar. Change, change, change. No construir, pense em hastear a bandeira
ritmo da tiraria do progresso, ninguém do conservadorismo, palavrinha de
escapa desta marchinha infernal. semântica quase pecaminosa em
Se parece mesmo que a certos meios. “Olhem o reacionário,
civilização ocidental está à beira o medieval, o inimigo do destino
do suicídio iminente, não é senão histórico!”, farfalharão os mocinhos,
em função de um sem-número de para gáudio dos corações atormentados
agentes funerários espalhados pelas pelo niilismo secular. A vitória parece
cátedras universitárias, páginas de consumada.
livros consagrados e pelos meios de Mas não percamos as esperanças,
comunicação, dos mais rasteiros aos amigos e amigas. Já há tristeza que
mais sofisticados, dispostíssimos a baste na vida, sem que precisemos de
declarar como mortos nossos valores relativistas mil a demolir nossos valores
mais centrais, mais fundamentais, civilizacionais mais caros. Sabemos que
mais perenes, embalsamando-os em não marchamos para Sião; contudo,
praça pública, na frente de mulheres nada impede que plantemos algumas
e crianças. Sim, sim, alguns podem árvores nesta “Terra Devastada”. Mas
nem ter percebido, mas isto aconteceu. quem tem a receita?
A seu bel-prazer, eles sepultaram Para um paraíso terrestre,
aqueles mesmos valores herdados de seguramente não há receita, pois, no
milhares de anos de cultura judaico- espírito de Benjamin Disraeli (1804-
cristã e talhados numa espécie de fusão 1881), “existem tantos planos, e tantos
294 COMMUNIO • Rodrigo Simonsen

esquemas, e tantas razões para não épocas da história sempre conspiram


existirem nem planos nem esquemas”. para fazer com que seu pensamento
Agora, se você está menos preocupado pareça o único possível, o caminho
com contingências momentâneas do definitivo, e nossa época é a que
que com os alicerces que permitiram menos resiste ao triunfo de seu próprio
a sobrevivência do ocidente até os dias rumo. Devemos saber, com base na
de hoje, e sabe que não existe ordem observação histórica, que aquilo que
moral que subsista sem que precisemos, uma era considera sua maior virtude
dia após dia, cultivá-la, aprimorá-la e é, na maioria das vezes, sua grande
defendê-la, então não perca tempo e perdição, vício ou perigo – a virilidade
compre logo esta maravilha chamada romana, a devoção espanhola, a classe
Eliot and His Age: T. S. Eliot Moral britânica, a autenticidade alemã.
Imagination in Twentieth Century, Se a essência da educação
escrita por ninguém menos do que é a experiência da grandeza, Eliot
o founding father do pensamento sabe do seu tamanho e quem deve
conservador norte-americano, Dr. reverenciar. “O que não puderam
Russell Kirk (1918-1994). Muito mais transmitir os mortos, quando vivos,
do que mero retrato biográfico do podem eles dizer-te enquanto mortos”.
maior poeta do século XX, o gigante Neste sentido, a literatura, em sua
T. S. Eliot (1888-1965), a obra é mais alta conta, é uma experiência
reveladora dos aspectos intelectuais ética, formativa, educacional; ela deve
mais profundos deste mestre da apreender a chamada “imaginação
literatura, dos interesses filosóficos mais moral”, expressão retirada dos escritos
prementes do próprio Russell Kirk, dos de Edmund Burke (1729-1797), o
caracteres gerais mais importantes da pai de todos os conservadores, que
nossa era e, de brinde, de poderosos é exatamente aquilo que separa os
insights sobre a natureza humana. homens dos macacos, apesar do
Aprendemos, por meio de lições empenho incessante que os modernos
valiosas, que a impressão de progresso possuem de igualar-nos às bestas. Não
advém do mero esquecimento, que há civilização que resista sem este fundo
aniquila os termos de comparação imaginário comum, que aponta a mais
e cria um passado sob medida para nobre hierarquia de valores das pessoas,
a vaidade e as ilusões correntes. Por povos e nações. É este esforço contínuo
definição, ninguém dá pela falta do de expulsão do barbarismo e captação
conhecimento perdido. O crepúsculo das mais altas aspirações humanas
da consciência vem quase que que juntou Sófocles (496-406 a.C.)
invariavelmente acompanhado de um e Aristófanes (447-385 a.C.), Platão
sentimento de ascensão luminosa. Só (428-347 a.C.) e Cícero (106-43 a.C.),
o homem que sai em busca do que foi Tucídides (460-395 a.C.) e Aristóteles
esquecido, deixando para trás todos (384-322 a.C.), Dante Alighieri (1265-
os preconceitos cronocêntricos, tem a 1321) e William Shakespeare (1564-
medida da miséria de sua era. Todas as 1616), Johann Wolfgang von Goethe
ELIOT AND HIS AGE: T. S. ELIOT MORAL MAGINATION IN 295
TWENTIETH CENTURY

(1749-1832) e Honoré de Balzac num piscar de olhos, arruinar todo


(1799-1850), Nathaniel Hawthorne um projeto civilizacional. Quando
(1804-1864) e T. S. Eliot. toda a mesquinhez da era moderna
Como compreendemos nesta desaparecer e toda a poeira gerada pelas
obra de referência, aquilo que gerações cinzas dos ídolos de pés de barro baixar,
e gerações de homens produziram, só uns poucos homens terão seus pés
merece ser resguardado com a fincados na grandeza intemporal. E,
delicadeza de quem sabe que uma sem dúvida alguma, T. S. Eliot está
só lufada de ventos bárbaros pode, entre eles.

Rodrigo Simonsen
Graduado em Propaganda e Marketing pela ESPM e Aluno do Programa de Estudos Pós-
graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP)

A tentação de Santo Antônio (1987)


Óleo sobre tela de Otávio Araújo
Coleção do Artista, São Paulo, SP
296 COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 296-297

A CRÍTICA DA RELIGIÃO
Urbano Zilles
Porto Alegre: Edições Est, 2009. (224 páginas)

O autor, professor da Pontifícia


Universidade Católica do Rio
Grande do Sul e membro do Conselho
“O ateísmo de Ludwig Feuerbach”;
“O materialismo de Karl Marx”; “O
Niilismo de Friedrich Nietzsche”;
Editorial de COMMUNIO: Revista “O existencialismo de Sartre”; “O
Internacional de Teologia e Cultura, ateísmo psicanalítico de Freud”;
tem publicado obras de Teologia e de “O ateísmo científico de Dawkins”;
Filosofia, dentre as quais se destacam: “Argumentos da crítica da religião”.
Filosofia da Religião; O problema do Passando pelos principais
conhecimento de Deus; Religiões: crenças mestres da suspeita ou da rejeição
e crendices; O racional e o místico em religiosa, o autor com isenção e
Wittgenstein; Crer e compreender; A fidelidade dá a conhecer de modo
significação dos símbolos cristãos; Fé e sucinto a crítica que fazem à religião
razão no pensamento medieval. e muitas vezes ao cristianismo.
Com A Crítica da Religião Muito válida é a crítica feita a
retoma e completa a temática dos critica elaborada com equilíbrio e
livros anteriores, cujo conteúdo competência. Salienta o alcance e
diferenciado, mas relacionado, os limites dos que se propuseram a
constitui seu interesse e dedicação no detonar a religião, partindo de um
magistério universitário. Conforme ateísmo postulatório e de posições
diz na Introdução, o livro se origina preconcebidas e até preconceituosas.
“de um curso ministrado aos alunos Entretanto, não cai na apologia fácil
do Programa de Pós-Graduação em e ufanista. Reconhece, ao contrário,
Filosofia da PUCRS, no segundo que também as Escrituras e a Teologia
semestre de 2008” (p. 11). são críticas da religião. Inclusive,
A obra se divide em ele não se imbui dos métodos
onze capítulos didaticamente defensivos e combativos da antiga
distribuídos: “Religião no mundo apologética. Assim se mantém no
da tecnociência”; “A crítica da equilíbrio próprio do ato de filosofar,
religião na Antiguidade”; “A crítica que capacita ao diálogo com idéias,
da religião na Modernidade”; “O concepções e interpretações, mesmo
ceticismo religioso de David Hume”; quando são divergentes entre si ou
A CRÍTICA DA RELIGIÃO 297

contrárias à convicção do pensador, renovadores e purificadores da História


professor e escritor. da Igreja Católica o comprovam.
O autor embora admita que Entretanto, também aqui a obra de
Jesus criticara a religião, diz menos Urbano Zilles vale pelo que afirma
quando afirma ter Ele exercido “a independentemente do que omite.
função de reformador da religião” (p. 43). O livro é concluído com as
É mais do que reformador diante da seguintes considerações, que convém
religião pregada e vivida pelos fariseus, reproduzir:
saduceus, doutores da lei e sacerdotes. Se, Jesus, no Evangelho, diz:
Jesus, além de crítico contumaz de “Dai a César o que é de César e a
todos eles, rejeita a noção de salvação Deus o que é de Deus”, cabe dizer:
que veiculam. Apresenta-se, pois, “Deixemos a ciência ser ciência,
pois apenas é ciência. Mas
como “revolucionário” ou renovador
também deixemos a religião ser
e foi considerado um sublevador. Haja religião”. Em nossa vida lidamos
vista a pregação sobre o “Reino de com problemas que se resolvem,
Deus”, a atitude em face aos pecadores e o mistério sempre permanecerá
e marginalizados e as interpretações mistério. A consciência da fé
inovadoras da lei: “Ouvistes que foi dito religiosa abre-nos para a dimensão
aos antigos... Eu, porém, vos digo” (Mt do mistério, sem fugir dos
5,21-22). Se fosse apenas reformador problemas do mundo (p. 224).
não teria sido expulso da sinagoga e
certamente não morreria na cruz. Tal equilíbrio de percepção e de
Quanto a Paulo (p. 44), dado ação é um dos grandes méritos da obra
que o livro não é bíblico nem teológico, de Urbano Zilles. Contribui para não
o autor poderia ter aludido de passagem ingerência entre razão e fé, o respeito
às controvérsias paulinas contra as às devidas instâncias e o diálogo
religiões pagãs, os cristãos judaizantes, recíproco, quando possível, apesar das
e as polêmicas contra os membros das tensões.
comunidades eclesiais por ele fundadas, Recomendamos a obra aos
em nome da fé e da prioridade da graça. leitores de COMMUNIO e a todos os
De fato, as Epístolas contêm críticas que se interessam pela religião, sob a
significativas à religião e possibilita ótica de seus críticos, ou apreciam os
uma constante e saudável autocrítica elementos de discussão e de resposta
cristã e eclesial. O protestantismo aos que divergem da nossa fé.
da Reforma e os movimentos

Edson de Castro Homem


Bispo Auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro e Editor Responsável de COMMUNIO:
Revista Internacional de Teologia e Cultura.
298 COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 298-299

SMART SEX: FINDING LIFE-LONG


LOVE IN A HOOK-UP WORLD
Jennifer Roback Morse
Prefácio de Chuck Colson
Dallas: Spence, 2005. (260 páginas)

N o início do século XX, G. K.


Chesterton (1874-1936) escreveu
dois livros What’s Wrong with the World
nos faz visualizar o porquê das supostas
alternativas à família não terem
funcionado e não poderem dar certo.
[O que há de errado com o mundo] Mas também, para não ser totalmente
e Eugenics and Other Evils [Eugenia negativa, ela explica exatamente o que
e outros males], onde é descrita a fazer para restabelecer, mesmo em meio
natureza essencial da família – marido, ao caos moral, a verdadeira família
esposa e filhos – e da propriedade, com base em princípios e, é claro, em
contra idéias e instituições que estavam regras que funcionam. Esse é um livro
as ameaçando, bem como ameaçando franco, direto, certamente divertido,
a própria vida da civilização. A maioria e ao mesmo tempo, pessoal. Morse
das coisas que Chesterton pensou relata que, ela mesma, já defendeu
que dariam errado deu errado do muitas dessas aberrações – e de forma
modo como suspeitou. Passado um acadêmica, pois a autora é economista
século desses escritos de Chesterton, de formação e possuidora de uma
os ataques à família como instituição, lógica brilhante. O livro também trata
à dignidade e natureza do casamento da cultura, o que há de errado e como
e da criança, especialmente à mãe, consertá-la.
ao significado de um homem e uma O livro é uma delícia de ler,
mulher, marido e mulher, tornaram-se bem como uma educação a respeito
lei, costume e cultura popular. das contradições da literatura que
Desde a obra Love & Economics: pretende defender o aborto, o divórcio,
Why the Laissez-Faire Family Doesn’t a co-habitação, a promiscuidade nas
Work [Amor e Economia: Porque universidades e uma centena de outras
a família liberal não funciona], em variantes sobre temas de “direitos
2002, e agora com o presente volume da mulher”, carreira profissional,
Smart Sex: Finding Life-Long Love in liberdade sexual e política. “O cientista,
a Hook-Up World [Sexo inteligente: que acredita na permanência da natureza
Como continuar casado num mundo humana, considera a religião como
interligado], Jennifer Roback Morse essencial. O pós-moderno, que acredita
SMART SEX: FINDING LIFE-LONG LOVE IN A HOOK-UP WORLD 299

na infinita maleabilidade da natureza ensina que temos necessidade de ajuda


humana, vê a religião como inimiga. Não e que não é nada de mais precisar e ser
há algo estranho nesse, assim chamado, necessário.
‘debate’?” (p. 14). Esse é exatamente É um livro para mulheres que
o argumento de Chesterton: aqueles pensam, escrito por uma mulher
que atacam a sanidade sempre se que pensa muito claramente. Num
contradizem. certo nível é mesmo um livro sobre
O livro é dividido em três Economia, onde essa disciplina cabe e
grandes partes: 1) “Por que o Seu onde não cabe. Certamente, a vocação
casamento interessa ao resto do intelectual de Morse é ensinar aos
mundo”, 2) “O problema de consumir economistas que a família não é uma
sexo”, 3) “A autodoação corretamente instituição do livre-mercado, mesmo
compreendida”. não havendo nada de errado com o
Assim como Chesterton, Morse livre mercado. A família requer uma
entende a necessidade de salvaguardar a concepção que está além da utilidade –
família do Estado. Ela também vê que requer sacrifício, generosidade e amor.
o governo interfere na família porque A essência do livro é o primado
os homens e mulheres têm problemas da autodoação sobre o auto-interesse,
pessoais e os relacionamentos deixam sem negar o legítimo lugar do auto-
muitas crianças, mulheres (e homens interesse. É um livro maravilhoso
também) num estado de dependência e memorável. Une as coisas de um
ou desespero. A discussão de modo que raramente vemos. Morse
Morse sobre a vida nas repúblicas e demonstra a incoerência das posições
dormitórios universitários, sobre sua pró-escolha e a sanidade do papel
verdadeira incoerência, vale o dinheiro clássico de paternidade e maternidade.
gasto no livro, mas o livro vale muitas De fato, o que é ser mãe e pai, poucas
vezes seu preço. vezes, é explicado com clareza.
Talvez, a parte mais importante Esse é, simplesmente, um livro
desse livro, algo que Morse obviamente obrigatório para casais que desejam
percebeu ao sobreviver a essas idéias e casar, para pastores, para casais casados
chegar à sanidade, é o conselho, aos que querem refletir sobre o significado
jovens e aos homens e mulheres de do casamento. Morse é única,
meia-idade, sobre como se salvarem, espirituosa, sincera, direta, inteligente,
ao salvar o casamento e os filhos. Na mística. Não há outro livro como esse.
tradição de Walker Percy (1916-1990), Não perca essa oportunidade!
esse é um livro de “auto-ajuda” que nos

Padre James V. Schall, S.J.


Professor Titular de Ciência Política da Georgetown University e Membro do Conselho
Editorial do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP)
COMMUNIO: REVISTA INTERNACIONAL DE TEOLOGIA E CULTURA
é publicada em colaboração com:

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