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REVISTA DE

MORFOLOGIA
URBANA
Revista da Rede Lusófona de Morfologia Urbana

2020
Volume 8
Número 1
Equipe editorial

Editores-chefes: Júlio Celso Vargas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Renato T. de Saboya, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Vinicius M. Netto, Universidade Federal Fluminense, Brasil

Editor Associado: Vítor Oliveira, Universidade do Porto, Portugal

Editoras Assistentes: Fernanda Careta Ventorim, Universidade Federal Fluminense, Brasil


Bibiana U. Borda, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

Consultores: Giancarlo Cataldi, Università degli Studi di Firenze, Itália


Ian Morley, Chinese University of Hong Kong, China
Jeremy Whitehand, University of Birmingham, Reino Unido
Kai Gu, University of Auckland, Nova Zelândia
Michael Conzen, University of Chicago, EUA
Peter Larkham, Birmingham City University, Reino Unido

Quadro Editorial: Bruno Zaitter, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil


Cláudia Monteiro, Universidade do Porto, Portugal
David Viana, Nottingham Trent University, Reino Unido
Frederico de Holanda, Universidade de Brasília, Brasil
Giuseppe Strappa, Sapienza Università di Roma, Itália
Isabel Martins, Universidade Agostinho Neto, Angola
Jorge Correia, Universidade do Minho, Portugal
José Forjaz, Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique
Judite Nascimento, Universidade de Cabo Verde, Cabo Verde
Luísa Batista, Universidade do Porto, Portugal
Luiz Amorim, Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Mário do Rosário, ISCTEM, Moçambique
Paulo Pinho, Universidade do Porto, Portugal
Renato Leão Rego, Universidade Estadual de Maringá, Brasil
Romulo Krafta, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Stael de A. P. Costa, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Teresa Calix, Universidade do Porto, Portugal
Teresa Marat-Mendes, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal
Vicente C. Sendra, Universitat Politècnica de València, Espanha
Xosé Lois Suarez, Universidade da Coruña, Espanha

Os autores são os únicos responsáveis pelas opiniões expressas nos textos publicados na ‘Revista
de Morfologia Urbana’. Os Artigos (que não deverão exceder as 8.000 palavras, devendo ainda
incluir um resumo com um máximo de 200 palavras), as Perspetivas (que não deverão exceder as
1.000 palavras), os Relatórios e as Notícias referentes a eventos futuros deverão ser submetidos
pelo sistema da Revista, mediante cadastro do autor correspondente e login na plataforma. As
normas para contributos encontram-se nas diretrizes para autores.

Desenho original da capa - Karl Kropf. Desenho das figuras - Vítor Oliveira

REDE LUSÓFONA DE MORFOLOGIA URBANA ISSN 2182-7214


REVISTA DE MORFOLOGIA URBANA
Revista da Rede Lusófona de Morfologia Urbana

Volume 8 Número 1 2020


e00173 Vinicius M. Netto, Julio Celso Vargas e Renato T. de Saboya
A revolução dos dados e a nova ciência das cidades (Editorial)

SEÇÃO TEMÁTICA: A NOVA CIÊNCIA DAS CIDADES E A REVOLUÇÃO DOS


DADOS

e00151 Romulo Krafta e Alice Rauber


Morfologia urbana e a revolução dos dados

e00168 João Meirelles, Camilo Rodrigues Neto, Fernando Fagundes Ferreira, Fabiano
Lemes Ribeiro e Claudia Rebeca Binder
Morfologia urbana e a revolução dos dados

e00140 Ana Luiza Favarão Leão, Hugo Queiroz Abonizio, Sylvio Barbon Júnior e
Milena Kanashiro
Identificação de composições da paisagem urbana: uma abordagem de deep
learning

e00137 Karine de Almeida Paula, Eleusy Natalia Miguel e Wagner José da Silva Freitas
A cidade patrimonial e turística: uma análise do constructo da imagem e apropriação
do centro histórico de Tiradentes – MG a partir das mídias sociais

SEÇÃO ABERTA

e00088 Milton Luz da Conceição


Questões fronteiriças: Florianópolis e Olivença, duas faces da mesma moeda.

e00091 Amanda Martins Marques da Silva, Gisele Silva Barbosa e Patricia Regina
Chaves Drach
Avaliação de vizinhança LEED e análise microclimática: um estudo de caso da
morfologia urbana do Porto Maravilha, RJ, Brasil

PERSPETIVAS

e00171 Mayra Gamboa González e Juan Ángel Demerutis Arenas


Big Data e Análise Urbana: Ciência da cidade nas economias em desenvolvimento

e00141 Flávia da Fonseca Feitosa


Big Data e Urban Analytics à brasileira: questões inerentes a um país
profundamente desigual

e00156 Rodrigo Firmino, Debora Pio e Gilberto Vieira


Revolução periférica dos dados em tempos de pandemia global

e00159 Fabiano L. Ribeiro


A Física das Cidades

e00175 Vinicius M. Netto e Fabiano Ribeiro


In Memoriam: João Meirelles
seção temática
A NOVA CIÊNCIA DAS CIDADES E
A REVOLUÇÃO DOS DADOS
Morfologia urbana e a revolução dos dados

Romulo Kraftaa , Alice Rauberb


a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento de Urbanismo, Programa de Pós-Graduação
em Planejamento Urbano e Regional, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: krafta@ufrgs.br
b
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento de Urbanismo, Programa de Pós-Graduação
em Planejamento Urbano e Regional, Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: alicerauber@hotmail.com

Submetido em 5 de junho de 20201. Aceito em 29 de junho de 2020.

Resumo. Morfologia Urbana é um campo altamente dependente de dados


espaciais urbanos. Sua dificuldade de obtenção constituiu durante muito
tempo obstáculo ao desenvolvimento de pesquisas na área, porém, mais
recentemente, o aumento na disponibilidade de dados, a emergência do big
data e o crescente desenvolvimento de ferramentas e tecnologias de
informação, vem abrindo novas possibilidades para explorar digitalmente o
território. Não se trata apenas de disponibilidade abundante de dados e
softwares para manipulá-los, mas novas capacidades de integrá-los, o que
encoraja a cruzar fronteiras disciplinares. O presente artigo tem como foco a
relação entre o campo da morfologia urbana, caracterizado por contornos
bem definidos em termos de quais dados são requeridos, e o que tem sido
feito na dita fronteira do conhecimento, onde dados de diferentes tipos são
combinados. Como contribuição este trabalho identifica perspectivas para
futuras pesquisas, mostrando como a morfologia urbana pode se beneficiar
dessa revolução dos dados, em especial utilizando-se de novos mecanismos
descritivos e analíticos. Isso é evidenciado através da exploração de grafos
temporais, hipergrafos e grafos multicamadas, ainda pouco empregada nos
estudos urbanos, mas que demonstra potencial para: a) descrições
multidimensionais da forma urbana; b) explorações de análises do espaço-
tempo.
Palavras-chave. morfologia urbana, big data, redes multicamadas, redes
temporais

Introdução compatibilidade, atualidade, combinados


com técnicas particulares de coleta e registro,
Por muito tempo, na verdade desde os
escala espacial e temporal, tudo tratado de
momentos iniciais da ciência urbana, a
forma setorial e localmente diferenciadas
indisponibilidade de dados sobre as
terminaram por constituir uma babel de
diferentes realidades urbanas constituiu um
dados desencontrados e descontinuados em
dos principais obstáculos ao seu
cada cidade. O esforço para realizar essas
desenvolvimento. Seja para alimentar longos
tarefas geralmente consumiu a quase
e minuciosos procedimentos de classificação
totalidade do tempo e recursos das eventuais
de componentes e atividades, seja para testar
equipes técnicas dos órgãos técnicos
hipóteses deduzidas mediante elaboração
municipais, relegando para um plano
intelectual abstrata, a tarefa de coletar,
secundário e subdesenvolvido as tarefas
registrar, estruturar e disponibilizar dados
analíticas propriamente ditas e suas
suficientes para fundar análises quantitativas
subsequentes projeções, explorações e
sempre pareceu maior, mais difícil, cara e
formulações teóricas e metodológicas. Em
demorada dentre todas as possíveis
resumo, o planejamento urbano tem se
atividades de pesquisa urbana. Problemas
resumido a coletar dados e, com algum
relativos a tipo, formato, agregação,
esforço, reconhecer algum tipo de padrão
durabilidade, delimitação geográfica,
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socioespacial mais visível. Eventuais planos, segundo uma configuração, ou seja, um


programas e projetos teriam fatalmente uma sistema de linhas posicionadas umas em
relação débil e meramente conjectural relação às outras, livre de escala. Essa
àqueles dados e padrões. configuração supostamente deteria algumas
propriedades essenciais da forma urbana,
A evolução dos chamados modelos urbanos
reveladas, então, através de medidas de
quantitativos integrados elevou esse
hierarquia espacial, como acessibilidade (ou
problema a um novo patamar ao buscar
integração), centralidade (betweenness) ou
articular diferentes variáveis do sistema
controle.
urbano – distribuição espacial de população,
emprego, consumo e equipamentos, padrões Se mapa axial é provavelmente a maneira
de fluxo, infraestrutura, insumos externos, mais sumária e econômica de descrever o
trocas, evolução demográfica, econômica e sistema urbano, na outra extremidade da
ambiental, e o que seja. Embora desde o escala de observação os estudos tipológicos
ponto de vista teórico e metodológico isso mergulham na busca da diferenciação fina da
tudo pudesse ser compatibilizado num forma construída, tanto no plano espacial
sistema de equações, na prática determinou a (diversidade) quanto temporal (evolução).
virtual impossibilidade de haver continuidade Essas duas dimensões, imitando a Física,
entre pesquisa científica e atividade técnica jamais se encontraram, com o quê o campo
aplicada. Tudo isso por causa dos dados, ou da Morfologia Urbana permanece oscilando
de sua ausência. Obviamente esse quadro entre duas correntes teóricas, uma de base
nunca foi homogeneamente caótico: relativista – fundada na configuração
diferentes países, diferentes cidades espacial, e outra de base atômica – fundada
desenvolveram, com maior ou menos rigor e na classificação tipológica.
sucesso, procedimentos de homogeneização
O presente artigo discute como que a
de bases de dados, tanto a nível local
revolução digital e o advento do fenômeno
(prefeituras, órgãos metropolitanos e
big data vêm impactando o campo da
regionais) quanto nacional (no Brasil,
Morfologia Urbana. Na primeira parte
reconhecimento ao trabalho do IBGE, sem
apresentamos como essa enorme
dúvida).
disponibilidade de dados beneficia
Entre os campos com alta dependência a diretamente todas as vertentes da Morfologia
dados, encontra-se a Morfologia Urbana, que Urbana, retomando seus usuais mecanismos
surgiu como um nicho dos estudos urbanos descritivos e analíticos. Em seguida
baseado fundamentalmente em classificação mostramos possíveis expansões para as bases
e análise empírica. Nossas indagações descritivas usualmente utilizadas na chamada
fundamentais eram quanto à natureza, abordagem configuracional, que mediante a
emergência e evolução de padrões de forma, combinação de dados de diferentes tipos,
num plano mais operativo, e quanto à abrem possibilidadesde de integração com
abrangência, isto é, à possibilidade de se outras abordagens. Por fim, indicamos como
construir uma explanação autônoma do que a Morfologia Urbana, com base em uma
fenômeno urbano a partir de sua morfologia, abordagem de grafos multicamadas, pode
no plano teórico. Tendo base estritamente evoluir das análises do espaço para análises
empírica, não seria alheia às vicissitudes da do espaço-tempo, passando de leituras de
busca de dados, mas, por outro lado, sendo, estado para leituras de processo.
digamos, meticulosa quanto a natureza e tipo
de dados, teria uma chance. Aparentemente, O tsunami de dados
foi o que aconteceu: uma redução do número O incrível desenvolvimento da tecnologia da
de variáveis que permite manter uma escala informação mudou radicalmente o quadro de
compatível com o fenômeno (exemplo: o referência dos estudos urbanos em geral e da
mapa axial) e/ou uma redução da escala que morfologia urbana em particular. Quatro
permita considerar a suposta riqueza da parecem ter sido os vetores principais de
forma construída (exemplo: os estudos mudança, que vêm provocando uma
tipológicos). O mapa axial promoveu uma verdadeira revolução dos dados. O primeiro
devastação na população de possíveis se refere à passagem de bases analógicas para
variáveis explanatórias da forma urbana ao digitais dos dados usualmente coletados e
reduzir o “problema” a um conjunto de linhas mantidos por organismos de planejamento e
retas que descrevem o sistema viário urbano gestão de cidades. A progressiva
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digitalização dos dados urbanos propiciou, comportamento dos indivíduos. Tomados os


por sua vez, dois novos processos, a saber, a devidos cuidados com questões de
disponibilização via internet e a privacidade, esse tipo de dado tem potencial
normalização de escalas, tipos, níveis de enorme para estudar padrões de
agregação, classes, etc., via comportamento de massa.
geoprocessamento e sensoriamento remoto.
O termo big data se refere à disponibilidade
Bases de dados de muitas cidades passaram a
de enorme quantidade de dados que podem
ser normalizadas e compatíveis entre si e
facilmente ser processados por computador.
acessíveis publicamente. Pode-se referir a
O potencial de uso em pesquisas é enorme,
esse tipo de dado como dedicado, quer dizer,
porém traz a necessidade de desenvolvimento
conjuntos de dados coletados e mantidos com
de novos métodos para manipular e analisar
vistas a alimentar processos de análise,
esses dados, que, muitas vezes, não são
exploração e tomada de decisão particulares.
gerados para essa finalidade (Offenhuber e
Como tal, teriam sido construídos com
Ratti, 2014). Dados de telefonia móvel
métodos e procedimentos reconhecidos e
(Greco, 2014) ou de redes sociais (Netto et
minimamente acreditados.
al., 2017), por exemplo, desde que
O segundo vetor é constituído pelo incrível manipulados e filtrados, podem fornecer uma
acervo Google – Earth e Maps, que cobre o visão sobre os deslocamentos das pessoas na
globo e disponibiliza imagens de alta cidade, algo que anteriormente só era
resolução de virtualmente toda aglomeração possível através de caras pesquisas origem-
urbana existente, em três dimensões e ainda destino ou trabalhosas verificações in loco.
passíveis de serem ‘percorridas’ e verificadas
Outro exemplo do potencial que big data
prédio a prédio. As pessoas dedicadas ao
representa diz respeito à obtenção de bases
estudo da forma urbana jamais poderão ser
vetoriais de sistema viário, nesse caso de
gratas o suficiente por isso. A despeito de
grande interesse dos cientstas de redes.
suas qualidades, a plataforma Google é de
Através de procedimentos simples, como o
formato proprietário, impondo restrições de
pacote OSMnx, desenvolvido por Boeing
uso e acesso aos dados que podem limitar o
(2017), é possível obter mapas de segmentos
uso em pesquisas (Boeing, 2018). Assim, a
de rua ou de intersecções viárias para
iniciativa Open Street Map, semelhante ao
qualquer recorte espacial desejado,
Google quanto ao caráter global, mas que se
praticamente de qualquer parte do mundo.
diferencia por ser um projeto de mapeamento
Comparar uma grande quantidade de cidades,
colaborativo que disponibiliza dados abertos,
alguns anos atrás, envolveria um demorado e
tem sido uma das principais fontes para obter
trabalhoso processo de desenho e coleta de
bases geográficas, especialmente do sistema
dados, mas atual facilidade de obtenção de
viário e seus atributos e seus atributos – tipo
bases do OSM permite, hoje, estudos cada
de via, nome, velocidade, número de pistas.
vez mais robustos sobre verificação de
O terceiro vetor somente existe em padrões universais, observáveis a partir de
decorrência do anterior, se valendo deste para grandes amostras de cidades (Boeing, 2018;
acumular informação adicionada pelos Kirkley et al., 2018).
usuários, seja diretamente (fotos de lugares,
preferências, localizações, etc.) registradas Morfologia urbana e sua relação com big
diretamente nos mapas e fotos orbitais, seja data
indiretamente (localização de negócios, Seria de se esperar que, dentre as diversas
serviços e outros elementos de interesse) vertentes de estudos sobre a cidade, a de
mediante acesso pago, no caso do Google, ou morfologia urbana tenha sido a maior
gratuito, no caso do OSM. Este seria um tipo beneficiária da avalanche de novos dados,
de dado diferente do primeiro, no sentido de particularmente fotos orbitais de alta
não obedecerem a métodos e procedimentos resolução, mapas, street-view, em primeiro
uniformes. lugar, e mesmo dados complementares
Por fim, o quarto vetor se refere a dados também ali contidos, como usos pontuais do
gerados de forma mais passiva, através de solo, equipamentos, descrição de intensidade
celulares, redes sociais, aplicativos, cartões e de fluxos, quantidade comparativa de fotos
serviços. Através desses, é possível acessar de lugares, postadas por usuários,
informações – em tempo real, às vezes – preferências por lugares e percursos
sobre localização, movimento e capturadas por GPS ou por ‘likes’,
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distribuição de usuários capturada por sinal componente, como também de suas


de celular, mapas colaborativos, etc. articulações com outros na formação do
tecido urbano propriamente dito. Nessa
Para entender as possibilidades de
perspectiva, descrição de edificações e
apropriação desse novo manancial de dados
espaços abertos articulados, quer dizer,
sobre cidades e vida urbana pela área de
compostos de alguma maneira a gerar
morfologia urbana é necessário explicitar
ordem, torna-se matéria central. Percebe-se
seus usuais mecanismos descritivos e
que aqui as fotos orbitais navegáveis
analíticos, buscando identificar quê dados são
cumprem apenas uma parte da demanda por
demandados, como se processam as
informação relevante. Na verdade podem
descrições e análises e, como consequência,
constituir uma boa base inicial, a partir da
quais dados agora disponíveis as
qual a agregação de dados históricos virá
alimentariam, sob que condições. Num
fazer o real trabalho de reconstrução da
universo de grande diversidade, tanto de
gênese da forma urbana.
componentes (formas construídas, partições
fundiárias, espaços públicos) quanto de Estudos configuracionais destinam-se a
composições (tecidos urbanos) a investigação revelar a estrutura da forma urbana;
da forma urbana busca identificar padrões, estrutura, no caso, pode ser entendida como o
quer dizer, regularidades na distribuição, conjunto de relações vinculantes entre cada
ordenamento ou estruturação desses componente com todos os demais que
componentes, seja na dimensão espacial ou formam a interdependência, o sistema
temporal. espacial. Configuração espacial urbana
envolve descrição de componentes – espaços
Distribuição espacial implica descrever
abertos e formas construídas, e suas relações
(identificar e diferenciar componentes e
de adjacência, resultando num grafo de
localizações) e analisá-los por proximidade,
grandes proporções que pode, não obstante,
densidade, combinação, fazendo emergir
ser medido segundo atributos hierárquicos.
eventuais padrões de regularidade,
Diferentes medidas de centralidade irão
aglomeração, granulosidade, justaposição,
revelar a estrutura espacial segundo
complexidade, etc. Fotos orbitais de alta
diferentes critérios – grau de dependência do
definição, combinadas com recursos de
sistema em relação a cada um dos
navegação (streetview), certamente
componentes, grau de intensidade urbana
constituem um repositório virtualmente
resultante da interação entre todos os
inesgotável de dados para este tipo de
componentes, posição relativa de cada
descrição e análise, pelo qual devemos ser
componente, distância relativa, etc. Uma vez
gratos (thanks, Google). Distribuição
mais as bases de dados providos por
evolutiva, ou seja, distribuição espacial ao
repositórios de dados vetoriais e por fotos
longo do tempo, desta vez focada na
orbitais zoomíveis e navegáveis permitem
permanência e mudança de padrões
agora que descrições e análises deste tipo
distributivos dos componentes da forma
sejam levadas a cabo mais facilmente,
urbana, não é ainda inteiramente satisfatória,
mesmo que para isso haja eventual
visto que as séries temporais de imagens
necessidade de transformar dados ‘brutos’
ainda são pequenas; não obstante o futuro
em informação mais refinada, mediante
disso parece muitíssimo promissor.
procedimentos digitais disponíveis.
Investigação de padrões de ordenamento
Como se vê, apenas parte relativamente
morfológico envolve procedimentos bem
pequena, apesar de altamente relevante, da
mais elaborados. Em primeiro lugar,
chamada big data tem na verdade
identificação e diferenciação de componentes
beneficiado e impulsionado a investigação da
da forma urbana vai mais longe que a simples
morfologia urbana, pela simples razão que
classificação segundo propriedades
essa maior parte não utilizada se refere a
geométricas dos componentes, sejam eles bi
dados sobre o digamos software urbano:
ou tridimensionais normalmente aplicada na
agentes, ações, movimentos, interações de ‘n’
análise da distribuição. Aqui a noção de tipo
naturezas e escalas, muitos deles escravos da
e a consequente classificação tipológica dos
forma urbana, quer dizer, realizadas no
componentes tende a mergulhar na história,
interior de um casco urbano dado e inelástico
na organização interna e no projeto de
no curto prazo, mas outras tantas voltadas a
prédios e espaços públicos, envolvendo
vários outros atributos tanto de cada
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adaptar esse casco às continuamente novas levado a cabo em diferentes centros de


demandas de uso. pesquisa urbana2.

Morfologia e análise do espaço Abordagem configuracional e possíveis


expansões
Morfologia Urbana firmou-se no campo dos
estudos urbanos praticando um controle A representação fundamental de um sistema
rigoroso dos limites disciplinares e escolha espacial, ou morfológico, nesta denominada
de variáveis e métodos de investigação. abordagem configuracional é um grafo, no
Pioneiros desafiaram-se a produzir qual vértices correspondem a unidades de
enunciados explanatórios do fenômeno espaço público e arestas a adjacências físicas.
urbano independentes das usuais variáveis Na Figura 1 pode-se ver como um grafo
socioeconômicas que, não obstante, fossem desse tipo é produzido, usando as partições
congruentes com enunciados oferecidos por do espaço público em unidades mais
outras áreas da pesquisa sobre cidades. utilizadas: linhas axiais, segmentos, e nós.
Enunciados teóricos em morfologia urbana
Representar os elementos que compõem a
tenderam, nos seus primórdios, a se ater a
cidade e suas relações através da linguagem
descrições histórico-geográficas da evolução
de grafos, trouxe ao campo da morfologia
das cidades (morfogênese), como em Conzen
urbana a possibilidade de adaptar métodos
(2004), descrições histórico-tipológicas da
clássicos da ciência das redes, como as
evolução de edificações e espaços públicos,
medidas de centralidade citadas
como em Caniggia (1984) ou Panerai et al.
anteriormente. No entanto, é preciso
(1997); estabelecendo paralelos morfológicos
reconhecer que a representação sob a forma
à história social, econômica e política das
de grafos simples, como vem sendo feita até
sociedades respectivas. Enunciados teóricos
agora, possui limitações. Alguns autores
alternativos foram derivados de análise
(Aleta; Moreno, 2018; Kivelä et al., 2014)
configuracional (denominados modelos de
sugerem que os grafos simples podem ser um
centralidade), cujas descrições se mostraram
obstáculo à representação de alguns
congruentes com aspectos do funcionamento
fenômenos, ao olharem apenas para um tipo
(padrão genérico de fluxos, por exemplo) e
de relação de cada vez. Nicosia et al. (2013)
de organização interna (padrão de uso do
argumentam que uma rede complexa
solo, valor da terra, intensidade de atividade)
raramente é isolada, sendo que muitas vezes
de cidades respectivas (Batty e
alguns de seus nós poderiam ser parte de
Longley,1988; Krafta, 1994; Spinelli e
vários grafos ao mesmo tempo. Assim,
Krafta, 1998).
observa-se, entre os cientistas de redes,
Análise quantitativa do espaço urbano, da crescente interesse por uma perspectiva de
qual a chamada abordagem configuracional é grafos multicamadas, que tende a ser uma
parte, desenvolveu-se enormemente nos representação mais realista de sistemas
últimos anos, sugerindo que descrições, complexos, ao levar em conta múltiplos tipos
análises e eventualmente simulações da de elementos e de relações (Kivelä et al.,
dinâmica urbana podem ser levadas a efeito a 2014; Nicosia et al., 2013).
partir de uma base espacial, quer dizer,
construídas a partir de uma base descritiva
morfológica, adicionando variáveis
denotativas de outros campos, como
economia, infraestrutura, interação espacial e
transportes, uso do solo, interação social, etc.
Qualquer um desses setores, uma vez
associado a uma base descritiva espacial
adequada pode potencialmente produzir
conhecimento mais abrangente do que
isoladamente. Caberia aos interessados em
morfologia urbana promover, mediante
admissão de variáveis de natureza
socioeconômica, aproximação às demais
áreas da ciência urbana, tal como tem sido

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visão apresentada, décadas atrás, por


Alexander (2015) em A city is not a tree, que
enfatiza o aspecto de rede presente nas
cidades e os subsistemas que se sobrepõem.
Conforme o autor, a cidade não pode ser
considerada uma estrutura totalmente
hierárquica – uma “árvore” – mas sim uma
semitrama (semilattice), que é uma estrutura
complexa, com sobreposições e
ambiguidades. A cidade é cheia dessas
estruturas sobrepostas e ambíguas, que são
responsáveis por sua riqueza e complexidade.
As tais estruturas em semitrama às quais
Alexander se refere são, na verdade,
princípios de organização, ou seja, são
estruturas abstratas, e não formas físicas,
conforme bem colocado por Porta et
al.(2015). Uma abordagem baseada em
grafos multicamadas, em que vértices e
arestas representam elementos e relações de
variados tipos, abre a possibilidade de
operacionalizar a representação dessas
distintas redes e estruturas que se sobrepõem
na cidade. Tal abordagem, no entanto, ainda
é pouco desenvolvida nos estudos de
Figura 1. Sistemas descritivos dos espaços morfologia urbana, que até o momento têm
públicos por: (a) linhas axiais, (b) segmentos se concentrado mais na representação da rede
e (c) nós; e seus respectivos grafos (fonte: de espaços públicos, ao passo que outras
elaborada pelos autores). variáveis costumam ficar de fora.
As propriedades estruturais de certas redes e A seguir apontamos algumas alternativas
sua evolução, podem depender, de modo não- para se pensar em aplicações de grafos
trivial, de outra rede à qual esteja conectada multicamadas para o campo da morfologia
ou de múltiplos tipos de relações entre os urbana. Isso passa pela expansão da
elementos. Esse é o caso das redes de capacidade de representar o sistema espacial
transportes, redes sociais, redes de relações urbano, isto é, pela inclusão de novas
econômicas entre países e o próprio cérebro variáveis à rede de espaços públicos
humano, onde cada rede é parte de um interconectados, tradicionalmente
sistema maior, no qual um conjunto de redes representada por grafos simples na
interdependentes, com diferentes estruturas e abordagem configuracional. Outras camadas,
funções, coexistem, interagem e evoluem. agora contendo dados externos, porém
Consequentemente, tais sistemas poderiam acopláveis à base espacial, podem ser
ser melhor representados por grafos adicionadas, conforme sugere a Figura 2.
compostos por múltiplas camadas. Esse Para cada camada é preciso pensar em
parece ser o caso também das cidades, sob estratégias de representação, definindo
uma perspectiva de sistemas complexos. critérios e explicitando o que são os vértices
Uma cidade pode ser pensada como um e as arestas. A chamada fase de modelagem
grande sistema composto por subsistemas, de rede, destacada por Marshall et al. (2018),
que, por sua vez, também são compostos por em que se toma esse tipo de decisão, é
subsistemas (Johnson, 2012). Isso remete à fundamental nesse caso.

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Figura 2. Possíveis camadas do grafo (fonte: elaborada pelos autores).

Quadro 1. Quadro multidimensional para representação em múltiplas camadas (fonte:


elaborado pelos autores).
Elementos Estratégias de representação

a) Grafos simples;
DIMENSÃO
Espaços públicos b) Definição de raios para processamento das medidas;
ESPACIAL
c) Definição de valores de impedância nas arestas
Formas construídas a) Grafos multicamadas; hipergrafos
DIMENSÃO Tipos edilícios b) Ponderações nos vértices e arestas
OBJETUAL Lugares
Parcelas
Uso do solo a) Grafos ponderados;
DIMENSÃO Atividades b) Grafos direcionados entre pares de atividades
FUNCIONAL Densidades complementares;
Transporte c) Nós ou arestas caracterizando conexões remotas
a) Agregação de elementos que compõem uma unidade
informação em uma única entidade;
Representação mental
DIMENSÃO b) Conexões entre todos elementos que compõem uma
Ordem simbólica
COGNITIVA unidade de informação;
(Faria, 2010)
c) Conexões remotas entre elementos com alguma
afinidade cognitiva
a) Multigrafos
Curto prazo b) Camadas fixas e grafos direcionados
DIMENSÃO
Médio prazo c) agregação de vértices e arestas iterativamente
TEMPORAL
Longo prazo d) ‘thresholds’, feedback positivo, pontos críticos
e) polaridades com sentidos alternados

O Quadro 1 apresenta um framework representação em múltiplas camadas e as


multidimensional para se pensar a estratégias de representação para cada tipo de
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elementos. Trata-se de uma ideia inicial, ideia já vem sendo explorada desde Krafta
cujas possibilidades de representação não se (1994).
restringem à essas sugeridas aqui. Elementos Grafos ponderados são igualmente válidos
como os espaço públicos, vistos sob uma para caracterizar a dimensão funcional. Esses
perspectiva puramente espacial podem ser atributos podem se referir a densidades
representados por grafos simples, como os da urbanas, valor da terra, uso do solo, etc. É
Figura 1. Estes modelos podem ganhar novas possível também trabalhar com a noção de
nuances a partir de estratégias grafos direcionados, isto é, especificar pares
complementares, como a definição de raios de atividades complementares, do tipo oferta
para processamento das medidas, e a e demanda ou origem e destino, de modo que
definição de valores de impedância para as se caracterizem relações de dependência
arestas, que favoreçam ou desfavoreçam funcional entre pares de nós específicos –
como em Krafta (1996) e Zechlinski (2013),
certos caminhos, como distância, tempo de
e não do tipo “todos-com-todos”, como
deslocamento, hierarquia viária ou normalmente se usa na análise
declividades. configuracional. Grafos direcionados já
foram explorados, por exemplo. Já para a
representação do transporte, outro aspecto
funcional das cidades, é preciso pensar em
algum recurso que gere um efeito “atalho” no
grafo, como, por exemplo, inserção de nós ou
arestas que caracterizem conexões remotas
entre pontos de parada do transporte público
(Gil, 2014; Paroli, 2019).
Para a dimensão cognitiva, a representação
deve buscar, de alguma forma, esquematizar
sob a forma de grafos, as representações
mentais do ambiente. Representações
mentais dizem respeito ao conhecimento
esquemático que cada indivíduo ou que uma
comunidade tem do ambiente, ou seja,
Figura 3. Grafo com duas camadas: espaços consistem nas informações ambientais
públicos e formas construídas (fonte: cognitivamente estruturadas na mente
elaborada pelos autores). humana. Não deixam de ser uma espécie de
modelo espacial, portanto, também passível
O primeiro passo para estender esse tipo de
representação por grafos. Este tipo de
representação estaria na inclusão das formas
descrição é praticamente inexplorado, com
construídas, já eventualmente classificadas
exceção do trabalho de Faria (2010). No
segundo tipos, ou segundo componentes de
processo de apreensão ambiental, elementos
diferentes partes do tecido urbano,
tendem a ser selecionados e agrupados,
caractereizando uma dimensão objectual da
relações tendem a ser alteradas e distâncias
forma urbana. Essa nova variável constitui
distorcidas, de forma a facilitar o
uma segunda camada do grafo, conectado ao
armazenamento na memória. Com base
primeiro de forma particular. O mapograma
nesses processos é possível pensar em
da Figura 3 agora contém formas construídas,
estratégias de representação das unidades de
que, associadas ao mapa de segmentos
informação, que se referem ao conjunto de
anteriormente registrado no grafo inicial,
informação estruturada. Com base nos
constituem a segunda camada. A
estudos de Faria (2010), para simular um
representação de elementos como formas
efeito de agregação entre elementos que
construídas, parcelas, lugares, etc, pode ser
formam uma unidade informação, pode-se
feita pela inclusão de vértices que os
pensar em estratégias que envolvam: a)
representam, ou ainda por ponderação nos
agregação dos vértices que a compõem em
vértices do grafo dos espaços públicos, isto é,
um único vértice; b) múltiplas conexões, do
inserindo atributos que conferem um efeito
tipo todos-com-todos, entre os vértices que
de “carregamento” no grafo, que agora já não
compõem uma mesma unidade de
trata apenas da configuração espacial. Tal
informação (exemplo: todos os vértices que

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Morfologia urbana e a revolução dos dados 9 / 15

representam uma rua ou um parque). Outro Morfologia urbana e análise do espaço-


ponto que pode ser explorado é que a tempo
representação cognitiva, pode envolver
Estudos da forma urbana baseados em grafos
conexões que não se dão por adjacência.
têm se focado principalmente na leitura de
Então, as arestas podem representar
estado, isto é, na caracterização de algum
simplesmente algum tipo de afinidade
particular aspecto do sistema urbano em dado
cognitiva, criando uma ligação que aproxima
momento. No entanto, é essencial avançar
ou que relaciona diretamente objetos que
mais em pesquisas sobre como esses sistemas
encontram-se fisicamente distantes.
crescem, evoluem e se modificam ao longo
Interessante destacar que não há apenas uma, do tempo e também sobre relações de
mas sim várias abordagens possíveis dentro interdependência entre variáveis e entre
da ideia de redes com múltiplas camadas escalas (Batty, 2013). Nesta seção sugerimos
(Kivelä et al., 2014). Multigrafos, por uma maneira de passar da análise de estado à
exemplo, permitem representear conexões verificação de processo, mediante a inclusão
entre diferentes camadas, com o poder de da dimensão temporal na base descritiva por
associar atributos de diferentes tipos numa grafos multicamadas.
mesma operação algébrica, tomando por base
Análise clássica usando grafo envolve
a rede de espaços públicos. Assim, nós
basicamente medidas de hierarquia,
físicos remotos tornam-se adjacentes por
aglomeração e desempenho, entre outras
força de conexões dadas pelo transporte
possibilidades. Medidas de hierarquia
público, ou polos de atividades são
envolvem classificar vértices ou arestas
associados a hubs de transporte e,
segundo suas posições comparadas segundo
consequentemente, a espaços públicos
critérios de associação sistêmicas, tais como
(Figura 4a). De maneira semelhante,
grau (conectividade), posição relativa
hipergrafos tratam de conectar vários nós por
(centralidade), ou distância relativa
meio de uma mesma aresta; associados com
(acessibilidade). Estas medidas têm sido
outras camadas, transmitem propriedades
amplamente utilizadas em análise espacial
agregadas (Figura 4b). Com base nessas
urbana tanto aplicadas diretamente no grafo
definições, é possível pensar em
básico (espaço público) (Lima et al., 2017),
maneiras/critérios para conectar diferentes
quanto em grafos multicamadas, incluindo,
camadas, pertencentes à distintas dimensões
então, forma construída, atividades ou
do framework delineado anteriomente.
valores cognitivos (Faria e Krafta, 2013).
Medidas de aglomeração são, como o nome
sugere, indicadores de distribuição espacial,
tais como cluster, dispersão, densidade,
diversidade, que podem incluir objetos, como
formas construídas, equipamentos, etc.,
pessoas, atividades, usos do solo, renda e
outras características socioeconômicas.
Medidas de desempenho se aplicam aos casos
em que privilégios ou dependências
locacionais envolvendo normalmente
usuários distribuídos e serviços concentrados,
ou atividades cooperativas ou competitivas
participantes de um mesmo sistema. Medidas
características deste tipo são tensão, sinergia,
estabilidade, desequilíbrio, oportunidade e
Figura 4. Exemplos de grafos multicamadas convergência.
(fonte: elaborada pelos autores).
É visível aqui o potencial dos grafos
A noção de redes multicamadas também se multicamadas para incluir novas variáveis,
presta a análises temporais (Kivelä et al., constituindo aí um profícuo campo de
2014), possibilitando a inclusão da dimensão pesquisa. Dados extraídos de diferentes
temporal, isto é, a representação de processos plataformas digitais disponíveis tem sido
de curto, médio e longo prazo, conforme testadas com sucesso em diferentes
exploramos a seguir. exercícios de análise utilizando grafos
multicamadas ainda incipientes, mas
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sugerindo grandes possibilidades de urbanos sobre o território envolve


desenvolvimento ulterior. necessariamente separação e geração de
afastamentos relativos, uma desigualdade
Os sistemas urbanos, e consequentemente os
fundamental, inerente ao fenômeno, se
grafos representativos de suas redes sócio-
instala (distância) e é rapidamente
técnicas mudam constantemente, propiciando
socializada (vantagens comparativas),
seu exame segundo sua evolução. Mudanças
resultando em padrões de organização
ocorrem por modificação dos vértices –
interna. Mesmo assumindo a robustez dessas
localização, conteúdo, agentes, assim como
teorias, apoiadas em evidências nas duas
das arestas – complementaridade funcional,
extremidades – a micro, onde cada agente
estrutura cognitiva, base cultural,
supostamente buscaria minimizar distâncias e
infraestrutura de comunicação, etc. ou por
maximizar vantagens locacionais, e a macro,
modificação de arestas, ao se introduzirem
onde se verifica distribuições desparelhas de
novas relações. Multigrafos podem ser
população e atividades econômicas,
utilizados não apenas para observação de
compondo uma paisagem hierarquizada, os
estado, mas também para vereificação de
caminhos trilhados desde as relações locais
processos. Vértices, atributos e relações que
até cada macroestado são ainda nebulosos,
se modificam ao longo do tempo podem ser
para dizer o mínimo, e aí estaria
estudados por uma sequência de grafos, isto
possivelmente, em sua explicitação, a
é, uma sequência de descrições de estado em
explanação definitiva do fenômeno urbano.
um determinado momento. Para verificação
de processos que se dão ao longo do tempo, é Aparentemente, cada cidade seguiria regras
preciso adotar métodos de comparação de próprias para conectar agente social, com sua
uma sequência de estados. Mudanças nos localização e elementos sociotécnicos com
grafos podem ser verificadas, por exemplo, outros agentes, localizações e elementos
através de análises visuais, medidas-resumo sociotécnicos, envolvendo relações de
ou índices baseados nas métricas de produção e reprodução social particulares.
verificação de estado, que mostrem o Isso constituiria um vasto conjunto de regras
impacto da adição de novos elementos (como locais diferenciadas umas das outras
em Strano et al., 2012) ou combinação de aplicadas a vastos conjuntos de agentes
análises visuais com técnicas de estatística sociais ao longo de tempos extensos, cujo
mais sofisticadas para verificação da resultado esperado seria extrema
evolução de padrões espaciais (com em diversificação. O fato de haver convergências
Kirkley et al., 2018). Alometria é outro nos estados macro, isto é, homogeneização,
recurso que pode ser utilizado para mesmo que a um certo grau, sugere a
verificação de processos evolutivos, ao existência de convertores de alguma espécie,
permitir verificar relações de escala entre sejam eles redutores de entropia (Haken e
atributos – por exemplo, o quanto a Portugali, 2015, Netto et al., 2017) ou
centralidade aumenta à medida que um invariáveis causais (Wolfran, 2020,
sistema aumenta de tamanho. A forma Marchetti, 1990). Convertores agiriam no
urbana é sujeita a relações alométricas à processo mediante regras que desfazem
medida que a cidade cresce, uma vez que resultados de outras regras, evitando, dessa
seus componentes crescem em diferentes forma que a diversificação siga seu caminho
ritmos e em diferentes proporções – como ao infinito, e trazendo diferentes evoluções
demonstram Krafta e Silva (2019), Shpuza para macroestados convergentes. Regras,
(2014) e Strano et al. (2012). contrarregras de interação e invariantes
causais sugerem caminhos inteiramente
O estudo da história das cidades tem
novos para a pesquisa urbana, para a qual os
mostrado que, não obstante terem origens e
hipergrafos construídos a partir da
processos de desenvolvimento particulares,
morfologia urbana poderiam ser a base de
não parecem ser especiais - no sentido de se
representação.
constituírem em singularidades – já que
convergem para estruturas e organizações É importante lembrar que interações entre
similares. Essa convergência tem sido agentes em escala espacial local ocorrem
atribuída a fatores geográficos – distância, também em escala temporal imediata; a
fundamentalmente, e econômicos – recorrência de práticas e a acumulação de
vantagens locacionais e de aglomeração. seus efeitos no tempo e no espaço são os
Dado que a distribuição dos componentes mecanismos básicos da mudança urbana.

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Paralelo e indissociável da prática recorrente mostrando os intervalos de engajamento em


ocorre outro fenômeno básico da mudança, interação de cada vértice.
poderia ser chamado de externalidade, isto é,
a interferência, e consequente adaptação, de
cada unidade de interação com as incontáveis
demais interações ocorrendo nos mesmos
tempos e lugares. Dessa maneira, não são
apenas as práticas premeditadas e
organizadas que contam na evolução dos
sistemas urbanos, mas também as
interferências não premeditadas e
desorganizadas. A Figura 5 mostra uma
sequência de situações, onde sobre uma base
espacial, a princípio fixa, a quantidade de
agentes, cada um desenvolvendo interações
simples com outros dois, aumenta; as
interações elementares passam a coexistir e
criar interferências e adaptações umas com as
outras, ampliando a articulação do sistema e
promovendo conexões novas, entre células
remotas. Esse processo tende a ser recursivo,
isto é, formar um padrão, entretanto, a cada
iteração podem ser esperadas mutações
(novos agentes, novas interações) tornando o
processo verdadeiramente complexo. De
interações desse tipo – repetitivas, mas de
curta duração, suscetíveis de causar e receber
influências de outras ocorrendo
Figura 5. Sequência de interações entre
simultaneamente pode-se esperar
agentes (fonte: elaborada pelos autores).
repercussões no espaço (propagação de
efeitos locais, afetando partes maiores do
sistema) e no tempo (adaptação dos diversos
artefatos sociotécnicos que compõem a forma
urbana e equipamentos complementares).
Tão importante quanto escalas temporais
imediatas e recorrentes é considerar que
interações, embora regulares e recorrentes,
como ilustrado acima, não são contínuas.
Com efeito, é fácil imaginar que, a um
momento dado, alguns desses agentes, assim Figura 6. Grafo temporal (a) e painel de
como suas interfaces com outros, estejam interação (b), sendo que a frequência de
inativos, alterando a dinâmica espaço- interação é registrada na forma de pesos
temporal correspondente. Da mesma forma, a atribuídos às arestas do grafo (fonte:
polaridade de determinados pontos da rede Adaptado de Holme e Saramäky, 2013).
pode ser invertida, tal como ocorre com
certos hubs urbanos, como escolas, que ora
funcionam como atratores, ora como
repulsores, concentradamente nos horários de
entrada e saída, permanecendo inativos o
resto do tempo (mesmo quando em
funcionamento). Figura 6, extraída de Holme Figura 7. Grafo de transmissão,
e Saramäky (2013), mostra um grafo representando os intervalos de engajamento
temporal, a partir do qual um conjunto de de uma rede temporal (fonte: Holme e
medidas topológicas podem ser obtidas, à Saramäky, 2013).
semelhança das medidas de centralidade dos Inclusão da variável tempo e exploração de
grafos estáticos. Figura 7, também de Holme configurações mutáveis dos sistemas urbanos
e Saramäky, é um grafo de intervalo, representa um campo de investigação capaz
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Morfologia urbana e a revolução dos dados 12 / 15

de, ao mesmo tempo, integrar a base de tempo justamente por possuírem enormes
pesquisa em morfologia urbana com outras quantidades de componentes, derivando
áreas de estudos urbanos e ‘naturalizar’ o quantidades inimagináveis de possíveis
acesso e uso de plataformas de dados configurações. Se a simples descrição de
existentes e sempre em evolução. artefatos desse porte apresentam grandes
problemas, parcialmente resolvidos pelos
Considerações finais computadores, a sua análise permanece como
A área de investigação conhecida como um desafio, mesmo contando com o poder de
Morfologia Urbana tem desenvolvido uma processamento disponível hoje; grafos com
base descritiva sólida e flexível para a cidade. algumas dezenas de milhares de vértices,
Graças a isso tem ganho relevância e parece contendo descrições de cidades normais, são
estar em posição de possibilitar a integração comuns em análise de morfologia urbana
com outras áreas de estudo da cidade, hoje e demandam considerável esforço de
mediante a ampliação de escopo, processamento.
incorporação de variáveis e articulação de d) Formação de linguagem compatível com a
métodos. Como essa plataforma descritiva e das demais áreas da ciência – como síntese
analítica urbana tem sido constituída? No das apropriações acima referidas, a área tem
nosso entendimento, mediante os seguintes desenvolvido uma linguagem – quer dizer,
fatores: meios de representar o fenômeno urbano,
a) Aproximação à ciência da complexidade – semelhante às utilizadas em outras áreas de
se os fundamentos da ciência urbana, na sua pesquisa científica. Isso tira a Morfologia
origem, foram derivados de enunciados Urbana da Sibéria, permite protocolos de
geográficos e econômicos, hoje os transferência de procedimentos e falseamento
enunciados mais relevantes são os dos de resultados interáreas e, como
sistemas complexos. Não foi uma evolução consequência, melhor aferição de qualidade e
original, já que a maioria das áreas do impacto.
conhecimento realizaram a mesma trajetória, Essas transformações pelas quais o campo da
mas, dada a natureza conservadora da área, Morfologia Urbana vem passando,
foi arrojada e surpreendente; representou impulsionadas pelo desenvolvimento
uma mudança de perspectiva, até certo ponto tecnológico e pela emergência do fenômeno
radical, desde uma visão normativa e causal big data, permitem vislumbrar possíveis
para outra evolucionária, instável e expansões na investigaçao da forma urbana.
imprevisível do fenômeno urbano. Na dita fronteira do conhecimento já se
b) Apropriação de arcabouço teórico, verifa tendência a enfoques mais voltados à
modelos e métodos analíticos da física, verificação de processos, isto é, que vão além
principalmente da física estatística – a da análise de estado. Os caminhos de
matematização da forma urbana parece ter pesquisa em Morfologia Urbana delineados
sido um passo decisivo no caminho de neste artigo seguem nessa direção, a de
quantificar, aferir, comparar, projetar, cruzar fronteiras disciplinares, uma vez que
analisar e simular dinâmicas de mudança buscam integrar variáveis que
espacial. Esse poder de abstração torna tradicionalmente eram tratadas de forma
tratáveis vários problemas inerentes à separada e, geralmente, sem uma perspectiva
morfologia urbana, tais como quantidade e temporal. Espaço, equipamentos
variedade de componentes e relações sociotécnicos, agentes e interação parecem
internas, explicitação de propriedades constituir um conjunto indissociável de
internas não visíveis, e o uso de modelos componentes e relações do cerne dos
estatísticos mais sofisticados, entre outros. sistemas urbanos. Estender a pesquisa,
incluindo esses processos, bem como
c) ‘Domesticação’ de instrumentos entender suas interdependências é condição
computacionais – isto segue como para o entendimento mesmo das cidades.
complemento do anterior, visto que sistemas
urbanos, ou mais simplesmente artefatos
urbanos permaneceram intratáveis por tanto

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Notas Faria, A.P., Krafta, R. (2013) Cognitive


1
Artigo convidado para a seção temática “A nova
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2
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Tradução do título, resumo e palavras-chave


Urban Morphology and data revolution
Abstract. Urban Morphology is highly dependent on urban spatial data. For a long time, the difficulty in
obtaining it constituted an obstacle to the development of researches in this area. However, more recently,
the increase in the availability of data, the emergence of big data and the growing development of tools
and information technologies, has been opening new possibilities to explore digitally the territory. It is
not just the abundant availability of data and software to manipulate it, but new capabilities to integrate
it, which encourages to cross-disciplinary boundaries. This article focuses on the relationship between
the field of urban morphology, characterized by well-defined outlines in terms of what kind of data is
required, and what has been done at the frontier of knowledge, where data of different types are
combined. As a contribution, this work points out new insights for future research, showing how urban
morphology can benefit from this data revolution, especially by using new descriptive and analytical
mechanisms. In this sense, we outline a multilayer graph approach, which is still little explored in urban
studies, despite showing potential for a) multidimensional descriptions of urban form; b) explorations of
space-time assessments.
Keywords: urban morphology, big data, multilayer networks, temporal networks

Editor responsável pela submissão: Vinicius de Moraes Netto.

Licenciado sob uma licença Creative Commons.

Revista de Morfologia Urbana (2020) 8(1): e00151 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
Evolução das leis de escala urbanas: evidências do Brasil1

João Meirellesa , Camilo Rodrigues Netob ,


Fernando Fagundes Ferreirac , Fabiano Lemes Ribeirod e Claudia Rebeca
Bindere
a
Universidade de Lausanne, Instituto Federal de Tecnologia da Suíça, Departamento de Engenharia Civil
e Ambiental, Lausanne, VD, Suíça. | Universidade de São Paulo, Escola de Artes, Ciências e
Humanidades, São Paulo, SP, Brasil.
b
Universidade de São Paulo, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, São Paulo, SP, Brasil. E-mail:
camilorneto@gmail.com
c
Universidade de São Paulo, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, São Paulo, SP, Brasil. E-mail:
ferfff@usp.br
d
Universidade Federal de Lavras, Departamento de Física, Lavras, MG, Brasil. | City University of
London, Departamento de Matemãtica, Londres, UK. E-mail: fribeiro@ufla.br
e
Universidade de Lausanne, Instituto Federal de Tecnologia da Suíça, Departamento de Engenharia Civil
e Ambiental, Lausanne, VD, Suíça. E-mail: claudia.binder@epfl.ch

https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.168

Resumo. Nos últimos anos, a nova Ciência das Cidades se estabeleceu como
uma abordagem quantitativa fértil para o entendimento dos fenômenos
urbanos. Um de seus pilares é a proposição de que os sistemas urbanos
apresentam comportamentos universais de escala em variáveis
socioeconômicas, de infraestrutura e de serviços básicos individuais. Este
artigo discute até onde essa proposição é realmente universal, testando-a
frente a uma ampla variedade de métricas urbanas de um país em
desenvolvimento. Apresentamos uma exploração dos expoentes de escala de
mais de 60 variáveis do sistema urbano brasileiro. A estimação dos
expoentes é um desafio técnico, dado que a definição de “município” no
Brasil segue critérios políticos e não considera as características da
paisagem, a densidade e os serviços domiciliares básicos. Considerando que
os municípios brasileiros podem não ser iguais ao que se entende por
assentamento urbanizado, selecionamos os mais assemelhados a “cidades”
através de um procedimento sistemático de corte da densidade e estimamos
os expoentes desse subconjunto. Para validar nossos achados, comparamos
nossos resultados com as mesmas variáveis de outros estudos baseados em
métodos alternativos. Os resultados mostram que as variáveis
socioeconômicas analisadas seguem uma relação de escala superlinear com
a população das cidades, enquanto a maioria das variáveis de infraestrutura
e de serviços básicos domiciliares seguem os esperados regimes sublinear e
linear, respectivamente. No entanto, algumas delas fogem dos regimes
esperados, botando em dúvida a hipótese universal das leis de escala. Nossa
conclusão é de que esses desvios são produto de decisões e políticas
impostas “de cima para baixo”. Mesmo que nossa análise abranja um
período de apenas 10 anos e, portanto, não seja suficiente para permitir
conclusões definitivas, há indícios de que os expoentes de escala dessas
variáveis estão evoluindo em direção ao regime esperado, e que os desvios
podem ser apenas comportamentos restritos no tempo que não impedem os
sistemas urbanos de atingir o regime esperado em algum momento futuro.
Palavras-chave. leis de escala, cidades, sistemas complexos, cidades
brasileiras

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Introdução forma Y = Y0Nᵝ. Aqui, Y0 é uma constante e β


o expoente de escala. Estudos empíricos
Atualmente mais da metade da população
indicam que, geralmente, variáveis
mundial vive em cidades (Habitat U.N.,
relacionadas a atividades socioeconômicas
2016), proporção que deve crescer nos
(PIB, patentes e casos de AIDS, por
próximos anos. Portanto, é cada vez mais
exemplo) escalam de maneira superlinear
importante entender como os sistemas
com o tamanho da população (β > 1),
urbanos evoluem com o crescimento da
enquanto variáveis de infraestrutura
população e quais as implicações sociais,
(comprimento total de redes de dutos e
econômicas e ecológicas desse
número de postos de gasolina, entre outros)
desenvolvimento. Nas últimas décadas, dados
escalam de forma sublinear (β < 1). Eles
urbanos em formatos estruturados e prontos
também mostram que variáveis associadas ao
para análise computacional têm se tornado
que se costuma chamar de necessidades
mais e mais acessíveis. Esses dados
individuais básicas (número de residências e
recentemente disponíveis, combinados com
consumo de água, por exemplo) escalam
abordagens das ciências da complexidade,
linearmente com a população (β = 1)
estão construindo as bases para uma nova
(Bettencourt et al., 2007). Neste artigo
ciência das cidades (West, 2017; Batty,
adotamos o termo serviços básicos
2013). Um paradigma em especial tem se
individualizados para nos referir a elas, dada
afirmado no interior dessa nova abordagem
a imprecisão do conceito necessidade
científica dos estudos urbanos, concentrando-
individual.
se não nas particularidades das cidades, mas
em seus padrões comuns. Mais Como esses resultados foram obtidos em
especificamente, ele afirma que a forma e as diferentes países e em distintos anos, eles têm
funções dos sistemas urbanos são causadas sido propostos como propriedades universais
por leis universais que emergem das das cidades (Bettencourt, 2013; Gomez-
interações locais elementares (West, 2017; Lievano et al., 2016; Bettencourt et al., 2007;
Batty, 2013; Bettencourt, 2013; Gomez- Ortman et al., 2014; Strano e Sood, 2016;
Lievano et al., 2016). Baseados nisso, Bettencourt et al., 2013; Gomez-Lievano et
recentes achados sugerem a existência de al., 2012; Louf et al., 2014; Ribeiro et al.,
similaridades entre cidades muito diferentes 2017; Bettencourt e Lobo, 2016; Bettencourt
em termos culturais, históricos, geográficos e e West, 2010; Kuhnert et al., 2006), o que
econômicos, ainda que todas pertençam a significa que as leis de escala se sustentam
países desenvolvidos e que os estudos em todo e qualquer sistema urbano,
tenham considerado apenas um pequeno independentemente de sua cultura, nível
conjunto de variáveis (Bettencourt et al., tecnológico, políticas, geografia e etc. Se elas
2007; Cesaretti et al., 2016; Ortman et al., puderem ser testadas com mais dados e ser
2014; Strano e Sood, 2016). Tendo em vista mais bem entendidas, ela pode trazer insights
o grande impacto que a possibilidade de valiosos para o processo de planejamento
formalização de uma lei universal de urbano. Mesmo sendo bastante consistente
crescimento urbano pode ter para o para sistemas urbanos diversos e estável no
planejamento urbano, é fundamental verificar tempo, a universalidade das leis de escala
se a universalidade se amplia para cidades de ainda segue sob questionamento. Alguns
países em distintos estágios de estudos recentes sugerem que o
desenvolvimento (os BRICS e países do Sul comportamento de escala não segue a
Global, por exemplo) e se os achados se classificação proposta. Outros mostram que o
sustentam para outros indicadores. expoente de escala é altamente sensível à
definição de cidade adotada (Arcaute et al.,
Um dos fundamentos da nova ciência são as
2015; Louf e Barthelemy, 2014; Cottineau et
leis de escala das diferentes métricas urbanas
al., 2017; Fragkias et al., 2013), e ao método
(West, 2017; Bettencourt et al., 2013). Nos
estatístico usado para estimá-lo (Leitao et al.,
últimos anos têm se acumulado evidências na
2016). Ainda, existem estudos indicando que
literatura científica indicando que muitas
os expoentes são sensíveis a fatores externos,
variáveis urbanas, digamos, Y, variam
como as estruturas macroeconômicas (Strano
sistematicamente e de maneira não trivial
e Sood, 2016; Rybski et al., 2017) ou
com a população N da cidade, seguindo a

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políticas federais (Muller e Jha, 2017), por Materiais e métodos


exemplo. Esses achados revelam as
fragilidades da hipótese de universalidade Seleção de variáveis
das leis de escala. Coletamos cerca de 60 variáveis para todos
De fato, ainda é necessário testar a hipótese os 5.565 municípios brasileiros. Elas foram
com uma maior variedade de cidades ao selecionadas com a intenção de abranger
redor do mundo, bem como para conjuntos descritivamente um amplo conjunto de
mais completos e representativos de dimensões urbanísticas e contemplar os
indicadores urbanos, pois a maioria das regimes de escala (linear, superlinear,
evidências publicadas vêm de países sublinear). A seleção das variáveis foi
desenvolvidos e se referem a poucas baseada na hipótese de que a produtividade
variáveis como PIB, área, rede viária e socioeconômica é superlinear em relação à
patentes registradas. Se desejamos contar população, a demanda por infraestrutura é
com esse poderoso arcabouço para a sublinear e os serviços básicos
construção de políticas urbanas, precisamos individualizados são linearmente
entender sob quais condições ele se sustenta. relacionados à população (Bettencourt et al.,
Atenção especial deve ser dada aos países em 2013). Os indicadores estudados concentram-
desenvolvimento onde a maior parte do se em aspectos específicos do tecido urbano:
desenvolvimento urbano futuro deve serviços de saneamento, acesso a serviços
acontecer, tendo em vista a carência de básicos, orçamento municipal e
evidências sobre seus sistemas urbanos. O equipamentos urbanos (educação, saúde,
sistema urbano brasileiro atrai particular firmas, etc.) A lista completa de variáveis
interesse por seu processo de urbanização classificadas de acordo com a proposta de
rápida (Martine e Mcgranahan, 2010) e Bettencourt (2013) está disponível na Tabela
consolidada com crescente desigualdade no S1 das informações suplementares do artigo.
tamanho das cidades ao longo do tempo
(Cura et al., 2017), fenômeno esperado para Fontes de dados
ocorrer em outros países ao longo do século Dados sociais, econômicos e individuais
XXI. O comportamento de escala do sistema foram buscados no IBGE, tanto no Censo
brasileiro tem sido explorado em publicações Demográfico de 2010, como nas pesquisas
prévias (Bettencourt, 2013; Leitao et al., sobre governos municipais (IBGE Cidades) e
2016; Alvez et al., 2013; Ignazzi, 2014, no SNIS - Sistema Nacional de Informações
2015), com foco prioritário em variáveis sobre Saneamento – que reúne informações
socioeconômicas. Ignazzi (2015) também sobre as empresas de abastecimento de água
avaliou a evolução temporal dos expoentes e esgoto. As informações sobre a
de escala a partir de uma impressionante base infraestrutura viária foram calculadas a partir
de dados que cobre cerca de 70 anos de dos dados do Open Street Map (OSM). Os
indicadores urbanos do Brasil. Neste estudo indicadores econômicos e as variáveis de
tentamos trazer diferentes tipos de variáveis receita e despesa foram coletadas no IPEA.
para a análise, incluindo indicadores de As variáveis de saúde foram extraídas do
infraestrutura e serviços individualizados, DATASUS. Grande parte das informações
utilizando os achados prévios para validar são autodeclaradas, inclusive pelos
nossa metodologia. O trabalho pretende testar provedores de serviço (SNIS), o que
a universalidade da hipótese das leis de potencialmente introduz viés nos dados.
escala urbanas através de análise empírica
dos padrões de escalamento/escala de um Metodologia de análise
sistema urbano do mundo em
desenvolvimento (municipalidades Análises de leis de escala urbana devem ser
brasileiras), contemplando variáveis ainda realizadas a partir de uma base de cidades. A
inexploradas, notadamente indicadores de unidade espacial do banco de dados brasileiro
infraestrutura. Também pretendemos são as municipalidades administrativamente
investigar sob quais condições os sistemas se definidas. Elas podem, contudo, ser
afastam dos regimes de escala esperados, e se fundamentalmente diferentes da definição
tais desvios são efêmeros ou duradouros. funcional de cidade, que é pressuposto básico
das análises de escalamento não-linear

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(Bettencourt, 2013; Ribeiro et al., 2017). maior parte de seu território composto por
Como apontado anteriormente, no Brasil são áreas não urbanas (reservas indígenas ou
as próprias municipalidades que definem áreas de proteção ambiental).
suas áreas urbanas, o que pode trazer imensa
Buscamos resolver o problema das
variabilidade e inconsistência (Ignazzi,
municipalidades não urbanas (i) de nossa
2015). Isso demonstra a importância de uma
base de dados adotando uma abordagem
definição consistente de “áreas urbanas” para
baseada na densidade populacional.
estudos em escala nacional. Uma “cidade
Subconjuntos sistemáticos da base original
funcional” é definida como uma área
foram gerados a partir de pontos de corte
geográfica delimitada contendo população
mínimos de densidade, excluindo assim os
diversificada e alta intensidade de interações
municípios rurais. Realizamos a exclusão
(West, 2017). A definição brasileira contrasta
dessas localidades não suficientemente
com esse conceito já que os municípios no
densas já que a maioria das variáveis de
país podem i) incluir características rurais e
interesse não estão disponíveis para níveis
baixa intensidade de interações entre sua
mais desagregados, o que torna impossível
população e ii) ser segregados dos
abordar o problema através dos processos
municípios adjacentes e codependentes. Um
generativos comumente encontrados na
bom exemplo de (i) é o município de
literatura para agregar assentamentos densos
Oriximina no norte do Brasil (Fig. 1), com
próximos entre si (Arcaute et al., 2015;
área superior à de Portugal, mas com
Cottineau et al., 2017).
população de apenas 50.000 habitantes e a

Figura 1.

Exemplo da diferença entre a definição de município do IBGE e de cidade funcional: o município de


Oriximina, localizado no norte do país, com área geopolítica maior do que a de Portugal mas população
de apenas 50.000 habitantes espalhados dentre áreas indígenas, com um centro urbano muito pequeno. O
método proposto de corte por mínima densidade elimina municipalidades como essa da análise, evitando
vieses que podem desestruturar os resultados. Baseada em dados do Ministério do Meio Ambiente do
Brasil e Open Street Maps.

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Em relação ao problema da “cidade menor do que 0,5 foram consideradas não


funcional” (ii), estudos anteriores trataram de significativas estatisticamente e, portanto,
agregar municipalidades densas, contínuas e ignoradas na análise. Ao término desse
codependentes em unidades espaciais únicas. processo iterativo, o limiar mínimo de
Regiões Metropolitanas, que têm sido densidade foi definido e os resultados das
utilizadas para este propósito em outros regressões para este subconjunto definitivo
sistemas urbanos - são politicamente foram analisados.
definidas a partir de critérios diferentes no
A lista abaixo sintetiza o método:
Brasil (Bettencourt et al., 2007; Bettencourt e
Lobo, 2016), fazendo com que um método 1. Gerar subconjunto da base de dados
baseado em contiguidade exija o original excluindo todos os
reconhecimento das áreas urbanas densas e municípios com densidade ρ ≤ ρmin,
contínuas no interior dos municípios. Com a onde ρmin ∈ [0, 2000] é um
maioria dos indicadores disponibilizados ao parâmetro do método que representa a
nível do município, qualquer método que densidade mínima para inclusão no
demande dados mais desagregados se torna subconjunto;
inviável. Ainda, dois estudos diferentes 2. Ajustar uma regressão pelo método
confrontando leis de escala com base em dos mínimos quadrados (MMQ) entre
unidades municipais "cruas" (Alvez et al., o logaritmo da população e o
2013) e agregações metropolitanas de logaritmo de cada uma das demais
municípios (Ignazzi, 2014) encontraram variáveis para os municípios
resultados bastante similares para as mesmas restantes;
variáveis: escala superlinear do PIB, nível de 3. Computar o expoente de escala β, o
desemprego, escolaridade e perfil etário da intercepto, o coeficiente de
população. Tais concordâncias indicam que a determinação r2 e o valor p das
agregação não altera efetivamente as leis de regressões com o subconjunto.
escala detectadas para as cidades brasileiras.
Para compreender se a variação nos
Baseados nessas evidências decidimos não
expoentes se altera ao longo do tempo,
realizar qualquer tipo de agregação de
utilizamos dados históricos - de 2005 a 2014
municipalidades em nossa base, levando à
– do comprimento das redes de água e
necessidade de consideração que os
esgoto. Apesar da disponibilidade de dados
resultados não se referem exatamente a áreas
para os anos anteriores, a amostra de
urbanas funcionais. Mesmo que pudéssemos
municípios avaliados praticamente dobrou
ter derivado da amostra original um
em 2006, passando a apresentar padrões
subconjunto de municipalidades urbanizadas
erráticos depois dessa data.
e densas, elas não poderiam ser consideradas
cidades funcionais por não estarem agregadas Resultados
com as áreas densas contíguas de outros
municípios. Nesta seção são apresentados os resultados
obtidos a partir da análise da base de dados
Para resolver o problema das das municipalidades brasileiras. Dado o
municipalidades não urbanas, geramos grande número de variáveis, apenas uma
sistematicamente subconjuntos de cidades amostra representativa é apresentada nos
baseados na densidade, e testamos seu gráficos. As plotagens do conjunto completo
comportamento de escala em busca de de variáveis estão nas figuras S1 e S2 e na
convergências Para cada subconjunto tabela S2 das informações suplementares.
delimitado pela densidade, variando de 0 a
2.000 habitantes/km2, computamos o Em resumo, pudemos encontrar nos
expoente de escala β, o intercepto, o resultados fortes evidências do escalamento
coeficiente de determinação r2 e o valor p das não linear no sistema urbano brasileiro.
regressões pelo método dos mínimos Independentemente do limiar de corte da
quadrados (MMQ) entre a transformação densidade, a maioria das variáveis escala
logarítmica da população e de cada uma das dentro do regime esperado (superlinear,
demais variáveis. Todas as regressões com sublinear, linear). Esse resultado foi
valores p maiores do que 0,05 ou com r2 particularmente robusto para as variáveis
socioeconômicas. No entanto, algumas

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variáveis de infraestrutura e serviços Lobo (2013) (indicadores socioeconômicos,


individualizados apresentaram um expoente de infraestrutura e de serviços básicos
de escala não habitual durante o processo de individualizados). Uma versão deste gráfico
corte por densidade. Essa observação nos contendo todas as variáveis estatisticamente
leva a propor uma explicação geral para os significativas é apresentado no material
desvios dos expoentes, em consonância com suplementar.
os pressupostos das leis de escala urbana e a
Observamos alta flutuação até uma densidade
teoria econômica: variáveis de infraestrutura
de aproximadamente 250 hab./km2, o que era
que não emergem de interações em nível
esperado pois, até esse limiar, o subconjunto
local, mas sim como resultado de decisões
ainda contém um grande número de
políticas "de cima para baixo" sujeitas a
municípios não urbanos. A partir daí os
restrições orçamentárias, tendem a divergir
expoentes começam a convergir. Eles
do regime de escala esperado. Como
demonstram baixa sensibilidade à definição
sugerido por Pumain et al. (2006), isso pode
de cidade pois, mesmo que as flutuações
ser parte do processo evolutivo da
estejam presentes, observamos pouca
infraestrutura das cidades, enquanto ela não
alteração no regime de uma variável após os
se afirma como serviço universalizado que
cortes iniciais (de superlinear para linear e
atende a totalidade da população de um
vice-versa). Isso difere significativamente de
determinado sistema urbano (aqui entendido
resultados prévios, nos quais o expoente de
como o país). Mesmo que nosso pequeno
escala de outros sistemas urbanos
intervalo temporal de análise (10 anos) não
experimentou mudança de regime (Louf et
permita resultados conclusivos. Os resultados
al., 2014; Arcaute et al., 2015; Cottineau et
estão detalhados nos próximos parágrafos. A
al., 2017; Fragkias et al., 2013).
Figura 2 mostra como o expoente de escala β
Considerando que o expoente β demonstra
varia com o limiar mínimo da base de dados
robustez após os primeiros cortes (em torno
original para cinco variáveis selecionadas.
de 500 hab/km2), o ponto exato do corte final
Cada linha representa uma variável urbana e
não afeta substancialmente os valores dos
as cores indicam seu regime de escala de
expoentes.
acordo com a classificação de Bettencourt e

Figura 2.

Expoentes de escala β das variáveis representativas em função dos pontos de corte de densidade mínima.
Cada linha representa o expoente de escala de uma variável (eixo y) estimado a partir de regressão MMQ
de seu logaritmo contra a população como função dos pontos de corte de densidade (eixo x). A linha
vertical indica o limiar final de densidade mínima (1.100 hab/km2).

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Para o restante das análises nós escolhemos portanto escolhemos o valor final de modo a
um valor de corte de 1.100 hab/km2, evitá-la. A Figura 3 apresenta o subconjunto
pertencente ao mesmo intervalo de densidade final de 88 municípios (em cores) em
adotado pela OCDE-CE (Organização para a comparação com a base original (cinza).
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico Observamos que este subconjunto abrange
– Comunidade Europeia. N. do T.) para sua quatro ordens de magnitude e é
definição de cidade, que é de 1.500 hab/km2 predominantemente composto por
(Dijkstra e Poelman, 2012). Optamos por municipalidades pertencentes aos decis
considerar um valor mais baixo para permitir superiores de população, mesmo que alguns
a inclusão de um maior número de pequenos municípios tenham sido incluídos.
municipalidades. Ao mesmo tempo, algumas Isso era esperado, pois é fato que municípios
variáveis apresentaram pequena maiores são mais densos e possuem centros
descontinuidade ao redor de 1.000 hab/km2, urbanos mais consolidados.

A) B)

Figura 3.
Relação de escala das variáveis representativas para todos os municípios (cinza) e para os selecionados
(em cores). Cada ponto representa uma municipalidade, o eixo x indica a sua população e o eixo y sua
variável (A - socioeconômica: PIB; B - infraestrutura: extensão da rede viária). Linhas sólidas (coloridas
e acinzentadas) indicam o melhor ajuste da regressão MMQ entre a transformação logarítmica de cada
grupo, enquanto a linha preta pontilhada indica a lei de escala linear.
A Figura 4 traz o expoente de escala com seu crescentes se sustenta para nossas variáveis e
intervalo de confiança para o conjunto de métodos, o que pode ser resumido pelo
variáveis representativas. A versão completa comportamento de escala das receitas
deste gráfico e sua tabela de dados contendo (superlinear) e do orçamento (linear).
todas as variáveis estatisticamente Entretanto, algumas variáveis do tipo
significativas pode ser encontrada na tabela serviços básicos individualizados
S2 do material suplementar. Uma análise (esgotamento sanitário e tratamento de
desses expoentes finais indica que a esgoto) desviam do comportamento de escala
proposição geral dos ganhos de escala esperado.

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Figura 4.
Valores dos expoentes dos diferentes indicadores urbanos do sistema urbano brasileiro. Cada ponto
representa o expoente de escala relacionado ao melhor ajuste da regressão MMQ entre a população e a
variável em estudo; os segmentos de linha verticais representam o intervalo de confiança de 95% das
regressões; as cores são baseadas na classificação de Bettencourt (2013); a linha horizontal preta indica
uma relação linear.
As variáveis socioeconômicas tais como o A relação sublinear antevista para as
PIB, bem como indicadores relacionados à variáveis de infraestrutura não foi tão clara.
saúde, como mortes por acidente de trânsito e Indicadores relacionados genericamente ao
homicídios, escalaram de forma superlinear. uso do espaço (área, vias), educação (número
Isso é coerente com resultados de estudos de escolas), distribuição de água (extensão da
prévios (Alvez et al., 2013; Ignazzi, 2014, rede e número de ligações) e coleta de lixo
2015), que encontraram comportamento de (quantidade de caminhões e operários)
escala superlinear para variáveis escalaram sublinearmente, conforme o
socioeconômicas do sistema urbano esperado. Por outro lado, variáveis
brasileiro (renda, homicídios). Não havendo relacionadas à infraestrutura de esgoto ou
distanciamento significativo dos resultados equipamentos de saúde divergiram do regime
anteriores, concluímos que o método aqui sublinear e escalaram tanto superlinearmente
proposto é válido. Nossos resultados (extensão e número de ligações da rede de
ampliam esses achados para um novo esgoto, número de leitos hospitalares) como
conjunto de variáveis socioeconômicas: linearmente (quantidade de unidades de
indicadores variados de receitas fiscais saúde). O número de leitos em hospital
(serviços, área urbana), produtividade social poderia escalar sublinearmente devido à
(número de negócios, extensão de calçadas definição de área urbana adotada: como elas
que recebem serviço de varrição, quantidade são diferentes de áreas funcionais, pode
de ONGs). Eles estão alinhados com as ocorrer de a maior cidade da aglomeração
proposições teóricas que sugerem ganhos concentrar os leitos e, portanto, contabilizá-
crescentes com o escalamento dos los desproporcionalmente, levando a um
indicadores sociais nas cidades maiores. escalamento superlinear. Se houvéssemos
adotado a definição de área funcional o

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regime de escala poderia ser outro. escalamento de variáveis de infraestrutura e


Entretanto, também pode ocorrer de as individualizadas, incluindo os países em
maiores municipalidades concentrarem leitos desenvolvimento, algumas considerações
para populações além da aglomeração, devem ser feitas. De acordo com nossos
recebendo também pacientes de cidades resultados para o sistema urbano brasileiro,
longínquas. Neste caso, poderíamos esperar nem todas as variáveis de infraestrutura
um escalamento superlinear, mesmo que a apresentam escalamento sublinear. Aquelas
definição funcional de área urbana tivesse que são providas para toda a população
sido adotada. (abastecimento de água, no caso do Brasil) e/
ou produzidas por decisões de nível local
Em relação às variáveis dos serviços básicos
(sistema viário) seguem inegavelmente o
individualizados, para os quais se esperava
escalamento sublinear. O regime de escala
um comportamento de escala linear, também
desses casos (acesso universal e processo de
encontramos desvios semelhantes e
geração “bottom up” (de baixo para cima) é
relacionados aos das variáveis de
definido por propriedades das redes sociais e
infraestrutura. Serviços individualizados que
por restrições espaciais, como proposto por
não dependem de investimentos centralizados
Bettencourt (2013). Por outro lado, variáveis
(quantidade de casas com banheiro) ou
de infraestrutura que dependem de decisões
relacionados aos serviços de fornecimento de
ou investimentos “top down” (de cima para
água (acesso ao sistema de abastecimento)
baixo) podem se afastar do regime sublinear
mostraram escalamento linear. Esses
(sistema de tratamento de esgoto,
resultados foram em parte encontrados em
equipamentos de saúde). Isso tem maior
estudos prévios do sistema urbano brasileiro
chance de ocorrer nos países em
(Alvez et al., 2013), nos quais um índice
desenvolvimento, nos quais os governos
agregado de saneamento que contempla
podem não ser capazes de prover acesso
existência de banheiro, abastecimento de
universal a determinados tipos de
água e coleta de resíduos escalou de forma
infraestrutura. Nesse caso, um processo de
linear com a população dos municípios do
tomada de decisão centralizado deveria se
país. Contudo, quando nos referimos aos
refletir em um expoente linear para uma
serviços de tratamento de esgoto (número de
variável que deveria apresentar
habitantes conectados à rede, volume
comportamento sublinear se emergisse de
coletado e quantidade de contratos de
interações locais, como no caso do
serviços de tratamento) encontramos
tratamento de esgoto no Brasil (Fig. 5). Da
comportamento superlinear. É possível que
mesma maneira, podemos explicar a
esses desvios estejam diretamente
mudança do esperado regime linear de escala
relacionados àqueles observados para as
das variáveis de serviços básicos
variáveis infraestruturais, e uma potencial
individualizados para um regime superlinear.
explicação é apresentada na seção de
De acordo com nossos resultados, no sistema
Discussão. Outras variáveis para as quais se
urbano brasileiro apenas os maiores
poderia esperar comportamento de escala
municípios com alto poder de investimento
linear (consumo de água, por exemplo) não
são capazes de garantir os equipamentos e
se mostraram estatisticamente significativas e
redes de infraestrutura aos seus habitantes.
foram excluídas da análise.

Discussão
Esta pesquisa buscou compreender até que
ponto as leis de escala propostas são
universais, sob quais condições podemos
observar desvios e se esses desvios são
temporários quando testados contra um
grande número de variáveis em um sistema
urbano de país em desenvolvimento.
Nossos resultados sugerem que, para que seja
possível generalizar a hipótese do

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Figura 5.
Expoentes de escala β das variáveis representativas em função dos pontos de corte de densidade mínima.
Cada linha representa o expoente de escala de uma variável (eixo y) estimado a partir de regressão MMQ
de seu logaritmo contra a população como função dos pontos de corte de densidade (eixo x). A: variáveis
de infraestrutura; B: serviços individualizados.
A observação de que as variáveis sem acesso Uma explicação econômica para o fato de
universal (não providas pela municipalidade algumas variáveis de infraestrutura
para toda a população) desviam do regime de desviarem do regime de escala sublinear
escala esperado pode ser prevista pelo pode ser encontrada na Teoria da Armadilha
arcabouço teórico de Bettencourt (2013; do Equilíbrio de Baixo Nível (Nelson, 1956):
West, 2017). Uma das condições necessárias quando os governos federais tendem a fixar
para a emergência da não-linearidade é preços abaixo do nível economicamente
conhecida como preenchimento de espaço, o sustentável para os serviços, descapitalizando
que significa que as variáveis de as empresas públicas locais. Assim, as
infraestrutura precisam ser de acesso cidades dependem de intervenções
universal no sistema para que a relação centralizadas para expandir a provisão dos
sublinear apareça. Em outras palavras, os serviços. Já foi demonstrado que a coleta e o
tentáculos das redes de distribuição devem se tratamento de esgoto seguem essa tendência
estender a todos os pontos de todas as (Faria et al., 2005) e, mesmo que não tenham
cidades do sistema para que observemos sido encontradas publicações específicas
expoentes sublineares. Tendo em vista que sobre o nível de equilíbrio econômico para os
essa condição não vale para a infraestrutura serviços de saúde, é provável que, dados seus
de esgoto e tratamento de saúde no sistema altos custos, o mesmo ocorra com eles. Nesse
urbano brasileiro, era de se esperar que as cenário, apenas as maiores municipalidades,
variáveis indicadoras desses serviços se que contam com maiores ingressos fiscais,
desviassem do regime de escala esperado. O têm recursos suficientes para investir em
fato de que algumas infraestruturas infraestrutura. Municípios menores, com
específicas não são preenchedoras de espaço baixa arrecadação, dependem dos
nas cidades brasileiras sugere a necessidade investimentos federais para a expansão da
de outros estudos que investiguem se o infraestrutura pois gastam a maior parte de
fenômeno também ocorre em outros sistemas suas receitas em pagamento de salários. Isso
urbanos ou se é uma especificidade local. conduz à existência de municípios sem

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acesso universal a determinadas menores ao longo do tempo. Esse processo


infraestruturas e, portanto, a um escalamento foi observado anteriormente no sistema
superlinear das variáveis que as medem. O urbano brasileiro para diferentes setores
caso da distribuição de água é diferente: seu econômicos (Ignazzi, 2015). Se isso também
acesso foi praticamente universalizado no se sustenta para as variáveis de infraestrutura,
país algumas décadas atrás por meio de deveremos observar um crescimento maior
investimentos públicos (Faria et al., 2005). A da extensão das redes de esgoto nos
diferença entre as variáveis sob o regime do municípios menores e menor crescimento nos
equilíbrio de baixo nível e aquelas fora dele maiores quando aquelas houverem enfim
pode ser observada na Figura 5. Variáveis implantado suas redes. Para testar essa
indicadoras do sistema de coleta de esgoto hipótese, a Figura 6 apresenta dez anos de
desviam dos valores esperados, enquanto variação nas redes de água e esgoto em
variáveis do sistema de abastecimento de relação à população dos municípios. Mesmo
água tendem a escalar dentro o intervalo que esse período não seja suficiente para
esperado. observações conclusivas, ambas as variáveis
de infraestrutura parecem ter crescido muito
Uma última questão resta a ser respondida:
pouco nas maiores municipalidades. As
os desvios observados deverão se manter ao
pequenas e médias mostram bastante
longo do tempo ou podemos esperar que eles
variação, mas algumas delas apresentam
convirjam para valores encontrados em
crescimento expressivo. Também é
outros sistemas urbanos? Podemos recorrer a
interessante notar que as redes de esgoto
outro arcabouço teórico para ajudar com as
cresceram mais do que as de água,
respostas. Pumain et al. (2006) sugere um
provavelmente porque seu estado de
processo de difusão hierárquica de inovações
equilíbrio de baixo nível as caracteriza como
em sistemas de cidades para variáveis com
"inovações" de difícil difusão. Se essa
potencial de se tornarem ubíquas, tornando-
dinâmica é robusta ao longo do tempo e o
as desproporcionalmente altas para as
que leva as cidades menores a experimentar
cidades grandes até que a igualdade entre as
maior crescimento de sua infraestrutura
cidades seja atingida. A proposta de Pumain
enquanto outras não, são perguntas que
é que essas cidades grandes lideram o
permanecem a ser respondidas por pesquisas
processo de difusão, adaptando a tecnologia e
futuras.
tornando-a mais e mais barata para as cidades

Figura 6.
Ampliação da infraestrutura entre 2005 e 2014 em relação à população do sistema urbano brasileiro. Cada
ponto representa a variação temporal de um município. A: rede de esgoto; B: rede de água.

Conclusão que as leis de escala se sustentam para as


variáveis socioeconômicas. No entanto,
Este artigo testou a hipótese de
verificamos que algumas variáveis de
universalidade das leis de escala urbana em
infraestrutura e de serviços básicos
relação a uma ampla diversidade de variáveis
individualizados (indicadoras de serviços de
em um sistema de cidades de país em
saúde e esgoto sanitário) não escalam como
desenvolvimento. Nossos achados confirmam

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proposto pela literatura. Essa constatação equipamentos de saúde, para os quais


impõe limites à hipótese da universalidade, expoentes superlineares e sublineares foram
que postula que assentamentos humanos encontrados. Encontramos também
densos devem apresentar os mesmos padrões evidências exploratórias de que os desvios
de escalamento, independentemente das são efêmeros, e que as variáveis indicadoras
características específicas do sistema urbano. dessas infraestruturas tendem a evoluir ao
Nós conjeturamos que as diferenças longo do tempo em direção aos valores
observadas têm a ver com políticas de esperados. Esses achados precisam ser
investimento e condições econômicas validados, assim como novas evidências
específicas do país. Assim, se uma variável empíricas precisam ser buscadas em outros
de infraestrutura é dependente de decisões países em desenvolvimento, para outras
centralizadas e/ou não é acessível de forma variáveis e com definições funcionais de
universal em todo o sistema urbano, ela pode cidade mais abrangentes. Nossos achados
se desviar do regime de escala esperado. Esse mostram a importância de considerar os
foi o caso, em nosso subconjunto de países em desenvolvimento/do Sul Global
municípios brasileiros, de variáveis como para tornar a hipótese da universalidade
extensão da rede de coleta de esgoto e efetivamente universal.

Notas
1
Artigo traduzido por Julio C. B. Vargas.
Publicado originalmente em: PLOS ONE
October 4, 2018. Citação: Meirelles J, Neto CR,
Ferreira FF, Ribeiro FL, Binder CR (2018)
Evolution of urban scaling: Evidence from Brazil.
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Tradução do título, resumo e palavras-chave


Evolution of urban scaling: Evidence from Brazil
Abstract. During the last years, the new science of cities has been established as a fertile quantitative
approach to systematically understand the urban phenomena. One of its main pillars is the proposition
that urban systems display universal scaling behavior regarding socioeconomic, infrastructural and
individual basic services variables. This paper discusses the extension of the universality proposition by
testing it against a broad range of urban metrics in a developing country urban system. We present an
exploration of the scaling exponents for over 60 variables for the Brazilian urban system. Estimating
those exponents is challenging from the technical point of view because the Brazilian municipalities’
definition follows local political criteria and does not regard characteristics of the landscape, density,
and basic utilities. As Brazilian municipalities can deviate significantly from urban settlements, urban-
like municipalities were selected based on a systematic density cut-off procedure and the scaling
exponents were estimated for this new subset of municipalities. To validate our findings we compared the
results for overlaying variables with other studies based on alternative methods. It was found that the
analyzed socioeconomic variables follow a superlinear scaling relationship with the population size, and
most of the infrastructure and individual basic services variables follow expected sublinear and linear
scaling, respectively. However, some infrastructural and individual basic services variables deviated from
their expected regimes, challenging the universality hypothesis of urban scaling. We propose that these
deviations are a product of top-down decisions/policies. Our analysis spreads over a time-range of 10
years, what is not enough to draw conclusive observations, nevertheless we found hints that the scaling
exponent of these variables are evolving towards the expected scaling regime, indicating that the
deviations might be temporally constrained and that the urban systems might eventually reach the
expected scaling regime.
Keywords: scaling laws, cities, complex systems, Brazilian cities.

Editor responsável pela submissão: Julio C. B. Vargas.

Licenciado sob uma licença Creative Commons.

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Identificação de composições da paisagem urbana:
uma abordagem de deep learning

Ana Luiza Favarão Leãoa , Hugo Queiroz Aboniziob , Sylvio Barbon Júniorc ,
Milena Kanashirod
a
Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Londrina, PR, Brasil. E-mail: analuiza.favarao@uel.br
b
Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Computação, Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Computação, Londrina, PR, Brasil. E-mail: hugo.abonizio@uel.br
c
Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Computação, Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Computação, Londrina, PR, Brasil. E-mail: barbon@uel.br
d
Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Londrina, PR, Brasil. E-mail: milena@uel.br

https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.140
Submetido em 8 de março de 2020. Aceito em 21 de maio de 2020.

Resumo. A composição do ambiente pode exercer impactos sobre seus


usuários, no entanto, esta relação permanece incerta até que as composições
da paisagem urbana e suas qualidades espaciais possam ser analisadas
empiricamente. Imagens obtidas através do Google Street View (GSV)
possibilitam um grande volume de dados para avaliação automatizada das
características ambientais. Técnicas de deep learning têm avançado na
identificação de elementos compositivos do ambiente construído. Neste
sentido, este estudo busca investigar e testar um procedimento de
identificação da configuração e composição da paisagem urbana, por meio
da classificação de imagens obtidas pelo GSV. A partir de um banco de
imagens de três bairros de Londrina-PR, um modelo de deep learning para
classificação de imagens foi proposto. O modelo obteve um bom
desempenho, atribuindo corretamente 87,6% das amostras dos respectivos
bairros do estudo de caso. Características compositivas foram
empiricamente identificadas, considerando a distribuição das amostras no
espaço de busca obtido. O modelo proposto contribui na definição de
recortes espaciais bem como na mensuração de qualidades ambientais,
otimizando coletas de dados, ampliando amostras e conferindo objetividade
aos resultados. Esta abordagem contribui na expansão das escalas analíticas
da cidade, identificando padrões compositivos e relacionais para o
entendimento de elementos influentes no comportamento humano.
Palavras-chave. morfologia urbana, ambiente construído, aprendizado profundo,
classificação de imagens, Google Street View.

análises voltadas ao Planejamento e Projeto


Introdução
Urbano. A composição do ambiente
A cidade como um artefato antrópico, com construído tem sido associada a atividade
diferentes configurações, reflete a física realizada pelos residentes (Sallis et al.,
complexidade das relações socioespaciais. 2015), sua satisfação com o ambiente (Lee et
Assim, composição e forma da cidade, al., 2017), segurança contra o crime
resultado de características naturais e (Kamalipour, Faizi e Memarian, 2014) e até a
construídas, são parâmetros importantes em felicidade dos indivíduos (Kent, Ma e

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Identificação de composições da paisagem urbana 2 / 14

Mulley, 2017; Seresinhe et al., 2019). Neste resolução para os estudos de morfologia
sentido o design urbano pode influenciar as urbana (Moosavi, 2017; Shen et al., 2018;
escolhas e o comportamento das pessoas. No Zhang et al., 2017). Este tipo de
entanto, esta relação permanece incerta até procedimento pode ser uma alternativa mais
que as composições da paisagem urbana e eficiente (Ben-Joseph et al., 2015) se
suas qualidades espaciais possam ser comparado à levantamentos ou auditorias em
definidas, quantificadas, medidas e testadas campo que além de possivelmente sujeitos a
empiricamente (Ewing e Handy, 2009). subjetividade, são mais onerosos e requerem
deslocamentos em locais nem sempre
Dentre as diversas abordagens teórico-
seguros para o pesquisador (Badland et al.,
metodológicas de análise do ambiente
2010).
urbano, desde leituras históricas,
morfológicas, de apropriações, de Por outro lado, os métodos de aquisição de
percepções, ou de temporalidades, uma das imagens urbanas como o GSV possibilitam a
estratégias é a definição de recortes espaciais, obtenção de um grande volume de dados para
a partir do reconhecimento de padrões. Por a realização das análises. Desta forma, a
exemplo, a delimitação de Unidades de avaliação automatizada de características
Paisagem permite a identificação dos compositivas do ambiente demonstra
atributos responsáveis pela dinâmica da potencial para incorporação na área. Neste
paisagem (Amorim e Oliveira, 2008); a contexto, abordagens que utilizam
definição de setores/distritos/bairros define aprendizado de máquina têm ganhado espaço
limites para agregação de dados para a na literatura. Tais métodos objetivos de
caminhabilidade (Gehrke e Wang, 2020); a obtenção de dados do espaço urbano
concepção de unidades homogêneas urbanas diminuem a necessidade de despender tempo
para o agrupamento de áreas com as mesmas em levantamentos in loco, ainda
características ambientais e/ou físico- possibilitando um maior volume de dados
espaciais para o estabelecimento de classes (Zhang et al., 2018).
de usos urbanos (Medeiros e Grigio, 2019).
Entretanto, o aprendizado de máquina
Tais processos buscam a definição de
tradicional limita-se à necessidade de
padrões espaciais, a partir de parâmetros pré-
extração de características previamente
definidos. Para esse procedimento, análises
definidas que descrevam o problema e à sua
de características individuais e posteriores
capacidade de lidar com dados de alta
sobreposições de informações para a
dimensionalidade (e.g. pixels de uma
delimitação de áreas têm sido realizadas por
imagem obtida através do GSV), resultando
meio de levantamentos de dados secundários,
no problema conhecido como Maldição da
de campo e de definição de critérios.
Dimensionalidade (Poggio et al., 2017). Em
Nos últimos anos, imagens urbanas de contrapartida, métodos de deep learning
produtos online como Google Street View apresentam múltiplas camadas de
(GSV) têm se tornado cada vez mais processamento e representação de dados, por
disponíveis, retratando o ponto de visão do meio da composição de módulos não lineares
usuário (Middel et al., 2019). Por meio do que transformam a representação inicial (e.g.
uso destas ferramentas, se torna possível pixels de uma imagem), em elementos de um
testar abordagens de big data e de maior nível de abstração (Lecun, Bengio e
aprendizado de máquina para estudos de Hinton, 2015). Técnicas de deep learning,
caracterização visual de elementos como redes neurais convolucionais, têm
tipológicos (Doersch et al., 2012; Yin e avançado com aplicações de visão
Wang, 2016; Liu et al., 2017; Moosavi, computacional em muitos domínios de
2017; Zhang et al., 2017; Shen et al., 2018), pesquisa, inclusive na identificação de
a mensuração de qualidades urbanas que elementos compositivos do ambiente
possivelmente influenciam o comportamento construído como a estética (Tan et al., 2017)
e bem-estar na escala da rua (Yin et al., e paisagem (Zhou et al., 2016).
2015; Yin e Wang, 2016; Liu et al., 2017),
Considerando tais aspectos metodológicos e
assim como o uso de imagens de alta
conceituais, esta pesquisa apresenta como

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Identificação de composições da paisagem urbana 3 / 14

objetivo geral, testar um procedimento de de forma objetiva e baseada em evidências. O


identificação da configuração e composição modelo criado obteve uma acurácia de
da paisagem urbana, por meio de uma 87,6%, indicando uma boa capacidade de
abordagem de classificação de imagens na generalização. Este resultado demonstra um
aplicação de um método de deep learning. A bom desempenho do modelo, indicando que
partir da hipótese de que as imagens características compositivas que variam entre
avaliadas, por meio de um modelo de os bairros foram corretamente abstraídas,
classificação, permitirão o reconhecimento aprendidas e reconhecidas. /um prisma de
de padrões do ambiente construído em caráter subjetivo e limitado a pequenas
imagens obtidas através do GSV. Este amostras (Yin e Wang, 2016).
trabalho explora e discute a aplicação de
modelos de deep learning como ferramenta Métodos
para a análise da paisagem urbana. Em suma,
busca-se agrupar composições similares geo- A estratégia de pesquisa adotada foi o estudo
informativas (Doersch et al., 2012) da de caso, visto que o fenômeno analisado é
paisagem. A partir de um banco de imagens, contemporâneo e contextual, portanto
características compositivas foram indissociável da realidade (Yin, 2001). Como
identificadas, considerando a distribuição das caso, três setores definidos pelo município
amostras no espaço de busca construído foram adotados como recorte na cidade de
através de um modelo de classificação. Londrina-PR, considerando, principalmente,
suas diferenças socioeconômicas,
Os resultados da presente pesquisa temporalidades de desenvolvimento, traçado
contribuem no fomento de pesquisas com urbano e localização geográfica: Centro
aplicações de deep learning para a Histórico, Cinco Conjuntos e Gleba Palhano
compreensão de leituras de paisagem urbana
(Figura 01).

Figura 1. Bairros selecionados (fonte: elaborado pelos autores, 2020).


Londrina apresenta uma população estimada, colonização da Companhia de Terras Norte
em 2019, de 569.733 hab. (IBGE, 2018). A do Paraná, no contexto histórico da produção
cidade foi construída, a partir de um pré- cafeeira. Os anos seguintes foram
projeto em 1932, como parte do processo de crescentemente marcados por um
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crescimento urbano ao redor de um núcleo 2011). A partir da década de 1990, com um


planejado (Töws, Mendes e Vercezi, 2010), adensamento populacional consolidado, uma
que configura hoje o bairro chamado de nova dinâmica, a avenida Saul Elkind
Centro Histórico. Características de estabeleceu-se como centralidade com
ortogonalidade da malha, intenso uso misto e atividades de comércio e prestação de
adensamento residencial vertical, marcam a serviços.
valorização do núcleo inicial da cidade.
Para criação do modelo de identificação dos
A Gleba Palhano, um setor localizado na bairros foi utilizada uma abordagem de
Zona Sudoeste de Londrina, iniciou sua aprendizado de máquina supervisionado, no
consolidação a partir dos anos 90. Inúmeros qual um conjunto de amostras rotuladas com
fatores condicionaram o desenvolvimento a classe correspondente é utilizado para
desta área, mas principalmente o apelo ao modelar a distribuição condicional das
mercado imobiliário pela localização classes que compõem o problema (Bishop,
privilegiada dentro da malha urbana, sendo 2006). Nesta abordagem um modelo é
até hoje objeto de grande valorização induzido por pares de entradas e saídas que
fundiária. Atualmente é a região mais são utilizados no aprendizado de padrões
valorizada da cidade, superando o Centro presente nos dados. Neste trabalho tem-se
Histórico (Oura, 2006). Caracterizada por como entrada para o modelo uma imagem da
uma intensa ocupação verticalizada, o padrão paisagem urbana e como saída o bairro a qual
de condomínios alocados em grandes lotes é a imagem pertence.
direcionado para a população de alta renda.
O desenvolvimento do modelo e análise dos
O desenvolvimento da Zona Sudoeste de resultados foram divididos em quatro etapas:
Londrina se contrapõe ao da Zona Norte, (1) a coleta de dados, na qual foi realizada a
caracterizada, sobretudo pelos aquisição das imagens disponíveis no GSV;
empreendimentos de habitação de interesse (2) o pré-processamento, em que as imagens
social, para a classe baixa e focos de passam por uma fase de tratamento que visa
favelamento (Töws, Mendes e Vercezi, melhorar a qualidade dos dados; e (3) a etapa
2010). O Cinco Conjuntos, a terceira área de indução do modelo, para a realização do
selecionada, situa-se na Zona Norte e tem sua treinamento utilizando as amostras que foram
origem em projetos habitacionais da década pré-processadas e o algoritmo de aprendizado
de 1970. Este empreendimento foi mediado de máquina; e, por fim, (4) a análise dos
pela logística de construções de casas da resultados por meio de técnicas de
Companhia de Habitação – COHAB/LDA, interpretação do modelo. A Figura 02 ilustra
responsável por subsidiar verba para as etapas do processo, detalhadas na
construção de habitações de baixa renda por sequência.
toda periferia de Londrina (Beidack e Fresca,

Figura 2. Etapas do desenvolvimento metodológico da pesquisa (fonte: elaborado pelos autores,


2020).

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Aquisição de 90 graus. As amostras que resultaram em


um erro de aquisição pela API, devido à falta
Uma amostragem de pontos distribuídos de
de imagens para a dada coordenada, foram
100 em 100 metros pela rede viária foi
descartadas.
realizada por meio do software ArcGis 10.6.
O toolbox de Gerenciamento de dados foi Um total de 2.017 amostras foi obtido,
utilizado, com a ferramenta Generate Points conformando a base de imagens utilizada
Along Lines, que aloca pontos ao longo de nesta pesquisa (Tabela 01). A amostragem
linhas em intervalos fixos. Considerando totalizou n=554 pontos no setor do Centro
dados de centro de via disponibilizados pela Histórico, n=368 pontos na Gleba Palhano e
Prefeitura de Londrina (Prefeitura do n=1095 no Cinco Conjuntos. Houve um
Município de Londrina, 2020), a medida desequilíbrio do número amostral por setor,
adotada foi utilizada por representar a em virtude, principalmente, da quantidade de
dimensão aproximada das quadras do plano vias existentes. Aponta-se que o setor do
inicial da cidade (Yamaki, 2017, p. 64). Cinco Conjuntos além de possuir a maior
dimensão em área, possui uma rede viária
Por meio da API (Application Programming
mais extensa (Tabela 01) em função de um
Interface) do GSV, imagens foram obtidas a
macro parcelamento marcado por quadras
partir da localização geográfica dos pontos
retangulares com lotes de dimensões
amostrais. Os seguintes parâmetros foram
mínimas.
utilizados para as requisições: câmera
orientada ao norte, rotação vertical neutra em
relação ao solo e definição de campo de visão
Tabela 1. Características da malha e amostragem (fonte: elaborado pelos autores, 2020).

Cinco Conjuntos Centro Histórico Gleba Palhano

Setor

Extensão 129,76 km 49,68 km 61,16 km

Rede 6,80km² 4,26km² 3,26km²


Viária

Amostra 1095 554 368

climáticas, foi realizado um tratamento para


Pré-Processamento
evitar que características como a iluminação
A partir das amostras coletadas, o passo e a saturação fossem evidenciadas pelo
seguinte foi o pré-processamento das modelo e reconhecidas como informações
imagens, visando melhorar a qualidade das relacionadas ao bairro.
predições produzidas pelo modelo e evitando
Para remover as diferenças de iluminação, foi
o sobreajuste em características pouco
utilizado um espaço de cor onde, diferente do
informativas. Considerando que as imagens
padrão RGB, a iluminação é isolada dos
foram adquiridas pelo GSV em diferentes
outros componentes da imagem. Sendo
horários do dia e em diferentes condições

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assim, as imagens foram convertidas para o adequada para diversas aplicações em análise
espaço de cor YCbCr, utilizando a biblioteca de imagem.
OpenCV1. YCbCr é um espaço de cor em que
Foi utilizada uma rede ResNet com 18
o canal Y representa a luminância, o canal
camadas (ResNet-18) previamente treinada
Cb a crominância azul e Cr a crominância
com o banco de dados ImageNet (Deng et al.,
vermelha (Gowda e Yuan, 2019). Dessa
2009). Tal abordagem tem como objetivo
forma, o histograma do canal de luminância
utilizar os padrões aprendidos em grandes
foi utilizado para equalizar as imagens.
conjuntos de dados – como o ImageNet, que
Criou-se assim, uma distribuição mais ampla
contém milhões de amostras – e transferir
e uniforme dos valores de intensidade do
este aprendizado para alavancar a
canal Y, atenuando as diferenças causadas
identificação de características com uma
pelos contrastes da iluminação.
quantidade menor de amostras. Estes padrões
vão desde características simples como linhas
Classificação
e bordas até características mais complexas
Após o pré-processamento, com o conjunto como formas poligonais e texturas em
de imagens adequadas para modelagem, o camadas mais profundas da rede.
passo seguinte foi a criação do modelo de
A partir da rede inicializada com os pesos
classificação de imagens. Com o intuito de
previamente treinados, foi realizada a
avaliar o desempenho do modelo sem
sintonia fina do modelo ao longo de 30
nenhum viés indutivo, as imagens foram
épocas usando o algoritmo Adam (Adaptive
divididas em um conjunto de treino e um
Moment Estimation) (Kingma e Ba, 2014)
conjunto de teste, onde o primeiro é utilizado
para otimizar os parâmetros. Dessa forma, os
para a indução do modelo e o segundo é
parâmetros aprendidos no treinamento prévio
utilizado para avaliar o desempenho do
são ajustados no conjunto de dados da base
modelo induzido. Sendo assim, o conjunto de
investigada, aprendendo a classificar as
teste serve como parâmetro para quantificar a
imagens em seu respectivo bairro.
capacidade de generalização do modelo em
novas amostras, ou seja, amostras não Uma vez que existe um desbalanço entre as
utilizadas durante a fase de treinamento classes, isto é, quantidades diferentes de
(Bishop, 2006). Dessa forma, as amostras amostras em cada classe (i.e. bairros), sendo
foram separadas aleatoriamente e de maneira uma delas significativamente maior que as
estratificada em relação a classe em um outras, foram utilizados diferentes pesos
conjunto contendo 80% das imagens entre as classes para compensar a
utilizado para o treinamento do modelo e os representatividade de cada classe no conjunto
20% restantes foram utilizados para medir o total. Também foram aplicadas técnicas
desempenho. tradicionais de data augmentation, como
rotação horizontal, que dobra a variação das
Em seguida, para a criação do modelo de
imagens espelhando o eixo horizontal, e
classificação de imagens, foi selecionada a
recorte aleatório, que cria diversas variações
arquitetura ResNet (He e Sun, 2016), uma
da imagem mantendo o mesmo centro
Rede Neural Convolucional que utiliza
(Takahashi, Matsubara e Uehara, 2019;
blocos residuais e conexões de atalho para
Shorten e Khoshgoftaar, 2019). Tais
evitar o problema da dissipação do gradiente
procedimentos foram implementados através
(Glorot e Bengio, 2010). Essa arquitetura se
da biblioteca de aprendizado de máquina
mostrou eficaz em uma grande variedade de
PyTorch2 e seus parâmetros padrão.
problemas, incluindo aplicações em análise
de imagens médicas (Litjens et al., 2017),
Análise
agricultura (Kamilaris e Prenafeta-Boldú,
2018), descrição automática de cenas Com o objetivo de compreender os padrões
(Anderson et al., 2018) e identificação de reconhecidos pelo modelo e interpretar as
pedestres (Fan et al., 2018). Sendo assim, a características modeladas, foi realizada uma
arquitetura ResNet se mostra robusta e visualização em duas dimensões das
amostras presentes no conjunto de teste

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utilizando uma técnica de redução de comparação entre o rótulo real das amostras e
dimensionalidade. A técnicas escolhida foi t- o rótulo obtido pela classificação.
SNE (t-Distributed Stochastic Neighbor
Embedding), um método não linear de Resultados
visualização de dados com uma alta Para visualização das amostras no espaço de
dimensionalidade que atribui a cada ponto de características aprendidas pelo modelo, foi
um espaço N-dimensional uma localização utilizada a técnica t-SNE. A Figura 03
em um novo espaço 2D ou 3D (Maaten e apresenta dois gráficos com a distribuição
Hinton, 2008). das amostras do conjunto de teste,
O algoritmo funciona criando uma diferenciando o bairro a qual pertence a
distribuição de probabilidade Gaussiana amostra pela cor e destacando as amostras
baseada na similaridade entre cada par de que foram erroneamente classificadas.
amostras no espaço original. Assim, essa Assim, a partir desta projeção foi possível
distribuição é recriada utilizando a identificar padrões de agrupamentos das
distribuição t-Student no novo espaço de amostras na estrutura do espaço de
baixa dimensionalidade. A otimização da características aprendidas.
distribuição na nova projeção é feita através O gráfico à esquerda na Figura 03(a)
de gradiente descendente na divergência de apresenta duas grandes aglomerações dos
Kullback-Leibler entre as duas distribuições. bairros Centro e Cinco Conjuntos, indicando
Diferente de outras técnicas de redução de uma clara divisão das características
dimensionalidade que levam em detectadas nas imagens dos dois bairros. A
consideração apenas relações lineares no Gleba Palhano, em uma posição
espaço de características, como a Análise de intermediária, divide-se em dois grupos, um
Componentes Principais (Burges, 2010), a t- mais próximo das amostras do bairro Cinco
SNE mapeia também relações não lineares Conjuntos e outro do Centro. Essa divisão em
complexas da estrutura local e global dos dois subgrupos decorreu de características no
dados. bairro Gleba Palhano se assemelharem ao
Para visualização das amostras no espaço de Cinco Conjuntos e ao Centro. Parte do bairro
características do modelo treinado, foi possui uma estrutura recente verticalizada -
extraída a representação resultante da última se assemelhando às características
camada de convolução da rede, antes de ser encontradas no Centro - enquanto em outras
passada para a camada de classificação. partes ainda são encontrados muitos terrenos
Dessa forma, são extraídos vetores com 512 vazios e áreas em desenvolvimento.
valores para cada imagem, representando as O gráfico à direita na Figura 03(b) identifica
características aprendidas pelo modelo para as amostras que tiveram o rótulo atribuído
classificação das imagens. A partir dos pelo modelo diferente do bairro a qual ela
vetores de características das imagens, as pertence. É importante destacar que existe
amostras foram então projetadas em duas uma área entre as aglomerações das classes
dimensões utilizando t-SNE (Chan et al., que é mais ‘nebulosa’, não havendo uma
2018). distinção linear entre elas. Desta forma, é
Além da visualização das amostras no espaço possível identificar amostras do bairro Centro
de características, também foi utilizada a inseridas no grupo do bairro Cinco
matriz de confusão (Powers, 2011), a qual Conjuntos, acontecendo o mesmo para as
apresenta a contagem de amostras em relação outras combinações de classe. Tal fato foi
ao seu rótulo real e a predição feita pelo decorrência das características similares da
modelo de classificação. Dessa forma, é paisagem presentes nestas áreas. Portanto,
possível analisar o desempenho do modelo justamente as amostras nas áreas de transição
em relação a cada classe e as relações de entre as classes, lócus de maior perturbação,
similaridade aprendidas entre elas, na foram aquelas que o modelo erroneamente
predisse o bairro.

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Figura 3. Espaço de características - Projeção em duas dimensões das amostras utilizando t-


SNE; (a) à esquerda: formação de aglomerações de amostras da mesma classe; (b) à direita:
destaque das amostras classificadas erroneamente pelo modelo (fonte: elaborado pelos autores,
2020).
Além da visualização da divisão das classes facilmente identificados na Figura 04,
das amostras no espaço de características, a evidenciando a diferença das características
projeção em duas dimensões das amostras na composição da paisagem do Cinco
com as imagens originais em cada ponto do Conjuntos, na parte superior, e do Centro, na
espaço bidimensional foi gerada (Figura 04). parte inferior. Os dois grupos separados de
Desta forma, é possível observar a amostras da Gleba Palhano também são
similaridade, das amostras em conjuntos identificáveis nas áreas próximas ao Cinco
próximos no espaço, em comparação com as Conjuntos, na parte direita do gráfico, e do
amostras em conjuntos mais distantes. Os Centro, no canto inferior esquerdo.
agrupamentos reconhecidos na Figura 03 são

Figura 4. Projeção em duas dimensões das amostras utilizando t-SNE exibindo as imagens
coletadas em cada ponto do espaço bidimensional (fonte: elaborado pelos autores, 2020).

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Foi realizada a matriz de confusão principalmente em duas regiões, entretanto,


comparando o rótulo real das amostras, ou existem amostras dispersas na área
seja, o bairro ao qual a amostra originalmente intermediária entre as classes. Essa
pertence, e o rótulo predito pelo modelo de ocorrência pode estar associada ao menor
classificação no conjunto de teste (Tabela número de amostras da classe. Este fato
02). Foi possível entender quais foram os dificulta o aprendizado das características
principais erros do modelo em relação a cada durante a fase de treinamento em função da
classe do problema. Para analisar o número redução de variabilidade no espaço. A Figura
de amostras corretas e incorretas deve ser 03 mostra que foram os pontos de maior
considerado o desequilíbrio de amostras entre dificuldade de distinção entre as classes.
as classes.
A Figura 05 exemplifica situações nas quais
O bairro em que o modelo de classificação o modelo erroneamente classificou as
obteve o melhor desempenho foi o do bairro amostras. Em relação a predições do bairro
Cinco Conjuntos, onde apenas 6% das Centro Histórico, imagens incorretamente
amostras do conjunto de testes foram preditas como pertencentes ao bairro Cinco
classificadas erroneamente. Tal fato pode ser Conjuntos podem ser retratadas pelo exemplo
explicado por duas questões: esta classe é a que contempla características de uma
que apresenta a maior quantidade de paisagem residencial, no caso com elementos
amostras no problema, o que representa uma estéticos de tipologias residenciais mais
grande variabilidade de composições para antigas da cidade como a platibanda. Ainda,
serem aprendidas pelo modelo no conjunto exemplifica-se uma predição do Centro
de treino e generalizadas para o conjunto de Histórico como pertencente à Gleba Palhano
teste; outra explicação para o melhor através de uma imagem que retrata uma
desempenho nesta classe é a homogeneidade paisagem mista, com elementos de
da paisagem, fruto de empreendimentos de verticalização e unidades de apenas 1
habitação de interesse social predominantes pavimento. O bairro Cinco Conjuntos
no local apresentou amostras erroneamente preditas
como sendo do Centro Histórico
O Centro obteve o desempenho mediano,
principalmente em imagens que retratam
com equívoco em 12% das amostras do
tipologias tipicamente comerciais, bastante
conjunto de teste. Apesar de apresentar uma
típicas do centro da cidade. Em contrapartida,
menor dispersão no espaço de características,
amostras representativas do bairro Cinco
comparativamente às amostras do Cinco
Conjuntos foram interpretadas como sendo
Conjuntos, o modelo identificou amostras de
da Gleba Palhano, em muitos casos, quando
outras classes com características
vazios urbanos eram retratados. A Gleba
morfológicas similares. Isso ocorre
Palhano foi erroneamente classificada como
provavelmente em função de aspectos
Centro Histórico em imagens que retratam
temporais que caracterizam o local com
principalmente tipologias comerciais e
elementos inerentes a sedimentação do
fachadas ativas. Por outro lado, foi predita
espaço central da cidade.
como Cinco Conjuntos em imagens de vazios
O pior desempenho foi da Gleba Palhano, urbanos.
com 31% das amostras classificadas
equivocadamente. A classe está aglomerada
Tabela 2. Matriz de confusão (fonte: elaborado pelos autores, 2020).
Rótulo Predito
Centro Cinco Conjuntos Gleba Palhano
Centro 98 8 5
Rótulo
Real

Cinco Conjuntos 6 205 8


Gleba Palhano 10 13 51

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Figura 5. Imagens incorretamente classificadas (fonte: elaborado pelos autores, 2020).


estacionamentos nas vias e sinalização
Discussões
intensa de trânsito parece ter contribuído para
Os resultados demonstram a logicidade no a correta identificação.
uso do aprendizado de máquinas para a
Pode-se pontuar que as amostras que
identificação de características da paisagem
representam edifícios comerciais do centro e
urbana. O modelo apresentou uma maior
da zona norte foram diferenciadas, na sua
capacidade preditiva ao extrair as principais
maioria, corretamente inseridas em seus
particularidades do setor da Zona Norte da
contextos, indicando padrões tipológicos de
cidade - áreas de empreendimentos de
diferentes categorias (vicinal ou não) e uma
habitação de interesse social - de uma
leitura relacional da composição da paisagem
homogeneidade de edificações horizontais.
entre os setores.
Tais características aumentam a proporção de
céu nas imagens, e pela localização periférica A vegetação parece ser outro elemento
a linha do horizonte se dá de forma importante de identificação da paisagem
constante. urbana no uso da visão computacional. Tem-
se como suposição que fatores relacionados
No contraponto, no centro da cidade, as áreas
não apenas a existência, mas também os tipos
verticalizadas de configuração mais
de vegetação, a maturação e a manutenção
compacta e padrões de edificações
das áreas vegetadas foram indicativos da
comerciais e de serviços e, consequentemente
associação correta de imagens de vegetação
com a presença de fachadas ativas, foram
nos respectivos setores analisados.
identificadas de maneira coerente. Elementos
como a quantidade de carros, presença de

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Classificações incorretas foram detectadas abordagem efetiva para objetivamente


principalmente no setor Sudoeste da cidade, a identificar e classificar a forma e composição
Gleba Palhano. Conjectura-se que este urbana de bairros com diferentes níveis
resultado se deu em função da recência da socioeconômicos, temporalidades de
região, ainda em consolidação, assim desenvolvimento e, consequentemente,
compartilhando características relevantes diferentes composições da paisagem. O
com os outros dois bairros. A existência de modelo criado obteve uma acurácia de
vazios e antigos remanescentes de 87,6%, indicando uma boa capacidade de
edificações isoladas encontradas na Gleba generalização. Assim, entende-se que as
Palhano são características também da Zona características compositivas dos diferentes
Norte. Ainda, a recente verticalização é uma bairros foram efetivamente identificadas.
similaridade com a área Central. Portanto,
Limitações do estudo incluem,
entende-se que as imprecisões decorreram
principalmente, elementos relacionados às
pelo processo de consolidação do setor.
imagens obtidas no GSV: (1) a visão das
A passagem do tempo e a manutenção dos câmeras difere daquela de um pedestre, pois
elementos físicos do ambiente urbano são as imagens são fornecidas do centro das vias.
indicativos nem sempre objetivos em Desta forma, elementos específicos da
avaliações da paisagem, pois apresentam um paisagem podem ser obstruídos,
fator de leitura vinculado à principalmente por veículos; (2) as imagens
percepção/cognição dos profissionais. Porém, nem sempre são recentes, portanto, a
na aplicação da metodologia de classificação possibilidade de que mudanças na paisagem
de imagens, conjectura-se que a possam ter ocorrido não pode ser descartada.
temporalidade foi interpretada no Não obstante, a facilidade, a velocidade e os
processamento das imagens, tanto na baixos custos da utilização de imagens do
vegetação quanto no desgaste aparente dos GSV superam consideravelmente tais
materiais das edificações. limitações. Aponta-se também que, apesar da
seleção de bairros com diferentes
Leituras clássicas do ambiente, como a de
características em diversos âmbitos, o foco
Christopher Alexander (1979), propõem que
na classificação dos bairros em um único
elementos como prédios, muros, ruas e
estudo de caso pode reduzir a possibilidade
cercas, formam padrões interrelacionados.
de generalização dos resultados. Estudos
Entretanto a identificação destes padrões é
futuros devem buscar aplicações para a
marcada pela subjetividade. A identificação
identificação de características da paisagem
da configuração e composição da paisagem
urbana em diferentes cenários
através da metodologia utilizada aponta para
o avanço no uso de procedimento de Apesar dessas limitações, os resultados são
aprendizado de máquina, por meio da encorajadores como prova de conceito. A
classificação de imagens como estratégia implicação prática inicial de modelos, como
inovadora paralela às leituras urbanas o proposto neste estudo, é a redução de
tradicionais. A visão computacional tempo necessário para a coleta de dados.
implementada com o uso de deep learning Ainda, em um âmbito teórico avança-se
permitirá expandir as escalas analíticas da cientificamente na utilização de técnicas
cidade, identificando seus padrões computacionais para o entendimento objetivo
compositivos e relacionais. de qualidades urbanas, que podem influenciar
o comportamento humano, bem como
Conclusões elementos sociais e econômicos. Estudos
Por meio da aplicação do procedimento de futuros podem explorar técnicas mais
identificação da configuração e composição avançadas de interpretação dos resultados do
da paisagem urbana, no uso de um método de modelo. Ainda, a aplicação de metodologias
deep learning para classificação de imagens, similares para o reconhecimento de
demonstrou-se o potencial desta abordagem características ambientais relacionadas a
para identificação de características do meta-qualidades urbanas como a
ambiente construído. Apresentamos uma caminhabilidade e a vitalidade.

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Tradução do título, resumo e palavras-chave


Identification of Streetscape Compositions: A Deep Learning Approach
Abstract. The environment’s composition can have an impact on human behavior, however, this
relationship remains uncertain until the cities' qualities and landscape can be analyzed empirically.
Images obtained through Google Street View (GSV) enable a large volume of data for automated
assessment of environmental characteristics. Deep learning techniques have advanced in the
identification of compositional elements of the built environment. In this sense, this study seeks to
investigate and test a procedure for identifying the configuration and composition of the urban landscape,
classifying images obtained from GSV through a deep learning approach. From an image dataset of three
different neighborhoods in Londrina-PR, a deep learning model for image classification was proposed.
The model had a good performance, correctly attributing 87.6% of the samples to the corresponding
neighborhoods in the case study. Compositional characteristics were empirically identified, considering
the distribution of the samples in the obtained search space. The proposed model contributes to the
definition of spatial units as well as in the measurement of environmental qualities, optimizing data
collection, expanding sample sizes, and providing objectivity to results. This approach contributes to the
expansion of city's analytical scales, identifying compositional and relational patterns in the
understanding of elements influent in human behavior.
Keywords: urban morphology, built environment, deep learning, image classification, Google Street View.

Editor responsável pela submissão: Julio Celso Borello Vargas.


Licenciado sob uma licença Creative Commons.

Revista de Morfologia Urbana (2020) 8(1): e00140 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
A cidade patrimonial e turística: uma análise do constructo
da imagem e apropriação do centro histórico de Tiradentes–
MG a partir das mídias sociais

Karine de Almeida Paulaa , Eleusy Natalia Miguelb e Wagner José da Silva


Freitasc
a
Centro Universitário de Viçosa, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Viçosa, MG, Brasil. E-mail:
karinealmeida.ufv@gmail.com
b
Centro Universitário de Viçosa, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Viçosa, MG, Brasil. E-mail:
eleusy.arq@gmail.com
c
Pesquisador independente, Viçosa, MG, Brasil. E-mail: wagnerfreitas@gmail.com

https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.137
Submetido em 28 de fevereiro de 2020. Aceito em 23 de junho de 2020.

Resumo. O turismo se coloca como uma atividade capaz de refuncionalizar


os espaços geográficos, e dotá-los de novas paisagens e simbologias. Tal
temática pode ser considerada muito pertinente nos estudos envolvendo o
espaço urbano e que dialogam diretamente com a ciência geográfica e o
urbanismo. Dessa maneira, destaca-se a relevância de estudos que visem
abordar a relação do turista com o espaço e/ou a paisagem, tendo destaque,
neste trabalho, os estudos envolvendo cidades turísticas patrimoniais. Nesse
sentido, o trabalho em questão tem como principal objetivo analisar a
percepção dos turistas acerca do espaço urbano da cidade de Tiradentes,
identificando a imagem urbana formada pelos mesmos, a partir dos dados
contidos nas mídias sociais. Em se tratando dos procedimentos
metodológicos, recorreu-se a fases distintas, sendo elas: pesquisa
documental e bibliográfica, estudo de caso, registros fotográficos,
observações in loco e análise de dados obtidos junto ao TripAdvisor. Para
obtenção e análise dos dados, recorreu-se à técnica conhecida como Web
Scraping (WS), utilizada em tarefas que envolvam mineração na web. A
partir das análises foi possível identificar qual seria a imagem urbana
formada a partir da percepção dos turistas acerca da cidade de Tiradentes,
notando, de forma mais centrada, uma forte associação com o Centro
Histórico, e, em muitas vezes, enxergando a totalidade da cidade restrita
apenas a este espaço central.
Palavras-chave. turismo, imagem urbana, mídias sociais, Tiradentes-MG.

Introdução como de planejamento e da própria gestão


espacial.
O turismo se mostra como uma das
atividades responsáveis por modificações nas De acordo com Galí e Donaire (2013), a
cidades, seja no âmbito político, seja no forma como as instalações turísticas, assim
social, no econômico ou no morfológico. como o uso dos espaços efetivados pelos
Neste contexto, os estudos geográficos a turistas tendem a transformar a lógica de um
respeito do turismo dialogam diretamente destino e a sua paisagem urbana, têm se
com o urbanismo a partir das suas dinâmicas mostrado como uma importante linha de
de conformação do espaço urbano, bem pesquisa na contemporaneidade. No tocante à
paisagem urbana1, a mesma é colocada como

Revista de MorfologiaUrbana (2020) 8(1): e00137 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
A cidade patrimonial e turística 2 / 17

um resultado proveniente do acúmulo de Davidowitz (2018, p. 97), os dados coletados


tempos. Logo, as paisagens encontradas em via web se caracterizariam pelo formato de
cidades históricas turísticas, por exemplo, textos, com o uso de palavras; e imagéticos,
carregam consigo elementos e signos com a presença de fotos. As fotografias,
resultantes de diferentes tempos e modos de imagens e textos em si são representações
viver, e alcançam, na atividade turística, uma que se reportam a um olhar sobre o objeto.
forma de serem consumidas, a um só tempo e
Diante desta conjuntura, alguns estudiosos
ritmo.
têm se debruçado em pesquisas urbanas que
Nesse sentido, o trabalho em questão tem envolvem o uso de dados de mídias sociais,
como principal objetivo analisar a percepção tais como, os trabalhos de Galí e Donaire
dos turistas acerca do espaço urbano da (2015), Galí e Aulet (2019), e Donaire e Galí
cidade de Tiradentes, identificando a imagem (2011) que têm como foco o estudo da
urbana formada pelos mesmos, a partir dos percepção da cidade turística por meio de
dados contidos nas mídias sociais2, mais fotografias digitais. De modo semelhante, os
especificadamente, na plataforma trabalhos de Puebla (2018); e Puebla,
TripAdvisor. Palomares e Olmedo (2016) buscam analisar
questões envolvendo o turismo e padrões de
Em se tratando dos estudos envolvendo as
uso da cidade pelos turistas. Somado a isso,
cidades turísticas, muitas discussões têm
há os trabalhos de Severo (2019) com
despontando acerca da importância de
pesquisas a partir de dados abertos (web) em
ferramentas que auxiliem no alcance de
ciências sociais, tendo como escopo a
leituras espaciais mais próximas destas
construção e memória do patrimônio cultural
cidades. Dessa maneira, tendo em vista a
na web e representações digitais de lugar e
potencialidade na geração de dados por parte
espaço a partir dos dados do Twitter.
das tecnologias informacionais atualmente,
destaca-se o uso das mídias sociais como Já Encalada, Ferreira e Rocha (2017) têm
ferramenta interessante na obtenção de utilizado dados de redes sociais para o estudo
dados, e, por conseguinte, de informação. do turismo urbano, particularmente, para a
análise do comportamento espacial dos
Nesta perspectiva, um dos pontos que este
turistas. Em escala espacial, há o trabalho de
trabalho deseja explorar e discutir, diz
Chua et al. (2016) que procura correlacionar
respeito às possibilidades colocadas ao
os dados das mídias sociais, como o
planejamento e à gestão urbana a partir de
Twitter, a questões espaciais, temporais e
ferramentas ligadas ao estudo estatístico da
demográficas, e o trabalho de Kadar
cidade e conexões com a Data Science3,
(2014), que busca analisar padrões de uso de
assim como as novas técnicas de obtenção de
espaços turísticos a partir de dados abertos,
dados e análises mediante a mineração de
verificando a existência de diferenças
dados. Para suscitar esta discussão, elegeu-se
comportamentais entre turistas e moradores
a cidade de Tiradentes como um estudo de
locais.
caso, a partir de uma problemática inerente à
cidade no tocante ao turismo urbano. Os Neste contexto, para subsidiar as discussões,
dados digitais, produzidos em massa elegeu-se a cidade de Tiradentes-MG como
mediante dispositivos e tecnologias presentes um estudo de caso, com o intuito de aplicar
nas cidades e nos smartphones que às análises os conceitos abordados por Lynch
acompanham os indivíduos corriqueiramente, (1997), principalmente no tocante à
podem se mostrar como um potencial banco imaginabilidade4 do ambiente, a partir de
de dados a ser desvendado, possibilitando seus marcos e, de forma complementar, às
novas formas de compreensão de dinâmicas questões tecnológicas ligadas à temática de
urbanas em tempo real, assim como o banco de dados digitais.
conhecimento, mais minucioso, de
A cidade de Tiradentes possui cerca de 7981
comportamentos individuais e coletivos.
habitantes (IBGE, 2019), e faz parte da
Entretanto, para tal, surge a dúvida: a quais Estrada Real5, mais precisamente no Circuito
dados é possível referir-se ao se propor Caminho dos Inconfidentes. É considerada
estudos que apresentem como banco de uma cidade com potencial turístico, e abriga
dados as mídias sociais? De acordo com um rico acervo arquitetônico colonial muito

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A cidade patrimonial e turística 3 / 17

bem preservado. Atualmente, a cidade vem mineração na web. Para a extração dos dados
registrando, em média, a proporção de um brutos, foi utilizado um programa
morador para 29 turistas, representando em desenvolvido na linguagem de programação
torno de 232.000 mil turistas anualmente. Python8, usando uma biblioteca específica
Esse fluxo anual de turistas decorre por denominada BeautifulSoup. Desta forma, foi
motivos diversos, dentre eles, a alta possível a leitura de todos os comentários
gastronomia, eventos culturais numa média diretamente do site TripAdvisor, viabilizando
de um evento por mês e a arquitetura local. o salvamento dos arquivos formatados em
texto e a construção das nuvens9 de palavras
À vista disso, o trabalho se justifica dada a
a partir da seleção das 200 palavras mais
importância de se estudar as problemáticas
representativas de cada categoria analisada.
inerentes ao espaço urbano de pequenas
cidades, sobretudo, cidades turísticas e As nuvens de palavras, conforme destaca
patrimoniais. É sabido que o turismo se Amaral (2016, p. 70), “[...] podem ser
coloca como uma atividade capaz de amplamente utilizadas em mineração de
(re)configurar toda uma dinâmica espacial e textos, exibindo termos mais frequentes em
urbana. Logo, estudá-lo e entendê-lo uma rede social ou utilizadas em análise de
possibilita pensar alternativas direcionadas ao sentidos”. Nas nuvens de palavras estão
planejamento urbano desses espaços. Da contidas as mais representativas, que
mesma maneira, justifica-se uma discussão e apresentam maior frequência e, segundo
contextualização das possibilidades Davidowitz (2018), estas palavras se
colocadas a pesquisas envolvendo cidades de reafirmam e se apresentam como dados.
pequeno porte no tocante à inserção da
Em se tratando das fotografias, foram
tecnologia de dados como ferramenta para
selecionadas 200 imagens aleatórias,
análises sob o ponto de vista acadêmico e
presentes na plataforma, com o intuito de
também da gestão urbana, além do diálogo
complementar as análises textuais e realizar
com outros trabalhos contemporâneos que se
um mapeamento da percepção dos turistas de
debruçam sobre o tema.
forma imagética. Para as análises das
De forma metodológica, o trabalho foi fotografias, recorreu-se à análise de
dividido em fases, recorrendo-se, de uma conteúdo.
forma geral, à pesquisa documental e
bibliográfica, ao estudo de caso, assim como Revisão bibliográfica
aos registros fotográficos, às observações in É razoável que a cidade patrimonial acolha o
loco e à análise de dados obtidos junto ao turismo como fonte de renda e especialmente
TripAdvisor6. Tal plataforma possui dados como elemento replicador da relevância do
imagéticos e textuais em grande quantidade e patrimônio na vida de toda sociedade. Nesse
com amplo acesso aos comentários. Dessa sentido, esta seção pretende abarcar as
maneira, foram analisados os dados textuais interfaces do espaço urbano patrimonial com
contidos na plataforma e, de forma o viés turístico e suas repercussões.
complementar, uma amostragem de
fotografias publicadas pelos turistas. A apropriação do espaço urbano turístico e a
Referente à página do TripAdvisor, foi imagem produzida
selecionada a aba “o que fazer na cidade”,
sendo esta escolha justificada por conter Os espaços turísticos podem ser
várias subseções referentes aos atrativos, caracterizados como espaços produzidos pela
qualidades e impressões sobre a cidade. presença de atividades turísticas e, de forma
Destas, foram eleitas as seções Centro simultânea, condicionantes destas atividades
Histórico (1285 comentários) e Serra de São (Castro e Tavares, 2016). Eles se
José (684 comentários), formando assim dois caracterizam por espaços plurais, produzidos
grupos de análise: paisagem construída e com um objetivo final, o de consumo, e
paisagem natural, respectivamente. englobam a atuação e o papel de diversos
agentes nesta produção, que por sua vez, se
Os dados textuais foram coletados através da apropriam de novas porções do espaço para
técnica conhecida como Web Scraping7 sua (re)produção. Dentre os espaços
(WS), utilizada em tarefas que envolvem apropriados para destinos turísticos, é

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possível mencionar os centros históricos das construtores de imagens turísticas. A partir


cidades, onde o turismo, em alguns casos, desse princípio, é possível preconizar que os
tem se colocado como uma atividade capaz turistas se enquadrariam em duas categorias:
de criar novos objetos nos lugares, assim as de consumidores e de produtores de
como capaz de apropriar-se de objetos imagens (Gândara, 2008).
preexistentes, conferindo aos espaços novos
Estas imagens podem ser criadas a partir das
significados e novas funções.
fotografias postadas nas redes e/ou
Ao analisar esse contexto sob uma comentários sob a forma de textos. E no
perspectiva mais ampla, o patrimônio âmbito da fotografia, a mesma tende a
histórico cultural e o espaço turístico não influenciar na construção social da imagem
possuem uma relação dada, já pronta para ser de uma dada localidade, afetando não
apropriada. Trata-se de um jogo de decisões, somente a escolha por determinados destinos,
interesses, ações políticas e simbolismos em mas o comportamento dos visitantes nos
que os espaços urbanos, ou uma parte deles, espaços. Ao fotografar a cidade e
se tornam revalorizados, construídos e compartilhar uma imagem, o sujeito acaba
ressignificados, mediante estratégias que por criar novas impressões visuais da cidade,
objetivam a preservação e o uso de aspectos que passam a ser integradas e adicionadas à
materiais e imateriais do espaço (Castro e imagem turística convencional, mudando,
Tavares, 2016). expandindo e renovando-a. A fotografia
reflete a maneira como o turista vê a cidade –
Os lugares explorados pelo turismo colocam-
imagem percebida, e atua também como uma
se, em sua maioria, em espaços vendidos
representação do espaço – imagem emitida
como cenários, produzidos a partir de uma
(Galí e Donaire, 2015).
base paisagística já existente, e que se associa
a aspectos culturais, históricos e geográficos, Dessa maneira, os visitantes passam a
firmando-se como uma matéria prima para a contribuir para o constructo da imagem da
produção e consumo do espaço, de forma cidade mediante as fotografias/imagens e
contínua (Silva, 2004). classificações em redes sociais (Facebook,
Instagram) ao avaliarem os serviços ou
Dessa maneira, advoga-se que espaços
destinos em portais turísticos (TripAdvisor,
turísticos são potencialmente produzidos e
Booking), e ao compartilharem imagens em
que esta produção não é apenas do local
portais fotográficos (Flickr).
construído em si, mas também das
simbologias, das identidades, do imaginário, Lynch (1997) considera que uma imagem
enfim, dos elementos que dão sentido e seria formada pelo conjunto de sensações
caracterizam o local. experimentadas ao observar e viver em um
dado local. Dessa maneira, as imagens
No tocante aos estudos referentes às cidades
derivam de uma relação entre o observador e
turísticas, é importante destacar também o
o seu habitat, seu meio. No entanto, o sentido
papel e a atuação do turista frente à lógica de
que é dado para uma imagem pode variar
organização dos espaços. O turista, além de
entre diversos observadores, e estas
se colocar como o sujeito que usufrui dos
diferenças decorrem de características
espaços a ele criados, pode se colocar
individuais, assim como de questões sociais e
também como um grande propagador de
culturais.
imagens, textos e ícones paisagísticos,
principalmente mediante a popularização das De acordo com Santos et al. (2017), o
mídias sociais, sendo capaz de influenciar os advento da fotografia digital proporcionou a
rumos do mercado de viagens e turismo construção da imagem de um destino
(Machado, 2016). turístico não somente por intermédio de
empresas ou órgão de promoção, mas
Em se tratando da relação entre as mídias
também por turistas, transformando-os em
sociais e o turista, estes mantêm um papel
construtores de imagens turísticas. E, ainda, é
proeminente na consolidação e divulgação de
possível complementar que, “com o advento
destinos turísticos, pois, como bem afirma
dos smartfones e das facilidades da internet,
Donaire e Gali (2011), os turistas, em tempos
em especial das redes sociais, os turistas
atuais, atuam como efetivos e legítimos
também assumem a função de promotores

Revista de MorfologiaUrbana (2020) 8(1): e00137 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
A cidade patrimonial e turística 5 / 17

dos destinos, pois disponibilizam em seus a cidade de Tiradentes vem registrando, em


perfis suas fotografias e seus comentários média, a proporção de um morador para 29
sobre os destinos turísticos” (Santos et al., turistas anualmente, representando em torno
2017, p. 67). de 230.000 mil turistas anualmente.
Donaire, Gali e Royo-Vela (2015) Muitos turistas vão à cidade atraídos pela alta
argumentam que as fotos tiradas por turistas gastronomia – dada a presença de diversos
e compartilhadas na internet estão restaurantes estrelados na cidade –, assim
desempenhando um papel cada vez maior na como eventos culturais e a arquitetura
criação da imagem dos lugares. Esta hipótese colonial - representada por um rico conjunto
pode ser estendida também às informações arquitetônico tombado13.
textuais – e descritivas – que encontramos na
No entanto, as atividades turísticas em
web, e que juntas passam a colaborar para o
Tiradentes não coincidiram com o período de
constructo de uma forma e percepção de um
tombamento do seu conjunto arquitetônico
lugar.
pelo IPHAN, que ocorreu em 1938, haja vista
Neste contexto, as fotografias, assim como as que a cidade ainda não apresentava um plano
informações textuais publicadas pelos turístico particular. Era comum nesta época
sujeitos – turistas ou não – passam a compor essa forma de tombamento sem um tipo
um expressivo banco de dados na web, se específico de estratégia. Nos anos vindouros
revelando com um potencial interessante para de 1940, 1950 e 1960, a cidade ainda se
as mais diversas ciências, dentre elas as manteve praticamente estagnada, e sua
ciências geográfica e arquitetônica. população, de 3700 habitantes à época, vivia,
em sua maioria, no campo, tendo como meio
O uso de dados virtuais em pesquisas de
de sobrevivência as atividades agropecuárias.
ciências sociais, sejam elas aplicadas ou não,
se mostra como algo inicial, mas que já Somente a partir das décadas de 1970 e 1980
demonstra novas e promissoras que Tiradentes foi novamente
possibilidades. Estes novos caminhos “redescoberta”, mas, desta vez, por um grupo
procuram responder a determinadas questões de empresários. A partir desse momento, o
tradicionais sob um novo ponto de vista, casario mal cuidado, mas íntegro, acaba por
devido à maior resolução espacial e temporal despertar o interesse de forasteiros que
dos dados, mas também, pelas possibilidades vislumbram nessa localidade novas formas
de reformulação de perguntas que até então de angariar capitais. Assim, esses passaram a
eram respondidas apenas por meio de fontes participar como coatores responsáveis pela
tradicionais (Puebla, Palomares e Olmedo, transformação da cidade, uma vez que muitos
2016). empresários se mudaram para a cidade e
investiram de modo intensivo (Sousa e
Contextualização histórica e espacial de Schicchi, 2017).
Tiradentes: a apropriação pelo turismo
As transformações foram notórias,
Tiradentes apresenta-se como uma cidade principalmente a partir da saída dos
histórica10, datada do século XVIII, tendo sua moradores nativos do centro histórico em
formação urbano-espacial atrelada ao direção a áreas mais periféricas, que, por sua
processo de mineração de ouro na região de vez, passaram a crescer de forma acelerada e
Minas Gerais. A maior parte de seu casario e sem infraestrutura satisfatória. Com a saída
edificações religiosas foi construída ainda no da população local do centro, os novos
início do século XVIII. moradores passaram a ocupar os espaços
Em se tratando do turismo no Estado de mais centrais, dando início a um processo de
Minas Gerais, o mesmo conta com 555 enobrecimento da área, com edifícios
cidades presentes no Mapa do Turismo voltados a novas funções mais rentáveis,
Brasileiro, e as mesmas estão classificadas principalmente aquelas direcionadas ao
em A (03), B (18), C (80), D (348) e E (106), turismo. O enobrecimento do centro, nos
e, de acordo com o último levantamento, dizeres de Souza e Schicchi, materializa o
datado de 2018, a cidade de Tiradentes que seria denominada de “cidade cenário,
chegou ao topo, alcançando a categoria A11 cujo intuito era dar a aparência de que os
(Ministério do Turismo, 2019)12. Atualmente, problemas estavam controlados e de tornar a

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cidade aprazível aos turistas, com a população originária, sendo prevalecentes os


conservação do conjunto arquitetônico, uma turistas. Apenas um evento é marcado pela
bela iluminação cênica e ajardinamentos. presença, em quase sua totalidade, de
Uma cidade histórica em sua melhor forma, nativos, que é o Jubileu da Santíssima
em plena vitalidade” (Sousa e Schicchi, Trindade, sendo considerado o evento mais
2017, p. 4). popular da cidade e o único que não é
realizado no centro histórico. Ao analisar a
Os novos moradores que se tornaram
inserção espacial do evento, tem-se a
proprietários do casario na área central
impressão de que há o intuito de isolar o
acabaram por ditar novas regras na paisagem,
acontecimento, na tentativa de se manter
transformando-a substancialmente ao
distante dos turistas, pois a realidade do
denotarem aos edifícios novos usos, que, na
evento – dito muito popular na cidade –
maioria das vezes, estão relacionados à
destoa da imagem que algumas parcelas
exploração do turismo cultural. Estes novos
querem passar de Tiradentes.
usos podem ser ilustrados por meio de
atividades relacionadas a hospedagens, Os outros dois grandes festivais realizados na
restaurantes, museus, lojas de artesanato e cidade, e que atraem um número massivo de
outros. turistas, seriam o Festival de Cinema e o
Festival de Gastronomia. São eventos que
A emissora do setor televisivo, Rede Globo,
foram concebidos para atrair o turista e são
teve participação proeminente na divulgação
organizados por empresas de fora da cidade.
de Tiradentes em nível nacional, mediante a
No primeiro há uma participação, mesmo que
figura de Yves Alves, cujo nome foi usado
pequena, dos nativos, pois o evento conta
para batizar o principal Centro Cultural da
com algumas mostras de filmes e curtas
Cidade. Tal figura foi o executivo da
gratuitas no espaço público da cidade. Já o
mencionada empresa que realizou
segundo evento se mostra mais elitizado, e
importantes projetos na cidade, por meio da
por contar com a compra de ingressos e o
Fundação Roberto Marinho (Guimarães,
alto custo na aquisição dos cursos e pratos
2010). Várias novelas foram gravadas em
elaborados, a população local acaba não
Tiradentes, fazendo com que a cidade ficasse
participando, mesmo quando há mostras
conhecida nacionalmente, sobretudo, a partir
gratuitas no espaço público. É como se o
da década de 199014. A promoção de
espaço público, naquele momento, se
Tiradentes ocorreu tanto por meio das mídias
mostrasse privado, onde a barreira imposta
globais como também no investimento na
seria a própria seletividade econômica.
recuperação do casario na cidade, mediante a
Ambos os festivais acabaram por “criar” uma
Fundação Roberto Marinho (Campos, 2012).
marca na cidade de Tiradentes, e recebem em
Dessa forma, as atividades turísticas média 30.000 turistas cada um.
potencializaram diversas transformações
Esses grandes eventos da cidade, muitas das
socioespaciais na cidade, principalmente no
vezes, concentram-se no centro histórico e
centro histórico. Antigos moradores do
adjacências. Nos dizeres de Sousa e Schicchi
centro de Tiradentes venderam suas casas,
(2017), a cidade de Tiradentes vive do
pois não tinham condições financeiras para
turismo, e um elevado número de pessoas
reformá-las e mantê-las, conforme padrões
que participam desses eventos comprova a
colocados pelo IPHAN. E, além disso, os
lucratividade das atividades em todos os
moradores eram atraídos pelos altos valores
setores, dos pequenos artesãos de feira aos
oferecidos pelos empresários e
proprietários das grandes pousadas.
empreendedores, haja vista a valorização
consubstancial que o espaço passou a À vista disso, no contexto de eventos e,
adquirir ao ganhar visibilidade turística. principalmente, de refuncionalização e
enobrecimento do centro histórico a partir do
Em se tratando dos festivais que
advento das atividades turísticas, elenca-se a
movimentam a atividade turística local, é
questão da cidade cenário que, por vezes,
possível observar vários eventos ao longo do
estaria associada à cidade de Tiradentes,
ano. No entanto, alguns poucos eventos,
sobretudo, ao centro histórico (Sousa e
conforme constatado pelo trabalho de
Schicchi, 2017). A cidade cenário poderia
Guimarães (2010), possuem a participação da

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ser classificada por porções do espaço urbano turistas e empreendedores e a importância


que são produzidos para satisfação de dos mesmos na produção desse espaço,
demandas específicas, a citar, por exemplo, permeado por interesses difusos e, por vezes,
demandas turísticas apenas, e, em casos de conflitantes.
cidades históricas, uma mercantilização do
Em se tratando dos comentários analisados,
patrimônio em prol de uma cenarização. Esse
foi possível observar e analisar, a partir de
processo tem como intuito transmitir que os
um universo amostral, a forma como a cidade
problemas estariam “controlados”, tornando-
é vivida pelo turista, assim como a imagem é
se uma cidade aprazível aos turistas. A
percebida e construída por ele. O turista,
própria arquitetura e urbanismo em cidades
como bem destaca Machado (2016) e Galí e
turísticas, nos dizeres de Silva (2004),
Donaire (2015), além de se colocar como o
adquirem um papel relevante na cenarização
sujeito que usufrui dos espaços a ele criados,
do espaço.
se coloca também como um grande
Esta cidade cenário, muitas vezes, não é propagador de imagens, textos e ícones
pensada para os moradores locais, suas paisagísticos. Principalmente mediante a
demandas não são atendidas ali, e, muitas popularização das mídias sociais, sendo,
vezes, nem sequer conseguem desfrutar do portanto, capaz de influenciar hoje os rumos
espaço, sob o ponto de vista da do mercado de viagens e turismo e a lógica
contemplação, pois ali são materializadas de produção e apropriação do espaço urbano.
barreiras invisíveis, veladas, que comunicam
Neste contexto, no tópico de análises será
ao morador o seu lugar na cidade,
empregada uma avaliação acerca da
principalmente àquele que não tem condições
imaginabilidade dos elementos (Lynch,
de consumir os elementos e símbolos que são
1997), em se tratando do Centro Histórico e
oferecidos neste lugar cenário.
da Serra de São José. As análises se pautaram
Em contraponto à cidade cenário, elege-se nos dados contidos no TripAdvisor (textuais,
um outro conceito, o de cidade real. Este e de forma complementar, fotografias),
conceito muito se assemelha ao conceito de optando-se, num primeiro momento, por
cidade oficial de Maricato (2000), e tende a dividir a investigação em dois momentos:
representar a outra porção da cidade que, análise da paisagem construída, seguida pela
muitas vezes, não é vivenciada pelo turista, paisagem natural.
afinal não foi criada para ele. Contudo, é
A escolha por estes dois recortes vai de
intensamente vivenciada pelo morador local.
encontro às discussões colocadas por Silva
Ali estão engessados problemas históricos,
(2004), que destaca que as imagens,
espaços segregados, e ali se reproduz o
construídas para um lugar turístico
cotidiano real da cidade.
normalmente estão associadas a elementos
Tal dicotomia, ao que tudo indica, parece ser naturais (clima, vegetação, relevo) e
vivenciada na cidade de Tiradentes. Resta elementos culturais (festas populares,
questionar, pois, a qual porção do espaço, museus, arquitetura, monumentos públicos).
cenário ou real, o turista se identifica e se E, muitas vezes, estes dois elementos
relaciona ao visitar a cidade, e até que ponto integram-se com o intuito de conformarem
a cidade cenário é reforçada pelo turismo um cenário específico.
e/ou pelo turista.
No tocante à paisagem construída, a mesma
foi analisada a partir do Centro Histórico (ver
A imagem percebida e projetada da
Figuras 1e 2). A divisão permite uma análise
paisagem construída e natural de
mais descritiva de cada ponto, possibilitando
Tiradentes
identificar percepções mais abrangentes e
De acordo com Campos (2012), o turismo é o que configuram aquilo que denominamos, e
principal organizador do espaço de defendemos no trabalho, como imagem da
Tiradentes, e o patrimônio acaba por ser cidade.
apropriado como um recurso de atratividade,
Nesta primeira análise, que se circunscreve
mas sobretudo, como recurso mercadológico
ao Centro Histórico de Tiradentes, é
de valorização e reafirmação do espaço.
importante ressaltar que, ao ler os
Nesta logica espacial destaca-se a figura dos

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comentários, diversos deles descrevem a Silva (2004) destaca, em suas discussões, que
cidade como se estivessem referindo não dado o caráter subjetivo, a imagem urbana
somente ao centro: é como se o comentário resultante se coloca de forma parcial, ou seja,
fosse extensivo a toda a cidade. Numa análise não representa toda a cidade, estendendo-se a
mais centrada, tem-se a impressão de que o apenas fragmentos desta – e também
turista enxerga a totalidade da cidade de simplificada – representando apenas
Tiradentes restrita apenas ao centro histórico. informações selecionadas pelos indivíduos.
E isso não se coloca como real, haja vista que Dessa maneira, ao se analisar a nuvem de
a cidade se expandiu e tem se expandido para palavras geradas com a categoria centro
os arredores do centro histórico, histórico, tem-se as frequências mostradas na
materializando problemas histórico-sociais já Figura 3.
relatados anteriormente.

Figuras 1 e 2. Vista parcial do Centro Histórico de Tiradentes – MG (fonte: arquivo pessoal, 2019).

Figura 3. Nuvem de palavras da categoria paisagem construída (fonte: elaboração própria a partir dos
dados coletados no TripAdvisor, 2019).

Esta primeira nuvem foi gerada a partir da imagem percebida pelos turistas, se
seleção das 200 palavras mais representativas estendendo também à construção da imagem
do universo amostral de 1285 comentários. A projetada por eles.
frequência e representatividade de cada
Ao analisar os comentários, percebe-se que a
palavra estão atreladas ao seu tamanho na
imagem urbana construída pelos turistas tem
imagem. Dessa maneira, é possível observar
forte associação com o Centro Histórico da
as palavras mais representativas, e que, na
cidade, lócus no qual supõe-se ser o mais
hipótese do trabalho, ajudariam a construir a

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vivenciado pelos turistas, se colocando como O caminhar também parece ser muito
um dos principais atrativos da cidade. evidenciado nas fotos, ao apresentarem as
principais ruas do centro histórico e pessoas
Outra categoria muito evidenciada seria
andando nas ruas coloniais. A impressão que
história e passeio. Ao que parece, os turistas
fica é a imagem de uma cidade convidativa à
associam o centro histórico a um local
caminhada e aos passeios por cenários
carregado de história, e pela frequência com
distintos do cotidiano dos turistas,
que aparecem esses termos, acredita-se que
expressando um “tempo” que, ao que parece,
essa seja um dos principais pontos na
tende a passar mais lentamente.
construção da imagem local. A categoria
passeio demonstra um local onde o flanar é Ao ser mencionada a questão da rua e do seu
ressaltado, principalmente ao ser associado às calçamento, é possível perceber esses
palavras “a pé”, “ruas de pedra”, “andar”. elementos como conectados e formadores da
Acredita-se que as expressões “andar” e imagem de uma cidade, tal como proposto
“passeio” estão fortemente associadas apenas por Lynch (1997), assim como os caminhos.
ao centro histórico, e não a toda a cidade. Por Estes poderiam ser representados pelas ruas,
ser um lugar pequeno, com muitas ruas de no entanto, não é possível identificar alguma
pedra e muitos desníveis, as caminhadas outra característica peculiar ao elemento que
acabam sendo mais convidativas do que não seja a característica “de pedras”. Os
passeios com veículos automotores. caminhos são considerados por Lynch (1997)
como os principais elementos estruturadores
A questão das ruas de pedra também é muito
da percepção ambiental na medida em que,
ressaltada nas fotografias analisadas. Cerca
ao se deslocarem, as pessoas não apenas
de 30% delas ilustram o calçamento (ruas de
estruturam a sua experiência, mas também
pedra) em suas imagens, estando muito
outros elementos da imagem da cidade.
relacionadas ao casario. São fotografias que
Assim, elas percebem melhor os espaços da
retratam as ruas de pedras e o casario, mas
cidade enquanto se deslocam por ele. No
em algumas é possível notar também uma
entanto, vale reforçar que uma parcela dos
associação destes elementos com a Serra de
turistas acaba por caminhar na cidade poucas
São José (Figura 4).
vezes durante a sua estadia, dificultando a
criação de uma memória cognitiva e afetiva
com o lugar, diferente das pessoas que
diariamente fazem o mesmo percurso, a citar,
moradores locais.
Dessa maneira, as categorias e denominações
apresentadas a partir da nuvem de palavras
poderiam ser enquadradas no elemento
bairro, proposto por Lynch (1997). Juntas,
elas acabam por diferenciar o centro histórico
do restante da cidade, não por um critério
meramente administrativo, mas visual,
perceptivo.
Os locais mais registrados pelos turistas
durante as visitas e caminhadas tendem a se
“repetir” nas fotografias, ou seja, diferentes
pessoas postam fotografias se referindo, na
maioria das vezes, aos mesmos locais, pontos
turísticos clássicos da cidade, sendo eles: a
rua Direita, a ladeira próxima à igreja de
Santo Antônio e a vista da Serra de São José
(tirada em um ponto de frente a igreja de
Figura 4. Representação do casario colonial, ruas Santo Antônio) (Figuras 5, 6 e 7).
de pedra na rua Direita e a Serra de São José ao
fundo (fonte: TripAdvisor, 2019). No tocante aos elementos marcos, estes se
colocam como referenciais externos

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“geralmente utilizados como indicadores de cidade, também não aparecem com


identidade, ou até de estrutura” (Lynch, frequência, tanto nas fotografias quanto nas
1997, p. 53). Ao analisar as categorias informações textuais.
apresentadas, nota-se que “igrejas” e
Entretanto, uma outra questão surge ao
“restaurantes” aparecem com frequência
analisar a nuvem de palavras, ainda no
também. As mesmas poderiam se enquadrar
quesito marcos: é a pequena expressividade
na classificação de marcos, aquilo que traz
do elemento “praça”. Há no centro histórico
certa identidade àquele espaço, sob o ponto
uma praça central, conhecida como o Largo
de vista religioso e gastronômico. E isso vem
das Forras. Ali estão presentes os
sendo reforçado na cidade, principalmente o
“charreteiros” – charretes guiadas, muitas
turismo gastronômico, com investimentos
vezes, por guias locais, e que fazem um
maciços, por meio da abertura e permanência
passeio na cidade, com paradas nos
de grandes restaurantes – muitos estrelados –
principais pontos turísticos – atividades
e o grande Festival de Gastronomia. Tal
culturais aos finais de semana e
festival tem se colocado como uma marca na
estabelecimentos comerciais. É nesta praça
cidade.
também que são realizadas partes das
atividades dos Festivais de Gastronomia e
Cinema e mais outros eventos e festivais
culturais. No entanto, a mesma não é
mencionada pelos turistas; apenas os passeios
de charretes que partem de lá. De acordo com
Lynch (1997, p.10), “para ter valor, em
termos de orientação no espaço ocupado
pelas pessoas, uma imagem precisa ter várias
Figura 5. Ladeira de acesso à igreja Santo qualidades”. Dessa maneira, supõe-se que,
Antônio (fonte: TripAdvisor, 2019). para os turistas, a praça, como um elemento
morfológico por si só, não tenha valor e por
isso não suscita a expressão de suas
qualidades.

Figura 6. Rua Direita (fonte: TripAdvisor,


2019).

As igrejas aparecem com frequência nos


comentários textuais, mas apenas de modo
pontual, não descrevendo a riqueza
arquitetônica que as mesmas abarcam,
principalmente no seu interior e nem
diferenciando-as. Acredita-se que a figura
externa da igreja já seja um elemento marco
na paisagem urbana na medida em que há
uma história, um acontecimento ligado
àquele objeto, aumentando seu valor como
marco, conforme pondera Lynch (1997).
No entanto, ao observar as fotografias,
percebe-se que apenas uma parte delas Figura 7. Vista da serra de São José a partir da
(18,5%) faz referência aos marcos religiosos fachada da igreja de Santo Antônio (fonte:
da cidade. Os oratórios, ícones históricos da TripAdvisor, 2019).

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Com relação às fotografias, há também uma A arquitetura também é destacada, e no caso,


baixa representação das praças no universo acredita-se ser a arquitetura colonial presente,
amostral analisado (aparecendo apenas uma mas pouco se fala a respeito do casario
vez). Em algumas fotografias, há o colonial, suas características, assim como dos
aparecimento da praça, mas apenas como museus ali presentes. A cidade possui os
pano de fundo para charreteiros presentes Museus Padre Toledo, Museu de Sant’Ana,
nela, reafirmando o que foi observado na Museu da Liturgia e o Museu do Automóvel.
nuvem de palavras, com relação à baixa
Vários adjetivos aparecem para descrever o
expressividade da praça, na percepção dos
centro histórico, dentre eles “charmosa”,
turistas.
“linda”, “agradável” e “conservada”. São
Em seu contexto histórico, a praça se nomeações frequentes na análise, mas
apresentou com diferentes funções ao longo acredita-se que tais terminologias usadas
dos anos, desde espaços políticos e de pelos turistas acabam por qualificar toda a
debates religiosos e comerciais, até espaços cidade, como bem explicitado anteriormente.
de encontro. Dessa maneira, dada as Dessa maneira, tem-se como hipótese que os
características da praça, a mesma poderia ser turistas enxergam a totalidade da cidade
considerada até mesmo um ponto nodal, restrita ao centro histórico.
traduzido em [...] lugares estratégicos de uma
Uma outra questão a ser analisada é que
cidade através dos quais o observador pode
elementos naturais, tais como a Serra de São
entrar, são os focos intensivos para os quais
José, não aparecem na frequência analisada.
ou a partir dos quais ele se locomove”
Mesmo havendo uma separação de categorias
(Lynch, 1997, p. 52). Acredita-se que a praça
nos comentários, e uma categoria destinada
não se apresente como um elemento de
apenas à Serra de São José – analisada neste
destaque ao turista quando o mesmo observa
trabalho no recorte paisagem natural – é
a totalidade do centro histórico, não
curioso não haver menção à mesma, que é
estabelecendo uma identidade visual mais
considerada moldura e cartão postal da
direta. De acordo com Lynch (1997), o
cidade, nos comentários destinados à
número de elementos locais que se
qualificação do centro histórico. Pressupõe-
configuram como marcos possui uma
se que a serra seja observada como um
dependência e uma referência direta com a
elemento externo ao construído, não
familiaridade do observador em relação a seu
estabelecendo uma relação clara na imagem
ambiente e também dos elementos em si.
percebida pelo turista.
O elemento artesanato também tem uma
Ao que tudo indica, o turista acaba por
expressividade aparente. A cidade possui
restringir a sua relação com a cidade apenas
muitos artesãos locais e da região, e no
ao centro histórico, mas estende a imagem
centro histórico e adjacências o artesanato e
que constrói acerca do espaço urbano a todo
trabalhos artísticos são muito
o restante da cidade. A imagem formada
comercializados. Talvez por isso tenha
acerca da paisagem construída possui
aparecido com frequência a palavra “lojas”.
adjetivos positivos, constituindo-se belas
É interessante notar como o turista se
atrações que formam, na mente do turista, a
identifica com este elemento e o elege em sua
imagem de uma cidade cenário – vários
caracterização da cidade. Tal apontamento
comentários analisados fazem menção direta
pode se mostrar muito interessante em
a este conceito. É como se o olhar do turista
projetos que visem à valorização do
estivesse sendo direcionado para paisagens
artesanato e artesão regional.
urbanas destituídas da vida cotidiana,
Ao associar o centro histórico ao artesanato, percebendo e notando apenas o
o turista acaba por eleger um atributo extraordinário. Galí e Donaire (2015), ao
específico a este espaço, pois como bem estudarem acerca das imagens percebidas da
alega Lynch, “a concentração de um hábito cidade de Barcelona por parte dos turistas,
ou atividade especial numa rua pode torná-la constataram que, em determinados
importante aos olhos do observador” (Lynch, momentos, os turistas enxergavam certos
1997, p. 55). pontos da cidade como representações de
verdadeiros espaços cênicos.

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A própria produção da paisagem turística O turista se coloca como um sujeito muito


configura-se, de um lado, pelos meios de sensível aos cenários, haja vista que o seu
comunicação que acabam por divulgar as principal interesse se volta para o aspecto
imagens e descrições dos lugares, e de outro, visual dos lugares, estendendo-se para os
pela construção de cenários de lazer, elementos pitorescos, diferentes e atrativos
mediante as obras de intervenções aos sentidos. A sua atenção “[...] está voltada
urbanísticas e arquitetônicas. Dessa maneira, para a contemplação do que lhe agrada aos
é possível inferir que “as paisagens turísticas olhos, e para a beleza. A composição e a
são cenários intencionalmente construídos no harmonia das formas e cores não passam
território” (Silva, 2004, p. 27). despercebidas” (Silva, 2004, p. 32).
A morfologia do centro histórico e as Já no tocante à paisagem natural, analisou-se
adequações realizadas nos casarios e na os comentários dos turistas acerca da Serra
infraestrutura do lugar nos remetem de São José, um importante elemento
realmente a um cenário construído, onde o geográfico, visual e orgânico da cidade. O
tempo passaria de modo diferente. Mas cabe relevo da região serrana constitui um dos
indagar se este “cenário” vem sendo fatores determinantes para o crescimento da
usufruído por todos aqueles que vivem a cidade, e caracteriza, juntamente com o
cidade e constroem ali o seu cotidiano. casario setecentista, um cenário ímpar na
paisagem urbana (Figuras 8 e 9).

Figuras 8 e 9. Vista parcial do centro histórico de Tiradentes e a Serra de São José ao fundo (fonte:
arquivo pessoal, 2019).

A Serra de São José é muito utilizada na serra parece ser muito utilizada pelos turistas
divulgação da cidade, principalmente por por meio das trilhas que dão acesso a fontes
parte das pousadas locais, que destacam a naturais – cachoeiras – e mirantes, de onde é
possibilidade de avistar belas vistas da serra a possível ter uma vista da cidade de
partir das janelas de seus quartos. Dessa Tiradentes.
maneira, é possível observar o uso do relevo
Ela é descrita como um elemento imponente,
local como verdadeiros mirantes “vendidos”
porém, poucos são os comentários nos quais
pelo turismo.
ela é relacionada à cidade, ou seja, como
Ao analisar os comentários obtidos na parte integrante de sua paisagem construída.
plataforma do TripAdvisor, muitos elementos A grande parte dos comentários, senão a
foram ressaltados para a caracterização da maioria, descreve o potencial turístico da
Serra de São José, e juntos conformam o que serra propriamente dito. Diante desses
este trabalho tem denominado de percepção achados, cabe uma indagação sobre a
da paisagem natural por parte do turista. Os percepção que o turista tem desta paisagem
atributos que apresentaram maior frequência natural sob o ponto de vista do ambiente
podem ser visualizados na Figura 10. construído a partir destes dados textuais. É
como se os turistas a analisassem sob o ponto
As palavras com maior frequência são nítidas
de vista de uso, de um produto em si.
ao observar a imagem: “trilha” e “vista”. A

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No tocante à análise das fotografias, a Serra, (cerca de 18%), a Serra aparece ao fundo do
em muitos momentos, é fotografada pelo casario. Foi interessante notar que os
turista transmitindo a impressão de um registros imagéticos da serra, em sua grande
“cartão postal da cidade”, revelando-nos uma maioria, associam-se ao casario colonial, e
forma complementar de percepção dos dados não somente à serra por si só (Figura 11).
textuais. Em várias fotografias analisadas

Figura 10. Nuvem de palavras da categoria paisagem natural (fonte: dados coletados no TripAdvisor,
2019).

De acordo com Silva (2004, p. 22), “o


contexto ambiental-paisagístico é um outro
fator que contribui para realçar a cenarização
dos lugares”. As cidades turísticas se
colocam mais valorizadas à medida que
conseguem associar-se a paisagens e
situações geográficas naturais particulares,
tais como montanhas e praias.
Figura 11. Associação entre o casario colonial e a Donaire, Gali e Royo-Vela (2015)
serra de São de José (fonte: TripAdvisor, 2019).
argumentam que as fotos tiradas por turistas
e compartilhadas na internet estão
Essa questão remete à fala de Silva (2004), desempenhando um papel cada vez maior na
ao analisar a cenarização dos espaços em criação da imagem dos lugares. Esta hipótese
Parati, mencionando que a homogeneidade pode ser estendida também às informações
do conjunto formado pelo casario colonial da textuais – e descritivas – que encontramos na
cidade, associado à sua localização web, e que juntas passam a colaborar para o
estratégica – de frente para a baía –, fazem constructo de uma forma, isto é, a percepção
com que o centro histórico de Parati seja de um lugar.
extremamente fotogênico. Essa análise
A criação de imagens se coloca como
poderia ser estendida também a Tiradentes, à
resultado de um processo interativo entre
medida que há uma homogeneidade do
observador e observado. O que o observador
casario colonial e uma localização
vê está fundamentado na forma, no entanto, o
diferenciada, com vistas diretas para a serra,
modo como ele percebe, lê e organiza o
principalmente em pontos da rua Direita e
objeto irá influenciar em sua percepção final.
próximos à igreja de Santo Antônio, origem
Portanto, a forma física de um ambiente
da maior parte das fotos analisadas (Figura
exerce um papel igualmente importante na
11).
percepção humana, como lembra Lynch
“existem ambientes que chamam ou repelem

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a atenção, que facilitam ou dificultam a contribuem para esta discussão, ao inserir


organização ou diferenciação” (Lynch, 1997, elementos substanciais à imaginabilidade
p. 155). urbana.
As imagens descritas e observadas podem
Considerações finais
diferir de acordo com a escala analisada,
A cidade de Tiradentes, de forma histórica e assim como por questões de ponto de vista,
contextual, se coloca como um espaço hora do dia, estação do ano, a condição social
produzido – principalmente no tocante ao seu e a bagagem cultural que o indivíduo traz
centro histórico – em favor do turismo. Dessa consigo. À vista disso, é notável e singular
maneira, sua vocação turística foi sendo que cada indivíduo tenda a criar e assumir
testada e concebida por empreendedores sua própria imagem; no entanto, parece
diversos. Por isso, é possível atestar uma existir uma consonância entre membros de
apropriação de quase a totalidade do centro grupos equivalentes (Lynch, 1997). E isso
histórico em prol de atividades turísticas. pôde ser constatado pelo trabalho, ao
À vista disso, o trabalho se propôs a analisar identificar uma percepção geral acerca da
a percepção do turista acerca da cidade de paisagem construída, principalmente as
Tiradentes, mais propriamente, do centro questões envolvendo o centro histórico e a
histórico, e de seu principal elemento natural, cenarização.
que no caso, seria a Serra de São José. Tal Em muitos momentos, a percepção do turista
análise partiu do pressuposto da importância e, por consequência, a imagem formada,
de se entender como a cidade é percebida por possuem uma relação direta entre as formas
esses sujeitos, e como ela é projetada pelos físicas e seus atributos, haja vista que a
mesmos. Nesse sentido, a adoção das concentração de uma atividade específica em
categorias paisagem construída e paisagem uma determinada rua, bairro ou praça pode
natural se colocou como um facilitador das torná-los importantes e visíveis aos olhos do
análises e discussões. observador (Lynch, 1997). E isto foi
Vale a pena destacar que os resultados observado em diversos momentos,
apresentados se configuram como uma principalmente ao associar questões
percepção, e as imagens formadas a partir envolvendo o próprio centro histórico.
desta, como bem ressalta Lynch (1997), se Outro ponto relevante é a observância da
colocam como um processo bilateral entre o representatividade do centro histórico na
observador e o ambiente, a partir do qual o percepção do turista. Vários adjetivos são
observador acaba por selecionar, organizar e elencados pelo mesmo para definir o centro
conferir significado àquilo que se vê. Dessa histórico, mas em determinados momentos,
forma, a imagem de uma dada localidade parece haver uma extensão da imagem criada
pode variar, de forma significativa ou não, em torno do centro histórico a todo o restante
entre observadores diferentes. De forma da cidade.
complementar, cabe argumentar também que
Como bem destaca Silva (1997), o que atrai a
a percepção da paisagem se coloca como
atenção do turista seria o diferente e o
algo subjetivo, resultado de uma experiência
inusitado. Dessa maneira, o olhar do turista
particular do indivíduo com determinado
se coloca estrangeiro e especulador. O que
espaço.
estaria por detrás da “fachada” – inerente aos
Os dados e informações apresentados – e processos históricos e sociais subjacentes
analisados sob a luz da teoria – mostram-se àquela localidade – não se coloca como
estritamente importantes para as discussões relevante, importando apenas a manutenção
acerca da imagem e percepção urbana, do cenário e a forma como este agrada ao
podendo ir além, e se colocando também público.
como um repertório visual apreendido e
reproduzido pelos turistas. Os estudos
apresentados por Lynch (1997), em muito
Notas
1
Neste trabalho adota-se o conceito de paisagem forma visual, do emaranhado de edifícios, ruas e
urbana discutido por Cullen (2015), tratando-se espaços que compõem o ambiente urbano.
de algo referente à organização e à coerência, de

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2 8
As mídias sociais podem ser caracterizadas por Python é uma linguagem de programação
canais de relacionamento na internet, nos quais lançada nos 1990 e que vem ganhando
existem distintas possibilidades de interação e expressividade nos últimos anos, tornando-se uma
participação entre os usuários. Dentre as mídias das mais populares entre programadores,
sociais elencadas neste projeto cita-se: Instagram; principalmente no que diz respeito à sua
Facebook; Booking; TripAdvisor; Twitter; Flickr. funcionalidade com dados, Big Data e
3
inteligência artificial.
Data Science se remete a uma ciência que estuda
9
as informações, seu processo de captura, Uma nuvem de palavras, ou também conhecida
transformação, geração e, posteriormente, análise como nuvem de tags e tagcloud, se refere a uma
de dados. Trata-se de uma área interdisciplinar representação visual de dados no formato de texto
voltada a análise de dados, sejam eles livre, por meio da qual é possível observar, de
estruturados ou não estruturados, visando a forma rápida, a relevância de uma palavra em
extração de conhecimento, detecção de padrões uma base de dados mediante o seu tamanho na
e/ou insigths, essenciais no processo de tomadas nuvem. Quanto maior for a ocorrência de uma
de decisão. determinada palavra no texto, maior será o seu
4
tamanho na nuvem.
Lynch (1997, p. 11) define o conceito de
imaginabilidade como uma “[...] característica, 10
O conceito cidade histórica no mercado
num objeto físico, que lhe confere uma alta turístico está associado às pequenas e pitorescas
probabilidade de evocar uma imagem forte em cidades remanescentes datados do período
qualquer observador dado [...]” sendo “[...] aquela colonial e imperial brasileiro (Silva, 2004).
forma, cor ou disposição que facilita a criação de 11
O crescimento no número de empregos formais
imagens mentais claramente identificadas”.
no setor de hospedagem, assim como de
5 estabelecimentos formais de hotelaria, acrescidos
A Estrada Real se caracteriza como a maior rota
turística do país, se estendendo por mais de 1630 do aumento do fluxo turístico doméstico e
quilômetros e cruzando os estados de Minas internacional foram pontos chaves para que o
Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Sua município subisse da categoria B, em 2015, para a
construção data de meados do século 17, quando categoria A em 2018.
a Coroa Portuguesa decidiu oficializar os 12
Apenas três cidades estão classificadas na
caminhos para o trânsito de ouro e diamantes de categoria A no estado de Minas Gerais, sendo
Minas Gerais até os portos do Rio de Janeiro. As elas: Tiradentes, Camanducaia e Belo Horizonte.
trilhas abertas pela realeza receberam o nome de
13
Estrada Real. A cidade possui um acervo arquitetônico
preservado, e isto se deve, em medida, pelo
6
O TripAdvisor surgiu no ano 2000 se colocando
“abandono” populacional no qual a cidade passou
como um guia de viagens, a partir do qual os
entre os séculos XVIII e XX, dada a decadência
próprios turistas podem emitir opiniões, fazendo
econômica na época.
com que o site seja alimentado com relatos de
14
experiência no formato de avaliações e Memorial Maria Moura (minissérie), Hilda
comentários. A página possui mais de 600 Furacão (minissérie), Rabio de Saia (minissérie),
milhões de avaliações e comentários redigidos, Amor e Cia (filme), Coração de Estudante
em sua maioria, por turistas (TripAdvisor, 2019). (novela), O Menino Maluquinho (filme), Espelho
7 da Vida (novela).
Trata-se de uma técnica de extração de dados
utilizada para coletar dados de sites.

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Tourism-g737098-Tiradentes_State_of_Minas_

Tradução do título, resumo e palavras-chave


The heritage and tourist city: an analysis of the image construct and appropriation of the historic center
of Tiradentes-MG from the social media
Abstract. Tourism is seen as an activity capable of refunctionalizing geographic spaces and endowing
them with new landscapes and symbologies. This theme can be considered very relevant in studies
involving urban space and dialogues directly with geographic science and urbanism. Thus, it highlights
the relevance of studies that aim to address the relationship of the tourist with space and/or the
landscape, with an emphasis on this work, the studies involving heritage tourist cities. In this sense, the
work in question has as main objective to analyze the perception of tourists about the urban space of the
city of Tiradentes - MG, identifying the urban image formed by them, from the data contained in social
media. In the case of methodological procedures, different stages were used, namely: documentary and
bibliographic research, case study, photographic records, on-site observations, and analysis of data
obtained from TripAdvisor. To obtaining and analyze the data, the technique known as Web Scraping
(WS) was used. From the analysis, it was possible to identify the urban image formed from the perception
of tourists about the city of Tiradentes. It can be noted a strong association with the Historic Center of the
city, and many times seeing the totality of the city restricted only to this central space.
Keywords. tourism, urban image, social media, Tiradentes-MG.

Editor responsável pela submissão: Renato Saboya.

Licenciado sob uma licença Creative Commons.

Revista de MorfologiaUrbana (2020) 8(1): e00137 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
SEÇÃO ABERTA
Artigos científicos em fluxo contínuo
Questões fronteiriças: Florianópolis e Olivença, duas faces da
mesma moeda
Milton Luz da Conceição
Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Florianópolis, SC,
Brasil. E-mail: milton.conceicao@ufsc.br

https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.88
Submetido em 1 de julho de 2019. Aceito em 27 de fevereiro de 2020.

Resumo. Identificar nas cidades de Olivenza (Espanha) e na cidade de


Florianópolis (Brasil), marcas da disputa entre lusos e castelhanos para
marcar fronteiras ibéricas ou pelo controle da costa sul atlântica meridional
da América é o primeiro objetivo deste artigo. As citadas cidades serão
moedas de troca em Tratados numa das muitas tentativas de solução para
estes conflitos. As estruturas urbanas de defesa construídas em ambos
espaços em meados do sec. XVIII, marcaram o território. A pretendida
reconstrução busca no espaço urbano atual de Florianópolis e Olivença (em
português) as marcas denunciadoras da luta entre ibéricos na premência de
satisfazer suas necessidades e desejos. As fronteiras portuguesas mais
ameaçadas por invasões, neste período, são a fronteira ao sul da colônia
Brasil e a fronteira ibérica sueste a margem do rio Guadiana, o inimigo era
comum em ambas: os Castelhanos. Assim, na primeira metade do século
XVIII o reforço militar nestas duas fronteiras, tão distantes fisicamente, mas
tão próximas na sua vulnerabilidade, foi uma constante. Afirmar que a Ilha
de Santa Catarina e a região Ibérica onde se situa Olivença não guardam
nenhuma semelhança física, geográfica ou social é afirmar o obvio. Mas
podemos refletir a respeito da materialidade advinda dos episódios
históricos.
Palavras-chave. fronteiras, arquitetura de defesa, território, evolução
urbana.

Introdução castelhanos para marcar fronteiras ibéricas e


pelo controle da costa sul atlântica
As cidades surgem como espaços únicos,
meridional da América.
suas coletividades sob suas origens
especificas assumem diversas formas. Pensar As citadas cidades são faces da mesma
a evolução territorial até nossos dias, requer a moeda nos muitos Tratados celebrados entre
identificação dos agentes transformadores portugueses e espanhóis em tentativas de
presentes no processo. solução para este conflito. Destaque para o
Tratado de Madri (1750), o de El Pardo
A percepção destes agentes dentro do
(1761) e o Tratado de Santo Ildelfonso
permanente processo de transformação, é
(1777). Este último é o que devolve a Ilha de
possível sob diversas perspectivas;
Santa Catarina invadida pelos espanhóis. Já
“espacializando a narrativa histórica” para
Olivença, somente será incorporada ao
Soja (1993); dentro de um “materialismo
território espanhol em 1801 no Tratado de
Histórico e Geográfico” tentando estabelecer
Badajoz, questionado até os dias atuais.
uma trialética, tempo, espaço, homem, é a
Como visto a disputa de fronteiras entre
sugestão de Santos (1994).
portugueses e espanhóis envolve estes dois
A reconstrução histórica, examinando os territórios, tão distantes, nas mesmas
sinais deixados no espaço, é a opção que disputas. As estruturas urbanas de defesa
fizemos para identificar nas cidades de construídas em ambos espaços urbanos, neste
Olivença na Espanha e na cidade de período, ficaram como marcos influenciando
Florianópolis, Ilha de Santa Catarina sul de no processo de evolução urbana que se
Brasil, marcas da disputa entre lusos e seguiu.
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Questões fronteiriças: Florianópolis e Olivença, duas faces da mesma moeda. 2 / 13

A pretendida reconstrução busca no espaço Os Tratados Internacionais resultantes do


urbano atual de Florianópolis e Olivença as entendimento diplomático entre as partes
marcas denunciadoras da luta entre ibéricos envolvidas resultam em trocas territoriais que
na premência de satisfazer suas necessidades são agentes de transformação urbana
e desejos. Na economia, na política, e nas proporcionadores de comparação entre estes
artes encontramos estes agentes dois pedaços do mundo separados por 10.000
transformadores. Nas fronteiras encontramos km, e que a historiografia em geral esquece
o espaço físico do confronto entre estas que são partes de um mesmo conflito.2
necessidades e desejos.
As fronteiras lusas- hispanicas3
A fronteira. Espaço de significados A costa sul-atlântica meridional da América,
variados. De uma linha imaginária a território em que se insere a ilha de Santa
uma região na qual se inseriam Catarina, será terra de ninguém até meados
conflitos, interesses, construções, do século XVIII. Reafirmamos o dito em
trânsitos que deram a tônica definidora Rodrigo Ceballos (2007), para melhor
da soberania dos Estados Modernos. entender este pedaço do mundo onde várias
Em territórios fronteiriços, forças disputavam um intenso comércio.
especialmente quando se aborda o
continente americano, pode se Em 1658, após três meses de viagem
conjecturar que diversas relações, em uma embarcação espanhola, o
caminhos, idas e vindas foram feitos francês Acarete du Biscay chegou a
sem se chegar a um denominador embocadura do Rio da Prata. Logo em
comum acerca do que pertencia a um sua entrada, a nave foi
determinado Estado e do que pertencia ameaçadoramente recepcionada por
a outro. (Acruche, 2014, p. 68). uma fragata francesa, mas nada que
impedisse sua chegada ao destino
A ocupação da Ilha de Santa Catarina, final: a cidade de Santissima Trindad y
território que abriga a cidade de Florianópolis Puerto de Santa Maria de los Buenos
(Brasil), data do século XVII. Esta ocupação Aires.
é impulsionada a partir de meados do século Próximo ao porto este viajante ilegal,
XVIII por interesses da Coroa Portuguesa. trazido como “primo” do capitão do
Esta ilha é o ponto mais propício para defesa navio, avistou duas embarcações
da costa sul frente aos Castelhanos na inglesas e vinte e duas holandesas
acirrada disputa pela foz do Rio da Prata. desembarcando mercadorias
A presença de um assentamento humano no semelhantes a que eles também
espaço onde hoje se encontra a cidade de traziam - roupas de linho, tecidos de
Olivença, Província de Badajoz (Espanha), seda e lã, especiarias, agulhas, espadas,
data de meados do século XIII, portanto ferramentas - e, especialmente alguns
posterior à reconquista. O que lhe nega uma escravos vindos de Angola. As
origem árabe e a remete a uma origem embarcações inglesas regressavam ao
templário.1 Com um posicionamento Oceano Atlântico carregando, couro, lã
territorial incomum esta localidade sempre e prata. (Ceballos, 2008, p. 1).
esteve no epicentro de disputas fronteiriças,
A imprecisão do controle sobre este
primeiro na divisa hispano-muçulmana e
território, favorecida pela ausência, ainda a
posteriormente na questão entre portugueses
este tempo, dos Estados/Nação, serviu a
e espanhóis que permanece até os dias atuais.
vários interesses, sendo que o econômico
Em uma aproximação inicial podemos dizer sempre se sobrepôs a qualquer outro até o
que a geografia física coloca ambos os século XVIII. Neste período, Ingleses,
territórios, a ilha de Santa Catarina e a cidade Franceses, Holandeses, Russos e Angolanos
de Olivença, em posição estratégica para os disputavam estes mares com as Coroas
avanços e recuos das opções bélicas tomadas Ibéricas que se presumiam soberanas. A
por portugueses e castelhanos na disputa união destas Coroas (União Ibérica - 1580 a
fronteiriça ibérica e na conquista da costa 1645) teve a importância de consolidar as
meridional sul atlântica. Espaços distintos em relações entre lusos e hispânicos no comercio
um mesmo tempo e em uma mesma disputa. de couros, sebo e lãs em troca da prata
extraída das minas de Potosí, estas rotas

Revista de MorfologiaUrbana (2020) 8(1): e00088 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
Questões fronteiriças: Florianópolis e Olivença, duas faces da mesma moeda. 3 / 13

tinham a primazia dos portugueses até o final acesso à Ponte da Ajuda, elemento urbano
da dita União. mais periférico sobre o rio Guadiana.
A importância estratégica da fronteira e os Olivença no século XVIII
conflitos que ao longo dos séculos XIV e XV
O século XVIII representa para Olivença o
opuseram portugueses e castelhanos, fazem
princípio do fim de sua etapa Portuguesa. Se
de Olivença protagonista frequente de
existe um fato que marque este início é sem
episódios históricos trocando de mãos de
dúvida o fechamento da ponte da Ajuda pelo
tempos em tempos. Como exemplo, após a
Marques de Bay em 1709 trazendo danos
morte do monarca D. Fernando a 22 de
irreparáveis ao futuro da cidade. Sem a
outubro de 1383, Olivença passa à pertencer
passagem sobre o Guadiana Olivença fica
ao reino de Castela voltando a ser Portuguesa
isolada e condenada a sua própria sorte.
em 29 de novembro de 1389.
No começo desse período a cidade contava
Assim podemos reafirmar que tanto a ilha de
com cerca de 10.000 habitantes (Siqueira,
Santa Catarina, na costa sul do Brasil desde a
1944) população que vai se reduzindo com o
chagada dos ibéricos, como a região
passar dos anos devido a seu isolamento.
conhecida por “Llanos de Olivenza” na
Assim em 1739 a população já havia se
província de Badajoz na Espanha, serão
reduzido significativamente a 6681
territórios alvo de intensas disputas
habitantes. No meio do mesmo século
fronteiriças entre portugueses e espanhóis.
encontramos 5.500 pessoas nesta localidade e
A importância da ilha de Santa Catarina em 1758, segundo Teodoro (1993), 4.370
como último ponto seguro de parada e almas.
abastecimento a quem avança ao Prata é
Na segunda metade do século XVIII
lembrada por Oliveira Jr. (2005, p.2):
espanhóis das mais diversas origens
Situada a meio caminho entre o Rio de começam a chegar a região atraídos pela
Janeiro e a Região do Prata, e por ser o riqueza de seus campos e a abundância de
último porto apropriado para reparo e agua, assim, se verifica um aumento
abastecimento de água e alimentos de demográfico para 7600 habitantes segundo o
navios, esta Ilha consistia em parada censo de 1790.
obrigatória dos navegadores que se Os acontecimentos bélicos que envolvem
destinavam à Região Platina. Tornou- Portugal e Espanha nos séculos XVII e
se, assim, cobiçada por espanhóis e XVIII, induziram um reforço de construções
portugueses, que passaram a revezar-se militares para melhorar a segurança do
no seu uso até o século XVIII. enclave.
Esta posição geoestratégica na questão da A Ilha de Santa Catarina no século XVIII
fronteira luso-castelhana nos mares do Sul se
O processo de ocupação da ilha de Santa
equivale, na extensão do mesmo conflito, ao
Catarina só acontecerá um século e meio
papel jogado pelo território de Llanos de
depois da chegada dos Portugueses ao Brasil.
Olivenza e seu principal assentamento,
Porém a fundação de um primeiro núcleo
Olivença, na conflitiva fronteira Ibérica. No
(1673) não significa o início de uma
dizer de Gomez, (2005, p. 201)
ocupação imediata de todo o território. Neste
La importancia estratégica en la que caso especifico o primeiro núcleo é o enclave
había quedado Olivenza [...] e de Nossa Senhora do Desterro totalmente
convierte en factor morfológico incendiado e destruído por um ataque pirata
dominante sobre cualquier otro de 30 anos depois de sua instalação.
influencia en el paisaje arquitectónico Somente será reconstruída em 1714 como
– urbanístico. Desde fines del siglo “Cidade Real”, como era chamada a vila
XIII y durante siglos, Olivenza criada por ordens expressas do Rei em pontos
dependerá vitalmente de sus defensas y estratégicos do território, ficando seus
su historia quedará indisolublemente cidadãos subordinados diretamente à “Coroa”
unida a aquéllas. como nos ensina Ribeiro (1994, p. 195)
Até 1801 a importância estratégica de As cidades e vilas da rede colonial,
Olivença está intimamente conectada com o correspondentes a civilização agraria,
eram, essencialmente, centros de
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dominação colonial, criados muitas Como visto a preocupação com a defesa da


vezes, por atos expressos da Coroa Ilha se intensifica no século XVIII
para defesa da costa, como Salvador, coincidindo com a conquista da Costa Sul
Rio de Janeiro, São Luís, Belém, Atlântica da América e a obsessão dos
Florianópolis e outras. Ibéricos pela foz do Prata. Esta corrida ao
Rio da Prata tem por motivação a cobiça
Por ordens expressas da Coroa Portuguesa aguçada pelo mapa de 1515 do geógrafo
em 1738 se nomeia o Brigadeiro José da alemão Johannes Schöner que acabava a
Silva Paes com a missão de organizar política América do Sul na altura do atual Uruguai
e administrativamente o que seria a futura apontando a existência de uma fenda,
Província de Santa Catarina. Seguindo a levando direto a Potosí e a prata Peruana.
política de colonização as duas primeiras Goes Filho (2004).
ações do militar são: Construir um sistema de
fortalezas para defesa da costa; organizar a A fortificação Portuguesa das fronteiras
criação de vários núcleos ao longo da costa em perigo
da ilha como defesa e para consolidar sua As fronteiras portuguesas mais ameaçadas
ocupação. por invasões, a partir da metade do século
O envio de colonos para viabilizar o projeto XVIII, são a fronteira ao sul da colônia Brasil
começa a partir de 1748 quando aportam na e a fronteira ibérica sueste a margem do rio
ilha as primeiras 50 primeiras famílias Guadiana, o inimigo era comum em ambas:
oriundas do arquipélago dos Açores. Em os Castelhanos.
1749 mais 47 famílias Açorianas, entre 1750 Assim, na primeira metade do século XVIII,
e 1753 mais 4.000 colonos reforçam o período que coincide com o reinado de D.
contingente que se completará com 600 João V, o Magnânimo, o reforço militar
pessoas chegadas da ilha da Madeira em nestas duas fronteiras, tão distantes
1756. fisicamente, mas tão próximas na sua
vulnerabilidade, foi uma constante.

Figura 1. Plano de defesa de Olivença 1732 Fonte: Pizarro Gomez, 2005.

Em Olivença o já citado fechamento da Ponte reforço e remodelação das defesas


da Ajuda (1709) e seu isolamento a esquerda portuguesas neste enclave tornam-se
do Guadiana suscitava serias preocupações prioridade junto a Coroa Portuguesa. Entre as
quanto a manutenção deste território. O reformas mais importantes está o Plano

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Granpré de 1732 (Figura 1) no sistema perder parte de sua importância como


abaluartado existente. Registradas nesse referência tanto no plano político-social
período estão: 1) A construção de uma como no urbano ainda permanecem como
cavalariça junto ao forte São João de Deus, marcas simbólicas do processo de
forte este já existente desde o século anterior. colonização. A arquitetura e o processo
2) A construção de um novo e reforçado construtivo destes edifícios indicam uma
portal para a cidade em sua saída â Portugal, recomposição histórica com vistas ao
Porta do Calvário. 3) E finalmente com conhecimento destas estruturas urbanas e dos
intenção de reforçar a segurança pelo acesso agentes de transformação que sobre ela
sudeste da cidade reforçasse à porta de São operaram durante os últimos trezentos anos.
Francisco e se constrói o forte São Joao. Foram os Açorianos e Madeirenses os
Outras reformas acontecerão dentro de colonos escolhidos pela Coroa Portuguesa
Olivença e vão se limitar ao reforço dos nove para programar a empreitada de Silva Paes. A
baluartes que compõem o recinto influência da cultura lusa- açoriana na
amuralhado. arquitetura destes edifícios aparece
principalmente no “frontão” e na fachada,
A forte conexão que une Estado e Igreja no
porém, mais na forma que na estrutura ou nos
Patronato Régio Português também se fazem
materiais a serem utilizados. Esta cultura está
presentes na Colônia. O fato de em Olivença
impregnada da estética dos jesuítas em sua
as construções militares estarem conectadas
composição de influência “maneirista” numa
física e politicamente a construções religiosas
interpretação livre de seus arquitetos, mestres
se repete da mesma forma na Ilha de Santa
artificies e construtores. A mesma influencia
Catarina.
é percebida em seus interiores, nas
O envio do já citado engenheiro militar decorações de púlpitos e altares na
Brigadeiro Jose da Silva Paes em 1738, tinha ingenuidade de suas pinturas como na
como objetivo organizar a colonização da simplicidade das plantas. Essa
ilha e construir um sistema militar de defesa. espontaneidade em parte determinada pelos
Em dez anos o trabalho iniciado por Silva materiais disponíveis e o clima, apontam
Paes e continuado por seus sucessores resulta ainda a uma livre adaptação de modelos
em seis núcleos fundados na ilha e mais três europeus.
no continente próximo. A fundação dos
Sob a invocação de Nossa Senhora das
núcleos é comandada diretamente do núcleo
Necessidades e o comando de Jose da Silva
central. Segundo reza a “Provisão Régia” de
Paes em 1750 se inaugura a igreja, elemento
Nove de agosto de 1747 sua organização é
central da freguesia de Santo Antônio de
composta por um vigário, alguns soldados, e
Lisboa, ao norte da costa oeste, criada pela
os colonos, ao chegar ao local escolhido à
Provisão Régia de 26 de outubro de 1751.
primeira construção deverá ser a Igreja com
Esta fundação é de vital importância como
seu rocio frontal. Ademais, da morfologia
apoio aos fortes de São José da Ponta Grossa
da ocupação territorial da ilha de Santa
(1740) distante cinco quilômetros ao norte da
Catarina, chama a atenção os projetos, as
freguesia e ao forte de Santo Antônio
técnicas e os materiais empregados na
localizado em uma pequena ilha (Ratones
construção das fortificações e igrejas. Este
Grande) em frente a freguesia.
conjunto Forte/Igreja vai nortear a formação
da paisagem urbana, e mesmo hoje, após

Figura 2. A esquerda igreja de N.S. das Necessidades e a direita o Forte de Santo Antônio (fonte:
IHGSC, s.d. ).
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Na segunda metade do século XVIII a geográfica especial a estes espaços: o rio


colonização já está consolidada com a Guadiana a Olivença e o Oceano Atlântico a
elevação, à categoria de vila, do núcleo Ilha de Santa Catarina.
central Nossa Senhora do Desterro (atual
Num primeiro levantamento destas
Florianópolis) e a fundação de núcleos
construções chamou a atenção o esmero dado
fortificados em pontos estratégicos do
as portas e sua simbologia. Apresentamos a
território. A partir daí a população local, de
“Porta do Calvário” em Olivença ao lado da
9.200 almas em toda a ilha, passam a ter uma
porta de Anhato-Mirim na fortaleza de Santa
única preocupação, a eminente invasão
Cruz na Ilha de Santa Catarina. (Figura 3).
espanhola que será levada a efeito em
fevereiro de 1777. A Porta do Calvário junto ao baluarte do
Calvário apesar de datar de tempos mais
O último feito diplomático do reinado de
remotos, recebe reforma completa e sua
João V de Portugal foi o Tratado de Madrid
aparência atual por volta de 1735, ao mesmo
de 1750, que cruzou os tratados e acordos
tempo (1739) na ilha de Santa Catarina se
posteriores, estabelecendo as modernas
construía junto a Fortaleza de Santa Cruz a
fronteiras do sul do Brasil relaxando em parte
porta de Anhato Mirim. Ambas sob a
as tensões fronteiriças. Com sua morte
inspiração da arquitetura militar portuguesa
(1750) sobe ao trono português seu filho D.
em latitudes tão diversas, executadas por
Jose I.
distintos comandantes militares, mas com
Os sistemas de defesa e suas construções objetivos similares. A tradição lusitana em
construções militares se consolida através do
Afirmar que a Ilha de Santa Catarina e a
lisboeta Luis de Pimentel (1613-1679), que
região Ibérica onde se situa Olivença não
difundiu o sistema abaluartado em Portugal e
guardam nenhuma semelhança física,
colônias através de sua publicação de 1680
geográfica ou social é afirmar o obvio. Mas
“Methodo Lusitanico de desenhar as
sob o aspecto da materialidade advinda dos
fortificações das praças regulares &
episódios históricos da formação de ambos os
irregulares” revelando toda a influência
territórios podemos refletir a respeito. Afinal,
exercida da arquitetura militar holandesa
as construções defensivas são feitas pelo
sobre os engenheiros militares portugueses,
mesmo povo, o Português, em territórios
também destaca-se na adaptação destas
distintos, no mesmo período, a primeira
teorias a pratica nas batalhas do sec. XVIII o
metade do século XVIII, com ambas
inglês Frederico Guilherme Ernesto de
populações em torno de 9.000 pessoas e com
Schaumburg-Lippe o conde de Lippe que
o mesmo objetivo, a defesa de fronteiras
comandou o exército português de 1762 até
estratégicas. Estratégicas porque um
sua morte em 1777.
elemento natural proporciona esta situação

Figura 3. A esquerda Porta de Anhato- Mirim a direita Porta do Calvário (fonte: esquerda: IHGSC, s.d.;
direita: Sanchez Garcia e Limpo Piriz, 1994).

Seguindo em busca de vestígios de baluartes protetores do recinto Oliventino e a


construções datando da primeira metade do construção do forte de São João.
século XVIII nos territórios em estudo vamos
Os fortes abaluartados, símbolo da
nos deparar com as fortalezas da Ilha de
arquitetura militar portuguesa, se faz presente
Santa Catarina e igualmente a reforma dos
em ambos territórios. Numa aproximação

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entre o baluarte do Forte de Santo Antônio quatro anos após (Cabral, 1976). Contava,
dos Ratones na ilha de Santa Catarina e o nessa ocasião, com doze peças de ferro
baluarte Oliventino de São Brás, verificamos (cinco de calibre 24, três de 18, três de 12 e
coincidências nos princípios construtivos e os uma de 4), e duas de bronze, de calibre 12. Já
mesmos objetivos militares. O primeiro o Baluarte de São Brás nas muralhas de
projetado e construído engenheiro militar Olivença apesar de construído anteriormente
Brigadeiro José da Silva Pais, primeiro vai ser inteiramente reformado e reforçado
governador da Capitania de Santa Catarina pelo engenheiro João Roiz da Silva. (Figura
(1739-1745), as suas obras tiveram início em 4).
1740 e, como ela, foi concluída cerca de

Figura 4. A esquerda Forte de Santo Antônio dos Ratones na Ilha de Santa Catarina/Brasil e a direita
Forte de São Brás Olivença/ Espanha (fonte: esquerda: IHGSC, s.d.; direita: Sanchez Garcia e Limpo
Piriz, 1994).

Entre as reformas mais importantes junto ao localizadas no mapa da figura n. Outros


este sistema abaluartado na metade do século vestígios de construções do mesmo período
XVIII está a construção de uma cavalariça no aproximam os dois territórios em estudo. Na
baluarte de São João de Deus, a reforma da já tipologia de edifícios públicos ou privados
existente porta do Calvário junto ao convento podemos relacionar a principal praça de
de Nossa Senhora da Conceição, a Olivença com o espaço público similar de
construção da porta de São Francisco e o Nossa Senhora do Desterro atual
forte de São João todas estas construções Florianópolis nas mesmas datas. (Figura 5).

Figura 5. A esquerda centro de Olivença a princípios do Sec.19 a direita centro de N.S. do Desterro atual
Florianópolis no mesmo período (fonte: esquerda: Vallecillo Teodoro, 1999; direita: Floripendio, 2010).

O conjunto formado por construções povo da Laguna (Lagoa da


religiosas católicas e fortificações militares Conceição), tomando posse dela seu
na ilha de Santa Catarina pode ser percebida Pároco, e da Fortaleza de São José da
na correspondência do então governador da Ponta Grossa, que interinamente serviu
ilha de Santa Catarina “Manuel Escudeiro de de núcleo, ao muito povo de sua
Souza” ao Conselho Ultramarino (órgão da vizinhança, também benzeu neste dia o
Corte Portuguesa) em 04.03.1751. mesmo Santo; e como pela penúria que
existe de artífices e ajudantes se
A 8 de dezembro passado (1750), dia retardaram as outras igrejas da ilha,
da imaculada Conceição de Nossa ordenei que se façam casas pequenas
Senhora se benzeu a nova Igreja do
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de pau-a-pique para oratórios. (Pauli,E. Senhora da Conceição em Olivença e a Igreja


1978, p. 96) de Nossa Senhora do Rosário situada no
centro da antiga Nossa Senhora do Desterro
No núcleo central da Ilha de Santa Catarina, hoje Florianópolis, ambos objetos
Igrejas Católicas e seus edifícios formam arquitetônicos riscados e construídos a
conjuntos que muito se assemelham aos meados do século XVIII (Figura 6).
também presentes no recinto Oliventino
convida-nos a mais uma aproximação entre a
fachada ocidental do Convento de Nossa

Figura 6. A esquerda convento de N.S. da Conceição em Olivença, a direita igreja de N.S. do Rosário em
Desterro (fonte: esquerda: Vallecillo Teodoro, 1999; direita: www.velhobruxo.tns.ufsc.br).

plata la localizarán los castellanos que


Os Tratados
impulsaban la colonización desde el
Os primeiros Tratados Alcanizes 1279 e Pacífico y, por otro lado, Portugal
Alcaçovas 1479 dividiam a península ibérica también perderá su interés en la región
objetivando a paz entre lusos e castelhanos. al concentrar sus recursos en zonas
Na sequência o Tratado de Tordesilhas comercialmente más rentables.
resultante da bula Papal “Inter. Cætera (Albuquerque, 1989, p. 62)
Quæ” del 13 de marzo de 1455 y “Æternia
Regis Clementia”4 del 21 de junio de 1481, A imprecisão nas várias linhas encontradas
concedendo a Ordem de Cristo a jurisdição contribuiu para seu fracasso (Figura 7).
sobre as terras ultramarinas não pertencentes Após este tratado teremos um período de
a nenhuma Dioceses, e ao Padroado Régio arrefecimento desta disputa entre ibéricos.
Português, todas as terras do novo mundo Este fato deve-se a união das Coroas (União
conquistadas a leste de uma li (7/7/1494), Ibérica - 1580 a 1645) que teve a importância
linha esta que até hoje em pleno século XXI de consolidar as relações entre lusos e
ninguém foi capaz de determinar, hispânicos. No Atlântico Sul as rotas de
apresentamos abaixo algumas destas linhas comercio de couros, sebo e lãs era lusa e a
imaginarias.. rota da prata extraída das minas de Potosí
tinha a primazia dos castelhanos até o final
El Tratado de Tordesillas resultó da dita União e o recomeço da disputa e a
difícilmente aplicable y tanto Castilla necessidade de Tratados. Os avanços ora
como Portugal aspiraron portugueses ora castelhanos sobre o território
simultáneamente a la posesión del Río em disputa eram tão constantes como os
de la Plata, que fue descubierto recuos. A estratégia de colonizar para
buscando un paso meridional hacia las consolidar a conquista era empregada por
verdaderas Indias y pronto concitó el ambos lados. A maioria das cidades
interés como vía de penetración hacia contemporâneas localizados neste território
las promisorias riquezas de la mítica tem como seu elemento gerador uma destas
“Sierra de la Plata”. Sin embargo, esa
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colônias. Assim a cada novo tratado teremos


assentamentos, povoados e vilas sendo
utilizados como “moeda de troca” na disputa.

Figura 7. As várias linhas de Tordesilhas (fonte: Albuquerque, L. 1989).

Objetivando o estabelecimento de fronteiras estabelecendo novas fronteiras e frentes de


e a paz seja na península ibérica ou nas terras exploração. A esta assinatura Brasil deve o
do sul sempre tendo a Igreja Católica como seu primeiro estabelecimento de limites
mediadora teremos na sequência o territoriais. Assim, os reis João V de Portugal
importante Tratado de Madri, assinado, e o Castelhano Fernando VI esperavam por
ratificado e promulgado em 1750. Este fim as disputas de limites entre as colônias
Tratado, assinado em 13 de janeiro de 1751 sul americanas. Um novo conceito de
tinha, a princípio, o intuito de substituir fronteiras foi introduzido foi aí introduzido
Tordesilhas. Tratava praticamente de dividir por Alexandre de Gusmão, natural da ilha de
as terras conquistadas no Novo Mundo, Santa Catarina. Este tratava a posse efetiva

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da terra (uti possidetis) e os acidentes [...] declarando-lhes que desde o


geográficos como limites naturais. A mesmo dia da ratificação do presente
primeira troca territorial se faz neste acordo: tratado em diante só lhes ficarão
servindo de regras para se dirigirem os
Os Lusos cediam a cobiçada Colônia outros tratados, pactos e convenções
de Sacramento e junto suas pretensões que haviam sido estipulados entre as
no estuário do Prata e em contrapartida duas Coroas antes do referido ano de
recebia o território das missões 1750; porque todos e todas se acham
jesuíticas espanholas que hoje fazem instaurados e restituídos à sua
parte do atual Estado do Rio Grande primitiva e devida força como se o
do Sul mais partes do atual Estado de referido tratado de 13 de janeiro de
Santa Catarina e a região 1750 com os mais que dele se
compreendida entre os rios Alto seguiram nunca houvessem existido...
Paraguai, Guaporé, e Madeira de um (LNCC, s.d., s.p.)
lado e Tapajós e Tocantins de outro,
regiões despovoadas à época e que se Um novo episódio bélico agravaria a
incorporam ao território do futuro fragilidade das relações fronteiriças entre as
Brasil. (Goes Filho, 2004, p.286) duas coroas ibéricas, a invasão da ilha de
Santa Catarina por Espanhóis.
Este Tratado de Madri (1750) apesar de
revogado já em 1761, marca para alguns um A Coroa Portuguesa que já previa este grande
divisor de águas na historiografia de Brasil. conflito armado na costa sul do Brasil
Boxer (1969). preparou, por ordem do Marques de Pombal,
a defesa da ilha com a construção de novas
Portugal no ano de 1750 alcançou o auge de fortalezas, instalou 143 novos canhões,
sua importância no tabuleiro das conquistas aumentou o efetivo militar e mandou para aí
coloniais. A diminuição da produção aurífera oficiais estrategistas de seu melhor quadro.
de Brasil e a morte de D. João V após um Todas estas medidas foram insuficientes para
reinado de 44 anos iniciam o declínio. Com a impedir a vitória da grande armada espanhola
ascensão de D. José I se implanta um reinado que chega com 6.000 marinheiros e 9.000
fiel ao despotismo esclarecido tendo à frente soldados. Capituladas as tropas portuguesas,
seu primeiro ministro o Marques de Pombal. empreendem fuga em direção ao Rio de
Janeiro. A ilha é entregue em fevereiro de
O Marques de Pombal, Sebastião José 1777 a D. Pedro Cevallos comandante da
de Carvalho e Melo (1699-1782), herói invasão.
para os portugueses e uma figura
nefasta para os brasileiros, é o nome O objetivo de adonar-se definitivamente se
do absolutismo em Portugal. reflete no número de artesãos, religiosos e
(Azevedo, 1912, p. 96) funcionários públicos que acompanhavam a
expedição e que foram distribuídos por todos
Elogiado por Portugueses que reconheciam os núcleos da ilha. Somente em 1801, após
as vantagens no acordo e abominado por muitas idas e vindas e muitos tratados é que
Espanhóis que acreditavam ter cedido muito, vai cessar definitivamente a influência
o Tratado de Madri cai em 1761 substituído espanhola sobre este território. A importância
pelo Tratado de El Pardo. Neste todas as desta invasão para Espanha é posta de
disposições do anterior tratado são anuladas manifesto na Carta do Conde de Aranda de
voltando os conflitos as fronteiras. Na 1777 para Carlos III:
prática, a colônia de Sete Povos jamais foi
ocupada por portugueses que não No se puede negar que la isla de Santa
convenceram nem venceram a resistência do Catalina es la llave de aquellos mares,
exército guarani missioneiro, uma formação pues quien se abrigue en ella será
de guerreiros guaranis comandados por dueño de Buenos Aires (...) Es
religiosos jesuítas. Em contrapartida os innegable que con ella y Montevideo
portugueses também resistiram a entregar a habrá cubierto el Rey todo el Rio de la
Colônia de Sacramento. Assim o Tratado de Plata, las Islas Malvinas (y) del Mar
El Pardo se condiciona a somente anular o del Sur; tendrá descanso y recurso para
Tratado de 1750 propondo o retorno a la navegación de Filipinas, y podrá
situação que vigorava anterior a esta data abrir una pesca que promete, quitando
como descrito no seu artigo II: a toda suerte de enemigos el hincapié
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de sus intentonas y el abrigo de su con la laguna de los Patos y devuelto


comercio ilícito. Que reflexione, pues, la isla de Santa Catalina... [mas]
cualquiera, cual parte de América extender nuestras posesiones en el
llenaría más objetos con menos Brasil, como parecen desearlo algunas
puestos. Conde de Aranda a personas, en virtud de la famosa
Floridablanda. París, 22/06/1777. división de Alejandro VI, es un
(Goes Filho, 2004, p. 287) proyecto de ejecución imposible, y, lo
que es más, contrario a los
Olivença, neste período, esperará mais alguns compromisos anteriores. Además,
anos para testar seus aparatos de defesa admitiendo este principio tendríamos
contra os desejos expansionistas espanhóis. A que ceder a los portugueses las islas
espera terminará com a invasão de Portugal Filipinas, puesto que les pertenecen
por parte de Espanhóis e Franceses. Em 20 según la demarcación hecha por este
de maio de 1801 tropas espanholas pontífice. (Goes Filho, 2004, p. 287)
comandadas por Manuel de Godoy, no
episódio conhecido por guerra das laranjas, Mesmo num clima de pouco conformismo o
invade a portuguesa Olivença. A exemplo da tratado será firmado pelos ministros
Ilha de Santa Catarina, Olivença também não indicados, o conde de Floridablanda de
ofereceu resistência já que seu governador Espanha e, por parte de Portugal, o
Júlio Cesar Augusto Chermont deu ordens de embaixador Francisco Inocêncio de Souza
rendição. Sobrinho em 1ª de outubro de 1777.
A solução para o episódio da ilha de Santa Como se poderia prever ainda não foi neste
Catarina caminha rápido através do Tratado acordo que a paz imperou entre os ibéricos e
de Santo Ildefonso. suas frágeis fronteiras. Em 1801 o conflito
volta a atingir a península, é a vez de
O Tratado Preliminar de Paz e Limites,
Olivença ser amputada à Portugal. Ao sul do
assinado em Santo Ildefonso, se propunha a
Brasil os luso-brasileiros avançam sobre as
retomar a discussão de limites e fronteiras
missões jesuíticas espanholas. O tratado de
entre as coroas ibéricas. Porem, numa visão
paz que se segue o “Tratado de Paz de
mais ampliada se propunha a finalizar
Badajoz” (1801) não ratifica os limites
definitivamente os conflitos que já duravam
anteriores ou seja o “status quo ante bellum”
três séculos, seja na América na Ásia ou na
e por isto até os dias de hoje o território dos
própria Europa. Uma meta tão ambiciosa
“sete povos das missões” é brasileiro
claramente não foi atingida.
(sucedâneo do Império Colonial Português) e
O princípio demarcatório deveria ter como Olivença tornou-se definitivamente
referência os acidentes geográficos. No caso espanhola.
específico da América Meridional foi
Assim Olivença que foi reconhecida
formada uma comissão composta de dois
oficialmente portuguesa em 1297 através do
comissários, dois geógrafos e dois ajudantes
Tratado de Alcanizes, troca muitas vezes de
de cada parte. O território a ser discutido foi
mãos até ser incorporada definitivamente a
dividido em quatro parcelas a cada lado,
Espanha através do Tratado de Badajoz de
sendo, portanto, oito comissões.
1801. Os portugueses vão denunciar este
Em suas conclusões o Tratado de Santo tratado em 1808 e em 1815. Espanha
Ildelfonso demarca novos limites ao sul da subscreve o Congresso de Viena que entre
América, mas mantem basicamente as setembro de 1814 e junho de 1815 redesenha
fronteiras estabelecidas no Tratado de Madri. o mapa político europeu após a derrota da
Porém, o que mais interessa a este artigo é a França Napoleônica. Nesta assinatura
devolução à Portugal da Ilha de Santa Espanha reconhece a soberania portuguesa
Catarina. sobre Olivença e se compromete com sua
Não agradando principalmente aos devolução o que não ocorreu até os dias
espanhóis, a manifestação do conde de atuais.
Floridablanda em carta ao rei Carlos III de
Conclusões
Espanha já tem um tom de justificativa:
Finalmente, mesmo diante da dificuldade de
[...] nos han vituperado de haber explicitar em um artigo a abrangência de uma
abandonado la ciudad de Rio Grande investigação em curso, apresentamos a ideia

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de se buscar sobre o território da cidade de As relações entre Olivença e Brasil são muito
Florianópolis, Ilha de Santa Catarina, bem fortes. Além desta cidade ibérica guardar os
como em Olivença região do rio Guadiana restos mortais do oliventino frei Henrique de
em Espanha , marcas da disputa entre lusos e Coimbra, celebrante da primeira missa no
castelhanos para estabelecer fronteiras Brasil, daí também provêm algumas famílias
ibéricas e pelo controle da costa sul atlântica tradicionais da cidade de Florianópolis, os
meridional da América. Gama por exemplo.
Acreditando que as presenças formais sobre o O processo de urbanização demonstra que os
território complementam com propriedade o dois territórios apesar de seguirem destinos
material encontrado em fontes primarias e diversos no curso da história refletidos em
bibliografias, mergulhamos num estudo novas morfologias que foram se
profundo para compreender através destes acrescentando, por um momento em sua
vestígios os territórios estudados. trajetória estiveram intrinsicamente
conectados através das posturas defensivas
A rica bibliografia existente sobre estes
contra um inimigo comum.
conflitos vai aos poucos descortinando o
significado das presenças formais e Os laços afetivos que unem a ilha de Santa
colocando as questões fronteiriças como um Catarina ao mundo luso ratificam o
divisor de águas na evolução urbana de sentimento que cresce na medida que se
ambos territórios. aprofunda esta investigação, Olivença é
portuguesa com certeza.

Notas
1
Aparentemente as tropas reais de Afonso IX, de podía garantizar a España la integridad de su
Castela, associados a Ordem dos Templários aí se imperio. La disyuntiva para Portugal y España era
assentaram em meados do século XIII em função la misma “escoger entre dos azotes”. América,
dos avanços e retrocessos da fronteira hispano- por lo tanto, explica Europa. De la misma manera
muçulmana. A documentação histórica presente que Europa explica América. (Ruiz 2007).
3
no arquivo da Catedral de Badajoz não deixa É importante lembrar que até o século XVIII o
dúvidas quanto a origem Templário da aldeia de nome Espanha (derivativo do Império Romano
Olivenza. Hispania) era designativo de toda a península
2
La historia de España, desde luego, no se puede Ibérica que se compunha de uma série de reinos, a
escribir sin la de América. Como no se puede Espanha como pais só será unificada durante o
escribir la historia de Portugal sin la de Brasil. período iluminista, sendo que em 1812 se adota o
Especialmente durante la tormenta napoleónica, nome As Espanhas, e em 1876 pela primeira vez
las claves de la política exterior, tanto de España o nome Espanha. Até então os reinos que
como de Portugal, están en América. Ora eso tan compunham a península ibérica eram jurídica e
absurdo es que le reprochemos a Godoy su servil politicamente independentes sob uma mesma
alianza con Francia, como reprocharle a Portugal monarquia, a associação entre os mesmos se dava
su servilismo ante Inglaterra. Inglaterra era la por herança, união dinástica ou por conquista,
única potencia que podía garantizar a Portugal el forma de governo conhecida como aeque
eje vital de sus comunicaciones atlánticas. Y principaliter.
Francia, por su parte, era la única potencia que

Referências
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comércio de escravos e soberania dos e sua época. Porto, Renascença Portuguesa.
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em: 26 junho 2019].

Tradução do título, resumo e palavras-chave


Border issues: Florianópolis and Olivença, two sides of the same coin
Abstract. To identify in the cities of Olivenza (Spain) and in the city of Florianópolis (Brazil), marks of
the dispute between Portuguese and Castilians to mark Iberian borders or for the control of America's
southern Atlantic south coast is the first objective of this article. These cities will be bargaining chips in
Treaties in one of the many attempts to resolve these conflicts. The urban defense structures built in both
spaces in the middle of the XVIII century marked the territory. The intended reconstruction seeks in the
current urban space of Florianópolis and Olivença the signs that denounce the struggle between Iberians
in the urge to satisfy their needs and desires. The Portuguese borders most threatened by invasions, in
this period, are the southern border of the colony Brazil and the southeastern Iberian border on the bank
of the River Guadiana. The enemy was the same in both cases: the Castilians. Thus, in the first half of the
18th century, military reinforcement in these two frontiers, which were so physically distant, yet so close
in their vulnerability, was a constant. To state that Santa Catarina Island and the Iberian region where
Olivença is located have no physical, geographical or social resemblance is to state the obvious. But we
can reflect on the materiality arising from historical episodes.
Keywords. borders, defensive architecture, territory, urban evolution

Editores responsáveis pela submissão: Júlio Celso Borello Vargas.

Licenciado sob uma licença Creative Commons.

Revista de MorfologiaUrbana (2020) 8(1): e00088 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
Avaliação de vizinhança LEED e análise microclimática: um
estudo de caso da morfologia urbana do Porto Maravilha, RJ,
Brasil

Amanda Martins Marques da Silvaa , Gisele Silva Barbosab e Patricia Regina


Chaves Drachc
a
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola Politécnica, Programa de Engenharia Urbana, Rio de
Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: amanda.marques@poli.ufrj.br
b
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola Politécnica, Programa de Engenharia Urbana, Rio de
Janeiro, RJ / Campus Macaé, Engenharia Civil, Macaé, RJ, Brasil. E-mail: giselebarbosa@poli.ufrj.br
c
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-
graduação em Urbanismo / Escola Politécnica, Programa de Engenharia Urbana, Rio de Janeiro, RJ,
Brasil; Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Tecnologia e Ciências, Escola Superior de
Desenho Industrial, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Petrópolis, RJ, Brasil. E-mail:
patricia.drach@gmail.com

https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.91
Submetido em 09 de setembro de 2019. Aceito em 08 de maio de 2020.

Resumo. Nos últimos anos a região portuária do Rio de Janeiro recebeu um


grande projeto de revitalização, denominado Projeto Porto Maravilha, que
previa a alteração morfológica e o adensamento de alguns setores da região.
O presente estudo teve como objetivo analisar os possíveis impactos das
mudanças na legislação da área denominada Setor C, bem como sua
correlação com a morfologia urbana. Inicialmente foram elaborados mapas
para análise de duas situações, a primeira a partir dos parâmetros
urbanísticos vigentes até 2009 e a segunda considerando os parâmetros
descritos na nova legislação para a região, definida pela Lei Complementar
101/2009. Foram realizadas simulações computacionais utilizando as formas
urbanas resultantes das legislações avaliadas. A comparação dos resultados
obtidos permitiu a análise da forma urbana e da tipologia das edificações. A
partir desta análise foram sugeridos novos parâmetros urbanísticos
simulando uma situação hipotética tendo como base os requisitos do sistema
LEED-Neighborhood, respeitando o ideal de adensamento da região, mas
adotando uma nova morfologia urbana pautada por critérios de urbanismo
sustentável. Os mapas gerados foram simulados e comparados aos mapas
anteriores. A partir dos resultados obtidos foi possível observar que as
alterações morfológicas desenvolvidas nos projetos urbanos simulados
influenciariam o microclima da região estudada.
Palavras-chave. morfologia urbana, certificações ambientais, planejamento
urbano, microclima urbano, Porto Maravilha.

Introdução estratégico de cidades, que visa dar novos


usos às áreas degradadas das zonas
A globalização, a evolução tecnológica e a
portuárias, através de projetos de parcerias
necessidade recorrente das cidades globais de
público-privadas, que pretendem inserir as
expandirem seus portos, provocaram uma
cidades na competição global por atração de
fuga dos mesmos dos centros urbanos, e
investimentos do capital externo mundial, a
consequentemente, um esvaziamento das
exemplo dos Docklands em Londres, de
zonas portuárias centrais gerando ociosidade
Baltimore, nos EUA e de Barcelona, na
em sua região de implantação. Seguiu-se
Espanha (Ferreira, 2013).
então, uma tendência do planejamento
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Avaliação de vizinhança LEED e análise microclimática 2 / 31

A cidade do Rio de Janeiro passou por 101/2009. Por fim, foi proposto um terceiro
diversas alterações urbanas impulsionadas cenário no intuito de verificar uma nova
por eventos como a Copa do Mundo (2014) e possibilidade para a ocupação do solo
principalmente as Olimpíadas de 2016 daquela região, pautado por critérios de
realizada na cidade. sustentabilidade do Leadership in Energy and
Environmental Design for Neighborhood
Nesse contexto, foi apresentado pela
Development (LEED-ND), o LEED para
Prefeitura do Rio de Janeiro o projeto Porto
Desenvolvimento de Bairros. Este último
Maravilha, uma proposta de revitalização da
cenário foi denominado como Sistema para
zona portuária da cidade, promovendo novos
Adensamento Sustentável - SAS e simula
usos, especialmente os usos residenciais,
uma proposta de alteração na legislação
comerciais e de serviços (Sinergia, 2013).
vigente a fim de verificar os benefícios de
Grande parte das alterações foram possíveis uma forma urbana que visa a melhoria da
devido alterações em parte da legislação qualidade de vida.
urbana da região implementada através da
Tal cenário recebeu destaque neste artigo,
Lei Complementar nº. 101, de 23 de
pois foi proposto a partir de um estudo
novembro de 2009 (LC 101/2009),
detalhado das proposições do LEED-ND para
permitindo gabaritos maiores e possibilitando
a elaboração de um projeto (Marques da
o aumento do potencial construtivo
Silva, 2018)1 que teve como intuito
(Prefeitura do Rio de Janeiro, 2009).
apresentar parâmetros para alterações na
A alteração da morfologia urbana da área legislação visando o urbano sustentável e
pode ser apontada como ponto marcante, bioclimático. Essa proposição buscou manter
com a criação de novas vias e alteração do a densidade populacional esperada com a LC
zoneamento e dos parâmetros urbanísticos. 101/2009, porém com alterações urbanísticas
Apesar de ter sido realizado um Estudo de voltadas para princípios de sustentabilidade
Impacto de Vizinhança (CDURP, 2010), que urbana.
contemplava análises sobre uso e ocupação Para o estudo, foram consideradas diversas
do solo, não foi contemplado a análise acerca variáveis morfológicas, como a dimensão das
dos impactos da densificação desta região. quadras, a abertura das vias, o
Durante as últimas décadas, o conceito de posicionamento e gabarito das edificações, as
compactação urbana vem sendo difundido taxas de ocupação, a vegetação, entre outros.
como uma boa prática para projetos urbanos Levanta-se a questão de que as alterações na
sustentáveis (Rogers e Gumuchdjian, 2001; morfologia urbana assim como na tipologia
Ascher, 2010; Newman e Jennings, 2008). podem influenciar o microclima através de
No entanto, observa-se que o padrão de mudanças na dinâmica dos ventos,
compacidade nos países tropicais deve ser bloqueando ou criando novos caminhos e na
diferenciado, pois este pode influenciar na penetração da radiação solar; através das
formação de ilhas de calor e na alteração do alterações dos materiais aumentando ou
microclima, além de interferir diretamente na diminuindo a reflexão da radiação; através
utilização dos espaços urbanos (Barbosa et das intervenções das diferentes sombras tanto
al., 2019). das edificações quanto das vegetações; além
de muitas outras interferências que podem
Assim, o objetivo desta pesquisa foi alterar o conforto ambiental.
comparar as possíveis alterações
microclimáticas em distintos cenários São muitos os estudos que apontam que o
morfológicos (hipotéticos) resultantes de conforto ambiental influencia diretamente na
diferentes legislações para a região. qualidade de vida (Corbella e Yannas, 2011;
Knez e Thorsson, 2006; Lamberts et al.,
Desta forma, foram considerados três 2014). Emmanuel et al. (2015), por exemplo,
cenários para a realização de simulações em seus estudos para a cidade de Glasgow,
computacionais. O primeiro cenário apontaram que a introdução de áreas verdes
corresponde à legislação anterior ao projeto podem desempenhar um papel fundamental
Porto Maravilha definido pelos parâmetros para lidar com o aquecimento urbano
urbanísticos dos Decretos 322/1976 e presente nas regiões mais urbanizadas.
7351/1988. O segundo cenário (hipotético)
foi proposto a partir dos parâmetros da Para o desenvolvimento da comparação entre
legislação urbana alterada através da LC os três cenários, foi utilizada a ferramenta

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Avaliação de vizinhança LEED e análise microclimática 3 / 31

computacional ENVI-met 3.1 (Bruse, 2009). Além das alterações climáticas também
Esta ferramenta trabalha com modelos podem ser destacadas nos resultados as
tridimensionais que simulam o microclima possíveis melhorias urbanas com a
urbano, por meio das interações entre proposição de um cenário baseado no LEED-
superfície-vegetação-atmosfera. Efetua o ND.
cálculo do balanço de energia envolvendo as
variáveis: temperatura, umidade, fluxo do ar, Área de estudo: o projeto Porto Maravilha
radiação solar, reflexão e sombreamento de A Zona Portuária, localizada na área Central
edifícios e vegetação, turbulência local e sua da Cidade do Rio de Janeiro, Brasil,
taxa de dissipação e as trocas de água e calor conforme Figura 1. Foi criada a partir de um
dentro do solo. aterro que modificou a linha da costa com o
intuito de viabilizar a construção do Porto.

Figura 1. Localização do Porto Maravilha (fonte: adaptado de CDURP, 2017).

Com a evolução das técnicas das operações sustentabilidade ambiental e socioeconômica


portuárias, o trecho do porto entre a Praça da área (Prefeitura do Rio de Janeiro, 2009).
Mauá e a Avenida Francisco Bicalho foi se
Para este plano foi considerada uma área de
tornando obsoleto. Assim, uma grande área
intervenção de aproximadamente 5 milhões
que outrora servia como área de apoio às
de metros quadrados, próxima a grandes
operações portuárias, de caráter
eixos de circulação e à área central da cidade.
essencialmente industrial, tornou-se ociosa,
formando vazios urbanos e deixando As obras foram divididas em duas fases. E
edificações subutilizadas ou abandonadas. contemplavam tanto ações de melhoria de
Para recuperá-las para a cidade, foi serviços, como coleta de lixo e construção de
concebido um plano de revitalização para novas redes de água e esgoto, como obras de
área, de forma a transformá-la num novo mobilidade e urbanização. Foram construídos
vetor de crescimento da cidade. Assim foi túneis, abertas avenidas, reurbanizadas áreas
criada a Operação Urbana Consorciada - de favela (em parte), entre outras obras.
OUC da Área de Especial Interesse A LC 101/2009 institui também os
Urbanístico - AEIU da Região Portuária do certificados de potencial adicional de
Rio de Janeiro através da LC 101/2009. Sua construção (CEPAC), que se revelam como
finalidade era promover a reestruturação meios de pagamento de outorga onerosa do
local, por meio da ampliação, articulação e direito adicional de construção2 para os
requalificação dos espaços públicos da imóveis contidos no perímetro da OUC.
região, visando à melhoria da qualidade de
vida de seus atuais e futuros moradores e à A Figura 2 representa as áreas que poderão
receber os potenciais adicionais de

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construção que podem aumentar


significativamente a área construída e a
verticalização da região.

Figura 2. Áreas com previsão adicional de construção (fonte: Marques da Silva, 2018).

A OUC da Região do Porto do Rio de Janeiro produção do espaço urbano, pois cada região,
visava transformar a região da zona portuária bairro ou rua possui características únicas
em uma área dinâmica que fosse uma nova que requerem uma análise minuciosa a fim
referência de planejamento urbano para a de evitar a generalização dos resultados.
cidade. Através da reformulação do desenho
Porém, o modelo de desenvolvimento urbano
urbano e a implantação de novos
adotado desde a revolução industrial bem
estabelecimentos comerciais e residenciais na
como seus impactos ambientais têm causado
região portuária esperava-se o
inúmeras discussões. Quanto mais as cidades
desenvolvimento econômico e social
se desenvolvem, mais complexas se tornam
conciliado à melhoria da qualidade ambiental
as soluções para estes impactos (MMA,
do local.
2015).
Porém, o presente estudo destaca que a nova
Os processos de planejamentos das últimas
legislação privilegiou o adensamento e a
décadas se debruçam em questões de forma
verticalização da região sem considerar
urbana, principalmente em função do
questões importantes para a qualidade urbana
desenvolvimento urbano sustentável, visto
como a escala do pedestre (Gehl, 2013), as
que as cidades são as maiores consumidoras
possíveis alterações microclimáticas em um
de recursos naturais e também as maiores
país tropical (Barbosa et al., 2019), a possível
produtoras de poluição e resíduos.
gentrificação (Souza, 2015), entre outras.
A partir desta discussão surgem diversas
Morfologia urbana e projetos urbanos correntes de planejamento, como os modelos
sustentáveis e bioclimáticos de cidade compacta, concentração
descentralizada, regiões de crescimento,
De acordo com Lamas (2016), a morfologia
subúrbios dispersos, entre outros. Neste
urbana é o estudo da forma do meio urbano
contexto, uma nova corrente de planejamento
nas suas partes físicas exteriores, ou
se destacou: o New Urbanism, criado na
elementos morfológicos, e na sua produção e
segunda metade da década de 80, nos EUA
transformação no tempo. Ou seja, é através
(Oliveira, 2011). Esse grupo apontava a
dela que pode ser compreendido como a
importância do bairro compacto e misto,
forma urbana pode afetar a sustentabilidade
além do uso compartilhado de espaços
das cidades e a qualidade de vida dos
públicos dinâmicos e projetos arquitetônicos
indivíduos.
que preservassem a história da região e
Ao estudar a morfologia urbana, pode-se fossem integrados ao seu entorno.
considerar os níveis ou momentos de
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Nas últimas décadas, o conceito de calor baseados em fisiologia. Os


sustentabilidade urbana trouxe novas experimentos de Vigier et al. (2015) apontam
discussões acerca da ocupação do solo e suas para o fato de que visualizar céu, sol,
interligações com o meio ambiente e a sombras e efeitos de luz desempenha um
sociedade. O conceito é bastante amplo e sua papel importante na percepção térmica do
definição é embasada pela busca do usuário dos espaços.
equilíbrio econômico, social e ambiental. A
Krüger et al. (2017) a partir de estudos com
percepção da escassez de recursos torna
coleta de dados em campo e aplicação de
possível promover a consciência da
questionários em áreas tropicais quentes e
necessidade de alteração de modo de vida
úmidas similares observaram que os usuários
para garantir a existência humana e a
de áreas de pedestres urbanas sem sombra e
diminuição do impacto ambiental.
mais abertas (altos valores de SVF), sob
Nesse contexto, surgem inúmeros projetos e condições extremas de estresse térmico, terão
planejamentos com princípios sustentáveis na que lidar com respostas fisiológicas. O
tentativa de resolver ou ao menos neutralizar segundo fato observado é que a tolerância
os diversos problemas que podem surgir no nestes indivíduos apresenta uma relação com
meio urbano. os aspectos relacionados ao contexto físico
destas áreas, podendo exacerbar ou reduzir
Desta forma, destaca-se neste artigo a
desconforto térmico.
importância do enfoque em projetos
bioclimáticos que visam a redução do Assim, quando se discute conforto ambiental
consumo energético e o uso consciente dos e qualidade de vida relacionados a um
recursos disponíveis (Higueras, 2006). É determinado bairro, deve-se pensar na
possível, por exemplo, encontrar nos espaços proposição de áreas de lazer, espaços
urbanos ruas com temperaturas mais altas ou arborizados, acessibilidade, segurança, oferta
mais baixas em relação a outras, com pouco de comércio e tudo o que possa atender a
nível de iluminação ou elevadas correntes de comunidade local, de modo a evitar
ar proporcionadas pela sua localização em deslocamentos desnecessários e contribuir
relação à construção do seu entorno. para a redução do consumo energético3.
Segundo Lamberts et al. (2014), o estudo do
Certificação ambiental – LEED
clima e do local pode fornecer informações
importantes ao programa de necessidades de No âmbito mercadológico, para atestar que
um projeto. Um bom projeto de arquitetura determinado empreendimento ou projeto foi
ou urbanismo deve atender às necessidades elaborado, projetado, construído e operado de
do usuário bem como responder aos níveis de acordo com determinados princípios de
conforto ambiental e eficiência energética. sustentabilidade, surgiram diversos tipos de
Desta forma, é necessário o estudo do clima certificações ambientais. Entre as
do local, uma vez que as variações climáticas certificações mais importantes e utilizadas no
terão influência na qualidade de vida dos Brasil, pode-se citar a certificação Leadership
usuários (Kruger et al., 2017). in Energy and Environmental Design
(LEED).
Uma morfologia urbana adequada às
características locais contribui para o menor Estas certificações são fornecidas por
gasto energético e a melhoria do conforto empresas privadas e consistem na declaração
ambiental. Desta forma, a busca por projetos efetuada, de que um produto, processo ou
urbanos sustentáveis deve considerar o sistema está em conformidade com requisitos
microclima e suas variáveis, como: especificados (Zangalli Jr., 2013).
proximidade de água, altitude, topografia, O LEED é um sistema de classificação que
correntes oceânicas, etc (Lamberts et al., avalia a sustentabilidade de um
2014). empreendimento. Através do seu processo é
Nos resultados das pesquisas de Knez e possível classificar o quanto um
Thorsson (2006) foi demonstrado que empreendimento é sustentável. Além do bom
aspectos socioculturais são capazes de retorno financeiro que um empreendimento
impactar a avaliação perceptiva de um certificado pode ter, também há ganhos
mesmo espaço ao ar livre, não sendo, sociais e ecológicos (GBC Brasil, 2018).
portanto, esta percepção determinada
exclusivamente por modelos de balanço de
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Os projetos são analisados por sete industriais antigas em bairros revitalizados,


dimensões e todas possuem pré-requisitos de forma a promover a integração de
(práticas obrigatórias) e créditos pequenas vias tranquilas de interior de bairro
(recomendações) que à medida que são à conexões para outros locais e a manutenção
atendidos garantem pontos à edificação de construções e estruturas históricas que
(GBC Brasil, 2018). fornecerão um senso único de lugar
(USGBC, CNU e NRDC, 2011).
A Figura 3 apresenta algumas das tipologias
de certificação LEED sendo cada uma delas O sistema LEED-ND foi projetado a partir de
específica para determinada finalidade. pesquisas sobre as origens do desenho dos
bairros e o estudo de práticas atuais. O US
Green Building Council (USGBC), o
Congresso para o Novo Urbanismo (CNU) e
o Natural Resources Defense Council
(NRDC) se uniram para desenvolver um
Figura 3. Tipologia das Certificações (fonte:
sistema de classificação para o planejamento
GBC Brasil, 2018).
e desenvolvimento da vizinhança com base
nos princípios combinados de Smart Grouth
O nível de certificação é definido conforme a (crescimento inteligente), New Urbanism
quantidade de pontos adquiridos, podendo (Novo Urbanismo) e infraestrutura e
variar de 40 pontos a 110 pontos. construção verdes. O trabalho do comitê
Dentre as certificações LEED, destaca-se central do LEED-ND, foi orientado por
para este trabalho a certificação Leadership fontes como os dez princípios de crescimento
in Energy and Environmental Design, na inteligente da Smart Growth Network, a carta
tipologia Neighborhood (LEED-ND) — do Congresso para o New Urbanism e outros
traduzido para o português, sistemas de classificação LEED (USGBC,
"Desenvolvimento de Bairros", por ser CNU e NRDC, 2011).
considerado um dos mais utilizados no Os pré-requisitos e créditos do sistema de
Brasil. Ela serviu como parâmetro para a classificação foram escritos para incentivar
comparação dos resultados e para a um desenvolvimento baseado nos bairros
proposição de uma nova legislação para a tradicionais que promovam as melhores
área do Porto neste artigo. Optou-se por práticas no desenvolvimento urbano
utilizar a certificação LEED-ND, pois é uma (USGBC, CNU e NRDC, 2011).
das mais completas e utilizadas
internacionalmente, além de permitir As métricas de um bairro variam em
replicação em outros projetos. Sabe-se que densidade, população, usos, tipologia das
não contempla todos os critérios urbanísticos habitações, costumes, crenças, economias,
sustentáveis e falha, principalmente, em microclimas, etc (USGBC, CNU e NRDC,
questões referentes à equidade social (Ameen 2011).
et al., 2015), tão importante para um projeto O LEED-ND é dividido em cinco grandes
sustentável. Porém, a certificação parece se categorias. A primeira categoria Smart
adequar em diversos critérios, principalmente location and linkage (SSL) — Localização
referente aos parâmetros bioclimáticos. inteligente e conexões – diz respeito à
O sistema LEED para desenvolvimento de localização do projeto e suas conexões.
bairros é projetado para certificar projetos A segunda categoria Neighborhood Pattern
que tenham bom desempenho em termos de & Design (NPD) — Padrão e Desenho de
crescimento inteligente, urbanismo e Bairro – é referente ao projeto de
construção verde. Podem ser aplicados em implantação do bairro e sua forma de
bairros inteiros, partes de bairros ou vários desenvolvimento.
bairros. No entanto, sugere-se que o tamanho
A terceira categoria Green Infrastructure &
mínimo seja de pelo menos dois edifícios
Buildings (GIB) — Infraestrutura Verde e
habitáveis e o máximo um total de
Edificações – está relacionada aos requisitos
aproximadamente 1,30 km2 (USGBC, CNU e
de sustentabilidade das edificações que irão
NRDC, 2011).
compor o bairro e como tais edificações
Este sistema também tem o objetivo de deverão ser projetadas, construídas e
promover o redesenvolvimento de áreas operadas.

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A quarta categoria Innovation & Design Materiais e Métodos


Process (IDP) — Inovação e Processo de
Projeto – visa incentivar o processo de Procedimentos metodológicos das
inovação durante o projeto e construção do simulações
empreendimento e o alcance de performance A pesquisa se concentra na simulação do
exemplar em algum dos requisitos ambiente denominado como Setor C. A
disponíveis nas categorias já mencionadas. escolha desta área foi definida em função das
Incentiva também a participação de um características da região e dos parâmetros
profissional acreditado pelo USGBC de adotados pela LC 101/2009. O Setor C se
forma a melhorar o processo de certificação encontra entre a Baía da Guanabara, que
do empreendimento. pode propiciar uma boa ventilação para o
E finalmente a quinta e última categoria interior da área, e o Morro da Providência,
Regional Priority Credits (RPC) — Créditos que pode funcionar como uma barreira
de Prioridade Regionais – intenciona natural a essa ventilação, fazendo com que o
fomentar a realização de atividades que calor se acumule no interior deste setor.
tenham importância no contexto do Além disso, este é um dos setores que mais
empreendimento de acordo com as admitem o uso dos CEPAC’s, conforme
especificidades ambientais, sociais e demonstrado na Figura 4.
econômicas existentes em cada local.

Figura 4. Potencial construtivo adicional a ser convertido em CEPAC’s (fonte: adaptado de CDURP,
2017).

Foi realizada uma análise comparativa entre sustentável. Tal proposta foi denominada
três cenários, sendo o primeiro simulado a SAS (Sistema de Adensamento Sustentável).
partir dos parâmetros urbanísticos vigentes
Foram gerados mapas com as formas urbanas
até 2009 (Decretos 322/1976 e 7351/1988), o
resultantes das legislações avaliadas que
segundo cenário considerando os parâmetros
serviram de base para a realização das
descritos na nova legislação urbanística para
simulações computacionais, com o uso do
a região definida pela LC 101/2009 e o
software ENVI-met e análises gráficas,
terceiro cenário corresponde a proposição de
qualitativas e quantitativas no intuito de
Marques da Silva (2018) baseada nos
verificar possíveis alterações microclimáticas
critérios do LEED-ND. Esse último cenário
a partir das modificações morfológicas.
respeitou o ideal de adensamento da região e
Através dos resultados obtidos, comparados
propôs uma nova morfologia urbana com
entre si, foi possível analisar as alterações
tipologias mais baixas e alterações na
microclimáticas entre as diferentes formas
ocupação do solo, buscando uma melhoria
urbanas.
dos padrões de qualidade ambiental para a
área, pautada por critérios de urbanismo
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Avaliação de vizinhança LEED e análise microclimática 8 / 31

Destaca-se que os três cenários são projetos das legislações vigentes, em levantamentos
simplificados e não detalhados, e que têm fotográficos de arquivos pessoais e históricos
como intuito embasar a análise morfológica. da região, em levantamentos “in loco” da
Desta forma, o foco não foi dado ao área construída e através das plantas
detalhamento e definições projetuais, mas cadastrais do Município do Rio de Janeiro
sim às análises das alterações fornecidas pelo Instituto Pereira Passos (IPP).
microclimáticas observadas nas simulações
computacionais. O segundo mapa (Figura 6), desenvolvido
com base nos parâmetros definidos pela LC
Critérios para base de dados 101/2009, é uma morfologia hipotética
proposta pelos autores aproveitando ao
Para a definição do mapa do primeiro máximo as possibilidades da nova lei. As
cenário, de acordo com os parâmetros alterações do traçado viário seguiram as
urbanísticos definidos pelo Decreto 322/1976 alterações reais feitas no projeto do Porto
(Figura 5), os arquivos consultados foram Maravilha.
obtidos por meio de pesquisas documentais

Figura 5. Levantamento da ocupação do Setor C em 2011 - Decreto 322/1976 (fonte: Marques da Silva,
2018).

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Figura 6. Ocupação do Setor C simulada com base na LC 101/09 (fonte: Marques da Silva, 2018).

A Figura 7 ilustra as principais alterações legislação vigente à época. Foi proposta a


morfológicas na área de estudo propostas abertura de vias, divisão de quadras e a
pela LC 101/2009 em comparação à inclusão de áreas permeáveis.

Figura 7. Alterações morfológicas - Decreto 322/76 x LC 101/09 (fonte: Marques da Silva, 2018).

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mais complexo e deve considerar diversos


Metodologia da proposta de alteração da
parâmetros como a mobilidade, o uso misto,
legislação a partir dos critérios LEED-ND
a infraestrutura verde, a busca por equidade,
Para a definição da morfologia do terceiro entre outros. Desta forma, as alterações
cenário (Sistema de Adensamento morfológicas propostas consideraram
Sustentável) baseado nos parâmetros do critérios que não dizem respeito
LEED-ND, foram consideradas as cinco exclusivamente ao microclima, mas que
categorias definidas pela certificação já contribuem para a melhoria da qualidade de
apresentadas anteriormente no artigo, além vida de habitantes e usuários.
de outros critérios de urbanismo sustentável
Para a elaboração da metodologia foram
como os oito princípios do Desenvolvimento
analisados os requisitos da ferramenta
Orientado ao Transporte Sustentável – DOTS
LEED-ND em comparação aos padrões de
(WRI Brasil , 2015)4.
sustentabilidade para novas edificações
Segundo o projeto Porto Maravilha (CDURP, sugeridas pelo Projeto Porto Maravilha. Os
2017) os Padrões de Sustentabilidade para parâmetros a seguir foram considerados de
novas edificações na área do projeto devem maior relevância para utilização na
atender, dentre outros, os seguintes metodologia proposta:
requisitos:
▪ Rede e Infraestrutura cicloviária;
▪ Parâmetros específicos de afastamento e ▪ Vias para pedestre;
recuo / ventilação e iluminação natural; ▪ Desenvolvimento compacto;
▪ Economia de consumo e ▪ Diversidade de usos em centros de
reaproveitamento de água; bairros;
▪ Economia e/ou geração local de energias ▪ Ruas arborizadas;
limpas / telhados verdes; ▪ Edifícios certificados;
▪ Uso de materiais com certificação ▪ Eficiência energética mínima nas
ambiental; edificações;
▪ Facilitação de acesso e uso de bicicletas. ▪ Eficiência hídrica mínima nas
Porém, apesar do Projeto do Porto prever edificações;
benfeitorias com viés ecológico, a LC ▪ Prevenção da poluição na atividade da
101/2009 define parâmetros urbanísticos que construção;
contribuem para uma região caracterizada ▪ Gestão de águas pluviais;
por edificações com até 50 pavimentos, com ▪ Redução de ilhas de calor;
implantação espaçada e muitas áreas ociosas ▪ Gerenciamento de resíduos sólidos.
entre as mesmas. Desta forma, sugere-se que Salienta-se que o projeto resultante é uma das
esse ‘padrão ’urbano resultante da diversas possibilidades baseadas em tais
revitalização não é sustentável. Observa-se critérios da legislação proposta. A nova
que a forma urbana a ser gerada pela morfologia (SAS) será apresentada na Figura
ocupação imobiliária pautada pelos 15 nos resultados deste artigo 5.
parâmetros da LC 101/2009, possivelmente,
trará ineficiência para a região e uma baixa Metodologia para simulação do microclima
vitalidade urbana. urbano
Já o terceiro cenário (SAS) se propôs a Para a simulação do microclima da região a
verificar novos parâmetros urbanísticos partir das três formas de ocupação do solo foi
definidos a partir de critérios sugeridos pela utilizado o software ENVI-met, na versão
certificação LEED-ND visando um melhor 3.1. Este software foi desenvolvido pelo
aproveitamento da área na ótica do usuário e geógrafo Michael Bruse da Universidade de
mantendo os indicativos ecológicos já Bochum, na Alemanha e é um software livre.
estabelecidos pelo projeto do Porto O ENVI-met é um modelo tridimensional
Maravilha citados anteriormente. que simula o microclima urbano. É capaz de
Destaca-se que a proposição não se pautou simular interações entre superfície, vegetação
apenas na busca por melhorias e atmosfera, calculando o balanço de energia
microclimáticas. Apesar deste estudo se por meio de diversas variáveis. O modelo se
basear na análise prioritariamente baseia nos princípios da mecânica dos fluidos
microclimática, sugere-se que o projeto e nas leis fundamentais da termodinâmica.
urbano sustentável e bioclimático é muito Para simulação do microclima urbano, o
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programa necessita que sejam inseridos editadas (unidas) para que a área fosse
dados climatológicos, como temperatura do representada em toda a sua extensão.
ar, umidade absoluta e relativa, velocidade e
Observa-se que, apesar das limitações
direção dos ventos, além de dados referentes
computacionais da ferramenta, a simulação
às superfícies a serem simuladas, como tipo
considera o entorno como constante. Isso é,
de pavimentação e/ou revestimento e altura
onde é considerado mar, por exemplo, o
das edificações (Bruse, 2017).
programa considera que a continuidade dessa
A partir da planta cadastral da Cidade do Rio região também é mar. Se a região é simulada
de Janeiro, fornecida pelo Instituto Pereira com um determinado padrão morfológico, o
Passos (IPP), do levantamento de dados “in programa considera que o entorno possui
loco” e através dos parâmetros urbanísticos características semelhantes.
das legislações já citadas anteriormente, O ENVI-met trabalha com uma modelagem
foram elaborados desenhos no software em três dimensões onde a menor unidade é
AutoCAD (AutoDesk), onde foram um cubo, denominado grid cell; que, lado a
realizadas hachuras correspondentes às lado irão montar o volume em três dimensões
pavimentações, gabarito das edificações e da representação simplificada da região. Para
vegetações. Essas figuras geradas no começar a representar a área a ser modelada
AutoCAD foram inseridas no ENVI-met, no programa, é necessário informar o grid a
juntamente com os dados climatológicos da ser utilizado, isto é, determinar quantos
região, onde foram realizadas as simulações destes cubos tem o volume em extensão de
da temperatura, intensidade e velocidade da área (que deve ser quadrada ou retangular) e
ventilação, umidade relativa, fator de visão altura e qual o tamanho de cada um deles. O
do céu e radiação solar difusa do local. Em tamanho das células influencia na precisão do
função de restrições existentes no software, dado obtido visto que para modelar a área é
os mapas com os dados levantados do Setor necessário designar qual parte da morfologia
C necessitaram ser divididos em duas partes urbana cada grid cell pertence. O grid
para efeito de simulação. Após as imagens utilizado neste estudo de caso é de 200 x 200
geradas separadamente, as mesmas foram x 50, com dimensões dx e dy de 2,0 metros e
dz de 2,5 metros, como mostra a Figura 8 6.

Figura 8. Dados do domínio do modelo da área de interesse (fonte: elaborada pelas autoras com auxílio
de alunos bolsistas do LabUrb\POLI\UFRJ).

Em seguida, foi necessário definir os modelagem de edificações o software solicita


parâmetros das formas urbanas a serem apenas sua altura em metros e tipo de
representadas. Para a modelagem das árvores material. Para estimar as alturas foi feita uma
foi escolhido o tipo “MO” (árvore com 20m pesquisa in loco para a primeira simulação
de altura, densidade média e sem coroa (situação anterior ao Projeto Porto
definida), pois é o que mais se assemelha Maravilha), uma simulação de alturas e
com a vegetação encontrada na região. Para a afastamentos possíveis a partir dos
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parâmetros da LC 101/2009, e por fim, a Para a cobertura de solo, foram utilizados os


simulação de alturas e afastamentos baseados modelos de asfalto para os leitos de tráfego
nos parâmetros definidos para a ocupação da de automóveis e cimento ou granito para os
área com indicadores do LEED-ND passeios e demais áreas. Ainda foram
(Marques da Silva, 2018). Para a contagem utilizados modelos de grama, água e solo
de andares de cada uma das edificações, foi exposto para representar todos os materiais
contabilizado o térreo e foi assumido o pé- encontrados na região. A Figura 9 mostra a
direito de 3 metros para cada andar. imagem da modelagem simplificada de um
dos cenários simulados no ENVI-met.

Figura 9. Feição inicial do Programa com a área escolhida (fonte: elaborada pelas autoras com auxílio de
alunos bolsistas do LabUrb\POLI\UFRJ).

Para chegar a esta imagem, simplificações Elaborada a área do modelo, o programa


tiveram que ser feitas em prol não somente demanda configurar os dados de entrada para
da pixelização da área, mas das limitações do que possa fazer as modelagens (Figura 10).
programa.

Figura 10. Dados de configuração do Programa. (fonte: elaborada pelas autoras com auxílio de alunos
bolsistas do LabUrb\POLI\UFRJ).

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Para a simulação do ENVI-met, foram para analisar os resultados das simulações de


usados dados climáticos do Aeroporto Santos microclima.
Dumont. A data escolhida como referência
para a simulação foi o dia 02 de janeiro de Resultados da proposta de alteração da
2018 no horário de 12h-13h. Apesar do dia legislação urbana 8
definido para as simulações, para a inserção Como já foi apresentado, ao analisar e
dos dados climatológicos foi realizada uma entender as conformações morfológicas
média das temperaturas, umidade, direção e resultantes dos parâmetros urbanísticos da
velocidade dos ventos do verão de 2018 LC 101/2009, foi possível desenvolver uma
(dez/2017 a fev/2018). A hora inicial da proposta metodológica (SAS) para alteração
simulação foi às 13h do dia 01 de janeiro de destes parâmetros.
2018, pois o programa necessita das
primeiras horas de simulação para Para criar critérios para a obtenção das
equalização dos dados7. Os resultados CEPAC’s máximas, foi estabelecida uma
obtidos foram os referentes às 12h do dia 02 pontuação, que foi dividida em 4 grupos. São
de janeiro de 2018 para os três cenários. eles: Pedestres (Figura 11), Lote (Figura 12),
Edificação (Figura 13) e Construção (Figura
Resultados 14). Cada grupo possui a possibilidade de
acúmulo de 1,2 pontos, no entanto, é
Assim como os procedimentos
contabilizado no máximo 1 ponto. Os
metodológicos, os resultados também foram
critérios e os valores para a pontuação podem
subdivididos em dois tópicos, um para expor
ser observados em detalhe, nas Figuras 11,
e analisar os resultados da proposta de
12, 13 e 14 (Marques da Silva, 2018).
alteração da legislação urbana local e outro

Figura 11. Proposta Metodológica SAS – Grupo 1: Pedestres (fonte: Marques da Silva, 2018).

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Figura 12. Proposta Metodológica SAS – Grupo 2: Lote (fonte: Marques da Silva, 2018).

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Figura 13. Proposta Metodológica SAS – Grupo 3: Edificação (fonte: Marques da Silva, 2018).

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Figura 14. Proposta Metodológica SAS – Grupo 4: Construção (fonte: Marques da Silva, 2018).

Observando a Figura 13, é possível perceber, novo Coeficiente de Aproveitamento


por exemplo, que no Grupo Edificação, há a Máximo (CAM) foi instituído, que pode ser
possibilidade de adquirir a pontuação alcançado a partir do acúmulo dos pontos
completa através da certificação da previstos na metodologia proposta.
construção.
A partir da avaliação dos parâmetros
Para a aplicação do SAS, foram alterados os urbanísticos das legislações de 1976 e 2009,
parâmetros dispostos na LC 101/2009 com o bem como da avaliação dos mapas com as
intuito de adensar mais a área e verticalizar simulações comparativas, foi proposta uma
menos, tornando o espaço mais agradável ao nova regra. As Figuras 15 e 16 reproduzem
uso do pedestre (Gehl, 2013). os parâmetros urbanísticos anteriores, tanto
do Decreto 322/1976 e Decreto 7351/1988,
Todos os parâmetros da LC 101/2009 foram
quanto os parâmetros da LC 101/2009. A
alterados, sendo que o Coeficiente de
Figura 17 apresenta os parâmetros
Aproveitamento Máximo da LC 101/2009
urbanísticos propostos para a área
passou a chamar-se de Coeficiente de
(Metodologia SAS).
Aproveitamento de CEPAC (CAC) e um

Figura 15. Parâmetros urbanísticos Decreto 322/1976 e Decreto 7351/1988 (fonte: Marques da Silva,
2018).

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Figura 16. Parâmetros urbanísticos Lei Complementar 101/2009 (fonte: Marques da Silva, 2018).

Figura 17. Parâmetros urbanísticos Metodologia SAS (fonte: Marques da Silva, 2018).

A partir dos parâmetros urbanísticos intenção possibilitar a variabilidade de


propostos na Figura 17 foi desenvolvido no dimensões de imóveis, permitindo tanto a
AutoCAD o modelo com a conformação compra por grandes empresas quanto por
urbana definida pela nova proposta empreendedores com menor poder aquisitivo.
morfológica para a região - Sistema para Essa nova proposta de parcelamento do solo,
Adensamento Sustentável - SAS, conforme permitiu que cada quarteirão em média, fosse
Figura 18. parcelado em cerca de oito terrenos
vendáveis, enquanto na proposta anterior essa
Destaca-se que as escolhas projetuais feitas
subdivisão era de apenas três terrenos em
nessa proposta são somente uma das
média.
inúmeras possibilidades de projeto. Este
projeto não se debruça sobre a discussão e Também foi proposta a ampliação da quadra
possibilidades projetuais. Dessa forma, se onde se encontra o Hospital do Instituto
ateve a supor uma ocupação regida pela Nacional de Câncer - INCA e a alteração de
legislação proposta e observar as possíveis seu subsetor de C2 para C3, permitindo assim
alterações microclimáticas em diferentes o alcance de um coeficiente máximo de
morfologias. Observa-se que as escolhas aproveitamento (CAM) maior, uma vez que
projetuais poderiam alterar os resultados. estes lotes se encontram entre a Rodoviária
Novo Rio e a descida do viaduto da Via
A proposta apresentada na Figura 19 destaca
Binário do Porto, como visto na Figura 20.
a abertura de uma via de automóveis e uma
via exclusiva a pedestres, de forma a É importante salientar ainda que, na
diminuir o tamanho da quadra e melhorar a metodologia proposta foram mantidos os
caminhabilidade. imóveis tombados presentes na área e um
hotel, já construído de acordo com os
Nota-se a partir do mapa (Figura 18) que uma
parâmetros definidos pela LC 101/2009.
das principais alterações morfológicas foi a
possibilidade de redução do terreno. Pela LC Após a definição dessa nova forma urbana
101/2009, os terrenos deveriam possuir um proposta para a área, os três cenários foram
mínimo de 2.000 mil metros quadrados na simulados no software ENVI-met para
Zona do Setor C. No SAS esse mínimo foi análise comparativa dos dados em relação ao
reduzido para até 850 metros quadrados, no microclima local.
mesmo zoneamento. Essa redução tem como

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Figura 18. Nova proposta morfológica - SAS (fonte: Marques da Silva, 2018).

Simulação computacional Envi-Met


A partir da inserção dos três cenários no
ENVI-met foram obtidos resultados das
simulações para uma série de parâmetros,
que são apresentados e discutidos a seguir.
Através de análise comparativa dos dados,
observa-se que houve alterações no
microclima local simulado no programa
Figura 19. Detalhe das novas vias projetadas
Envi-met em função da alteração
(fonte: Marques da Silva, 2018).
morfológica. Observa-se ainda que alguns
parâmetros foram mais afetados como a
ventilação, por exemplo. As diferenças de
gabaritos, de afastamentos e de abertura das
vias podem ter contribuído para tais
resultados.
As análises podem ser observadas
comparativamente nas figuras a seguir, onde
serão apresentados os seguintes parâmetros:
Temperatura do ar (Figura 21); Velocidade
dos ventos (Figura 22); Umidade Relativa
(Figura 23); Radiação difusa (Figura 24);
Fator de visão do céu (Figura 25).
Figura 20. Detalhe da ampliação da quadra do
INCA. (fonte: Marques da Silva, 2018).

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Figura 21. Temperatura do ar - Kelvin (fonte: elaborada pelas autoras).

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A partir das imagens da Figura 21 é possível A Figura 22 apresenta a simulação da


constatar que as temperaturas mais amenas velocidade dos ventos.
foram observadas na proposta morfológica
No caso do segundo cenário (LC 101/2009)
SAS. Observando os valores quantitativos,
em função dos grandes lotes, da
apenas uma área muito restrita desse terceiro
verticalização imposta e do consequente
cenário chegou a marcar mais do que 30,8ºC,
afastamento entre as edificações, a ventilação
enquanto nos demais cenários é possível
obteve níveis maiores, o que pode ter
observar temperaturas mais elevadas.
contribuído para a redução da temperatura.
Observa-se também que o primeiro cenário
Porém, essa configuração urbana pode gerar
apresenta muitas áreas com temperaturas
acima de 31,8ºC mesmo tendo uma
“vazios” ao nível da rua, que pode causar
volumetria baixa. Porém, possui uma taxa de uma sensação de insegurança aos pedestres e
ocupação elevada com poucos afastamentos e um uso maior de automóveis. Tal modelo
urbanístico pode ser observado nos grandes
uma volumetria ‘monótona’. Observa-se que
condomínios da Barra da Tijuca ou nas
a variabilidade volumétrica e a manutenção
superquadras de Brasília.
de alguns afastamentos laterais e abertura de
vias podem ter contribuído para maior Os três cenários apresentam áreas com
permeabilidade dos ventos, o que também velocidades do vento acima de 3,39m/s,
pode ser visto na Figura 18. A menor área de porém no primeiro cenário a ventilação
asfalto e a implantação de terraços jardim em possui menor penetração. Isso é observado
uma área maior também podem ter por outros autores em regiões de morfologia
contribuído para a amenização da semelhante com poucas áreas de afastamento
temperatura do ar. e edificações com gabaritos semelhantes
(Corbella e Corner, 2011). No entanto, a
A variação da temperatura do ar pode ser
melhor permeabilidade da ventilação foi
influenciada pelos fluxos das grandes massas
observada na proposta com os parâmetros do
de ar e da diferente recepção da radiação
SAS, principalmente a homogeneidade da
solar. Quando a velocidade do fluxo de ar é
permeabilidade dos ventos.
pequena, a temperatura é a consequência dos
ganhos térmicos solares do local e pode ser As condições do vento podem ser alteradas
influenciada pelo tipo de solo, vegetação, com a presença de vegetação, edificações, e
topografia, altitude, etc (Lamberts et al., outros anteparos naturais ou artificiais. É
2014). Quando o fluxo de ar é grande estes importante lembrar que o desenho urbano
fatores exercem menor influência sobre a pode canalizar o fluxo de ar de maneira a
temperatura. O comportamento da evitar o fluxo indesejado e aproveitar o
temperatura pode ser obtido através das desejado (Romero, 2013). Na escala
normais climatológicas, que fornecem os microclimática, alguns obstáculos podem ser
valores máximos, mínimos e médios para implantados para obstruir a passagem do
cada período do ano em determinado local. vento. No desenho paisagístico, pode-se
Para uma mesma temperatura a sensação de pensar na vegetação como proteção dos
conforto pode ser diferente em função de ventos mais fortes ou condutores de brisas de
variáveis como vento e umidade do local verão (Lamberts et al., 2014).
(Lamberts et al., 2014).

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Figura 22. Velocidade dos Ventos – m/s (fonte: elaborada pelas autoras).

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Figura 23. Umidade Relativa - % (fonte: elaborada pelas autoras).

A melhor permeabilidade dos ventos e a umidade relativa do ar na situação simulada


maior área de solo asfaltado e concretado para a LC 101/09, como observado na Figura
podem ter influenciado na redução da 23.

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De acordo com Lamberts et al. (2014), a solo como em terraços jardins pode ter
umidade do ar resulta da evaporação da água corroborado para um índice maior e mais
dos mares, rios, lagos e da terra bem como na constante de umidade no terceiro cenário
evapotranspiração dos vegetais e é a variável (SAS), mantendo-se próximo de 62% a 67%
climática mais estável ao longo do dia. Pode de umidade em praticante toda a área.
ser alterada pela presença de água ou
Já a radiação solar pode ser dividida em
vegetação, em locais próximos a lagos, fontes
direta 9 e difusa 10. Isto ocorre porque, ao
ou espelhos d’água. O ar se umidifica,
penetrar a atmosfera, a radiação sofre
refrescando as edificações, enquanto que o
interferências em seu trajeto em direção a
vegetal umedece o ar de seu entorno através
superfície terrestre.
da evapotranspiração, o que pode ser útil em
locais de clima muito seco. Esse fenômeno Nas simulações realizadas para a radiação
pode explicar o fato da umidade relativa na difusa (Figura 24), o sombreamento das
região ser relativamente alta nos três cenários edificações teve grande influência nos
analisados e pelo fato das simulações terem resultados. É importante destacar que pelo
sido feitas com dados referentes ao verão. fato do programa ENVI-met ter sido
desenvolvido com parâmetros europeus, o
Já a umidade relativa do ar é a proporção (em
sombreamento recebe uma importância maior
%) entre a umidade absoluta (toda a água
do que realmente receberia em países
presente no ar em determinada parte da
tropicais. Para efeito de análise, como as três
atmosfera) e o ponto de saturação (a
situações são áreas tropicais essa distorção
quantidade máxima de vapor de água que
nesse fator foi desconsiderada.
poderia haver sob determinada temperatura).
A umidade relativa do ar tende a aumentar A simulação da forma urbana gerada pela LC
quando há diminuição de temperatura e 101/2009 e pela forma proposta pelo SAS
diminuir quando a temperatura aumenta, obtiveram melhores resultados, visto que são
portanto ela tende a ser inversamente áreas mais arborizadas e sombreadas pelas
proporcional à curva da temperatura. O edificações.
aumento do número de vegetação tanto no

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Figura 24. Radiação Difusa – W/m2 (fonte: elaborada pelas autoras).

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Figura 25. Fator de Visão do Céu (fonte: elaborada pelas autoras).

O Fator de Visão de Céu – FVC é um representa a relação entre a área de céu


parâmetro adimensional que indica uma obstruída e a área total da abóbada celeste
relação geométrica entre a Terra e o céu, que visível, quantificando a quantidade de céu

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visível em um local. Quanto maior a manteve entre 0,38 m/s e 1,88m/s em


obstrução da visão do céu, maior será a praticamente toda a região).
dificuldade do ambiente dispersar a energia
térmica armazenada para a atmosfera, além Discussões
disso, apresenta, indiretamente, o possível Na Figura 26, é possível observar de forma
sombreamento do solo. simplificada as três morfologias analisadas e
Oke (2006) aponta o fator de visão do céu suas características volumétricas.
como um dos fatores principais para Visualmente, é possível notar que a proposta
ocasionar o fenômeno das ilhas de calor. de alteração da legislação apresentada
Porém, quando considerada a interferência da (metodologia SAS), resultou em uma forma
arborização, esse fenômeno pode ser urbana menos verticalizada, mais adensada,
amenizado, visto que apesar de obstruir a porém com afastamentos laterais, com uma
visão do céu, as árvores permitem uma maior volumetria variada e com quarteirões
permeabilidade dos ventos e uma dispersão menores. A redução dos quarteirões e o
maior da energia térmica acumulada. adensamento são características defendidas
por alguns autores como mais adequadas ao
Observando as simulações para esse índice
pedestre (Jacobs, 1961; Gehl, 2013). Porém,
(Figura 25), as mais altas medições de FVC
a introdução do afastamento lateral é um
foram expressas no primeiro cenário e as
fator que auxilia a ventilação, sendo possível
mais baixar foram observadas no terceiro
observar que os resultados se mostraram
cenário (SAS). Desta forma, pode-se
adequados ao microclima em um país com
constatar que a visão do céu está menos
clima tropical. Destaca-se, então, a
obstruída no primeiro cenário e há uma maior
importância do regionalismo para a
dispersão da energia térmica. Porém, já no
proposição de morfologias urbanas. É
terceiro cenário, por ter sido considerada a
possível notar também a maior possibilidade
arborização, apesar de ter um FVC menor,
de densificação populacional e a maior
isso não quer dizer que necessariamente que
proximidade das fachadas frontais nas
houve uma menor dispersão térmica, visto
testadas das vias o que também converge
que as árvores permitem e absorvem essa
para um ambiente onde os habitantes estão
energia térmica. No caso de áreas tropicais,
mais próximos das vias e pode trazer uma
o fator de visão do céu menor pode interferir
maior sensação de segurança (Vogel, Mello e
diretamente na diminuição da temperatura do
Mollica, 2017). Ainda, a diminuição do
ar visto que comprovam a menor incidência
tamanho dos lotes permite a ocupação por
solar. No entanto, se esse fator for
pessoas de rendas variadas e não apenas
excessivamente baixo, poderia comprometer
grandes empreiteiras, uma vez que o custo de
a ventilação, o que não ocorreu na proposta
um lote de 2000m² em uma área revitalizada
simulada como visto na Figura 19 (a
subentende um aumento nos valores da
velocidade dos ventos no cenário 3 se
região.

Figura 26. Simulação volumétrica (fonte: elaborada pelas autoras).

Apesar de ter sido verificado através das verticalização com edifícios de 50 andares e
simulações realizadas no ENVI-met que do com significativos afastamentos frontais e
ponto de vista bioclimático os resultados das laterais (entre 7 e 15 metros) pode levar a
medições da proposta com os parâmetros da ambientes menos propícios à
LC 101/2009 ficaram semelhantes aos caminhabilidade e que necessitem de um
resultados obtidos no terceiro cenário (SAS), maior uso de automóveis (Gehl, 2013) como
com algumas alterações mais significativas o que acontece em áreas da Barra da Tijuca
como a ventilação, destaca-se que a no Rio de Janeiro. Desta forma, destaca-se

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Avaliação de vizinhança LEED e análise microclimática 27 / 31

que o projeto com princípios sustentáveis é verticalizado (edifícios com no máximo 20


muito mais amplo do que a consideração andares).
apenas de princípios bioclimáticos. na
Na Figura 27, é possível observar as
proposta SAS, baseada no LEED-ND.
conformações morfológicas do estudo nas
As alterações da morfologia através da três situações apresentadas e analisar as
metodologia proposta baseada no LEED-ND alterações propostas como abertura de ruas e
propiciaram uma conformação de bairro diminuição das quadras.
adensado, porém não excessivamente

Figura 27. Comparativo das conformações morfológicas (fonte: Marques da Silva, 2018).

Em relação ao adensamento previsto pela LC edificações, o quantitativo de área total


101/09, através da verticalização das edificada (ATE) é ampliado na metodologia
edificações, é possível observar (Figura 28) proposta (SAS) em relação à LC 101/2009.
que apesar da Proposta SAS possuir uma área Já o quantitativo da Taxa de Ocupação do
passível de ocupação inferior à da LC solo (TO), na proposta SAS, se manteve
101/2009 e de limitar a altura das entre as demais proposições.

Figura 28. Quadro comparativo de Área Total Edificada – ATE e Taxa de Ocupação no nível do solo -
TO (fonte: elaborada pelas autoras).

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Avaliação de vizinhança LEED e análise microclimática 28 / 31

Desta forma, o adensamento populacional foi A busca por uma conceituação urbana
mantido na proposta morfológica SAS não sustentável traz consigo uma série de
comprometendo o microclima local, além de proposições e estratégias que buscam atuar
ter priorizados princípios de sustentabilidade em diversos níveis (sociais, econômicos e
expressos no LEED-ND. ambientais). A metodologia proposta
pretendeu introduzir instrumentos capazes de
Considerações Finais congregar esforços tanto da esfera pública, na
A construção de bairros mais sustentáveis e revitalização, ampliação e modernização da
com princípios bioclimáticos é um desafio infraestrutura urbana, quanto da iniciativa
que só pode ser alcançado com base em privada, tornando-se responsável por
modelos inovadores de ocupação do solo. É construir e manter espaços que possam ser
importante serem consideradas as utilizados pela comunidade, visando o
regionalidades, como a contextualização alcance da sustentabilidade e a eficiência
histórica, a identidade, as características urbana.
físicas, com ênfase para as características Priorizar o desenvolvimento social e humano
climáticas, e as relações socioeconômicas da com capacidade de suporte ambiental,
região. gerando cidades produtoras com atividades
Discutir e entender como a forma urbana que podem ser acessadas por todos, é uma
pode interferir na qualidade de vida local de forma de valorização do espaço incorporando
uma determinada área foi uma das intenções os elementos naturais e sociais.
deste estudo. Porém, a ênfase foi dada Visto que as opções projetuais são diversas,
prioritariamente às questões microclimáticas. os resultados obtidos com a metodologia
Através das referências teóricas e simulações proposta (SAS) neste estudo indicam a
computacionais foi possível compreender que importância de efetuar análises testando as
as conformações urbanas variadas podem diferentes possibilidades antes da
influenciar diretamente nas inter-relações implantação de qualquer projeto, seja ele
urbanas em toda a sua complexidade. urbanístico ou arquitetônico. Observou-se
A metodologia proposta de alteração da que com a mesma densidade foi possível
legislação vigente tem a intenção de obter espaços mais adequados aos princípios
contribuir para futuros estudos, sendo bioclimáticos e sustentáveis.
possíveis aplicações por parte das prefeituras
Agradecimentos
nesta mesma área ou como exemplo para
outras regiões da cidade. Capes e CNPq.
Notas
1 5
O projeto resultante da proposta de Marques da Informações adicionais sobre a proposta
Silva (2018) não é o enfoque desde artigo, porém metodológica SAS podem ser obtidas em
é de grande importância para a análise proposta. Marques da Silva (2018).
Os detalhes e justificativas principais podem ser 6
Sendo assim, o volume da área na modelagem é
obtidos através do documento:
http://www.dissertacoes.poli.ufrj.br/dissertacoes/dissert
de 400m x 400m x 150m. A maior edificação
poli2374.pdf. simulada possuía 150 metros de altura, sendo
necessário aplicar o recurso de grid telescópico
2
A outorga onerosa do direito adicional de após essa altura para que o programa possa ter
construção é um instrumento previsto no Estatuto espaço para efetuar seus cálculos.
das Cidades - Lei Federal nº10.257/2001 (Brasil, 7
2001) Um dos requisitos da simulação com o Envi-met
é simular um tempo maior, pois nas primeiras
3
Apesar de considerar diversos fatores horas de simulação o programa equaliza todos os
(mobilidade, segregação social, consumo parâmetros e por uma questão de processamento,
energético, etc.) como essenciais ao projeto essas primeiras horas são descartadas para a
urbano sustentável, este artigo teve como foco as obtenção dos resultados, visto que pode haver
alterações microclimáticas. distorções.
4
Todos os parâmetros utilizados, assim como o 8
Idem nota 6
detalhamento da proposta podem ser conferidos 9
em Marques da Silva, (2018). Para o contexto A radiação direta é a parcela que atinge a terra
deste artigo optou-se por expor apenas os diretamente, sua intensidade depende da altura
resultados simplificados da proposta. solar e do ângulo de incidência dos raios solares

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fenômeno chama-se Dissipação Atmosférica,


quanto menor a altura solar, maior o trajeto da
em relação à superfície receptora (Lamberts et al.,
radiação através da atmosfera, chegando menos
2014).
radiação à superfície terrestre. (Lamberts et al.,
10 2014).
Ao adentrar à atmosfera, a radiação solar é
absorvida pelo ozônio, vapores e partículas, este

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Tradução do título, resumo e palavras-chave


LEED neighborhood assessment and microclimatic analysis: a case study of urban morphology in Porto
Maravilha, RJ, Brazil
Abstract. In recent years, the port region of Rio de Janeiro has received a major revitalization project,
called the Porto Maravilha Project, which foresaw the morphological alteration and densification of
some sectors of the region. This study aimed to analyze the possible impacts of changes in legislation in
the area called Sector C, as well as its correlation with urban morphology. Initially, maps were prepared
to analyze two situations, the first based on urban parameters in force until 2009 and the second
considering the parameters described in the new legislation for the region, defined by Complementary
Law 101/2009. Computer simulations were performed using the urban forms resulting from the evaluated
laws. The comparison of the results obtained allowed the analysis of the urban form and the typology of
the buildings. From this analysis, new urban parameters were suggested, simulating a hypothetical
situation based on the requirements of the LEED-Neighborhood system, respecting the ideal of
densification in the region, but adopting a new urban morphology guided by sustainable urbanism
criteria. The generated maps were simulated and compared to previous maps. From the results obtained
it was possible to observe that the morphological changes developed in the simulated urban projects
seem to have influenced the microclimate of the studied region.
Keywords. urban morphology, environmental certifications, urban planning, urban microclimate, Porto
Maravilha.

Editor responsável pela submissão: Vinicius M. Netto.

Licenciado sob uma licença Creative Commons.

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PERSPETIVAS
Debate sobre temas fundamentais
em morfologia urbana
Big Data e Análise Urbana: Ciência da cidade nas economias em
desenvolvimento1
Mayra Gamboa Gonzáleza e Juan Ángel Demerutis Arenasb
a
Universidad de Guadalajara, Centro Universitário de Arte, Arquitetura e Design - CUAAD,
Departamento de Proyectos Urbanísticos, Guadalajara, Jalisco, México. Email:
mayra.gamboa@academicos.udg.mx
b
Universidad de Guadalajara, Centro Universitário de Arte, Arquitetura e Design - CUAAD,
Departamento de Proyectos Urbanísticos, Guadalajara, Jalisco, México. Email:
juan.demerutis@cuaad.udg.mx
https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.171

A tecnologia como elemento inseparável Essas três revoluções trouxeram mudanças


do ser cognitivo e a cidade inteligente significativas na maneira como os humanos
como expressão no território se desenvolveram como espécie e em nosso
relacionamento com outros organismos e o
O desenvolvimento tecnológico é uma
meio ambiente. A partir dessa análise,
característica que acompanhou a humanidade
ficamos parecendo aquém do nível de
ao longo de sua história. Sua origem pode ser
desenvolvimento e poder que alcançamos e,
localizada a partir da evolução do homano
que, segundo o autor, nos tornaria
como ser cognitivo (Homo Sapiens),
semelhantes a deuses, com poderes de
interpretando a tecnologia de acordo com a
criação e destruição, mas com pouco
definição da Academia Real Espanhola
entendimento do que fazer com esse poder,
(espanhol: Real Academia Española ou
além do péssimo relacionamento com nosso
RAE), como o conjunto de teorias e técnicas
habitat e ambiente natural. Os avanços
que permitem o uso prático do conhecimento
tecnológicos que estamos testemunhando não
científico, bem como o conjunto de
são igualmente distribuídos, e esse fato não
instrumentos e procedimentos industriais de
nos coloca como uma espécie melhor; pelo
um determinado setor ou produto (Royal
contrário, de acordo com Harari (2018), há
Spanish Academy, 2019).
uma grande incerteza em relação ao futuro da
Em sua obra transcendental “De animales a Homo Sapiens, nossa espécie, uma vez que
Dioses: Breve historia de la humanidad”, não está claro se poderemos evoluir para nos
Harari (2018) distingue três revoluções tornarmos seres dotados com diferentes
importantes na história da humanidade: a consciências e sentimentos, em contraste ao
revolução cognitiva que marca o início da modo como os conhecemos e os
história há aproximadamente 70.000 anos, compreendemos atualmente ou se, pelo
localizada no início da era da espécie Homo contrário, o uso da tecnologia nos
Sapiens, quando surgiram culturas humanas. fragmentará em sociedades cada vez mais
A segunda é a revolução agrícola, entre desiguais, com a predominância de alguns
12.000 e 5.000 anos atrás, quando alguns grupos em detrimento de outros.
autores colocam a origem dos primeiros
Esse desenvolvimento tecnológico,
assentamentos humanos como aldeias e
econômico e cultural, transferido para a
cidades nas sociedades neolíticas que
expressão física do território, gerou um
conviviam estreitamente com a Mãe
modelo de crescimento atual para a cidade,
Natureza (Eisler, 1998; Mumford, 1961). E a
que é de urbanização acelerada, desconectada
terceira é a revolução científica que começou
e dispersa. É um modelo em que prevalece o
há apenas 500 anos, que deu origem à Era do
uso de veículos particulares, e as despesas de
Iluminismo e às revoluções industriais do
transporte público são altas devido às grandes
século XVIII até os dias atuais.

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Perspetivas 2 / 10

distâncias percorridas para acessar lugares de No entanto, o conceito de cidade inteligente


emprego, educação e outros serviços básicos surgiu logo no início do milênio como uma
e recreativos. Existe uma fraca distribuição e fusão de ideias sobre como as tecnologias da
cobertura de serviços de infraestrutura e informação e comunicação poderiam
equipamentos, bem como uma tendência a melhorar o funcionamento das cidades, torná-
um modelo de moradia horizontal que não las mais eficientes e competitivas e fornecer
ajuda a gerar condições de vida sustentáveis. novas maneiras de abordar questões de
Isso se traduz em um estado de desigualdade, pobreza, privação social e ambientes
pois há falta de acesso a oportunidades; uma poluídos como premissas de cuidados para
situação cujo problema subjacente está em melhorar a qualidade de vida (Batty et.al,
ascensão e que afeta principalmente a 2012, p. 483).
população de baixa renda, que normalmente
Cidades inteligentes são tipicamente
é excluída e empurrada para os arredores das
definidas como aquelas que dependem do uso
cidades onde a terra para moradia tem menor
de ferramentas de informação e tecnologias
custo.
de comunicação (TICs) para obter um
Castells (2010) estabelece , entre as desempenho mais inteligente e, portanto,
características que delineiam as causas da com desempenho mais eficiente dos recursos,
dinâmica espacial - e portanto, a forma o que se traduz em economia de energia e
urbana da sociedade em rede global - a melhorias nos serviços e na qualidade de vida
estreita interação entre a transformação em geral , reduzindo os impactos adversos ao
tecnológica da sociedade e a evolução de sua meio ambiente (Shaheen e Cohen, 2017).
forma espacial. Em outras palavras, a
Albino, Berardi e Dangelico (2015) registram
tecnologia não é um fator determinante, mas
o uso do termo ‘smart city’ pela primeira vez
um facilitador de novas estruturas sociais.
na década de 90, relacionado ao emprego de
Então, qual deve ser a forma no futuro? Uma
novas TICs. Esse conceito tornou-se popular
forma urbana que reflete uma sociedade mais
na literatura científica e na política
democrática, de acordo com Scott (2014).
internacional, onde se reconhece que as
Sobretudo na última década, a ascensão das cidades são elementos-chave para o futuro,
tecnologias da informação e comunicação devido ao seu papel nos aspectos sociais e
(TICs) tem permeado todos os cenários da econômicos, mas também é reconhecido o
vida cotidiana, a fim de tornar a cidade mais impacto significante que elas geraram no
eficiente, a ponto de agora haver um “abuso” meio ambiente. Esse baixo desempenho
do termo 'smart city'. ambiental é um dos pilares que sustentam os
argumentos a favor do crescimento
A conotação de “cidade inteligente” não é
inteligente, para que as cidades desenvolvam
nova. No passado, houve diferentes
novas formas de enfrentar esses desafios.
abordagens que tratam a cidade como uma
Nesse sentido, o conceito de cidade
entidade orgânica, estruturada a partir de
inteligente não se limita apenas à aplicação
redes e fluxos (Batty, 2013). Segundo
de tecnologias nas cidades, mas o leva a
Mitchell (2007), no início do século XXI e a
outras áreas, o que criou confusão entre os
partir de uma série de avanços tecnológicos e
formuladores de políticas públicas que
de comunicação, as cidades foram
buscam tornar suas cidades mais inteligentes.
constituídas por uma série de subsistemas
semelhantes aos organismos vivos que lhes Segundo Peter Hall e Kathy Pain (citado em
permitem responder como tal, de maneira Castells, 2010), na economia do
inteligente e coordenada. Segundo o autor, a conhecimento os serviços “avançados ou
inteligência nas cidades reside na especializados” são indutores do crescimento
combinação eficaz deuma infra-estrutura urbano, da riqueza e do poder, sendo uma das
digital de telecomunicações e transporte razões que explicam o fenômeno da
(sistema nervoso), a inteligência incorporada concentração metropolitana. Esses tipos de
que está presente em todo lugar (cérebro), os serviços estão concentrados principalmente
sensores (órgãos sensoriais) e o software na centralidade urbana e em áreas bem
(conhecimento e competência cognitiva). conectadas. Em outras palavras, o fenômeno
da desigualdade intra-urbana está presente

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tanto em economias desenvolvidas, quanto abordagens disciplinares compartilham, em


em economias em desenvolvimento, e diz direção a uma fusão transdisciplinar, devido
respeito a quem pode tirar proveito dos ao caráter híbrido da estrutura disciplinar que
serviços e da economia do conhecimento. compõe a ciência das cidades (Wilson 2012,
Batty, 2013 , citado em Gómez et. al, 2019).
Uma nova ciência urbana transdisciplinar Isso abrange desde as teorias que constroem
Após uma revisão da literatura sobre cidades o paradigma da complexidade (teoria do
inteligentes, aparecem outros conceitos e caos, teoria dos sistemas, entre outras) até
disciplinas aparentemente relacionados, disciplinas reconhecidas como física social,
como ciência da cidade, ciência urbana, economia urbana, sociologia urbana, entre
ciência da computação ou análise urbana, outras (Batty, 2013).
entre outros. Isso é digno de nota, pois indica Essa concepção da cidade como um sistema
que não há consenso na definição de cidades complexo é consistente com a abordagem
inteligentes e tampouco existe uma estrutura interdisciplinar dos sistemas que envolvem as
conceitual para esses novos significados. No áreas social, ecológica e tecnológica (SETs)
entanto, a análise a seguir tentará fazer uma (McPhearson et. al, 2016; Van der Leer et.
abordagem inicial e estabelecer distinções al, 2019, citado em Gómez et. al, 2019) .
com relação ao que é chamado de cidade Nessa abordagem, o subsistema social
inteligente. abrange os sistemas sociais, econômicos,
Na perspectiva da City Science, as cidades políticos, culturais e biossociais, cujos
são consideradas processos complexos de componentes são fundamentalmente
sistemas que não são previsíveis e que se indivíduos ou organizações humanas
baseiam no entendimento desses sistemas de relacionadas entre si e com os outros
redes e fluxos que interagem com os objetos subsistemas por meio de ações, interações e
dentro deles (Siller, 2015). Para estudar a transações. O subsistema ecológico-
cidade são necessárias outras ciências, como territorial, por sua vez, inclui sistemas
física social, economia urbana, teoria dos naturais que agem de duas maneiras, uma vez
transportes e geografia urbana. Além disso, a que funcionam como suporte territorial ou
análise se baseia em ferramentas interios aos demais subsistemas,
tecnológicas, como métodos de simulação, possibilitando condições para sua produção e
para prever interações entre variáveis e reprodução e, ao mesmo tempo, são
fluxos e, assim, ajudar na tomada de decisões interpostos por agentes sociais. E o terceiro,
futuras sobre as cidades (Batty, 2013). o subsistema tecno-infra-estrutural, ou a
coleção de sistemas compostos por agentes e
Uma das distinções feitas pelos proponentes dispositivos humanos (sistemas de transporte,
da ciência da cidade em relação à geração e distribuição de energia, gestão e
conceitualização da cidade inteligente é que, governança urbanas, equipamentos, etc.) que
no uso de ferramentas tecnológicas e de mediam os subsistemas anteriores em termos
informação, tenta-se entender as de transformação (produção, fabricação ou
necessidades e dinâmicas habituais da execução de processos) ou controle, como
população, identificando questões urbanas organização, gerenciamento e regulação de
para gerar instrumentos de simulação de processos e sistemas.
impacto que ajudem na tomada de decisões
por consenso, envolvendo mais atores (por Consequentemente, a ciência da cidade
exemplo, cidadãos) e contribuindo para promove a interdisciplinaridade científica
alcançar cidades mais humanas. destinada à geração e aplicação de
conhecimento, acompanhado da
A ciência da cidade é proposta como uma interdisciplinaridade tecnológica destinada a
construção estrutural em direção à visão intervenções cognitivas; isto é, envolve a
transdisciplinar para entender os fenômenos hibridação de disciplinas direcionadas à
urbanos como um objeto complexo, como é o pesquisa básica e aplicada, e a fusão de
caso da cidade (Gómez et.al, 2019). Trata-se disciplinas tecnológicas orientadas ao design
de mudar de uma qualidade interdisciplinar, de sistemas e processos, dentre as quais se
na qual um grupo de disciplinas ou

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destaca a administração urbana (Gómez, et. da cidade) e mobilidade sob


al, 2019). demanda (veículo elétrico persuasivo
- PEV). Este grupo de pesquisa criou
Embora algumas semelhanças e diferenças
uma rede internacional de
sejam percebidas nas diferentes definições de
colaborações com cidades nas quais
conceitos, os defensores da nova ciência da
os laboratórios da City Science
cidade fazem algumas distinções com relação
foram instalados, incluindo, entre
às cidades inteligentes, para direcionar essa
outros: Andorra, Toronto,
abordagem para o estudo de questões urbanas
Hamburgo, Xangai, Taipei e Aalto.
como sistemas de rede e fluxos
A perspectiva desse grupo é
interconectados (Batty, 2013 ). No entanto, o
desenvolver colaborações em cidades
que concordam os defensores das cidades
em rápido crescimento na América
inteligentes e da ciência da cidade é que
Latina, África e Índia nos próximos
ambas as abordagens buscam melhorar as
anos, onde os maiores desafios e
condições de habitabilidade da cidade de
impactos da urbanização deverão
maneira mais eficiente. Ou seja, melhorias na
ocorrer no futuro (City Science,
infraestrutura, provisão de serviços,
Media Lab, 2019).
mobilidade e até a produção de sociedades
mais inclusivas.  Center for Urban Science and
Dentre os centros de pesquisa aplicada no Progress (CUSP). Fundada em 2012,
campo das ciências da cidade (também a CUSP é um centro de pesquisa
chamados ciências urbanas ou ciências das interdisciplinar que aplica a
cidades inteligentes), em que estão sendo abordagem STEM ao serviço das
desenvolvidas novas tecnologias para análise áreas urbanas, empregando soluções
espacial e urbana, destacam-se: e tecnologias orientadas a dados para
problemas urbanos complexos. É
 O grupo de pesquisa City Science do uma colaboração acadêmica com a
Instituto de Tecnologia de cidade de Nova York que busca
Massachusetts (City Science-MIT melhorar os serviços urbanos,
Media Lab, anteriormente chamado otimizar os processos de tomada de
de Changing Places Group, e decisão do governo local, criar
sucessor do extinto grupo Smart infraestruturas urbanas inteligentes e
Cities, que operou de 2003 a 2010). abordar desafios como crime,
Este centro é voltado para a pesquisa poluição ambiental e saúde pública.
de novos modelos de arquitetura O centro coleta, integra e analisa
urbana (espaços flexíveis para morar informações (dados) de diferentes
e trabalhar), juntamente com o agências para entender e melhorar os
design de veículos pessoais e sistemas urbanos e a qualidade de
autônomos que melhor respondem a vida. O CUSP afirma o objetivo de
necessidades individuais únicas por ajudar as cidades do mundo a serem
meio de personalização inteligente. mais produtivas, habitáveis, mais
Eles desenvolvem tecnologia justas e resistentes; também afirma
destinada a entender e responder à supervisionar a agenda de pesquisa
dinâmica humana, ambiental e de para a ciência das cidades. O centro
mercado. Eles também trabalham no combina especialistas de várias
desenvolvimento de sistemas de disciplinas nas áreas de física e
informações autônomos e em tempo ciências naturais; informática e
real para a tomada de decisões ciência de dados; ciências sociais,
pessoais, bem como interfaces para engenharia e outros campos
convencer as pessoas a adotar profissionais, como política, design e
comportamentos sustentáveis. As finanças (Center for Urban Science
linhas de pesquisa abordam três and Progress, 2019).
áreas: locais para morar e trabalhar
(mudança de lugar), modelagem  O Bartlett Centre for Advanced
urbana, simulação e previsão (escopo Spatial Analysis (CASA) of the

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University College of London. Queensland foi fundado em 2006.


Fundada em 1995 para liderar o Em seu trabalho, eles aplicam vários
desenvolvimento da ciência das métodos de pesquisa estabelecidos e
cidades inteligentes, concentra-se na novos, com o objetivo de identificar
aplicação de modelos desafios e oportunidades em
computacionais, técnicas de ambientes urbanos. Eles são
visualização de dados, tecnologias baseados nas esferas sociocultural,
inovadoras de sensores, aplicações econômica, ecológica e tecnológica.
móveis e teoria urbana vinculada a O grupo colabora com diferentes
sistemas urbanos. Os pesquisadores atores individuais, comunidades e
do centro realizam análises espaciais, organizações dos setores público,
utilizando sistemas de informação privado e social. O objetivo de seus
geográfica e outras formas de projetos de pesquisa é estudar e co-
representação de dados de espaço e criar futuros urbanos que sejam mais
tempo. Os pesquisadores do centro habitáveis e justos, garantindo que os
realizam análises espaciais, resultados tenham um impacto na
utilizando sistemas de informação sociedade. Os pesquisadores do
geográfica e outras formas de grupo vêm de diferentes áreas:
representação de dados de espaço e humanidades e ciências sociais;
tempo. Eles empregam uma ampla design, planejamento e arquitetura;
gama de métodos: da física social à interação homem-computador,
econometria; juntamente com tecnologia da informação e ciência
modelos estatísticos, que vão da da computação.
realidade aumentada e da detecção
 O Urban Analytics Lab da
hiperlocal, à coleta de dados por
Universidade Nacional de Cingapura
meio de crowdsourcing. A
é um grupo de pesquisa
abordagem é multidisciplinar,
interdepartamental e multidisciplinar
aplicada para criar modelos
que foi criado em 2019. Eles se
construtivos, visualizar big data e
concentram em análises urbanas,
desenvolver novos métodos para
ciência de dados geográficos e
coletar, analisar e comunicar
modelagem de cidades em 3D. Seus
informações. Na CASA, a teoria dos
projetos estão ligados às disciplinas
sistemas e as ciências da
de arquitetura, planejamento urbano
complexidade constituem os
e incorporação imobiliária. Para o
referenciais teóricos para suas
desenvolvimento de seus estudos,
investigações; tecnologias de
eles usam infraestrutura, tecnologia
visualização, interação humana
de computação geoespacial e urbana
computacional e análise de dados são
(geomática, padronização de dados,
empregadas para o desenvolvimento
qualidade dos dados, aprendizado de
de projetos. Este centro oferece
máquina e sistemas de informações
soluções para os problemas de
geográficas) (Urban Analytics Lab,
eficiência de recursos, planejamento
2019).
e governança eficaz nas cidades, para
torná-los melhores lugares para se  O Centro de Análise de
viver. O CASA envolve Planejamento Espacial e
pesquisadores de diferentes Visualização do Instituto de
formações, como arquitetos, Tecnologia da Geórgia. Este Centro,
geógrafos, matemáticos, físicos, anteriormente chamado de Centro de
arqueólogos e cientistas da Sistemas de Informação Geográfica,
computação (The Bartlett Center for dedica-se ao desenvolvimento de
Advanced Spatial Analysis, CASA, tecnologias geoespaciais há quase 20
2019). anos. Nele, os pesquisadores buscam
criar uma simbiose entre tecnologia e
 O grupo de Informática Urbana da
gerenciamento de dados para que as
Universidade de Tecnologia de

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políticas públicas construam Uma ciência para cidades ricas ou para


argumentos na fase de tomada de aliviar a pobreza e a desigualdade?
decisão para realizá-la de maneira
Um dos argumentos que os propulsores da
informada. Seu trabalho gira em
ciência da cidade estabelecem é que não
torno de várias disciplinas, como:
apenas as novas tecnologias e aplicações
transporte, planejamento urbano,
revolucionam a maneira de fazer as coisas,
conservação (terra e animais),
facilitam as atividades e melhoram a
energia renovável, áreas verdes e
produtividade das empresas, mas também
meio ambiente.
proporcionam maior inclusão social (Prince
 Os laboratórios de inovação & Jolías, 2017). No entanto, essas vantagens
tecnológica da ONU (UNTILs). Eles são possíveis para economias emergentes em
se concentram no uso de tecnologia contextos de escassez de recursos, baixo
inovadora para resolver algumas das nível educacional da população, necessidades
necessidades mais urgentes da básicas não atendidas, insegurança, falta de
humanidade e, como pertencem às informação, entre outras preocupações?
Nações Unidas, suas análises estão Há uma grande brecha digital no México,
sempre alinhadas com os Objetivos sendo que para solucionar isso, são
de Desenvolvimento Sustentável necessários além dos recursos econômicos,
(ODS). Cada laboratório é baseado como também algumas mudanças em nossas
em diferentes temas humanitários instituições. Essas mudanças parecem
que são centrais de acordo com o particularmente desatualizadas, com as
local específico. Atualmente, existem rápidas transformações tecnológicas
quatro: Egito, Índia, Finlândia e ocorrendo em todo o mundo.
Malásia. Diferentemente dos outros
centros de pesquisa de constituição Na Constituição mexicana, o acesso à
acadêmica listados nesta seção, esses Internet é estabelecido como um direito para
laboratórios foram criados com os que todos os cidadãos estejam bem
auspícios dos governos nacionais de informados. Em 2013, durante a última
cada sede, que devem regular a administração federal, o projeto do governo
participação e colaboração de outros 'Connected Mexico' (em espanhol: México
atores, como centros de pesquisa e Conectado) foi lançado especificamente para
entidades do setor privado (alguns tratar desse direito constitucional e garantir o
estão localizados em centros de acesso ao serviço de Internet em banda larga.
tecnologia e/ou negócios) ou Para isso, foram estabelecidas redes de
startups (United Nations Technology telecomunicações em locais e espaços
Innovation labs, 2019). públicos, como escolas, centros de saúde,
bibliotecas, centros comunitários e parques,
Esses centros de pesquisa têm em nos níveis federal e estadual. Nessa
comum, em maior ou menor grau, o administração atual, 101 mil sites foram
desenvolvimento da ciência básica e conectados e espera-se que o nome do
aplicada aos problemas urbanos; programa seja 'Internet para Todos' (Governo
sinergia com outros setores ou atores do México, 2019).
locais, como governos, sociedade
civil e indústria; bem como a No entanto, o direito de acesso à Internet não
interdisciplinaridade. Entre seus é exercido de maneira justa; a desigualdade
objetivos está a busca por eficiência de acesso responde a questões de educação,
e equidade nas cidades. No entanto, renda, idade e gênero, sendo essas diferenças
exceto pelos recentes laboratórios da mais acentuadas em grupos marginalizados
ONU (UNTILs), a maioria deles está (Merino, 2017). Embora não existam dados
localizada em cidades de economias ou estudos que permitam avaliar a estratégia
desenvolvidas, onde esses problemas do Connected Mexico que buscava reduzir o
não são comparáveis aos da América fosso digital, a Pesquisa Nacional sobre
do Sul e da América Latina em Disponibilidade e Uso de Tecnologias de
particular. Informação nas Famílias (INEGI, 2019)

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fornece algumas diretrizes que indicam que não apenas os processos ou a experiência do
essas desigualdades digitais são ainda usuário foram aprimorados, mas as próprias
consideráveis, embora tenham sido feitos atividades foram completamente
progressos no sentido de reduzi-los. modificadas. Inteligência artificial, robótica e
big data também têm várias aplicações nas
Nos últimos anos, a média mundial de
áreas de medicina, mobilidade (por exemplo,
pessoas com acesso à Internet passou de 10%
veículos elétricos e autônomos), educação,
em 2000 para 50% em 2015, e o México
agricultura e impressão 3D. Isso foi chamado
ficou abaixo da média mundial até 2013,
de 4ª Revolução ou Era Exponencial, e
quando atingiu uma taxa de 43,5%. Merino
espera-se que muitas indústrias sejam
(2017) conclui que entre 2010 e 2015 houve
transformadas ou desapareçam nos próximos
um aumento de usuários e residências
5 a 10 anos, devido à velocidade e magnitude
conectadas; no entanto, é necessário melhorar
das mudanças geradas; por exemplo, entre as
a situação de alguns lugares, que ainda estão
empresas dissolvidas está a Kodak, como
sem o acesso à Internet. Existe grande
consequência do surgimento de câmeras
desigualdade no acesso à Internet e, portanto,
digitais. Além disso, surgiram novos modelos
no conhecimento, refletindo a desigualdade
de negócios, como Uber e Airbnb, que são
econômica do país (Merino, 2017).
desenvolvidos a partir de um software que
Essa condição de desigualdade está reúne todos os processos da atividade, mas a
relacionada à mudança urbana que se empresa que os controla não investe em
entrelaça com a mudança neoliberal, veículos ou propriedades (Gollub, 2016).
cognitiva e cultural (Scott, 2011). Na cidade
Na área de mobilidade e transporte, as
global, neoliberal, há uma re-estratificação
pesquisas sobre o comportamento humano e
das classes trabalhadoras: por um lado, um
a relação entre esses comportamentos ou
polo integrado pela classe analítica e criativa,
padrões são afetadas pelas condições
e, por outro, um polo formado por uma
individuais. Esta pesquisa foi realizada nas
subclasse de serviço de baixos salários em
últimas quatro décadas, devido ao interesse
que trabalhadores realizam atividades
em prever a demanda futura de grandes
informais e muitas vezes subvalorizadas,
projetos de investimento em transporte. Para
como manutenção e trabalhos domésticos;
esse fim, instrumentos foram usados para
sendo que o número deste último está
coletar informações, como pesquisas de
aumentando. Portanto, há uma contradição
viagens (pesquisas sobre o destino de origem
no que a teoria da cidade criativa busca:
ou O-D) que podem ser acompanhadas por
tolerância e redistribuição de renda, o que na
aplicativos de GPS. Esses tipos de pesquisas
prática não ocorre (Scott, 2014). Pelo
dependem da participação ativa do usuário e,
contrário, existem autores que afirmam que
portanto, são limitados, caros e com amostras
existe o risco de que, como não existem
relativamente pequenas (Chen, et al., 2016).
mecanismos para os governos investirem em
O rápido desenvolvimento de tecnologias de
tecnologia avançada que atenda às
mobilidade e dispositivos móveis gerou uma
necessidades de crescimento urbano e seus
grande quantidade de informações 'passivas',
aspectos socioeconômicos na escala da
já que o usuário as gera involuntariamente,
cidade, a tecnologia seria um intensificador
simplesmente por meio de seu telefone
das desigualdades sociais, permanecendo
celular, ou sem a intenção de usá-las para
acessível apenas aos setores mais favorecidos
fins utilitários de consulta. Essa informação
da população (Thakuriah et al., 2017: 7).
chamada big data é coletada através da
Ferramentas tecnológicas para análise entrada de redes sociais (Facebook, Twitter,
urbana WhatsApp); celulares; cartões inteligentes
para transporte público; planejadores de rotas
Como mencionado anteriormente, as TIC e a e dados de tráfego, como Google Maps,
"Internet of Things" (IoT) foram TomTom, My Drive ou Waze. Esses
incorporadas em todas as áreas da vida aplicativos permitem que os usuários
cotidiana nas últimas décadas e estão calculem tempos e rotas de viagem através de
presentes em grande parte das atividades um sistema de posicionamento global.
econômicas e sociais. Em alguns contextos, Frequentemente, para descrever a

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mobilidade, dados de cartões bancários e trabalho doméstico; o big data permite


outros sensores ou dispositivos também são assumir tendências, tomar decisões ou
empregados. Existem alguns aplicativos com desenvolver políticas nos setores público e
maior potencial de contribuição devido ao privado; a IoT está presente em tudo o que
tipo de informação que eles coletam; por fazemos, porque os objetos podem ser
exemplo, as informações dos táxis mostram interconectados através de sensores e
padrões de motoristas, e não de usuários; os máquinas que geram todos os tipos de
cartões inteligentes produzem dados sobre o informações para medir, monitorar ou operar
uso dos modos de transporte; e o uso de dispositivos remotamente, como acontece
telefones celulares fornece maior precisão com veículos autônomos, que terão um papel
das informações espaciais e temporais do que de liderança no transporte de indivíduos e
as das redes sociais (Chen, et al., 2016; BID, mercadorias, bem como na ocupação do
2019). espaço público.Entre os impactos esperados
de seu uso está a diminuição de acidentes e a
Big data fornece informações para um
consequente transformação dos negócios de
melhor planejamento e, portanto, representa
seguros. Outra mudança substancial está
uma entrada particularmente importante para
ocorrendo nos sistemas de energia, o que
melhorar a infraestrutura e os serviços de
permitirá, por exemplo, a dessalinização da
transporte. Pode ajudar a analisar diferentes
água a custos significativamente baixos e a
comportamentos de viagem, entre os quais se
virtualização de muitos serviços, como
destacam as questões de gênero (por
educação, comércio e até moeda. Essas
exemplo, como as mulheres se deslocam no
mudanças tecnológicas podem transformar os
transporte, questões de insegurança, assédio,
modelos econômicos e sociais de hoje
falta de acesso) que são identificadas, e que
(Prince e Jolías, 2017).
podem ser melhoradas. A disponibilidade dos
dados ajuda a entender como os usuários se A evolução da tecnologia se manifesta nas
movem e, assim, auxilia na tomada de atividades do cotidiano das pessoas, com
decisões conscientes sobre sistemas de alterações que geram bem-estar. No entanto,
mobilidade mais eficientes (BID, 2019). essas mudanças - cada vez mais rápidas - não
são assimiladas por grupos vulneráveis
A inteligência digital fornece informações
porque, como possuem recursos limitados,
em tempo real para a tomada de decisões, o
não podem se adaptar e se beneficiar deles; o
que economiza tempo e custos.
que significa que longe de melhorar a
Recentemente, começou a ser aplicado a
situação abrangente de uma comunidade,
assentamentos informais, onde instituições
intensificam as desigualdades existentes.
oficiais não coletam informações.
Consequentemente, é necessário construir
Consequentemente, a inteligência digital é
políticas públicas que permitam a esses
uma ferramenta inovadora da qual os
grupos vulneráveis melhorar suas condições
usuários são uma parte central do sistema,
e, assim, avançar para as próximas fases,
pois são geradores de entradas de
reduzindo as diferenças de desigualdade
informações (BID, 2019). A falta de dados
existentes.
sobre assentamentos informais é um
problema no México há muitos anos, uma
Observações finais
vez que o Instituto de Estatística, Geografia e
Informática (INEGI, na sigla em espanhol) A ciência da cidade como uma nova
não registra os usos da habitação e da terra disciplina precisa estabelecer uma estrutura
que ocorrem em terreno irregular, o que é teórica comum em nível internacional que
incompreensível para um país em que se evite gerar diferentes interpretações e mal-
considera que cerca de 50% da área urbana entendidos em sua concepção como uma
do país foi desenvolvida a partir de transdisciplina sócio-ecológica-tecnológica.
assentamentos irregulares. Ele deve ser diferenciado de outros conceitos
e campos com os quais está relacionado:
Portanto, as tendências tecnológicas se
cidades inteligentes, ciência urbana, análise
concentram no uso da inteligência artificial; a
urbana e computação urbana.
robótica é usada em processos de fabricação
e outras atividades como agricultura ou

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As escolas de pensamento mais influentes desenvolvimento está ligado a


estão localizadas em cidades de países transformações regulatórias e institucionais.
desenvolvidos e, embora tenham produzido Envolve novos modelos de negócios e
estudos sobre os colegas em políticas públicas que geram incentivos para
desenvolvimento, seu trabalho está focado o desenvolvimento tecnológico e seu acesso
nos países de origem. O grupo de pesquisa do justo pelos diferentes grupos populacionais.
MIT City Science e a CASA se destacam por Nesse sentido, três desafios são apresentados
suas realizações, sob a liderança de Kent para o desenvolvimento de uma ciência da
Larson (anteriormente de William Mitchell) e cidade, nas cidades da América Latina: gerar
de Michael Batty, respectivamente. um referencial teórico de referência para a
ciência da cidade na região, utilizar os
Nos centros de pesquisa revisados neste
recursos limitados existentes nas cidades de
estudo, observa-se como constante o discurso
maneira eficiente e dedicar a tecnologia a um
sobre o uso da tecnologia para alcançar
uso diferente daquele a que o estado a
cidades mais equitativas. No entanto, existem
destinou: vigilância e controle de os
poucas evidências sobre aplicações concretas
cidadãos.
para abordar os problemas mais urgentes da
urbanização nas cidades mexicanas, em A atual pandemia causada pelo COVID-19
parte, porque esses centros estão localizados está demonstrando como a adaptação a novos
em países com economias desenvolvidas que modos de vida e trabalho através do uso da
apresentam questões diferentes das que tecnologia é relativamente mais fácil para
afetam as cidades das economias emergentes. certos grupos socioeconômicos da população
e como, ao contrário, está afetando grupos
Na América Latina e no Sul, em geral, ainda
mais vulneráveis que apresentam,
existem poucos exemplos de programas de
intrinsecamente, maior risco em questões
políticas públicas que aplicam tecnologia à
financeiras e de saúde (Bergamini, 2020).
análise e resolução de questões
populacionais; na maioria das vezes, eles se Temos aproximadamente 70 mil anos
concentram na vigilância (câmeras em habitando a Terra e nos concebendo como
espaços públicos) e na obtenção de dados seres cognitivos, mas essa qualidade não nos
biométricos para o registro de pessoas (por torna melhores que nossos ancestrais
exemplo, credenciais de eleitor do Instituto primatas; atingimos graus exponenciais de
Nacional Eleitoral do México), mas existem desenvolvimento tecnológico, o que nos
poucos esforços palpáveis para melhorar a deixa a um passo de criar seres
qualidade de vida das comunidades. Este potencialmente mais inteligentes que nós; no
último deve ser a orientação dos projetos de entanto, não nos ajudamos a alcançar uma
pesquisa em ciências da cidade na região. sociedade mais justa e respeitosa com o meio
ambiente. É hora de realizá-lo através da
Em resumo, o desafio das mudanças
tecnologia, através da ciência da cidade.
tecnológicas no contexto das economias em
Notas
1
Perspetiva traduzida por Fernanda C. Ventorim.

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Big Data and Urban Analytics: City Science in Developing Economies
Mayra Gamboa Gonzáleza e Juan Ángel Demerutis Arenasb
a
University of Guadalajara, College of Art, Architecture and Design Planning and Urbanism
Department, Guadalajara, Jalisco, Mexico. Email: mayra.gamboa@academicos.udg.mx
b
University of Guadalajara, College of Art, Architecture and Design Planning and Urbanism
Department, Guadalajara, Jalisco, Mexico. Email: juan.demerutis@cuaad.udg.mx
https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.171

Technology as an Inseparable Element of environment. From this analysis we turn out


the Cognitive Being and the Smart City as looking not so well in relation to the level of
its Expression on the Territory development and power that we have
reached, which, according to the author,
Technological development is a characteristic
makes us akin to gods, with similar powers
that has accompanied humanity throughout
of creation and destruction, but with little
its history. Its origin could be located from
understanding of what to do with that power,
the evolution of man as a cognitive being
in addition to an awfully bad relationship
(Homo sapiens), interpreting technology in
with our habitat and natural environment.
accordance with the definition of the Real
The technological advances which we are
Spanish Academy (Spanish: Real Academia
witnessing are not equally distributed, and
Española or RAE), as the set of theories and
this fact does not assert us as a better species;
techniques that allow the practical use of
on the contrary, according to Harari (2018)
scientific knowledge, as well as the set of
there is great uncertainty regarding the future
industrial instruments and procedures of a
of the H. Sapiens, our species, since it is not
given sector or product (Royal Spanish
clear if we will be able to evolve towards
Academy, RAE 2019).
becoming gifted beings with different
In his transcendental work From Animals consciences and feelings, in comparison with
into Gods: A Brief History of Humankind, the way in which we currently know and
Harari (2018) distinguishes three important understand them or if, by contrast, the use of
revolutions in the history of humanity: the technology will fragment us into increasingly
cognitive revolution that marks the beginning unequal societies, with the predominance of
of history approximately 70,000 years ago; some groups over others.
this is located at the beginning of the era of
This technological, economic, and cultural
the H. sapiens species, when human cultures
development transferred to the physical
emerged. The second is the agricultural
expression of the territory has generated a
revolution, between 12,000 and 5,000 years
current growth model for the city that is one
ago, when some authors place the origin of
of accelerated, disconnected, and dispersed
the first human settlements as villages and
urbanization. It is a model where the use of
towns in Neolithic societies that lived closely
private vehicles prevails, and where public
with the Nature-Mother Goddess (Eisler,
transport expenses are high due to the great
1998, Mumford, 1961). And the third is the
distances traveled to access sources of
scientific revolution that began only 500
employment, education, and other basic and
years ago, which gave rise to the Age of
recreational services. There is a poor
Enlightenment and the industrial revolutions
distribution and coverage of infrastructure
of the 18th century to the present day.
and equipment services, as well as a
These three revolutions have brought proclivity towards a horizontal housing
significant changes in the way we humans model which does not help to generate
have developed as a species, and to our sustainable living conditions. This translates
relationship with other organisms and the into a state of inequality, as there is a lack of

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access to opportunities; a situation whose polluted environments as premises of care to


underlying problem is on the rise and that improve the quality of life (Batty et.al, 2012,
mainly affects the lower-income population, p. 483).
who are typically excluded and pushed
Smart cities are typically defined as those
towards the outskirts of the cities where land
which rely on the use of information tools
for housing is affordable.
and communication technologies (ICTs) for
Castells (2010) establishes among the smarter, and therefore, more efficient
characteristics that delineate the causes of performance of resources, which translates
spatial dynamics and, therefore, the urban into energy savings, and improvements in
form of the global network society, the close services and in the overall quality of life,
interaction between the technological while reducing adverse impacts on the
transformation of society and the evolution of environment (Shaheen & Cohen, 2017).
its spatial form. In other words, technology
Albino, Berardi and Dangelico (2015) trace
not as a determining factor, but rather as a
the use of the term smart city for the first
facilitator of new social structures. So, what
time in the 90s, related to the employment of
should be the form in the future? One that
new ICTs. This concept has become popular
reflects a more democratic society, in Scott's
in scientific literature and in international
terms (2014).
politics, where it is recognized that cities are
Mostly in the last decade, the rise of key elements for the future, due to their role
information and communication technologies in social and economic aspects, but the
(ICTs) has permeated all the scenarios of serious impact that they have generated on
daily life in order to make the city more the environment is also acknowledged. This
efficient, to the point that now there is an poor environmental performance is one of the
“abuse” of the term ‘Smart City’. pillars that support the arguments for smart
growth, so that cities develop new ways to
The connotation of the intelligent city is not
meet these challenges. In this sense, the
new. In the past, there have been different
concept of smart city is not limited only to
approaches that address the study of the city
the application of technologies in the cities,
as an organic entity, which is structured from
but it takes it to other areas, which has
networks and flows (Batty, 2013). According
created confusion among public policy
to Mitchell (2007), at the beginning of the
makers seeking to make their cities smarter.
21st century and derived from a series of
technological and communication advances, According to Peter Hall and Kathy Pain
cities have been made up of a series of (cited in Castells, 2010), in the knowledge
subsystems similar to living organisms that economy “advanced or specialized” services
allow them to respond as such, in an are the dynamo of urban growth, wealth and
intelligently coordinated manner. According power, and it is one of the reasons that
to the author, the intelligence in the cities explain the phenomenon of metropolitan
resides in the effective combination of digital concentration. These types of services are
telecommunications and transport mainly concentrated in the urban centrality
infrastructure (nervous system), the and in well-connected areas. In other words,
embedded intelligence which is present the phenomenon of intra-urban inequality is
everywhere (brains), the sensors (sensory present in both developed and developing
organs), and the software (knowledge and economies, this regarding who can take
cognitive competence). advantage of the services and the knowledge
economy.
However, the concept of the smart city
surfaced just at the beginning of the
A New Transdisciplinary Urban Science
millennium as a merging of ideas about how
information and communication technologies After a literature review on smart cities, other
could improve the functioning of cities, to apparently related concepts and disciplines
make them more efficient and competitive, appear, such as city science, urban science,
and to provide new ways to address the computer science or urban analytics, among
issues of poverty, social deprivation and others. This is noteworthy, as it indicates that

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there is no consensus in the definition of approach of the socio-eco-technological


smart cities, and neither is there a conceptual systems (SETs) (McPhearson et al, 2016;
framework for these new meanings. Van der Leer et al, 2019, cited in Gómez
However, the following examination will et.al, 2019). In this approach, the social
attempt to make an initial approach and to subsystem encompasses the economic,
establish distinctions with respect to what is political, cultural, and biosocial socio-
referred to as the smart city. systems, whose components are
fundamentally individuals or human
In the City Science perspective, cities are
organizations related to each other and to the
considered as complex systems of systems
other subsystems through actions,
which are not predictable and which are
interactions, and transactions. The
based on the understanding of these systems
ecological-territorial subsystem, in turn,
of networks and flows that interact with the
includes natural systems that act in two ways,
objects within them (Siller, 2015). To study
since they function as a territorial support or
the city, other sciences are required, such as
hinterland of the other subsystems, enabling
social physics, urban economics, transport
conditions for their production and
theory, and urban geography. Additionally,
reproduction, and at the same time they are
the analysis relies on technological tools such
intervened by social agents. And the third,
as simulation methods to predict interactions
the techno-infrastructural subsystem, or the
between variables and flows, and thereby
collection of systems made up of human
help in future decision-making concerning
agents and devices (transport systems, energy
the cities (Batty, 2013).
generation and distribution, urban
One of the distinctions made by the management and governance, equipment,
proponents of city science with respect to the etc.) that mediates between the previous
conceptualization of the smart city, is that in subsystems in terms of transformation
the use of technological and information (production, manufacturing or execution of
tools it is attempted to understand the needs processes) or control, such as organization,
and habitual dynamics of the population, management and regulation of processes and
thereby identifying urban issues to generate systems.
impact simulation instruments that help
Consequently, the city science promotes the
consensus decision-making, involving more
scientific interdisciplinarity destined to the
actors (e.g., citizens), and contributing to
generation and application of knowledge
achieve more humane cities.
along with the technological
The science of the city is proposed as a interdisciplinarity destined for cognitive
structural construction towards the interventions; that is, it involves both the
transdisciplinary vision to understand urban hybridization of disciplines directed to basic
phenomena as a complex object, as is the and applied research, and the fusion of
case of the city (Gómez et.al, 2019). It is technological disciplines oriented to the
about shifting from an interdisciplinary design of systems and processes, among
quality, in which a group of disciplines or which urban administration stands out
disciplinary approaches participate, towards a (Gómez, et al. 2019).
trans-disciplinary fusion, due to the hybrid
Although some similarities and differences
character of the disciplinary framework that
are perceived in the different definitions of
makes up the science of cities (Wilson 2012,
concepts, the proponents of the new city
Batty, 2013, cited in Gómez et.al, 2019). This
science make some distinctions with respect
encompasses from the theories that build the
to smart cities, to direct this approach
complexity paradigm (chaos theory, systems
towards the study of urban issues as network
theory, among others) to recognized
systems and interconnected flows (Batty,
disciplines such as social physics, urban
2013). However, what the proponents of
economics, urban sociology, among others
smart cities and the city science agree on, is
(Batty, 2013).
that both approaches seek to improve the
This conception of the city as a complex conditions of habitability in the city in a more
system is consistent with the interdisciplinary efficient way. That is, improvements in

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infrastructure, provision of services,  New York University’s Center for


mobility, even the production of more Urban Science and Progress (CUSP).
inclusive societies. Established in 2012, CUSP is an
Among the applied research centers in the interdisciplinary research center
city science field (also called urban science which applies the STEM approach in
or smart city science) where new the service of urban communities by
technologies for spatial and urban analysis employing data-driven solutions and
are being developed, the following stand out: technology for complex urban
problems. It is an academic
 The City Science research group of collaboration with New York City
the Massachusetts Institute of that seeks to improve urban services,
Technology (City Science-MIT optimize local government decision-
Media Lab, formerly called making processes, create smart urban
Changing Places Group and infrastructures, as well as address
successor to the extinct Smart Cities challenges such as crime,
group that operated from 2003- environmental pollution, and public
2010). This center is geared towards health. The center collects,
the research of new models of urban integrates, and analyzes information
architecture (flexible spaces to live (data) from different agencies to
and work) along with the design of understand and improve urban
personal and autonomous vehicles systems and quality of life. CUSP
that better respond to unique asserts the objective of helping the
individual needs through intelligent cities of the world to be more
personalization. They develop productive, more livable, more
technology intended to understand equitable and resilient; it also states
and respond to human, to oversee the research agenda for
environmental, and market the science of cities. The center
dynamics. They also work on the combines specialists from various
development of autonomous and disciplines in the areas of physics
real-time information systems for and natural sciences; computing and
personal decision-making, as well as data science; social sciences,
interfaces to persuade people to engineering, and other professional
adopt sustainable behaviors. The fields such as politics, design, and
lines of research address three areas: finance (Center for Urban Science
places to live and work (Changing and Progress, 2019).
Places), urban modeling, simulation,
and prediction (City Scope) and  The Bartlett Centre for Advanced
mobility on demand (PEV- Spatial Analysis (CASA) of the
Persuasive Electric Vehicle). This University College of London.
research group has created an Established in 1995 to lead the
international network of development of smart city science, it
collaborations with cities where City focuses on the application of
Science laboratories have been computational models, data
installed, including, but not limited visualization techniques, innovative
to: Andorra, Toronto, Hamburg, sensor technologies, mobile
Shanghai, Taipei, and Aalto. The applications, and urban theory linked
perspective of this group is to to urban systems. The researchers of
develop collaborations in rapidly the center carry out spatial analysis,
growing cities in Latin America, using geographic information
Africa and India in the coming years, systems and other forms of
where the greatest challenges and representation of space and time
impacts of urbanization are expected data. They employ a wide range of
to occur in the future (City Science, methods: from social physics to
Media Lab, 2019). econometrics; along with statistical

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models, which go from augmented  The Urban Analytics Lab at the


reality and hyper-local sensing, to National University of Singapore is
crowdsourced data collection. The an interdepartmental and
approach is multidisciplinary, multidisciplinary research group that
applied to create constructive was established in 2019. They focus
models, visualize big data, and on urban analytics, geographic data
develop new methods for collecting, science, and 3D city modeling. Their
analyzing, and communicating projects are linked to the disciplines
information. At CASA, systems of architecture, urban planning, and
theory and complexity sciences real estate development. For the
constitute the theoretical framework development of their studies they use
for their investigations; visualization infrastructure, geospatial and urban
technologies, computational human computing technology (geomatics,
interaction and data analysis are data standardization, data quality,
employed for the development of machine learning and geographic
projects. This center offers solutions information systems) (Urban
to the problems of resource Analytics Lab, 2019).
efficiency, planning and effective
governance in cities to make them  The Center for Spatial Planning
better places to live. CASA involves Analytics and Visualization of the
researchers from different training Georgia Institute of Technology.
backgrounds such as architects, This Center, previously called the
geographers, mathematicians, Center for Geographic Information
physicists, archaeologists, and Systems, has been dedicated to the
computer scientists (The Bartlett development of geospatial
Center for Advanced Spatial technologies for nearly 20 years. In
Analysis, CASA, 2019). it, the researchers seek to create a
symbiosis between technology and
 The Urban Informatics group in the data management so that public
Queensland University of policies build arguments in the
Technology was founded in 2006. In decision-making phase to carry it out
their work they apply various in an informed way. Their work
established and novel methods of revolves around various disciplines
research with the purpose of such as: transportation, urban
identifying challenges and planning, conservation (land and
opportunities in urban environments. animals), renewable energy, green
They are based on sociocultural, areas, and the environment.
economic, ecological, and
technological spheres. The group  The UN Technology Innovation Labs
collaborates with different individual (UNTILs). They focus on the use of
actors, communities and innovative technology to solve some
organizations from the public, of humanity's most pressing needs,
private and social sectors. The and because they belong to the
objective of their research projects is United Nations, their analyzes are
to study and co-create urban futures always aligned with the Sustainable
that are more livable and equitable, Development Goals (SDGs). Each
ensuring that the results have an laboratory is based on different
impact on the community. The humanitarian themes that are central
researchers of the group come from according to the specific location.
different areas: humanities and social Currently there are four: Egypt,
sciences; design, planning and India, Finland, and Malaysia. Unlike
architecture; human-computer the other research centers of
interaction, information technology academic constitution listed in this
and computer science. section, these laboratories have been
created with the auspices of the

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national governments of each internet service. For this purpose,


headquarters, which must regulate telecommunication networks were
the participation and collaboration of established in public places and spaces such
other actors, such as research centers as schools, health centers, libraries,
and private sector entities (some are community centers or parks at the federal
located in technology and / or state and municipal levels. In that
business hubs) or startups (United administration, 101 thousand sites were
Nations Technology Innovation labs, connected, and in the current government the
2019). name of the program is expected to be
Internet for All (Government of Mexico,
These research centers have in common, to a
2019).
greater or lesser degree, the development of
basic and applied science to urban problems; Nevertheless, the right of access to the
synergy with other sectors or local actors internet is not exercised in an equitable way;
such as governments, civil society, and access inequality responds to issues of
industry; as well as interdisciplinarity. education, income, age, and gender, with
Among their objectives is the search for these differences being more accentuated in
efficiency and equity in cities. However, marginalized groups (Merino, 2017).
except for the recent UN laboratories Although there are no data or studies that
(UNTILs), most of them are located in cities allow evaluating the strategy of Connected
of developed economies where these issues Mexico that sought to reduce the digital
are not comparable to those of the Global divide, the National Survey on Availability
South and Latin America in particular. and Use of Information Technologies in
Households (INEGI, 2019) provides certain
A Science for Rich Cities or to Alleviate guidelines which indicate that these digital
Poverty and Inequality? inequalities are still considerable, although
One of the arguments that the city science progress has been made towards reducing
promoters establish is that not only do new them.
technologies and applications revolutionize In recent years, the world average of people
the way of doing things, facilitate activities with internet access went from 10% in 2000
and improve the productivity of companies, to 50% in 2015, and Mexico was below the
but they also provide greater social inclusion world average until 2013, when it reached a
(Prince & Jolías, 2017). However, are these 43.5% user penetration rate. Merino (2017)
advantages possible for emerging economies concludes that between 2010 and 2015 there
in contexts of scarcity of resources, low was an increase in users and connected
educational level of the population, unmet homes; however, places with less internet
basic needs, insecurity, lack of information, access have yet to see this situation
among other concerns? improved. There continues to be great
There is a great digital divide in Mexico, and inequity in internet access and therefore
to bridge it not only are economic resources knowledge, reflecting the country's economic
required, but changes in our institutions are inequality (Merino, 2017).
also necessary. These changes seem This condition of inequality is related to the
particularly out of date with the rapid urban change that is intertwined with
technological transformations taking place neoliberal, cognitive, and cultural change
worldwide. (Scott, 2011). In the global, neoliberal city,
In the Mexican Constitution, internet access there is a re-stratification of the working
is established as a right so that all citizens are classes: on the one hand, a pole integrated by
well informed. In 2013, during the last the analytical and creative class, and on the
federal administration, the Connected other, a pole made up of a subclass of low-
Mexico government project (in Spanish: wage service workers who perform informal
México Conectado) was launched and often undervalued activities, such as
specifically to address this constitutional maintenance and housework; the number of
right and guarantee access to broadband the latter is increasing. Therefore, there is a
contradiction in what the creative city theory

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pursues: tolerance and redistribution of types of surveys depend on active user


income, which in practice does not occur participation, and therefore are limited,
(Scott, 2014). On the contrary, there are expensive, and with relatively small samples
authors who affirm that there is a risk that, (Chen, et al. 2016). The rapid development of
since there are no mechanisms for mobility technologies and mobile devices has
governments to invest in advanced generated a large amount of ‘passive’
technology that meets the needs of urban information, since the user generates it
growth and its socioeconomic aspects at the involuntarily, simply by means of their cell
city scale, then technology would be a phone, or without intending to use it for
intensifier of social inequalities, remaining utilitarian purposes of inquiry. This
accessible only to the most advantaged information called big data is collected
sectors of the population (Thakuriah et al. through social networks input (Facebook,
2017: 7). Twitter, WhatsApp); cell phones; smart cards
for public transportation; route planners, and
Technological Tools for Urban Analysis traffic data such as Google Maps, TomTom,
As mentioned before, ICT and the Internet of My Drive or Waze. These applications allow
Things (IoT) have been incorporated in all users to calculate travel times and routes
areas of daily life in recent decades, and they through a Global Positioning System. Often,
are present in a large part of economic and to describe mobility, data from bank cards
social activities. In some contexts, not only and other sensors and devices are also
have processes or user experience been employed. There are some applications with
improved, but activities themselves have greater contribution potential due to the type
been completely modified. Artificial of information they collect; for example, the
intelligence, robotics and big data also have information from taxis show patterns of
several applications in the areas of medicine, drivers, rather than of users; smart cards yield
mobility (e.g., electric and autonomous data on the use of transport modes, and the
vehicles), education, agriculture, and 3D use of cell phones provides greater precision
printing. This has been called the 4th of spatial and temporal information than that
Revolution or the Exponential Era, and many of the social networks (Chen, et al, 2016;
industries are expected to be transformed or IDB, 2019).
to disappear in the next 5-10 years, due to the Big data provides information for better
speed and magnitude of the changes planning, and therefore represents a
generated and to come -among the dissolved particularly important input to improve
companies is Kodak, as a consequence of the transportation infrastructure and services. It
emergence of digital cameras. Furthermore, can help analyze different travel behaviors,
new business models have appeared, such as among which gender issues stand out (e.g.,
Uber and Airbnb, which are developed from how women move in transport, issues of
a software which unites all the processes of insecurity, harassment, lack of access) which
the activity, but the company that controls are identified and can be improved. The
them does not invest in vehicles or properties availability of the data helps understand how
(Gollub, 2016). users move and thus assists in making
In the area of mobility and transportation, conscious decisions on more efficient
research on human behavior, and the mobility systems (IDB, 2019).
relationship between these behaviors or Digital intelligence provides real-time
patterns are affected by individual conditions. information for decision-making, which
This research has been carried out in the last saves time and costs. It has recently started to
four decades, due to the interest in predicting be applied to informal settlements, where
the future demand of large investment official institutions do not collect
projects in transportation. For that purpose, information. Consequently, digital
instruments have been used to collect intelligence is an innovative tool of which
information, such as travel surveys (Origin- users are a central part of the system, as they
Destination surveys or O-D) that can be are the generators of information inputs
accompanied by GPS applications. These (IDB, 2019). The lack of data on informal

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settlements has been a problem in Mexico for Concluding remarks


many years, since the Institute of Statistics,
City science as a new discipline needs to
Geography and Informatics (INEGI, in its
establish a common theoretical framework at
Spanish acronym) does not record the
an international level which avoids
housing and land uses that take place on
generating different interpretations and
uneven ground, which is incomprehensible
misunderstandings in its conception as a
for a country in which it is considered that
socio-ecological-technological
about 50% of the urban area of the country
transdiscipline. It must be distinguished from
has been developed from irregular
other concepts and fields with which it is
settlements.
related: smart cities, urban science, urban
Hence, technological trends focus on the use analytics, and urban computing.
of artificial intelligence; robotics is used in
The most influential schools of thought are
manufacturing processes and other activities
situated in cities of developed countries, and
such as agriculture or housework; big data
although they have produced studies about
allows to assume trends, make decisions or
their developing counterparts, their work is
develop policies in the public and private
focused on their countries of origin. The MIT
sectors; the IoT is present in everything we
City Science research group and CASA stand
do, because objects can be interconnected
out for their achievements, under the
with each other through sensors and
leadership of Kent Larson (formerly of
machines that generate all kinds of
William Mitchell) and of Michael Batty,
information to measure, monitor or operate
respectively.
devices remotely, as it is happening with
autonomous vehicles, which will play a In the research centers reviewed in this study,
leading role in the transport of individuals the discourse on the use of technology to
and goods, as well as in the occupation of achieve more equitable cities is observed as a
public space. Among the expected impacts of constant. Nevertheless, there is scarce
their use is the decrease in accidents and the evidence on concrete applications to address
consequent transformation of insurance the most pressing problems of urbanization in
businesses. Another substantial change is Mexican cities, this, in part, because these
taking place in energy systems, which will centers are located in countries with
allow, for example, the desalination of water developed economies which feature different
at significantly low costs and the issues from the ones afflicting cities of
virtualization of many services such as emerging economies.
education, commerce and even currency. In Latin America and the Global South in
These technological changes can transform general, there are still few examples of public
the economic and social models of today policy programs that apply technology for the
(Prince and Jolías, 2017). analysis and resolution of population issues;
The evolution of technology is manifested in for the most part they focus on surveillance
the activities of people's daily lives, with (cameras in public spaces) and on obtaining
alterations that generate welfare. However, biometric data for the registration of people
these changes -certainly increasingly rapid, (e.g., voter credentials from the National
are not assimilated by vulnerable groups Electoral Institute in Mexico), but there are
because, since they have limited resources, few palpable efforts to improve the quality of
they cannot adapt to and benefit from them; life of the communities. The latter should be
which means that far from improving the the orientation of city science research
comprehensive situation of a community, projects in the region.
they intensify existing inequalities. In summary, the challenge of technological
Consequently, it is necessary to build public change in the context of developing
policies that allow these vulnerable groups to economies is linked to regulatory and
improve their conditions and thus move to institutional transformations. It involves new
the next phases, reducing the prevailing business models and public policies that
inequality gaps. generate incentives for technological
development and its equitable access by the

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different population groups. In this regard, at risk in health and financial matters
three challenges are presented for the (Bergamini, 2020).
development of a city science in Latin
We have approximately 70 thousand years of
American cities: to generate a theoretical
inhabiting the earth and of conceiving
framework of reference for city science in the
ourselves as cognitive beings, but this quality
region, to utilize the limited resources
does not make us better than our primate
existing in the cities in an efficient manner,
ancestors; we have reached exponential
and to dedicate technology to a different use
degrees of technological development, which
from that which the state has destined it to:
leave us one step away from creating beings
surveillance and control of the citizens.
that are potentially more intelligent than us;
The current pandemic caused by COVID-19 however, we have not helped ourselves
is demonstrating how adaptation to new ways towards achieving a society that is more
of life and work through the use of equitable and more respectful of our
technology is relatively easier for certain environment. It is time that we accomplish it
socioeconomic groups in the population, and through technology, through the science of
how, in contrast, it is affecting more the city.
vulnerable groups that are intrinsically more

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Revista de Morfologia Urbana (2020) 8(1): e00171en Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
Big Data e Urban Analytics à brasileira: questões inerentes a um país
profundamente desigual
Flávia da Fonseca Feitosa
Universidade Federal do ABC, Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas,
Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território, São Bernardo do Campo, SP,
Brasil. Email: flavia.feitosa@ufabc.edu.br
https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.141

A crescente presença das Tecnologias da trajetória ascendente, tendo o termo data


Informação e Comunicação (TICs) no science, inclusive, despertado mais interesse
cotidiano dos indivíduos vem provocando do que big data desde 2018.
transformações profundas na sociedade,
Estaria o entusiasmo com data science e data
permeadas por novas formas de interação
analytics associado a novas roupagens para
baseadas na intensa produção e uso de
técnicas já estabelecidas em análise de
informações. Numa sociedade na qual a
dados? Em parte. Cabe, entretanto,
informação é matéria-prima essencial
reconhecer que os desafios inerentes à análise
(Castells, 1999), o termo big data, ainda que
dos dados produzidos nos dias atuais, cada
associado a discursos frequentemente vagos e
vez mais volumosos e complexos, vêm
fragmentados, assumiu papel de destaque no
atribuindo a esses termos um significado
âmbito empresarial, governamental e
fortemente associado à interdisciplinaridade,
acadêmico. Big data remete, por si, à questão
que combina campos como os da
dos grandes volumes de dados estruturados e
matemática, da estatística e da ciência da
não estruturados constantemente produzidos
computação.
na sociedade da informação.
No campo específico do planejamento e
Evidentemente, o potencial do big data só é
gestão urbana, os termos smart cities e urban
atingido quando associado a processos que
analytics ganharam destaque, embora o
convertam grandes volumes de dados
primeiro venha despertando ceticismo no
variados e velozes em informações
meio acadêmico da área de planejamento.
relevantes, capazes de subsidiar tomadas de
Söderström et al. (2014) destacam como o
decisão. Tais processos demandam avanços
conceito de smart cities foi mobilizado em
não apenas no gerenciamento dos dados, mas
narrativas delineadas por grandes
também nas técnicas de análise. Consulta
corporações de tecnologia da informação
realizada na plataforma Google Trends
(TI). Para os autores, tais narrativas
revelou que o interesse mundial pelo termo
concebem a cidade como um sistema de
big data, que vinha em ascendência desde o
sistemas e reciclam um discurso utópico
início da década de 2010, atingiu certa
voltado a apontar patologias urbanas bem
estabilidade a partir de 2017 (Figura 1).
como sua “cura”, que, por sua vez, envolve
Concomitantemente, termos como data
altos investimentos em TI e fortalece a
science e data analytics permanecem em
posição dessas corporações no mercado.

Figura 1. Interesse pelos termos big data, data science e data analytics segundo consultas realizadas na
plataforma Google no período de 2004 a 2020 (fonte: Google Trends, 02/03/2020).

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Perspetivas 2/6

Em todo caso, independente das críticas É relevante que essa reflexão seja realizada
relacionadas ao caráter comercial, as também em relação ao contexto brasileiro. A
iniciativas smart permanecem, na prática, chamada “revolução dos dados” é perceptível
mais associadas ao gerenciamento de em nossas cidades. Mas como ela vem
serviços urbanos e a demandas de curto ocorrendo? Qual sua abrangência? De que
prazo. forma vem avançando rumo a uma melhor
compreensão e planejamento das nossas
A Urban analytics, por sua vez, vem
áreas urbanas? Como pode contribuir para
despontando como um campo emergente no
entender e tratar de questões cruciais de
ambiente acadêmico, fortemente associado a
nossa realidade, dentre as quais se destacam
pesquisas que promovam olhares inovadores
as acentuadas desigualdades em suas
sobre fenômenos e dinâmicas urbanas. O
múltiplas dimensões?
entusiasmo reflete-se no surgimento recente
de inúmeros programas de pós-graduação em
Big data e Urban Analytics nas cidades
urban analytics no Reino Unido (University
brasileiras: novas formas de pensar o
of Glasgow, University College London,
urbano? Qual urbano?
University of Warwick, Manchester
Metropolitan University), Estados Unidos O Brasil também tem participado com
(New York University, Northeastern interesse do debate em torno das
University) e Hong Kong (University of transformações promovidas pelas TICs, bem
Hong Kong). como as possibilidades do big data e termos
relacionados. Na cidade do Rio de Janeiro,
Goodchild, em citação incluída nas páginas
por exemplo, o ideal comercial de
iniciais do livro Urban Analytics de
smartificação de cidades alcançou um de
Singleton e colegas, relaciona o campo a uma
seus maiores feitos com a construção do
nova modalidade de pesquisa urbana, que
Centro de Operações Rio (COR). O COR
“explora os novos vastos recursos de dados
representa um exemplo de solução smart na
que estão se tornando disponíveis, nas mídias
qual informações em tempo real,
sociais, crowdsourcing e redes de sensores; e
provenientes de câmeras e sensores sobre as
utiliza o poder sem precedentes da atual
condições de vários serviços e infraestruturas
tecnologia computacional” (Singleton et al.,
urbanas, são utilizadas para o monitoramento
2018, sem página, tradução nossa). Batty
e otimização do funcionamento da cidade,
(2019), entretanto, flexibiliza a relação entre
bem como emissão de alertas e deflagração
urban analytics e big data, afirmando haver
de protocolos de emergência em situações
espaço para buscar novos sentidos e formas
críticas. As ações de monitoramento e gestão
de explorar dados que não são volumosos e
de serviços são complementadas por
nem gerados em tempo real (small data). O
iniciativas voltadas à comunicação com o
autor flexibiliza também a própria noção de
público em geral, que vão desde uma sala
big data, ao sugerir que dados tradicionais,
reservada à imprensa até aplicativos com
coletados por meio de questionários, podem
informações sobre previsão do tempo,
ser tratados como big data sob certas
transporte e trânsito.
condições, como, por exemplo, em forma
desagregada ou combinados com outros Enaltecimentos e críticas envolvendo as mais
dados (Batty, 2016; 2019). distintas perspectivas têm sido realizados em
relação à experiência. Cabe, entretanto,
Para Batty (2019), a questão-chave a ser
salientar uma limitação relevante relacionada
tratada pelo campo de urban analytics, a qual
ao tema aqui discutido: a excessiva ênfase ao
representa o grande desafio da área, consiste
monitoramento, planejamento e ações de
em avançar para além da análise de dados em
curto prazo.
si, rumo à construção de novas teorias
urbanas – ou nova ciência da cidade – e Trata-se de uma observação que não se
estratégias para aprimorar o planejamento restringe à realidade do COR e do Rio de
das cidades. Esse processo deverá, sim, Janeiro, tendo sido pertinente a inúmeros
incluir os novos dados, bem como os outros contextos. Para Batty (2019), o avanço
modelos e métodos pesquisados sob a rubrica do big data tem, de fato, promovido análises
da urban analytics, mas sempre servindo de de curto prazo sobre como as cidades
base para nos auxiliar a entender, explicar e funcionam e podem ser gerenciadas, em
tratar grandes questões contemporâneas detrimento de um planejamento estratégico
(Batty, 2019). de longo prazo. O autor afirma, entretanto,
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Perspetivas 3/6

que esses dados podem se tornar fontes de possível avaliar questões como: considerando
informação para qualquer horizonte de distintas escalas temporais (dia/noite, meses e
tempo, desde que considerados períodos anos), como o perfil das ocorrências policiais
muito mais longos de tempo. vem se modificando territorialmente ao longo
do tempo? De que forma vem ocorrendo o
No caso específico do COR, a predominância
atendimento por parte do poder público?
de uma visão de curto prazo reflete-se
Como essas dinâmicas relacionam-se com a
também nas restrições existentes para
evolução de indicadores socioeconômicos,
armazenamento dos dados, realizado por
com as transformações na ocupação do
tempo limitado devido ao grande volume de
território (perfil sociodemográfico, uso do
informações gerado. A incapacidade de
solo etc.) e com o histórico das políticas de
armazenar e sistematizar os dados produzidos
uso e ocupação do solo, mobilidade,
por longos períodos de tempo restringe
educação, saúde e segurança? Para quais
estudos futuros voltados à análise de longas
cenários e desafios devemos nos preparar e
séries temporais e desperdiça o real potencial
planejar?
do big data e urban analytics para um avanço
efetivo na compreensão das dinâmicas de De maneira geral, a ampla disponibilização
nossas cidades e para o planejamento de dos big data - mais especificamente, a
médio e longo prazo. conversão de big data em open data -
representa uma questão-chave e urgente a ser
Complementarmente, devemos ressaltar a
tratada. Embora, legalmente, os dados
relevância de consolidação de uma política
governamentais sejam públicos, sabe-se que,
efetiva de abertura dos dados para fins de
na prática, há muito a se avançar na
inovação, seja no âmbito acadêmico,
efetivação de políticas de disponibilização.
governamental ou da iniciativa privada. Tal
política envolve estabelecer uma participação Cabe ressaltar, ainda, que parcela
cidadã não apenas na produção e significativa dos grandes dados gerados na
compartilhamento de dados, mas também em atualidade não estão sob domínio de
sua apropriação e utilização de forma ativa. instituições públicas, mas sim privadas. O
Algumas iniciativas nesse sentido foram aumento da relevância dos big data tendem a
realizadas, incluindo hackatons, living labs e, aumentar o protagonismo da iniciativa
mais recentemente, o lançamento do Projeto privada na produção de dados, o que nos leva
labGov.RIO, que conta com o apoio do COR, a maiores dificuldades de abertura dos dados
e prevê a construção de um centro de e incertezas sobre as finalidades dos usos dos
inovação voltado para empreendedores, mesmos. A abertura dos big data representa
pesquisadores, desenvolvedores e um passo fundamental para compartilhar o
investidores na área de tecnologia e poder atribuído aos detentores de dados e
inovação. informações, o que, por conseguinte, também
implica na democratização e potencialização
Cabe verificar, entretanto, como e se essas
de seu uso.
iniciativas vêm atuando positivamente na
descentralização do “pensar a cidade” para Outro problema recorrente, também
fins de planejamento. É fundamental que se relacionado à disponibilização dos big data,
construam oportunidades de potencializar o diz respeito à fragmentação e
retorno dos investimentos públicos realizados descontinuidade de sua cobertura,
na construção e manutenção desse aparato frequentemente restrita a limites político-
tecnológico na forma de novos administrativos. Assim como a infraestrutura
conhecimentos sobre as dinâmicas e padrões do COR, digna de países desenvolvidos,
da cidade bem como efetivas avaliações das restringe-se ao Município do Rio de Janeiro,
ações públicas e seus reflexos sobre a cidade. muitos dos novos dados disponibilizados não
Assim, será possível subsidiar a elaboração permitem uma análise do espaço regional ou
de planos e políticas urbanas bem informadas mesmo do espaço intraurbano (Villaça,
e com horizontes para além do curto prazo. 1998), marcado pelos deslocamentos
cotidianos de pessoas, seja como força de
Inúmeras questões intersetoriais poderiam ser
trabalho, seja como consumidores.
avaliadas a partir do acesso a séries
temporais dos dados produzidos pelo COR. Na Região Metropolitana de São Paulo, por
Partindo de uma perspectiva voltada à exemplo, os avanços na disponibilização de
segurança pública, por exemplo, seria dados para estudos de mobilidade e

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Perspetivas 4/6

acessibilidade concentram-se principalmente empresas privadas; bem como abrangência


no Município de São Paulo. Dados de geográfica fragmentada e comumente restrita
transporte público no formato General a limites político administrativos. Entretanto,
Transit Feed Specification (GTFS ), por diante das profundas desigualdades de um
exemplo, estão disponíveis apenas para a país como o Brasil, em suas distintas
capital e algumas linhas metropolitanas de dimensões e escalas, esse debate merece
ônibus, mas não para as linhas locais dos protagonismo.
demais municípios que compõem a região
Estaríamos contribuindo para acentuar as
metropolitana. Esse fato induz a uma
disparidades entre aqueles espaços que
concentração de estudos voltados para apenas
Milton Santos retratou como luminosos e
uma porção da metrópole - a mais
opacos (Santos, 1996)? Estaríamos voltando
privilegiada - e inviabiliza análises que
nosso olhar a determinados mercados que
explorem o potencial dos novos dados para
excluem boa parte da sociedade? Estaríamos
avançar no entendimento e planejamento da
contribuindo para tornar invisíveis aqueles
mobilidade na metrópole como um todo.
que mais precisam de visibilidade?
Se tais desigualdades de informações são Estaríamos tentados a voltar nossas atenções
observadas no interior da maior e mais rica a problemas que os novos dados e técnicas
região metropolitana do país, o que dizer analíticas a eles associados permitem
sobre as cidades mais afastadas dos grandes explorar, em detrimento de questões mais
centros? Essa questão é particularmente cruciais para o bem estar da sociedade?
relevante em um Brasil de tantos “Brasis”,
muitos deles pouco conhecidos, e que já O papel dos dados tradicionais na era do
tradicionalmente desenha suas políticas a big data
partir da perspectiva dos grandes centros. Em 2015, o Conselho da Agenda Global do
O entusiasmo diante dos novos dados tende a Fórum Econômico Mundial sobre o Futuro
motivar pesquisas restritas ao tipo de dado do Software e da Sociedade divulgou uma
disponível e às regiões onde estão pesquisa realizada com cerca 800 líderes
disponíveis, que não necessariamente setoriais a respeito de 21 pontos de inflexão
dialogam com uma necessidade ou problema que deverão ser proporcionados por
estabelecido a priori. Tal debate nos leva a mudanças tecnológicas até 2025. Dentre
refletir sobre limitações práticas que esses pontos de inflexão, chama atenção o
enfrentamos na utilização do big data e que trata do “primeiro governo a substituir
urban analytics para a compreensão da seu censo por fontes de big data”. A pesquisa
natureza do urbano no nosso país. Afinal, revela que 83% dos entrevistados
urban analytics para qual urbano? acreditavam que isso ocorreria antes de 2025
(World Economic Forum, 2015).
A visão de urbano, assim como de sociedade,
implícita no big data é necessariamente Esse resultado ilustra como a discussão sobre
restrita. Conforme ressalta Shearmur (2015), o papel dos levantamentos tradicionais na era
ao lidarmos com big data não estamos do big data frequentemente tem assumido
tratando da sociedade, mas de usuários e contornos que induzem à diminuição de sua
mercados - os usuários de twitter ou importância ou mesmo sua extinção.
facebook, usuários de transporte coletivo, No decorrer de 2019, o Brasil assistiu a um
motoristas conectados a aplicativos de intenso debate sobre os cortes orçamentários
navegação por GPS, clientes de do censo demográfico do país. De maneira
concessionárias de telecomunicações, geral, o Governo Federal insistiu em
energia, água e esgoto etc. São dados discursos voltados à desvalorização dos
tendenciosos por natureza, que não dizem levantamentos tradicionais e desqualificação
respeito às pessoas que estão alheias aos das instituições que os produzem. No caso
mercados e atividades específicas que estão específico do censo, as justificativas dos
sendo rastreadas. defensores da redução do orçamento e do
É certo que também os países desenvolvidos questionário a ser aplicado variavam.
são afetados pelas questões aqui levantadas: Enquanto a frase “quem pergunta demais
amostragem enviesada, com visão restrita a descobre o que não quer”, proferida pelo
usuários e mercados; acesso ainda limitado Ministro da Economia, escancarava o
aos dados, frequentemente sob domínio de descomprometimento com a realidade

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Perspetivas 5/6

brasileira e com a elaboração de políticas As fontes de big data abrem possibilidades


públicas bem informadas, justificativas para explorarmos novos padrões e dinâmicas
aparentemente mais técnicas focavam no big até então desconhecidos, mas ainda são
data e registros municipais como formas dados de abrangência restrita e tendenciosos
alternativas de coleta de informações. por natureza. É importante associá-los,
portanto, a dados levantados por meio de
Como resultado, foram suprimidas do censo
rigoroso planejamento e desenho amostral,
demográfico 2020 questões relacionadas ao
tais como o censo demográfico.
custo da moradia, rendimento, emigração,
bem como acesso a serviços e posse de bens. Além de ampla cobertura do território, o
A supressão das questões foi efetuada às censo demográfico dispõe de um rico
vésperas da realização do levantamento, sem espectro de variáveis, estabelecido a partir de
qualquer debate com a comunidade amplo debate com a comunidade de usuários,
interessada ou mesmo justificativa para a com claras definições de conceitos e
seleção dos temas sobre os quais passaremos categorias, e em sintonia com questões
a ter menos informações. relevantes para o país.
Em relação aos argumentos baseados no uso O censo oferece, portanto, uma base
de outras fontes de dados, também não houve confiável para calibração e exploração dos
qualquer esclarecimento sobre como as novos dados, bem como variáveis relevantes
informações suprimidas no censo poderiam que potencializam a interpretação de
ser substituídas. O fato é que não temos resultados. Por outro lado, a análise de alguns
alternativas para suprir, com qualidade, essa fenômenos e dinâmicas tradicionalmente
lacuna. observados por meio dos dados censitários
pode ser conduzida nos períodos
Por exemplo, no caso da variável “custo do
intercensitários com auxílio de dados
aluguel”, utilizada nas estimativas do déficit
alternativos, que são constantemente
habitacional, sabe-se que dados sobre preços
produzidos. Por exemplo, análises sobre
dos imóveis são monitorados constantemente
dinâmicas e tendências relacionadas ao poder
por empresas privadas e utilizados para
de compra dos brasileiros podem combinar
estudos de interesse do mercado imobiliário.
dados censitários, levantados a cada dez
Esses dados, além de privados, são restritos
anos, com dados de consumo de energia
ao mercado imobiliário formal de algumas
elétrica, gerados constantemente.
regiões do país. Sua qualidade costuma ser
muito superior a dos dados municipais que, É fundamental, portanto, um debate sobre o
além de também possuírem abrangência papel dos levantamentos tradicionais na era
restrita, são frequentemente desatualizados e do big data e urban analytics. A exploração
desconectados com a realidade dos de estratégias de integração entre dados
municípios. Municípios estes que, em muitos tradicionais e big data torna-se crucial para
casos, não possuem sequer informações potencializar o uso de ambos em análises que
confiáveis sobre a situação fundiária de boa contribuam para avançar na construção de
parte de seu território. novas teorias urbanas e aprimoramento de
planos e políticas urbanas. Não se pode
Qual seria, portanto, a alternativa à questão
admitir que o entusiasmo com o big data
suprimida no questionário do censo? Diante
subsidie discursos e ações que depreciam e
da inexistência de tal alternativa, resta aos
degeneram a produção de dados sobre o país.
municípios brasileiros ficar às cegas em
Movimentos nessa direção atendem apenas a
relação a uma das mais expressivas
interesses de governos autoritários, avessos à
dimensões do déficit habitacional, o custo
transparência, para os quais dados sobre a
excessivo da moradia, que atingia mais de
realidade do país não passam de um
2,1 milhões de domicílios de baixa renda em
inconveniente.
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Revista de Morfologia Urbana (2020) 8(1): e00141 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
Revolução periférica dos dados em tempos de pandemia global
Rodrigo Firmino,a Debora Piob e Gilberto Vieirac
a
Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Curitiba,
PR, Brasil. Email: rodrigo.firmino@pucpr.br
b
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura / Rede
de ativismo Nossas, Meu Rio, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Email: deboradpio@gmail.com
c
Pesquisador independente, data_labe, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Email: gilberto@datalabe.org
https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.156

“O ator proposto − pensado 19 nas favelas cariocas cresceu mais de 10


literalmente de baixo para cima, vezes em apenas um mês (Barreto, 2020). A
corporificado e territorializado −, “normalidade”, nestes casos, já está pautada,
corresponde, potencialmente, ao há muito tempo, pela dificuldade de acesso a
circuito inferior reconhecido por empregos formais, programas sociais,
Milton Santos, em O Espaço Dividido educação e assistência médica de qualidade,
(1979), para a compreensão íntegra da assim como condições mínimas de
economia urbana. Mas, este ator saneamento básico — incluindo
também corresponde às formas sociais abastecimento regular de água (Souza, 2020),
sobreviventes das sucessivas esgoto e coleta apropriada de lixo. Estima-se
modernizações e às formas mais que sejam 13,5 milhões de pessoas (Nery,
modernas que tiveram, historicamente, 2019) sobrevivendo com até 145 reais
a capacidade de interagir com práticas mensais. No contexto da crise global de
ancestrais, como aquelas produções e enfrentamento à pandemia, uma questão de
comércios em que a negociação saúde, no Brasil, pode fácil e rapidamente
predomina sobre a conquista e a tornar-se uma tragédia sanitária e
destruição do outro. Existe, portanto, humanitária. E nesses casos, dados e
uma vida de relações, resistente e tecnologias digitais compõem diferentes
tenaz, que se opõe à abstração exigida narrativas, indissociáveis dos territórios, e a
pela operação sistêmica da concepção partir de distintos arranjos sociotécnicos.
hegemônica de mercado.”
(Ana Clara Torres Ribeiro, 2005, O vírus e seus modos de existência nos
p.12468) dados
Em situações de exceção, há uma tendência
de maior receptividade a experimentações
Em “Território Usado e Humanismo rápidas e acríticas com todos os tipos de
Concreto: o Mercado Socialmente inovações técnicas. A fé na ciência e na
Necessário”, Ana Clara Torres Ribeiro tecnologia aumentam, e todos tornam-se
(2005) exalta a centralidade do território na impacientes por respostas rápidas e soluções
busca por novos horizontes de resistência. Na definitivas para a crise ou para criar
verdade, ao lado de Milton Santos, Ana Clara amenidades que forneçam uma sensação
já nos alertava, pelo menos desde os anos temporária de normalidade. Nesse cenário de
1980, para a importância de compreendermos desespero, também surgem posições
a força do “território usado” como campo de negacionistas e irresponsáveis no tratamento
construção de utopias sob a ideia de ação da crise: tratar a doença como uma
política. Em um país marcado pela injustiça e “gripezinha” (Congresso em Foco, 2020),
desigualdade social, não é novidade que o culpabilizar o governo chinês pela suposta
novo coronavírus aumente exponencialmente fabricação do vírus como parte de um plano
os desafios para famílias que vivem em de dominação comunista global, elevar a
territórios populares como favelas, aldeias hidroxicloroquina (Reuters, 2020) e o
indígenas, quilombos e assentamentos. Dados vermífugo Annita (Schelp, 2020) como
do município do Rio de Janeiro de maio de drogas salvadoras, ou definir o “isolamento
2020 (conhecidamente subnotificados) vertical” (Sanches, 2020) como estratégia
indicam que o número de mortes por Covid- econômica, para citar apenas alguns

Revista de Morfologia Urbana (2020) 8(1): e00156 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
Perspetivas 2/7

exemplos mais recentes. Surgem, então, cidade, há milhares de pessoas “não


ondas diárias de artigos distorcidos, áudios contabilizadas”, ou seja, invisíveis.
inventados, notícias manipuladas. A
A pandemia escancarou essa faceta da
estratégia de disseminar desinformação
invisibilização pelos dados. Aos coletivos e
através das mídias sociais é ferramenta
grupos de favelas, que foram os primeiros a
poderosa desde os últimos pleitos pelo
se organizar para oferecer uma resposta
mundo. Já não é mais segredo que as eleições
rápida à pandemia, também coube a
de 2018 no Brasil foram definidas pelos
responsabilidade de levantar dados
grupos no WhatsApp com altas doses de
demográficos (inexistentes em meios
mentiras e manipulações criminosas. É
oficiais) para conseguir fazer a distribuição
trágico e curioso ver como uma estratégia de
de doações como cestas básicas, água e kits
marketing desenhada para a disputa eleitoral
de higiene e limpeza. Os relatos dos
ganhou sobrevida em uma nova roupagem,
integrantes desses coletivos de favela dão
passando a ser empregada como ação
conta que muitos moradores que apareceram
sistemática de governo, com estrutura técnica
pedindo ajuda sequer tinham documentos ou
e administrativa reforçada e gabinete no
eram cobertos por qualquer tipo de
Palácio do Planalto (Rudnitzki et al., 2020).
assistência, como o Bolsa Família por
Não seria exagero dizer que o WhatsApp se
exemplo. Assim, além de conseguir recursos
tornou ferramenta de governo.
através de financiamentos coletivos ou
É importante considerar ainda os riscos pedidos de doação no comércio local,
iminentes de ocultação e invisibilização dos também foi necessário criar estratégias para
dados públicos sobre a contaminação e as cadastrar pessoas, torná-las visíveis e atender
mortes em consequência da Covid-19. Para a demanda por alimentos.
além da provisão insuficiente de testes e da
Na Vila Kennedy, Rio de Janeiro, um dos
consequente subnotificação de casos,
coletivos que está à frente da arrecadação
mudanças na metodologia de contagem,
desenvolveu uma base de dados simples para
exclusão de dados, barreiras ao acesso, atraso
organizar informações sobre as condições em
na liberação das informações consolidadas,
que vivem os atendidos. A base tem noventa
dentre outras atitudes do governo federal,
famílias cadastradas, e diversas informações
evidencia-se a centralidade dos dados na vida
relevantes: 80% delas são chefiadas por
prática dos cidadãos, principalmente os que
mulheres; apenas 40% têm acesso à internet
vivem em periferias e comunidades
em casa; e apenas uma minoria conseguiu
vulnerabilizadas, mas também no centro de
acesso ao auxílio emergencial1. Em busca
decisões políticas que expõem os projetos de
deste tipo informação em canais oficiais,
poder em disputa.
como o Instituto Pereira Passos, nota-se que a
Coleta e manipulação de dados são ações Vila Kennedy sequer é considerada um bairro
políticas, a partir das quais se determinam para a Prefeitura do Rio de Janeiro. Outro
políticas públicas, prioridades de acesso, e a exemplo que ilustra a situação é que a
própria existência de populações nos Secretaria Municipal de Saúde contabilizou
territórios urbanos. A falta de dados os casos de coronavírus do bairro junto com
consolidados sobre as favelas é um problema os de Bangu, tornando inviável a coleta de
histórico, que reflete muito a maneira de informações e medidas específicas para a
fazer política nessas localidades. Afinal, sem Vila Kennedy, que tem aproximadamente
dados consistentes sobre a população, 150 mil habitantes, segundo estimativa das
número de domicílios, informações sobre lideranças locais. Botafogo, localizado na
saneamento ou até mesmo hábitos culturais Zona Sul do Rio e com cerca de 82 mil
locais, torna-se inviável a implementação de habitantes (segundo o IBGE) conta com
políticas públicas. Um exemplo é o censo do monitoramento próprio para o bairro. É
IBGE de 2010, que estimava que a favela da unânime entre quem está na linha de frente
Rocinha, considerada a maior do Brasil, tinha da pandemia que a subnotificação não é o
69.161 habitantes, enquanto as entidades único problema grave, mas também a
locais garantem que este número invisibilidade de pessoas que sequer têm um
representaria cerca de metade da quantidade endereço fixo ou CPF, não são atendidas por
real de habitantes (Tabak, 2011). Ou seja, nenhum projeto social e não têm emprego
para órgãos oficiais, responsáveis por grande formal (Souza, 2020). Ou seja, como habitual
parte das decisões importantes sobre a no que se refere à presença do estado e

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serviços públicos nesses territórios, cabe às um próprio, um lugar seguro e racional de


redes de solidariedade organizar, não apenas querer e poder. Em detrimento de uma
a assistência como os próprios dados e estratégia, grupos historicamente
informações sobre a população. empobrecidos, violados e explorados
estabelecem táticas — ações determinadas
O que nos interessa destacar aqui, em
pela ausência de um próprio instituído; uma
contextos de crise, são as “brechas” abertas
espécie de outro lugar que lhes permite
por sujeitos que vivem nesses territórios
mobilidade diante de imposições
usados. Um certo uso intensificado das
hegemônicas (categoricamente determinadas
tecnologias, e mais recentemente de dados,
e construídas por estratégias). Isto é, essa
pode representar também possíveis canais de
lógica pode nos ajudar a entender como as
inovação, informação de qualidade e
táticas inventadas por moradores de favelas e
solidariedade. Logo que a pandemia se
periferias no contexto da pandemia do novo
tornou uma realidade no Brasil, muitos
coronavírus (mas não apenas) representa o
perguntaram “o que vai acontecer quando o
surgimento de um novo tipo de luta cuja
vírus chegar às favelas?” Essas localidades,
centralidade são os usos de tecnologias
que historicamente são vistas pelo poder
digitais e dados. Um movimento narrativo
público sob a ótica da ausência, seguem sem
contra hegemônico, da margem.
receber investimentos que deem conta de
suas especificidades no contexto da crise. Por A necessidade de se “hackear” a cidade (e
isso, moradoras e moradores se organizam subverter a lógica do plano, transgredir o
para, mais uma vez, criar suas próprias projeto) fica cada vez mais evidente,
alternativas. As iniciativas vão desde grupos principalmente a partir das possibilidades de
de informação no WhatsApp a campanhas de conexão, coleta e manipulação de dados,
financiamento coletivo e distribuição de codificação/programação e produção
insumos. Vai ficando evidente que autônoma de conteúdos, dadas pelas
tecnologias como essas são apropriadas de tecnologias da informação e comunicação
formas distintas, em contextos e arranjos desde o final do século XX. A figura do
sociotécnicos com propósitos completamente hacker cívico ganhou popularidade, mas
diferentes. parece haver uma diferenciação fundamental
entre, ao menos, dois tipos de arranjos
Táticas de resistência nas margens sociotécnicos ligados a essa realidade
Muito antes da pandemia, vários grupos já se (Luque-Ayala et al., 2020). Há, por um lado,
organizavam em torno de uma solidariedade o digital como forma de ativismo, ou
em rede, com ações transversais, “intervenções movidas a dados”, na figura
especialmente em territórios clássica dos programadores e participantes de
vulnerabilizados. Essas iniciativas estão hackatons e da cultura maker. Por outro lado,
ligadas a lutas históricas de um ativismo de há o que se pode conceber como o encontro
sobrevivência e por uma necessidade de fazer do digital com formas pré-existentes de
valer — à força, e muitas vezes “hackeando” ativismo, ou “intervenções situadas”. Ou
redes e sistemas de infraestrutura — o direito seja, de um lado, desenvolvem-se aplicativos
de todos à cidade. É assim, por exemplo, que baseados em dados governamentais abertos
muitas áreas periféricas e de favelas lutam, para monitorar, por exemplo, os trajetos dos
há décadas, para conquistar menos que o ônibus, e de outro, estabelecem-se lutas
mínimo em condições sanitárias e de históricas por direitos e infraestruturas
mobilidade. urbanas com o suporte de tecnologias digitais
e o trabalho com dados. É nesta segunda
Para compreender melhor o lugar e possibilidade que parecem surgir algumas
importância dessas ações, fazemos uso de táticas de resistência pela margem, que se
uma diferenciação conceitual proposta por fazem mais evidentes em tempos de crise
Michel de Certeau (1994), que a partir da global generalizada. A disputa de narrativas
observação atenta de práticas sociais pelos dados tornou-se terreno essencial da
estabelece uma distinção entre estratégias e luta por direitos e visibilidade, e o caso de
táticas — formas de agir determinadas pela desaparecimento e manipulação dos dados da
composição social de quem as opera. As Covid-19 pelo governo federal em junho de
estratégias, que segundo Certeau são 2020 (Azevedo, 2020), em uma tentativa de
operadas por sujeitos com altos capitais modificar a percepção da gravidade de sua
políticos, intelectuais e materiais, pressupõe
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inabilidade para lidar com a crise, escancara para orientar os residentes a ficar em casa;
as assimetrias presentes nessa disputa. (3) estabelecer contatos com os meios de
comunicação e autoridades públicas, a fim de
Há inúmeros exemplos. A lista de
tornar visíveis os problemas enfrentados por
transmissão “Coronanews” dispara
esses territórios e monitorar as medidas que
diariamente no WhatsApp checagem de
estão sendo adotadas.
informações falsas que circulam pelos grupos
de família. O grupo “Corona nas Periferias” é
Dados territorializados
uma biblioteca de mídia que reúne serviços e
notícias sobre a pandemia com foco nas Muitas iniciativas evidenciam uma
periferias e favelas. O canal da “Agência preocupação com a visualização das
Mural” distribui, todas as manhãs, um informações e suas formas de espacialização.
podcast curto com relatos de quem vive a Na região metropolitana de Curitiba, o Mapa
quarentena nas “quebradas” de São Paulo. da Solidariedade (iniciativa de pesquisadores
Além dos canais públicos, grupos de da UTFPR, do Centro de Formação Urbano
ativistas, jornalistas, profissionais da saúde, Rural Irmã Araújo e Observatório das
funcionários públicos, vizinhos e parentes se Metrópoles - Curitiba) organiza dados e
organizam para prestar apoio a quem está informações georreferenciadas sobre
mais vulnerável. Desde o começo da vulnerabilidades e ações de resistência à crise
quarentena, no mundo todo, o WhatsApp foi do Covid-19 na periferia (Borges, 2020). O
a mídia social que mais cresceu em tráfego mapa é ferramenta essencial ao dar
de dados, com aumento de uso estimado em visibilidade a um grande número de
40% (Kantar, 2020). iniciativas de pequeno porte e desconhecidas
de boa parte da população, e ao desconstruir
Como já mencionamos, as táticas de
a narrativa de que a periferia é desorganizada
financiamento coletivo multiplicaram-se
e passiva no enfrentamento à pandemia.
rapidamente, quase todos com o mesmo
apelo: arrecadar dinheiro para garantir cestas Diante do apagão de dados que já
básicas, água, produtos de higiene e limpeza, mencionamos, o coletivo Voz das
auxílio transporte para trabalhadores, Comunidades no Rio de Janeiro criou a
logística de entrega de materiais, compra de página Covid-19 nas Favelas,2 um dashboard
EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), atualizado diariamente com dados de
etc. O Meu Rio, organização que desenvolve contágio e morte pelo vírus em quinze
tecnologias e mobilizações para aproximar os favelas da cidade, frequentemente ignoradas
cidadãos da tomada de decisão política, fez o nas narrativas oficiais dos grandes jornais e
esforço de reunir oito coletivos de diferentes emissoras de TV. O interessante é que, além
favelas da região metropolitana (Acari, da Prefeitura e Secretarias de Estado, as
Complexo do Alemão, Complexo da Maré, fontes dos dados contemplam centros
Duque de Caxias, Santa Cruz, Sepetiba, Vila comunitários de saúde e ONGs locais. Pelos
Kennedy e Viradouro) para fazer uma mesmos motivos, em São Paulo, a União de
vaquinha unificada. A organização Núcleos, Associações de Moradores de
arrecadou, até maio de 2020, mais de 200 mil Heliópolis e Região (UNAS), organizou um
reais para distribuir entre os coletivos, e levantamento para mapear os casos de
decidiu que a campanha continuará enquanto contaminação e morte no território da favela,
a pandemia e o cenário de emergência para o qual não existem dados oficiais
permanecer. Neste período já foram minimamente atualizados. O resultado é um
atendidas mais de 1.500 famílias. relatório,3 em constante atualização, com
espacialização dos dados, capaz de fornecer
Política, tecnologia, dados, comunicação,
informações importantes às várias ações da
assistência social e um forte lastro
UNAS nesse território.
territorial/espacial dão o tom em todos esses
movimentos. Nas periferias de grandes No Complexo de favelas da Maré, um bairro
cidades, muitas organizações estão criando com 140 mil habitantes da Zona Norte da
melhores maneiras e ferramentas para ajudar- capital fluminense, o boletim “De olho no
se mutuamente. O #CoronaNaBaixada reúne corona!” é ação central da Redes da Maré,
cerca de 100 organizações na Baixada organização histórica do território que
Fluminense, e suas ações se dividem em três mantém a campanha “A Maré diz não ao
frentes: (1) compartilhar experiências de coronavírus”. A campanha é viabilizada a
solidariedade local; (2) disseminar estratégias partir de articulações com parcerias
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institucionais e pessoas físicas e possibilita, a plataforma urbana situada (intervenção


partir do boletim, a existência de um canal situada) que desafia e transcende as
com os moradores para acolher pautas sobre epistemologias tradicionais e as orientações
acesso a direitos, violações, casos de Covid- políticas associadas aos domínios dos grupos
19 e as condições das políticas públicas no mais comumente associados a hackers
território durante a pandemia. Segundo a cívicos (as intervenções movidas a dados,
terceira edição,4 lançada com dados até o dia citadas anteriormente). Há uma conjunção de
18 de maio, a diferença entre os dados fatores presentes na essência desses casos,
oficiais e os dados do boletim era de 193% que representa um arranjo sociotécnico capaz
em número de casos e de 65% em número de de reunir diversas pautas temáticas
óbitos. Ou seja, enquanto a prefeitura do Rio relacionadas à gestão das cidades e ao
contabilizava 89 casos e 23 óbitos, o boletim território a partir do uso de dados,
contabilizava 261 casos e 38 óbitos no tecnologias digitais, ativismo de mobilização,
Complexo da Maré. conexões em rede com outras organizações, e
construção de narrativas contra-hegemônicas,
Ainda na Maré, o data_labe,5 uma
no sentido de se compreender e dar
organização de mídia, dados e educação
visibilidade aos temas e histórias dos corpos
formada por quinze jovens de diversos
e territórios da margem.
territórios e repertórios, vem desenvolvendo,
desde antes da pandemia, o Cocôzap6 — um O CocôZap é um caso paradigmático nesse
projeto de mapeamento, incidência e sentido. Ao gerar dados a partir dos próprios
participação cidadã sobre saneamento básico moradores e organizar discussões sobre
em favelas. Através de denúncias dos saneamento, desnaturalizando a falta ou
moradores via WhatsApp o projeto mapeia baixa qualidade desses serviços e
violações de direitos sanitários, promove materializando seus componentes, atores,
encontros comunitários e produz reportagens controvérsias, etc., o data_labe promove o
com base em dados públicos e histórias da que é conhecido nos estudos de ciência e
comunidade. O data_labe pode ser entendido tecnologia — em especial na Teoria Ator-
como um desses novos movimentos sociais, Rede (Latour, 2012) — como abertura da
organizados pela juventude a partir de suas caixa-preta dessa infraestrutura básica na
referências conceituais e estéticas que Maré. Esse tipo de ação é fundamental para a
aproximam tecnologia e consciência de disputa de posição e poder na política de
classe; empoderamento racial e políticas saneamento, que está constantemente em
públicas; direitos humanos e construção e precisa ser desafiada a partir de
empreendedorismo, horizontalidade e modelo outros diagnósticos e narrativas.
de negócio. No contexto da pandemia, diante
Os dados e as ações (políticas e de
da impossibilidade das articulações corpo a
solidariedade), mediadas por algumas
corpo, o arranjo sociotécnico que sustenta o
ferramentas, parecem estar formando uma
Cocôzap (e, indiretamente, os problemas de
nova frente de ativismo político nas favelas e
saneamento da Maré, assim como as próprias
periferias. Não estamos falando de um tipo
ações do data_labe) precisou ser
de luta que sempre esteve presente nesses
reconsiderado. Desde a implementação das
territórios de sobrevivência. Várias das
medidas de isolamento social no Rio, o grupo
táticas que levantamos aqui fazem parte do
tem se articulado para produzir narrativas
que temos entendido como “revolução
sobre a centralidade dos debates e dados
periférica dos dados” que assume um papel
envolvendo a precarização dos serviços
importante no engajamento e na capacidade
sanitários nas favelas do país e as
de incidência dos moradores de favelas e
consequências disso para a saúde das
periferias nas políticas locais. A ideia central
populações mais vulneráveis. É uma
dos coletivos, organizações e projetos parece
tentativa, também, de se conectar às redes de
ser disputar a narrativa que se criou em torno
solidariedade, informações e ações já
dos dados: num extremo, vulnerabiliza os
existentes, e fortalecer laços que já existiam,
usuários das plataformas digitais, redes
como mencionamos anteriormente.
sociais e aplicativos de todo tipo; e noutro,
credibiliza quem quer que apresente dados
Conclusão
para comprovar falácias e mentiras na rede. É
O data_labe surge, no escopo de todos esses importante evidenciar que não se trata aqui
exemplos e comparações, como uma de uma revolução em sua concepção clássica

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de ruptura e conflito, mas ao contrário, do distopia de aceleração está a caminho?”, que


jogo de conter e resistir (Hall, 2003), das se desenham em meio à emergência de
táticas inventadas nos lapsos de tempo, nas reação à crise: o de ruptura. A pandemia
brechas de sistemas instituídos e que global e inédita que estamos vivendo é
oferecem as reinvenções tão fundamentais resultado de catástrofes ambientais, políticas
para a superação de desigualdades. Os dados econômicas pré-anunciadas e que agora
e o digital parecem ser um componente exigem rupturas. Certamente será uma
diferencial importante no âmbito de novas disputa injusta diante dos contextos de
formas para compreender e valorizar exceção e aceleração apresentados por
processos de luta por direitos invisibilizados Evangelista. Elas podem vir desorganizadas
e negligenciados por assimetrias de poder. diante das estruturas criadas pelos sistemas
Passa a ser importante considerar a própria financeiros e pelas grandes corporações, mas
gestão das cidades a partir das relações entre é nas periferias que as rupturas se tornam
dados, narrativas, ativismo digital e concretas, no “território usado” e no
infraestruturas urbanas. “humanismo concreto” de Ana Clara Torres
Ribeiro. Os exemplos que trouxemos aqui
Todas essas ações e possibilidades de
são parte de um movimento ainda desigual,
articulação, mediadas ou não por tecnologias,
mas fundamental para o entendimento de um
parecem se alinhar a um dos cenários
futuro próximo cuja centralidade deveria ser
propostos por Rafael Evangelista (2020) no
a conquista de comunidades mais justas,
segundo texto da série Lavits_Covid-19, “a
sustentáveis e felizes.

3
Notas Ver relatório em: https://bit.ly/3hPHpnx.
4
1
Ver relatório em: https://bit.ly/37ZazMw.
Informações constantes na base de 5
Ver: http://datalabe.org.
dados/planilha da “Casa de Aya”, o coletivo de 6
Ver site da plataforma em:
moradores da Vila Kennedy. http://cocozap.datalabe.org.
2
Ver painel em: https://painel.
vozdascomunidades.com.br.

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A Física das Cidades
Fabiano L. Ribeiro
Universidade Federal de Lavras, Departamento de Física, Lavras MG, Brasil. Email: fribeiro@ufla.br
https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.159

1 Introdução A Ciência das cidades seria um conjunto de


teorias e evidências empíricas para explicar e
A palavra “física” pode ser entendida por
prever fenômenos urbanos. No que diz
pelo menos duas formas. Primeiro, pela
respeito aos dados disponíveis, podemos
origem grega da palavra que significa
dizer que estamos em um momento bastante
natureza. Nesse sentido, quando dizemos que
interessante. Hoje podemos observar nossas
queremos entender a “física” de um
cidades da mesma forma que os biólogos
fenômeno, quer dizer que queremos entender
observaram pela primeira vez os tecidos
o que é, como e por que esse fenômeno se
biológicos no final do século XVI quando o
comporta de tal maneira. Ou seja, entender a
microscópio foi inventado. Hoje quase todas
natureza de alguma coisa - seja um fenômeno
as pessoas carregam um smartphone no bolso
natural ou um conceito - significa que somos
registrando com precisão e de forma
capazes de entender os mecanismos que
automatizada suas posições geográficas e
regem esta coisa. A segunda forma da
suas escolhas de compras. Uma vez que esses
palavra física tem a ver com a disciplina/área
dados são gerados aos milhares por segundo,
do conhecimento; isto é, todas as ferramentas
os cientistas podem investigar em tempo real
teóricas e instrumentais desenvolvidas pelos
padrões de mobilidade humana, tráfego de
físicos para tentar entender o universo em
veículos nas ruas, transações financeiras, e
que vivemos. Esses dois sentidos da palavra
assim por diante. Esse volume absurdo de
“física” são, em certo sentido, apropriados
dados oferece oportunidades sem precedentes
para descrever uma vertente bastante atuante
que pode e deve ser explorado para melhorar
nos últimos anos para se entender o
a qualidade e a dinâmica das pessoas nas
fenômeno urbano: a busca pela natureza das
cidades.
cidades por meio de ferramentas teóricas
provenientes da física. Mas, é claro, apenas dispor dessa enorme
quantidade de informação não significa
Estamos vivendo um momento crítico na
entender o fenômeno urbano. Os dados nos
história humana. No ano de 2015 a população
permitem descrever alguns aspectos do
urbana mundial superou a população rural
comportamento urbano, porém, isso por si só
pela primeira vez. Só para se ter uma ideia,
não é suficiente para explicar a natureza (a
no final do século XIX mais de 80% da
física) das cidades. A natureza das cidades só
população vivia em áreas rurais. Hoje já
pode ser alcançada (se puder ser alcançada!)
temos 54% da população vivendo nas cidades
se tivermos alguma teoria que explique o
e os especialistas concordam que até 2050
fenômeno urbano, mesmo que de uma
mais de 70% da população mundial viverá
maneira muito simplificada. Aliás, o que
nas áreas urbanas.1 Dessa forma, é esperado
entendemos por ciência é exatamente a
que a grande maioria das pessoas venham a
interconexão entre dados e teoria. Os dados,
viver em cidades superpopulosas em um
por si só, não formam o que entendemos por
futuro próximo. A questão que surge então é:
ciência. Dados sozinhos são apenas uma
em que condições viveremos nessas cidades
coleção de números. A teoria por si só
do futuro? A resposta a essa pergunta está
também não é ciência, mas apenas uma
intimamente relacionada com o que tem sido
manifestação intelectual. A ciência surge de
chamado e definido por ciência das cidades
um ciclo ininterrupto que segue a ordem:
(Batty, 2013). O desenvolvimento (ou não)
dados fomentam teorias; teorias sugerem a
dessa nova ciência será mandatório para se
coleta de novos dados; novos dados falseiam
saber em que tipo de cidade viveremos: se
teorias e fomentam novas, e assim
em cidades superpopulosas e sem condições
sucessivamente, como descrito na Figura 1.
básicas; ou se em cidades ainda
superpopulosas, mas com dignidade e
qualidade de vida.

Revista de Morfologia Urbana (2020) 8(1): e00159 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
Perspetivas 2/9
microscópicas (Mitchell, 2009; Boccara,
2004) ); bem como os conceitos de
criticalidade auto-organizada (Batty, 2013 ,
Bak 1999 ; Ball 2004; Portugali 2000).
Nesse sentido, o título deste artigo me parece
oportuno, pois a palavra física traz os dois
pontos que serão explorados aqui: 1) a
apresentação de como alguns conceitos bem
estabelecidos em física podem ser
fundamentais para 2) entender a física
Figura 1. O que entendemos por ciência é um (natureza) das cidades.
ciclo ininterrupto entre dados fomentando teorias; O artigo está organizado da seguinte forma.
teorias sugerindo coleta de novos dados; e novos
dados falseando e fomentando novas teorias
Nas seções (2) e (3) serão apresentadas
(fonte: elaborada pelo autor). algumas métricas urbanas que exibem
propriedades fractais, i.e. que possuem
propriedades similares em todas as
Esse ciclo é feito em disciplinas como física, escalas/tamanhos das cidades. Em especial,
química, e biologia há pelo menos três na seção (2), será apresentado o método box-
séculos. Por exemplo, o conjunto de dados counting para a determinação da dimensão
astronômicos que Tycho Brahe possuía na fractal de uma cidade. Na seção (3) será
segunda metade do século XVI era apenas discutido como variáveis socioeconômicas e
uma coleção de números. No entanto, quando infraestruturais se relacionam com o tamanho
esses dados foram descritos pela primeira vez das cidades. Na seção (4) será apresentado
por Kepler e posteriormente teorizados por um panorama histórico do desenvolvimento
Newton com sua Teoria da Gravitação, foi da mecânica celeste e, em seguida, serão
possível explicar como e porque os corpos se apresentadas analogias para identificar em
deslocam no espaço. As leis de Kepler e a que fase nos encontramos na construção da
Teoria Newtoniana, construídas a partir dos ciência das cidades. Finalmente, na seção (5)
dados de Tycho Brahe (veja Figura 2), será discutido se as cidades podem realmente
permitiram entender que as mesmas leis ser tratadas pelos ritos da ciência tradicional
físicas que agem na queda de uma maçã ou se seria necessário uma nova forma de
também mantêm os planetas orbitando ao ciência, baseada puramente nos dados,
redor do sol. abandonando o conceito de teoria.
Neste presente trabalho serão exploradas
algumas ferramentas da física que têm
contribuído para um melhor entendimento
das cidades. Mais especificamente, será
mostrado como propriedades de escala, como
a dimensão fractal, podem revelar estruturas
espaciais das cidades. Contudo, existem
várias outras ferramentas que não serão
exploradas aqui, mas que merecem total
atenção. Por exemplo os conceitos de redes
complexas, usados para entender as conexões
entre pessoas, redes de ruas, redes de
distribuições, etc. (Louf, Roth e Barthelemy,
2014; Haff, 2000; Asprone et al., 2013;
Strano et al., 2012); modelos de sistemas
dinâmicos e os modelos gravitacionais,
usados para entender fluxos temporais e
espaciais de produtos e pessoas inter e intra
cidades (Bettencourt et al., 2007; Batty,
1971; Barthelemy, 2019; Birkon e Clark,
1991); modelos baseados em agentes e todo
o conceito de ciência da complexidade,
Figura 2. Ilustração do livro Astronomiae
usados para entender propriedades
Instauratae Mechanica (1598), onde são
macroscópicas a partir das interações locais e
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Perspetivas 3/9
apresentados os instrumentos de Tycho Brahe, Um exemplo interessante de como a
que se encontra no centro da imagem (fonte: distribuição espacial das cidades acontece ou
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Tycho_Bra se forma vem de uma pequena vila do
hes_stora_murkvadrant,_Nordisk_ interior de Minas Gerais chamada Estação de
Familjebok.jpg).
Carrancas. Esta vila possui cerca de 200
habitantes e sua imagem é apresentada na
2 Dimensão e Forma das Cidades Fig. (4). No início dos anos 70 a vila era
A Figura 3 mostra a imagem do que se formada por uma única rua (indicado pela
seta na figura) construída em torno de uma
acredita ser a primeira cidade já construída
ferrovia, tendo um mercado em uma das
pela humanidade, a vila/assentamento Çatal
Hüyük (Whitfield, 2005). Ela foi erguida há extremidades (ele ainda existe hoje). Este é
um exemplo de cidade unidimensional, no
cerca de 8.700 anos, onde hoje é a Turquia. O
que é muito curioso sobre esta proto-cidade é sentido de que ela se estende ao longo de
uma linha. De fato, a vila continuou sendo
que nela não há ruas ou caminhos conectando
unidimensional até o começo dos anos 80,
as casas. Provavelmente as pessoas
não invadindo uma segunda dimensão por
acessavam as casas andando sobre os
causa da existência de uma colina ao lado da
telhados. Chega ser difícil acreditar que essas
pessoas pré-históricas não pensaram em vila. Durante a década de 70, quando um
cidadão decidia construir uma nova casa, ele
caminhos para conectar as casas. No entanto,
tinha de escolher entre i) continuar seguindo
esse fato nos mostra que ter ruas conectando
a linha da rua e construir sua casa na última
as casas não é, necessariamente, uma ideia
posição da linha; ou ii) construir a casa mais
óbvia.
próxima do mercado, na colina; contudo,
Mas, é claro, posteriormente diferentes tendo que subir e descer esta colina todos os
sociedades chegaram à ideia de introduzir dias. Até o final dos anos 70 a primeira opção
caminhos e ruas para conectar as casas, e sempre vencia porque a distância entre a
essa implementação mudou drasticamente a última casa e o mercado não era tão longa e
distribuição espacial das casas em caminhar até o mercado não era um
comparação com o que vemos em Çatal problema. No entanto, no início dos anos 80,
Hüyük. Mas seria possível identificar algum com um número suficiente de casas na linha
tipo de padrão nessa distribuição espacial e, consequentemente, uma maior distância do
comum a uma boa parte de vilas ou cidades mercado, a segunda opção começa a ficar
pelo mundo? Esse é um assunto importante melhor. Neste momento, a vila invade a
em morfologia urbana e, com certeza, a segunda dimensão espacial. Este é um
física, como área do conhecimento, tem exemplo de como a geografia (colina),
muito a oferecer e contribuir. economia e acesso à infraestrutura (mercado)
interferem na distribuição espacial das casas
e, consequentemente, na forma das cidades.
Quando a vila invadiu a segunda dimensão,
ela não se tornou uma cidade bidimensional.
Isso só aconteceria se as casas preenchessem
homogeneamente o espaço bidimensional, e
esse não é o caso. Quando a vila começou a
se expandir pela colina ela adquiriu uma
dimensão espacial que é maior que 1 (ela não
é mais construída apenas em torno de uma
Figura 3. Imagem de Çatal Hüyük, talvez a linha) e, ao mesmo tempo, menor que 2 (ela
primeira cidade construída pela humanidade. Ela não preenche homogeneamente o espaço
foi erguida há cerca de 10.000 anos onde hoje é a bidimensional). Ou seja, quando as casas
Turquia. Nesta proto-cidade não há ruas ou começaram a ser construídas na colina, a vila
caminhos conectando as casas. Provavelmente as passou a ter uma dimensão fracionária.
pessoas acessavam as casas andando sobre os Objetos físicos com dimensão não inteira, ou
telhados (fonte: seja, que possuem dimensão fracionária,
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/he/d/dc/H
também são chamados de fractais
ouses_%28reconstruction%29_%C3%87atalh%C
3%B6y%C3%BCk2.jpg). (Mandelbrot, 1982). Na verdade, um fractal é
qualquer coisa (por exemplo, objeto,
fenômeno) que apresente propriedades
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Perspetivas 4/9
similares em todas as suas escalas. No caso os em um gráfico log-log. Dados
de um objeto físico fractal há um número que prescrevendo linha reta num gráfico log-log
se preserva em todas as escalas de tamanho significam que o fenômeno é regido por uma
desse objeto, chamado de dimensão fractal. lei de potência, como dada pela Eq. (1). Isto
Saber esse número é interessante pois pode é, linha reta no gráfico log-log significa que
revelar algum tipo de padrão. De fato, estamos lidando com um fenômeno fractal. A
cidades apresentam dimensões fractais, e esse figura (5b) mostra o gráfico (log-log) de 𝑛(𝑠)
número pode revelar propriedades universais versus 𝑠 para a cidade de Nova York. Note
no fenômeno urbano. No caso específico da um perfeito ajuste entre os dados e a lei de
Estação de Carrancas não é possível potência (representado pela linha reta). A
determinar sua dimensão fractal justamente inclinação da reta (expoente da lei de
por ela ser uma pequena vila. Na verdade, potência) nos dá a dimensão fractal da cidade
esse número só é computável quando de Nova York: 𝐷𝑓 = 1.70 ± 0.03 (Shen,
olhamos para o sistema em questão sob 2012). A aplicação dessa mesma metodologia
diferentes escalas de tamanho. Neste sentido, para diferentes cidades pelo mundo permite
só é possível determinar a dimensão fractal construir um histograma de 𝐷𝑓 , conforme
de cidades suficientemente grandes. apresentado na figura (6), no qual pode-se
verificar que a dimensão das cidades flutua
em torno de 1.7. O que significa, como já
tínhamos apontado, que as cidades não são
linhas retas nem preenchem
homogeneamente o espaço bidimensional, o
que justifica esse número fracionário da
dimensão.
As cidades que estão na extrema esquerda do
histograma (aquelas com dimensões fractais
em torno de 1.3 e 1.4) são mais próximas da
Figura 4. Imagem da Estação de Carrancas, uma uni-dimensionalidade do que da bi-
pequena vila do interior de Minas Gerais. No dimensionalidade. Por exemplo, a cidade de
início dos anos 70, a vila era formada por uma Tóquio, que possui 𝐷𝑓 = 1.312, foi
única rua (veja seta na figura) construída em torno construída em torno de um lago e acaba
de uma ferrovia, tendo um mercado em uma das tendo uma distribuição espacial mais linear e,
extremidades. Nessa ocasião, ela era um exemplo consequentemente, uma dimensão fractal
de cidade unidimensional, no sentido de que ela menor se comparado com outras cidades.
se estendia ao longo de uma linha. Nos anos 80 a
vila começa a se expandir sobre uma colina Na próxima seção essas questões de escala
invadindo a segunda dimensão espacial (fonte: continuarão a ser tratadas, mas agora
elaborada pelo autor). considerando aspectos socioeconômicos e
infraestruturais das cidades.
Existem várias técnicas para se determinar a
dimensão fractal de uma cidade. Uma delas é 3 Economia de Escala
o método box counting, (Shen, 2012) que Podemos denominar por fractal não apenas
consiste em contar o número 𝑛 de quadrados objetos físicos, mas também qualquer
de largura 𝑠 que cobrem toda a superfície quantidade/fenômeno que manifeste algum
urbanizada da cidade, conforme descrito na tipo de invariância de escala. Quando isso
Figura (5a). A cidade será um fractal se essas acontece, costuma-se dizer que essa
duas quantidades se relacionarem por uma lei quantidade ou fenômeno é livre de escala.
de potência do tipo descrito na Equação 1. Além disso, um fenômeno livre de escala
geralmente pode ser representado por uma
equação de potência, que é uma espécie de
𝑛(𝑠) ∝ 𝑠 −𝐷𝑓 (Eq. 1) assinatura de um comportamento
independente de escala (Newman, 2005). Por
exemplo, evidências sugerem que certas
Se este modelo se ajusta bem aos dados então métricas urbanas, que representaremos por 𝑌,
𝐷𝑓 é a própria dimensão fractal da cidade. estão diretamente relacionadas com o número
Uma forma de verificar se os dados são bem 𝑁 de habitantes de uma cidade a partir de
descritos por uma lei de potência é plotando-
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Perspetivas 5/9
uma lei de potência do tipo descrito na
Equação 2.

a)

Figura 6. Histograma de 𝐷𝑓 para algumas cidades


pelo mundo. Os valores da dimensão fractal estão
distribuídos em torno de 𝐷𝑓 = 1.7. (fonte:
b)
adaptado de Shen, 2012; Ribeiro et al., 2017;
Batty e Longley, 1994).

𝑌 = 𝑌0 𝑁𝛽 (Eq. 2)

Aqui, 𝑌0 e 𝛽 são parâmetros específicos de


uma determinada métrica urbana (Ribeiro et
al., 2017; Batty e Longley, 1994; Newman,
2005; Bettencourt, 2013). A figura (7) ilustra
a boa descrição da equação acima aos dados
empíricos quando 𝑌 representa o PIB
(produto interno bruto) para cidades
brasileiras e norte-americanas. Isso sugere
que o PIB é regido por propriedades livres de
Figura 5. Exemplo ilustrativo do método box- escala, isto é, os sistemas urbanos apresentam
counting. a) Uma área urbanizada coberta por comportamentos similares em todas as
quadrados de dois tamanhos distintos. No escalas de tamanho. Isso é exatamente um
primeiro (à direita), com quadrados de lado 𝑠 = 2 comportamento fractal, apesar de estarmos
(unidade arbitrária qualquer), são necessários lidando com uma variável econômica e a
𝑛(𝑠 = 2) = 66 quadrados para cobrir toda a área população, e não um objeto físico e um
urbanizada. Já no segundo, com quadrados de comprimento. Apesar da grande
lado 𝑠 = 1, são necessários 𝑛(𝑠 = 1) = 198 complexidade que está por trás dos
quadrados para cobrir a mesma área urbanizada.
fenômenos urbanos, no final das contas a
b) Exemplo de aplicação do método: Gráfico
(log-log) do número 𝑛(𝑠) de quadrados de lado 𝑠 relação entre PIB e a população parece
necessários para cobrir toda a área urbana de obedecer uma relação relativamente simples,
Nova York, em função de 𝑠. Lei de potência dada pela equação (2).
(linha azul) se ajusta bem aos dados e, portanto, a Evidências empíricas mostram que o valor
inclinação da reta nos dá a dimensão fractal de
assumido por 𝛽, o expoente de escala,
Nova York: 𝐷𝑓 = 1.70 ± 0.03 (fonte: elaborada
determina o tipo/categoria de variável
pelo autor).
urbana. Variáveis socioeconômicas, como o
PIB, salários, número de caso de doenças
socio-transmissíveis, etc., apresentam 𝛽 > 1.
Este é o chamado regime superlinear, no
sentido que quando duplicamos o tamanho da
cidade, aumenta-se a quantidade per capita
destas variáveis. Por exemplo, a quantidade
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Perspetivas 6/9
per capita destas variáveis socioeconômicas socioeconômica entre esses dois países. As linhas
tende a aumentar em 16%, em média, quando tracejadas representam a situação linear (𝛽 = 1),
se dobra o tamanho de uma cidade - o e são apresentadas apenas para enfatizar o
chamado increasing return to scale comportamento superlinear da tendência dos
dados (fonte: elaborada pelo autor).
(rendimentos crescentes em função da escala)
em cidades maiores.
Em contrapartida, outros tipos de variáveis
A explicação mais aceita para essa
geralmente associadas à infraestrutura e
propriedade superlinear tem a ver com a
estrutura urbana apresentam 𝛽 < 1.
interatividade das pessoas, que também
Exemplos dessas variáveis são o número de
cresce superlinearmente com o tamanho da
hospitais, número de escolas, número de
cidade. Por exemplo, número de chamadas e
postos de gasolina, área urbanizada,
contatos telefônicos crescem
comprimento total de ruas, comprimento de
superlinearmente com o tamanho da
cabos elétricos, etc. Este é o chamado regime
população (Schläpfer et al., 2014; Stier,
sublinear, no sentido que quando se aumenta
Berman e Bettencourt, 2020). Dessa forma, a
o tamanho da cidade, diminui-se o número
interatividade é apontada como o grande
per capita destas quantidades. Há, neste caso,
potencializador da criatividade e da
uma economia de infraestrutura em cidades
produtividade revertendo em benefícios
maiores: cidades maiores fazem mais com
sociais e econômicos. Podemos dizer que,
menos. Por exemplo, quando aumentamos o
quanto maior é a cidade, mais interação e
tamanho da cidade a quantidade de postos de
contatos entre pessoas ela proporciona,
gasolina por habitante tende a diminuir.
gerando cidades mais ricas e criativas.
Essencialmente, a quantidade per capita
Porém há uma consequência negativa da dessas variáveis de infraestrutura reduzem
maior conectividade entre pessoas em em 16%, em média, quando se dobra o
cidades maiores. Cidades grandes são mais tamanho de uma cidade.
susceptíveis a epidemias, como estamos
Finalmente, tem-se um terceiro tipo de
observando no caso da Covid-19 (Stier,
variável, que apresenta 𝛽 ≈ 1. Este é o
Berman e Bettencourt, 2020). Resultados
regime linear, dado por variáveis que estão
análogos também aparecem em outras
relacionadas com necessidades individuais,
doenças sócio-transmissíveis, como é o caso
tais como consumo de água, número de
da AIDS, que também cresce de forma
empregos e número de casas alugadas.
superlinear com o tamanho da cidade
(Bettencourt et al., 2007). Uma importante propriedade da lei de escala
em sistemas urbanos é que os dados
empíricos mostram características universais
nessas variáveis. Por exemplo, Brasil e os
Estados Unidos apresentam PIB com o
expoente de escala 𝛽 muito parecidos (1.14 e
1.11, respectivamente), apesar desses países
serem completamente diferentes em termos
econômicos e sociais (Bettencourt, 2013;
Schläpfer et al., 2014; Stier, Berman e
Bettencourt, 2020; Meirelles et al., 2020).
Evidências empíricas em outros países pelo
mundo têm mostrado o mesmo
comportamento de variáveis
socioeconômicas como o PIB, apresentando
𝛽 ≈ 1.16 (superlinear), enquanto variáveis
de infraestrutura têm apresentado 𝛽 ≈ 0.84
Figura 7. Gráfico (log-log) do PIB em função da (sublinear). Essa universalidade sugere que
população 𝑁, para as cidades brasileiras e norte mesmo com todas as diferenças culturais,
americanas. As linhas cheias (azul e verde) são históricas e geográficas entre os países,
aquelas que melhor se ajustam à tendência dos aparentemente certas métricas urbanas são
pontos, e revelam propriedade tipo lei de regidas por propriedades universais e uma lei
potência. Os dois países apresentam expoentes de de potência simples, com expoentes de escala
escala 𝛽 > 1 (superlinear), com valores muito bem definidos. A percepção dessa aparente
próximos entre si, apesar da diferença
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Perspetivas 7/9
universalidade pode ser um forte indício de Acredito que no contexto da ciência das
que é possível identificar leis e quem sabe até cidades estamos na fase Kepler. Quero dizer,
propor teorias mais abrangentes para explicar já superamos o período Tycho Brahe no
o fenômeno urbano. contexto urbano, no sentido de que já
possuímos uma enorme quantidade de dados
4 Tycho Brahe, Kepler e Newton disponíveis, como posição e movimento das
No final do séc. XVI, Tycho Brahe tinha a pessoas em tempo real, fluxos diários inter e
mais notável coleção de dados celestes, o que intra-cidades, e muito mais. E já
incluía, por exemplo, a trajetória de todos os identificamos alguns padrões nestes dados
planetas visíveis da época. Mesmo nos como, por exemplo, as propriedades de
padrões que temos hoje, podemos dizer que escala que foram discutidas anteriormente.
ele tinha um Big Data disponível, devido ao Contudo existem muitos outros padrões já
tamanho do banco de dados e também pelo identificados, como os que se referem à
fato deles estarem sendo constantemente mobilidade urbana (Alessandretti et al.,
atualizados. Apesar disso, Tycho Brahe só 2018), abundância de categorias de empresas
tinha uma coleção de números, sem qualquer (Strumsky et al., 2016), e a própria dimensão
teoria para explicá-los ou descrevê-los. fractal das cidades (Murcio et al., 2015). Na
Tycho Brahe representa a primeira fase do verdade, estamos numa época de tamanha
desenvolvimento da mecânica celeste: a fase sofisticação técnica que podemos jogar os
da coleta dos dados. Essa fase será chamada dados em um supercomputador e deixar que
simplesmente de fase Tycho Brahe. os próprios algoritmos estatísticos encontrem
por eles mesmos os padrões entre as métricas
Então veio Kepler, que começou a trabalhar urbanas (Anderson, 2008).
com Tycho Brahe em 1600 e, posteriormente,
com os seus dados astronômicos. Kepler Mas seria possível atingir a fase Newtoniana
percebeu alguns padrões nos dados que tinha da ciência das cidades? Em outras palavras,
em mãos, hoje conhecidas como as “três leis será possível organizar todos os dados que
de Kepler”. São elas: i) lei das órbitas possuímos e todos os padrões já identificados
elípticas2; ii) lei das áreas3; e iii) lei dos em um conjunto de equações compactas e
períodos4. Com a identificação destas leis, inteligíveis que nos permitam explicar os
Kepler respondeu como os planetas se dados e fazer previsões? Isso foi feito de
movem, mesmo sem ele saber dizer por que forma bastante elegante para a mecânica, há
eles movem. Neste sentido, Kepler representa pelo menos 300 anos. Será isso possível
a segunda fase do desenvolvimento da também para o fenômeno urbano? Ou seria
mecânica celeste: a fase da identificação de esse um sonho impossível de ser alcançado,
padrões. Essa fase será chamada dada a complexidade e o número imensurável
simplesmente de fase Kepler. de variáveis envolvidas no contexto urbano?

Nesse contexto, entra em cena Newton com 5 Uma nova ciência das cidades ou uma
as três leis da mecânica: i) lei da inércia; ii) nova ciência para as cidades?
relação entre força, aceleração e massa, i.e.
Mas seria realmente necessário atingir a fase
𝐹 = 𝑚𝑎; e iii) lei da ação e reação. E,
newtoniana das cidades? Não seria suficiente
finalmente, a lei da gravitação: 𝐹 = 𝐺𝑚1 𝑚2 /
deixarmos os próprios algoritmos e os
𝑟 2 , que diz que matéria atrai matéria numa números falarem por si só? Por exemplo, o
relação inversa com o quadrado da distância.
Google usa seus algoritmos para dizer que
Com estas leis ele identifica que a terra e o
uma webpage é melhor que outra, mesmo
céu são regidos pelos mesmos princípios. Isto
não sabendo exatamente por que ela é
é, a partir de um mesmo conjunto de regras
melhor, mas simplesmente porque o
ele explica tanto o movimento dos corpos
algoritmo está dizendo que é, e isso é o
aqui na Terra, quanto o movimento dos
bastante. Porém, encerrar-se neste tipo de
planetas ao redor do sol. Com suas leis,
estratégia seria condenar exatamente o que
Newton mostrou porque os corpos se movem
5 entendemos por ciência. Ou seria a ciência
, e suas descobertas representam a terceira
que conhecemos construída apenas para
fase do desenvolvimento da mecânica
aqueles problemas e fenômenos que podem
celeste: a fase da explicação dos fenômenos.
ser teorizados de alguma forma? O que não
Essa fase será chamada simplesmente de fase
se aplicaria a fenômenos compostos por um
Newton.

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Perspetivas 8/9
número imensurável de variáveis talvez estaríamos atrás de uma ciência
interconectadas, como é o caso das cidades. realmente nova, uma ciência baseada
puramente nos dados, que abandonaria o
Fica então a dúvida: estaríamos atrás de uma
conceito de teoria. Uma ciência feita
ciência das cidades, nos mesmos moldes das
exclusivamente para tratar o fenômeno
disciplinas bem estabelecidas? Neste caso,
urbano: uma ciência para as cidades.
teríamos que seguir os mesmos ritos da
ciência tradicional. Esta ciência tradicional
Agradecimentos
funcionou muito bem nos últimos séculos em
questões que envolvem um número pequeno Gostaria de agradecer meu caro amigo
de variáveis envolvidas; tais como um bloco Vinicius M. Netto, não só pela nossa intensa
deslizando em uma superfície de gelo, ou um parceria científica, mas também pelo
corpo suficientemente pesado caindo incentivo inicial para eu escrever este artigo.
livremente. Esses tipos de problemas Gostaria de agradecer também Romulo
permitem ser equacionados e descritos por Krafta pela leitura prévia do manuscrito e
regras simples e compactas, justamente por pelas valorosas sugestões. Este trabalho só
se tratarem de problemas com um número foi possível pela ajuda inestimável de meu
finito de variáveis essenciais (Weaver, 1948). estudante Victor Cabral e de minha esposa
Mas, e quando temos sistemas complexos Josiane O.P. Ribeiro com as figuras aqui
como as cidades? As cidades são sistemas presentes. Quero agradecer também o apoio
que se auto-organizam, o que talvez as financeiro do Cnpq (405921/2016-0) e da
tornem impossíveis de serem descritas ou Capes (88881.119533/2016-01).
explicados por regras simples. Dessa forma,

Notas
1 4
https://nacoesunidas.org/onu-mais-de-70-da- Os quadrados dos tempos de translação dos
populacao-mundial-vivera-em-cidades-ate-2050/ planetas são iguais ao cubo dos semi-eixos
2
Os planetas descrevem orbitas elípticas, com o maiores das órbitas.
5
sol ocupando um dos focos. Apesar de que Einstein, mais tarde, com a teoria
3
A linha que liga o planeta ao Sol varre áreas da relatividade, deu outra explicação para o
iguais em tempos iguais. movimento dos corpos: a distorção do espaço
tempo.

Barthelemy, M. (2019) The statistical physics


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In Memoriam
João Meirelles (1989–2020)

Vinicius M. Netto e Fabiano L. Ribeiro

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Esse é um texto que não gostaríamos de Concluiu em seguida sua graduação em


escrever. Mas é nosso dever como amigos, Engenharia Ambiental sob orientação de
professores e coautores. E gostaríamos de Márcio Cataldi e co-orientação de Vinicius
fazê-lo como uma celebração da vitalidade, na UFF. Na defesa do seu trabalho final em
presença, inteligência e criatividade de João 21 de março de 2013, Vinicius abriu seu
Vitor Meirelles de Miranda. parecer lembrando a fala de um filme: “Um
pescador vê outro pescador ao longe” (“a
Muitos pesquisadores em urbanismo
fisherman sees another fisherman from
puderam conhecer João pessoalmente. Quem
afar”): pesquisadores reconhecem em outros
o conheceu pôde ver o quanto era encantador
a real vocação e paixão pela pesquisa.
e cativante. Diante de seu carisma sutil, era
fácil pensar: “conhecer João é amar João”. João tinha algo de imponderável em sua
personalidade. Ele parecia planar entre
E João foi curiosidade em estado puro — situações. Tinha essa facilidade enorme de se
insight, inquietude e entusiasmo. movimentar no mundo como se fosse puro
Não nos recordamos de ter conhecido outro “id”, como somos quando crianças, algo que
jovem pesquisador com tanta fluidez na vamos perdendo no tempo, com as negações
pesquisa e imersão na vontade de saber. Essa e imposições do mundo a nossa volta.
impressão começou desde sua primeira
Foi viver em Addis Ababa, Etiópia, em 26 de
presença na sala de aula de Vinicius, vindo
Abril de 2013, como parte de um estágio de
da Engenharia Ambiental em 2010 como
três meses pela UN Habitat no Institute for
aluno de graduação na Universidade Federal
Sustainable Development (ISD). Trabalhou
Fluminense (UFF). Ele se inscreveu na
em projetos de agricultura urbana em cinco
disciplina de teoria urbana por indicação de
escolas da capital e com biodigestores e
sua irmã, a querida Ana Clara, orientanda de
sistemas de captação de água de chuva para
Vinicius na sua graduação na Escola de
campesinos no interior. Curioso com o
Arquitetura e Urbanismo (EAU UFF). João
processo recente de urbanização do país, com
se destacou absolutamente naquela turma —
a população nascida nas cidades ainda na
primeiro, protestando elegantemente contra a
infância e na adolescência, João registrousuas
cidade e seus impactos sobre a natureza.
experiências em um blog:1 “A falta de
Depois, intrigado com a possibilidade de
infraestrutura convive com uma urbanidade
nossa cidades serem formas inteligentes de
incrível. Tem muita vida por todo lado,
reduzir impactos de numerosas populações
grande ocupação de espaços públicos. Muitas
humanas.
pessoas tomando café, comprando coisas,
Um e-mail de 26 de Março de 2012 ilustra levando rebanhos pra cima e pra baixo,
essa disposição: “Vinicius, podes me explicar conversando, assistindo o futebol inglês…
como nasceram as cidades no mundo? Addis Ababa é viva e pulsante.” Seu
Cidades como forma de ocupação de espaço, encontro com crianças locais aparece em um
pessoas morando juntas e se relacionando… relato especialmente afetuoso. Quando
Como isso começa?” Dois dias depois, visitou escolas pelo estágio, conta: “cheguei
comentava: “como te falava, ando precisando numa delas na hora exata do recreio. As
de referências sobre a história/evolução das crianças, ao me verem, foram à loucura. Era
cidades. Na verdade, queria entender como um mar de pequenos braços negros
ela chegou à dinâmica atual, como isso se estendidos, esperando um cumprimento.
relaciona com a tecnologia ou a economia, Muitos gritos de faranji [estrangeiro] e
com a globalização.” Seu envolvimento com sorrisos espalhados pelo pátio da escola. Mal
a cidade e sua inserção ambiental não podia andar. [...] Quando nos despedimos,
pararam de crescer. Ainda em sua graduação, era hora da saída e a visão que tive foi uma
João se envolveu na rede @urbanidade, com viagem. O mar de crianças havia se
dezenas de pesquisadores, debatendo com multiplicado por 3. Todos estavam em volta
alguns dos professores mais experientes em do portão esperando o porteiro liberar o
ciência urbana do país. Iniciou estágio no caminho. [...] No momento que o porteiro
Instituto Pereira Passos, da Prefeitura do Rio
de Janeiro (IPP) em outubro de 2012. 1 Veja
https://www.tumblr.com/blog/view/etout.

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decidiu abrir a porta, o mar virou uma 4 gols na final. Todos os corpos que
violenta tsunami, que me lembrou a saída do passavam perto faziam questão de falar
maracanã depois de uma final de carioca. A comigo, me apertar, sorrir. Foi a saída de
diferença é que eu era o Romário no meio da colégio mais divertida que já vivi.”
torcida do Flamengo, depois de ter feito uns

Figura 1. No alto, o kit para sua viagem à África: livros, câmeras, o skate e as havaianas. À direita e
abaixo: experiências no espaço em urbanização em Addis Ababa, Etiópia, Maio de 2013.
(https://www.tumblr.com/blog/view/etout) Fonte: Arquivo pessoal.

Em Junho daquele ano, passou semanas entre Em 18 de Julho, João voltou ao Rio de
Nairobi (Kenya) e Dar es Salam (Tanzânia): Janeiro. Em seguida, foi morar em São Paulo
“Não fazia sentido atravessar meio mundo para fazer o seu Mestrado em modelagem de
pra ficar em apenas um país. Assim, lá fui eu sistemas complexos na Escola de Artes e
conhecer mais um pouco do leste africano”. Ciências Humanas (EACH) da Universidade
Ainda na Tanzânia, ficou encantado com a de São Paulo (USP), sob orientação de
ilha de Zanzibar: “Se Nairóbi era São Paulo, Camilo Rodrigues Neto. Nas suas palavras,
Zanzibar é a Bahia”. Stone Town foi tinha “um mestrado desafiador pela frente e
particularmente marcante (“Passei dias me uma megalópole pra explorar”. Neste
encontrando por ali”). No retorno à Addis período, iniciou seus estudos sobre ciência da
Ababa, acompanhou as manifestações de complexidade e aplicações em fenômenos
Junho de 213 no Brasil, e organizou “aquele urbanos. Por intermédio de Camilo, foi
que deve ter sido o menor protesto do apresentado a Fabiano, formando uma
mundo”, com dois amigos locais e uma parceria científica que os levaria a diversos
pessoa que tinha acabado de conhecer na trabalhos, adiante.
Etiópia.

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Paralelamente, seguiu sua atividade junto ao defendeu sua Dissertação de Mestrado na


grupo de pesquisa com Vinicius e os jovens USP em 13 de Novembro de 2015. De volta
pesquisadores Maíra Pinheiro e Henrique ao Rio, trabalhou no PENSA, grupo de
Lorea, em um trabalho sobre redes de cientistas de dados urbanos no Centro de
segregação no Rio de Janeiro. Os momentos Operações (COR) da Prefeitura. Em Janeiro
na companhia desse grupo foram de 2016, teve oferta de bolsa na Stanford
particularmente felizes, como em uma tarde University, nos Estados Unidos. Optou pela
de sexta feira no calor de Dezembro de 2014, École Polytechnique Fédérale de Lausanne
após uma sessão de brainstorming no Largo (EPFL), na Suíça, por lhe dar mais liberdade
do Machado, no Rio de Janeiro. Dias antes, e suporte. Lá, juntou-se ao Laboratory for
havia participado da 3ª Jornada de Human-Environment Relations in Urban
Morfologia e Modelos Urbanos (JMMURB) Systems (HERUS), sob orientação de
em Pelotas/RS, com colegas como Maurício Claudia Binder.
Polidori, Otávio Peres e Alexandre Pereira
João foi um dos fundadores do Global Urban
Santos. Muitos lembram de sua atenção,
Metabolism Dataset (GUMDB), um dos
generosidade e engajamento, incluindo
primeiros esforços para centralizar os dados
jovens como ele, e têm suas próprias histórias
do metabolismo urbano gerados em estudos
para contar.
acadêmicos, uma iniciativa do grupo
Enquanto estava no Mestrado, preparava o Metabolism of Cities, do qual era parte.
próximo passo. Teve aceite no CASA UCL Introduziu o GUMDB na 9th Biennial
(Centre for Advanced Spatial Analysis, Conference of the International Society for
University College London) em dezembro de Industrial Ecology (ISIE) em Chicago, e mais
2014, para o PhD com Mike Batty e Elsa tarde apresentou esse trabalho do grupo no
Arcaute, propondo o projeto “Understanding World Resources Forum 2017 em Genebra,
the Evolution of Urban Metabolism: Are onde recebeu o Best Scientific Paper Award,
Bigger Cities Greener?”. Teve aceite ainda no dia 26 de Outubro. Adiante, em Janeiro de
em outras universidades no exterior, como 2018 foi aceito para o Complex Systems
Gran Sasso Science Institute (GSSI) na Itália. Summer School do Santa Fe Institute, templo
Enfrentou as limitações em bolsas nas do estudo da complexidade. E retornou ao
agências brasileiras de fomento. João Brasil, para ficar perto da sua família.

Figura 2. Cenas do cotidiano. No centro, durante a 9th Biennial Conference of the International Society
for Industrial Ecology (ISIE) em Chicago, Illinois, de 25 a 29 de Junho de 2017
(https://www.youtube.com/watch?v=29TFyPPZx3A). Fonte: Arquivo pessoal.

Gostaríamos de contar como era pesquisar e com novos problemas e o potencial de um


criar com João. Quando se pesquisa, lidamos insight capaz de explicá-los. Mostrava-se
com um problema que queremos entender. aberto e atento, enquanto erguia críticas e
Colocamos o problema a um ou mais questões. Levantava com facilidade
colegas. Trocamos ideias sobre como tratar o possibilidades de tratamento, ou desafiava as
problema. Com João, esse processo era possibilidades que trazíamos. Era um misto
rápido e muito fluído. Ele se entusiasmava de entusiasmo, criatividade e escrutínio.

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Vinicius brincava dizendo que era como leis de escala urbana, entre 2016 e 2020. Os
trabalhar como Lennon & McCartney, encontros presenciais de trabalho não foram
compondo em diálogo, chegando a tão numerosos como gostaríamos, mas a
explicações e métodos, criando diagramas, tecnologia permitia que conversássemos
algoritmos ou formas de “raspar” dados de quase diariamente. Fabiano conta que sua
diferentes fontes. esposa praticamente já o conhecia, mesmo
sem nunca tê-lo visto pessoalmente, tamanha
Um fato que chamava atenção era a sua
sua presença em nossas casas.
preocupação não só com a qualidade técnica
dos trabalhos, mas também com sua Ao longo de tantas trocas e ideias sobre o
qualidade estética, algo não muito comum mundo real e sobre mundos contrafactuais,
entre pesquisadores. Por exemplo, ele tinha uma frase de João foi particularmente feliz
uma preocupação minuciosa em escolher a em traduzir nossa imaginação na
paleta de cores usada em cada gráfico. Em investigação de cidades como campos de
uma ocasião, ficamos uma semana inteira probabilidade de ações: “o modelo nos ajuda
discutindo a cor das linhas e o tipo de gráfico a navegar por esse espaço de possibilidades”.
que atrairia mais a atenção dos leitores.
Quanta liberdade e clareza em uma frase tão
Naquele momento, ele argumentou que
breve.
precisávamos observar “as tendências do
estilo contemporâneo”. A frase virou um Um dos trabalhos seus que merece mais
jargão entre nós quando íamos preparar um destaque é “More from Less? Environmental
novo gráfico: “ não vamos usar este gráfico Rebound Effects of City Size”, que publicou
porque ele não segue as tendências do estilo no arXiv em 27 de Janeiro de 2020. Podemos
contemporâneo...”. E ríamos juntos disso. ver aqui o mesmo fascínio pelo mistério do
nascimento das cidades e suas dinâmicas que
João parecia ter um temperamento mercurial,
marcava aqueles e-mails, em 2012. Este
movendo-se rapidamente entre temas e
artigo foi completamente idealizado e
problemas de pesquisa. Em poucos anos,
conduzido por João. Fabiano ficou grato por
engajou-se em diferentes grupos,
estar vivenciando com ele aquele momento.
desenvolveu diversas ideias e publicou
Naquele período de formação de um
muitos artigos — uma produção intensa que
pesquisador, por ter mais experiência,
mostra seu raciocínio vertiginoso (veja a lista
colocava problemas a João e João os
de artigos publicados abaixo). Seus interesses
convertia em métodos. Apesar dele ser seu
sobre a cidade eram variados, mas
principal parceiro científico então, faltava a
acreditamos que o tema mais caro para João
inversão dos papéis, no sentido de João
era a relação entre cidade e meio-ambiente,
liderar a pesquisa. Foi o que aconteceu. Na
ou metabolismo urbano. Era o tema central
realização deste trabalho, João passou as
de seu Doutorado na EPFL.
instruções, gerenciou e direcionou as ações,
Publicou com Vinicius seu primeiro artigo conduzindo o rumo da pesquisa. Não era
científico, “Application of life cycle mais Fabiano a orientar. Na verdade, não
assessment in the evaluation of the cabia mais a relação “professor-estudante”.
environmental impact of cities” em 2012. Eram pesquisadores trabalhando em parceria
Anos depois, seguimos trabalhando com João científica.
em modelos de entropia social, informação e

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Figura 3. Experimentando com materiais, à esquerda. À direita, Fabiano e João trabalhando em questões
de escalas em cidades, em São Paulo, Junho de 2016. Fonte: Arquivo pessoal.

João já vinha emergindo como referência em João segue conosco em nossas memórias e
um de seus campos de pesquisa, sobre leis de afetos — e presente em ideias e textos que
escala em cidades, com citações e convites circularão por muito tempo.
para publicar em coletâneas com
Foi uma sorte ter te conhecido, João!
pesquisadores de destaque internacional no
campo. João tinha as condições para ser um
autor de primeira grandeza na pesquisa Com o amor dos amigos,
urbana internacional e vinha nessa direção.
Vinicius e Fabiano.
No devido tempo, nossa intenção é reunir e
disponibilizar todos os trabalhos de João em
um livro. Poderemos então encontrar em seus
trabalhos os bonitos ecos do seu espírito.

https://doi.org/10.47235/rmu.v8i1.175

Trabalhos de João Meirelles Evolução das leis de escala urbanas:


evidências do Brasil
More from Less? Environmental Rebound
JV Meirelles, CR Neto, FF Ferreira, FL
Effects of City Size
Ribeiro, CR Binder
JV Meirelles, FL Ribeiro, G Cury, C Binder
Revista de Morfologia Urbana, 8, 1, e00168,
arXiv preprint arXiv:2001.09968, 2020.
30 jun. 2020.

Sustainability issues in urban systems from a


On the relation between Transversal and
metabolic perspective
Longitudinal Scaling in Cities
JV Meirelles, A Pagani, A Athanassiadis, CR
FL Ribeiro, JV Meirelles, VM Netto, CR
Binder
Neto, A Baronchelli
Sustainability Assessments of Urban Systems,
PLoS ONE, 15(5), 1-20, May 2020.
261, 2020.

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Cities and Entropy: Assessing Urban A model of urban scaling laws based on
Sustainability as a Problem of Coordination distance dependent interactions
VM Netto, JV Meirelles, FL Ribeiro FL Ribeiro, JV Meirelles, FF Ferreira, CR
Sustainability Assessments of Urban Systems, Neto
438, 2020. Royal Society open science, 4 (3), 160926,
2017.
The Scale-Dependent Behaviour of Cities: A Social Interaction and the City: The Effect of
Cross-Cities Multiscale Driver Analysis of Space on the Reduction of Entropy
Urban Energy Use VM Netto, JV Meirelles, FL Ribeiro
Y Bettignies, JV Meirelles, G Fernandez, F Complexity, vol. 2017, Article ID 6182503.
Meinherz, P Hoekman.
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at microscale level
Urban carbon footprints: a consumption- A Athanassiadis, G Fernandez, JV Meirelles,
based approach for Swiss households F Meinherz, P Hoekman, YB Cari.
M Pang, JV Meirelles, V Moreau, C Binder Energy Procedia, 122, 709-714, 2017.
Environmental Research Communications 2
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VM Netto, M Pinheiro, R Paschoalino, JV
A Simple Sinuosity-Based Method using Meirelles, H Lorea
GPS data to Support Mitigation Policies for The Social Fabric of Cities, 37-59, 2017.
Public Buses GHG Emissions
W Wills, JV Meirelles, VG Baptista, G Cury, Uma geografia temporal do encontro
P Cerdeira VM Netto, JV Meirelles, M Pinheiro, H
arXiv preprint arXiv:1907.09335, 2019. Lorea
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Cidades como informação 2017.
VM Netto, E Brigatti, JV Meirelles, F
Ribeiro, C Cacholas, 2019.
V!RUS, 19, 2019.
Artigos em eventos
Evolution of urban scaling: Evidence from
brazil Global Urban Metabolism Database
JV Meirelles, CR Neto, FF Ferreira, FL JV Meirelles, F Meinherz, A Athanassiadis,
Ribeiro, CR Binder P Hoekman, G Fernandez, C Binder.
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Cities, from information to interaction The fabric of encounter: Integration and


VM Netto, E Brigatti, JV Meirelles, FL segregation in the spatiotemporal structure of
Ribeiro, B Pace, C Cacholas, P Sanchez. social networks
Entropy, 20 (11), 834, 2018. VM Netto, JV Meirelles de Miranda, M
Pinheiro, H Lorea
A temporal geography of encounters Proceedings 11th International Space Syntax
VM Netto, JV Meirelles, M Pinheiro, H Simposium, 2017.
Lorea
Cybergeo: European Journal of Geography, Method and challenges for consolidating
844, 2018. urban metabolism studies into a standardized,
open access database
Cidade e interação: o papel do espaço urbano JV Meirelles, F Meinherz, A Athanassiadis,
na organização social P Hoekman, G Fernandez, C Binder, Y Caris.
VM Netto, JV Meirelles, FL Ribeiro 2017.
urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana 10
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Dynamics of the Urban Metabolism Participação no Metabolism of Cities


JV Meirelles, C Binder.
https://metabolismofcities.org/about/team
A HERUS publication, 2017.

Mobilidade urbana e sustentabilidade: Global Urban Metabolism Dataset


elementos para a construção de um modelo (GUMDB):
de desempenho para o sistema de mobilidade https://archive.metabolismofcities.org/data
urbana na cidade do Rio de Janeiro.
M Soares, JV Meireles, J Junior
XIX Encontro Nacional de Estudos A tribute to João Meirelles (March 11, 2020):
Populacionais, ABEP, 2014. https://metabolismofcities.org/community/ne
ws/249
Application of life cycle assessment in the
evaluation of the environmental impact of
cities.
JV Meirelles, VM Netto, R Felix
5th International Seminar on Environmental
Planning and Management, Brasilia, 2012.

Dissertação de Mestrado
(Universidade de São Paulo | USP)
Leis de Escala em Cidades.

Comunicações
Conference of the International Society for
Industrial Ecology (ISIE) em Chicago (25 a
29 de Junho de 2017):
“The creation of a Global Urban Metabolism
Database”
https://www.youtube.com/watch?
v=t4R1LzBmi2U

Entrevista: https://www.youtube.com/watch?
v=29TFyPPZx3A

Google scholar:
https://scholar.google.com/citations?
user=KoXxV4sAAAAJ&hl=pt-BR

Blog de viagem na África em estágio pela


UN Habitat:
https://www.tumblr.com/blog/view/etout

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