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CommunioXXVIII 1 S Graham Completa Rev3
CommunioXXVIII 1 S Graham Completa Rev3
2009
Editor Responsável
Dom Edson de Castro Homem
Editores Assistentes
Alex Catharino
Márcia Xavier de Brito
EQUIPE EDITORIAL Imagem da Capa
Preparação dos originais Detalhe da pintura Alegoria ao Pelicano (1786), em óleo
e notas do editor sobre madeira com 117 x 57 cm, de José Joaquim da
Alex Catharino Rocha (1737-1807). A obra, atualmente, pertence a uma
coleção particular na Bahia.
Revisão Teológica
Dom Edson de Castro Homem O pintor, encarnador, dourador e restaurador José
Joaquim da Rocha é considerado o fundador da chamada
Revisão Ortográfica Escola Baiana de Pintura. Suas obras mais destacadas
Diácono Francisco Ferreira da Silva são as pinturas da Igreja do Convento de Santo Antonio
(1766) em João Pessoa na Paraíba e das igrejas de Nossa
Revisão Final Senhora da Conceição da Praia (1774), de Nossa Senhora
Márcia Xavier de Brito do Rosário dos Pretos (1780), da Ordem Terceira de São
Domingos (1781) e de Nossa Senhora da Palma (1785)
Seleção de Imagens
em Salvador na Bahia.
Dom Mauro Fragoso, O.S.B.
Francisco José Andrade Ramalho Na Europa medieval se acreditava que o pelicano possuía
Monsenhor José Roberto Devellard um zelo extremado por seus filhotes, ao ponto de dar o
próprio sangue como alimento para salvar-lhes a vida.
Diagramação e Capa Essa visão do imaginário levou os pintores e escultores a
Ricardo Araujo Bogéa Rodrigues retratarem o pelicano como uma alegoria da Caridade, da
www.artesanalmente.com.br Eucaristia e da própria Paixão de Cristo.
Ficha Catalográfica
COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura / Instituição COMMUNIO
do Brasil. Vol. XXVIII, Nº 1 (Edição 101): jan./mar. 2009. Rio de Janeiro:
COMMUNIO, 2009. 300p.
COMMUNIO
Periodicidade trimestral
ISSN 0101-7942
Artigos
Camillo Ruini 11 Teologia e Cultura: Terras dos confins
Resenhas de livros
Marcelo Coelho 278 Ortodoxia de G. K. Chesterton
Padre James V. Schall, S.J. 298 Smart Sex: Finding Life-Long Love in
a Hook-Up World de Jennifer Roback
Morse
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 5
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 5-9
EDITORIAL
O papa Bento XVI, com sua rica inteligência teológica e filosófica, abrilhanta o tema
dessa edição de Communio. No seu artigo desenvolve a linha iniciada na crise da cultura que
remonta aos tempos do Renascimento e, de forma mais concreta e ampla, desde os tempos
do Iluminismo, com o surgimento da racionalidade científica. Ainda que, por um lado a
ciência imprime a sua marca inegável no progresso do mundo, por outro se atreve a excluir
Deus da consciência pública negando-O totalmente ou julgando-O como não conhecível
ou apenas encolhido no âmbito da escolha subjetiva. Neste momento histórico-cultural
Bento XVI indica como necessidade de primeira ordem a existência de homens que, através
da fé iluminada e vivida, dão a Deus uma maior presença no meio do mundo, falando d’Ele
e vivendo a favor d’Ele, aprendendo d’Ele a cultivar humildade tal como Ele a projetou
desde toda a eternidade.
O mito, o fantástico, a imaginação cristã, o gênero literário mitopoético
de O Senhor dos Anéis, a dupla trilogia Guerra nas Estrelas, o sucesso mundial de
Harry Potter e as lendas indígenas brasileiras completam o restante dessa edição de
Communio.
A riqueza e a profundidade dos pensamentos e das obras de Homero,
Hesíodo e Platão (428-347 a.C.), contribuíram para um comportamento mítico
regulador das relações entre o homem e o sagrado. Julien Ries desenvolve com
simplicidade o conceito de mito segundo Mircea Eliade (1907-1986) e Paul
Ricoeur (1913-2005), que se unem nessa compreensão do homem em si mesmo
e do mundo onde vive, desenvolvendo-se como ser natural, vivo, mas com uma
imagem e semelhança divina impressa na sua pessoa.
O padre Olivier Riaudel, OP, limita a definição do mito, mas não o
considera um discurso irracional. Considera o uso teológico da noção de mito
como um portador da oscilação própria da história dessa palavra. Interessa nesse
estudo sua conclusão que não se encerra em afirmações irredutíveis, mas deixa o
leitor com uma boa curiosidade sobre as pesquisas, para que não acabem ficando
com o mito identificado com a crença de poucos, nem com um conceito de mito
que cega a inteligência para que não se abra à fé.
Ao servir-se de todas as possibilidades da linguagem humana a Palavra
Eterna de Deus vai se tornando perceptível, tornando-se um laboratório
imenso e desconcertante das possibilidades culturais. O padre José Tolentino
Mendonça, com sua rica e profunda formação bíblica, menciona a finalidade
suprema da Bíblia segundo o evangelista João, quando explica que tudo que se
escreveu é “para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e, acreditando,
terdes a vida n’Ele” (Jo 20,31).
Para que tal finalidade seja realmente atingida, os hagiógrafos, com
sua cultura própria e sob a inspiração do Espírito Santo, utilizam-se das
ferramentas que a linguagem humana oferece; na Bíblia encontram-se
entrelaçadas a história e a poesia, a imaginação e a realidade, o fantástico e
o natural, tudo, porém, como gêneros concordantes com a coerência interna
inspirada da Revelação divina.
8 COMMUNIO • Dom Antonio Augusto Dias Duarte
I - AS RAÍZES HISTÓRICAS
Sabemos bem que não só tem esta primazia, mas a relação entre Cultura
e cristianismo, Teologia e Cultura, progressivamente, tenha entrado em crise
desde o início da época moderna, a partir daquela que foi chamada de “guinada
antropológica”, que pôs o homem no centro, além do nascimento da ciência
chamada “galileiana” e das guerras das religiões européias, o que tornou necessária
alguma forma de conceber e gerir a esfera pública, etsi Deus non daretur.
Não é o caso de nos determos sobre estes problemas. Queria, antes, lembrar que
no interior da teologia medieval, e de forma eminente com Santo Tomás de Aquino, a
distinção, e nela, a relação recíproca entre razão e fé, Filosofia e Teologia, foram objetos
de aprofundamento sistemático como mostrou, magistralmente, Étienne Gilson
(1884-1978) num estudo publicado em 1927 sobre os motivos pelos quais o Aquinate
criticou Santo Agostinho (354-430)1, a base especulativa deste aprofundamento deve
ser encontrado na Gnoseologia e Ontologia de matriz aristotélica, que consentiu
precisamente uma distinção mais clara e sistemática entre a capacidade cognitiva
intrínseca ao homem e a luz que recebe da presença divina em si mesmo.
Uma tese histórica-teológica difundida, e desenvolvida, sobretudo por um
autor de importância como Henri de Lubac (1896-1991), sob a orientação de
Maurice Blondel (1861-1949), considera que a existência unilateral sob esta distinção
consagrada na “segunda escolástica”, isto é, precisamente aos primeiros anos da
Idade Moderna, tenha contribuído à marginalização do cristianismo, da Teologia e
do desenvolvimento da Cultura, representando involuntariamente uma legitimação
teológica. Pessoalmente posso concordar com esta avaliação com o compromisso
de não exagerar no seu concreto peso histórico. Devo sublinhar que ela não deve
portar um juízo negativo sobre a validade intrínseca, e, também, sobre a necessidade
e fecundidade histórica, daquela distinção sistemática. Ela, de fato, nasce, em última
análise, do reconhecimento do caráter divino e transcendente da revelação cristã,
antes de tudo no seu centro que é Jesus Cristo, mas também pelo que diz respeito à
vocação da humanidade a participar gratuitamente, no Espírito Santo, da relação filial
que Cristo tem com o Pai. De outra parte, nasce do reconhecimento da consciência
interna das criaturas, mesmo porque elas são obras de Deus2. Somente com base
nesta distinção é possível uma relação com a razão moderna e contemporânea e com
o pleito de liberdade que invade a nossa cultura, respeitando e valorizando aquele
dinamismo próprio alcançou, nos últimos séculos, resultados extraordinários.
II - A IDADE MODERNA
Na crise das relações entre cristianismo e cultura ocidental, é importante
distinguir, pelo menos, duas fases históricas principais. A primeira ainda reconhece
1
GILSON, Étienne. “Pourquoi saint Thomas a critiqué saint Augustin”. In: Archives d’Histoire
Doctrinale et Littéraire du Moyen-Age, Volume 1 (1926). pp. 55-127.
2
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Constituição pastoral Gaudium et Spes: Sobre a
Igreja no mundo atual. (7 de dezembro de 1965). §36.
TEOLOGIA E CULTURA: TERRAS DOS CONFINS 13
material, mas também ‘formal’, que existe hoje na igreja”5. Trata-se para ele de uma
situação positiva, que consiste particularmente em afirmar, finalmente, também
no interior da igreja católica, a primazia da fé pessoal que diz respeito a cada
norma ou condição eclesiástica.
De fato, começou e, rapidamente, se difundiu, logo após o Concílio, a
prática de uma interpretação bastante desenvolta, reducionista, e até evasiva da
mesma realidade essencial da fé. Portanto, houve, assim, uma cisão entre aqueles
teólogos que mais contribuíram para amadurecer as premissas do Concílio,
bem como seus desdobramentos. Nos decênios mais recentes, esta situação está,
ainda que com esforço, se restabelecendo: para a plena e positiva superação, que
não significa a supressão da justa e indispensável liberdade de pesquisa e de um
pluralismo teológico integro, é muito importante a linha hermenêutica do Vaticano
II que Bento XVI propôs no discurso na Cúria Romana, em 22 de dezembro de
2005, onde ele mesmo a qualificou como “hermenêutica da reforma”.
Como disse, de forma muito pertinente, o Papa naquele discurso, o
grande programa do Concílio, de um “sim” fundamental, ainda que não acrítico,
para a Idade Moderna, não deve absolutamente ser abandonado, mas deve ser
desenvolvido e concretizado nos diversos aspectos: nas relações entre ciências
empíricas e históricas, nas relações entre Igreja e instituições políticas. Sobre este
aspecto, Bento XVI ressalta que há uma evolução positiva, como uma maior
consciência, adquirida a partir das ciências empíricas, dos limites intrínsecos
aos próprios métodos ou como a difundida noção, que exclui a contribuição da
religião para a vida social e pública, que acaba por ser perigosa para a sociedade,
além de anacrônica.
5
FEINER, Johannes & LÖHRER, Magnus (Edd.). Mysterium Salutis – Volume IX: L’evento salvifico
nella comunità di Gesù Cristo (Parte III). Brescia: Queriniana, 1975. pp. 388-389.
16 COMMUNIO • Cardeal Camillo Ruini
6
KASPER, Walter. Introduzione alla fede. Brescia: Queriniana, 2003. pp. 27-31.
7
IRTI, Natalino. Il salvagente della forma. Bari: Laterza, 2007.
8
RATZINGER, Joseph. Fede Verità Tolleranza: Il cristianesimo e le religioni del mondo. Siena:
Cantagalli, 2005. pp. 189-190. [N. do T.: Em língua portuguesa a obra se encontra na seguinte
edição brasileira: RATZINGER, Joseph. Fé, verdade e tolerância: O cristianismo e as grandes religiões
do mundo. (Tradução de Sivar Hoeppner Ferreira; revisão de Edson Dognaldo Gil). São Paulo:
Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2007].
TEOLOGIA E CULTURA: TERRAS DOS CONFINS 17
confronto que, ademais, não pode ocorrer sem uma dimensão filosófica autêntica
e não reduzida. Por isso, no que diz respeito a Deus, assume particular relevância
a reflexão que se concentra sob a estrutura e os pressupostos do conhecimento
científico para demonstrar que, exatamente a partir deles, novamente é proposta
a questão sobre a inteligência criadora.
Analogamente, naquilo que diz respeito ao homem, o confronto é decisivo
seja tanto com a Teologia da evolução quanto com as neurociências, para mostrar,
sobretudo à luz da própria capacidade exclusiva de produzir cultura, que o
homem emerge da natureza, não no sentido de uma simples origem, mas de
uma autêntica transcendência. Somente sob esta base antropológica é possível
e consistente a promoção e defesa da dignidade humana tal como Teologia é
chamada a fazer, particularmente hoje, no plano da ética pública.
É este o sentido do programa de “alargar espaços da racionalidade” que
Bento XVI propõe com insistência, também no que diz respeito tanto à razão
científica quanto à razão histórica. Este programa implica a dupla convicção
de que a revelação de Deus em Jesus Cristo oferece à razão uma ajuda preciosa
para seguir seu caminho, sempre mais articulado, complexo e especializado, sem
perder de vista o horizonte global e as perguntas fundamentais, e, além disso,
precisamente através do confronto com a razão contemporânea, a fé e a Teologia
são estimuladas a aprofundar posteriormente a novidade no que diz respeito ao
mistério de Deus e do homem que nos veio através de Jesus Cristo.
Ao contribuir para semelhante programa, a Teologia não deve ter a
pretensão racionalista de demonstrações obrigatórias, como já chamei atenção
para as praeambula fidei, mas deve estar mais consciente dos limites do próprio
discurso: assim, Joseph Ratzinger afirma que a propósito do Lógos criador, do
ponto de vista racional, continua sendo a ‘melhor hipótese’, que pede ao homem
e à razão a renúncia de sua posição de domínio e se dedique à humildade escuta13.
“Ut ager quanvis fertilis sine cultura fructuosus esse non potest, sic sine doctrina
animus” [Assim como um campo, ainda que fértil, não pode dar frutos sem
cultivo, também é um espírito sem cultura].
Cícero. Tusculanae Disputationes, II, 41
Quais, então, são as condições que tornaram possível uma cooperação frutífera
entre religião e cultura? Por um lado, a asserção dos juízos espirituais absolutos
e transcendentes não deve ser interpretada como uma negação dos valores
limitados, temporais e historicamente condicionados da cultura; e por outro,
as formas de uma cultura particular, mesmo quando inspiradas ou consagradas
por um ideal religioso, não devem ser vistas como possuidoras de uma validade
religiosa universal.
Christopher Dawson2
O próprio Aristóteles pode nos dar a pista para a razão de tal falta de conclusões
(de uma nova cultura sobre uma anterior), quando observa que não devemos
esperar alcançar conclusões precisas a partir de ciências subordinadas, categoria na
qual podemos incluir as análises de culturas, quando a indeterminação do assunto
não o permite. É evidente, pode-se dizer, com justiça, que no caso da cultura da
natureza humana de Jesus, que foi possuída por Ele que era a Segunda Pessoa
divina da Trindade [...] havia uma cultura completamente não contaminada por
elementos estranhos.
E. B. F. Midgley3
I
Tornamo-nos familiarizados com termos como “multiculturalismo”,
“relativismo cultural”, “cultura aristocrática”, “inculturação”, “cultura democrática”,
* O presente artigo é a versão escrita da conferência apresentada, em 15 de outubro de 2004, pelo
autor no Ingersoll Symposium: “The Importance of Culture”, realizado em Belmont Abbey, em
North Carolina. Publicado, originalmente, em Communio: International Catholic Review, Volume
XXXIV, Number 1 (Spring 2007): 150-161. Texto traduzido do original em inglês para o português
por Marcio de Paula S. Hack.
1
Citado em: JOHN PAUL II, Pope. “Anniversary of the Polish University of Opole (17 February
2004)”. In: L’Osservatore Romano, English edition, 3 March 2004. p. 2.
2
DAWSON, Christopher. Religion and Culture: The Gifford Lectures, 1947. New York: Sheed &
Ward, 1948. pp. 208-209.
3
Carta de E. B. F. Midgley para James V. Schall, S.J., datada de 20 de abril de 2004, Aberdeen, Escócia.
24 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.
II
A própria palavra “valor”, ademais, é uma palavra filosófica
moderna deliberada e metodologicamente privada de qualquer conteúdo
substancialmente embasado. Seguindo a idéia de Max Weber (1864-1920), um
“valor” significa basicamente o que desejamos que signifique. A vontade é o
seu único fundamento. E a vontade como vontade é vazia de conteúdo. Um
“valor”, como dizem, tem o status de uma “opção”. Não podemos, neste modo
de ver, estabelecer ou construir firmes objetos ou princípios primeiros. Podemos
apenas “optar” por aqueles de que “gostamos”. Nenhuma “razão” pode ser dada
para explicar plenamente qualquer opção. Nossa epistemologia não nos permite
conhecer as coisas reais ou a sua ordem. O “valor” do valor, como teoria, é que
não tem valor nenhum, nenhum conteúdo estabelecido.
Diz-se que esta “abertura” a todas as posições previne o “fanatismo”, o
pior dos males num mundo culturalmente neutro, já que sugere uma suspeita
persistente da existência de um padrão. Nesta perspectiva, o “fanatismo” serve,
geralmente, como definição para qualquer afirmação de que exista uma verdade
objetiva nas coisas, incluindo coisas humanas e divinas. Podemos, portanto,
louvar os “valores” um do outro, sem fazer qualquer esforço para determinar
se são dignos de louvor comparados com algum padrão que possa dar base a
todo significado. Assim, podemos detectar coisas por trás da mera aparência
que assume a apaixonada oposição ao “fanatismo” no mundo moderno. O
problema não é tanto com aquilo que defendem alguns “extremistas”. É com
o fato de que qualquer coisa possa ser defendida como verdade. A oposição
ao “fanatismo”, hoje, é, na verdade, uma oposição à verdade. E não podemos
falar de verdade, já que isto sugeriria um padrão. A alternativa é simplesmente
negar que qualquer verdade, não importando de que maneira foi afirmada,
seja possível. É sobre isso que realmente versam muitas preocupações sobre o
“fanatismo”, o medo de que a verdade seja possível, com direito e argumento
válidos para a sua afirmação.
Tais visões sobre a cultura e seus valores, sem dúvida, são, em si mesmas,
proposições filosóficas que requerem um teste cuidadoso. Uma das origens da
“neutralidade valorativa” é Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cujo termo
“vontade geral” é deliberadamente construído para evitar qualquer confronto
com algum padrão abrangente. Leo Strauss (1899-1973) formulou corretamente
o problema:
A vontade geral, a vontade imanente em sociedades de certo tipo, substitui o
direito natural transcendente […]. A dificuldade a que Rousseau nos leva está
26 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.
III
Em seu livro sobre a noção de Cultura na Constituição Pastoral Gaudim et
Spes (7 de dezembro de 1965), o documento do Vaticano II que abriu a Igreja aos
“direitos” e “valores” da “cultura” moderna, a professora Tracey Rowland escreve:
No pensamento pós-conciliar, é possível encontrar várias antíteses: entre a ênfase
sobre a “autonomia da cultura”, um conceito endossado no parágrafo 59 da
Gaudium et Spes, mas não definido e interpretado de formas várias, e a idéia de
que nenhum ambiente cultural seja realmente neutro em relação à Teologia ou
completamente autônomo de qualquer outro; entre um endosso acrítico à cultura
de massa […] e a idéia de que a cultura de massa seja tóxica para a virtude e
resistente à graça; entre uma concepção da liturgia como necessariamente
incorporando as normas estéticas e lingüísticas do mundano e uma concepção
da liturgia como necessariamente transcendente ao mundano; entre a promoção
4
STRAUSS, Leo. “What Is Political Philosophy?”. In: What Is Political Philosophy? and Other Essays.
Glencoe: The Press, 1959. p. 51.
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 27
IV
No início destas reflexões, citei três observações sobre Cultura que servirão
para indicar a direção que desejo seguir para entender a relação da cultura com
aqueles princípios e propósitos transcendentes que marcam presença em todas
as culturas particulares, sem, ao mesmo tempo, rejeitar totalmente a validade de
qualquer particularidade dada, em que princípios universais devam aparecer. Ao
considerar essas coisas, estou consciente da idéia de Edmund Burke (1729-1797)
de que, devido ao costume e à razoabilidade prática, até mesmo leis ou práticas
objetivamente erradas em sua formulação podem ser modificadas de tal modo
que a forma como elas são, de fato, trabalhadas já modifica ou elimina o problema
da posição errônea inicial.
O contrário deste fenômeno também é verdadeiro. Declarações e leis que
são formuladas com o devido respeito à transcendência – penso na Declaração
de Independência dos Estados Unidos – podem ser interpretadas de tal modo a
justificar o exato oposto do que defendiam. O “direito” à vida chegou a abranger
5
ROWLAND, Tracey. Culture and the Thomist Tradition: After Vatican II. London: Routledge,
2003. p. 167.
28 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.
V
No seu estilo confuso, Friedrich Nietzsche (1844-1900) viu, muito
claramente, que a “Cultura” é a figura da sociedade que deve ser radicalmente
mudada, caso alguma nova visão de vontade tenha de aparecer. Viu, com efeito,
que, historicamente, a Europa era produto da fé na Cultura. Essa cultura era o
resultado daquilo que era tido como verdadeiro. “Supondo verdadeira a idéia, na
qual, hoje, muitos crêem como se fosse ‘a verdade’”, Nietzsche escreveu na sua obra,
de 1887, Zur Genealogie der Moral: Eine Streitschrift [Genealogia da Moral: Uma
polêmica]:
O sentido de toda a cultura é amestrar o animal de rapina “homem”, reduzi-lo a um
animal manso e civilizado, doméstico, então deveríamos sem dúvida tomar aqueles
instintos de reação e ressentimento, com cujo auxílio foram finalmente liquidadas
e vencidas as estirpes nobres e os seus ideais, como os autênticos instrumentos
9
KIRK, Russell. “T. S. Eliot on Literary Morals”. In: Creed & Culture. (Edited by James M.
Kushiner). Wilmington: ISI Books, 2003. p. 59.
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 31
da cultura; com o que, no entanto, não se estaria dizendo que os seus portadores
representem eles mesmos a cultura. O contrário é que seria não apenas provável
– Não! Atualmente é palpável! Os portadores dos instintos depressores e sedentos
de desforra, os descendentes de toda escravatura européia e não européia, de toda
população pré-ariana especialmente – eles representam o retrocesso da humanidade!
Esses “instrumentos da cultura” são a vergonha para o homem, e na verdade uma
acusação, um argumento contrário à “cultura”!10.
VI
No livro, Work, Society, and Culture [Trabalho, sociedade e cultura]13,
Yves Simon (1903-1961) procurou reconciliar, se posso dizê-lo deste modo, as
altas e baixas culturas. Isto é, ele queria superar o preconceito histórico contra
o trabalho, que o identificava com a escravidão ou com o servilismo, ou com
o meramente “útil”. Ele estava, num certo sentido, tentando aceitar a noção
de Joseph Pieper (1904-1997) sobre lazer e liberdade, sem denegrir o trabalho
necessário, que tem de ser feito com o suor do rosto14. Este esforço levou
Simon a reconsiderar as distinções de Aristóteles (384-322 a.C.) entre arte e
discernimento, intelecto contemplativo e calculativo15.
A questão essencial era a redenção da noção do trabalho, ela mesma em
grande parte instigada pela Revelação. São José era um carpinteiro. Os apóstolos
eram pescadores. Este esforço requeria uma análise dos processos intelectuais
que estão presentes mesmo no trabalho físico mais difícil e maçante. Mas, Yves
Simon, também, não queria sacrificar o fabuloso florescimento cultural, cujos
esplendores manifestaram a glória da humanidade, tanto no campo intra-
mundano quanto no transcendente. Ele não queria conceder nada à posição
relativista que procurava justificar costumes, instituições, e leis que eram, de
12
KIRK. Op. cit.
13
SIMON, Yves. Work, Society and Culture. (Preface by Vukan Kuic). New York: Fordham
University Press, 1986.
14
PIEPER, Joseph. Leisure: The Basis of Culture. (Translated by G. Malsbery). South Bend: St.
Augustine Press, 1998.
15
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, Livro VI.
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 33
Uma proposição universal declara que “as pessoas são diferentes”. Seria “terrível”
se todos concordassem sobre tudo. Mencionada, apenas por dedução, está a
contra-proposição de que seria igualmente terrível se ninguém concordasse sobre
coisa alguma. A graça de Lucy equivale à sua lógica. Esta conclusão, no entanto,
significa que as opiniões de Lucy sobre todas as coisas não são apenas as suas
opiniões, mas as opiniões corretas.
Temos aqui um padrão ou critério implícito que rejeita a simples proposição
de que, porque as pessoas diferem em algumas coisas, elas devem diferir em
todas as coisas. Mas, se alguma coisa é “certa”, não queremos discordar dela. E se
alguém tão divertidamente irritante, como Lucy, conhece, de fato, o que é “certo”,
devemos concordar com ela, não por ser a opinião de Lucy, mas por que é a
opinião correta. Ser um “missionário” da verdade é algo que está implícito na lógica
desta cena. Não queremos diferir quanto à verdade. Mesmo quando diferimos,
implicitamente reconhecemos que apelamos a algum fundamento para a nossa
verdade, que não é simplesmente uma vontade arbitrária. Em outras palavras,
rejeitamos o relativismo baseado na vontade, rejeitamos Nietzsche. Desta forma,
não é algo terrível todos concordarmos sobre alguma coisa, mesmo que sejamos
todos diferentes. Nossas diferenças não invalidam o fato de que somos, todos,
seres humanos com mentes ordenadas para a verdade das coisas. O que é “diverso”
não é a verdade, mas a maneira de expressá-la. Mesmo então, presumimos que
por trás de suas variadas expressões existe algo aberto a todos, algo que podemos
resolver por meio de discussões e do entendimento, que as “discordâncias” não
são simplesmente, em teoria, diferenças irresolvidas e irresolvíveis.
O que Yves Simon fez, portanto, foi identificar as áreas nas quais as coisas,
ao mesmo tempo, são e, talvez, devessem ser diferentes – “não seria terrível se
todo mundo concordasse sobre tudo?” – e aquelas nas quais elas são e devem ser a
mesma – “então, todos estariam certos!”. A contribuição de Simon para a idéia de
cultura é uma sólida explicação filosófica do porque a clássica distinção grega
entre trabalho e lazer, mesmo que baseada em algo verdadeiro, não precisa acabar
por identificar trabalhadores braçais com escravos, mesmo que seja isso o que
muitos historiadores tenham concluído.
Mas, como Joseph Pieper observou, o próprio Aristóteles pensava que a
escravidão, excetuando a anormalidade médica, era, em grande parte, relacionava-
se ao enfado e à brutalidade do trabalho que deveria ser feito. Ele não se referia
ao ser ontológico do trabalhador. Isto é, o próprio labor seria algo tão absorvente
ou exigente que não daria tempo ou forças para nada mais. Os gregos aplicavam
até mesmo esta análise aos negócios. O resgate do comércio também é uma
das realizações da cultura moderna. Este resgate, contudo, pode ser mais bem
compreendido por uma análise mais favorável das visões de Aristóteles sobre a
arte e o raciocínio prático17.
17
SIMON. Work, Society and Culture. pp. 143-148. Ver também: SCHALL, S.J., James V. “On
the ‘Prospects of Paradise on Earth’: Maritain on Action and Contemplation”. In: Truth Matters:
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 35
Essays in Honor of Jacques Maritain. (Edited by John G. Trapani Jr.). Washington, D.C.: American
Maritain Society / The Catholic University of America Press, 2004. pp. 12-25.
18
SIMON. Op. cit., p. 153.
36 COMMUNIO • Padre James V. Schall, S.J.
VII
Mas enquanto a defesa da ordem intelectual baseada numa ordem nas
coisas é, de fato, possível e necessária, algo que não é bem compreendido na
modernidade, ainda assim Yves Simon reconhece o outro lado da discussão
clássica sobre culto e cultura, ou seja, seu florescimento, aquela área de liberdade
para ver o que não pode ser de outro jeito e reagir com uma variedade infinita
de respostas. “Uma natureza racional compreende o paradoxo de um sistema de
necessidades aberto para o infinito”, Simon escreve, numa frase admirável.
Quando dizemos “natureza”, referimo-nos a algo definido; mas quando
dizemos “racional”, postulamos uma natureza que, além de suas necessidades
definidas, goza de uma abertura para o infinito. Este paradoxo não é meramente
humano: é universal. Olhe o universo à sua volta. A superabundância e o luxo
predominam no mundo da experiência. Um especialista em psicologia animal,
de inclinações românticas e filosóficas, disse-me certa vez que, na primavera,
os pássaros cantam muito mais do que é permitido pela teoria darwinista. Para
que a espécie sobreviva, o galo não precisa cantar muito: uns poucos sons são o
bastante para atrair a atenção da fêmea. Mas os pássaros cantam cem vezes mais
do que é necessário para os fins da espécie20.
515-542; SCHALL, S.J., James V. On the Unseriousness of Human Affairs: Teaching, Writing, Playing,
Beliving, Lecturing, Philosophizing, Singing, Dancing. Wilmington: ISI Books, 2001.
A CULTURA NUNCA É NEUTRA 37
Desta forma, para concluir, o fato de nenhuma cultura ser “neutra” não
é um argumento de que deva ser. Em vez disso é, na verdade, uma explicação
tanto do fato de que existe uma cultura universal, e de que esta cultura universal
pode ser expressa numa multiplicidade de formas: não meramente “possa ser”,
mas deva ser. Não há nada que seja tão abstrato na inteligência humana que
não busque algum tipo de encarnação. Ainda assim, a tradição do “lazer” como
base da cultura, a idéia grega das coisas que valem por si mesmas, folguedos ou
coisas solenes, são expressões da abundância, na verdade, da superabundância
das coisas. Simon bem expressa: “O que é necessário para a plenitude de cultura é
algo mais, algo que de algum modo está acima da necessidade, é independente dela,
e não seguem nenhuma lei exceto, talvez, as próprias”22. As culturas, certamente,
têm de passar pelos testes da Filosofia e da Revelação.
Necessitamos, portanto, saber a “forma” daquilo que são feitas as culturas.
Este “saber” é um exigente exercício intelectual, uma “obra”, por assim dizer,
de inteligência, um empenho para conhecer o que são até mesmo as “coisas
que poderiam ser de outro modo”. Mas, embora tenhamos que viver, comer, e
preparar a terra, por si um esforço de inteligência cada vez mais prática, e não
mero trabalho monótono, estamos abertos para o infinito, mesmo neste mundo
e nesta vida. O extraordinário desafio de Friedrich Nietzsche à nossa cultura
vem em grande parte de seu próprio escândalo com aqueles que não punham
em prática aquilo em que diziam acreditar. Tudo o que ele podia ver para
substituir a fé e a razão era a pura vontade, destituída de qualquer conteúdo.
Existe, de fato, uma cultura “completamente não contaminada por
elementos estranhos”, mas ela também precisa ser expressa e ganhar vida, em
bases verdadeiras. O lazer é a base da cultura. Assim o é para a verdade. Também
o é a liberdade, para o trabalho e para a adoração. Procuramos conhecer as
coisas que não podem ser “de outro modo”. Mas, ao encontrá-las, procuramos
as expressar de uma forma mais próxima do motivo dos pássaros cantarem
canções desnecessariamente maravilhosas do que da autocriação de um mundo
baseado numa vontade arbitrária, que nada enxerga além de si mesma, e que vê
todas as coisas simplesmente como diferentes e relativas.
Não seria terrível se todos concordassem em tudo?
Assim como um campo, mesmo quando fértil, não pode dar frutos sem
cultivo, da mesma forma é uma alma sem doutrina.
Mas os pássaros cantam cem vezes mais do que é preciso para preservar
a espécie.
A cultura nunca é neutra.
*
O presente artigo é a versão escrita e revisada da conferência ministrada, em 1º de abril de 2005,
no Convento de Santa Escolástica, em Subiaco na Itália, pelo então Cardeal Joseph Ratzinger,
quando recebeu o Prêmio São Bento pela promoção da vida e da família na Europa. Publicado
originalmente em Rivista Internazionale di Teologia e Cultura: Communio, Numero 200, marzo-
aprile 2005: 18-28. Texto traduzido, do original em italiano para o português, por Silvio Grimaldo.
40 COMMUNIO • Papa Bento XVI
Examinemos mais de perto essa oposição entre as duas culturas com que
caracterizamos a Europa. No debate sobre o Preâmbulo da Constituição Européia,
essa contraposição é vista em dois pontos controversos: a questão da referência
a Deus na Constituição e a menção das raízes cristãs da Europa. Visto que no
artigo 52 da Constituição Européia estão garantidos os direitos institucionais das
Igrejas, se diz que podemos ficar tranqüilos. Mas isso significa que, na vida da
Europa, a Igreja encontrou um lugar no âmbito do compromisso político, ao
passo que, no âmbito dos fundamentos da Europa, a marca de seu conteúdo não
encontrou espaço algum. As razões que se dão no debate para esse claro “não” são
superficiais, e é óbvio que mais do que indicar as reais motivações, elas as ocultam.
A afirmação de que a menção das raízes cristãs da Europa fere o sentimento de
muitos não-cristãos que estão na Europa não é muito convincente, visto se tratar,
sobretudo, de um fato histórico que ninguém, seriamente, pode negar.
Por certo essa menção histórica se refere ao presente. No momento em que
se mencionam as raízes, significa também apontar resíduos de orientação moral,
o que é um fator da identidade européia. Quem se ofenderia? A identidade de
quem está ameaçada?
Os muçulmanos, que a esse respeito são constante e prontamente
lembrados, não se sentem ameaçados por nossos fundamentos morais cristãos,
mas pelo cinismo de uma cultura secularizada que nega seu próprio fundamento.
Nem nossos concidadãos judeus se sentem ofendidos pela referência às raízes
cristãs da Europa, uma vez que essas raízes se prolongam até o Monte Sinai: elas
trazem o sinal da voz que se fez ouvir na montanha de Deus e que nos uniu nas
grandes orientações fundamentais que o Decálogo deu à humanidade. O mesmo
vale para a referência a Deus: não é a menção a Deus que ofende quem pertence
a outras religiões, mas sim a tentativa de construir uma comunidade humana
absolutamente sem Deus.
As motivações desse duplo “não” são mais profundas que nos deixam
pensar as razões apresentadas. Elas pressupõem a idéia de que apenas a cultura
iluminista radical, que atingiu o desenvolvimento pleno em nosso tempo, poderia
ser constitutiva da identidade européia. Próximo a ela, portanto, diferentes
culturas religiosas podem coexistir com seus respectivos direitos, sob a condição e
à medida que respeitem o critério da cultura iluminista e se subordinem a ela.
E precisamente por isso, se afirma que as raízes não podem entrar na definição dos
fundamentos da Europa, pois são raízes mortas que não fazem parte da identidade
atual. Em conseqüência, essa nova identidade, determinada exclusivamente pela
cultura iluminista, também exige que Deus não entre de forma alguma na vida
pública e nos fundamentos do Estado.
Assim, tudo se torna lógico e, num certo sentido, plausível. De fato, o
que podemos desejar de mais belo do que saber que em todo lugar se respeitam
a democracia e os direitos humanos? Mas aqui se impõe a pergunta de se a
cultura iluminista secular é verdadeiramente a cultura, finalmente descoberta
como universal, de uma razão comum a todos os homens; uma cultura a que
deveria ter acesso de qualquer lugar, mesmo que esteja sobre um humus histórico
e culturalmente diferenciado. E nos perguntamos, também, se ela é realmente
completa em si mesma, de forma a não precisar de qualquer raiz fora de si.
dessa mutilação da razão, ela não pode ser considerada inteiramente racional. Por
isso é incompleta, e pode ser remediada apenas pelo restabelecimento do contato
com suas raízes. Uma árvore sem raízes seca...
Ao afirmar isso, não negamos tudo que esta filosofia disse de positivo e
importante, mas se afirma principalmente a necessidade de complementação,
sua profunda deficiência. E aqui nos encontramos novamente a tratar dos dois
pontos controversos do Preâmbulo da Constituição Européia. O banimento das
raízes cristãs não se revela como expressão de uma tolerância superior que respeita
igualmente todas as culturas, sem pretender privilegiar nenhuma, mas, antes, como
uma absolutização de um modo de pensar e viver que se contrapõem radicalmente,
entre outras coisas, a outras culturas históricas da humanidade.
A contradição real que caracteriza o mundo de hoje não é aquela entre as
várias culturas religiosas, mas aquela entre a emancipação radical do homem de
Deus, das raízes da vida, de um lado, e das grandes culturas religiosas, de outro.
Se haverá um choque de culturas, não será por causa do choque entre as grandes
religiões – sempre em luta, mas sempre sabendo viver uma com a outra –, mas por
causa do choque entre essa emancipação radical do homem e as grandes culturas
históricas.
Assim, mesmo a rejeição de referência a Deus não é expressão de tolerância
que deseja proteger as religiões não-teístas e a dignidade dos ateístas e agnósticos,
mas a expressão de uma consciência que desejaria ver Deus suprimido,
definitivamente, da vida pública da humanidade e relegado ao reino subjetivo das
culturas residuais do passado. O relativismo, que constitui o ponto de partida de
tudo isso, se torna, desse modo, um dogmatismo que acredita estar em posse da
idéia definitiva de razão, e ter o direito de considerar todo o resto apenas como
um estágio da humanidade, finalmente superado, e que pode ser adequadamente
relativizado. Na realidade, isso significa que temos necessidade de raízes para
sobreviver e que não devemos perder de vista Deus, se não quisermos que a
dignidade humana desapareça.
Enquanto religião dos perseguidos, enquanto uma religião universal, além dos
diferentes Estados e povos, ela negou, ao Estado, o direito de considerar a religião
como parte do ordenamento estatal, postulando assim a liberdade da fé. Sempre
definiu o homem, todos os homens sem distinção, como criaturas e imagens
de Deus, proclamando para eles, como princípio, embora dentro dos limites
imprescindíveis da ordem social, a mesma dignidade.
Neste sentido, o Iluminismo tem uma origem cristã e não foi por acaso
que ele nasceu no âmbito próprio e exclusivamente cristão, onde quer que o
cristianismo, contra sua própria natureza e infelizmente, tenha se tornado a
tradição e a religião do Estado. Não obstante, a Filosofia, na medida em que
procurava a racionalidade – também da nossa fé – sempre foi uma prerrogativa
do cristianismo, a voz da razão foi por demais domesticada.
Foi e é mérito do Iluminismo ter proposto novamente esses valores originais
do cristianismo e ter dado à razão novamente sua própria voz. O Concílio Vaticano
II, na Constituição Gaudium et Spes (7 de dezembro de 1965), sobre a Igreja no
mundo contemporâneo, sublinhou novamente esta profunda correspondência
entre o cristianismo e o Iluminismo, procurando chegar a uma conciliação entre
a Igreja e a modernidade, que é o grande patrimônio a ser defendido por ambos.
Dado tudo isso, é necessário que os dois lados reflitam sobre si mesmos e
estejam preparados para se corrigirem. O cristianismo deve sempre recordar que
é a religião do Lógos. Ele é a fé no “Creator Spiritus”, no espírito criador, do qual
provém todo o real. Esta deve ser precisamente sua força filosófica, uma vez que
o problema é saber se o mundo provém do irracional, e a razão não é outra coisa
senão um subproduto, quiçá mais prejudicial, do seu desenvolvimento; ou se o
mundo provém da razão, e ela seja, conseqüentemente, seu critério e sua meta.
A fé cristã tende para a segunda tese, possuindo assim, do ponto de vista
puramente filosófico, cartas muito boas para jogar, apesar de que muitos, hoje,
considerem apenas a primeira tese como a única moderna e racional. Contudo,
uma razão que surge do irracional, e que é, afinal, ela mesma irracional, não
constitui uma solução aos nossos problemas. Apenas a razão criativa, que se
manifesta como amor no Deus crucificado, pode verdadeiramente mostrar o
caminho.
No tão necessário diálogo entre católicos e secularistas, nós, cristãos,
devemos ter muito cuidado para permanecermos fiéis a esta linha fundamental:
viver uma fé que provenha do Lógos, da razão criativa, e que, por isso, está aberta a
tudo que é verdadeiramente racional. Mas desejaria fazer, na minha qualidade de
crente, uma proposta aos laicistas. Na época do Iluminismo se tentou entender e
definir as normas morais essenciais, dizendo que elas seriam válidas etsi Deus non
daretur, mesmo no caso de Deus não existir. Na contraposição entre as confissões
e na crise iminente da imagem de Deus foi feita uma tentativa de deixar os valores
essenciais da moral fora das contradições e de procurar para eles uma evidência que
os tornasse independentes das múltiplas divisões e incertezas das várias filosofias
48 COMMUNIO • Papa Bento XVI
Exerçam, portanto, os monges este zelo com amor ardentíssimo, isto é, antecipem-
se uns aos outros em honra. Tolerem pacientissimamente suas fraquezas, quer do
corpo quer morais [...] ponham em ação castamente a caridade fraterna.
Temam a Deus com amor.
[...] Nada absolutamente anteponham a Cristo, que nos conduza juntos para a
vida eterna*.
Papa Bento XVI nasceu Joseph Ratzinger, no dia 16 de abril de 1927, em Marktl
am Inn, na Baviera. Fez seus estudos universitários no seminário católico de Freising
e na Universidade Ludwig-Maximilian em Munique, defendendo sua dissertação em
1953 e a tese em 1957. Foi ordenado sacerdote em 29 de Junho de 1951. Atuou como
professor das universidades de Freising, Bonn, Munique, Tübingen e Regensburg.
Participou, como perito teológico, do Concílio Vaticano II. Junto com os teólogos Hans
Urs von Balthasar (1905-1988) e Henri de Lubac (1896-1991), fundou, em 1972,
a revista Communio. Paulo VI o nomeou Arcebispo de Munique, em 25 de março de
1977, e o criou cardeal no consistório de 27 de junho de 1977. Em 25 de novembro de
1981, foi apontado, por João Paulo II, como prefeito da Congregação para a Doutrina
da Fé, presidente da Comissão Teológica Internacional e presidente da Pontifícia
Comissão Bíblica. Tornou-se Decano do Colégio Cardinalício, em 30 de novembro
de 2002. Foi eleito papa em 19 de abril de 2005, assumindo, solenemente, a cátedra
de São Pedro, em 24 de abril de 2005, sob o nome de Bento XVI. É um dos mais
influentes teólogos do século XX e o mais importante pensador católico da atualidade,
sendo autor de uma obra monumental com mais de seiscentos textos publicados em
diferentes idiomas e abrangendo diversos temas.
*
N. do E.: Substituímos a citação pelo trecho da seguinte edição brasileira: BENTO, São. A Regra
de São Bento. (Edição bilíngüe em Latim e Português; tradução e notas de Dom João Evangelista
Enout, O.S.B.) Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1992. Capítulo 72.
Pelicano erguendo uma Hóstias (1795-1800)
Talha em madeira dourada atribuída a Inácio Ferreira Pinto (1765-1828)
Capela do Santíssimo Sacramento, Mosteiro de São Bento, Rio de Janeiro, RJ
Fotografia de Maria Zélia Ferreira da Fonseca
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 51
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 51-59
*
Artigo traduzido do francês para o italiano por Riccardo Nanini e publicado originalmente em
Rivista Internazionale di Teologia e Cultura: Communio, Numero 218, ottobre-novembre-dicembre
2008. Texto traduzido, do italiano para o português, por Ilduara Santos.
1
RUSPOLI, M. Lascaux. Paris: Bordas, 1968; ANATI, E. Les origines de l’art et la formation de
l’espirit humain. Paris: Michel Albin, 1986; NOUGIER, L. R. Les gottes préhistoriques ornéss de
France, d’Espagne et d’Italie. Paris: Balland, 1990.
2
PÉPIN, J. Mythe et allégorie: Les origines grecques et les contestations judéo-chrétiennes. Paris: Études
Augustiniennes, 1976.
3
RIES, J. “Langage et message du mythe d’Homère au xixe siêcle”. In: LIMET, H. & RIES, J.
(Org.). Le mythe, son langage et son message. Louvain-la-Neuve: Centre d’Histoire dês Religions,
1983. pp. 9-33.
52 COMMUNIO • Julien Ries
Mircea Eliade, antes de tudo, questionou os mitos ainda vivos nas sociedades
primitivas dos dias de hoje, para, então, se dedicar à mitologia dos povos que tiveram
um grande papel na história da Grécia, Egito, Oriente Médio, Índia. A partir desta
ampla documentação, tenta penetrar no mito, para determinar seu lugar na vida
do homo religiosus. Arriscou dar uma definição: “O mito conta uma história sagrada;
refere-se a um evento que teve lugar em tempos primordiais, o tempo mítico do início”25.
Segundo Eliade, o mito é uma narrativa verdadeira, sagrada e exemplar, que
tem o seu significado específico e que, graças à repetição, torna-se uma tradição.
Fornece ao homem modelos de conduta. Sua existência dá um sentido autêntico
e determina o comportamento do homem.
Com Eliade, continuamos na sociedade tradicional, na qual mito e
ritual estão ligados, já que o ritual permite a atualização do mito, isto é, um
23
RIES, J. Les chemins du sacré dans l’histoire. Paris: Aubier, 1985.
24
DURAND, G. L’imagination symbolique. Paris: PUF, 1964; DURAND, G. “L’univers du
symbole”. In: MÉNARD, J. E. (Org.). Le symbole. Strasbourg: Palais universitaire, 1975. pp. 7-23.
25
ELIADE, M. Aspectes du mythe. p. 15.
A LINGUAGEM E A MENSAGEM DO MITO 55
26
RICOUER, P. Le symbolique du mal. Paris: Aubier-Montaigne, 1960. pp. 12-13.
27
ELIADE, M. La nostalgie des origini. pp. 150-177.
28
LANG, A. Custom and Myth. London: Longmans, Green and Co., 1884; LANG, A. Myth, Ritual
and Religion. London: Longmans, Green and Co., 1887. 2v.
29
FRAZER, J. Creation and Evolution in Primitive Cosmogenies. London & New York: Macmillan, 1935.
30
LÉVY-BRUHL, L. La Mythologie primitive: Le mode mythique des Australiens et des Papous. Paris: Alcan, 1935.
31
MALINOWSKI, B. Magic, Science, and Religion. Boston: Beacon Press, 1948.
32
LÉVI-STRAUSS, C. L’origine des manières de table. Paris: Plon, 1968.
56 COMMUNIO • Julien Ries
tempo sagrado das origens. Esta dinâmica é possível graças ao rito através do qual
o homem se torna contemporâneo do evento primordial. Destacando um lugar,
um território, um tempo profano, o rito os confere a sua autêntica realidade. É
o sentido dos numerosos gestos de consagração dos espaços, dos objetos e das
pessoas. Assim, os mitos de iniciação dão ao homem a sua completude38.
42
ELIADE, M. Aspectes du mythe. pp. 207-219.
Alegoria aos quatro continentes: Europa (Século XVIII)
Óleo sobre tela de José Theophilo de Jesus (1758-1847)
Procedente do Engenho da Vitória, Cachoeira, BA
Museu de Arte da Bahia, Salvador, BA
Para Platão, portanto, o mito não é o mesmo que para Tucídides, um relato
fabuloso que se deve rejeitar; ao contrário, pode receber, em alguns casos, uma
interpretação alegórica, e por vezes será indispensável, caso seja “verossímil”, para
a abordagem tanto dos deuses quanto daquilo que ultrapassa nossa capacidade de
conhecimento. Cabe afirmar, no entanto, que ambos os autores só são capazes de
definir mito por efetuar a distinção entre os mitos e seus próprios discursos. O “mito”
só surge como gênero narrativo particular porque tanto a História como a Filosofia
pretenderam substituí-lo, pelo menos em parte.
Conformes a essa tradição, e até o Iluminismo, muitos pensadores definiriam
mito como uma forma primitiva de compreensão do mundo: seria, assim, um modo
de representação típico da “infância da humanidade” que, em ignorância acerca das
verdadeiras causas naturais, adotam uma forma poética de expressão como tentativa
de acesso à abstração. Mesmo o Novo Testamento faz referência a essa crítica do mito
como narrativa infundada. São Paulo escreve a Timóteo:
Se eu te recomendei permanecer em Éfeso, quando estava de viagem para a
Macedônia, foi para admoestares alguns a não ensinarem outra doutrina, nem se
ocuparem com fábulas (muthois) e genealogias sem fim, as quais favorecem mais as
discussões do que o desígnio de Deus, que se realiza na fé (1Tm 1,3-4)*.
7
Idem. O Banquete. 189d-193d.
8
Idem. Górgias. 523a-527b.
9
Idem. A República. 359c-360d.
10
Idem. Timeu. 29d-e
11
Idem. A República. 613e-621d.
12
Idem. Ibidem. 621a (grifo nosso).
13
Idem. Timeu. 29c (grifo nosso).
*
N. do E.: Todas as passagens da Sagrada Escritura citadas pelo autor ao longo do presente ensaio
foram substituídas pela versão em língua portuguesa da seguinte edição: BÍBLIA DE JERUSALÉM.
(Tradução do texto em língua portuguesa diretamente dos originais). São Paulo: Sociedade Bíblica
Católica Internacional / Paulus, 1995.
64 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.
Nessa mesma epístola à Timóteo, São Paulo opõe à escuta das “palavras da
fé e da boa doutrina” às “fábulas ímpias” (1Tm 4,6-7). Tal condenação do mito não
diz respeito somente ao pensamento grego, mas também a algumas especulações
(gnósticas) judaicas, já que Tito é encorajado dessa maneira:
Este testemunho é verdadeiro; repreende-os, portanto, severamente, para que
sejam sãos na fé, e não fiquem dando ouvidos a fábulas judaicas ou a mandamentos
de homens desviados da verdade (Tt 1,13-14).
A crítica ao mito como fábula sem fundamento seria, também, aplicada, por
Johann Gottfried Eichhorn (1753-1827), à Bíblia: textos do Antigo Testamento,
sobretudo no livro de Gênesis, passariam a ser vistos como mitologias14, visão
posteriormente reforçada pela descoberta de associações entre tais narrativas e
outras tradições orientais. E é a partir do final do século XVIII que as representações
apocalípticas do Novo Testamento seriam, também, consideradas, por Heinrich
Corrodi (1752-1793), como mitológicas, com a explicação de que as imagens
e figurações do final da história equivaliam-se àquelas presentes na história
primordial15. No entanto, tais considerações exigiriam a mutação do conceito de
mito, já que textos tardios como esses não poderiam ser exemplos de mentalidade
primitiva, anterior à literatura.
Assim, a noção de mito como erro é um dos sentidos modernos de
“mito” ou “mitologia”. Em um famoso estudo, Roland Barthes (1915-1980)
qualifica de mito o desdobramento de sentido que se produz quando o signo
de alguma coisa é empregado como significante de outra realidade16: de fato,
esta é a iconografia do abade Pierre, seu corte de cabelo, a barba e as roupas,
que se tornam significantes de santidade, signo da substituição da experiência
de um apostolado por um “mix” de santidade, e mais amplamente “da realidade
da justiça por signos de caridade”17. Nesse sentido, o mito é um instrumento
da ideologia burguesa18, transformando signo em significante de um conteúdo
ideológico: convém desmascará-lo.
Mas quem designa dessa maneira o mito, com vistas a desmascará-lo,
encontra uma dificuldade: “acabar” com o mito (o que não é o objetivo de
14
EICHHORN, J. G. Urgeschichte. (Herausgegeben mit Einleitung und Anmerkungen von Johann
Philipp Gabler). Nürnberg : Monath und Kubler, 1791-1793.
15
CORRODI, H. Kritische Geschichte des Chiliasmus, Zurique, 1794. De acordo com: HARTLICH
C. & SACHS, W. Der Ursprung des Mythosbegriffes in der modernen Bibelwissenschaft. Tübingen:
J. C. B. Mohr, 1952. p. 55. Citado por: PANNENBERG, W. “Christentum und Mythos”. In:
Grundfragen systematischer Theologie: Gesammelte Aufsätze II. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1980. pp. 13-65. Aqui página 19, nota 26.
16
BARTHES, R. Mythologies. Paris: Seuil, 1957.
17
Idem. Ibidem., p. 59.
18
“O status da burguesia é particular, histórico: o homem que ela representa será universal, eterno;
[...] Enfim, a idéia primordial de um mundo perfectível, móvel, produzirá a imagem invertida de
uma humanidade imóvel, definida por uma identidade infinitamente recomeçada”. (Idem. Ibidem.,
pp. 250-251).
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
65
Barthes, que fique claro) é um dos grandes “mitos” do ocidente moderno. Jacques
Derrida (1930-2004) o enfatiza com maestria num livro intitulado D’um ton
apocalyptique adopté naguère em philosophie [De um tom apocalíptico adotado
há pouco em Filosofia]19, em que analisa a primeira introdução da Kritik der
Urteilskraft [Crítica do Juízo] de Immanuel Kant (1724-1804), denominada “De
um tom senhorial adotado há pouco em Filosofia”. Kant critica os mistagogos,
não apenas porque anunciam o fim da Filosofia em nome de uma exaltação
mística, mas também por evitarem o rigor do conceito em nome do mistério que
não se saberia desvelar.
Nessa crítica kantiana de um discurso que pretende desvelar, mas não
muito, Derrida aponta para um segundo projeto de desvelamento, uma outra
apocalíptica – a do próprio Kant, que também anunciaria uma predição de fim:
o fim de certo tipo de metafísica. Algum tempo depois, G. W. F. Hegel (1770-
1831) anunciaria o fim da história, Friedrich Nietzsche (1844-1900) o advento
do super-homem, Karl Marx (1818-1883) do proletariado. Cada um deles “dá seu
lance cada vez maior de eloqüência escatológica”:
Cada recém chegado, mais lúcido que o anterior, mais vigilante e mais pródigo,
toma a palavra para anunciar: Estou dizendo a verdade. Não é apenas o fim disto,
mas também, e ainda de mais nada, o fim daquilo, o fim da História, o fim da
luta de classes, o fim da Filosofia, a morte de Deus, o fim das religiões, o fim do
cristianismo e da moral (esta, a ingenuidade mais grave), o fim do sujeito, o fim do
homem, o fim do ocidente, o fim de Édipo. [...] E quem quiser aprimorar, dizer o
fim do fim, a saber, o fim do fim, o fim dos fins [...] que ainda é preciso distinguir
entre fechamento e fim, este participaria, quisesse ou não, do concerto20.
19
DERRIDA, J. D’um ton apocalyptique adopté naguère em philosophie. Paris: Galilée, 1983.
20
Idem. Ibidem., p. 60.
66 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.
por um conceito mítico de razão21. O projeto desses autores não se limita à defesa
das mitologias antigas, mas inclui a produção de uma nova mitologia. Da mesma
forma, mas inversamente ao exemplo anterior, a noção de mito é definida e
desenvolvida com base em sua distinção de uma racionalidade considerada crítica
demais, calculada demais. Já o mito, para essa corrente, é a expressão original do
sagrado22, de uma sabedoria primordial23, a forma de expressão própria à religião,
de pensamento mais “vivo” e mais “fluido”.
Um dos exemplos mais claros desse projeto é Gespräch über die Poesie
[Conversa sobre a poesia], escrita por Friedrich Schlegel (1772-1829) após um
encontro em Jena, em novembro de 1799, em que, além do próprio Schlegel,
estiveram presentes Novalis (1772-1801) e Schelling, entre outros. Todos estão
no diálogo, sob pseudônimo. Após enfatizar, em um “discurso sobre a mitologia”,
que a força da inspiração poética não poderia repousar sobre indivíduos, mas sim
deve dispor de uma “captura sólida, um solo materno, um céu, um ar vivificante”24,
diz Ludoviko (que representa Schelling): “Afirmo que na poesia falta esse centro que
era a mitologia para os antigos, e que todo o essencial em que a poesia moderna cede à
antiga reside nisso: não temos mitologia”25. Prossegue Ludoviko:
A mitologia é uma [...] obra de arte da natureza: em sua trama, toma a forma
efetiva do que existe de mais alto; tudo nela é relação e metamorfose, conformação
e transformação, e assim são precisamente seus procedimentos, sua vida interna e
seus métodos, se posso me exprimir dessa maneira. [...] E eu não poderia concluir
sem exortá-los mais uma vez ao estudo da Física, cujos paradoxos dinâmicos são
responsáveis por fazer jorrar de toda parte, hoje, as revelações mais sagradas da
natureza26.
Nesses autores, que por vezes são influenciados por Johann Gottfried von
Herder (1744-1803)27 ou, de modo bastante diverso, por Schiller28, desenvolve-
se uma interpretação poética ou estética do mito, que Schelling denomina
tautegórica. Antes de tudo, tal interpretação se distingue da alegoria, de origem
21
Muito bem apresentados em: GOCKEL, H. Mythos und Poesie: Zum Mythosbegriff in Aufklärung
und Frühromantik. Frankfurt: Klostermann, 1981. pp. 1-27.
22
Georg Friedrich Creuzer (1771-1858) desenvolve, principalmente em Religion in der Geschicht
[Religião na História], a idéia de uma revelação primordial, exercendo influência sobre o romantismo,
que adotou de sua obra o parentesco entre o mito e um tempo original. Ver: CREUZER, G. F.
“Religion in der Geschichte”. In: Studien: Bd. 3. Heidelberg: Mohr und Zimmer, 1807.
23
GÖRRES, J. Mythengeschichte der asiatischen Welt. Heidelberg: Mohr und Zimmer, 1810.
24
Citado em: LACOUE-LABARTHE, P. ; NANCY, J.-L. & LANG, A.-M. L’absolu littéraire:
Théorie de la littérature du romantisme allemand. Paris, Seuil, 1978. p. 311.
25
Idem. Ibidem.
26
Idem. Ibidem., p. 315.
27
HERDER, J. G. Fragmente über die neue deutsche Literatu. In: Werke – Band 1. Frankfurt:
Suhrkamp, 1986. pp. 432-455.
28
SCHILLER, F. Lettre sur l´éducation esthétique de l´homme. (Traduction française par R. Leroux).
Paris: Aubier, 1943.
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
67
platônica: o mito transmite uma verdade que lhe é própria e que só pode ser
atingida através dele. O adjetivo “tautegórico” se opõe ao “alegórico” no sentido
de que o mito deve ser interpretado por si mesmo, tal como é formulado, e não
como expressão de outra realidade que possa ser enunciada de outras maneiras:
“a mitologia nasce diretamente como tal, e não possui outro sentido além daquele no
qual ela se anuncia”29. Esse sentido é, sobretudo, religioso: o mito não é apenas um
relato teogônico, mas também é em si mesmo uma teogonia: “o conteúdo último
da história dos deuses é a produção, o devir efetivo, de Deus na consciência”30.
As ciências das religiões, sem retomar o conjunto dessas teorias, prolongariam
algumas intuições esboçadas ali: primeiro, o mito é uma história sagrada cujo
relato tem em si mesmo uma eficácia, que é maior à medida que ele se alia (muito
frequentemente) ao culto; e a narrativa está ligada à origem de um elemento
essencial da existência humana: a idéia romântica de um tempo primordial é,
assim, especificada e reformulada numa perspectiva funcional de fundação. De
modo geral, em Antropologia ou Filosofia, a maior parte das teorias modernas
do mito contesta sua leitura alegórica: a função do mito não é explicativa, mas
sim de legitimação31. Mircea Eliade (1907-1986) é um autor representativo dessa
corrente, herdeira de uma tradição romântica que, ao empreender uma análise
mais precisa que a dos teóricos do século XIX, retoma, porém, uma definição do
mito de modo polêmico, contra toda desmitologização32, toda desqualificação,
toda redução do mito a explicações oriundas das ciências humanas.
A dificuldade dessa posição é formulada, talvez não intencionalmente, por
Thomas Mann (1875-1955) numa carta de 1941, endereçada a Károly Kerényi
(1897-1973), grande especialista em mitologia grega: “É preciso arrancar o mito do
fascismo intelectual e inverter sua função para um sentido humano”33. No entanto, há
nisso algumas dificuldades: seria o mito por excelência um meio de identificação
mimética34? O teórico do nazismo Alfred Rosenberg (1893-1946) teria intitulado
por acaso seu livro Der Mythus des zwanzigsten Jahrhunderts [O mito no século
XX]? O nazismo não soube se construir e se desenvolver a partir de um mito
fundador35, sem prescindir de referências religiosas, de estética, de ritos? A função
do mito pode ser invertida, como o espera Thomas Mann? Ou podemos apenas
resistir a sua lógica? São dignas de nota, nesse sentido, as críticas recentes do
29
SCHELLING, F. W. J. Introduction à la mythologie. Paris: Gallimard, 1998. p. 195.
30
Idem. Ibidem., p. 197.
31
MALINOWSKI, B. Myth in Primitive Psychology. New York: Kegan Paul, 1926, p. 88.
Encontramos uma idéia semelhante de “modelo exemplar”, mas em perspectiva bem diversa, em:
ELIADE, M. Le sacré et le profane. Paris: Gallimard, 1965.
32
ELIADE, M. La nostalgie des origines. Paris: Gallimard, 1971.
33
Citado em: NANCY, J.-L. La communauté désoeuvrée. Paris: C. Bourgois, 1990, p. 107-174.
34
Quer seja feita ou não referência às análises de René Girard sobre os mitos como narrativas de
violência mimética na origem das comunidades humanas.
35
LACOUE-LABARTHE, P. & NANCY, J-L. Le mythe nazi. La Tour d’Aigues: Éd. de l’Aube, 1991.
68 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.
Com isso, Bultmann é vítima de uma dupla ilusão: ilusão de uma pura forma,
abstraída de todo conteúdo, e ilusão de um puro conteúdo, abstraída de toda forma
de expressão.
Além disso, impressiona observar a que ponto a noção de “mito” utilizada
por Bultmann em seu programa de desmitologização permanece aquém das
análises desenvolvidas pelas ciências da religião44. Para ele, o mito é um “modo de
representar para si” o mundo (Vorstellungsweise)45 que se encontra “ultrapassado”46
numa época marcada pela ciência. Não se trata, de modo algum, de uma
definição de mito como relato que busca legitimar uma situação, ou estabilizá-
la, na narração de fatos em um tempo primordial; trata-se, para o autor, de uma
forma de representação que tem como característica principal o falar daquilo
que “não é mundano (von Unweltlichen) de modo mundano (weltlich), falar dos
deuses humanamente (menshilich)”47. Ele se situa, aqui, na linhagem da escola da
História das Religiões (Religionsgeschichtliche Schule): Wilhelm Bousset, de quem
Bultmann foi aluno, de fato definia o mito como “relato sobre os deuses”48 cujo
“espírito ingênuo”, precisaria Hermann Gunkel, “considera o divino de maneira
viva, pintando-o com boa dose de imaginação”49. A realidade espiritual do divino é
descrita de maneira sensível e corporal.
42
BULTMANN, R. “Jésus-Christ et la mythologie”. In: Jésus. Paris: Seuil, 1968. pp. 205-206.
43
R. BULTMANN, «À propos du problème de la démythologisation », op. cit., p. 384.
44
Apesar das declarações contrárias: BULTMANN, R. “Neues Testament und Mythologie”. p. 23, n. 2.
45
Idem. Ibidem., p. 23.
46
Idem. Ibidem., p. 14 ou p. 16.
47
Idem. Ibidem., p. 23.
48
BOUSSET, W. Das Wesen der Religion dargestellt an ihrer Geschichte. Halle: Gebauer, 1904. p. 77.
49
GUNKEL, H. Zum religionsgeschichtlichen Verständnis des Neuen Testaments. Göttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht, 1903. p. 14.
70 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.
50
BENOÎT, P. Exégèse et théologie 1. Paris: Cerf, 1961. p. 80.
51
Sobretudo no seguinte artigo: BULTMANN, R. “L’espérance chrétienne et le problème de la
démythologisation”. In: Foi et Compréhension. p. 101-111.
52
Idem. Ibidem., p. 103.
53
Idem. Ibidem., p. 111.
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
71
Definido assim como “história dos deuses”, o mito está ausente do Antigo
Testamento, ou, ao menos, ali, os elementos mitológicos são transformados: “Não
há mito autêntico, transmitido por inteiro e sem alterações, em nenhum trecho do
Antigo Testamento” [...] “Só se encontram materiais míticos diversos, enfraquecidos
e abreviados de várias maneiras”57. Para muitos exegetas do Antigo Testamento, o
mito é uma realidade estranha à Bíblia, presente nela, mas de modo transformado.
O mito é politeísta, o Antigo Testamento monoteísta; é a-histórico, enquanto o
Antigo Testamento historiciza58 um material mitológico referindo-o a um evento
54
BULTMANN, R. “À mon sujet”. p. 213.
55
GUNKEL, H. Genesis. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1969; GUNKEL, H. Die
israelitische Literatur. Darmstadt: Wissenschaftl Buchgesellschaft, 1963.
56
Como, por exemplo: GIBERT, P. Bible, mythe et récits des commencements. Paris: Seuil, 1986.
57
GUNKEL, H. Die israelitische Literatur. p. 16.
58
NOTH, M. “Die Historisierung des Mythos im Alten Testament”. In: Gesammelte Studien zum
Alten Testament II. München: Kaiser, 1969. pp. 29-47.
72 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.
histórico, como, por exemplo, na luta contra o caos (e o mar, símbolo do caos),
relida a partir da saída do Egito (Sl 77; Is 51,10).
Mas tal definição leva a uma distinção bastante evidente entre as tradições
que deram origem ao Antigo Testamento e as demais religiões orientais antigas
(consideradas mitológicas): o mito é a crença do outro. O que é designado
como historicização do mito pode ser também qualificado de “mitologização
da História”59 por Martin Buber (1878-1965), que, aliás, define o mito como
“relato, sob a forma de uma realidade sensível, de uma ação divina”60. De modo
geral, essa definição muito restrita exclui o uso moderno do termo: afirmar que
o mito descreve divindades agindo em um tempo primordial parece retirar do
cenário tudo o que poderíamos qualificar de “mitologias modernas”, como relatos
transmitidos que constituem um sistema simbólico, estabilizando um estado que
o identifica, ou permitindo reger conflito entre várias exigências. No entanto,
é verdade que usar o termo “mito”, elaborado a partir da religião grega, para
designar uma religião monoteísta, é algo problemático. Também é verdade que os
textos do Antigo Testamento só conservam traços de relatos de deuses ou misturas
entre divino e humano (Gn 6,1-5), atribuindo peso maior à História – o que os
aproxima da religião romana, de que se falou, desde a Antiguidade com Dionísio
de Halicarnasso (60-7 a.C.), que era uma religião sem mito. Podemos concluir
que a noção de mito, elaborada em um contexto religioso grego, só se aplica
muito dificilmente a outros sistemas religiosos, servindo apenas para designar sob
um termo único realidades parcialmente comparáveis, mas não unificáveis.
Ao contrário da exegese do Antigo Testamento, constatamos em geral,
desde David Strauss, uma definição muito mais abrangente do mito na exegese
do Novo Testamento. O termo pode servir, como em Rudolf Bultmann, para
designar tudo o que não nos parece mais crível; pode também ser considerado,
como ocorre em Gerd Theissen, um relato que fala de “um tempo determinante
para o mundo, em que intervêm atores sobrenaturais, que fazem passar de um estado
instável a um estável”61. Theissen conclui:
Não é necessário [...] identificar pura e simplesmente “História” com o “Jesus
histórico”, nem “mito” com a “pregação do Cristo” pós-pascal. Podemos de fato
constatar que o Jesus histórico já vivia num mito, esperando a irrupção do Reino
de Deus e se apresentava como representante desse reino, num lugar central do
que advém entre Deus e o mundo. Ele historicizava, assim, um mito do tempo do
fim. Uma espera que se referia a um tempo incerto do porvir (próximo) era, então,
transformada numa experiência atual da História. A unidade entre mito e História
começava, assim, no Jesus histórico62.
59
BUBER, M. Moses. In: Werke – Band II. München / Heidelberg: Kosel / Lambert, 1964. p. 20.
60
BUBER, M. “Der Mythos der Juden”. In: Der Jude und sein Judentum, Köln: Joseph Melzer,
1963. p. 78.
61
THEISSEN, G. La religion des premiers chrétiens. Paris / Genève: Cerf / Labor et Fides, 2002. p.
50; Ver, também, a longa nota 5 da p. 16.
62
Idem. Ibidem., p. 49.
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
73
Note-se que não somente o autor atribui ao termo uma extensão maior, mas
também considera o mito um elemento constitutivo tanto da pregação cristã quanto da
pregação do Jesus histórico: por esses dois aspectos ele se opõe a uma tendência forte na
exegese do Antigo Testamento, tendência que restringe a definição do mito e o considera
um material estranho que foi assimilado e transformado pela Bíblia.
Quando percebemos as realidades que essa palavra pode reunir em si, sobretudo
quando tratamos das narrativas modernas ou contemporâneas que marcam nosso
imaginário, é possível uma definição ainda mais abrangente do mito. Como, por
exemplo, a de “ideologia em narrativa”63: o mito transforma em relato um conjunto de
crenças que se inscreve nas instituições, influencia ações e se inscreve no real. É próprio
ao mito a forma de narrativa. Consideramos que toda ideologia que toma essa forma
é um mito. Porém, por que nomear tal narrativa de “mito”? Apenas por ser objeto de
crença? Por ser infundado? Mas como, nesse caso, distinguir um mito de uma lenda,
um conto? Toda narrativa que justifica uma situação não é um mito: tal pode ser o efeito
de uma lenda, um conto, uma obra ou uma narrativa individual. Podemos escolher: ou
estimamos que é necessário distinguir os mitos de outras narrativas, explicando por que
os mitos pretendem expor uma verdade; ou decidimos chamar “mito” toda narrativa de
legitimação, narrativa “fundadora”, incluindo nisso os contos, os romances, as figuras
literárias, até ideologias (o “mito” da lei do mercado, da luta de classes etc.).
No primeiro caso, falar de mito pressupõe distinguir entre o mito e o
discurso que o nomeia. Até mesmo uma definição ampla – “narrativa de uma
história sagrada, primordial, que estrutura uma experiência do mundo” ou a já citada,
de Theissen, “narrativa de um tempo determinante para o mundo, em que intervêm
atores sobrenaturais, que fazem passar de um estado instável a outro estável” – exclui toda
mitologia contemporânea, deixando subentendido que o mito estaria ligado a um
tipo de cultura hoje ultrapassado. Sem contar o fato de que uma definição ainda mais
precisa produz uma cesura dificilmente justificável entre o mundo da Bíblia e seu
meio cultural e religioso.
Já no segundo caso, não se sabe mais onde termina o mito. Não questionamos a
abundância do uso do termo em nossa cultura, fruto da história de nossa compreensão
do mundo. Trata-se de considerá-lo não como conceito, mas como denominação,
no sentido de uma metalinguagem, para designar, a partir de sua origem grega,
fenômenos parecidos no seio de outras culturas, ou para designar – a partir de uma
expressão religiosa – outros fenômenos, literários ou psicológicos, por exemplo.
Mas isso significa que as narrativas legendárias, os contos de fadas, tudo o que
se relaciona à poesia ou ao imaginário deve ser considerado mitologia? Caso a resposta
seja sim, por quê? Talvez haja algo como uma necessária mitologia do mito para afirmar
que dois tipos de linguagem, ou de linguagem oriunda de culturas e épocas diferentes,
podem, no entanto, se informar, ressurgir em outros meios de modo reconhecível e,
63
LINCOLN, B. Theorizing Myth: Narrative, Ideology, and Scholarship. Chicago: University of
Chicago Press, 1999. Ver, também: CSAPO, E. Theories of Mythology. Malden / Oxford: Blackwell,
2005. pp. 301-315.
74 COMMUNIO • Padre Olivier Riaudel, O.P.
para dizê-lo do modo mais trivial, “falar-nos”. Cabe a cada ramo do conhecimento dar
conta de seu interesse no uso dessa noção.
Mas por que usá-la em Teologia? Permito-me aqui uma hipótese. Falar de
mito, em Teologia, é distinguir, e mesmo separar, um determinado tipo de discurso
de outro discurso, conceitual e crítico. Nesse sentido, mostra-se com facilidade em
que o pensamento dito “científico” também origina mitos, narrativas, um tipo de
fabulação – como a ficção científica, por exemplo, que permite a abordagem das
grandes questões que uma sociedade se propõe.
Um exemplo evidente e ao mesmo tempo estimulante se encontra nos trabalhos
de Kurt Hübner64, no esforço de definir uma ontologia do mito, indagando-se, por
exemplo, o que caracteriza neles objetividade, substância, modalidades, lógica, tempo
ou espaço. Seu objetivo é mostrar que, longe de ser um discurso irracional, os mitos
têm uma racionalidade diversa da científica (por exemplo, separação ou não entre
material e ideal, presença ou não de contingência e de acaso etc.), mas igualmente
legítima. O mito “mediatiza, assim, um sistema de experiências, transmite legitimações
empíricas, trabalha com conceitos intersubjetivamente compreensíveis e, concluindo, é
capaz, por tudo isso, de deduções lógicas65”. O interesse nesse tipo de análise parece
ser o da distinção entre o que se relaciona com o mito e o que não se relaciona, já
que define uma ontologia do mito. Seu autor afirma, claramente, que esse elemento
mitológico não é o conjunto de uma religião (ainda que não haja religião viva sem
mito), enfatizando que o especificamente religioso deve ser distinto do mitológico.
Porém, definir uma ontologia do mito para distinguir outros tipos de ontologia é
definir uma relação com a experiência especificamente mitológica, irredutível a outra
racionalidade. É, portanto, fazer uso não de uma dicotomia entre mythos e lógos,
mas entre o que é definido como “mito” e o que é definido como “científico” ou
“conceitual”.
Duas objeções podem ser feitas contra tal “autonomização” do mito. A
primeira, já a vimos: seria de fato possível uma distinção real, do interior, entre
mitos “autênticos” e “pseudo-mitos políticos”66, degeneração de verdadeiros mitos?
A segunda: autonomizar a relação mítica com o mundo remete ao que Friedrich
Schleiermacher (1768-1834) faz com o sentimento, com relação ao saber e à ética. É,
portanto, declarar estranho ao mito qualquer relação com o conceito. O mesmo jamais
seria dito do símbolo, da comparação, da narrativa ou da metáfora, por exemplo,
que podem se distinguir do pensamento conceitual, mas não lhe são estranhos. Na
Teologia, permitir que seja definida e autonomizada uma ontologia do mito é correr o
risco de tratar sob essa única denominação os temas já citados, ligados de modo global
64
Seus escritos principais sobre o assunto são: HÜBNER, K. Die Wahrheit des Mythos. München: Beck, 1985;
HÜBNER, K. “Der Mythos, der Logos, und das spezifisch Religiöse. Drei Elemente des christlichen Glaubens”.
In: SCHMID, H. H. (Org.). Mythos und Rationalität. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 1988. pp. 27-41.
Pode-se também consultar o seguinte artigo: HÜBNER, K. “Mythos I. Philosophisch”. In: TER, 23 (1994):
597-608.
65
HÜBNER, K. “Mythos I. Philosophisch”. p. 604.
66
Idem. Ibidem.
NEM MITO, NEM DESMITOLOGIZAÇÃO
75
Padre Olivier Riaudel, O.P., nasceu em 1969 e ingressou na Ordem dos Pregadores
em 1989. Estudou em Lyon, Paris e Munique. Leciona Teologia Fundamental na
Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Publicou Le monde comme histoire
de Dieu: Foi et Raison dans l’oeuvre de Wolfhart Pannenberg (Cerf, 2007).
67
VALÉRY, Paul. “Petite lettre sur les mythes” In: Variétés II. Paris: Gallimard, 1929.
Alegoria aos quatro continentes: África (Século XVIII)
Óleo sobre tela de José Theophilo de Jesus (1758-1847)
Procedente do Engenho da Vitória, Cachoeira, BA
Museu de Arte da Bahia, Salvador, BA
A BÍBLIA E O FANTÁSTICO*
Padre José Tolentino Mendonça
nas suas linhas e entrelinhas, uma relevância impagável. Mas igualmente a ficção
e a poesia, da qual Aristóteles (384-322 a.C.) dizia ser “algo mais sério do que a
história, pois refere principalmente o universal, enquanto esta, o particular”3.
De fato, a Revelação desenvolve-se coerentemente, do princípio ao fim,
mas não de maneira previsível. O sentido que ela constrói não é apenas emergente:
em grande medida permanece voluntariamente implícito, misterioso e submerso.
Muito naturalmente, o Novo e o Antigo Testamento avançam na
descontinuidade, problematizam o óbvio, confiam que a indeterminação possa
contribuir melhor para a aclaração do sentido do que a afirmação minuciosa,
preferem o esboço da metáfora ao desenho mais firme dos conceitos, contam com
a propagação semântica trazida pelo símbolo e pela pergunta, sobretudo quando
a esta não se cola imediatamente uma resposta.
Há a história e a seu lado a poética. Como, podemos dizer, que há
a Revelação e, ao serviço dela, a Imaginação Bíblica. Escreveu padre Adolphe
Gesché (1928-2003):
Não é distante a relação entre os que uns chamam “Revelação” (isto é, a abertura
de um espaço onde se des-cobre uma realidade invisível escondida no visível) e o
que outros chamam “Imaginação” (quer dizer, a abertura de um espaço onde se
descobre o visível escondido no invisível), pois, em ambos os casos, trata-se de
esclarecer o visível pelo invisível4.
se, a partir daqui, absolutamente inevitável. O que emerge estala a neutralidade em que a
história decorria, criando uma espécie de intervalo vazio, que Louis Marin (1931-1992)
define assim: “lugar potencial da aparição” da “figura” inclassificável ou do “sublime”12.
Na verdade, traços intrigantes, elementos insólitos, coincidências estranhas podemos
encontrar também em outros gêneros, mas no Fantástico eles constituem um verdadeiro
“obstáculo” que a razão e a ordem natural não conseguem explicar.
fel, o coração e o fígado. Assou uma parte do peixe e comeu-a. O resto, guardou-o
depois de o ter salgado.
Em seguida, continuaram juntos a viagem até às proximidades da Média. Então,
Tobias perguntou ao anjo: “Irmão Azarias, que poder medicinal há no coração,
no fígado e no fel do peixe?” Ele respondeu: “O coração e o fígado queimados
sobre as brasas afugentarão com o seu fumo toda a espécie de maus espíritos ou
demônios, de um homem ou mulher. Desaparecerão definitivamente, sem deixar
nenhum rasto. Quanto ao fel, serve para ungir quem sofra de cataratas, pois com
ele ficará curado” (Tb 6,1-9).
II
A cada semestre letivo, em cursos de Introdução à Filosofia por todo
o mundo, René Descartes (1596-1650) é apresentado à imaginação dos
jovens e impressionáveis como o proponente mais sistematicamente rigoroso
do “racionalismo”, a filosofia que Platão (428-347 a.C.) supostamente teria
criado. De acordo com o racionalismo, a experiência sensorial não possui as
qualidades necessárias para fornecer um objeto confiável à mente: ela não é nem
necessária nem universal, como os objetos racionais precisam ser. A inferência
que geralmente se faz disso é que os sentidos são enganadores e, portanto,
apresentam, na melhor das hipóteses, degraus em direção à verdadeira vida
da razão e, na pior, obstáculos que ativamente seduzem a mente, afastando-a
de tal vida. Quando esses cursos de introdução trazem um pouco de história
intelectual, eles ensinam que o desprezo pelo corpo, implícito no racionalismo
platônico e adotado por Plotino (205-270) e seus seguidores, fizeram do
neoplatonismo a filosofia mais apropriada para os primeiros pensadores cristãos
que, como Friedrich Nietzsche (1844-1900) depois escarneceria2, adicionariam
2
Falando dos filósofos antigos, Nietzsche escreveu: “Eles acreditavam, até desesperadamente, no que
deixava de ser. Mas como não podiam jamais agarrá-lo, buscavam motivos que explicassem porque
ele se afastava deles. ‘Deve haver meras aparências, deve haver algum tipo de engano que nos impede
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 87
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO
de perceber o que deixa de ser: onde está o enganador?’ ‘Nós o encontramos’, eles gritavam, extasiados,
‘está nos sentidos! Estes sentidos, que são tão imorais de outros modos, também nos enganam em relação
ao mundo verdadeiro’” [NIETZSCHE, Friedrich. Twilight of the Idols. In: The Portable Nietzsche.
(Translated by Walter Kaufmann). New York: Penguin Books, 1976. p. 480].
3
SACHS, Joe. Aristotle’s Physics: A Guided Study. New Brunswick: Rutgers University Press, 1995.
p. 245.
4
PLATÃO. Timeu. 27d-28a.
5
Idem. Ibidem., 28a.
6
Idem. Ibidem., 28b.
88 COMMUNIO • David C. Schindler
modelado a partir do que é eterno e perfeito. Sugerir outra coisa é “impiedoso”, diz
Platão: “É evidente para todos que o olhar [do criador] estava voltado para o eterno;
pois o cosmo é mais belo do que tudo que veio a existir, e é a melhor das causas”7.
Por mais direta que essa passagem pareça ser, ela está repleta de significados, e
seria bom se os desdobrássemos. Como vemos aqui, Platão afirma que a causalidade
sempre ocorre de acordo com um modelo, o que é outro modo de dizer que aquilo
que está sendo não é simplesmente uma entidade que se basta a si mesma, mas uma
revelação, ou manifestação, de outra coisa. Dizer que o agente causal sempre cria de
acordo com um modelo significa que a agência é a comunicação de uma forma. A
causalidade não é, em outras palavras, simplesmente trazer algo ou colocar algo em
movimento; pois isso seria um evento ou atividade essencialmente sem forma, que pode
ou não subseqüentemente dar lugar a algo com forma e, portanto, a algo inteligível.
Se a causa é aquilo que é responsável por uma coisa, é a forma que para Platão é
a causa mais fundamental, sendo aquilo que é mais fundamentalmente responsável
pelo modo como as coisas são. Esse simples insight é magnífico: leva a um modo
particular de caracterizar absolutamente tudo que existe: “Sendo as coisas desse modo”,
escreve Platão, “decorre, por uma necessidade inquestionável, este mundo ser a imagem de
algo”8. Dizer que a representação é a comunicação de uma forma significa que todas
as coisas que venham a existir possuem o caráter de imagem – a palavra grega é eikón,
donde vem o termo inglês “icon” (em português, ícone) – ou, em outras palavras, elas
refletem um significado do qual não são, em si mesmas, a fonte. É crucial perceber
que não há dualismo algum aqui, por assim dizer, entre ser e significância, como se
as coisas fossem um tipo de realidade opaca que, subseqüentemente, indicasse um
conteúdo inteligível. Defender tal bifurcação seria negar o significado de causa como
Platão claramente o compreendia, isto é, como a comunicação de uma forma no ato
de fazer uma coisa passar a existir. Poderíamos dizer que, para Platão, a ontologia é
semiótica. Ser uma imagem é o que torna algo real.
Mas se a forma é responsável pelo modo como as coisas são, isso ainda não
explica o fato de que, antes de mais nada, existe um mundo sensível. É significativo que
Platão distinga no Timeu entre o que ele chama os modelos (paradeígmata) e a agência
que os “reproduz”, por assim dizer, na natureza – o famoso demiurgo ou artífice.
Perguntar qual é a causa última do mundo é perguntar porque a representação, no
fim das contas, o criou. A resposta de Platão ao que Martin Heidegger (1889-1976) se
refere como a mais radical das questões para o pensamento – “Por que há algo, e não
o nada?” – é, mais uma vez, ao mesmo tempo simples e infinitamente rica:
Anunciemos o motivo. Ele [o criador e pai do universo] era bom, e alguém que
é bom jamais poderia ter ciúme de algo. E, portanto, estando livre do ciúme,
queria que tudo se tornasse como ele mesmo, tanto quanto fosse possível9.
7
Idem. Ibidem., 29a.
8
Idem. Ibidem., 29b.
9
Idem. Ibidem., 29e.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 89
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO
causas”. Para uma interpretação nessa linha, ver: McGINLEY, John. “The Doctrine of the Good
in the Philebus”. Apeiron, 11 (1977): 27-57. esp. pp. 34-35. Segundo sua explicação, para Platão é
precisamente o bem que faz de uma causa, uma causa.
14
PLATÃO. Fédon. 99b.
15
No Timeu, Platão se refere à necessidade (mecânica) que deve ser levada em conta na explicação
do cosmos, mas, precisamente em oposição à inteligência, ela não é uma causa no sentido estrito do
termo. Ver: PLATÃO. Timeu. 46e, 47e-48a.
16
PLATÃO. Fédon. 99c.
17
DIONYSIUS. The Divine Names. IV.10.
18
PLATÃO. Fédon. 100d.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 91
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO
Dizer que a presença da beleza é a causa das coisas belas enquanto belas
é simplesmente dizer que a beleza sensível que percebemos nas coisas é a forma
inteligível da beleza manifesta no tempo e espaço. Em outras palavras, é dizer que
a experiência sensorial é a expressão de um significado, que ela tem um conteúdo
inteligível que, enquanto algo inteligível, não pode ser simplesmente identificado com
a particularidade de sua manifestação. Se relembrarmos a posição defendida no Timeu
– ou seja, a de que tudo que vem a ser é o resultado da comunicação de uma forma
–, veremos que o que Sócrates diz sobre a beleza aqui deve ser estendido para todas
as coisas no cosmo; os objetos físicos, visto que são inteligíveis, são a expressão de
um significado, de conteúdo inteligível num modo espacial e temporal. Podemos ir
além: não existe, de fato, conteúdo algum em nossa experiência sensível que não seja
a expressão de um significado inteligível. A palavra exigida por essa observação é a
palavra que Platão usa desde o início, uma palavra que ficaria para sempre associada
à filosofia de Platão: eikón, imagem. O mundo sensível, em sua inteireza, é imagem,
o que quer dizer que o mundo sensível é a expressão de um significado, isto é, de
um reflexo do bem. Na imagem da linha dividida d’A República19 de Platão, vemos
esse argumento ser exposto com toda a clareza desejável: aqui, Platão divide uma
linha em segmentos desiguais, os dois de cima representando diferentes modos de
inteligibilidade, e os dois de baixo representando diferentes modos de percepção
sensível; mas é uma linha contínua, de cima a baixo, o que quer dizer que a idéia e a
realidade sensível não são duas coisas diferentes, mas um único significado apreendido
ora intelectualmente, ora pelos sentidos corporais20. O ponto central de tudo isso é
que não há nada no que chamaríamos de mundo “físico” que não seja derivado de
uma forma, exceto aquilo que é, em si mesmo, forma – e isso é simplesmente um
modo de dizer que o mundo físico não é nada senão o significado tornado tangível.
O que, então, explica essa notória descrição da filosofia de Platão como um
meio para se libertar dos sentidos enganadores que aprisionam a alma no corpo?
Os amantes do conhecimento sabem que quando a filosofia toma posse de
suas almas, ela fica aprisionada no corpo, e se agarra a ele, sendo forçada a
examinar as outras coisas por meio dele, como se ele fosse uma cela, e não por
si mesma, misturando-se com todo tipo de ignorância. A filosofia observa que
a pior característica desse aprisionamento é devido aos desejos, pois é o próprio
prisioneiro que contribui mais do que ninguém para seu próprio aprisionamento.
Como sempre digo, os amantes do conhecimento sabem que a filosofia toma
posse de suas almas, quando estão nesse estado, e então gentilmente os encoraja
e tenta libertá-los, mostrando-lhes que a investigação pelos olhos está repleta
de enganos, assim como pelos ouvidos e pelos outros sentidos. A filosofia então
convence a alma a se abstrair dos sentidos à medida que não estiver compelida a
usá-los e recomenda que a alma se recolha sobre si mesma, que confie apenas em si
própria e em qualquer realidade que, existindo por si mesma, a própria alma possa
19
PLATÃO. A República. VI, 509d-511e.
20
Ver o artigo clássico de Henry Jackson (1839-1921): JACKSON, Henry. “On Plato’s Republic VI
509d sqq.”. In: The Journal of Philology, 10 (1882): 132-150.
92 COMMUNIO • David C. Schindler
compreender; não considerando como verdadeiro o que quer que examine por
outros meios, pois essas coisas são diferentes em circunstâncias diferentes, sendo
sensíveis e visíveis, enquanto o que a própria alma vê é inteligível e invisível. A
alma do verdadeiro filósofo considera que essa libertação não deve ser contrariada
e, portanto, se afasta dos prazeres e desejos e dores o quanto for possível [...]
porque todo prazer e toda dor traz, por assim dizer, mais um prego para firmar a
alma no corpo, soldando-os juntos. Eles tornam a alma corporal, de modo que ela
passa a acreditar que a verdade é aquilo que o corpo diz21.
Mas apesar de toda essa conversa sobre a beleza do cosmo, não seria Platão
apesar de tudo, no fundo, um dualista que relega o mundo material a uma
irrealidade fantasmagórica? Não faz ele da imaginação, eikasía, um poder trivial
da alma que precisaria ser transcendido em direção à pureza do exclusivamente
racional22? A interpretação que acabamos de expor, que apresenta a significância
da experiência sensorial e a suprema beleza do mundo físico, é não apenas capaz
de ser harmonizada com as passagens que expressam alguma hostilidade em
relação aos sentidos como, de fato, é capaz de explicar tais passagens.
A passagem do Fédon, que é um dos textos mais claramente “anti-
corporais” no corpus platônico, apresenta dois argumentos que são especialmente
significativos, dada a discussão até agora. Em primeiro lugar, ele não diz que o
corpo aprisiona a alma, mas antes, que a alma aprisiona a si mesma no corpo23,
o que constitui a pior característica dessa predicação. Em segundo lugar, o que
caracteriza esse aprisionamento é a inversão pela qual o aspecto corporal da
experiência é tomado como sendo mais real do que a dimensão não corporal. Para
elaborar essa questão na linguagem que estamos utilizando, isto quer dizer que
estaria se dando prioridade à expressão, ao invés de priorizar ao que é expresso.
Mas essa inversão seria, de fato, o próprio golpe que eliminaria o caráter próprio
do corpo e dos sentidos. Em outras palavras, tomar o mundo natural dentro de
sua materialidade como algo positivo em si mesmo, separado da subordinação ao
significado e, portanto, da expressividade, é destruí-lo como imagem, tornando-o
mudo. Desse modo, ele se torna uma “coisa” morta. O mundo abre mão do
seu significado, e a alma fica emaranhada em meio aos puxões e empurrões
do prazer e da dor, assim como de inúmeras forças não-causais mecânicas e,
portanto, ininteligíveis. De fato, se o corpo já não é mais uma “expressão”, então
a alma não é mais aquilo que expressa a si mesmo. Desse modo, ela se torna
ela própria uma “coisa”, ao lado da coisa chamada “corpo” e, evidentemente,
21
PLATÃO. Fédon. 82d-83d. Para interpretações divergentes é interessante ler: PICKSTOCK,
Catherine. “The Soul in Plato”. In: BAKER, D. & MAXWELL, P. (Ed.). Explorations in
Contemporary Continental Philosophy of Religion. New York: Radopi, 2003. pp. 115-126; SMITH,
James K. A. Introducing Radical Orthodoxy: Mapping a Post secular Theology. Grand Rapids: Baker
Academic, 2004. pp. 201-204. A interpretação de James K. A. Smith representa exatamente o que
este artigo pretende criticar.
22
PLATÃO. A República. VII, 532a-534b.
23
PLATÃO. Fédon. 82e.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 93
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO
ela será necessariamente um tipo de coisa impotente, pois que tipo de força
corporal poderia a alma exercer em comparação com os corpos? É por causa
dessa ininteligibilidade que Platão descreve essa inversão como um estado de
ignorância – o fracasso em perceber o mundo como algo que já é significante no
próprio ser é ignorar o sentido mais adequado do termo – e isso também esclarece
porque isso não é algo que o corpo enquanto corpo possa impor à alma: acreditar
que ele pode já é presumir que o corpo é uma coisa em si mesmo contra a alma,
ou seja, é tomar o estado de ignorância como sendo o estado de superioridade
a partir do qual se pode ver a verdade das coisas. Para a alma que vê por meio
do conhecimento, ao contrário, o mundo não é nada mais que uma epifania.
A ironia agora deve estar patente: Devido à natureza paradoxal da
imagem, a inversão da relação corpo-alma é profundamente problemática, e
não (apenas) por banalizar a alma, mas porque, consequentemente, banaliza
também o corpo. Em outras palavras, a absolutização do físico fracassa em
atribuir ao físico o seu devido bem – isto é, isto o esvazia do bem que ele poderia
possuir apenas como o receptor e, portanto, apenas na estação subordinada
como mediador, como imagem. Mas isso significa que as condenações, por
vezes veementes, que encontramos na literatura clássica, tanto pagã quanto
cristã, à tendência do corpo em adquirir proeminência sobre a alma, podem,
de fato, ser uma afirmação e uma proteção entusiasmadas da significância do
corpo. A questão decisiva é se o corpo e a alma e, portanto, os sentidos e
o intelecto, são tomados por coisas opacas sobrepostas uma à outra, ou se
o corpo é apresentado como uma imagem e, portanto, como uma expressão
do espírito. Não se pode insistir na significância do corpo sem, ao mesmo
tempo, insistir na sua relação hierárquica com o espírito. Como vimos, por
trás dessa questão reside outra ainda mais fundamental que é a da causalidade
compreendida primordialmente em termos do bem e do belo. Como Hans
Urs von Balthasar (1905-1988) nos ensinou, uma das considerações mais
importantes ao avaliar uma época intelectual é o status que ela concede à
beleza. Aqui nós encontramos um caminho onde a Cristandade aprofunda
e fornece a fundamentação última para uma das mais elevadas verdades do
pensamento pagão. A beleza que Santo Agostinho (354-430) amaria era a
beleza que corria pelo cosmo, uma beleza que o convidava nas coisas sensíveis
para Deus24. Recordemos que foi precisamente o encontro de Santo Agostinho
com o pensamento neoplatônico – provavelmente Plotino e Porfírio (232-
304) na tradução de Gaius Marius Victorinus (300-382) – que o libertou
da condenação maniqueísta da carne25. Não é de forma alguma um acidente
que essa libertação tenha consistido na descoberta de que o espírito deve ser
compreendido em termos não-materiais e, portanto, não como uma coisa que
24
AGOSTINHO, Santo. Confissões. X.xxvii(38). Santo Agostinho se refere aqui a cada um dos
cinco sentidos ao narrar o chamado de Deus a ele por meio do mundo criado.
25
Idem. Ibidem., VII.
94 COMMUNIO • David C. Schindler
se opõe a outra chamada corpo. Apenas assim pode o corpo e, por conseqüência,
o mundo material, ser expressivo da maneira como Santo Agostinho o celebra
nas Confissões. O próprio Plotino, que talvez seja famoso por causa de suas
passagens que parecem menosprezar o corpo, escreveu o que é um dos mais
apaixonados ataques ao gnosticismo no mundo antigo26. Quem quer que odeie
o corpo está blasfemando, ele escreveu, pois está demonstrando desprezo pelo
seu Criador27. É de fato o bem e o belo que residem diretamente no centro do
que poderíamos chamar, exatamente por essa razão, do “cosmo” de Plotino.
Mas o pensador cristão que adotaria e adaptaria essa posição de modo mais
decisivo certamente seria Dionísio, o Areopagita, para quem Deus é causa,
ou seja, é o criador precisamente enquanto bem e belo28, e, portanto, cuja
via negativa incansável percorre o mundo do início ao fim, onde as próprias
pedras proclamam o Senhor precisamente por meio de sua pedridade29. Ao
lado de Santo Agostinho, Dionísio foi legado aos grandes pensadores da Idade
Média como a autoridade em tais assuntos; pensadores estes que podem ser
considerados como os mais decisivos formadores da imaginação cristã30.
III
A luz trazida por nossa discussão até esse ponto colocará em relevo as
diferenças entre o racionalismo cartesiano e o assim chamado racionalismo
ou espiritualismo dos neoplatônicos cristãos e gregos. Em primeiro lugar,
René Descartes explicitamente distingue entre corpo e espírito como duas
coisas: a res cogitans e a res extensa31. Nisso, ele está muito mais próximo
dos maniqueístas ou, de qualquer modo, dos filósofos materialistas da
antigüidade tardia do que das tradições platônicas e agostinianas32. Pode-se
argumentar que Descartes estaria utilizando o termo “res”, aqui, de forma
26
PLOTINO. As Enéadas. II.9.
27
Idem. Ibidem., II.9.16.
28
DIONYSIUS. The Divine Names. IV.7.
29
Sobre uma leitura “esteticamente teológica” de Dionísio que interprete o movimento negativo
dentro de uma manifestação positiva, ver: BALTHASAR, Hans Urs von. The Glory of the Lord: A
Theological Asthetics – Volume 2: Studies in Theological Styles: Clerical Styles. San Francisco: Ignatius
Press, 1984. pp. 178-184.
30
Sobre a significância fundamental do corporal na visão de mundo cristã, ver: HEALY, Nicholas
J. The Eschatology of Hans Urs von Balthasar: Being as Communion. Oxford: Oxford University
Press, 2005. Para um estudo da abordagem de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) sobre o corpo
na mesma linha, ver: McALEER, Graham. Ecstatic Morality and Sexual Politics: A Catholic and
Nontotalitarian Theory of the Body. New York: Fordham University Press, 2005.
31
DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. I.8; II.4. Ver também: DESCARTES, René.
Meditações. II e VI.
32
Ver um excelente argumento a esse respeito em: HANBY, Michael. Augustine and Modernity.
London: Routledge, 2003. Capítulo 5, pp. 134-177.
VERDADE E A IMAGINAÇÃO CRISTÃ: 95
A REFORMA DA CAUSALIDADE E A ICONOCLASTIA DO ESPÍRITO
33
DESCARTES. Meditações. II,31.
34
“Além do mais, encontro em mim mesmo faculdades especiais para certos modos de pensar, a saber, as
faculdades da imaginação e da sensação. Posso claramente compreender a mim mesmo em minha inteireza
sem essas faculdades” (DESCARTES. Meditações. VI. Grifos arcrescentados pelo autor do artigo).
35
Ver, por exemplo, a primeira parte do Discurso sobre o Método de René Descartes, que começa
assim: “O bom senso é a coisa melhor distribuída no mundo...”. Em Descartes, a inteligência é
homogeneizada do mesmo modo como o movimento é homogeneizado em Galileu.
96 COMMUNIO • David C. Schindler
promovera na Física por meio da introdução de uma técnica que permitia que os
experimentos tomassem o lugar da intuição intelectual:
Considerações profundas desse tipo pertencem a uma ciência mais elevada que a
nossa. Devemos nos satisfazer em pertencer àquela classe dos trabalhadores menos
dignos, que obtêm da pedreira o mármore com o qual, depois, o talentoso escultor
irá produzir aquelas obras-primas que estavam escondidas nessa matéria bruta e
sem forma36.
Um “efeito” não é uma imagem; ele não revela a natureza de sua causa. Para
produzir um efeito, a causa precisa ser da mesma ordem do efeito e, portanto,
precisa ser igualmente material. Causa e efeito caem na mesma linha horizontal,
o que significa, como vimos, que não pode haver nenhuma manifestação de
significado; a revelação necessariamente implica numa hierarquia, visto que
aquilo que revela precisa ser, em algum sentido fundamental, subordinado ao que
revela. Investigar os efeitos, portanto, não nos ensina nada sobre as causas, por
mais precisos e completos que sejam os nossos conhecimentos desses efeitos. Por
isso, como Galileu explica, a palavra “gravidade” é apenas um mero nome. Não
sabemos o quê ela é. Somos deixados, ao invés disso, com a tarefa de calcular a
quantidade de movimento que ela produz por meio da observação controlada de
seus efeitos.
Para Platão, o bem é o paradigma da causalidade porque representa a auto-
comunicação e, já que todas as outras causalidades refletem, em algum grau, tal
causalidade fundamental, o que principalmente caracteriza a causa, como vimos
anteriormente, é a comunicação da forma. Para Galileu, ao contrário, nós talvez
pudéssemos dizer que a força está sendo comunicada da causa para o efeito, tal
como se revela pelo movimento produzido pelo efeito. Mas, seguindo os sentidos
mais rigorosos dos termos, teríamos de negar que qualquer coisa estivesse sendo
comunicada. A comunicação sugere que algo seja partilhado e, portanto, que
haja algo que una os comunicantes. Segundo a visão mecanicista da causalidade
encontrada em Galileu, no entanto, nada está sendo “partilhado”: a única coisa
que une causa e efeito, como vimos, é a sucessão no tempo e espaço. O movimento
físico (mecanicisticamente interpretado) é essencialmente atomista. Uma coisa
pode colocar outra em movimento, mas a conexão entre elas é extrínseca; é da
natureza da força operar externamente – em oposição, por exemplo, à atração,
que opera simultaneamente externa e internamente. Não temos espaço aqui
para abordar esse tema, mas apontamos para o modo como a quantificação do
estudo do movimento resulta naturalmente dessa transformação da noção de
causa. Nesse aspecto, Martin Heidegger estava profundamente certo: o advento
da ciência empírica é o resultado de uma mudança mais fundamental no nosso
modo de entendimento; a praxis é sempre e sem exceção fundamentada numa
teoria, assim como é a expressão dela41. Enquanto para Aristóteles o movimento
40
Idem. Ibidem., p. 93.
41
Ver o trecho da palestra de Heidegger Die Frage nach dem Ding: HEIDEGGER, Martin. “Modern
Science, Metaphysics, and Mathematics”. In: Basic Works. (Translated by David Krell). New York:
Harper and Row, 1977. pp. 247-282.
98 COMMUNIO • David C. Schindler
45
Idem. Ibidem., pp. 75-76.
100 COMMUNIO • David C. Schindler
coisas” (Ap 21,5)*, e foi Ele quem, desse modo, se revelou ser, como os escolásticos
diziam, a “imagem perfeita” do Pai, ou, como poderíamos dizer agora, a Verdade
da Imaginação do Pai.
*
N. do E.: Essa passagem da Sagrada Escritura citada pelo autor foi substituída pela versão em
língua portuguesa da seguinte edição: BÍBLIA DE JERUSALÉM. (Tradução do texto em língua
portuguesa diretamente dos originais). São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional /
Paulus, 1995.
Leão Funerário (Século XVIII)
Escultura em madeira de Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), o Alejadinho
Proveniente da Cripta de Nossa Senhora da Conceição na Matriz do Bairro de Antonio Dias
Museu do Aleijadinho, Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, Ouro Preto, MG
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 103
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 103-119
A IMAGINAÇÃO MORAL*
Russell Kirk
2
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução em França. (Introdução de Connor Cruise O’Brien;
tradução de Renato de Assumpção Faria, Denis Fontes de Souza Pinto e Carmen Lídia Richter
Ribeiro Moura). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982. pp. 101-102.
3
Idem. Ibidem., p. 117.
A IMAGINAÇÃO MORAL 105
filmes decentes. Desde que T. S. Eliot proferiu essas palavras na Universidade de Virgínia
em 1933, nós já avançamos um longo percurso do caminho a Avernus, a mitológica
entrada para o mundo inferior. E à medida que a literatura se afunda na perversidade, da
mesma forma a civilização moderna se desfaz em ruínas: “A maré escurecida de vermelho
sangue está solta, e em todo lugar / A cerimônia da ignorância é afogada”7.
Portanto, uma vez tendo notado a existência da imaginação moral, da imaginação
idílica e da imaginação diabólica, aventuro-me agora a relembrar-lhes o verdadeiro
propósito das belles-lettres. Como C. E. M. Joad (1891-1953) aponta em seu livro
Decadence: A Philosophical Inquiry [Decadência: Uma investigação filosófica], aquilo a
que chamamos “decadência” traduz-se pela perda de um fim, um objetivo8. Quando a
literatura perde de vista seu real objeto ou propósito, ela encontra-se em decadência.
Qual é, então, o fim, objeto ou propósito das belas letras? Ora, a expressão da
imaginação moral, ou, para encapsular essa verdade numa expressão mais comum,
o objetivo dos grandes livros, tem a ver com a ética – ensinar o que significa ser
genuinamente humano.
Todas as formas significativas de arte literária adotaram, como temas mais
profundos, as normas da natureza humana. Aquilo que T. S. Eliot chama de “as
coisas permanentes”9 – as normas, os padrões – tem sido a preocupação dos poetas
desde o tempo de Jó, ou desde Homero: “o cego que vê”10 cantou sobre os caminhos
dos deuses com os homens. Até poucos anos atrás, os homens davam por evidente
7
“The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere / The ceremony of ignorance is drowned” (YEATS,
W. B. “The Second Coming”. In: The Collected Works of W.B. Yeats – Volume 1: The Poems. {Edited
by Richard J. Finneran}. New York: Scribner, 2nd Revised edition, 1996. p. 189).
8
JOAD, C. E. M. Decadence: A Philosophical Inquiry. London: C. A. Watts Co., 1948.
9
A defesa das “coisas permanentes” feita por T. S. Eliot é uma das características de sua vasta
produção literária, podendo ser encontrada nos poemas The Waste Land [A terra desolada] de
1922, nos coros de The Rock [A rocha] de 1934, nas peças de teatro The Cocktail Party de 1949
e The Confidential Clerk [O secretário particular] de 1953, e em diversos ensaios, dentre os quais
destacamos: “Tradition and the Individual Talent” [Tradição e o talento individual] de 1917,
“The Function of Criticism” [A função da crítica] de 1923, “Religion and Literature” [Religião e
literatura] de 1934 e Notes towards the Definition of Culture [Notas com vistas à definição de cultura]
de 1948. Essas obras de T. S. Eliot podem ser encontradas nas seguintes edições:
ELIOT, T. S. T. S. Eliot: Obra Completa – Volume I: Poesia. (Edição bilíngüe com texto original
em inglês e tradução para o português, com introdução e notas, de Ivan Junqueira). São
Paulo; Arx, 2004.
ELIOT, T. S. T. S. Eliot: Obra Completa – Volume II: Teatro. (Edição bilíngüe com texto original
em inglês e tradução para o português de Ivo Barroso). São Paulo; Arx, 2004.
ELIOT, T. S. Selected Essays: 1917-1932. San Diego / New York / London: Harcourt, 1950.
ELIOT, T. S. Christianity & Culture. San Diego / New York / London: Harcourt, 1976.
Uma boa análise do pensamento de T. S. Eliot se encontra na seguinte obra: KIRK, Russell. Eliot
and His Age: T. S. Eliot’s Moral Imagination in the Twentieth Century. (Introduction by Benjamin G.
Lockerd Jr.). Wilmington: ISI Books, 2nd Revised edition, 2008.
10
VOEGELIN, Eric. “The Age of Heroes”. In: Order and History – Volume II: The World of the Polis.
(Edited with an Introduction by Athanasios Moulakis). Columbia: University of Missouri Press,
2000. (The Collected Works of Eric Voegelin, Volume 15).
A IMAGINAÇÃO MORAL 107
que a literatura existe para formar a consciência normativa – isto é, ensinar aos seres
humanos a sua verdadeira natureza, sua dignidade e seu lugar na ordem das coisas.
Tal foi a empresa levada a cabo por Sófocles (496-406 a.C.) e Aristófanes (447-385
a.C.), por Tucídides (460-395 a.C.) e Tácito (55-120), por Platão e Cícero (106-43
a.C.), por Hesíodo e Virgílio, por Dante Alighieri e William Shakespeare (1564-
1616), por John Dryden (1631-1700) e Alexander Pope (1688-1744).
A própria expressão, “humane letters” [letras humanas ou belas letras, em
português], sugere que a grande literatura se destina a nos ensinar o que é ser
integralmente humano. Como observa Irving Babbitt em seu pequeno livro,
publicado originalmente em 1908, Literature and the American College [Literatura e
o ensino superior americano], o humanismo (derivado do latim Humanitas) é uma
disciplina ética, voltada ao desenvolvimento da pessoa verdadeiramente humana,
das qualidades relacionadas à hombridade, através do estudo dos grandes livros11.
A literatura do niilismo, da pornografia e do sensacionalismo, como sugere Albert
Salomon (1891-1966) na obra The Tyranny of Progress [A tirania do progresso], é
um desenvolvimento recente, surgido no século XVIII – embora tenha chegado ao
ápice nos nossos dias – com a desagregação da visão religiosa da vida e do declínio
do que foi chamado de “A Grande Tradição” em Filosofia12.
Esse propósito normativo das Letras é especialmente forte na literatura
inglesa, que nunca sucumbiu ao egocentrismo que veio a dominar as letras francesas
no final do século XVIII. Os nomes de John Milton (1608-1674), John Bunyan
(1628-1688) e Samuel Johnson (1709-1784) – ou, na América, de Ralph Waldo
Emerson (1803-1882), Nathaniel Hawthorne (1804-1864) e Herman Melville
(1819-1891) – deveriam ser suficientes para ilustrar esse ponto. Os grandes
romancistas populares do século XIX – Sir Walter Scott (1771-1832), Charles
Dickens (1812-1870), William Makepeace Thackeray (1811-1863), Anthony
Trollope (1815-1882) – todos eles pressupunham que o escritor possui uma
obrigação moral para com a normalidade – isto é, explicita ou implicitamente, para
com certos padrões permanentes de conduta pública e privada.
Agora, não quero com isto dizer que o grande escritor está sempre a se
expressar através de homilias e sermões. Com Ben Johnson (1572-1637), ele
pode “flagelar as loucuras expostas da época”13, mas não fica constantemente
murmurando, “Seja boazinha, doce donzela, e deixe quem quiser ser esperto”14. Ao
contrário, o homem de letras ensina as normas de nossa existência através da
11
BABBITT, Irving. Literature and the American College: Essays in Defense of the Humanities.
(Introduction by Russell Kirk). Washington, D.C.: The National Humanities Institute, 1986.
12
SALOMON, Albert. The Tyranny of Progress: Reflections on the Origins of Sociology. New York:
Noonday Press, 1955.
13
JOHNSON, Ben. Every Man in His Humour. (Edited by Gabriele Bernhard Jackson). New
Haven: Yale University Press, 1969.
14
“Be good, sweet maid, and let who will be clever” (KINGSLEY, Charles. “A Farewell” In: Poems.
London: Macmillan, 1889. p. 284).
108 COMMUNIO • Russell Kirk
alegoria, da analogia e através do espelho, por ele criado, onde a natureza humana
vê a si mesma. O escritor pode, como William Faulkner, escrever muito mais
sobre o mal do que sobre o que é bom; e ainda assim, ao exibir a depravação da
natureza humana, ele estabelece, na mente do leitor, a consciência de padrões que
perduram, dos quais nós é que nos afastamos; e essa natureza humana decaída é
uma visão da feiúra.
Ou o escritor pode lidar, como o fez John P. Marquand (1893-1960),
mormente com a trivialidade e o vazio de uma sociedade esquecida dos próprios
padrões. Muitas vezes, no apelo de uma consciência à outra, ele poderá remar
com remos silenciosos; por vezes estará apenas liminarmente consciente de sua
função normativa. Quanto melhor o artista, poder-se-ia quase dizer, mais sutil
o pregador. A persuasão imaginativa, e não a exortação direta, é comumente o
método utilizado pelo literato defensor das normas.
Vale a pena notar que o poeta mais influente de nosso tempo, T. S. Eliot,
procurou restaurar à poesia, ao drama e à crítica modernos suas funções normativas
tradicionais. Nisso ele se imaginou o herdeiro de Virgílio e Dante. O poeta não deve
forçar seu ego sobre o público; ao contrário, a missão do poeta é transcender o pessoal e
o particular. Como escreveu Eliot em “Tradition and the Individual Talent” [Tradição
e o talento individual] o primeiro ensaio encontrado em Selected Essays: 1917-1932
[Ensaios selecionados: 1917-1932]:
Não é por suas emoções pessoais, as emoções provocadas por eventos particulares
da própria vida, que o poeta é de alguma forma digno de nota, ou interessante.
Suas emoções particulares podem ser simples, ou rudes, ou sem graça. A emoção
em sua poesia será uma coisa bastante complexa, mas não com a complexidade das
emoções de pessoas que têm na vida emoções muito complexas ou incomuns. Um
erro, de fato, da excentricidade na poesia é buscar novas emoções humanas para
expressar; e, nessa busca por novidade no lugar errado, ela descobre o perverso.
O negócio do poeta não é encontrar novas emoções, mas usar as ordinárias e,
trabalhando-as em poesia, expressar sentimentos que não estão, em absoluto,
presentes nas emoções reais15.
Bem, os mitos gregos e nórdicos, por exemplo, não são por vezes muito
“próprios;” mas do modo como mexem com a imaginação, contribuem mais
para a apreensão precoce das normas sociais do que qualquer número de
histórias, chatas e intermináveis, sobre as aventuras de Dick e Jane. A história
de Pandora, ou a aventura de Thor com a velha e seu gato, despertam em
qualquer criança um insight sobre as condições de existência – entendido
parcialmente, num primeiro momento, talvez, mas, crescente em força e
claridade com o passar dos anos – que ficção nenhuma que utiliza “situações
reais” pode esperar trazer. Por serem eternamente válidos, Hesíodo e os
cantadores de sagas são modernos. E as versões dos clássicos escritas por
Nathaniel Hawthorne ou por Andrew Lang (1844-1912) têm uma prosa
muito melhor do que o inglês “quase-básico” forçado sobre adolescentes e
jovens em vários livros-texto recentes.
Se privamos os jovens de imaginação, aventura e algum tipo de
heroísmo – para falar agora de um estágio mais avançado de aprendizagem
– eles provavelmente não gostarão de “Contos bons e aprovados sobre a vida
real para meninos e meninas reais”; ao contrário, eles poderão recorrer às
migalhas da literatura, para não se entediar completamente. Se eles não forem
apresentados a Robert Louis Stevenson e Joseph Conrad (1857-1924), por
exemplo – e isso, relativamente cedo – acabarão encontrando os pornógrafos
mais novos e acessíveis. E as conseqüências disso serão sentidas, não somente
na falta de bom gosto, mas na apreensão incorreta, e por toda a vida, da
natureza humana; e, por fim, em toda a atmosfera de uma nação. “Nesse novo
esquema de coisas” [...] uma mulher é apenas “um animal, e não um animal de
ordem muito elevada”30. A teoria do ‘macaco nu’ da natureza humana, a noção
“reducionista” do homem, visto como um autômato que respira, é reforçada
pela ignorância da imaginação moral da literatura.
Numa de suas Causeries du Lundi, Charles Augustin Sainte-Beuve
(1804-1869) fala de um dramaturgo que se posta na janela da casa de um
amigo para ver uma frenética multidão parisiense avançando pela rua: “Veja
o meu espetáculo passando!”, murmura esse autor com complacência31. A arte
é a natureza do homem; e é bem verdade, como disse Oscar Wilde (1854-
1900), caprichosamente, que a natureza imita a arte. Nossas ações públicas e
privadas, nos anos da maturidade, são determinadas pelas opiniões e gostos
que adquirimos durante a juventude. Grandes livros realmente influenciam
sociedades numa boa direção; e livros ruins podem realmente rebaixar o nível
geral de conduta pessoal e social. Tendo visto o espetáculo, a multidão passa
a se comportar conforme o dramaturgo acha que ela deveria se comportar.
Suponho que um público que assista com suficiente freqüência as peças de
Tennessee Williams (1911-1983) poderá começar a se portar como o Sr.
30
BURKE. Reflexões sobre a Revolução em França. p. 101.
31
SAINTE-BEUVE, Charles Augustin. Causeries du Lundi. Paris: Garnier, 1899. 15v.
114 COMMUNIO • Russell Kirk
Dessa forma, ouso sugerir aqui, num brevíssimo esboço, como é possível
formar uma consciência normativa através do estudo das belas letras. O que tenho a
dizer deveria ser um lugar-comum; mas essas idéias parecem ter sido esquecidas em
muitos ambientes. Esse empenho normativo deveria ser a obra conjunta da família
e da escola. Da mesma forma que a arte da leitura é geralmente melhor ensinada
pelos pais do que poderia sê-lo em uma classe numerosa na escola, assim também
o conhecimento dos bons livros se origina pelo menos com a mesma freqüência em
casa como na escola. Meu próprio gosto pelos livros surgiu de ambas as fontes: as
estantes de livros de minha mãe e meu avô, e uma ótima e pequena biblioteca de
escola primária. E se uma escola falha em imbuir um gosto pelos bons livros, isso
pode, com freqüência, ser remediado pela atenção interessada da família.
De modo experimental, cheguei a distinguir quatro níveis de literatura através
dos quais uma consciência normativa pode se desenvolver. Os níveis superiores não
suplantam os anteriores, mas sim se unem e suplementam-nos; e o processo de tornar-
se familiarizado com esses quatro níveis ou corpos de conhecimento normativo se
estende da idade de três ou quatro anos até os estudos universitários. Podemos chamar
esses níveis de fantasia; narrativa histórica e biografia; prosa refletiva e ficção poética; e
Filosofia e Teologia.
I - FANTASIA
O fantástico e o mágico, longe de serem prejudiciais às crianças pequenas,
são precisamente o que uma criança saudável precisa; sob seu estímulo, a
imaginação moral de uma criança fica cheia de vitalidade e força. Dos primeiros
contos fantásticos provém um senso de reverência, e o início da Filosofia. Todas
as coisas começam e terminam em mistério. A esse respeito, a consciência
normativa pode ser despertada por temas menos impressionantes do que as lendas
do Ciclo Arturiano35 ou os contos nórdicos36. O segundo livro que li foi The
Story of Little Black Sambo [A estória do negrinho Sambo] de Helen Bannerman
35
O chamado Ciclo Arturiano é a parte mais conhecida da chamada Matter of Britain [Matéria da
Bretanha], um conjunto de lendas celtas, impregnadas de valores e símbolos cristãos, que narram
a história mítica da Grã-Bretanha, particularmente as aventuras do Rei Artur e dos cavaleiros da
Távola Redonta. Em língua portuguesa essas estórias podem ser encontradas nas seguintes edições
brasileiras:
Aventuras da Távola Redonda: Estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros. (Organização e
tradução de Antonio L. Furtado). Petrópolis: Vozes, 2003.
A Demanda do Santo Graal: Manuscrito do século XIII. (Edição sob os cuidados de Heitor
Megale). São Paulo: T.A. Queiroz / Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
TROYES, Chrétien de. Perceval ou O romance do Graal. (Tradução de Rosemary Costhek
Abílio). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
TROYES, Chrétien de. Romances da Távola Redonda. (Tradução de Rosemary Costhek Abílio).
São Paulo: Martins Fontes, 1991.
36
FRANCHINI, A. S. & SEGANFREDO, C. A. As melhores histórias da mitologia nórdica. São
Paulo: Artes e Ofícios, 2004.
116 COMMUNIO • Russell Kirk
(1862-1946)37. Tendo aprendido o livro de cor, posso recitá-lo ainda hoje (Um
sintoma da crescente tolice que caracteriza nosso tempo foi a exigência, alguns
anos atrás, de que The Story of Little Black Sambo fosse banido por “racista”).
Embora eu me arrisque a cair num emocionalismo, não posso deixar de notar
que mesmo um livro como The Story of Little Black Sambo toca na questão
das normas. Qual criança não acaba refletindo sobre a hubris (desmedida) dos
tigres, e a prudência de Sambo?
Se quisermos que as crianças comecem a entender a si mesmas, outras pessoas
e as leis que governam a nossa natureza, deveremos incentivá-las a ler a coleção de
contos de fadas de Andrew Lang38, e, mesmo os mais sinistros contos, dos irmãos
Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859)39, de Hans Christian
Andersen (1805-1875)40, As Mil e uma Noites41, e todo o resto; e, atualmente, os
melhores novelistas para jovens, como R. D. Blackmore (1825-1900)42, e Howard
Pyle (1853-1911)43. Mesmo a Bíblia, no começo, é fantasia para os mais novos. A
alegoria de Jonas e a baleia é aceita, inicialmente, como um conto maravilhoso, e
assim permanece na memória. Somente alguns anos depois a estória é reconhecida
como um símbolo do exílio do povo judeu na Babilônia, e de como a fé pode
preservar homens e nações, através das mais horríveis tribulações.
37
O livro infantil The Story of Little Black Sambo, publicada pela primeira vez em Londres em 1899,
foi criado por Helen Bannerman, uma escocesa que viveu por trinta anos em Madras, no sul da
Índia. Na estória, um menino hindu, chamado Sambo, convence um grupo de tigres famintos a
não o comer, dando a cada um dos tigres suas roupas coloridas, seus sapatos e guarda-chuva. Sambo
recupera seus pertences, quando, os tigres invejosos e arrogantes começam a disputar quem seria o
maioral. Os tigres começaram a brigar e se engalfinharam ao redor de uma palmeira. De tanto girar
em torno da árvore, eles derreteram e se transformaram numa deliciosa manteiga que Sambo levou
para casa, para que sua mãe cozinhasse deliciosas panquecas. Essa foi a estória predileta das crianças
de língua inglesa por mais de meio século, mas se tornou controversa pelo uso da palavra ‘Sambo’,
um insulto racial em alguns países. A obra nunca foi traduzida para o português, podendo ser
encontrada na seguinte edição em inglês: BANNERMAN, Helen. The Story of Little Black Sambo.
New York: HarperCollins, 1923.
38
LANG, Andrew. Andrew Lang’s Complete “Fairy Book” Series. London: Shoes and Ships and
Sealing Wax Ltd., 2006.
39
GRIMM, Jacob & GRIMM, Wilhelm. Contos dos Irmãos Grimm. (Seleção e prefácio explicativo
de Clarissa Pinkola Estes; ilustrações de Arthur Rackham; tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro:
Rocco, 2005.
40
ANDERSEN, Hans Christian. Contos de Andersen. (Tradução do dinamarquês por Guttorm
Hanssen; revisão estilística de Herberto Sales; ilustrações originais de Vilhelm Pedersen e Lorentz
Frolich). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
41
Livro das mil e uma noites. (Tradução do árabe de Mamede Mustafa Jarouche). São Paulo: Globo,
2007. 3v.
42
BLACKMORE, R. D. O encanto de Lorna Doone. (Tradução de Leyguarda Ferreira). Lisboa:
Romano Torres, 1958.
43
PYLE, Howard. Alegres Aventuras de Robim Hood. (Tradução de Stella Leonardos). Rio de Janeiro:
Ediouro, 1980.
A IMAGINAÇÃO MORAL 117
IV - FILOSOFIA E TEOLOGIA
Para a coroação dos estudos literários normativos, voltamo-nos, ao redor da
idade de dezenove ou vinte anos, para a abstração e a generalização, refinadas pela lógica.
Simplesmente não é verdade, como disse William Wordsworth (1770-1850), que:
Um impulso de um bosque vernal
Pode ensinar-lhe mais do homem,
De mal e de bem moral,
Do que todos os sábios podem53.
Mas a verdade poética e moral pouco muda com a passagem dos séculos. Para o
que não se altera na existência humana, as belas letras são um ótimo guia.
O que venho tentando descrever, na precedente, e sumária análise é aquele
corpo literário que auxilia na formação da consciência normativa da geração
vindoura: isto é, na reanimação da imaginação moral. Aqui fui historiador e
clínico; não procurei oferecer-lhes remédios fáceis para a presente condição.
Se o público literário não tiver a imaginação moral, como tenho dito, então
cairá primeiramente na imaginação idílica; e logo, na imaginação diabólica – esta
última tornando-se um estado de narcose, literal e figurativamente. Pois somos
criados como seres morais; e quando negamos nossa própria natureza, nas letras e
na ação, os deuses das cartilhas se voltam contra nós, com fogo e assassínio. Atesto
a visão moral de homens como Aleksandr Solzhenitsyn (1918-2008); alguns têm
esboçado uma reação, na república das letras, contra a imaginação diabólica e o
regime diabólico. Um corpo humano que não reage é um cadáver; e um corpo
literário que não consegue reagir a ilusões narcóticas, seria melhor que fosse
enterrado. As virtudes teológicas poderão ainda encontrar resistentes campeões
nesses últimos anos do século XX: homens e mulheres que se lembram de que, no
princípio, era o Verbo.
I - INTRODUÇÃO
2
A própria definição de fantasia de Wolfe – ou a mais citada, a esse respeito – como “uma narrativa
ficcional que descreve eventos que o leitor acredita ser impossíveis” é, como ele mesmo reconhece,
é cercado de dificuldades como a ênfase na resposta do leitor em detrimento das características
estruturais e temáticas. Ele falha ao definir “impossibilidade”, um termo bastante vago, e não
especifica sua relação com gêneros tais como ficção científica, fábulas, contos de fadas, terror etc.
o que gera incerteza se deve ser tratado numa categoria ampla de narrativa, englobando todos os
subgêneros, ou se os subgêneros são, de fato, distintos.
3
WOLFE, Gary K. Critical Terms for Science Fiction and Fantasy: A Glossary and Guide to Scholarship.
New York / London: Greenwood Press, 1986. p. vii.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 123
6
Nos gêneros de Diana Waggoner relacionados à fantasia e agrupados por ela sob o mesmo título
de “literatura especulativa” estão: a alegoria, a sátira, a utopia, as viagens imaginárias, as estórias de
viajantes, as estórias de fantasmas, os contos de fadas de Perrault, os Kunstmärchen, os contos orientais,
as estórias oníricas, os romances góticos, as estórias de horror ou ficção científica. Ver: WAGGONER,
Diana. The Hills of Faraway: A Guide to Fantasy. New York: Atheneum, 1978. pp. 8-9.
7
WOLFE. Op. cit., p. xviii.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 125
místicas, em que “re-trabalha” ou adapta seu material. Com isso, Wolfe é positivo
ao afirmar que “muito do conhecimento acadêmico do fantástico deriva de um único
ensaio de J. R. R. Tolkien” [...] “que destacou uma série de conceitos que desde então
se tornaram importantes na teoria fantástica”11. Embora o ensaio de Tolkien seja,
de fato, momentoso, penso que não seria inteligente desconsiderar o que C. S.
Lewis escreveu sobre o assunto, já que tanto como teórico quanto como escritor,
ele colaborou para a compreensão moderna da fantasia mitopoética num alcance
tal que Diana Waggoner o reconhece como um dos grandes gigantes do gênero12.
Não obstante os próprios feitos como escritores de fantasia, tanto
Lewis quanto Tolkien ainda estavam buscando em vão pelo rótulo correto
para caracterizar os seus escritos e explicar, nos mínimos detalhes, os traços
essenciais. Podemos julgar a enorme dificuldade desses autores pelo predomínio
das intenções dos criadores sobre os marcos estruturais compostos nas definições
que propuseram. Embora marcos estruturais sejam muito mais fáceis de discutir
na arte literária, que é uma construção propositada de significado sobre um
fundamento estético, a intenção dos criadores era, apesar da baixa estima da
crítica pós-moderna, primariamente, a estrutura13. O termo inadequado de
Tolkien, “Histórias de fadas” nunca vingou, embora ainda viva no título de
seu ensaio seminal de 193914. O nome que Lewis deu ao gênero, que em 1952
chamou de “fantasia ou (numa acepção ampla do termo) conto de fadas”15 era
melhor, mas do ponto de vista contemporâneo ainda é muito geral. A fantasia
se tornou uma categoria de alcances oceânicos. Apesar da aparente diferença
terminológica, as definições de Lewis e Tolkien do gênero são, essencialmente,
as mesmas, no que diz respeito ao número de intenções centrais dos criadores
e da projeção das mesmas linhas “transcendentais”. O ensaio de Tolkien “On
Fairy Stories” [Sobre histórias de fadas] correlaciona, explicitamente, a categoria
específica da fantasia que chama história de fadas com um “efeito mítico ou total
(não analisável)”16 e propõe uma definição de gênero por meio da descrição
ampliada de cinco características.
11
WOLFE. Op. cit. p. xix.
12
WAGGONER. Op.cit. pp. 34-35.
13
No ensaio “Intention” [Intenção], Annabel Patterson reconhece que apesar dos muitos problemas
envolvidos no tão debatido relacionamento entre intenção e interpretação, os textos podem revelar
certas intenções que não estão ligadas às circunstâncias de seu começo / criação, mas “são princípios
capazes de se estender a posteriores desenvolvimentos [...] cuja ocorrência não poderia ter sido prevista
naquela ocasião”. Ver: PATTERSON, Annabel, “Intention”. In: Critical Terms for Literary Study
(Organized by Frank Lentricchia and Thomas McLaughlin). University of Chicago Press, 1995.
14
TOLKIEN, J. R. R. “On fairy stories”. In: Tree and Leaf. (Edited by Christopher Tolkien).
London: Graffon, 1992. [N.do T.: Em português ver: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas.
(Tradução Ronald Kyrmse). São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2006].
15
LEWIS, C. S. “On Three Ways to Write for Children”. In: Of This and Other Worlds. (Edited by
Walter Hooper). London: Collins, 1982. p. 58.
16
TOLKIEN. Op.cit., p. 32 [N. do T.: Em português, p. 38].
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 127
mais centrada na racionalidade, cada vez mais dominada por interesses comerciais,
incapaz de formular, que dirá responder, as perguntas sobre o valor último da vida
humana. Na taxonomia de Frye, a maior parte da literatura inglesa contemporânea é
“irônica no método”35 , e por isso quer dizer que ela atrai o trágico sentido de perda dos
leitores modernos ao encorajá-los a prestar atenção a “cenas de servidão, frustração ou
de absurdos”36. Isso, por sua vez, tem como propósito fazê-los se sentirem superiores
ao protagonista e lhes permite esquecer, por um momento, quão famintas estão
suas almas. Lewis, Tolkien e muitos outros escritores de fantasia, creio, veriam a
avaliação de Frye como correta, ao menos, quanto à literatura moderna, que de fato,
parece-lhes incapaz de suportar as faculdades mais altas do humano.
De modo geral, a proliferação de obras fantásticas desde a década de 1950
até os anos de 1980 coincidiu e fez parte de uma corrente maior de inúmeros
críticos e de tentativas filosóficas cuja finalidade era reavaliar o papel do mito na
cultura moderna. Embora a reflexão sobre o mito encontrada nas obras de Ernst
Cassirer (1874-1945), Lucien Lévi-Bruhl (1857-1939), Émile Durkheim (1858-
1917), Claude Lévi-Strauss, Roland Barthes e outros estivessem carregadas de
premissas ou disciplinas diversas das de Tolkien e Lewis, esses autores influenciaram
o valor crítico tributado ao gênero e suas relações com o mito de muitas formas
óbvias e sutis. Visto que uma análise abrangente do assunto está além do alcance
do presente artigo, devemos destacar dois efeitos colaterais importantes de tais
obras. O primeiro é a legitimação final da escola “transcendental” de crítica do
fantástico mencionada por Wolfe, segundo a qual ele é visto como uma reação ao
empobrecimento espiritual e imaginativo do homem moderno. O segundo efeito é
o endosso ao método literário mais eficaz na criação da estrutura da estória pelo uso
de reconfigurações artísticas dos elementos míticos ou arquetípicos.
Ambas as idéias – o reconhecimento da crise e a esperança de renovação
retirada das estórias míticas – estavam no ar, no início dos anos 1970, que
assistiu uma incipiente atenção à mudança de consciência global. Obras como
The Structure of Scientific Revolutions [A estrutura das revoluções científicas]37
de Thomas Kuhn (1922-1996), The Spectrum of Consciousness [O espectro da
consciência]38 de Ken Wilber e The Tao of Physics [O Tao da física]39 de Fritjof
35
Idem. Ibidem., p. 35.
36
Idem. Ibidem., p. 34.
37
KUHN, Thomas. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of Chicago Press, 1977.
[N. do T.: Em português, ver a seguinte edição: KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas.
(Tradução de Beatriz Viana Boeira e Nelson Boeira). São Paulo: Perspectiva, 9ª Edição, 2009].
38
WILBER, Ken. The Spectrum of Consciousness. Wheaton: Quest Books, 1977. [N. do T.: Em
português, ver a seguinte edição: WILBER, Ken. O espectro da consciência. (Tradução de Octávio
Mendes Cajado). São Paulo: Cultrix, 10ª Edição, 1995].
39
CAPRA, Fritjof. The Tao of Physics: An Exploration of the Parallels Between Modern Physics and
Eastern Mysticism. Boston: Shambhala Publications, 1991. [N. do T.: Em português, ver a seguinte
edição: CAPRA, Fritjof. O Tao da Física: Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental.
(Tradução de José Fernandes Dias). São Paulo: Cultrix, 2ª Edição, 1983].
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 133
40
WALSH, Chad. “Charles William’s Novels and the Contemporary Mutation of Consciousness”. In:
Myth, Allegory and Gospel: An Interpretation of J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis, G.K. Chesterton and Charles
Williams. (Edited by John Warwick Montgomery). Minneapolis: Bethany Fellowship, 1974.
41
As características enumeradas por Chad Walsh se realizam na fantasia mitopoética. O âmbito
deste artigo é bastante limitado, no entanto, para explorar as obras específicas para demonstrar essa
hipótese. Walsh enumera as seguintes qualidades: 1) Uma reviravolta contra o tamanho excessivo da
super-organização, que ele chama de “novo personalismo”; 2) uma rejeição do código de ética e a sua
substituição por uma ética situacional, que estabelece um princípio básico, normalmente, o amor
como medida de julgamento da ação humana; 3) uma oposição à tirania do cérebro e às operações
de lógica formal que chama de “nova sensibilidade”; 4) uma mudança repentina e violenta contra a
tirania do tempo; 5) uma indiferença quase completa às formas organizadas de religião, conjugada
com uma intensa busca religiosa ou proto-religiosa; 6) um interesse intenso e ávido pelos povos e
culturas que, de uma forma ou de outra tenham fugido totalmente ao domínio do modo de vida
ocidental; 7) uma radical reavaliação do trabalho ético com base na convicção de que a vida é ‘ser’
em vez de ‘fazer’, que se manifesta na busca por um trabalho que seja inerentemente significante.
Ver: WALSH. Op. cit. pp. 59-62.
42
CAMPBELL, Joseph. The Inner Reaches of Outer Space: Metaphor as Myth and as Religion. New
York: Harper & Row, 1986. [N. do T.: Em português, ver: CAMPBELL, Joseph. A extensão interior
do espaço exterior: A metáfora como mito e religião. (Tradução de Waltensir Dutra). Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1991].
43
Idem. Ibidem., p. xiv.
44
Idem. Ibidem., p. xix.
134 COMMUNIO • Marek Oziewicz
gêneros ficcionais: interligado a todas as artes pela verdade emocional, é mais livre do
que qualquer outra forma literária para escapar da mera realidade”59. Isso, por sua
vez, faz com que a fantasia seja extremamente dependente do relacionamento
pessoal do autor para com e diante do numinoso. Como Waggoner deixa claro, a
boa fantasia é arte inspirada da mais alta ordem: “o autor fantástico não emprega,
meramente, elementos de mito e de romance; ele é empregado por tais elementos” e
lhes dá novas corporeidades60. “O grande paradoxo e recompensa da fantasia é que”,
continua a autora, “a grande capacidade do artista em perceber a separação entre
os mundos natural e sobrenatural está na habilidade em expressar uma experiência
emocional de harmonia e reunificação”61.
Reunificação com o quê? – alguns poderiam perguntar. Waggoner, assim
como Tolkien e Lewis, sugere, nesse ponto, que é a restauração da divindade
e integridade humanas e o reconhecimento de nosso verdadeiro eu, embora,
explicitamente, fale em trazer os seres humanos, de novo, às maravilhas das coisas
quotidianas e em abrir seus olhos ao milagre da vida. “A fantasia desperta uma
nova visão”, assevera, “não de sonhos estranhos e exóticos, mas da realidade comum.
[...] A fantasia restaura e resgata nosso próprio mundo. [...] Ler fantasia é escapar
do mal não por ignorá-lo, mas por reconhecer o bem; fugir da realidade para vê-la
como realmente é”62. O que podemos deduzir dessa sentença é, claro, a reafirmação
59
Idem. Ibidem., p. 25.
60
Idem. Ibidem., p. 27.
61
Idem. Ibidem., p. 27.
62
Idem. Ibidem., p. 27.
*
N. do T.: O Role Playing Game (RPG, que pode ser traduzido como “jogo de interpretação de
personagens”) é um tipo de jogo em que os jogadores incorporam personagens, segundo um sistema
de regras pré-determinado, como num teatro, colaboram para a criação da narrativa e podem
improvisar livremente. O enredo é previamente definido num roteiro e segue um conjunto de regras
pré-estabelecidas numa espécie de livro-guia. Há sempre um jogador-mestre (narrador) que cria os
cenários e julga as ações dos demais. Ao término de cada “aventura” (partida), cada personagem
recebe pontos de experiência, que a tornam mais fortes, lhes dá vantagens e/ou habilidades. Os
testes de habilidades são feitos por jogadas de dados e a sucessão de aventuras com as mesmas
personagens na continuidade de um evento são chamadas campanhas. As escolhas dos jogadores
determinam a direção do jogo, logo, cada partida é única e é impossível prever os movimentos. Em
registros oficiais, o Role Playing Game ou RPG surgiu no ano de 1974. O primeiro lançamento foi
o jogo Dungeons & Dragons [Masmorras e Dragões] de Gary Gygax (1938-2008) e Dave Arneson.
No início, o jogo era um simples complemento para um outro jogo de peças de miniatura chamado
Chainmail [cota de malha], mas terminou dando origem a algo totalmente diferente e inovador.
No ano de 1983, Dungeons & Dragons virou desenho animado com três temporadas [no Brasil, a
série foi chamada de Caverna do Dragão e transmitido pela Rede Globo de Televisão nos anos 1980-
1990]. Este primeiro jogo era extremamente simples comparado aos jogos de RPG da atualidade
e tinha a origem nos jogos de guerra/estratégia. Foi sucedido por novos gêneros, como os jogos de
super-heróis, os Cyberpunk (que nos anos de 1980 discutiam o impacto da realidade virtual num
futuro próximo) e os de ficção científica. O primeiro RPG brasileiro, Tagmar, surgiu em 1991 e teve
sua ambientação nos livros de J. R. R. Tolkien. Outro gênero criado nos anos 1980 foram os RPGs
educativos, que visavam empregar a mecânica desses jogos nas atividades didáticas, como, por
exemplo, O desafio dos bandeirantes (1992), com ambientação baseada no folclore brasileiro. Outros
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 137
desdobramentos do conceito RPG são os jogos “live action” [ação ao vivo], mais próximos de um
teatro de verdade, os RPGs para computador ou videogames e os via internet (Play by mail, Play
by forum ou Play by web). Para uma visão católica sobre o assunto ver: PERRIER, Philippe. “Note
d’information sur les jeux de role”. In: Revue Catholique Internationale Communio, no. XXXIII, 6,
novembre-décembre 2008. pp. 55-65.
63
TOLKIEN, J. R. R. The Silmarillion. (Edited by Christhopher Tolkien). Boston: Unwin, 1979.
[N. do T.: Em língua portuguesa essa estória se encontra na seguinte edição brasileira: TOLKIEN.
J. R. R. O Silmarillion. (Organizado por Christopher Tolkien; tradução de Waldéa Barcellos). São
Paulo: Martins Fontes, 2007].
64
TOLKIEN. J. R. R. Unfinished Tales of Numenor and Middle-Earth. (Edited by Christopher
Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2001 [N. do T.: Em língua portuguesa
essa estória se encontra na seguinte edição brasileira: TOLKIEN. J. R. R. Contos Inacabados.
(Tradução de Ronald Eduard Kyrmse). São Paulo: Martins Fontes, 2002].
138 COMMUNIO • Marek Oziewicz
Waggoner, “evangélica”65, “as bases filosóficas das mais poderosas fantasias são dadas
por convicções morais e religiosas profundamente sentidas [pelos autores]”66, a fantasia
mitopoética não menciona a religião institucionalizada, que a substitui pela ética
humana pós-secular, para-religiosa e universal.
Por efeito das matérias-primas, a fantasia mitopoética partilha certas
qualidades com os mitos. Suas seqüências, muitas vezes, abrangem estórias
seminais sobre a origem do universo. As obras de fantasia mitopoética contêm
elementos etiológicos que explicam as instituições humanas e práticas de
funcionamento no mundo secundário, bem como elementos dos mitos da
natureza que explicam os fenômenos naturais do mundo secundário. Muitos
desses trabalhos – especialmente os que se baseiam no paradigma da jornada que,
normalmente, envolve o cumprimento de uma profecia – são apotropaicos*, no
sentido de que podem ser vistos como projetados para mostrar a obra do destino
e o triunfo. Ao contrário dos mitos clássicos que apresentam uma visão trágica
da vida onde prevalece o fado e os homens falham, a fantasia mitopoética, no
entanto, comumente relaciona o triunfo do destino com a vitória do bem sobre o
mal. Algumas obras do gênero, donde podemos destacar O Silmarillion como um
dos melhores exemplos, também são teogênicos ao mostrar os relacionamentos
entre vários deuses e personagens numinosas. Uma das conseqüências naturais
da participação da fantasia mitopoética no mito e nas estruturas mitológicas é
que, assim como os mitos não foram criados por autores individuais, os quais,
na maioria das vezes, somente os organizam e escrevem uma versão de um
determinado mito, da mesma forma, os “novos mitos” da fantasia mitopoética
tendem a adquirir vida própria, independente de seus criadores, e incitam outros
a participar da nova realidade mítica. Assim, os jogos de RPG*, de computador
ou videogames, as versões cinematográficas, atiçam a ficção e as imitações, cada
vez mais sérias, dos mundos de fantasia mitopoética e suas personagens podem
ser vistas como extensões do potencial imaginativo das estórias. Desse modo, tais
manifestações acenam para novas linhas na vasta tapeçaria mitológica que o autor,
com sucesso, criou.
Obviamente, as formas de exprimir todas essas coisas e de produzir
fantasia mitopoética são tão diversas e tantas que, por isso, a explicação dada
acima parece inadequada. Exemplos “puros” de um determinado gênero nunca
são encontrados, a menos que possamos adotar um determinado romance como
um exemplo par excellence. Aquilo que para mim pode ser fantasia mitopoética,
para outros pode parecer fantasia heróica ou mesmo ficção científica. Apesar
destas e de outras dificuldades, a tentativa generalizante de descrição do gênero
pode e dever ser feita, mesmo que seja somente para revelar áreas problemáticas
65
WAGGONER. Op. cit. p. 33.
66
SWINFEN. Op. cit. p. 10.
*
N. do T.: Apotropismo (do grego apotrópaios) é todo o conjunto de rituais, símbolos, deuses, mitos
que afastam a desgraça, a doença, ou qualquer outro tipo de malefício.
140 COMMUNIO • Marek Oziewicz
comenta que “a mágica pode ser usada pelos poderes sobrenaturais no mundo
secundário, ou pode ser uma espécie de referência taquigráfica a tal poder; mas é a
presença do poder, e não a mágica, que [conta]”67, essa é uma boa reformulação da
idéia. Assim, onde quer que apareça a mágica na fantasia mitopoética, ela aponta
para além de si, indicando uma realidade maior, mesmo nos casos quando –
como nas obras de Madeleine L’Engle – é apresentada nas vestes notoriamente
científicas de telepatia, telecinese, viagem no tempo etc. Como um atalho para
as obras inexplicáveis da providência ou para os processos relacionados tanto
ao “universo maior” do espaço sideral quanto ao “universo interior” da mente
humana, a mágica na fantasia mitopoética pode ser de grande ajuda para legitimar
a realidade no mundo secundário68.
O enredo da fantasia mitopoética deve ter um final feliz, embora ao longo
da narrativa, mesmo perto da conclusão, tudo pareça indicar um final trágico.
Os reveses, na maioria das vezes, são muito grandes e não há um indício sequer
que prometa que tudo terminará bem. Nessas circunstâncias, ao chegar o final
feliz, ele possui as características de eucatástrofe: tal final é desejado, mas seu
veredicto miraculoso é extremamente improvável e difícil de imaginar, é uma
virada nos eventos que faz ascender um senso de alegria, semelhante à alegria da
revelação religiosa. Tolkien descreve essa alegria eucatastrófica como caracterizada
por uma “estranha qualidade mítica dos contos de fadas, [que é] maior do que o
evento descrito”69.
O ethos aristotélico inclui tanto as personagens quanto os locais. Na fantasia
mitopoética as personagens são, em primeiro lugar, seres humanos, na maioria das
vezes de classes mais baixas ou tipos bastante comuns. Caso sejam apresentados
como excepcionais, isso deverá ser quanto à sensibilidade ou predisposições éticas,
tais como responsabilidade, empatia, relativa generosidade etc, mas nunca serão
como os heróis míticos: perfeitos, impecáveis, irrepreensíveis, “sempre certos”. São
67
WAGGONER. Op. cit. p. 22.
68
Especialmente para aqueles leitores que sentem que a mágica, concebida dessa forma, não é
um fenômeno de outro mundo, mas uma realidade da vida moderna. Somos Neandertais
modernos e vivemos num flagrante mundo mágico, cuja maioria dos processos e tecnologias não
compreendemos. A grande maioria está alienada da tecnologia que nos rodeia, embora ela supere
totalmente nosso conhecimento, e suas obras sejam “pura mágica”, elas são aceitas como uma dura
realidade. Na nossa civilização, o pior ainda é o conhecimento das coisas do espírito, cuja realidade
das ciências materialmente tendenciosas, chamadas por James Hollis de “sistemas imaginais auto-
limitantes” (p. 11), na obra The Archetypal Imagination [A imaginação arquetípica], simplesmente
negam. Para Hollis e para os jungianos a ruptura resultante de nosso vínculo afetivo com o cosmo,
com a natureza, com a comunidade e suas almas é “a condição central de nossa época [...] que se
manifesta como uma ferida espiritual coletiva, talvez tão traumática quanto uma amputação” (p. 14).
Ver: HOLLIS, James. The Archetypal Imagination. Texas A&M University Press, 2000.
69
TOLKIEN. Op.cit., p. 63 [N. do T.: Em português, ver: TOLKIEN. Sobre histórias de fadas. p. 78].
*
N. do T.: Tipo de romance também conhecido como “romance de formação” ou “romance de
educação” em que a narrativa segue o desenvolvimento do protagonista da infância / imaturidade à
fase adulta e/ou à maturidade mental e emocional.
142 COMMUNIO • Marek Oziewicz
um determinado efeito – todas essas idéias possuem uma longa tradição na literatura
mundial e, sem dúvida, contribuíram para dar forma à moderna fantasia.
A última categoria, a opsis – a estrutura, gramática ou lógica interna de uma obra
– de muitas formas se sobrepõe ao mythos, já que o enredo é o elemento mais importante
e a estrutura básica de uma obra literária. No entanto, cada escritor mitopoético
apresenta sua própria abordagem cultural ao que é representativo como padrões míticos,
como a jornada ao mundo subterrâneo, o casamento sagrado; a interação entre destino
e livre-arbítrio; a escatologia do fim do mundo, dentre outros. Cada um desses aspectos
é tingido pelas preferências do autor por determinadas disposições, tensões, suspense,
estilo, atmosferas e daí por diante, que contribuem para a atmosfera exclusiva da obra.
A escatologia do fim do mundo, apesar das similitudes estruturais e gerais, é muito
diferente nas obras de autores como Lewis, L’Engle, Le Guin ou Philip Pullman*. Os
estudos que faço no gênero sugerem que dentre os vários padrões arquetípicos
que os autores acrescentam à lógica interna das obras, há três que são quase
onipresentes: o auto-sacrifício, a justiça compensatória e o tempo mítico. O
modelo do auto-sacrifício é um dos princípios éticos centrais nas obras de
fantasia mitopoética em virtude do qual o mundo é redimido do mal. O auto-
sacrifício também é a medida da importância universal da jornada e enfatiza
a necessidade comportamental da “auto-doação” em assuntos que somente a
plena concentração na tarefa em mãos e uma completa dedicação oferece uma
promessa de sucesso. O modelo de justiça compensatória se relaciona ao final
feliz eucatastrófico de Tolkien, mas se expande emocionalmente a toda a tarefa
e satisfaz a sede de justiça do leitor pela compensação em vez de se dar por
decreto. Os autores de fantasia mitopoética reconhecem que há um conflito
entre nosso senso de justiça costumeiro, que aplicamos e esperamos encontrar
nas relações humanas quotidianas, e o senso de justiça legalista imposto pelo
Estado. Enquanto o primeiro fomenta a responsabilidade pessoal, o respeito
mútuo e o sentido de exclusividade de cada pessoa, o último encoraja a
impessoalidade, evitando a responsabilidade pessoal e frustrando nosso senso
interno de justiça73.
Muitos autores mitopoéticos sugerem que nas sociedades antigas que
possuíam códigos de justiça míticos, as pessoas estavam bem mais próximas da
realização dessa justiça compensatória do que hoje em dia. O modelo do tempo
mítico é uma das formas pela qual a fantasia mitopoética relativiza o tempo –
algumas obras sugerem a irrealidade essencial do tempo – e demonstram que assim
como o espaço, ele pode ser transcendido. A interação característica da existência
temporal dos protagonistas e a atemporalidade de suas “centelhas internas”
73
Ver, por exemplo, o debate de Stephen F. Walker sobre a função compensatória das narrativas
míticas, que “compensam uma cultura de atitudes perigosamente unilaterais” (In: WALKER, Stephen
F. Jung and the Jungians on Myth. New York / London: Routledge, 2002. p. 97). A maioria dos
capítulos de Jung and the Jungians on Myth [Jung e os junguianos sobre o mito] também é relevante
e ajuda a compreender a fantasia mitopoética.
PROLEGÔMENOS À FANTASIA MITOPOÉTICA 147
IV - CONCLUSÃO
Embora esteja convencido de que o gênero fantasia mitopoética é um
fenômeno literário importante que participa da construção campbelliana da “nova
mitologia da raça humana”, também estou ciente de que uma análise de teoria
literária, tal como foi apresentada aqui, é, intrinsecamente, incompleta. Mesmo
que minhas afirmações estejam respaldadas em vastas provas críticas tiradas de
uma série de obras de fantasia mitopoética, minha tese não seria nada mais do que
uma interpretação, por sinal, perigosa, já que estaria preocupada, principalmente,
com o esquivo conceito do significado, extremamente impopular nos dias de
hoje. Não obstante essa quebra do significado na cultura moderna – que segundo
Colin Falck, no livro Myth, Truth, Literature: Towards a True Postmodernism [Mito,
148 COMMUNIO • Marek Oziewicz
A imaginação nas obras The Lord of the Rings [O Senhor dos Anéis] ou
The Chronicles of Narnia [As Crônicas de Nárnia], de que o cinema
regurlarmente oferece “adaptações”, neste início do século XXI1, oferece
*
Artigo publicado originalmente em Revue Catholique Internationale: Communio, Tome XXXIII,
6, novembre-décembre 2008: 19-36. Texto traduzido, do original em francês para o português, por
Maria Francisca Alves de Souza.
1
No caso de O Senhor dos Anéis ver os filmes de Peter Jackson A Sociedade do Anel, As Duas Torres
e O Retorno do Rei lançados, respectivamente, nos Natais de 2001, 2002 e 2003. No caso de As
Crônicas de Narnia ver os filmes de Andrew Adamson O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa e O
Princípe Caspian, lançados, respectivamente, no Natal de 2005 e no inverno de 2008. [N. do E.:
A trilogia de filmes O Senhor dos Anéis está disponível no Brasil em DVDs duplos, com extras, na
seguinte edição:
O SENHOR DOS ANÉIS: A SOCIEDADE DO ANEL. Direção: Peter Jackson. Produção: Peter Jackson.
Roteiro: Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson. Intérpretes: Elijah Wood, Ian
McKellen, Liv Tyler, Viggo Mortensen, Sean Astin, Cate Blanchett, John Rhys-Davies,
Billy Boyd, Dominic Monaghan, Orlando Bloom, Christopher Lee, Hugo Weaving, Sean
Bean, Ian Holm, Andy Serkis e outros. Manaus: Warner Bros Entertainment do Brasil,
2005. DVD (178 minutos).
O SENHOR DOS ANÉIS: AS DUAS TORRES. Direção: Peter Jackson. Produção: Peter Jackson. Roteiro:
Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson. Intérpretes: Elijah Wood, Ian McKellen,
Liv Tyler, Viggo Mortensen, Sean Astin, Cate Blanchett, John Rhys-Davies, Bernard Hill,
Christopher Lee, Billy Boyd, Dominic Monaghan, Orlando Bloom, Hugo Weaving,
Miranda Otto, David Wenham, Brad Dourif, Karl Urban, Andy Serkis e outros. Manaus:
Warner Bros Entertainment do Brasil, 2005. DVD (179 minutos).
O SENHOR DOS ANÉIS: O RETORNO DO REI. Direção: Peter Jackson. Produção: Peter Jackson.
Roteiro: Fran Walsh, Philippa Boyens e Peter Jackson. Intérpretes: Elijah Wood, Ian
McKellen, Liv Tyler, Viggo Mortensen, Sean Astin, Cate Blanchett, John Rhys-Davies,
Bernard Hill, Billy Boyd, Dominic Monaghan, Orlando Bloom, Hugo Weaving, Miranda
Otto, David Wenham, Karl Urban, John Noble, Andy Serkis, Ian Holm, Sean Bean e
outros. Manaus: Warner Bros Entertainment do Brasil, 2005. DVD (201 minutos).
Os filmes da série As Crônicas de Nárnia, lançados até o momento, estão disponíveis nas seguintes
edições de DVD:
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA: O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA. Direção: Andrew Adamson.
Produção: Mark Johnson. Roteiro: Ann Peacock, Andrew Adamson, Christopher Markus
e Stephen McFeely. Intérpretes: Georgie Henley, Skandar Keynes, William Moseley, Anna
Popplewell, Tilda Swinton, James McAvoy, Jim Broadbent, Ray Winstone, Dawn French,
152 COMMUNIO • Michaël Devaux
Rupert Everett, Liam Neeson e outros. Manaus: Buena Vista Home Entertainment, 2006.
DVD (143 minutos).
AS CRÔNICAS DE NÁRNIA: O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA. Direção: Andrew Adamson.
Produção: Mark Johnson. Roteiro: Andrew Adamson, Christopher Markus e Stephen
McFeely. Intérpretes: Ben Barnes, Georgie Henley, Skandar Keynes, William Moseley,
Anna Popplewell, Sergio Castellitto, Eddie Izzard, Peter Dinklage, Liam Neeson e outros.
Manaus: Buena Vista Home Entertainment, 2008. DVD (150 minutos)].
N. do T.: O autor, embora escrevendo em francês, usa os termos “Fantasy”, “high fantasy”, bem
como “heroic fantasy” em inglês. Optou-se pela tradução dos mesmos, vistos terem uso corrente no
Brasil, mantendo, contudo, o grifo do autor.
2
MARTINEAU, Emmanuel. “Le Plan de l’Image”. In: Les Cahiers du Collège Iconique, II, 1994,
p. 31.
3
“Aluno de Husserl bem como de Heidegger, considero o irreal como o terreno natal da fenomenologia”.
MARTINEAU, Emmanuel. “Heidegger et la France”. In: Conférence, no 14, printemps de 2002,
p. 220.
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 153
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS
pela série Conan, criada, em 1932, por Robert Ervin Howard (1906-1936)4 –, mas
o da alta fantasia – inaugurada por O Senhor dos Anéis de Tolkien5, publicado em
três volumes entre 1954 e 1955. E, por outro lado, a desqualificação filosófica que
consiste em descartar a ficção como algo que não dá acesso a nosso mundo, mas a
um outro mundo6, repleto de homens imaginados, bem poderia se acompanhar das
declarações expressas de um Tolkien, justamente, quando ele escreve que:
A recuperação (que inclui um retorno e uma renovação da saúde) é uma re-
tomada – a retomada de uma visão clara. Não digo “ver as coisas como elas são”,
4
Podemos agora ler em francês os textos do próprio Howard, sem intervenção das penas de Lin Carter (1930-
1988) ou de Lyon Sprague de Camp (1907-2000), graças aos esforços de Patrice Louinet, organizadora da
edição em inglês e de sua tradução francesa. Ver:
HOWARD, Robert Ervin. Conan l’Intégrale – Tome 1: Le Cimmérien. (Sous la direction de Patrice
Louinet; Introduction et traduction de Patrice Louinet, Illustrations de Mark Schultz). Paris:
Bragelonne, 2007.
HOWARD, Robert Ervin. Conan l’Intégrale – Tome 2: L’Heure du Dragon. (Sous la direction
de Patrice Louinet; Introduction et traduction de Patrice Louinet, Illustrations de Gary
Gianni). Paris: Bragelonne, 2008.
HOWARD, Robert Ervin. Conan l’Intégrale – Tome 3: Les clous rouges. (Sous la direction
de Patrice Louinet; Introduction et traduction de Patrice Louinet, Illustrations de Greg
Manchess). Paris: Bragelonne, 2008.
[N. do E.: As estórias de Conan estão disponíveis, em língua inglesa, em diferentes edições
inglesas e norte-americanas, dentre as quais destacamos a seguinte: HOWARD, Robert Ervin. The
Complete Chronicles of Conan. London: Gollancz, 2009. Em língua portuguesa, algumas das estórias
de Conan, foram publicadas na seguinte edição: HOWARD, Robert Ervin. Conan, o Cimério.
(Tradução de Claudio Salles Carina). São Paulo: Conrad, 2006. 2v].
5
Exceto em caso de indicação contrária, utilizamos a seguinte tradução francesa: TOLKIEN, J. R.
R. Le Seigneur des anneaux. (Traduit par Francis Ledoux; Illustrations de Allan Lee). Paris: Christian
Bourgois, 2003. Para a versão inglesa da obra ver: TOLKIEN, J. R. R. The Lord of the Rings.
London: Harper Collins Publishers, 1994.
[N. do T.: Os livros da trilogia O Senhor dos Anéis estão disponíveis em língua portuguesa nas
seguintes edições brasileiras:
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: As duas torres. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.]
6
“A liberdade ou a originalidade do imaginário de que estamos à procura na iniciação a Aristóteles
não deve ser confundida com uma ‘separação’, um chôrismos. Trata-se de uma originalidade, ou de
uma especificidade ‘intencional’ e não real: para assegurar a possibilidade de um mundo do imaginário,
em nada é necessário representar o imaginário como um outro mundo. Muito pelo contrário, o ‘outro’
mundo talvez seja este mundo da percepção que espontaneamente tomamos como sendo nosso único
mundo, mas que já constitui uma alteração, em todo caso uma interpretação deste mundo do ser pelo
qual lutam em comum o pensamento grego e a fenomenologia”. MARTINEAU, Emmanuel. “Mimesis
dans la Poétique: Pour une solution phenoménologique (à propos d’un livre récent)”. In: Revue de
Métaphysique et de Morale, 1976, 4, p. 459.
154 COMMUNIO • Michaël Devaux
porque assim me envolveria com os filósofos, porém posso arriscar-me a dizer “ver
as coisas como nós devemos (ou deveríamos) vê-las” – como coisas à parte de nós
mesmos.
[...] As histórias de fadas tratam, em grande parte, ou (as melhores) principalmente,
de coisas simples e fundamentais, intocadas pela Fantasia, mas essas simplicidades
tornam-se mais luminosas pelo seu ambiente. Porque o criador de histórias que se
permite “tomar liberdades” com a Natureza pode ser seu amante, não seu escravo7.
fato, bem mais uma continuação de O Silmarillion. O Senhor dos Anéis detalha o
final da Terceira Era, enquanto O Silmarillion narra a criação do mundo e alguns
acontecimentos da Primeira Era e da Segunda Era.
Tolkien escreveu também outros contos muito mais breves e menos
desenvolvidos no que diz respeito à Terra Média13. Ele tinha, igualmente, o hábito
13
TOLKIEN. J. R. R. Faërie et autres textes. (Nouvelle édition établie par Vicent Ferré). Paris:
Christian Bourgois, 2003. [N. do E.: As denomidas “Histórias da Terra-Média”, escritas
por J. R. R. Tolkien, publicadas após a morte do autor, foram organizadas por seu filho,
Christopher Tolkien, e estão disponíveis, em dez volumes, nas seguintes edições em inglês:
TOLKIEN. J. R. R. The Book of Lost Tales: Part One. (Edited by Christopher Tolkien).
Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1984. (The History of Middle-
Earth, Volume 1).
TOLKIEN. J. R. R. The Book of Lost Tales: Part Two. (Edited by Christopher Tolkien).
Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1984. (The History of Middle-
Earth, Volume 2).
TOLKIEN. J. R. R. The Lays of Beleriand. (Edited by Christopher Tolkien). Boston
/ New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1985. (The History of Middle-Earth,
Volume 3).
TOLKIEN. J. R. R. The Shaping of Middle-Earth: The Quenta, the Ambarkanta and the
Annals. (Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin
Harcourt, 1986. (The History of Middle-Earth, Volume 4).
TOLKIEN. J. R. R. The Lost Road and Other Writings. (Edited by Christopher Tolkien).
Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1987. (The History of Middle-
Earth, Volume 5).
TOLKIEN. J. R. R. The Return of the Shadow: The History of The Lord of the Rings,
Part One. (Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin
Harcourt, 1989. (The History of Middle-Earth, Volume 6).
TOLKIEN. J. R. R. Treason of Isengard: The History of The Lord of the Rings, Part Two.
(Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt,
1989. (The History of Middle-Earth, Volume 7).
TOLKIEN. J. R. R. The War of the Ring: The History of The Lord of the Rings, Part Three.
(Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt,
1990. (The History of Middle-Earth, Volume 8).
TOLKIEN. J. R. R. Sauron Defeated: The History of The Lord of the Rings, Part Four.
(Edited by Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt,
1992. (The History of Middle-Earth, Volume 9).
TOLKIEN. J. R. R. Morgoth’s Ring: The Later Silmarillion, Part One. (Edited by
Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1994. (The
History of Middle-Earth, Volume 10).
TOLKIEN. J. R. R. The War of the Jewels: The Later Silmarillion, Part One. (Edited by
Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1994. (The
History of Middle-Earth, Volume 11).
TOLKIEN. J. R. R. The Peoples of Middle-Earth. (Edited by Christopher Tolkien).
Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 1996. (The History of Middle-
Earth, Volume 12).
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 157
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS
de enviar a seus filhos cartas do Papai Noel14 absolutamente críveis! Tolkien era,
enfim, um professor universitário que desenvolveu sua carreira principalmente em
Oxford, onde ensinou o inglês antigo no Pembroke College, de 1925 a 1945, e no
Merton College, de 1945 a 1959. Especialista notadamente em Beowulf, poema
do inglês antigo, composto, aproximadamente, no século X, publica, em 1936,
um artigo a este respeito que se tornou famoso e é sempre reeditado nas antologias
críticas15. Suas publicações universitárias, raras, permanecem, entretanto,
referências até hoje. Filólogo, ele uniu suas preocupações “profissionais” a seu
hobby, inventando idiomas. Para ele, as histórias eram secundárias em relação
ao idioma: ele inventou as histórias para fazer seus idiomas terem vida. Dois
deles são objeto de estudos: o Quenya e o Sindarin, os idiomas dos elfos. Tolkien
divertia-se inclusive fazendo a tradução, do latim para o Quenya, do Pater Noster
e da Ave Maria16. Acrescentemos, por fim, que era um católico, muito apegado à
liturgia latina e que foi amigo pessoal do padre Louis Bouyer (1913-2004), um
dos fundadores da edição francesa de COMMUNIO*.
Christopher Tolkien, também, editou mais três obras inéditas de seu pai, que, em inglês,
estão disponíveis nas seguintes edições:
TOLKIEN. J. R. R. Unfinished Tales of Numenor and Middle-Earth. (Edited by
Christopher Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. The Children of Hurin. (Edited by Christopher Tolkien). Boston /
New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2007.
TOLKIEN. J. R. R. The Legend of Sigurd and Gudrun. (Edited by Christopher Tolkien).
Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2009.
Dentre todas essas obras, somente os Contos Inacabados foram publicados no Brasil, que
estão disponíveis na seguinte edição: TOLKIEN. J. R. R. Contos Inacabados. (Tradução de
Ronald Eduard Kyrmse). São Paulo: Martins Fontes, 2002].
14
TOLKIEN. J. R. R. The Father Christmas Letters. (Edited by Baillie Tolkien; with Illustrations by
J. R. R. Tolkien). Boston / New York: Houghton Mifflin Harcourt, Revised Edition, 1999.
15
Ver a, já citada, coletânea: Les monstres et les critiques et autres essais. [N. do E.: O texto foi
publicado originalmete em inglês na seguinte edição: TOLKIEN. J. R. R. “Beowulf: The Monsters
and the Critics”. In: Proceedings of the British Academy, 22 (1936): 245-295. O texto, também, se
encontra em língua inglesa na seguinte coletânea: TOLKIEN, J. R. R. The Monsters and the Critics.
London: George Allen & Unwin, 1983].
16
Publicados em Vinyar Tengwar, janeiro de 2002, no 43, disponível na Internet no endereço:
http://www.elvish.org/VT/VT43sample.pdf
O leitor que tiver curiosidade de escutar como são lidos estes textos, poderá fazê-lo nos seguintes
endereços:
http://www.jrrvf.com/~glaemscrafu/audio/ataremma.mp3
http://www.jrrvf.com/~glaemscrafu/audio/aiamaria.mp3
Acessados em 26 de agosto de 2008.
*
N. do E.: Devemos, também, destacar que J. R. R. Tolkien foi um dos colaboradores da edição em
língua inglesa da Bíblia de Jerusalém, tendo trabalhado nos livros de Jó e de Jonas.
158 COMMUNIO • Michaël Devaux
Clives Staples Lewis, por sua vez, nasceu perto de Belfast na Irlanda,
em 29 de novembro de 1893, e faleceu em 22 de novembro de 1963, em
Oxford17. “Jack”, como era conhecido pelos parentes e amigos, era o irmão
mais novo da família: seu irmão Warren Hamilton Lewis (1895-1973),
conhecido como “Warnie”, se tornou um major do exército britânico,
e permaneceu, depois de aposentar-se, ao lado de Jack, tornando-se seu
secretário e editor post-mortem. Warnie também fazia parte dos Inklings e
publicou diversos livros sobre a História da França, sendo o século XVII seu
tema de predileção.
Em 1908, os dois irmãos tinham perdido a mãe, Florence Augusta
Hamilton (1862-1908), o que havia trazido o luto para a infância. Pouco
afeito para a vida escolar, Lewis conclui seus estudos secundários, de 1914
a 1917, com um tutor privado, William T. Kirkpatrick (1848-1921). Já
interessado nas mitologias célticas e nórdicas, quando de seu ano no Malvern
College, entre 1913 e 1914, se apaixonaria logo a seguir pela literatura
clássica. Serviu na Primeira Guerra Mundial e foi ferido na batalha de Arras.
Em 1919, começou os estudos, particularmente brilhantes, na Oxford
University. Vem em seguida o período em que será professor assistente,
entre 1925 e 1964, no Magdalen College, na Oxford University. É então,
em 1926, que ele conhece Tolkien, cujo papel será muito importante na
conversão ao cristianismo anglicano18, em 29 de setembro de 1931, após ter
17
Data de triste memória, já que trata-se do dia do atentado contra John F. Kennedy (1917-1963)
e da morte de Aldous Huxley (1894-1963)! [N. do E.: Acreditamos que o autor fez essa nota por
causa do livro Between Heaven and Hell {Entre o Céu e o Inferno} do filósofo e apologista católico
Peter Kreeft, em que o autor, aproveitando a coincidência da morte das três personagens históricas,
faz o relato de uma diálogo fictício entre os três sobre a morte e a religião. Nesse diálogo Huxley
propõe uma forma de panteísmo cristão orientalizado, Kennedy advoga o moderno humanismo
cristão e Lewis defende a tradicional visão conservadora do cristianismo. A obra foi publicada,
originalmente, na seguinte edição em inglês: KREEFT, Peter. Between Heaven and Hell: A Dialog
Somewhere Beyond Death with John F. Kennedy, C. S. Lewis, & Aldous Huxley. Downers Grove:
InterVarsity Press, 1982. Em língua portuguesa o livro está disponível na seguinte edição brasileira:
KREEFT, Peter. O Diálogo: Um debate além da morte entre John F. Kennedy, C. S. Lewis e Aldous
Huxley. (Tradução de Wanda de Assumpção). São Paulo: Mundo Cristão, 1986].
18
Ele havia perdido a fé com a idade de treze anos. No livro Surprised by Joy [Surpreendido pela
Alegria], sua autobiografia espiritual publicada em 1955, ele apresenta Tolkien da seguinte forma:
“Minha amizade com ele marcou a derrocada de dois de meus antigos preconceitos. Em minha entrada
no mundo, aconselharam-me fortemente (e implicitamente) a nunca confiar num papista e, em minha
entrada na faculdade de letras (explicitamente), a nunca acreditar num filólogo. Tolkien era uma coisa
e outra” (LEWIS, C. S. Surpris par la joie: Le profil de mes jeunes années. {Traduit de l’anglais par
Denis Ducatel}. Le Mont-Pèlerin: Raphaël, 1998. Capítulo XIV, p. 278). [N. do E: A obra em
inglês foi publicada na seguinte edição: LEWIS, C. S. Surprised by Joy: The Shape of My Early
Life. Harvest Books: Forth Washington, 1955. Em língua portuguesa a obra está, até o presente
momento, esgotada, mas foi publicada na seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. Surpreendido
pela Alegria. (Tradução de Eduardo Pereira e Ferreira). São Paulo: Editora Mundo Cristão, 1998.
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 159
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS
se tornado ateu, em 192919, ano da morte de seu pai, Albert James Lewis
(1863-1929). Durante a Segunda Gerra Mundial, de 1941 a 1944, Lewis
faz uma série de programas na rádio BBC que tiveram grande audiência20.
A partir de 1954, será professor no Magdalene College na Cambridge
University, onde a cadeira de literatura medieval e renascentista fora criada
para ele. Casa-se em 1956 com a poetisa e escritora Joy Gresham (1915-
1960)21.
Lewis publicou cerca de quarenta livros. Sua obra apresenta três facetas. Ela
é, primeiramente, a de um universitário: Lewis leu muito, chegando a publicar sua
concepção de leitura e crítica na obra An Experiment in Criticism [Um experimento
em crítica literária]22 de 1961; também publicou livros importantes, constituindo-
se em autoridade em sua área de especialização, tal como English Literature in
the Sixteenth Century [Literatura inglesa no século XVI]23 de 1954. Mas Lewis é
também, e sobretudo, conhecido por sua obra apologética The Problem of Pain
[O problema do sofrimento]24 de 1940, Miracles: A Preliminary Study [Milagres:
Um estudo preliminar]25 de 1947, Reflections on the Psalms [Reflexões sobre os
19
Acerca desta evolução, ver sua, já citada, autobiografia parcial Surpreendido pela Alegria. [N. do E.:
Outro fator decisivo na conversão de C. S. Lewis ao cristianismo foi a leitura do livro The Everlasting
Man {O homem eterno} de G. K. Chesterton (1874-1936), publicado originalmente em 1925 e
disponível, atualmente, na seguinte edição em inglês: CHESTERTON, G. K. The Everlasting Man.
In: Collected Works – Volume II: St. Francis of Assisi, the Everlasting Man, St. Thomas Aquinas. San
Francisco: Ignatius Press, 1986].
20
Reunidos, 1952, sob a forma do livro Mere Christianity. Em francês ver: LEWIS, C. S. Voilà
pourquoi je suis chrétien. (Traduit de l’anglais par Aimé Viala). Guebwiller: Ligue pour la lecture de la
Bible, 1979. A obra em francês foi reeditada como: LEWIS, C. S. Les Fondements du christianisme.
(Traduit de l’anglais par Aimé Viala). Guebwiller: Ligue pour la lecture de la Bible, 1985. [N. do T.:
A obra foi publicada em português na seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e
Simples. (Tradução de Álvaro Oppermann e Marcelo Brandão Cipolla). São Paulo: Editora Martins
Fontes, 2008].
21
O casamento e luto de C. S. Lewis foram objeto, em 1993, do filme Shadowlands [Terra das
sombras], dirigido por Richard Attenborough, com Anthony Hopkins no papel de Lewis e Debra
Winger como Joy. Entretanto, vale mais ler o livro que o próprio Lewis consagrou-lhes: LEWIS,
C. S. Apprendre la mort. (Traduit de l’anglais par J. Prignaud et T. Radcliffe). Paris: Cerf, 1974. [N.
do T.: Em língua portuguesa ver a seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. A anatomia de uma dor:
Um luto em observação. São Paulo: Editora Vida, 2006].
22
LEWIS, C. S. Une expérience de critique littéraire. (Traduit de l’anglais par Jean Autret). Paris:
Gallimard, 1965.
23
LEWIS, C. S. English Literature in the Sixteenth Century: Excluding Drama. Oxford: Clarendon
Press, 1954.
24
LEWIS, C. S. Le Problème de la souffrance. (Traduit de l’anglais par Marguerite Faguer; préface de
Maurice Nédoncelle). Le Mont-Pèlerin: Raphaël, 2001. [N. do T.: Em português ver: LEWIS, C.
S. O problema do sofrimento. São Paulo: Editora Vida, 2006].
25
LEWIS, C. S. Les miracles: Étude préliminaire. (Traduit de l’anglais par Jacques Blondel). Paris: S.
P. B., 1985. [N. do T.: Em português ver: LEWIS, C. S. Milagres. São Paulo: Editora Vida, 2006]
160 COMMUNIO • Michaël Devaux
salmos]26 de 1958, The Four Loves [Os quatro amores] de 196027, e as Letters to
Malcom: Chiefly on prayer [Cartas a Malcolm: Principalmente sobre a oração]28
de 1963. Fazendo a ponte entre a apologética e as obras de ficção, encontra-se a
muito célebre The Screwtape Letters [Cartas de um diabo a seu aprendiz] de 194229,
onde vemos um jovem demônio tentar desviar do caminho certo seu “protegido”
e que, para tanto, pede conselhos a seu tio, mais elevado na hierarquia infernal
[...] em vão! As obras ficcionais consistem principalmente em duas séries: a The
Space Trilogy [Trilogia Espacial]30, de que voltaremos a falar, e as celebríssimas The
Chronicles of Narnia [As Crônicas de Nárnia]31, sete livros publicados entre 1950
26
LEWIS, C. S. Réflexions sur les Psaumes. (Traduit de l’anglais par Denis Ducatel). Le Mont-
Pèlerin: Raphaël, 1999.
27
LEWIS, C. S. Les Quatre amours. (Traduit de l’anglais par Denis Ducatel et Jean-Léon Müller).
Le Mont-Pèlerin: Raphaël, 2005. [N. do T.: Em português ver: LEWIS, C. S. Os quatro amores.
(Tradução de Paulo Salles). São Paulo: Martins Fontes, 2005].
28
LEWIS, C. S. Lettres à Malcom: Principalement sur la prière. (Traduit de l’anglais par Denis
Ducatel). Le Mont-Pèlerin: Raphaël, 2000.
29
LEWIS, C. S. Tactique du diable: Lettres d’un vétéran de la tentation à un novice. (Traduit de
l’anglais par Étienne Huser). Bâle: EBV, 7e édition, 2007. [N. do T.: Em português ver: LEWIS,
C. S. Cartas de um Diabo a seu Aprendiz. (Tradução de Juliana Lemos). São Paulo: Martins Fontes,
2005].
30
LEWIS, C. S. La Trilogie Cosmique: Au-delà de la planète silencieuse, Perelandra, Cette hideuse
puissance. (Traduction de Maurice Le Péchoux). Lausanne: Éditions L’Âge d’Homme, 1997.
31
Em fancês a obra foi publicada em diferentes edições, sendo as mais recentes as seguintes:
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 1: Le neveu du magicien. (Illustrations de
Pauline Baynes; traduction de Cécile Dutheil de la Rochère). Paris: Gallimard-
Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 2: Le lion, la sorcière blanche et l’armoire
magique. (Illustrations de Pauline Baynes; traduction de Anne-Marie Dalmais). Paris:
Gallimard-Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 3: Le cheval et son écuyer. (Illustrations de
Pauline Baynes; traduction de Philippe Morgaut). Paris: Gallimard-Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 4: Le prince Caspian. (Illustrations de Pauline
Baynes; traduction de Anne-Marie Dalmais). Paris: Gallimard-Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 5: L’odyssée du passeur d’aurore. (Illustrations
de Pauline Baynes; traduction de Philippe Morgaut). Paris: Gallimard-Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 6: Le fauteuil d’argent. (Illustrations de Pauline
Baynes; traduction de Philippe Morgaut). Paris: Gallimard-Jeunesse, 2008.
LEWIS, C. S. Le monde de Narnia – Volume 7: La dernière bataille. (Illustrations de Pauline
Baynes; traduction de Philippe Morgaut). Paris: Gallimard-Jeunesse, 2008.
[N. do E.: Em língua portuguesa a obra está disponível em três edições diferentes, todas publicadas
pela Martins Fontes. Uma edição de luxo reúne os sete livros num único volume, em papel couchê,
com capa dura e com ilustrações coloridas de Pauline Baynes (1922-2008). Outra edição num
único volume, em brochura, reúne, também, as sete estórias e apresenta as ilustrações de Pauline
Baynes em preto e branco. Por fim, destacamos a edição da obra em sete volumes:
LEWIS, C. S. Crônicas de Nárnia – Volume I: O Sobrinho do Mago. (Ilustração de Pauline
Baynes; tradução de Paulo Mendes Campos). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 161
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS
I.3 - OS INKLINGS
*
N. do E.: Além dos já citados J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis e W. H. Lewis, o grupo dos Inklings era
formado por Charles Williams (1886-1945), Sir Percy Bates (1879-1946), Adam Fox (1883-1977),
Charles Leslie Wrenn (1895-1969), Hugo Dyson (1896-1975), James Dundas-Grant (1896-
1985), Owen Barfield (1898-1997), R. B. McCallum (1898-1973), Nevill Coghill (1899-1980),
Robert Havard (1901-1985), Lord David Cecil (1902-1986), Gervase Mathew (1905-1976), C. E.
Stevens (1905-1976), Colin Hardie (1906-1998), J. A. W. Bennett (1911-1981), Roger Lancelyn
Green (1918-1987), John Wain (1925-1994) e Christopher Tolkien. Para maiores informações
sobre o grupo dos Inklings, além da supracitada obra The Inklings: C. S. Lewis, J. R. R. Tolkien,
Charles Williams and their friends de Humphrey Carpenter (1946-2005), ver: DURIEZ, Colin &
PORTER, David. The Inklings Handbook: The Lives, Thought and Writings of C. S. Lewis, J. R. R.
Tolkien, Charles Williams, Owen Barfield, and Their Friends. Atlanta: Chalice Press, 2001.
**
N. do E.: A estória The Notion Club Papers, escrita por Tolkien em 1945, foi publicada pela
primeira vez em 1992 no livro Sauron Defeated, nono volume da The History of Middle-Earth,
editada por Christopher Tolkien.
38
LEWIS, C. S. Le Grand divorce: Entre le ciel et la terre. Le Mont-Pèlerin: Raphaël, 1998. [N.
do T.: Em português ver: LEWIS, C. S. O grande abismo. (Tradução de Ana Schäffer). São Paulo:
Editora Vida, 2006].
38
George MacDonald publicou três séries de Unspoken Sermons [Sermões não proferidos], em
1867, 1885 e 1889. Lewis baseou-se em grande parte nessas séries para sua edição, de 1946, da
obra: George MacDonald: An Anthology – 365 Readings. [Edited by C. S. Lewis]. London: Harper
One, 2001.
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 163
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS
volta sobretudo a seus contos, quer se trate dos clássicos da literatura infantil39, ou
dos contos para adultos tais como Phantastes40 de 1858 e Lilith41 de 1895. Nestes,
trata-se de “viagens” em que a questão é atingir finalmente um estado espiritual
superior. Mencionaremos igualmente dois textos teóricos: “The Imagination: Its
Functions and its Culture” [A imaginação: Suas funções e cultura] de 1882 e “The
Fantastic Imagination” [A imaginação fantástica] de 189342. Neles, MacDonald
desenvolve a idéia segundo a qual o uso da imaginação é indispensável à nossa
humanidade: a imaginação humana é, na finitude, o equivalente ao poder criador
infinito de Deus. Em sendo a imaginação a faculdade de todas as percepções,
pode-se (especialmente o artista) perceber, assim, as verdades que Deus colocou
no seio do mundo.
A dívida confessa de Lewis para com MacDonald não é pequena: a
leitura de Phantaste, diz ele, “batizou” sua imaginação43 e, segundo o próprio
testemunho, nunca escreveu um único livro sem citar o escocês44. Chegou até ao
ponto de imaginar reencontrá-lo no purgatório em O grande abismo45. Citemos
ainda a influência da edição de 1884, prefaciada por MacDonald, das Letters from
Hell [Cartas do Inferno], de Valdemar Adolph Thisted (1815-1887), que deu a
Lewis a idéia de seu famoso Cartas de um diabo a seu aprendiz.
39
George MacDonald publicou The Princess and the Goblins [A princesa e o Goblin] em 1872,
The Princess and Curdie [A princesa e Curdie] em 1883, e algumas outras estórias infantis,
das quais várias foram traduzidos para o francês por Pierre Leyris (1907-2001) e publicadas
na seguinte edição: MacDONALD, George. Contes du jour et de la nuit. (Illustrations de
Georges Lemoine; traduction de Pierre Leyris). Paris: Bordas, 1980. As duas principais obras
infantis de George MacDonald, nunca publicadas em francês, estão disponiveis nas seguintes
edições em inglês:
MacDONALD, George. The Princess and the Goblin. (Illustrated by Arthur Hughes).
London: Puffin, 1996.
MacDONALD, George. The Princess and Curdie. (Illustrated by Helen Stratton).
London: Puffin, 1996.
[N. do T.: Em língua portuguesa apenas a seguinte obra desse autor: MacDONALD, George.
A princesa e o Goblin. (Tradução de Keila Litvak). São Paulo: Landy, 2003].
40
MacDONALD, George. Phantastes: A Faerie Romance for Men and Women. (With an Introduction
by C. S. Lewis). Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1981.
41
MacDONALD, George. Lilith. (Traduction et introduction de Françoise Dupeyron-Lafay).
Paris: Michel Houdiard Editeur, 2007. Para as variantes manuscritas ver: MacDONALD, George.
Lilith: A Variorum Edition. (Edited by Rolland Hein; Foreword by Elizabeth McDonald Weinrich).
Whitethorn: Johannesen, 1997. 2v.
42
Reeditados em: MacDONALD, George. In: A Dish of Orts. Charleston: BiblioBazaar, 2006. pp.
11-43; pp. 258-264. Estes textos estão disponíveis em: http://www.george-macdonald.com/etexts.
htm (acessado em 26 de agosto de 2008).
43
LEWIS, C. S. Surpris par la Joie. Capítulo XI, p. 232; LEWIS, C. S. “Preface”. In: George
MacDonald: An Anthology – 365 Readings. p. xxxxviii.
44
“Com efeito, creio que nunca escrevi um livro em que não o cite” (LEWIS, C. S. “Preface”. p. xxxxvii).
45
LEWIS, C. S. Le Grand divorce. Capítulo IX.
164 COMMUNIO • Michaël Devaux
A dívida contraída por Tolkien é, sem dúvida, menos vasta46. Este partilha
com aquele a morte, como tema de predileção47. Tolkien também quis “prefaciar”
uma reedição da obra The Golden Key [A chave dourada] de MacDonald, mas, por
querer, também, explicar o que é um conto de fada, após quatro páginas, começou
a escrever mais um, que se tornou Smith of Wootton Major [Smith de Wootton
Major]48! Contudo, a dívida mais evidente é teórica: a idéia de “subcriação” ou de
mundo secundário lhe vem de MacDonald, mesmo se a palavra não se encontra
neste útimo. Vejamos portanto qual é sua concepção dos contos de fadas.
II.1 - A SUBCRIAÇÃO
menos uma vez em: France Catholique, no 2081 (21 novembre 1986). Quanto à sua relação com os
Inklings, ver: MORROW, Jeffrey. “J. R. R. Tolkien and C. S. Lewis in the Light of Hans Urs von
Balthasar”. In: Renascence, 56, 2004, 3, pp. 181-196. Disponível na internet no seguinte endereço:
http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3777/is_200404/ai_n9392570 (acesso em 27 de agosto de
2008).
55
TOLKIEN, J. R. R. On Fairy-Stories. §105, p. 78 (TOLKIEN, J. R. R. “Du conte de fées”. p.
140) [N. do T.: Em português ver: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. p. 81]. Nessa mesma
linha C. S. Lewis afirma que: “a distinção entre história e mitologia bem poderia não ter nenhum
sentido fora da Terra” (LEWIS, C. S. Au-delà de la planète silencieuse. In: La Trilogie Cosmique.
Capítulo XXI, p. 115).
56
LEWIS, C. S. “Un mythe qui s’est fait réalité”. (Traduction de Irène Fernandez). In: Conférence,
no 7, automne 1998, pp. 439-445. Ver, também: SCHÖNBORN, Cardinal Christoph von. Noël:
Quand le mythe devient réalité. Paris: Desclée, 1995. (Citado em: BENOÎT XVI. Jésus de Nazareth –
Tome I: Du baptême dans le Jourdain à la transfiguration. Paris: Flammarion, 2007. p. 299) [p. 309].
57
TOLKIEN, J. R. R. On Fairy-Stories, §105, p. 78 [N. do T.: Em português ver: TOLKIEN, J. R.
R. Sobre histórias de fadas. p. 81]. Tomaremos o hífem em consideração, marcador tipográfico da
derivação da subcriação.
58
Idem. Ibidem. [N. do T.: Em português ver: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. p. 80].
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 167
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS
realidade, pode permitir recuperar uma visão clara59. Podemos ver, pelo prisma do
conto, as coisas como elas teriam sido e os sacramentos, a começar pela eucaristia,
nos fazem tocar com o dedo esta outra dimensão da realidade.
Devemos dizer, por conseqüência, que este recurso ao conto para ver a
realidade deve ou até mesmo pode (permitir-se) ser irracional? Se a essência do
conto reside na encarnação do Lógos, isso parece bem improvável. Trataria-se,
portanto, de revermos nossas concepções sobre a irracionalidade dos contos.
Assim, para prosseguirmos com Lewis60, desta feita, o conto de fadas não é um
abandono da razão, uma fuga rumo a um esoterismo ou uma gnose. Precisemos,
inicialmente, que Lewis é um racionalista, que foi professor de Filosofia e que
sabe o que é um conceito e não o confunde com uma imagem; ou, pelo menos,
não podemos confundir seu uso poético e seu uso corrente: “O poeta usa imagens
por si mesmas” [...] “o homem comum (quer dizer, nós na maior parte do tempo) as
usamos como instrumento de conhecimento na falta de algo melhor”61. Qual é então
o lugar da razão e o da imaginação? Sem a razão, o pensamento desmoronaria.
As construções da imaginação ou são um jogo de ilusões, ou a abertura para
uma verdade. O aspecto sério do mito ou do conto de fadas, para Lewis, reside
nesta abertura. O conceito é, por definição, abstrato. Nisso, ele está sempre em
segundo plano em relação à realidade visada. Dando seguimento a Henri Bergson
(1859-1941), Lewis fala do conceito como uma moeda, que marca o limite.
Como suportar a separação entre o conceito e a experiência? Lewis pensa que a
imaginação pode realizar este prodígio. O mito é uma experiência do universal,
sua poesia dá vida às abstrações. Ele se interessado pela realidade, não pela
verdade. Por certo que o mito não tem um realismo de conteúdo, mas ele fala
da realidade. A mitologia não imagina que sabe, mas sabe que imagina: trata-se
de uma imaginação que leva à pensar. A imagem permite, quanto a isso, ir mais
longe que o conceito. O mito atinge a qualidade das coisas, o que o adjetivo diz
melhor do que tudo62. O melhor exemplo é talvez o do perigo, de que fala Lewis
em seu ensaio “On Stories” [Sobre estórias]63: num romance de aventuras, todo
59
Ver a citação de J. R. R. Tolkien na nota 7 do presente artigo e a cena narrada por George
MacDonald em que, ao ver seu quarto num espelho mágico, Cosmo diz que “Toda sua familiaridade
desapareceu. O espelho o tirou do mundo dos fatos para o mundo da arte” [...] “A arte salva a natureza do
olhar cansado e farto de nossos sentidos, e da injustiça degradante de nossa vida cotidiana e angustiada,
e ao apelar à imaginação que nela reside, revela a Natureza, até um certo ponto, como ela é realmente, e
como ela se apresenta aos olhos de uma criança” (MacDONALD, George. Phantastes. p. 90).
60
Nos esforçamos em resumir aqui as análises de Irène Fernandez na, já citada, obra Mythe, raison
ardente e, também, no seguinte trabalho: FERNANDEZ, Irène. “Imagination et raison, même
combat”. In: Au commencement était la Raison. Paris: Philippe Rey, 2008.
61
The Collected Letters of C. S. Lewis: Volume II. p. 193.
62
LEWIS, C. S. Cette hideuse puissance. In: La Trilogie Cosmique. Capítulo XIV, p. 548; TOLKIEN,
J. R. R. On Fairy-Stories, §27, p. 41 (TOLKIEN, J. R. R. “Du conte de fées”. p. 77) [N. do T.: Em
português ver: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. pp. 25-26].
63
LEWIS, C. S. “On Stories”. In: Essays Presented to Charles Williams.
168 COMMUNIO • Michaël Devaux
fizeram o mal. Elas pertencem à categoria dos hnau, das criaturas racionais71. O
hnau é um ser bom, criado à imagem de Maleldil.
Nos damos conta, ao descobrir as realidades que estão por detrás destes
nomes exóticos, e o autor se aprofunda em doutrinas bem conhecidas! Trata-
se de Maleldil o Jovem, e o Velho, por detrás dos traços dos quais não é difícil
reconhecer Deus Pai, e Filho. Da mesma forma, ouvimos falar de um Oyarsa
do planeta. Lewis revela inclusive que esse termo advem de Bernardo Silvestre
de Chartres (1085-1178), um platônico do século XII, que empregava, em sua
Cosmographia, Oyarses, na verdade ousiarchès (o arconte), como “a ‘inteligência’ ou
espírito tutelar de uma esfera celeste”72. Lewis mobiliza aqui noções de astronomia
medieval. O Oyarsa é uma espécie de arcanjo, que venera Maleldil. São-lhe
inferiores os eldila, os anjos. No fundo, Lewis, com essa história, transmite
Teologia “fraudulentamente”73. Estamos num planeta onde o anjo que o rege
não se perdeu: Satanás, o príncipe deste mundo, que é o nosso, por sua vez,
desvirtuou-se e é por isso que nosso planeta é silencioso74. Os outros Oyéresu não
tem mais relação com ele e ninguém tem conhecimento do que se passa na Terra.
Assim, é Ramsom quem diz ao Oyarsa de Malacandra que Jesus Cristo, Maleldil
o Jovem, encarnou, embora aqui tampouco nada seja contado diretamente no
romance. Uma primeira vez, Ramsom é interrompido75 e, em seguida, sabemos
apenas que contou toda a estória76.
O cristianismo é mais explícito em Perelandra77. Estamos, desta vez, em
Vênus, que é outro mundo não-caído. Ramsom chega antes que Tinidril (Eva)
tenha decaído. Ele a ajuda, aliás, para que não sucumba. Para tanto, o herói tem
de lutar contra Weston, que se tornou seguidor de Satanás, e matá-lo fisicamente.
A autonomia dessa história frente ao mundo primário não é, aqui, tão nítida
quanto o é em Tolkien. Lewis faz o mundo real e a ficção se interpenetrarem.
Assim, certas personagens são intencionalmente inspiradas em pessoas reais. O
autor tem por bem, igualmente, convocar autoridades bastante críveis, tais como
Natvilcius, que teria publicado um De Aethero et aerio corpore, na cidade de Bâle,
em 1627, acerca da forma com que os eldila aparecem a nossos sentidos78. Se
71
O termo pode ter sido influenciado, diz Lewis, pelo grego nous (The Collected Letters of C. S.
Lewis: Volume III. p. 1005).
72
LEWIS, C. S. Au-delà de la planète silencieuse. In: La Trilogie Cosmique. Capítulo XXII, p. 121.
73
The Collected Letters of C. S. Lewis: Volume I. p. 262.
74
LEWIS, C. S. Au-delà de la planète silencieuse. In: La Trilogie Cosmique. Capítulo XVIII, p. 97.
75
Idem. Ibidem. Capítulo XVIII, p. 100.
76
Idem. Ibidem. Capítulo XXI, p. 113.
77
Acerca desta obra, ver as análises no seguinte artigo: LACOSTE, Jean-Yves. “Anges et hobbits:
Le sens des mondes possibles”. In: Freiburger Zeitschrift für Philosophie, 36, 1989, 3, pp. 341-373
(notadamente a página 363 e as seguintes).
78
“Na realidade, Natvilcius é a forma latina do anglosaxão Nat Whilk, ‘eu não sei quem’” (LEWIS, C.
S. Perelandra. In: La Trilogie Cosmique. p. 139, n. 1).
ITINERARIUM IMAGINATIONIS AD DEUM: 171
VIAGEM A NÚMENOR NA COMPANHIA DOS INKLINGS
IV - CONCLUSÃO
Parece-nos que se vê bem, por esses exemplos, que a abertura que permite
a alta fantasia nada tem em comum com o empobrecimento do imaginário da
fantasia heróica. Sua relação com a Teologia e com a razão é, sem dúvida, bem
diferente. A imaginação, no caso da alta fantasia, pode ser um meio de ir até onde a
razão não pode nos levar. Se uma imagem pode conduzir-nos em direção à realidade,
tal como a fé ou os sacramentos podem nos dar acesso a ela, por que a Teologia
deveria privar-se, denegrir ou ter medo das narrativas imaginárias? A Faërie pode ser
um meio de aproximarmo-nos de Deus ao subcriar, continuando o que ele criou.
Ela pode assim ajudar-nos a perceber, indiretamente, alguma coisa da natureza do
Evangelho, conto de fadas eucatastrófico, o verdadeiro final feliz...
A força destas narrativas reside em sua ambigüidade. Se a alegoria é, por
vezes, mais nítida em Lewis do que em Tolkien, o julgamento último que faremos
sobre suas histórias redundará sempre em dizer que os crentes nelas reconhecerão
seu bom Deus; os outros, sem dúvida, nada. Com efeito, se em Tolkien, Eru é
o nome de Deus, Melkor, o do demônio, os Valar, que são os anjos, são, não
obstante, deuses pagãos! Da mesma forma, Aslam, que representa o Cristo e o
torna presente, não é o Cristo. Este equívoco intrínseco dos textos faz com que
os tenhamos podido ler sem ver a relação com o cristianismo. E, contudo, como
vimos na Trilogia Espacial, de Lewis, as correspondências são bem evidentes.
79
LEWIS, C. S. Cette hideuse puissance. In: La Trilogie Cosmique. p. 296.
80
Sobre as relações entre Numinor e Númenor, e sua origem céltica comum, remetemos ao seguinte
trabalho: DEVAUX, Michaël. “Númenor, centre celtique”. In: Tolkien, Les racines du légendaire. pp.
147-156.
81
Ver: The Letters of J. R. R. Tolkien. Cartas 154, 227, 257 e 276.
172 COMMUNIO • Michaël Devaux
82
Lewis fala de “theologised science-fiction” (The Collected Letters of C. S. Lewis: Volume III. p. 517).
83
Ver: LACOSTE, Jean-Yves. “Une préparation à l’Évangile”. In: Narnia, monde théologique?
Genève: Ad Solem, 2005. pp. 35-46.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 173
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 173-183
– “Filho! Estou contando a sua história, não a dela. A cada um só conto a história que
lhe pertence”.
– “Quem é você?”
– “Eu mesmo” – respondeu a voz, com uma entonação tão profunda que a terra
estremeceu.
C. S. Lewis, O Cavalo e seu Menino1
– Agora, tarcaína, conte-nos a sua história. E não tenha pressa... Estou me sentindo
tão bem...
Aravis não fez cerimônia. Sentou-se quase imóvel e começou a falar, num tom
de voz e num linguajar bem diferentes. Pois acontece o seguinte: na Calormânia,
aprende-se a contar uma história (seja ela verdadeira ou inventada) [...]2.
Ela começa sua estória num “tom diferente” porque tem algo importante a
compartilhar, um mundo não vivenciado por seus ouvintes, uma vida que nunca poderiam
ter.
A estória faz o que nenhum teorema consegue fazer tão bem. Pode não ser como
“vida real” no sentido superficial: mas coloca à nossa frente uma imagem do que a
realidade pode muito bem ser em uma região mais central8.
Pode ser possível, então, que estórias possam nos dar insights sobre
realidades centrais acerca da experiência humana e, assim, sobre a vida moral,
nossas escolhas e decisões e nossas compreensões do que constituem o bem e
o mal. A trama, ou acontecimentos relacionados em uma estória, diz Lewis, “é
apenas uma rede pela qual se alcança alguma outra coisa” – um estado ou qualidade
que vivenciamos ao ler que “nunca está completamente incorporada” na trama em
si mesma. Essa tensão entre tema e trama, é, segundo Lewis, “o coração de toda
estória”. É aqui que, estórias, como arte, têm a capacidade de capturar o que é
permanente no meio da impermanência que é a vida:
Tanto na vida como na arte, como me parece, estamos sempre tentando alcançar,
na nossa rede de momentos sucessivos, alguma coisa que não seja sucessiva. Se
na vida real existe algum médico que possa nos ensinar como fazê-lo, para que
finalmente as malhas se tornem finas que cheguem para prender o pássaro, ou
nós sermos tão mudados de forma que possamos jogar fora nossas redes e seguir o
pássaro até seu próprio país, não é uma questão para este ensaio. Mas penso que,
algumas vezes, é feito – ou quase, quase feito – em estórias. Acredito que vale
muito a pena o esforço para fazê-lo9.
8
LEWIS, C.S. “On Stories”. p. 93.
9
Idem. Ibidem., pp. 95-96.
*
N. do E.: O livro The Tale of Squirrel Nutkin [A estória do esquilo Nutkin] da escritora e ilustradora
Beatrix Potter (1866-1943), publicado originalmente em 1903, é a segunda obra da autora. Miss
Potter, uma bióloga especialista em fungos, é autora de vinte e três livros infantis, que a tornaram
uma das mais respeitadas escritoras inglesas de literatura infantil do século XX. O primeiro livro
de Beatrix Potter, The Tale of Peter Rabbit [A estória do coelho Peter], foi publicado em 1902 e o
vigésimo terceiro, The Tale of Little Pig Robinson [A estória do porquinho Robinson], em 1930.
As obras infantis de Miss Potter, publicadas em formato pequeno, sempre retratam aventuras de
176 COMMUNIO • Stephen Milne
de que a literatura infantil é tão genuína como fonte de vida espiritual quanto
qualquer outra literatura10.
Para Lewis a relação entre trama e tema parece permitir isso, a tensão
resultante, incorporando características permanentes e duradouras de experiência
vivenciada pelos protagonistas, que o leitor pode vivenciar por si próprio, embora
vivenciada através de outros. Num sentido moral, aos leitores é permitido,
portanto, segundo Lewis, “alcançar” momentos morais importantes, seja de
intenção, escolha e ação por causa das tensões internas entre trama e tema.
Se isso é fato, deveríamos esperar que a leitura fosse um processo
ativo. No nível moral, deveríamos esperar que os leitores imaginativamente
experimentassem novas perspectivas nas vidas de outros e em suas próprias vidas
através da leitura de estórias, assim como tomar contato com experiência moral e
normas que resultam de ambos, as tensões internas dentro do texto, e também as
da sua própria compreensão disso. A compreensão moral e a percepção deveriam,
portanto, ser aumentadas e aprofundadas através de um processo imaginativo
resultante do encontro do leitor com a própria estória.
A imaginação moral, para Lewis, é desenvolvida na busca de sentido e
ao recorrer às estórias como exemplos de perspectiva moral e de experiência,
personificação de permanência e referencial – por exemplo, justiça, amor ou
coragem. Uma boa estória deveria ter, portanto, tensão interna entre trama e
tema que permitisse surgir o tipo de drama moral que levará a novos significados
para o leitor ou as experiências dos mundos de outros, de formas não possíveis de
nenhum outro modo. Uma imaginação moral em desenvolvimento pode, dessa
forma, conduzir a mudanças no leitor através de uma perspectiva alterada e por
meio da busca por incorporar atitudes morais ou significados aprendidos nas
próprias vidas11.
animais, ilustradas pela própria autora. A vida de Beatrix Potter é retratada no filme britânico
Miss Potter, dirigido por Chris Noonan, estrelado por Renée Zellweger e Ewan McGregor, lançado
originalmente em 2006 e distribuído pelo estúdio Metro-Goldwyn-Mayer (MGM).
10
BARRATT. Op. cit., p. 315.
11
Isto é provavelmente porque, na grande obra de teoria literária de C. S. Lewis An Experiment in
Criticism [Um experimento em criticismo] ele rejeita a idéia de que a literatura deveria ser avaliada
primeiramente pela sua habilidade em nos contar “verdades sobre a vida”. Da mesma maneira, Lewis
afirmaria que uma obra literária pode contar aos seus leitores, falsidades sob o disfarce de “verdades
sobre a vida” e que não é o propósito da literatura fazer o trabalho da Teologia e da Filosofia. Que
a literatura pode nos contar “verdades sobre a vida” acredito que Lewis não teria negado, mas este
cuidado em atribuir esse papel à literatura estava baseado, penso, na sua compreensão cristã e
clássica da verdade – de que é objetiva e permanente. E nesse caso, claro, é possível professar e
acreditar em falsidades sobre a natureza da realidade e contadores de estórias provavelmente fazem
isso como qualquer outra pessoa, seja deliberadamente ou inconscientemente. Ver: LEWIS, C.S. An
Experiment in Criticism. Cambridge: Cambridge University Press, 1961.
C. S. LEWIS E A IMAGINAÇÃO MORAL 177
12
LEWIS, C. S. The Magician’s Nephew. In: The Chronicles of Narnia. London: HarperCollins,
2001. p. 92. [N. do E.: Substituímos todas as citações da obra em inglês pela passagem equivalente
na seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. O Sobrinho do Mago. (Tradução de Paulo Mendes
Campos). In: As Crônicas de Nárnia. (Edição com ilustrações coloriadas à mão pela artista Pauline
Baynes e com uma introdução de Douglas Gresham). São Paulo: Martins Fontes, 2002. pp. 7-72.
Essas palavras, escritas com letras de prata, nos portões de ouro do jardim se encontram na página
62 desta edição brasileira].
178 COMMUNIO • Stephen Milne
conto de fadas13. Aqui, também, ele aplica à estória o mesmo método que aquele
no ensaio considerado acima – sua importância para o leitor, tanto quanto sua
natureza como texto. Ao considerar o conto de fadas, Lewis vê sua atração como
um exemplo de como o escritor se torna um “subcriador” ao criar um “mundo
subordinado” para si próprio14. O valor desse tipo de “subcriação”, de acordo
com Lewis, é que permite que o leitor (e aqui ele se refere a crianças tanto quanto
a adultos) vivencie “um certo tipo de desejo” por “algo fora do seu alcance” e, no
processo, dá ao mundo real “uma nova dimensão de profundidade” ao retornar:
Longe de entediar ou esvaziar o mundo real, [o conto de fadas] lhe dá uma nova
dimensão de profundidade. [A criança] não despreza as florestas verdadeiras
porque leu sobre florestas encantadas: essa leitura faz com que todas as florestas
verdadeiras pareçam um pouquinho encantadas15.
Na esfera moral são, provavelmente, ao menos tão sábios quanto nós [...]
devemos ver as crianças como nossos iguais naquela área da nossa natureza onde
somos seus iguais18.
Com isto quer dizer que os escritores e as estórias que escrevem deveriam
lembrar que as crianças estão tão preocupadas com questões de natureza moral e
existencial quanto os adultos estão19. As estórias podem e deveriam explorar estas
questões por modos que não sejam paternalistas nem negligenciem este aspecto
da vida da criança, mas que permitam que a imaginação moral se desenvolva
através de experimentação com exemplos, percebendo tais questões nas vidas
das personagens e de suas escolhas, e encontrando tais desafios com os quais
talvez ela se depare na sua própria vida. Um conhecimento do bem e do mal não
pode, poder-se-ia dizer, ser obtido sem tais encontros; para a criança, um ensaio
imaginativo de tais situações e desafios pode dar a base para o drama da realidade
onde a vida moral deve ser vivida nas decisões menores e maiores do dia-a-dia.
De que serve então – qual é até a defesa que se pode fazer – para ocupar nossos
corações com estórias sobre coisas que nunca aconteceram e penetrar através de
sentimentos de outros, em sentimentos os quais deveríamos tentar evitar ter na
nossa própria pessoa? Ou de fixar nosso olhar interior [...] sobre coisas que nunca
poderão existir [...]?22.
A resposta, diz Lewis, é que procuramos uma expansão para nosso ser.
Queremos ser mais do que somos. Ler estórias, afirma Lewis, é um modo de vivenciar
o mundo de outros pontos de vista além do nosso próprio; a literatura “admite que
vivenciemos outras coisas além das nossas próprias”23. Essa expansão, para o leitor, pode
fornecer “janelas, até [...] portas” para outros mundos e para os mundos de outros –
janelas para a experiência moral de outros que pode lhes permitir ganhar compreensão
da vida moral não alcançada através de experiência de primeira mão.
A boa leitura, para Lewis, é uma “atividade afetiva, moral e intelectual”
através da qual, na esfera moral, “todo ato de justiça ou caridade envolve nos
colocarmos no lugar do outro e assim, transcendermos nossa própria particularidade
competitiva”24. Como Leland Ryken assinala, Lewis vê a leitura como um processo
que “desperta” uma extensão de grande alcance de faculdades humanas, incluindo
“percepção [...] (metafórica assim como visual), [...] imaginação, [...] afeições ou
emoções”25. Neste sentido, a boa leitura pode fornecer à criança oportunidades
para obter empatia, para ter participação nas vidas de outros, o que não é tão
facilmente alcançado na vida diária. Diz Lewis:
Ao ler nos tornamos [...] outros. Não apenas, nem principalmente, para ver como eles
são, mas para ver o que eles vêem, para ocupar, por algum tempo, o lugar deles no
grande teatro [...]26.
Lewis, aqui, assinala a função social da literatura, que ela pode ajudar a
ligar vidas em modos que não diminuem a individualidade, até aumentam-na ao
criar uma compreensão maior entre nós e outros. A literatura pode nos ajudar a
compreender as experiências de vida de outros sem destruir a liberdade que temos
de reagir individualmente ao que encontramos e aprendemos sobre suas vidas.
No campo moral, a literatura nos permite fazer ligações entre as nossas vidas e
as de outros, a ver como e por que outros fazem suas escolhas para bem ou mal,
a acompanhá-los nas nossas imaginações e descobrir o que significa ser um ente
moral. Neste sentido, pode ser uma iniciação na vida moral31.
28
LEWIS, C.S. A Preface to Paradise Lost. London: Oxford University Press, 1967. pp. 63-64.
29
Idem. Ibidem., p. 64.
30
LEWIS. An Experiment in Criticism. pp. 140-141.
31
No seu ensaio “Christianity and Culture” [Cristianismo e Cultura], Lewis descreve a literatura e a
cultura como um “depósito dos melhores valores (sub-cristãos) os quais, até certo ponto, imitam os mais
elevados valores espirituais da fé cristã”. Seu argumento é que, ao ler, entramos nesta imitação e que,
como propõe, a “imitação pode passar à iniciação”. Ver: LEWIS, C.S. “Christianity and Culture”
182 COMMUNIO • Stephen Milne
IV - CONCLUSÕES
Descrevendo a relação entre a leitura e o amor na obra de Lewis, Bruce
Edwards assinala que o melhor tipo de leitura, para Lewis, “tem alguma coisa em
comum com o melhor tipo de escuta. E, igualmente, a escuta amorosa depende da
imaginação tanto quanto a leitura imaginativa depende do amor”34. Essa dimensão
imaginativa, moral em relação à leitura pode nos conduzir a “aprender alguma coisa
– sobre outros e até nós mesmos no processo”35. Para crianças essa leitura imaginativa
pode ter muitas finalidades, como tenho tentado sugerir. Ao desenvolver a
imaginação moral, elas incluem a vivência do mundo como os outros o vêem,
estendendo sua empatia para as vidas dos outros, compreendendo a permanência
de normas morais, incorporando exemplos de bem e de mal, virtude e escolha
moral, desenvolvendo o que o filósofo católico Russell Kirk (1918-1994) chama
“o poder da percepção ética”36 e permitindo que crianças ensaiem situações nas
quais isto é necessário.
A literatura também pode dar “ícones” para uma vida moral a uma
criança, pontos de apoio imaginários pelos quais interpretar sua experiência e
pelos quais podem ser iniciados na vida moral sem as conseqüências desagradáveis
resultantes em algumas escolhas no mundo real. Como tal, as estórias têm um
papel importante a desempenhar na formação moral da criança, especialmente –
como propõe o filósofo católico Peter Kreeft37 – porque vivemos numa época que
In: C. S. Lewis Essay Collection: Literature, Philosophy and Short Stories. (Edited by L. Walmsley).
London: HarperCollins, 2000. pp. 71-92.
32
LEWIS. An Experiment in Criticism. p. 3.
33
Exemplos do modo pelo qual isso ocorre podem ser encontrados em: COLES, R. The Moral Life
of Children.
34
EDWARDS, B. L. “Literary Criticism”. In: Reading the Classics with C. S. Lewis. (Edited by T. L.
Martin). Grand Rapids: Baker Academic, 2000. p. 387.
35
Idem. Ibidem., p. 387.
36
KIRK. R. Redeeming the Time. Wilmington: Intercollegiate Studies Institute, 1996. p. 71.
37
KREEFT, P. C. S. Lewis for The Third Millennium: Six Essays on The Abolition of Man. San
Francisco: Ignatius Press, 1994.
C. S. LEWIS E A IMAGINAÇÃO MORAL 183
rejeita cada vez mais, “as coisas permanentes” incluindo as normas morais que
têm informado a cultura ocidental por muitos milhares de anos. Como William
Kilpatrick coloca, “o dom supremo das estórias é sua reafirmação” de que:
Nossas lutas e sofrimentos têm sentido. [...] Uma estória pode nos ajudar
a encontrar sentido em experiências que poderiam de outra forma parecer
caóticas ou sem finalidade38.
38
KILPATRICK, W. Books That Build Character: A Guide to Teaching Your Child Moral Values
Through Stories. New York: Touchstone, 1994. p. 47.
Inspiração (1941)
Escultura em mármore de Albert Freyhoffer
Igreja de Santa Terezinha do Menino Jesus, Rio de Janeiro, RJ
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 185
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 185-200
– Bem, este é o fim, Sam Gamgi – disse um voz ao seu lado. E ali estava Frodo,
pálido e exausto, e apesar disso era Frodo novamente; agora em seus olhos só
havia paz; nem luta de vontade, nem loucura, nem qualquer temor. Seu fardo fora
levado. Ali estava o querido mestre dos doce dias no Condado.
– Mestre! – gritou Sam, caindo de joelhos. Em meio a toda aquela ruína do
mundo, naquele momento ele só sentiu alegria, uma grande alegria. O fardo se
fora. Seu mestre se salvara; voltara a si de novo, estava livre. E então Sam viu a mão
mutilada, sangrando.
– Sua pobre mão! – disse ele. – E não tenho nada que sirva como atadura, ou que
possa confortá-la. Eu preferia dar-lhe uma das minhas mãos inteira. Mas agora ele
se foi, e está além de qualquer alcance. Ele se foi para sempre.
– Sim – disse Frodo – Mas você se lembra das palavras de Gandalf: Até mesmo
Gollum pode ter ainda algo a fazer? Se não fosse por ele, Sam, eu não poderia ter
destruído o Anel. A Demanda teria sido em vão, no fim de tanta amargura. Então
vamos perdoá-lo! Pois a Demanda está terminada, e com sucesso, e tudo está
acabado. Estou contente por tê-lo comigo. Aqui, no fim de todas as coisas, Sam.
J. R. R. Tolkien, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei. Livro VI, capítulo III,
paragráfos finais, pp. 222-223**.
*
Artigo publicado originalmente em The Chesterton Review, Volume XXVIII, Numbers 1 & 2
(February / May 2002): 57-71. O presente ensaio foi republicado, nas páginas 27 a 41, no livro
A Hidden Presence: The Catholic Imagination of J. R. R. Tolkien, editado por padre Ian Boyd, C. S.
B. e Stratford Caldecott (The Chesterton Press, 2003). Os direitos autorais, em língua portuguesa,
foram gentilmente fornecidos pelo editor, padre Ian Boyd, C. S. B., para o Centro Interdisciplinar
de Ética e Economia Personalista (CIEEP), que autorizou a publicação do mesmo nessa edição da
Communio. Texto traduzido, do original em inglês para o português, por Márcia Xavier de Brito.
**
N. do T.: Todas as passagens do livro O Hobbit e da trilogia O Senhor dos Anéis, citadas pelo autor
no presente artigo, foram substituídas pelo trecho equivalente, em língua portuguesa, das seguintes
edições brasileiras:
TOLKIEN. J. R. R. O Hobbit. (Tradução de Lenita Maria Rímoli Esteves). São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: As duas torres. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
186 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards
1896, quando tinha quatro anos de idade. Tinham se encontrado, pela última
vez, no ano anterior, quando, juntamente com a mãe e o irmão mais jovem
haviam sido mandados de volta para a Inglaterra. Em 1900, sua mãe ingressou na
Igreja Católica, para a fúria de seus parentes e dos de seu falecido marido. Agora,
recusavam-lhe o apoio financeiro com que contara anteriormente, se opuseram
à decisão dela criar os filhos como católicos e, por falta de cuidados médicos,
ela morreu quatro anos depois, deixando os meninos sob a guarda do padre
oratoriano Francis Xavier Morgan (1857-1933), que usou os próprios recursos
para sustentar as crianças. Nove anos depois, Tolkien escreveu que sua mãe “foi,
de fato, uma mártir e não é para todos que Deus abre tão facilmente os caminhos de
seus grandes dons [...] dando-nos uma mãe que se matou de trabalhar e de problemas
para garantir que mantivéssemos a fé”2. Isso significa que o catolicismo de Tolkien
era fundido à sua identidade nos pontos mais básicos da autoconsciência. Clichês
sobre a influência de mães dedicadas não descrevem a força de uma herança como
essa. Nem um convertido nem um católico de berço pode experimentar algo
parecido. G. K. Chesterton gostava de citar William Cobbett (1763-1835) a
respeito da perda do catolicismo medieval inglês pela Reforma como algo que se
assemelhava à descoberta do corpo da mãe no bosque3. Tolkien viu sua verdadeira
mãe sofrer um colapso, que mostrou ser um coma diabético, e morrer seis dias
depois: Não precisava de nenhum passeio rural para descobrir o fado de sua mãe
ou o significado religioso disso. O que quer que fosse, ele seria católico.
Nesse ponto há uma analogia com o meio nacionalista católico irlandês
em que nasci. A fusão das identidades religiosa e nacional significa, para nós, que
ambas são direitos de nascença, e que uma é inseparável da outra. Não foi somente
Cristo que morreu por nós: o país também. Alguns irlandeses católicos fizeram
pouco disso, mas caso se importe, isso se torna o tutano de seus ossos. Tolkien, ao
escrever sobre o martírio da mãe deve ter sentido o que muitos irlandeses católicos
sentiram, mas de forma muito mais vigorosa. Muitos irlandeses católicos sabem
que seus ancestrais – especialmente os maternos – se sacrificaram para a salvação
da descendência, mas Tolkien viu, com os próprios olhos, a mãe morrer pela sua
alma. Nem mesmo um sobrevivente da Grande Fome poderia pedir mais.
Pensar as obras de Tolkien como algo apartado de sua igreja é, portanto,
tão absurdo quanto pensá-las como algo separado de sua vida. Ele não pôs seus
escritos num desfile sectário, como podemos crer que fez Hilarie Belloc (1870-
1953). Ele não precisava apresentar exércitos católicos. A fé estava consigo. A
ficção católica, em geral, pode parecer o resultado de algum processo – dúvida,
2
A biografia escrita por Humphrey Carpenter traz 31 citações de J. R. R.Tolkien sobre o martírio
da mãe. Ver: CARPENTER, Humphrey. Tolkien: A Biography. New York: Ballantine Books, 1977.
3
BOYD, Ian. The Novels of G. K. Chesterton: A Study in Art and Propaganda. London: Paul Elek.
1975. p. 212, n. 60 citando o livro de Maisie Ward (1889-1975), Gilbert Keith Chesterton de 1944,
p. 412, cita seu William Cobbett, de 1925, pp. 176-177: “Ele era como aquele que encontrou, num
bosque escuro, os ossos de sua mãe, e, de repente, soube que ela havia sido assassinada”.
188 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards
reconversão, controvésia, novo público, novo local, tentação – mas, Tolkien não
escreveu para uma causa católica. Ele pode não ter estado particularmente cônscio
de escrever como um católico, não mais do que estou consciente de escrever
na minha língua natal – ciente, mas não inclinado a discussões, a menos que
desafiado por alguma outra língua. Ele insistia não estar escrevendo alegorias, e
não as apreciava4, talvez impelido pelas famosas alegorias anticatólicas como The
Faerie Queene [A bela rainha] de Edmund Spenser (1552-1599) e The Pilgrim’s
Progress [O peregrino] de John Bunyan (1628-1688). Por outro lado, ele não
tinha objeção à parábolas. As alegorias são formas encobertas de falar de coisas
que podemos conhecer; as parábolas são modos abertos de falar de coisas que
podemos conhecer.
Os romances de Tolkien têm muita relação com a morte, e, é bastante
natural que tenham relação com a expiação – com a busca católica por uma boa
morte que, em Tolkien, significa certificar-se de que a pessoa fez o que pôde
para reparar os males que causou, ou fazer o bem, ao menos o suficiente, para
que ele tenha mais valor que o dano. Thorin Escudo de Carvalho n’O Hobbit
e Boromir n’O Senhor dos Anéis ambos morrem de modo que, ao morrer, usam
suas últimas palavras para esse fim. Gollum, é claro, também morre com tais
efeitos, embora não intencionalmente, e a esse caso devo retornar. Mas à parte
dos penitentes, as personagens de incontestável virtude ou inocência acreditam
dar suas vidas por outros: Gandalf, Éowyn, Samwise, Pippin. Éowyn, é uma
mulher, embora em trajes masculinos, descrita, de modo significativo, ao entrar
na corrida para Gondor com “o rosto de alguém que vai em busca da morte, sem
qualquer esperança”5: um rosto tal como o menino Tolkien, de oito anos de
4
“Mas eu cordialmente desgosto de alegorias em todas as suas manifestações, e sempre foi assim desde que
me tornei adulto e perspicaz o suficiente para detectar a sua presença” [N. do T.: O Senhor dos Anéis:
A Sociedade do Anel. Prefácio, p. xiii]. Afirmaria que as obras de C. S. Lewis (1898-1965) Out of
the Silent Planet [Longe do planeta silencioso] de 1938 e Perelandra de 1943, que Tolkien gostava,
são parábolas; ao passo que a série de Nárnia é, obviamente, uma alegoria. Aslam é uma alegoria
de Jesus Cristo – com conseqüentes problemas como observou minha filha Sara Dudley Edwards,
no artigo “The Theological Dimensions of the Narnia Stories” [A dimensão teológica das estórias
de Nárnia] na edição da The Chesterton Review dedicada a C. S. Lewis (Volume XVII, Number 3
& 4, August / November 1991: 429-435). Gandalf, certamente, não o é, apesar de sua ressureição
(outros também ressuscitaram, por exemplo, Lázaro). Tolkien desaprovava As Crônicas de Nárnia.
5
TOLKIEN, J.R.R. The Lord of the Rings. p. 823 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: O retorno do
rei. Livro V, capítulo VI, p. 107]. Novamente o maravilhoso senso cômico de Tolkien, embora
secundário, preenche o momento. Ele era um crítico das bruxas e das profecias em Macbeth, de
William Shakespeare (1564-1616), tendo ficado amargamente desapontado, em menino, quando a
floresta de Birnam não foi até as alturas de Dunsinane, a não ser como camuflagem. Isso é remediado
na Floresta Ent de Isengard. Da mesma forma, a resposta do nazgûl: “Nenhum homem mortal pode
me impedir!” para Éowyn, sendo ela uma mulher (e Merry, um hobbit) é muito mais lógica do que
a insistência de Macduff em Macbeth de que o nascimento por cesariana não é nascimento. O “The
Lord of the Rings as Romance” de Derek Brewer pouco considera a morte dos companheiros da
sociedade do anel (pp. 260-261) defendendo as mortes de Sam numa luta, tipo Holmes-Moriarty,
com Gollum caindo do penhasco (hipótese desde cedo descartada por Tolkien); de Merry ao ser
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 189
atacado pelo nazgûl (mas, ele é necessário como testemunha da morte do rei Theóden, com Éowyn
aparentemente morta); e de Gimli, nos portões de Mordor (presumivelmente, por erro, pois Pippin
pensa estar morrendo com grande brio, mas sessenta páginas adiante, Gimli mostra tê-lo resgatado).
6
TOLKIEN. The Lord of the Rings. p. 835 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. Livro V,
capítulo VII, p. 120].
190 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards
Isso, como é clássico nos livros para crianças, muitas vezes fica enfraquecido,
em mãos alheias, pelas qualidades semi-divinas dos protagonistas jovens – assim,
o normalmente repulsivo Billy Bunter*, nos raros momentos de coragem física,
excede em brilho seus confiáveis colegas de classe que nunca enfrentaram aflições
desse tipo8. Mas, por trás do artifício padrão, do se não-realmente-covarde ou
7
TOLKIEN. Hobbit. p. 260 [N. do T.: O Hobbit. pp. 209-210].
*
Billy Bunter é uma personagem infantil de grande popularidade na Grã-Bretanha, criada por
Charles Hamilton (1876-1961) com o pseudônimo de Frank Richards. Apareceu pela primeira
vez na revista para meninos The Magnet, na Inglaterra, em 1908, e perdurou até 1940 nessa
mesma revista. Billy Bunter é, essencialmente, um anti-herói cômico, cujas ações invalidam ou
ridicularizam as escolas públicas inglesas (as estórias se passam na Escola Greyfriars), invertendo
os valores convencionais como um “Senhor da desordem”. Suas principais características físicas são
obesidade e miopia. É desonesto, ganancioso, centrado em si mesmo, esnobe, arrogante, preguiçoso,
covarde, malvado e obtuso. Não obstante, é bem-sucedido em conquistar a simpatia do leitor pela
virtude de seu descaramento e persistência diante do inevitável fracasso. As estórias de Billy Bunter,
também, foram objeto de livros durante os anos de 1940 a 1961, séries de televisão nos anos 1950
e 1960, peças de teatro anos 1950 e revistas em quadrinhos.
8
The Magnet, XLIX, no. 1465 (14 março de 1936) é um bom exemplo, onde Bunter resgata um
índio brasileiro de um jacaré:
“Alarmado, fora de seus obesos juízos, não ousou ver o perigo diante de si. Sabia, contudo, que não
podia dar as costas e deixar um homem morrer de forma tão horrorosa. O que quer que pudesse
acontecer, ele não permitiria.
– Ele não pode, e não vai! – De alguma forma Billy Bunter instigou sua coragem até chegar a um ponto
em que ela pudesse se agarrar – e ela se fixou!” (Tolkien não foi o único a escarnecer de Macbeth).
Tolkien foi tratado de forma áspera e esnobe pelo poeta Edwin Muir (1887-1959), que deveria tê-
lo conhecido melhor, e outros, por retirar elementos das estórias de Frank Richards, na revista The
Magnet, sobre os meninos da escola Greyfriars. (MUIR, Edwin. “A Boy’s World”. In: The Observer,
27th november 1955). Ele os tirou, inicialmente, para O Hobbit, onde no nome e na natureza,
Bilbo Baggings certamente lembra Billy Bunter, quando o encontramos pela primeira vez, como,
certamente, também lembra Gollum, especialmente ao mentir. N’O Senhor dos Anéis, Merry fica
a dever algo a outra personagem da escola Greyfriars, o impetuoso e amável Bob Cherry. Aragorn
fica a dever ao carismático, porém arrogante e irritadiço Harry Whaton. Boromir se parece com o
corajoso, mas voluntarioso, e algo brigão e rebelde Bounder (Herbert Vernon-Smith), cujo coração
está no amigo muito mais altruísta e calmo, o marujo Tom Redwing, cujas qualidades vemos em
Faramir. Sam tem a honestidade, a falta de tato – e, em momentos cruciais e extemporâneamente
– a insistência de Jonny Bull ao falar francamente. Realmente, sua franqueza a respeito de Gollum
acaba com o momentâneo arrependimento de Gollum pela traição que pretendia cometer contra
Frodo na toca da Laracna (Ver o rascunho da carta de Tolkien a Eileen Elgar, de setembro de
1963, em: TOLKIEN, J. R. R. The Letters of J. R. R. Tolkien. {Selected and edited by Humphrey
Carpenter, with the assistance of Christopher Tolkien}. Boston / New York: Houghton Mifflin
Company, 1981. p. 330) [N. do T.: Em língua portuguesa ver: TOLKIEN, J. R. R. “Carta 246:
De uma carta para a Sra. Eileen Elgar (rascunhos) – setembro de 1963”. In: Cartas de J. R. R.
Tolkien. (Organização de Humphrey Carpenter, com a assistência de Christopher Tolkien; tradução
de Gabriel Blum Oliva). Curitiba: Arte e Letra Editora, 2006. pp. 309-316]. Não é necessário
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 191
dizer que, essas são, senão uma, das muitas origens. Sam deve muito a Xanto, da comédia As rãs de
Aristófanes (447-385 a.C.), a Sancho Pança de Cervantes, a Ariel d’A Tempestade de Shakespeare,
ao Dr. Johnson, ao Dr. Watson de Arthur Conan Doyle (1859-1930), a Reginald Jeeves de P. G.
Wodehouse (1881-1975) e ao dedicado escudeiro, talvez, numa versão mais refinada, a Clarence, da
obra A Connecticut Yankee at King Arthur’s Court [Um ianque de Connecticut na corte do rei Artur]
de Mark Twain (1835-1910), publicada em 1889. Mas aqui há outros modelos chaucerianos e
medievais tanto para ele, quanto para os outros hobbits. Merry e Pippin são escudeiros chaucerianos
e, de alguma forma, lembram os escudeiros do romance de cavalaria de Conan Doyle, The White
Company [A companhia branca] de 1891, mais vivazes do que dedicados.
9
TOLKIEN. Hobbit. pp. 341, 346 [N. do T.: O Hobbit. pp. 276 e 281].
10
TOLKIEN. The Lord of the Rings. pp. 60-61 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel.
Livro I, capítulo II, p. 64].
192 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards
*
N. do T.: O romance O cerne da questão (São Paulo: Editora Globo, 2007) é o que podemos
chamar de um romance de provação: “Só os homens de boa vontade carregam sempre no coração essa
capacidade de danação” (p. 99). Ele conta a história de Scobie, um major da polícia colonial inglesa
em Serra Leoa, na África Ocidental. Scobie é um homem com seus 50 anos e cujo agudo senso
de responsabilidade vem aliado a um fortíssimo sentimento de piedade em relação ao mundo,
em relação às pessoas, em relação à sua mulher, em relação à amante, em relação a si mesmo. Ele
vai se envolvendo em vários incidentes e é envolvido pelas circunstâncias relacionadas, direta ou
indiretamente, com o pecado do adultério. É dessa forma, como católico e pecador, que percebe seu
caso amoroso com Helen. Logo, o conflito moral gera o dilema religioso que acabará por levá-lo
ao suicídio. Segundo Ronald Mattews, o próprio Greene dissera que o suicídio de Scobie não se dá
por obra da divina caridade que parece pautar sua conduta, mas pela “paixão destrutiva da piedade,
que faz parte de seu orgulho”.
**
N. do T.: Lado demoníaco e monstruoso da personagem Dr. Jekyll de Robert Louis Stevenson
(1850-1894) na obra O médico e o monstro de 1886.
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 195
Frodo estava em tal posição: uma armadilha aparentemente completa [...]. A busca
[...] estava destinada a terminar em desastre como a história do desenvolvimento
do humilde Frodo ao “nobre”, sua santificação. Falhar ela iria e falhou no que
dizia respeito a Frodo levado em consideração sozinho. Ele “apostatizou” [...].
Não antevi que antes da estória fosse publicada entraríamos em uma era das trevas
na qual as técnicas de tortura e de ruptura da personalidade rivalizariam com as
de Mordor e a do Anel e nos presenteariam com o problema prático de homens
honestos de boa vontade transformados em apóstatas e traidores.
Nesse ponto, porém, a “salvação” do mundo e a própria “salvação” de Frodo é
alcançada por sua piedade prévia e seu perdão aos ferimentos. Em qualquer
momento qualquer pessoa prudente teria dito a Frodo que Gollum certamente o
trairia e poderia roubá-lo no final. Ter “pena” dele, abster-se de matá-lo, foi uma
insensatez, ou uma crença mística no valor-por-si-só fundamental da piedade e da
generosidade ainda que desastrosa no mundo temporal. Ele o roubou e o feriu no
final – mas, por uma “graça”, essa última traição ocorreu em uma junção precisa,
quando a última má ação foi a coisa mais benéfica que alguém poderia ter feito
por Frodo!13
15
TOLKIEN. The Lord of the Rings. p. 58 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel. Livro
I, capítulo II, p. 61].
16
Idem. Ibidem. p. 601 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. Livro IV, capítulo I, p. 224].
GOLLUM, FRODO E O ROMANCE CATÓLICO 197
obra sobre uma segunda caça ao tesouro (tanto para Bilbo, como para seu filho,
ou o sobrinho Bingo Bolseiro). Tolkien recordou-se do Anel, e criou a jornada
para destruí-lo, e não para descobrir o tesouro. Quanto mais pensava sobre
isso, mas trágicas tinham de ficar as personagens principais. O Bingo, cômico
como uma personagem de P. G. Wodehouse (1885-1975), foi substituído
por Frodo, potencialmente muito mais sério. Gollum ficou obsecado com a
perda do Anel, e a busca para recuperá-lo foi projetada para ser continuamente
entrecortada, senão atrasada, pela jornada de Frodo para destruí-lo. Tolkien,
nadando na ficção erudita, explicou a discrepância entre a primeira e as edições
subsequentes d’O Hobbit como prova das propriedades letais do Anel, de modo
que a honestidade normal de Bilbo fora subvertida nas explicações introdutórias
sobre a origem do Anel [Mark Twain recuperou qualquer perda de sincronização
entre Tom Saywer e sua seqüência ao colocar Huck Finn, como narrador da
última, culpando o Sr. Twain for algumas “interpretações forçadas” no primeiro
livro, de modo que, ao estabelecer a preferível veracidade do segundo texto,
Twain convidava os leitores a acreditar mais na sua criação do que nele mesmo.
Tolkien fez o oposto. Twain era uma inspiração óbvia para muitos escritores de
ficção para crianças]17.
17
Idem. Ibidem. p. 601 [N. do T.: O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. Livro IV, Capítulo I. p. 224];
PLATÃO. A República. 359d-362c.
Toda a discussão do uso do Anel pela pessoa justa e pela injusta é muito sugestiva, mas o contraste
rigoroso entre o gosto de Platão pela mitologia e a austera discussão de Heródoto (484-425 a.C.) do
mesmo Giges (História. I,8-12), indicam fortemente que os escritos contra a literatura imaginativa
em qualquer outro lugar d’A República era uma piada, acima ou abaixo da inteligência dos
subsequentes eruditos). Giges também era conhecido como Gugu (idioma acádio), que pode estar
relacionado com Gollum. Foi o primeiro governante a ser considerado “tirano”, e o primeiro a usar
moedas e, provavelmente, nenhuma dessas características o tornaram mais estimado por Tolkien.
A intertextualização d’O Hobbit e d’O Senhor dos Anéis chega ao cume da comoção nas últimas visões
de Bilbo e de Pippin, respectivamente, na Batalha dos Cinco Exércitos e na luta nos Portões de Mordor:
– As Águias! – gritou Bilbo mais um vez, mas, naquele momento, uma pedra veio rolando de
cima, bateu com toda a força em seu elmo; ele caiu com estrondo e perdeu os sentidos [N. do
T.: O Hobbit. p. 278].
Então Pippin deu um golpe para cima , e a espada com as letras do Ponente perfurou o couro
e penetrou fundo nas entranhas do troll, cujo sangue negro jorrou aos borbotões. A criatura
cambaleou para frente e foi ao chão, desmoronando como uma pedra, enterrando os que
estavam embaixo. Negrume, fedor e uma dor esmagadora dominaram Pippin, e a sua mente
caiu numa grande escuridão.
“Assim tudo termina como eu suspeitara”, disse seu pensamento, no instante em que se perdia;
riu um pouco ainda dentro de si mesmo antes de fugir, parecia quase alegre por estar afastando
finalmente toda a dúvida, a preocupação e o medo. E então, no momento em que o pensamento
voava para dentro do esquecimento, ouviu vozes, que pareciam estar gritando de algum modo
esquecido lá em cima:
– As Águias estão chegando! As Águias estão chegando!
Por mais um momento o pensamento de Pippin perdurou. – Bilbo! – disse ele. – Mas não!
Isso aconteceu na história dele, há muito e muito tempo. Esta é minha história, e agora está
198 COMMUNIO • Owen Dudley Edwards
“Sobre histórias de fadas” mostrara seu fascínio pela lenda original, uma vez adquirida
a forma literária. Na peça Ifigênia, a personagem que dá nome à peça, quando estava
prestes a escapar da tentativa dos gregos de sacrificá-la, é traída pela misteriosa Erifila,
de quem ficara amiga, mas cujo amor por Aquiles levara a, implacavelmente, destruir a
mulher escolhida pelo guerreiro, a própria Ifigênia. Então, no último momento, Erifila
provou ser a vítima apropriada para o sacrificio e tira a própria vida. Erifila antecipa a
personagem Fedra da peça de mesmo nome (1677) do autor, como a traiçoeira obsessora
cujo amor irá passar por cima da gratidão, das obrigações, da honra, da verdade, da
vida, contanto que atinja seu objetivo, embora ambas sejam prisioneiras de um desígnio
sobrenatural. A salvação da vítima pretendida por Erifila parece um claro precursor de
Gollum. No entanto, Tolkien recusa a certeza de condenação tão evidente em Racine,
ao escrever para Michael Straight (1916-2004):
Não me importaria em indagar a respeito do julgamento final de Gollum. Isso seria
investigar a “Goddes privitee” [“os deuses privados”], como diriam os medievais. Gollum
era digno de pena, mas ele acabou em uma persistente perversidade, e o fato de que isso
causou o bem não lhe dava crédito. Sua coragem e resistência maravilhosa, tão grandes
ou maiores que as de Frodo e Sam, estando dedicadas ao mal, eram pressagiosas, mas
não honoráveis. Temo que, quaisquer que sejam nossas crenças, temos de encarar o fato
de que há pessoas que se rendem à tentação, rejeitam suas chances de nobreza ou de
salvação e parecem ser “condenáveis”. A “danação” delas não é mensurável nos termos
do macrocosmo (onde pode causar o bem). Mas nós, que estamos todos “no mesmo
barco”, não devemos usurpar o Juiz [...]. Por temporizar, não estabelecendo a ainda não
totalmente corrompida vontade de Sméagol em direção ao bem no debate dentro no
buraco de escória, ele enfraqueceu a si próprio para a última chance quando o emergente
amor por Frodo feneceu muito facilmente pelo ciúme de Sam diante da toca de Laracna.
Depois disso ele estava perdido19.
Owen Dudley Edwards nasceu em 1938, Dublin, na Irlanda, é casado, desde 1966, com
Barbara Balbirnie Lee, com quem teve duas filhas e um filho. É professor de História na
University of Edinburgh na Escócia, membro do Conselho Editorial da The Chesterton
Review, desde sua fundação em 1974, e editor geral da série de Sherlock Holmes da Oxford
University Press. Estudou no Belvedere College e na University College, ambos em Dublin,
e na The Johns Hopkins University, em Baltimore, Maryland, nos EUA, sendo uma
autoridade renomada em história da Commonwealth e dos estados Unidos, bem como na
obra literária de Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), P. G. Wodehouse (1881-1975) e
Oscar Wilde (1854-1900). É autor de diversos livros, dentre os quais se destacam: The Sins
of our Fathers: Roots of conflict in Northern Ireland (Gill and MacMillan, 1970), P. G.
Wodehouse: A Critical and Historical Essay (M. Brian & O’Keeffe, 1977), The Quest
for Sherlock Holmes: A biographical study of Arthur Conan Doyle (Mainstream, 1983)
e British Children’s Fiction in the Second World War (Edinburgh University Press, 2007).
21
TYLER, J. E. A. The New Tolkien Companion. London: Macmillan, 1979. pp. 536-538.
22
TOLKIEN. The Lord of the Rings. p. 920 [O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. LivroVI, capítulo
III, p. 216]:
Frodo abriu os olhos e respirou fundo. Era mais fácil respirar lá em cima, sobre os vapores
pestilentos que se enrolavam e flutuavam mais embaixo. – Obrigado, Sam. – disse ele num
sussuro falho. – Quanto caminho ainda resta?
– Não sei – disse Sam –, porque não sei para onde estamos indo.
Esse é o brado de cada soldado em todos os tempos.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 201
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 201-212
I - ENTENDENDO O ANEL
É evidente que o público parece não ter tido qualquer dificuldade em
reconhecer a natureza do Anel, embora sua representação de seu poder no filme
possa ter sido levemente confusa. Está implícito que ele seja um Anel de supremo
poder, ainda que os únicos “poderes” que o vemos conceder são aqueles de
invisibilidade e vitalidade. Ele traz à criatura Gollum somente sofrimento durante
os séculos que ele o possui. No livro, temos a impressão de que uma vez dominado
pelo seu portador, poderia transmitir a ele grande parte do poder mágico do
Senhor do Escuro sobre a natureza e outras vontades. Dizem-nos que o portador
do Anel será capaz de ver e controlar aqueles que detêm os três Anéis Élficos
cujos destinos estão entrelaçados com o seu próprio. No filme, porém, o portador
do Anel de Poder parece tornar-se instantaneamente vulnerável – por tornar-se
altamente visível àqueles que ele mais desejaria evitar. No flashback, onde vemos
o seu criador, Sauron, usando o Anel três mil anos antes, achamos que ele nem o
*
N. do E.: Os livros da trilogia O Senhor dos Anéis estão disponíveis em língua portuguesa nas
seguintes edições brasileiras:
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: As duas torres. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TOLKIEN. J. R. R. O Senhor dos Anéis: O retorno do rei. (Tradução de Lenita Maria Rímoli
Esteves e Almiro Pisetta). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
A GRAÇA DOS VALA: O FILME O SENHOR DOS ANÉIS 203
Anel o permite subjugar seus servos ao seu propósito, mas conforme ele o faz
(“propagar-se” entre aqueles que ele controla), seu poder pessoal é reduzido. A
perda ou a destruição do Anel, portanto, significam uma perda de controle, até
de sua forma física. O filme capta o tema da “má tecnologia” e o representa na
consciência ambiental contemporânea, opondo o mago Saruman – um ambicioso
servo de Sauron, engajado em experimentos genéticos e na destruição da natureza
para abastecer suas fábricas – contra os Ents, o povo-árvore, que realiza sua
vingança espetacular sobre Isengard no segundo filme.
II - A INSUFICIÊNCIA DO FILME
Todavia, é importante notar que o filme é falho em muitos aspectos
relevantes. O próprio Tolkien, sem dúvida, o teria detestado. A ação é barulhenta
e implacável, as cenas dramáticas, muitas vezes, são excessivamente sentimentais.
As personagens principais foram distorcidas. Talvez, o exemplo mais óbvio seja
o próprio Frodo. Infantilizado, como os outros hobbits, Frodo, também, foi
despojado de quase toda a força de caráter e nobreza interior que demonstra
no livro. Em certo momento, ele permite que Gollum o coloque contra Sam,
em outro momento, expõe o Anel para o Nazgûl (numa cena infundadamente
inventada, passada em Osgiliath – de modo divertido e com razão Sam protesta:
“nós nem mesmo devíamos estar aqui!”), e na Fenda da Perdição ele continua a lutar
com Gollum, quase caindo ele mesmo dentro do fogo. Outras personagens sofrem
quase tanto ou mais nas mãos de Jackson – não Gandalf, talvez, não Boromir,
que são bem construídos em sua maior parte, mas Faramir, Elrond, e até mesmo
Aragorn, em alguns aspectos, possuem pouca semelhança com as personagens
do livro. A Galadriel de Cate Blanchett teve uma interpretação ruim – talvez ela
estivesse tentando pôr algum mistério de outro mundo na personagem, mas, ao
contrário, ela fez uma Galadriel simplesmente estranha e um pouco sinistra. Em
geral, os outros Elfos parecem mais tediosos, afetados e pomposos do que fortes,
apesar de delicados, graves, contudo amáveis e divertidos Elfos da obra-prima
de Tolkien. Nós os vemos principalmente à noite ou no crepúsculo, enquanto
Tolkien, muitas vezes, os põe (e certamente em Lothlórien) se deleitando em
plena luz do dia, mais brilhante e mais colorida do que qualquer coisa no mundo
que conhecemos. O Condado, também, é ligeiramente mal construído pelos
criadores do filme (embora a reconstrução do Bolsão seja convincente o suficiente).
Provavelmente, só um diretor inglês poderia ter entendido completamente como
o equilíbrio de humor e seriedade deveria ser mantido no caso do Condado.
Afinal, ele deveria representar o mundo da vida real dentro do romance e as
vigorosas representações do folclore rural inglês de Tolkien eram delicadamente
carinhosas. Para Jackson, o elemento caricatural prevalece, os habitantes do
Condado tornam-se muito ridículos e muito da complexidade da exploração de
A GRAÇA DOS VALA: O FILME O SENHOR DOS ANÉIS 205
Tolkien sobre a psique inglesa se perde. Isto é mais visível no final do terceiro
filme, quando o Expurgo do Condado (a conclusão necessária da história de
Tolkien) é completamente omitida e os Viajantes retornam para uma terra natal
que não foi, de modo algum, afetada pelos grandes eventos ocorridos no Sul.
Claro que muito pode ser dito para mitigar essas falhas. Algumas cenas
correspondem muito de perto ao livro. Creio que, por exemplo, a queda de
Gandalf em Moria, a pesca de Gollum no Lago Proibido, a morte de Boromir,
o acendimento dos faróis nas Montanhas Brancas, a cavalgada dos Rohirrim
e a maravilhosa cena final ao lado da Montanha da Perdição enquanto as
chamas engolem Frodo e Sam e as águias descem. Alguns dos momentos mais
emocionantes, no filme, envolvem imagens visuais e musicais originárias mais de
Jackson e sua equipe do que de Tolkien – ainda que pareçam ser verdadeiras ao
espírito da história original. Por exemplo, quando Aragorn cavalga para Edoras,
uma flâmula arrancada pelo vento cai aos seus pés, como se fosse um tributo
silencioso ao futuro Rei. Outro exemplo é o momento em que Gandalf encontra
Theóden sofrendo por seu filho. A chegada dos reforços Élficos ao Abismo de
Helm e a própria batalha, com seu final inesperado, são uma mistura de inspiração
tolkieniana e jacksoniana que funcionaram bem. Parece claro que a equipe de
Jackson e especialmente os roteiristas Fran Walsh e Philippa Boyens tinham um
profundo respeito pelo “professor Tolkien” (como eles o chamam no documentário
anexo) e desejaram ser fiéis ao seu legado, ainda que não tenham conseguido em
todos os aspectos. A canção de encerramento Into the West, belamente cantada
por Annie Lennox, capta a preocupação de Tolkien com a morte e a tragédia da
história. Ela transmite precisamente o “clima” da história de Tolkien, transpassada
de esperança cristã, e somente poderia ter sido escrita por um amante do livro.
O Grande Mar, com o som de suas ondas incessantes e os grasnados das gaivotas
brancas, representa para Tolkien o mundo espiritual que envolve a Terra-Média.
Além desse mar, os angélicos Vala presidem todas as Terras Imortais e a música do
mar ecoa a Grande Música que existia antes do tempo e era o próprio arquétipo
do tempo. A luz das estrelas que recai sobre as ondas é bela, em parte porque luz
e música são profundamente semelhantes na cosmologia de Tolkien: vibrações no
tempo que transmitem a harmonia do Um que é secretamente Três.
O filme é sobre a morte, mas é também sobre um homem realizando seu
destino por intermédio do autodomínio e do serviço aos outros, e este homem é,
claramente, Aragorn, que se transforma de uma personagem periférica, quando o
encontramos em A sociedade do anel, para uma personagem muito mais central na
segunda e terceira partes do filme. Este não é, contudo, o Aragorn do romance,
mas uma personagem mais moderna, inicialmente muito mais confusa e, no fim,
menos majestosa. Ele começa em um estado de rejeição, tendo renunciado a seu
direito ao trono há muito tempo, temeroso da própria fraqueza, que é a fraqueza
dos homens e de seu ancestral Isildur. O Anel não seria mais um problema para
a Terra-Média (supomos) se Isildur não o tivesse tomado em proveito próprio,
206 COMMUNIO • Stratford Caldecott
2
TOLKIEN. “Letter 131”. In: The Letters of J.R.R. Tolkien. [N. do E.: Em português: As cartas de
J.R.R. Tolkien. p. 140.]
208 COMMUNIO • Stratford Caldecott
sorte de estarem vivos3. Os costumes e as culturas são santificadas pelo tempo, seja
pelo bem ou pelo mal. No romance (ao contrário do filme), quando os homens
de Gondor sob o comando de Faramir comem juntos, primeiro eles ficam em
silêncio e fitam o oeste: olhando “para Númenor que era, e além para Eldamar
que é, e para o que está além de Eldamar e sempre estará”. Viver a lembrança do
passado, celebrá-lo, recitá-lo, é algo essencial para manter qualquer cultura viva e
em crescimento – ou de renová-la, quando estiver quase esgotada. Assim, quando
Aragorn é coroado Rei, faz eco às palavras de seu antepassado Elendil quando
este caminhou para enxugar a terra das ruínas de Númenor, milhares de anos
antes: “Do Grande Mar à Terra-Média eu venho. Neste lugar eu e meus herdeiros
permaneceremos até o fim do mundo”. No filme, o ator canta a letra para a música
que ele mesmo compôs, tão grande é sua identificação com o papel. Foi uma pena
que os diretores tenham insistido em pôr na boca de Aragorn, logo após a canção,
um discurso mais que desnecessário e desajeitado sobre “reconstruir nosso mundo”.
Da primeira à última, as civilizações da Terra-Média, sejam as sociedades
guerreiras de Rohan e Gondor ou as pacíficas comunidades agrícolas e
comerciantes que compõem o Condado, estão fundadas na memória e no
costume. É um erro moderno pensar que grandes personalidades podem crescer
sem estarem enraizadas no rico solo do passado, na memória de grandes feitos
e na fidelidade às promessas feitas ao longo de gerações. A civilização está
fundamentada em acordos que não podem ser quebrados sem conseqüências.
O grande exército dos mortos lutará para reconquistar sua honra a serviço do
Rei.
A reverência pelo mundo spiritual fundamenta a reverência que Tolkien
mostra pela Natureza e pela Tradição. O mundo da natureza e o mundo da
cultura têm uma importância para além de si mesmos. Eles possuem uma forma,
um significado. Eles revelam algo, uma beleza, que não está simplesmente
além de si mesmos, mas é intrínseca. O mundo é uma história, que um mestre
contador de histórias não poderia senão reconhecer. Histórias têm começo,
meio e fim; e têm um narrador. Há um padrão para a História do Mundo, além
do alcance ou domínio das personagens, como Gandalf, Aragorn, Sam e Frodo,
que, nela, atuam e nos diversos modos, tomar parte em diferentes momentos
da aventura. Cada acontecimento que ocorre, não importa o quão trivial ou
aparentemente acidental, tem um propósito no todo, e forma um zigue-zague
3
Esta famosa frase de G. K. Chesterton está no terceiro capítulo, “The Ethics of Elfland” [A ética
da Terra dos Elfos], de Orthodoxy [Ortodoxia] de 1908: “A tradição pode ser definida como uma
extensão do direito de voto, pois significa, apenas, que concedemos o voto às mais obscuras de todas as
classes, ou seja, a dos nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição se recusa a submeter-se
à pequena e arrogante oligarquia daqueles que parecem estar por aí meramente de passagem”. [N. do
E.: Substituímos a citação original em inglês pela passagem equivalente em português da seguinte
edição brasileira: CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. (Apresentação, notas e anexo de Ives Gandra
da Silva Martins Filho; tradução de Cláudia Albuquerque Tavares). São Paulo: Editora LTr, 2001.
pp. 69-70].
210 COMMUNIO • Stratford Caldecott
IV - UM ALERTA
A natureza, a tradição e a religião estão sob ataque no mundo moderno. Se
Tolkien conseguiu evocar uma nostalgia por essas coisas no mundo da imaginação,
isso não é fuga, mas terapia. Há três possíveis respostas a tal nostalgia. Uma é recuar.
Isso seria a verdadeira fuga, a fuga do sinistro “realista” que quer enterrar sua face no
mundo moderno para se esconder das profundas verdades despertadas para a vida
pelo O Senhor dos Anéis. Outra resposta é reavivar as memórias desta tripla reverência
em nossas vidas, tentando preservar a natureza, respeitando as tradições valiosas
de nossa cultura (chame, se quiser, de “conservadorismo com discernimento”)
e, finalmente, aprofundando a vida espiritual. Para católicos e ortodoxos, isto
significará uma participação nos sacramentos que celebram e renovam o significado
da História.
A terceira resposta, que é igualmente necessária, se tivermos sido “despertados”
por Tolkien, é discernir as maneiras em que o estilo moderno de vida abala a
segunda resposta, o retorno à religião. Em suas cartas publicadas, por exemplo,
Tolkien refere-se ao que chama de “tragédia e desespero” da confiança em relação à
tecnologia4. Na história, esta tragédia é vividamente ilustrada de diversas maneiras,
não menos pelo corrupto mago Saruman, a quem Barbárvore (a voz da natureza)
o chama “mente de metal e rodas” (para enfatizar esse ponto, Jackson faz Saruman
encontrar a morte no maquinário de Isengard). No mundo moderno, com desastres
ecológicos e agricultura mecanizada, vemos os devastadores e desumanos efeitos da
exploração puramente pragmática da natureza de Saruman.
O movimento romântico inglês, de William Blake (1757-1827) e Samuel
T. Coleridge (1772-1834) aos próprios membros do grupo The Inklings, acreditava
4
TOLKIEN. “Letter 75”. In: The Letters of J.R.R. Tolkien. [N. do E.: Em português: As cartas de
J.R.R. Tolkien. p. 88-89.].
A GRAÇA DOS VALA: O FILME O SENHOR DOS ANÉIS 211
que deve haver uma alternativa. Ao final do maravilhoso ensaio sobre educação, The
Abolition of Man [A abolição do homem], C. S. Lewis (1898-1963) escreve sobre
uma “ciência regenerada” do futuro que “não faria nem mesmo a minerais e vegetais o
que a ciência moderna ameaça fazer com o próprio homem. Quando explicasse algo, ela
não aboliria algo. Quando tratasse das partes, não esqueceria do todo”5.O objetivo da
nossa ciência atual, de modo geral, é obter poder sobre as forças da natureza [claro,
a busca também é por conhecimento, mas desde Francis Bacon (1561-1626) a
identificação do conhecimento com poder tem sido cada vez maior]. De acordo
com Lewis, a “oferta do bruxo” diz-nos o preço de todo esse poder: nada menos que
nossas próprias almas. A conquista da natureza transforma-se na conquista pela
natureza, isto é, pelos nossos próprios desejos ou pelos de outros; e aquele que aspira
ser o mestre do mundo, torna-se, no fim, um escravo6.
Tolkien sempre insistiu que sua fantasia não era uma alegoria. Mordor
não é supostamente a Alemanha Nazista ou a Rússia Soviética. “Perguntar se os
orcs ‘são’ comunistas é, para mim, é tão sensato quanto perguntar se os comunistas
são orcs”, escreveu certa vez7. Porém, ao mesmo tempo, não nega que a história
é “aplicável” aos assuntos contemporâneos e, de fato, afirmou isso8. É aplicável
não simplesmente por prover uma parábola para ilustrar o perigo da máquina,
mas para mostrar as razões desse perigo: preguiça e estupidez, orgulho, cobiça,
loucura e volúpia pelo poder, todos exemplificados nas diversas raças da Terra-
Média. Contra esses vícios apresentou coragem e cortesia, gentileza e humildade,
generosidade e sabedoria, naqueles mesmos corações. Há uma lei moral universal,
demonstra, mas essa não é a lei de um tirano. É uma lei de amor e perdão – a
única lei que torna possível que sejamos livres.
Nosso mundo tem mostrado muitas imagens do mal, e muito poucas
de heroísmo e atraente bondade. É triste que muitas das visões de humildade e
grandeza espiritual de Tolkien não tenham sido transportadas para as telas com
sucesso, mas devemos ser profundamente gratos a Peter Jackson e sua equipe pelos
elementos que foram para a tela. O panorama do cinema mudou para sempre.
5
LEWIS, C. S. The Abolition of Man: or Reflections on education with special reference to the teaching
of English in the upper forms of school. London: Fount, 1978. p. 47. [N. do E.: Os trechos citados
foram extraídos da seguinte edição brasileira: LEWIS, C. S. A Abolição do homem. (Tradução de
Remo Manarinno Filho). São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 75].
6
Idem. Ibidem. Capítulo 3, especialmente p. 43 [N. do. E: Na edição brasileira, ver: pp. 72-74].
7
TOLKIEN. “Letter 203”. In: The Letters of J.R.R. Tolkien. [N. do E.: Em português: As cartas de
J.R.R. Tolkien. p. 250.].
8
Idem. Ibidem.
212 COMMUNIO • Stratford Caldecott
No caso das forças do Mal, a relação de dependência fica ainda mais patente
na passagem em que Sauron descobre, no último momento, a estratégia de seus
inimigos:
[...] De repente o Senhor do Escuro percebeu a presença do hobbit, e seu Olho,
penetrando todas as sombras, atravessou a planície na direção da porta que ele
fizera; e a magnitude de sua própria loucura revelou-se a ele num clarão cegante,
e todas as estratégias de seus inimigos foram finalmente desnudadas diante de
seus olhos. Então sua ira incandesceu-se numa chama devoradora, mas seu medo
ergueu-se como uma vasta fumaça para sufocá-lo. Pois ele sabia do perigo mortal
que estava correndo, e percebia o fio pelo qual estava agora pendurado seu destino.
De todas as suas estratégias e teias de medo e traição, de todos os seus estrategemas
e suas guerras sua mente se libertou, e todo o seu reino foi atravessado por um
temor, seus escravos vacilaram, seus exércitos pararam e seus capitães, subitamente sem
liderança, desprovidos de vontade, hesitaram e se desesperaram. Pois foram esquecidos.
Toda a mente e o propósito do Poder que os controlava concentravam-se agora
com uma força arrasadora na Montanha. A um chamado seu, rodopiando com
um grito lancinante, numa última corrida desesperada voaram, mais rápidos
que os ventos, os nazgûl, os Espectros do Anel, e com uma tempestade de asas
arremessaram-se em direção ao sul para a Montanha da Perdição5.
– Cinco dias antes de minha partida nesta jornada, há onze dias, por volta desta
hora, ouvi o soar daquela corneta: parecia vir do norte, mas chegava fraco, como se
fosse um eco na mente. Achamos que era um mau presságio, meu pai e eu, pois não
tivéramos notícias de Boromir desde sua partida, e nenhuma sentinela em nossas
fronteiras o tinha visto passar. E três noites depois uma outra coisa, ainda mais
estranha, me aconteceu.
– Estava sentado á noite à beira do Anduin, na escuridão cinzenta sob uma pálida
lua nova, observando a correnteza sempre em movimento, e ouvindo o farfalhar
dos juncos tristonhos. Temos sempre o costume de vigiar as margens perto de
Osgiliath, que nossos inimigos agora em parte detém, e através das quais enviam
expedições para saquear nossas terras. Mas naquele dia o mundo todo adormeceu
à meia-noite. Então eu vi, ou tive a impressão de ter visto, um barco flutuando na
água, emitindo um vago brilho cinzento, um pequeno barco de formato esquisito com
uma proa alta, e não havia ninguém para remar ou conduzi-lo.
– Fui tomado de espanto, pois uma luz pálida o envolvia. Mas levantei-me e me
dirigi à margem, e comecei a caminhar para dentro da correnteza, pois me sentia
atraído por ele. Então o barco se virou na minha direção, diminuindo de velocida-
de e flutuando lentamente até chegar ao alcance de minha mão, mas eu não ousei
tocá-lo. Calava fundo, como se carregasse um grande peso, e conforme passou sob
meu olhar tive a impressão de que estava quase totalmente repleto de água limpa,
da qual emanava a luz; no seio da água, um guerreiro jazia dormindo.
– Havia uma espada quebrada sobre seu joelho. Vi muitos ferimentos em seu
corpo. Era Boromir, meu irmão, morto. Reconheci seus indumentos, sua espada,
seu amado rosto. De uma coisa apenas senti falta: a corneta. Uma coisa apenas não
reconheci: um belo cinto, que parecia ser feito de folhas de ouro, cingindo-lhe a
cintura. Boromir!, gritei eu. Onde está tua corneta? Aonde vais tu, ó Boromir? Mas
ele se fora, O barco voltou a acompanhar a correnteza e desapareceu tremeluzindo
noite adentro. Foi como um sonho, mas não foi um sonho, pois não houve despertar.
E não tenho dúvidas de que ele está morto e passou descendo o Rio em direção
ao Mar6.
nelas, geralmente - seus caminhos apontavam naquela direção, como se diz. Mas
acho que eles tiveram um monte de oportunidades, como nós, de dar as costas, apenas
não o fizeram. E, se tivessem feito, não saberíamos, porque eles seriam esquecidos.
Ouvimos sobre aqueles que simplesmente continuaram – nem todos para chegar a
um final feliz, veja bem; pelo menos não para chegar àquilo que as pessoas dentro
de uma história, e não fora dela, chamam de final feliz. O senhor sabe, voltar para
casa, descobrir que as coisas estão muito bem, embora não sejam exatamente iguais
ao que eram – como aconteceu com o velho Sr. Bilbo. Mas essas não são sempre
as melhores histórias de se escutar, embora possam ser as melhores histórias para
se embarcar nelas! Em que tipo de história teremos caído?
– Também fico pensando – disse Frodo. – Mas não sei. E é assim que acontece
com uma história de verdade. Pegue qualquer uma de que você goste. Você pode
saber, ou supor, que tipo de história é, com final triste ou final feliz, mas as pessoas
que fazem parte dela não sabem. E você não quer que elas saibam.
– Não, senhor, claro que não. Veja o caso de Beren: ele nunca pensou que ia pegar
aquela Silmaril da Coroa de Ferro em Thangorodrim. E apesar disso ele conseguiu,
e aquele lugar era pior e o perigo era mais negro que o nosso. Mas é uma longa
história, é claro, e passa da alegria para a tristeza e além dela - e a Silmaril foi
adiante e chegou a Eãrendil. E veja, senhor, eu nunca tinha pensado nisso antes!
Nós temos - o senhor tem um pouco da luz dele naquela estrela de cristal que a
Senhora lhe deu! Veja só, pensando assim, estamos ainda na mesma história! Ela está
continuando. Será que as grandes histórias nunca terminam?
– Não, nunca terminam como histórias - disse Frodo. – Mas as pessoas nelas vêm e
vão quando seu papel termina. Nosso papel vai terminar mais tarde - ou mais cedo.
– E então poderemos descansar e dormir um pouco – disse Sam. Sorriu de um
modo sombrio. – E quero dizer exatamente isso, Sr. Frodo. Quero dizer um
simples descanso comum, e sono, e acordar para uma manhã de trabalho no
jardim. Receio que isso seja tudo que estou esperando todo o tempo. Todos
os grandes planos importantes não são para pessoas como eu. Mesmo assim,
fico imaginando se seremos colocados em canções e histórias. Estamos numa,
é claro; mas quero dizer: transformados em palavras, o senhor sabe, contadas
perto da lareira, ou lidas de grandes livros com letras pretas e vermelhas, anos
e anos depois. E as pessoas vão dizer: “Vamos escutar sobre Frodo e o Anel!” E
eles vão dizer: “Sim, essa é uma de minhas histórias favoritas. Frodo foi muito
corajoso, não foi, papai?” “Sim, meu filho, o mais famoso dos hobbits, e isso
significa muito”.
– Significa muito demais – disse Frodo e riu, um riso longo e claro, que vinha do
fundo de seu coração. Um som assim não se ouvia naquelas partes desde que Sauron
chegara à Terra-média. Sam de repente teve a impressão de que todas as pedras
estavam escutando e todas as rochas se debruçavam sobre eles. Mas Frodo não
deu atenção a elas e riu de novo. – Olhe, Sam, ouvir você me faz rir como se a
história já estivesse escrita. Mas você deixou de fora um dos principais personagens
Samwise, o bravo. “Quero ouvir mais sobre Sam, papai. Por que ele não falou mais
coisas, papai? É disso que eu gosto. Acho engraçado. E Frodo não teria ido muito
longe sem Sam, teria, papai?”
– Ora, Sr. Frodo – disse Sam –, o senhor não devia caçoar. Eu estava falando sério.
A “COMUNHÃO DOS SANTOS” NA OBRA DE J. R. R. TOLKIEN 219
– Eu também estava – disse Frodo. – Eu também estou. Estamos indo meio rápido
demais. Você e eu, Sam, ainda estamos enfiados nos piores lugares da história, e é
bem provável que alguns digam neste ponto: “Feche o livro, papai, não queremos
ler mais nada”.
– Pode ser – disse Sam –: mas eu não diria isso. Coisas feitas e terminadas, que já
fazem parte das grandes histórias, são diferentes. Veja bem, até Gollum poderia ser
bom numa história, melhor do que tê-lo ao seu lado, de qualquer forma. E houve
um tempo em que ele mesmo gostava de histórias, por conta própria. Será que ele se
considera o herói ou o vilão?
– Gollum! – chamou ele – Você gostaria de ser o herói ora, onde ele se meteu de novo?7
Essa espécie de ligação mística entre todos os homens, pela qual uns
influenciam a vida de outros, não só pelo exemplo, mas pelas próprias ações
boas ou más, fazendo crescer ou diminuir o Bem no mundo, é lembrada em
outra conhecida saga do século XX: Guerra nas Estrelas. A percepção que Luke
Skywalker, Darth Vader, Obi-Wan-Kenobi, Yoda e a Princesa Leia Organa, para
citar apenas as principais personagens, têm do que está acontecendo com os
demais, é atribuída à Força que os sustêm, como o Deus que se confunde com a
Natureza e a Energia do Universo, típica da visão panteísta de Baruch Spinoza
(1632-1677), assumida por Einstein. Assim fala dela Stephen J. Sansweet:
A Força – tanto a presença mística quanto a natural, é um campo de energia que
infunde e conecta toda a galáxia. A força é gerada por todos os seres vivos, que a
cercam e a penetram com sua essência. Como a maioria das formas de energia, a
Força pode ser manipulada e o conhecimento e a predisposição para assim fazer,
dá forças aos cavaleiros Jedis, aos que estão do lado negro e aos Sith8.
10
ESCRIVÁ, São Josemaria. Caminho. São Paulo: Quadrante, 9ª edição, 1999.
11
TOLKIEN, J. R. R. O Silmarillion. (Organizado por Christopher Tolkien; tradução de Waldéa
Barcellos). São Paulo: Martins Fontes, 2007. pp. 4-7.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 221
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 221-252
STAR WARS: EPISÓDIO II – ATAQUE DOS CLONES. Direção: George Lucas. Produção: Rick McCallum.
Roteiro: Jonathan Hales e George Lucas. Intérpretes: Ewan McGregor, Natalie Portman,
Hayden Christensen, Ian McDiarmit, Samuel L. Jackson, Christopher Lee e outros.
Manaus: Twentieth Century Fox Home Entertainment Brasil, 2002. DVD (144 minutos).
STAR WARS: EPISÓDIO III – A VINGANÇA DOS SITH. Direção: George Lucas. Produção: Rick
McCallum. Roteiro: George Lucas. Intérpretes: Ewan McGregor, Natalie Portman,
Hayden Christensen, Ian McDiarmit, Samuel L. Jackson, Christopher Lee e outros.
Manaus: Twentieth Century Fox Home Entertainment Brasil, 2005. DVD (146 minutos).
3
Além de dos dois DVDs dos desenhos animados Clone Wars [Guerra dos Clones] de Genny
Tartakovsky, do filme em 3D e seriado de televisão Star Wars: The Clone Wars [Guerra nas
Estrelas: Guerra dos Clones] de Dave Filoni, e dos seis filmes supracitados, diversas séries de
livros com estórias de Star Wars, escritas por diferentes autores, foram publicadas em língua
inglesa. Limitar-nos-emos, no presente ensaio, às obras literárias que narram o mesmo conteúdo
dos filmes, a saber:
BROOKS, Terry. Star Wars: Episode – I The Phantom Menace. (Based on the screenplay and
story by George Lucas). New York: Ballantine Books, 1999.
SALVATORE, S. A. Star Wars: Episode II – Attack of the Clones. (Based on the story and
screenplay by George Lucas). New York: Ballantine Books, 2002.
STOVER, Matthew. Star Wars: Episode III – Revenge of the Sith. (Based on the screenplay and
story by George Lucas). New York: Ballantine Books, 2005.
LUCAS, George. Star Wars: Episode IV – A New Hope. New York: Ballantine Books, 1976.
GLUT, Donald F. Star Wars: Episode V – The Empire Strikes Back. (Based on the story by George
Lucas and the screenplay by Leigh Brackett and Lawrence Kasdan). New York: Ballantine
Books, 1980.
KAHN, James. Star Wars: Episode VI – Return of Jedi. (Based on the story by George Lucas and
the screenplay by Lawrence Kasdan and George Lucas). New York: Ballantine Books, 1983.
4
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda et alli. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2ª edição revista e aumentada, 1986. p. 774.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 223
Por sua vez ‘literatura de ficção’ é definida, no chamado “pai dos burros”,
como: “O romance, a novela e o conto”5.
Na obra O problema da ficção na filosofia analítica, Mário A.
L. Guerreiro, ao buscar uma definição filosófica para o conceito de
‘ficção’, ressalta que a dicotomia entre a ‘ficção’ e a ‘não-ficção’ “atende
perfeitamente ao propósito informativo da linguagem jornalística, pois entre
os livros mais vendidos, temos de um lado romances e contos e de outro ensaios
e biografias”. Todavia, o professor de Filosofia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) ressalta que “de um ponto de vista filosófico, a
supramencionada dicotomia suscita algumas indagações bastante delicadas e
intrincadas” 6. Sobre o assunto, Guerreiro afirma que:
No mundo contemporâneo é bastante freqüente uma confusão das noções de
‘ficção’ e ‘romance’. A mera admissão de que ‘romance’ é um gênero ficcional
permite identificar prontamente uma confusão do tipo pars pro toto. […] Cabe
lembrar, no entanto, que há outros gêneros literários e alguns destes, como
é o caso da biografia, não são considerados ficcionais. É também bastante
freqüente a confusão das noções de ‘literatura’ e ‘ficção’. […] Não obstante,
há textos de ficção que não são literários e textos de literatura que não são
ficcionais7.
Ao partir da análise lógica da linguagem, promovida pela Filosofia
Analítica, Mário Guerreiro define ficção como um “produto da livre imaginação
humana apresentando ao menos uma estória”8. Com base nessa definição, o
autor afirma que:
Diferente da literatura, a ficção, como já vimos, não depende necessariamente
da linguagem comum. Ela pode ser do tipo iconográfico puro (quadrinhos
sem balões, painéis com narrativas pictóricas, etc) ou pode conjugar os tipos
iconográfico e verbal (cinema do gênero narrativo-romanesco)9.
A ‘ficção científica’ é definida pelo “dicionário Aurélio” como: “Ficção
(3) cujo enredo se baseia em geral, no desenvolvimento científico e nas situações
decorrentes de tal desenvolvimento no tempo e no espaço”10. Acreditamos que há
mais precisão na seguinte definição:
A ficção científica é uma forma de narrativa, desenvolvida a partir do século XIX, que
lida principalmente com o impacto da ciência, tanto a verdadeira como a imaginada,
sobre a sociedade ou os indivíduos. O termo é usado tanto na chamada versão ‘hard’,
para definir qualquer obra que inclua o fator ciência como componente essencial da
5
Idem. Ibidem., p. 1040.
6
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. O problema da ficção na filosofia analítica. Londrina:
Editora UEL, 1999. p. 7.
7
Idem. Ibidem., p. 8.
8
Idem. Ibidem., p. 16.
9
Idem. Ibdem., p. 17.
10
FERREIRA et alli. Op. cit., p. 774.
224 COMMUNIO • Alex Catharino
narrativa, quanto no sentido ‘soft’, para referenciar qualquer tipo de fantasia literária que
utilize a ciência no enredo11.
11
Nossa definição está fundamentada nas seguintes obras: SCHOEREDER, Gilberto. Ficção
Científica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986; TAVARES, Bráulio. O que é Ficção Científica. São
Paulo: Brasiliense, 1986.
12
KIRK, Russell. “A imaginação moral”. (Tradução de Gustavo Santos; notas de Alex Catharino).
In: COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVIII, Número 1, (Edição
101), janeiro / abril 2009: 103-119. p. 105.
13
As histórias de ficção científica de H. G. Wells são caracterizadas tanto por visões utópicas quanto
distópicas do futuro. Em algumas das estórias a humanidade caminha em direção à inexorável
catástrofe até que, por intermédio da razão ou de fatores externos, acabam atingindo a paz e o
progresso. Outras narrativas são marcadas pelo pessimismo, discutindo questões, ainda atuais,
como a ameaça de guerra nuclear, o advento do Estado Mundial e o problema da manipulação de
animais. Dentre as diversas obras de H. G. Wells, destacamos: The Time Machine [A máquina do
tempo] de 1896, The Island of Dr. Moreau [A ilha do Dr. Moreau] de 1896, The Invisible Man [O
homem invisível] de 1897, The War of the Worlds [A guerra dos mundos] de 1898 e The First Men in
the Moon [Os primeiros homens na Lua] de 1901. Em língua portuguesa essas obras se encontram
na seguinte edição: Obras de H. G. Wells. São Paulo: Cia. Nacional, 1956. 10v.
14
LEWIS, C. S. A abolição do homem. (Tradução de Remo Mannarino Filho). São Paulo: Martins
Fontes, 2005. pp. 51-77. Acreditamos que percepção de Lewis sobre o problema dessa forma de razão
instrumental, típica da modernidade, ajuda a esclarecer alguns pontos importantes da crítica de João Paulo
II ao irracionalismo e de Bento XVI aos excessos de um racionalismo que leva ao voluntarismo. Uma análise
mais profunda sobre a defesa da razão no pensamento de C. S. Lewis se encontra em: PATRICK, James A.
“A Razão em G. K. Chesterton e C. S. Lewis”. (Tradução de Márcia Xavier de Brito). In: COMMUNIO:
Revista Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVI, Número 2 (Edição 95), janeiro / abril 2007: 363-
370. Sobre a defesa do Magistério Romano ao equilíbrio entre fé e razão, ver:
JOÃO PAULO II, Papa. Carta encíclica Fides et Ratio: Sobre as relações entre fé e razão. São Paulo:
Paulinas, 2ª edição, 1998.
RATZINGER, Cardeal Joseph. “Fé, Verdade e Cultura: Reflexões sobre a encíclica Fides
et Ratio de João Paulo II”. (Tradução de Alex Catharino). In: COMMUNIO: Revista
Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVII, Número 1 (Edição 97), janeiro
/ abril 2008: 251-176.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 225
como a “mais escapista de todas as formas literárias”, cujos autores de tais obras
tentam agir como profetas de uma Nova Era. Sobre o assunto, afirma Tolkien:
Esses profetas freqüentemente predizem (e muitos parecem ansiar por isso) um
mundo como uma grande estação ferroviária de telhado de vidro. Mas para eles,
em regra, é muito difícil deduzir que as pessoas farão numa cidade mundial
como essa. Poderão abandonar a “plena panóplia vitoriana” em favor de trajes
mais folgados (com zíperes), mas usarão essa liberdade principalmente, ao que
parece, para brincar com brinquedos mecânicos no jogo de mover-se em alta
velocidade, que logo satura. A julgar por alguns desses contos, ainda serão
luxuriosos, vingativos e gananciosos como sempre, e os ideais de seus idealistas
mal chegam além da esplêndida idéia de construir mais cidades do mesmo
tipo em outros planetas. É de fato uma era de “meios aperfeiçoados para fins
deteriorados”. Faz parte da enfermidade essencial desses dias – produzindo o
desejo de escapar, não de fato da vida, mas sim de nosso tempo presente e da
miséria que nós mesmos fizemos – estarmos agudamente conscientes tanto da
feiúra de nossas obras quanto de seu mal. Assim, para nós o mal e a feiúra
parecem indissoluvelmente aliados. Achamos difícil conceber o mal e a beleza
juntos15.
BENTO XVI, Papa. “Fé, razão e universidade: Recordações e reflexões”. In: COMMUNIO:
Revista Internacional de Teologia e Cultura, Volume XXVI, Número 2 (Edição 95), janeiro
/ abril 2007: 177-188.
Sobre o discurso de Bento XVI na Universidade de Regensburg e suas relações com a tradição
filosófica ocidental e com os ensinamentos da teologia católica e do Magistério Romano, em
especial as reflexões de João Paulo II, ver: SCHALL S.J., James V. The Regensburg Lecture. South
Bend: St. Augustine’s Press, 2007. Escrevi uma resenha sobre esse importante livro do padre James
V. Schall S.J., que foi publicada em: COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura,
Volume XXVI, Número 2 (Edição 95), janeiro / abril 2007: 430-436.
15
TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. (Tradução de Ronald Kyrmse). São Paulo: Conrad, 2006. pp. 72-73.
16
George Lucas afirma, numa entrevista no documentário Empire of Dreams, que Star Wars é uma
Space Opera [Ópera espacial]. O conceito de Space Opera foi criado pelo escritor Wilson Tucker
(1941-2006), em 1941, para definir um tipo de ficção científica ‘soft’ que enfatiza o aspecto
dramático da narrativa e onde a tecnologia é utilizada apenas como um meio na luta entre o bem e
o mal. Além de Star Wars, incluímos nesse gênero as seguintes obras: 1) os livros da série Barsoom
de Edgar Rice Burroughs (1875-1950); 2) as estórias em quadrinhos de Buck Rogers, criada por
Philip Francis Nowlan (1888-1940), e de Flash Gordon, criada por Alex Raymond (1909-1956),
bem como os filmes e seriados de TV inspirados nessas aventuras; e 3) os seriados de TV e os filmes
da série Star Trek [Jornada nas Estrelas] de Gene Roddenberry (1921-1991).
226 COMMUNIO • Alex Catharino
Aventuras da Távola Redonda: Estórias medievais do Rei Artur e seus cavaleiros. (Organização e
tradução de Antonio L. Furtado). Petrópolis: Vozes, 2003.
A Demanda do Santo Graal: Manuscrito do século XIII. (Editado por Heitor Megale). São Paulo:
T. A. Queiroz / Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
TROYES, Chrétien de. Perceval ou O romance do Graal. (Tradução de Rosemary Costhek
Abílio). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
TROYES, Chrétien de. Romances da Távola Redonda. (Tradução de Rosemary Costhek Abílio).
São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Destacamos, também, o filme Excalibur, de 1981, baseado na versão da lenda do Rei Artur, escrita
por Sir Thomas Malory (1405-1471), dirigido por John Boorman e estrelado por Nigel Terry,
Helen Mirren, Nicol Williamson, Nicholas Clay, Cherie Lunghi, Liam Neeson, Patrick Stewart e
Gabriel Byrne.
A IMAGINAÇÃO MORAL EM STAR WARS 229
herói de mil faces]25. Numa entrevista para seu discípulo, o jornalista Bill Moyer,
Joseph Campbell afirma que:
Existe uma certa seqüência de ações heróicas, típica, que pode ser detectada em
histórias provenientes de todas as partes do mundo, de vários períodos da história.
Na essência, pode-se até afirmar que não existe senão um herói mítico arquetípico,
cuja vida se multiplicou em réplicas, em muitas terras, por muitos, muitos povos.
Um herói lendário é normalmente o fundador de algo, o fundador de uma nova era,
de uma nova religião, uma nova cidade, uma nova modalidade de vida. Para fundar
algo novo ele deve, ele deve abandonar o velho e partir em busca da idéia-semente, a
idéia germinal que tenha a potencialidade de fazer aflorar aquele algo novo26.
escreveu o livro The Writer’s Journey: Mythic Structure For Writers [A Jornada do
Escritor: Estrutura Mítica para Roteiristas]31, publicado originalmente em 1990,
que serviu como modelo para os irmãos Andy Wachowski e Larry Wachowski
criarem a trilogia Matrix32.
Joseph Campbell é uma referência obrigatória para todos os pesquisadores
de mitologia comparada e história das religiões, principalmente sua obra The
Masks of God [As máscaras de Deus]33, que estuda a evolução de diferentes
tradições religiosas e míticas, ressaltando seus principais pontos de convergência.
Entretanto, ao longo da década de 1980, a Walt Disney Company recebeu críticas negativas e
bilheterias abaixo do esperado com os longas-metragens de animação: The Fox and the Hound [O
cão e a raposa] de 1981, The Black Cauldron [O caldeirão mágico] de 1985, The Great Mouse
Detective [As peripécias do ratinho detetive] de 1986 e Oliver & Company [Oliver e sua turma] de
1988. O memorando de Christopher Vogler foi a base de uma formula de sucessos que revigorou
a Disney, criando um ‘renascimento’ dos estúdios, numa nova fase de críticas positivas e altas
bilheterias com os longas-metragens de animação: The Little Mermaid [A pequena sereia] de 1989,
The Rescuers Down Under [Bernardo e Bianca na terra dos cangurus] de 1990, Beauty and the Beast
[A bela e a fera] de 1991, Aladdin de 1992, The Lion King [O rei leão] de 1994, Pocahontas de 1995,
The Hunchback of Notre Dame [O corcunda de Notre Dame] de 1996, Hercules [Hércules] de 1997,
Mulan de 1998, e Tarzan de 1999.
VOGLER, Christopher. The Writer’s Journey: Mythic Structure For Writers. Studio City: Michael
31
Entretanto, uma parcela significativa das análises de Campbell foi adotada, nas
décadas de 1960 e 1970, como fundamento do modo de vida defendido por
diversas correntes do movimento hippie, transformando esse pesquisador, ao
lado do filósofo da ciência norte-americano Thomas Kuhn (1922-1996)34 e do
físico austríaco Fritjof Capra35, num dos principais profetas da chamada New
Age ou Nova Era36. Dentre os grandes problemas das concepções de Campbell,
herdeiras, de certa forma, da psicologia junguiana, está a incapacidade de
compreender que no pluralismo das religiões existe uma unidade na verdade,
tal como ressaltado pelo filósofo e educador norte-americano Mortimer
Adler (1902-2001), ao destacar os erros desse autor nas análises acerca do
cristianismo37. A última obra de Joseph Campbell, The Inner Reaches of Outer
Space: Metaphor as Myth and as Religion [A extensão interior do espaço exterior:
A metáfora como mito e religião]38, publicada originalmente em 1986, é um
exemplo típico dessa visão New Age, que permeia o pensamento do autor, pois,
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. (Tradução de Beatriz Viana Boeira e Nelson
34
to Eliot. (Introduction by Henry Regnery). Washington D.C.: Regnery, 7th Revised Edition,
2001. pp. 419-432.
44
ELIOT, T. S. After Strange Gods: A Primer of Modern Heresy. London: Faber and Faber, 1934;
ELIOT, T. S. Christianity & Culture. San Diego / New York / London: Harcourt, 1976. Ver,
também: KIRK, Russell. Eliot and His Age: T. S. Eliot’s Moral Imagination in the Twentieth Century.
(Introduction by Benjamin G. Lockerd Jr.). Wilmington: ISI Books, 2nd Revised Edition, 2008.
45
CATHARINO, Alex. “Russell Kirk (1918-1994)”. In: BARRETO, Vicente (Org.). Dicionário de
Filosofia Política. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.
46
KIRK. “A arte normativa e os vícios modernos”. p. 994.
47
Idem. Ibidem., p. 995.
KIRK, Russell. “The Errors of Ideology”. In: The Politics of Prudence. (Introduction by Mark C.
48
O fio condutor da jornada dos heróis de Star Wars é essa busca por normas
que permitam a pessoa viver em equilíbrio com a realidade, superando os limites
externos impostos por forças malignas. Na já citada entrevista para o jornalista
Bill Moyers, Joseph Campbell afirma que:
Os mitos servem, primariamente, para fornecer instruções fundamentais [...]. A
sociedade atual não nos dá a instrução mítica adequada [...], e por isso os jovens
têm dificuldades de encontrar o seu caminho. [...] É perfeitamente possível alguém
ser influenciado pelos ideais e pela autoridade dos outros, a ponto de ignorar o
que desejaria e poderia ser. Quem cresce num ambiente extremamente restritivo
e autoritário dificilmente chegará a atingir o conhecimento de si mesmo. [...] A
história do filme [Guerra nas Estrelas] tem a ver com uma operação de princípios [...].
As máscaras de monstros, usadas pelos atores de Guerra nas Estrelas, representam
a verdadeira força monstruosa, no mundo moderno. Quando a máscara de Darth
Vader é retirada, você vê um rosto informe, de alguém que não se desenvolveu como
indivíduo humano. O que se vê é uma espécie de fase indiferenciada, estranha e
digna de pena. [...] Darth Vader não desenvolveu a própria humanidade. É um
robô. É um burocrata, vive não nos seus próprios termos, mas nos termos de um
sistema imposto [...]. O filme comunica. É concebido numa linguagem que fala
aos jovens, e isso é o que conta. Ele pergunta: Você será uma pessoa de coração,
verdadeiramente humana [...]. Guerra nas Estrelas não é apenas uma história de
moralidade, o filme tem a ver com os poderes da vida, conforme sejam plenamente
realizados ou cerceados e suprimidos pela ação do homem52.
não teria acontecido. Ele seria revelado como uma figura patética ao final do
filme. Mas agora, acrescentando os episódios I, II e III, as pessoas começam a
ver a tragédia de Darth Vader, como era minha intenção original58.
Anakin e o transformar em Darth Vader, o Sith que destruiu a Ordem Jedi e ajudou
Palpatine a implantar o tirânico Império Galáctico. Após uma luta de sabres de luz,
em que foi derrotado por Obi-Wan, Darth Vader ficou mutilado e foi obrigado a viver
dentro do traje mecânico, servindo ao Imperador Palpatine e sofrendo pela morte da
esposa62. Vinte anos após a transformação em Darth Vader, ele, finalmente, matou
Obi-Wan numa luta com sabres de luz, mas não conseguiu impedir que o novo
discípulo do antigo mestre destruísse a Estrela da Morte63. Ao descobrir que o jovem
que destruiu a estação de combate era o filho de Anakin com Padmé, escondido por
Yoda e Obi-Wan, Darth Vader tentou capturar Luke, seduzi-lo para o Lado Negro da
Força, revelando que era seu pai, e, com o apóio dele, tomar o lugar do Imperador
Palpatine64. Percebendo que Luke era forte demais para ser seduzido apenas por ele,
Darth Vader levou o filho para o Imperador, que secretamente desejava colocar
o jovem no lugar do pai. Após ser derrotado por Luke, Darth Vader testemunha
o sofrimento do filho, que é atacado por Palpatine, e resolve salvar o jovem,
voltando a ser Anakin Skywalker e matando o Lorde Sith65.
A saga de Anakin Skywalker é resumida por George Lucas com as seguintes
palavras:
Ao assistir ao filme na ordem correta, a história esclarecerá que Anakin é “o
Escolhido”. Mesmo quando Anakin se transforma em Darth Vader, ele ainda é o
escolhido [...]. A profecia é que Anakin equilibrará a Força e destruirá os Sith. Ele
se torna Darth Vader. Darth Vader se torna o herói. Darth Vader destrói os Sith,
ou seja, ele mesmo e o Imperador. Ele faz isso porque é redimido por seu filho.
Então a profecia é real. Fazendo isso ele se redime, deixa de ser Darth Vader e volta
a ser Anakin66.
O criador dessa saga defende que ela é “a história da redenção de Darth Vader”.
É a jornada de uma pessoa que acreditávamos ser o vilão, mas que na verdade é a
vítima. É uma história “sobre o vilão tentando recuperar sua humanidade”. George
Lucas continua o seu comentário, afirmando que:
Todos imaginavam Darth Vader como um vilão sem coração, que era simplesmente
mau. Mas no fim não é nada disso, ele é, apenas, alguém que perdeu tudo67.
fim dessa ditadura, não é uma mera figura literária “eucatástrofica”68. Vivemos
num contexto marcado pelo fenômeno que o filósofo Eric Voegelin (1901-1985)
denominou “desculturação”69 e, por influência dessa desordem social, somos,
muitas vezes, levados, de forma inconsciente, a esquecer que a singularidade
da pessoa se manifesta em diferentes campos da ação humana e, como destaca
Russell Kirk, que as desordens institucionais que nos cercam são, na verdade,
reflexo da desordem espiritual dos indivíduos70. Da mesma forma que o mal pode
ser decorrente da ação de um único indivíduo, a redenção poderá ser obra de
um único homem. Devemos sempre ter em mente as palavras de São Paulo, na
Epístola aos Romanos, quando, ao tratar de Adão e de Jesus Cristo, afirma que:
Assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens,
do mesmo modo, da obra de justiça de um só, resultou para todos os homens
justificação que traz a vida. De modo que, como pela desobediência de um só
homem, todos se tornaram pecadores, assim pela obediência de um só, todos se
tornarão justos (Rm 5,18-19)71.
68
O autor da série O Senhor dos Anéis, J. R. R. Tolkien, denominava “eucatástrofe” o ponto,
improvável e ao mesmo tempo verdadeiro, numa narrativa, quando tudo parece perdido e, uma
inesperada virada, garante um final feliz. Tolkien afirma que a eucatástrofe “nega a derrota final
universal, e nessa medida é evangelium, dando um vislumbre fugaz da Alegria, Alegria além das
muralhas do mundo, pungente como o pesar” (TOLKIEN. Sobre histórias de fadas. p. 77).
69
Um dos fenômenos significativos da crise da modernidade é a “desculturação”, fruto das
deformações ideológicas, que, ao distorcerem o entendimento da realidade, alijam a noção de
verdade da esfera política e fazem a prática política parecer sem sentido num mundo tecnocrático
e coletivista, dominado pelo relativismo moral. Na perspectiva voegeliniana a Ciência Política
deve ser a descrição verdadeira da realidade, captando a complexidade das instituições sociais e de
seus símbolos. Opondo-se às ideologias materialistas que, ao negar os aspectos espirituais da ação
humana, a reduzem apenas às relações de poder, Eric Voegelin trata a representação política como algo
inseparável da representação existencial do homem no universo, apontando para uma antropologia
filosófica que exalta a importância da composição entre razão e subjetividade, denominada ‘espírito’
(noûs). Ver: CATHARINO, Alex. “Eric Voegelin (1901-1985)”. In: BARRETO, Vicente (Org.).
Dicionário de Filosofia Política. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.
KIRK, Russell. The Roots of American Order. (Edited with a New Foreword by Forrest McDonald).
70
buscando entender como o Senado Romano, após assassinar Júlio César (100-
44 a.C.), entregou o poder para Otávio Augusto (63 a.C.-14 A.D.) ou como
na Revolução Francesa, após a decapitação de Luís XVI (1754-1793), Napoleão
Bonaparte (1769-1821) se corou imperador dos franceses. O cineasta norte-
americano acredita que os riscos de uma democracia entregar os poderes a um
tirano “acontece muito mais do que se imagina”, “tem mais a ver com o precedente
histórico”, e continua afirmando que:
Geralmente, você imagina que um grupo assume o poder. […] Mas o processo
é mais interessante quando o governo é entregue para compensar o fato dos
representantes eleitos não concordarem em nada e serem corruptos. Portanto, para
limpar a bagunça, alguém precisa chegar e consertar tudo76.
Na República Galáctica podemos ver a crença num salvador da ordem pública
no seguinte diálogo entre a Senadora Padmé Amidala e Anakin Skywalker, onde este
último já está influenciado pela visão política autoritária do Chanceler Palpatine:
[Padmé]: Você não gosta mesmo de políticos!
[Anakin]: Gosto de dois ou três. Mas não estou certo sobre um deles. Não acho
que o sistema funcione!
[Padmé]: Como você o faria funcionar?
[Anakin]: Os políticos deveriam sentar, discutir o problema, concluir o que é
melhor para o povo, e agir.
[Padmé]: É o que fazemos! Mas nem sempre as pessoas estão de acordo.
[Anakin]: Então, deviam ser convencidas.
[Padmé]: Por quem?
[Anakin]: Não sei! Alguém.
[Padmé]: Você?
[Anakin]: Claro que não!
[Padmé]: Quem, então?
[Anakin]: Alguém sábio.
[Padmé]: Está me soando como uma ditadura.
[Anakin]: Bem... se é o que funciona...77
A sociedade não é o que o indivíduo gostaria que fosse. [...] O neurótico tenta se
proteger desses desapontamentos sonhando acordado. Sonha com um mundo no
qual sua vontade seja decisiva. [...] Na sua fantasia, é um ditador. [...] Na vida real,
quando fala com os seus conterrâneos, tem que ser mais modesto. Contenta-se
em apoiar a ditadura de alguma outra pessoa. [...] Quem apóia uma ditadura, o
faz por achar que o ditador está fazendo o que, na sua opinião, precisa ser feito79.
e ser encarregado por seu novo mestre de eliminar os líderes separatistas, ele se
encontra com Padmé, antes de cumprir a última missão, e tenta justificar seus
atos no seguinte diálogo:
[Padmé]: O que está havendo?
[Vader]: Os Jedi tentaram derrubar a República.
[Padmé]: Não posso acreditar nisso!
[Vader]: Vi o Mestre Windu tentar assassinar o Chanceler.
[Padmé]: Anakin, o que você vai fazer?
[Vader]: Não vou trair a República. Sou leal ao Chanceler. E ao Senado. E a você82.
George Lucas explica esse diálogo entre Vader e Padmé da seguinte forma:
Ninguém que é mau pensa em si mesmo assim. Sempre acha que está fazendo o
bem, mesmo que não esteja. Então é uma questão de como uma pessoa boa acaba
se tornando má83.
[Padmé]: Ele sabe. Quer ajudar você. Anakin, tudo que eu quero é o seu amor.
[Vader]: O amor não salvará você. Só meus novos poderes podem fazer isso.
[Padmé]: A que preço? Você é uma pessoa boa. Não faça isso!
[Vader]: Não vou perder você como perdi a minha mãe. Estou me tornando mais
poderoso do que qualquer Jedi já sonhou. Faço isso para proteger você.
[Padmé]: Venha embora comigo. Ajude-me a criar nosso filho. Deixe tudo para
trás enquanto pode.
[Vader]: Você não me entende? Nós não temos mais que fugir. Eu trouxe a paz
para a República. Tenho mais poder que o Chanceler. Eu posso derrubá-lo e
nós dois juntos podemos governar a Galáxia! Fazer as coisas como queremos
que sejam!
[Padmé]: Não acredito no que estou ouvindo. Obi-Wan tinha razão. Você
mudou.
[Vader]: Não quero ouvir falar de Obi-Wan. Os Jedi se voltaram contra mim.
Não faça o mesmo.
[Padmé]: Não reconheço mais você. Anakin, você está partindo meu coração.
Está indo por um caminho que não posso trilhar.
[Vader]: Por causa de Obi-Wan?
[Padmé]: Por causa do que você fez. O que planeja fazer. Pare agora. Volte a ser
quem era! Eu amo você.
[Vader]: Mentirosa!85.
A já citada definição de Star Wars como uma Space Opera nos permite
entender o porquê da repetição de certos temas. Sobre esse assunto, explica
George Lucas:
Os filmes são compostos como se fosse música, onde vários temas acontecem. Os
temas se repetem com orquestrações diferentes. [...] É tudo orquestrado como uma
obra musical, onde você tem um tema melódico que é usado continuamente86.
[Vader]: Luke, você pode destruir o Imperador. Ele já previu isso. É o seu destino.
Junte-se a mim. Junto poderemos governar a Galáxia como pai e filho. Venha
comigo. É sua única saída87.
enquanto ele dormia. É uma ironia. Ele podia salvar os outros da morte, mas
não a si próprio.
[Anakin]: É possível aprender a ter esse poder?
[Palpatine]: Não de um Jedi90.
Entretanto, na busca pelo poder, existe uma importante diferença entre Palpatine
e Anakin. Todas as tramas do primeiro tinham como finalidade alcançar o poder
absoluto. O segundo buscava o poder como um meio de salvar a vida da pessoa amada
e, ao mesmo tempo, trazer ordem à sociedade, implantando a paz e a justiça. Em termos
morais a finalidade dos atos de Palpatine era intrinsecamente má, já com Anakin o
problema reside nos meios errados utilizados na busca de fins corretos. Anakin se tornou
uma vítima dos planos de Palpatine porque tentou, por seus próprios meios, solucionar
os problemas da realidade que o cercava. A tragédia de Anakin Skywalker / Darth Vader
se assemelha ao drama da mente moderna indisciplinada, que, nas palavras de Russell
Kirk, “imaginando perseguir fatos, muitas vezes segue uma vela de defunto até a beira do
abismo – e, às vezes, por sobre essa beira”. Para Kirk:
Se o homem depender apenas de seus poderes racionais privados, ele perderá a sua
fé – e talvez o mundo, também, arriscando a sua própria natureza num jogo de
xadrez contra o Diabo. Mas se o homem se fortifica com disciplinas normativas, se
vale da imaginação e das lições do passado, e por isso é capaz de confrontar mesmo
um adversário diabólico104.
102
“O poder temporal de melhorar o mundo, / Manter a ordem, como o mundo a entende.. / Aqueles
que põem fé na lei do mundo / Não controlada pela lei de Deus, / Em sua altiva ignorância só provocam
desordem, / Tornando-a mais rápida, procriam doenças fatais, / Degradam aquilo que exaltam.
Compartilhar o poder com o Rei... / Eu era o Rei, era seu braço, sua melhor razão. / Mas o que já foi
exaltação / Seria agora degradação apenas”. Ver: ELIOT, T. S. Assassínio na Catedral. In: T. S. Eliot:
Obra Completa – Volume II: Teatro. (Edição bilíngüe com texto original em inglês e tradução para o
português de Ivo Barroso). São Paulo; Arx, 2004. p. 35.
103
ACTON, John Emerich Edward Dalberg-. “Acton-Creighton Correspondence”. In: Selected
Writings of Lord Acton – Volume II: Essays in the Study and Writing of History. (Edited by J. Rufus
Fears). Indianapolis: Liberty Classics, 1986. p. 383.
104
KIRK. “A arte normativa e os vícios modernos”. p. 1011.
248 COMMUNIO • Alex Catharino
A boa sociedade, segundo Kirk, deve ter suas bases nos princípios de
Ordem, Liberdade e Justiça110. A ordem, na perspectiva kirkeana, é a primeira
necessidade da alma e da sociedade111, pois a condição humana seria insuportável
se não houvesse a percepção de uma harmonia na existência112. Kirk afirma que:
A ordem, no campo da moral, é a concretização de um corpo de normas
transcendentes – de fato uma hierarquia de normas ou padrões – que conferem
105
HAYEK, Friedrich August von. Direito, Legislação e Liberdade: Uma nova formulação dos princípios
liberais de justiça e economia política – Volume I: Normas e Ordem. (Apresentação e supervisão da
tradução por Henry Maksoud; tradução de Anna Maria Copovilla, José Ítalo Stelle, Manuel Paulo
Ferreira e Maria Luiza X. de A. Borges). São Paulo: Visão, 1985. p. 33.
KIRK, Russell. The American Cause. (Edited with a New Introduction by Gleaves Whitney).
106
2º) a Ordem Dirigida, denominada por Hayek de Taxis, que é uma ordem exógena
ou ordenação construída pela vontade humana, sendo uma ordem artificial119.
119
Idem. Ibidem. p. 38.
120
VOEGELIN. A nova ciência da política. p. 50.
Ver o filme Star Wars: Episódio IV – Uma nova esperança. Ver, também, o livro: LUCAS. Star Wars:
121
V - CONCLUSÃO
O projeto original da revista Communio, elaborado por Hans Urs von
Balthasar (1905-1988), consiste em fazer ver como a fé católica “encarnou,
desde sempre, em fenômenos culturais”, discernindo o que há de cristão, mesmo
que implícito, “nas realidade culturais que vivemos”124. Nesse sentido, as obras de
fantasia mitopoética, como é o caso de Star Wars, podem desempenhar, num
ambiente cultural marcado pela ‘degradação normativa’ ou ‘desculturação’, uma
importante função catequética ao ressaltar valores morais, que se apresentados
de outra forma seriam rechaçados pela dominante mentalidade relativista e
hedonista. A imaginação moral veiculada pela série Star Wars pode ser um valioso
instrumento da nova evangelização, fornecendo alegorias capazes de colaborar na
formação integral da pessoa.
A saga Star Wars, ao longo dos seis filmes da série, ressalta alguns
ensinamentos importantes, que tentaremos resumir agora. A primeira lição é
que, apesar de muitas vezes estar oculto, a existência do mal é real e ele age no
mundo. Um segundo ponto a ser destacado são os riscos da corrupção pelo poder,
principalmente o poder político absoluto. Todavia, a primeira corrupção é a da
alma. Podemos nos corromper por boas causas. A corrupção da alma transforma
a pessoa num ser desorientado que é levado a lutar, às vezes inconscientemente,
contra o que pretendia defender, se voltando contra os verdadeiros valores da
Tradição. Uma alma desorientada tenta corromper outras pessoas, usando a
violência ou a malícia para corrompê-los. Outro ensinamento de Star Wars é que
o mal deve ser combatido com os valores e meios adequados, mas, sem nunca
se perder a dimensão do princípio da verdade e da caridade, pois, o que está em
jogo, nessa luta, é a salvação da alma do homem decaído.
Entretanto, da mesma forma que o papel pedagógico da fantasia
mitopoética não deve ser subvalorizado, não seria correto sobrevalorizar essas
narrativas ficcionais, buscando mensagens subliminares além das alegorias
apresentadas explicitamente. No caso específico de Star Wars, o próprio George
Lucas fez a seguinte advertência:
Outro aspecto destes filmes, que às vezes é esquecido, é que são vagamente frívolos,
já que não se levam muito a sério. Eles tentam ser muito realistas e tudo mais, mas
o objetivo é ter uma aventura hilariante e uma boa diversão. Às vezes as pessoas
tentam ver mais do que está neles ou descartá-los como sem importância, mas a
realidade está entre um extremo e o outro125.
126
CHESTERTON, G. K. “A autoridade e o aventureiro”. In: Ortodoxia. p. 204.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 253
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 253-271
*
Artigo publicado originalmente em Revue Catholique Internationale: Communio, Tome XXXIII,
6, novembre-décembre 2008: 37-54. Texto traduzido, do original em francês para o português, por
Maria Francisca Alves de Souza.
254 COMMUNIO • Isabelle Rak
no caráter por sua vez infantil do Guardião das Chaves e das Terras de
Hogwarts, especialmente quando se trata de recolher ou cuidar das criaturas
muito perigosas ou impossíveis de domesticar. Observamos que os jovens
heróis apóiam Hagrid em suas provações (a condenação do hipogrifo Bicuço,
em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban4, e o enterro da aranha gigante
Aragogue, em Harry Potter e o enigma do Príncipe5), desempenhando em
relação a ele um papel consolador em que a relação paterna é praticamente
invertida. Trata-se ali de uma bela relação de troca e de afeição mútuas, mas
onde o papel protetor e pedagógico do pai aparece distribuído igualmente
entre Hagrid e seus jovens alunos.
Ainda que disponha de uma personalidade muito diferente, Sirius
Black pertence à mesma categoria. Como Hagrid, ele pouco se preocupa com
o perigo, e tem gosto pelo risco levado até à inconsciência, a ponto de se
fazer identificar pelos Malfoy quando, sob sua forma canina, ele acompanha
Harry até a estação de trem de King’s Cross6. Enquanto padrinho de Harry,
supostamente deve substituir-se ao pai e assumir junto àquele uma autêntica
função paterna. Ora, durante a estadia de Harry na casa do padrinho no
“Largo Grimmauld, número doze”, Sirius remói sua amargura e se isola
com seu hipogrifo Bicuço, ao invés de passar seu tempo com o afilhado7.
Mais ainda: Sirius leva Harry a assumir riscos, e lamenta amargamente que
o filho de seu melhor amigo não tenha herdado os talentos de seu pai neste
ponto8. Com efeito, Sirius busca, em Harry, o amigo muito querido que seu
pai fora para ele. Em contrapartida, é Harry quem protege Sirius: ele o salva
dos Dementadores, em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban9; e não pára
de correr em seu socorro quando, em Harry Potter e a Ordem da Fênix, o crê
prisioneiro de Lorde Voldemort no Ministério da Magia10. Por força de ser
igualitária, a relação pai-filho de Sirius com Harry, tal como de Harry com
Hagrid, inverte-se.
4
ROWLING, J. K. Harry Potter et le Prisonnier d’Azkaban. Paris: Gallimard, 1999. [N. do E.:
ROWLING, J. K. Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. (Tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 2000. pp. 265-267].
5
ROWLING. Harry Potter et le prince de Sang-Mêlé. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o enigma
do Príncipe. pp. 377-381].
6 ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da
Fênix. pp. 151-153, 162, 253-254].
7
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da Fênix. p. 132].
8
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da Fênix. p. 77-78].
9
ROWLING. Harry Potter et le Prisonnier d’Azkaban. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o
Prisioneiro de Azkaban. pp. 332-333].
10
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e a Ordem
da Fênix. pp. 589-634].
256 COMMUNIO • Isabelle Rak
V-A FACE DO M AL
O mal não é apenas identificável por suas conseqüências, ele tem
uma face, a de Lorde Voldemort, é personificado. A analogia com o Satã
cristão é aqui transparente: a beleza e os talentos de Tom Riddle, sua
18
ROWLING. Harry Potter et la Chambre des Secrets. p. 349. [N. do T.: ROWLING. Harry Potter
e a Câmara Secreta. p. 280].
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 259
19
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. p. 756. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e as Relíquias da Morte. p. 550].
20
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 576].
*
N. do E.: A Hidra de Lerna é um animal fantástico da mitologia grega, cujas inúmeras cabeças
de serpente (diferentes versões dizem ser sete, oito, nove ou até dez cabeças) se regeneravam mal
fossem cortadas. O animal possuía um corpo de dragão (ou de cão em algumas versões) e morava
no pântano de Lerna. Uma das cabeças era imortal e parcialmente de ouro. Foi derrotada por
Hércules no segundo dos doze trabalhos, por uma pedra atirada na cabeça imortal ou, em outras
versões, pela queima de cada cabeça, pelo sobrinho de Hércules, Jolau, após o corte, de modo a
evitar regeneração.
21
ROWLING. Harry Potter et le prince de Sang-Mêlé. p. 198. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e o enigma do Príncipe. p. 142].
260 COMMUNIO • Isabelle Rak
22
ROWLING. Harry Potter et la Coupe de Feu. pp. 494-505. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e o Cálice de Fogo. pp. 364-380].
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 261
IX - COMBATER O MAL
Frente a esta multiplicação das forças do mal, um pacifismo ingênuo está
aqui fora de questão. A única escolha a considerar é a luta, que sabemos longa,
penosa e muito cara em vidas humanas. A “guerra de morte zero” não é aqui
senão ilusão. Toda vitória contra Voldemort, na primeira guerra e, sobretudo,
na segunda, tem um preço exorbitante. Durante a segunda guerra, Harry vê
desaparecer a quase totalidade de seus mentores e alguns de seus colegas (Cedrico
Diggory, Sirius Black, Alvo Dumbledore, a coruja Edwiges, Alastor “Olho-Tonto”
Moody, o elfo doméstico Dobby, Fred Weasley, Remo Lupin, Ninfadora Tonks,
Severo Snape). Percebemos que o número de personagens importantes caídas no
combate é muito maior do que n’O Senhor dos Anéis, em que desaparecem, dos
companheiros humanos dos Hobbits, apenas Boromir e o rei Théoden. A luta
contra o mal é um empreendimento dramático, diante do qual é preciso não
esconder o rosto. O final feliz do enredo também é, talvez, uma “eucatástrofe”*,
mas em Harry Potter ela é vencida a um alto preço.
*
N. do E.: O autor da série O Senhor dos Anéis, J. R. R. Tolkien, denominava “eucatástrofe” o ponto,
improvável e ao mesmo tempo verdadeiro, numa narrativa, quando tudo parece perdido e, uma
inesperada virada, garante um final feliz. Para maiores detalhes sobre esse conceito ver a seguinte
obra: TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. (Tradução Ronald Kyrmse). São Paulo: Conrad
Editora do Brasil, 2006. Nessa obra Tolkien afirma que a eucatástrofe “nega a derrota final universal,
e nessa medida é evangelium, dando um vislumbre fugaz da Alegria, Alegria além das muralhas do
mundo, pungente como o pesar” (p. 77).
29
ROWLING. Harry Potter et le Prisonnier d’Azkaban. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o
Prisioneiro de Azkaban. pp. 274-276, 289-291].
30
ROWLING. Harry Potter et la Coupe de Feu. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o Cálice de
Fogo. pp. 440-442].
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 263
X - ESCOLHA E CONVERSÃO
Mais interiorizada, e, contudo, essencial para o engajamento neste combate
mortal, a “escolha” é um momento essencial na existência do ser humano. Esta
escolha começa já na distribuição dos alunos entre as diversas casas: contrariamente
às aparências, o Chapéu Seletor não dita ao jovem uma decisão que lhe é exterior,
mas o ajuda a discernir sua escolha mais profunda, que ele se contenta de ratificar.
Harry, na recusa de ir para Sonserina não é contrariado por este objeto mágico
que o envia, por fim, para Grifinória, a casa que ele prefere31. Encontramos, em
toda a obra, inúmeras alusões à necessidade de um engajamento concreto na
luta: “quando você tiver tido tempo de pensar nas coisas e decidir com quem está
sua lealdade”32, diz Snape a Quirino Quirrel, em Harry Potter e a Pedra Filosofal;
“chegou o momento em que os nossos caminhos se separam”33, sinaliza Dumbledore a
Fudge, o ministro da magia, ao final de Harry Potter e o Cálice de Fogo. E o lugar
em que se encontra Harry, após ter sido golpeado mortalmente por Voldemort, é
a estação de King’s Cross, a “Cruz”, mas, também, onde os caminhos se cruzam
e a escolha é proposta para “continuar” rumo ao verdadeiro além ou retornar
para o mundo dos vivos34. Mesmo a profecia, que parece introduzir um elemento
de fatalidade, não se realiza senão porque Voldemort nela acreditou, em vez de
colocar acima dela sua liberdade de ser humano35.
Observa-se, aliás, que é esta ausência de escolha que bem freqüentemente
leva as personagens para o mal: por oportunismo, no caso de Pedro Pettigrew,
que prefere seguir os mais fortes36; por desejo de ascensão social e de vingança,
no jovem Snape que não sabe escolher entre Voldemort e seu amor por Lílian37;
recusa de Fudge de tomar decisões corajosas, mas impopulares38. A não-escolha
é o que faz cair o ser humano na escravidão do mal. Inversamente, existe uma
possibilidade de conversão: é o caso do próprio Snape, cuja escolha então é total
31
ROWLING, J. K. Harry Potter à l’école des sorciers. Paris: Gallimard, 2000. [N. do E.: ROWLING,
J. K. Harry Potter e a Pedra Filosofal. (Tradução de Lia Wyler). Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2000.
pp. 107-108].
32
Idem. Ibidem. p. 224. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e a Pedra Filosofal. p. 195].
ROWLING. Harry Potter et la Coupe de Feu. p. 739. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e o
33
e definitiva. “O que quiser”39, responde ele a Dumbledore, que lhe pergunta o que
dará em troca por sua ajuda. Com este compromisso radical, Snape se tornará,
depois de Dumbledore, o inimigo mais encarniçado e mais eficaz de Voldemort.
XI - SOFRIMENTO E SACRIFÍCIO
Vimos que a vitória sobre o mal é extremamente custosa em vidas
humanas. Ela implica, da parte dos combatentes, na aceitação do sofrimento
e do dom de sua própria vida... temas que seriam provavelmente bem pouco
apreciados fora do mundo mágico de Harry Potter! Rowling não se contenta em
evocar, com variados níveis de detalhes, as numerosas provações por que passaram
suas personagens; algumas passagens mostram claramente que a provação é um
caminho de conversão. Disso testemunha o retorno de Snape, ditado pelo perigo
incorrido por Lílian Potter, e, em seguida, seu assassinato40, e o de Dumbledore,
quando sua irmã morre durante uma briga com seu melhor amigo Grindelwald41.
Sem falar de Harry, “homem marcado”42, que conheceu, muito jovem, terríveis
experiências; mas como Dumbledore lhe fez compreender, ao final de Harry Potter
e a Ordem da Fênix, “sofrer assim prova que você continua a ser homem! Esta dor faz
parte da sua humanidade...”43. A vitória contra o mal não pode ser obtida senão
sob esta condição: o dom das lágrimas. A dor é sempre um poderoso antídoto
contra o veneno material e espiritual que Voldemort tenta administrar a Harry;
em Harry Potter e a Câmara Secreta, a mordida do Basilisco, a princípio fatal, é
curada pelas lágrimas de Fawkes, a fênix de Dumbledore44; e, em Harry Potter e as
Relíquias da Morte, é enterrando Dobby, o elfo doméstico que morreu para salvá-
lo, que Harry consegue finalmente fechar seu espírito contra os pensamentos de
Voldemort:
Da mesma forma que Voldemort não conseguira possuir Harry quando o garoto
se consumira por pensar em Sirius, tampouco agora seus pensamentos conseguiam
penetrar Harry, enquanto chorava por Dobby. O pesar, aparentemente, repelia
Voldemort... embora Dumbledore, é claro, tivesse dito que era amor...45.
39
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as
Relíquias da Morte. pp. 526].
40
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. pp. 526-527].
41
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. pp. 557-558].
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. p. 1015. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a
42
a sua, de morrer por seus companheiros: “Você devia ter morrido! – rugiu Black – Morrer em
vez de trair seus amigos, como teríamos feito por você”50. Ora, pouco depois destas palavras,
Harry interpõe-se para impedir a morte de Pettigrew por Sirius e Lupin. Ele, que já havia
aprendido o valor do sacrifício nos dois episódios precedentes, sem dúvida sentiu o caráter
deslocado de tal injunção, não podendo o dom de si ser fruto de um imperativo externo,
mas de um ato de amor.
XII - DAR A VIDA
O tema do sacrifício está, evidentemente, onipresente ao final da narrativa e,
principalmente, quando Harry se dirige a Voldemort para salvar os defensores de Hogwarts
de uma morte certa. Apesar da aparente serenidade de sua atitude, este passo para a morte
é doloroso: porque ele se prepara para abandonar esta vida quando sua missão não está
concluída. Falta-lhe destruir uma Horcrux, Nagini, a grande serpente de Voldemort, e é a
Neville Longbottom, antes o menos dotado de seus camaradas, que ele confia esta tarefa
que ignora saber se será conduzida a termo51. Harry não está, portanto, seguro da utilidade
de seu próprio sacrifício, ele não vai para a morte com a certeza de haver concluído sua
obra. E ele não renuncia à vida com alegria no coração. Desde que sabe que seus dias estão
contados, ele subitamente aprecia seu valor e sua beleza:
[Ele] se sentiu mais vivo e mais cônscio de seu corpo vivente do qual jamais estivera. Por
que nunca apreciara o milagre que era, cérebro, nervos e coração pulsante? Tudo isso se
iria... ou pelo menos, ele os abandonaria52.
50
ROWLING. Harry Potter et le Prisonnier d’Azkaban. p. 400. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e o Prisioneiro de Azkaban. p. 302].
51
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as
Relíquias da Morte. pp. 538-541].
52
Idem. Ibidem. p. 739. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 538].
*
N. do E.: Todas as passagens da Sagrada Escritura citadas pelo autor ao longo do presente ensaio
foram substituídas pela versão em língua portuguesa da seguinte edição: BÍBLIA DE JERUSALÉM.
(Tradução do texto em língua portuguesa diretamente dos originais). São Paulo: Sociedade Bíblica
Católica Internacional / Paulus, 1995.
HARRY POTTER: QUANDO A MAGIA LIBERTA O DISCURSO 267
vida”53. Nesta perspectiva, Harry Potter é bem este homem maravilhado, cujo sacrifício é
realmente ditado pelo amor.
Por outro lado, ele sente dolorosamente em quê a morte de seus pais privou-o
de uma infinidade de momentos de felicidade... Se Rowling, como veremos, condena
firmemente aqueles que pretendem escapar à sua condição mortal, não é para fazer o elogio
da morte, mas para mostrar seu horror, a irreversibilidade e o escândalo que representa
para o gênero humano.
Todavia, a morte é igualmente destruidora para aquele que a comete,
para o assassino. O homicídio é o mais terrível dos pecados, o mais grave. A
extraordinária imagem das Horcruxes mostra a que ponto o fato de matar dilacera
e destrói a alma do criminoso*. Compreendemos então que Harry entenda, sem
53
HADJADJ, Fabrice. Réussir sa mort. Paris: Presses de la renaissance, 2005. pp. 136-137.
54
Idem. Ibidem. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a Ordem da Fênix. pp. 665-674].
55
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. p. 355. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter
e as Relíquias da Morte. p. 259].
N. do E.: As Horcruxes são as maiores e mais violentas das artes das trevas. Em Harry Potter e o
enigma do Príncipe, o professor Horácio Slughorn, interrogado por seu aluno Tom Riddle, futuro
Lord Voldemort, fala sobre o assunto, sem saber que este já havia produzido uma, no seguinte
diálogo:
– Horcrux é a palavra usada para um objeto em que a pessoa ocultou parte da própria alma. [...]
A pessoa divide a alma [...] e esconde uma metade dela em um objeto externo ao corpo. Então,
mesmo que seu corpo seja atacado ou destruído, a pessoa não poderá morrer, porque parte
de sua alma continuará presa à terra, intacta. Mas, naturalmente, a existência sob tal forma...
poucas pessoas iriam querer, Tom, muito poucas. A morte seria preferível.
– E como é que se divide a alma?
– Bem – respondeu Slughorn, constrangido –, você deve compreender que a alma deve
permanecer intocada e una. A divisão é um ato de violação, é contra a natureza.
268 COMMUNIO • Isabelle Rak
a menor dúvida, que é preferível ser morto a matar, e que, desta tomada de
consciência, ele tire as conclusões necessárias. E Voldemort, ao final das contas,
perecerá, não pela mão de Harry, mas pela própria mão, com o sortilégio de
morte que lança voltando contra si mesmo.
tratamento futuro de doenças incuráveis, talvez não fosse desejada pela autora,
mas a mensagem, intencional ou não, contorna habilmente ao transitar por
este mundo imaginário a censura que afeta essas questões, desde que abordadas
de forma explícita. Talvez o sucesso atual de certos romances fantásticos resida,
pelo menos em parte, na capacidade de enunciar verdades incômodas e que
precisamos tanto ouvir sob a forma simbólica, a única a escapar à vigilância dos
bem-pensantes.
A imortalidade adquirida por estes meios demoníacos, que são o assassinato
e a formação consecutiva de Horcruxes, não é, contudo, senão uma forma muito
degradada de existência: depois de sua primeira queda/derrota, Voldemort leva
uma vida impotente, privado da maioria de suas faculdades físicas. Da mesma
forma, os fantasmas, que não tiveram a coragem de aceitar uma forma completa
e irreversível de repouso, se encontram num meio-caminho que, definitivamente,
não é senão “uma fraca imitação da vida”57. Enfim, a suposta “pedra da ressurreição”,
uma das três “relíquias da morte”, não faz retornar à existência senão os fantasmas,
com os quais uma vida comum não é possível, pois a separação operada pela
morte é radical e não há meios de superá-la. Ou ainda, dito de outra forma por
Fabrice Hadjadj:
O mundo [...] matou a morte, mas não se trata absolutamente por meio de uma
ressurreição, é por uma morte redobrada em si mesma, por uma despossessão de
sua morte humana [...]. O mundo já faz de nós, por desespero, almas de outro
mundo58.
57
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. p. 1022. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a
Ordem da Fênix. p. 695].
58
HADJADJ. Op. cit., p. 209.
*
N. do E.: Diferente do texto original em inglês, ou da versão em francês, a tradução brasileira
(ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 259) não cita literalmente essa passagem da
Sagrada Escritura (“O último inimigo a ser destruído será a morte”). O mesmo não acontece com a
inscrição “Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará o vosso coração” (Idem. Ibidem. p. 257), retirada
do Evangelho de São Mateus (Mt 6,21), que se encontra no túmulo de Kendra Dumbledore e de
Ariana Dumbledore, respectivamente mãe e irmã de Alvo Dumbledore. Contrariando as críticas
de alguns cristãos, tanto católicos quanto protestantes, de que a série de livros e filmes Harry
Potter promove a bruxaria ou outras formas de ocultismo, a autora, J. K. Rowling, se defendeu,
numa entrevista, em 1999, para a CNN, dizendo que nunca tentou incentivar tais práticas.
270 COMMUNIO • Isabelle Rak
a morte59. Por esta via, é possível aceitar a morte para tornar-se seu verdadeiro
mestre. Aliás, Dumbledore trata, por vezes, a morte com certa desenvoltura,
e até mesmo com humor: “Afinal, para a mente equilibrada, a morte é apenas
a grande aventura seguinte”60. Atitude que não muda essencialmente quando a
morte se aproxima realmente dele, de início quando ela lhe é anunciada, e, em
seguida, quando ela lhe é finalmente administrada. O drama de Voldemort é
sua “incapacidade de compreender que há coisas muito piores do que a morte”61. A
tragédia da juventude de Dumbledore é disso prova. Contudo, é possível que o
velho diretor de Hogwarts talvez busque também reencontrar os seus no além?
De sua parte, Harry aceita a morte desde que compreende sua absoluta
necessidade, desde que entende sua dimensão salvadora, embora ele saiba que,
por outro lado, sua missão de destruir as Horcruxes não está cumprida. Ele só
se serve da pedra da ressurreição ao aproximar-se de seu próprio fim62. Situação
altamente paradoxal, mas que permite o único uso apropriado desta “relíquia
da morte”: aqueles que buscam reencontrar seus seres queridos, conservando ao
mesmo tempo sua própria vida, são mortos por ela, no final das contas, como é
o caso de Cadmo Peverell, o segundo irmão, em “O Conto dos Três Irmãos”63 ou
do próprio Dumbledore64. A pedra da ressurreição só é benéfica para aquele que
irá juntar-se aos que convoca ao utilizá-la. As personagens que estão em torno
de Harry (Lílian Potter, Tiago Potter, Sirius Black, Remo Lupin), quando de sua
Numa entrevista ao repórter Max Wyman, publicada em 26 de outubro de 2000 no Vancouver Sun,
J. K. Rowling afirmou: “Eu sou cristã e isso parece ofender bem mais os religiosos do que se eu dissesse que
não existe Deus. Sempre que fui perguntada se acreditava em Deus, eu respondi ‘sim’, porque acredito. Mas
ninguém nunca foi, realmente, mais fundo do que isso, e devo dizer que isso é bom para mim [...] Se eu
falar muito livremente sobre isso, acho que o leitor inteligente – tenha 10 ou 60 anos – poderá adivinhar
o que virá nos outros livros”. Um dos maiores defensores da importância catequética de Harry Potter
é o cardeal George Pell, Arcebispo de Sidney e Primaz da Austrália, que se declarou diversas vezes
um fã da série. Monsenhor Peter Fleetwood, na condição de conselheiro das conferências episcopais
européias, reafirmou, numa entrevista para a Rádio Vaticana em 2005, sua posição favorável à série,
demonstrando que ela pode ser um importante instrumento para a formação religiosa e moral de
crianças e adultos. A mesma defesa aparece nos artigos de Paolo Gulisano e de Edoardo Rialti,
publicados na edição em inglês, de 15 de janeiro de 2008, do L’Osservatore Romano. Todos os filmes
da série, até agora lançados, receberam críticas positivas da conferência episcopal norte-americana,
que os aconselha como um divertimento saudável para as famílias.
59
ROWLING. Harry Potter et les Reliques de la Mort. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as
Relíquias da Morte. p. 259].
60
ROWLING. Harry Potter à l’école des sorciers. p. 290. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e a
Pedra Filosofal. pp. 253-254].
ROWLING. Harry Potter et l’Ordre du Phénix. p. 968. [N. do T: ROWLING. Harry Potter e a
61
última expedição, não são “almas do outro mundo”, eles parecem estranhamente
vivos, e o protegem realmente dos Dementadores65, numa espécie de “comunhão
dos santos”. Ao entregar-se livremente à morte, conservando ao mesmo tempo
intacto seu amor pela vida, Harry se torna verdadeiro mestre da morte, não
porque ele a tenha evitado, mas porque a atravessou. As conseqüências salvadoras
do sacrifício de Harry aparecem desde seu retorno à vida: Voldemort perdeu
quase todos os seus poderes e suas vítimas são misteriosamente poupadas: “Fiz o
que minha mãe fez. Protegi-os de você”, diz Harry a Voldemort antes de seu último
enfrentamento. “Você não reparou que nenhum dos feitiços que lançou neles são
duradouros?”66. Depois desta provação, ele renuncia então, muito logicamente,
às duas relíquias que representam a aspiração de Voldemort: o controle total do
mundo e a recusa da morte.
Assim como em O Senhor dos Anéis ou nas Crônicas de Nárnia, a dimensão
fantástica de Harry Potter permite exprimir realidades que seriam, sem dúvida,
razoavelmente mal aceitas, no mundo atual. O tema do herói sacrificado é,
certamente, sempre muito apreciado, mas raras são as obras deste gênero que
ressaltam, com tanta insistência, o preço deste sacrifício, o horror da morte, a
necessidade de deixar-se instruir pelo sofrimento. Mais raras ainda são aquelas
que mostram, com tanta profundidade, as conseqüências terríveis de um desejo
de imortalidade que passaria pela eliminação do outro. E o que dizer acerca da
alusão quase explícita à Satã e à possibilidade real da danação? Aquilo que está
ausente em nossos catecismos já se encontra nesta corrente literária que é objeto
deste número da Communio: se ali se encontra o meio, ao menos para um espírito
menos instruído sobre a Revelação, para suprir a estas falhas, então talvez certas
formas de Fantasia representem, para além de sua qualidade artística e do prazer
de sua leitura, uma forma original de pedagogia cristã.
Isabelle Ledoux-Rak nasceu em 1957. Antiga aluna da École Normal Supérieur (ENS),
apresentou tese de doutorado em Física na Universidade de Orsay. É professora e pesquisadora
em Fotônica na ENS em Cachan e membro do comitê de redação das revistas Communio e
Réssurection.
65
Idem. Ibidem. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. pp. 543-544].
66
Idem. Ibidem. p. 788. [N. do E.: ROWLING. Harry Potter e as Relíquias da Morte. p. 574].
Carranca (1962)
Escultura em madeira de Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany (1882-1985)
Proveniente de Juazeiro do Norte, CE
Coleção Paulo Pardal
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 273
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 273-276
Continue lendo:
Contam que o mauari, querendo matar o sono, o esperou num galho de pau.
– Eu vou matar este sono; agora vou vigiar para matá-lo.
Esperou. Não demorou muito tempo. Viu vir um vulto.
– Parece ser o sono que vem.
Dizem que, quando o vulto estava já perto, e que quando o sono estava bem perto,
cochilou, e de repente voou gritando: Cuá! cuá! cuá!... E foi-se embora o mauari.
– Ora, veja, meu coração, não soube quando cochilei, mas agora eu o espero
outra vez.
Esperou. Então viu, ainda outra vez, perto uma escuridão que se aproximava.
– Ele aí vem, agora eu o flecho com o meu bico.
Já estava chegando perto, quando cochilou; de repente abriu os olhos, assustou-se
e foi-se embora, voando, a gritar:
– Cuá!... cuá!... cuá!...
Assim acontece todas as noites, desde a mais remota antiguidade.
Não sei se teve, ao ler esses dois textos, a mesma reação de surpresa e
pasmo que tive, há mais de cinqüenta anos, ao topar com eles: o primeiro, num
livro de Curt Nimuendaju (1883-1945), The Apinaye, publicado em inglês
em 1939; e o segundo, na Poranduba amazonense, de João Barbosa Rodrigues
(1842-1909), que é de 1890. Franz Kafka (1883-1924) ou Jorge Luis Borges
(1899-1986) poderiam ter escrito, de jeito mais conciso, qualquer um desses
dois contos. E você certamente se lembra daquela obra-prima recolhida por José
Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) em O selvagem (livro de 1876), “Como
274 COMMUNIO • Alberto da Costa e Silva
rapaz que não era homem nem mulher mergulhou no rio, e as jovens apaixonadas o
imitaram e desapareceram para sempre.
Após ter contado essa história, a moça retrato da lua não mudou o seu comportamento.
Não se decidia por nenhum dos rapazes que continuavam a assediá-la. As raparigas da
aldeia, com dó, voltaram a interceder por eles. Então, a Retrato da Lua prometeu
que contaria, noite após noite, a cada uma delas, separadamente, a razão pela qual
não podia atendê-las. E a cada uma delas “essa parecença de moça mostrou que era
homem, não mulher”.
Uma noite, ela foi para o rio. As moças que a seguiram viram-na ser envolvida por
um grande fogo frio, que subiu para o céu e desapareceu na lua. Meses depois,
todas as raparigas estavam grávidas. Como os mais velhos perguntassem de quem
eram os filhos, elas responderam: –“Daquela moça retrato da lua que se sumiu do
meio de nós”.
De Herbert Baldus não me esquece a lição de que, mal nos afastamos das
cidades, o índio se redesenha no brasileiro. Até mesmo em algumas cidades, num
passado recente, o índio estava em nós. Menino, armei arapucas como um curumim e
aprendi a descansar acocorado. Dormi em rede até a minha vinda, aos doze anos, para
o Rio de Janeiro. Gosto de banhos demorados. Não passo sem farinha de mandioca.
E, às vezes, a um canto de passarinho, surpreendo-me a perguntar de quem será a
alma que ele abriga.
Várias histórias de índios que encontrei nos livros, eu já as tinha ouvido em
minha infância. Não apenas as que todos conhecem, como a de Mani e a do veado e
da onça que dividiam a mesma casa, mas também a dos homens que dormiam como
morcegos, de cabeça para baixo, pendurados numa viga pelos joelhos. Lembro-me do
tom de voz e dos gestos com que minha ama Teté me explicava que os bichos podiam
sem esforço virar gente, e a gente, bicho, mas não saberia reproduzi-los. Recordo as
suas histórias, quase todas de índios. Como, porém, as que nos chegam nos livros,
muito delas se perdeu – às vezes, o que era essencial ou mais surpreendente – na
passagem da fala para o ouvido, e do ouvido para a mão que escreve, e desta para os
olhos que lêem.
Quando atingi a maioridade, o meu namoro com a África, que começara na
adolescência, transformou-se em paixão. Arrumei os livros sobre índios nas prateleiras
do alto das estantes. Continuei, no entanto, a ler com interesse os que me caíam nas
mãos. Não me derramo em exemplos, mas voltei mais de uma vez, atentíssimo, a
alguns dos textos incluídos na História dos Índios no Brasil, organizada por Manuela
Carneiro da Cunha, e aqui tenho, na estante ao meu lado, quatro obras de Betty
Mindlin, das quais saí com grande ganho. Pois o índio não deixou de ser a corda do
meu arco, que é o Atlântico, e me ajudou a compreender os povos da outra margem
e o que somos.
Hans Urs von Balthasar nasceu no dia 12 de agosto de 1905, em Lucerna, na Suíça. Fez os
estudos universitários em Viena, Berlim e Zurique, defendendo tese de doutorado em Literatura
Alemã, em 1928. Foi ordenado sacerdote em 1936. Autor de uma obra monumental, um dos
mais influentes teólogos do século XX e, com Henri De Lubac (1896-1991) e Joseph Ratzinger,
o fundador, em 1972, da revista Communio. Em 29 de maio de 1988, o Papa João Paulo II
anunciou que o criaria cardeal, no consistório de 28 de junho de 1988. Faleceu no dia 26 de
junho de 1988, em Basiléia, na Suíça.
*
Na festa da Ascensão, em 1983, na Reunião Internacional do editores da Communio, em Varsóvia,
na Polônia, Hans Urs von Banthasar apresentou esta oração, que foi publicada, em português, pela
primeira vez em Communio: Revista Internacional Católica, Ano IX, Número 4, julho / agosto 1992:
354.
278 COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 278-283
ORTODOXIA
G. K. Cherterton
Prefácio de Philip Yancey
Traduzido por Almiro Pisetta
São Paulo: Mundo Cristão, 2008. (263 páginas)
Marcelo Coelho
Professor de Jornalismo Cultural nas Faculdades Cásper Líbero, em São Paulo, e
colunista do jornal Folha de São Paulo
Cordeiro (1989)
Detalhe de afresco de Cláudio Pastro
Convento Maria Imaculada, Embu, SP
284 COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 284-286
Ubiratan Iorio
Professor de Economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Presidente
Executivo do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP) e Membro
do Conselho Editorial de COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura.
COMMUNIO • Revista Internacional de Teologia e Cultura 289
VOL. XXVIII, Nº1 (JAN. / MAR. 2009): 289-292
Rodrigo Simonsen
Graduado em Propaganda e Marketing pela ESPM e Aluno do Programa de Estudos Pós-
graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP)
A CRÍTICA DA RELIGIÃO
Urbano Zilles
Porto Alegre: Edições Est, 2009. (224 páginas)
Svesci Communio
Editor Responsável: Adalbert Rebic
Krscanska Sadasnjost, Marulicev trg 14, HR 41000 Zagreb. Croácia.