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3189-Texto Do Artigo-10739-11362-10-20160701
3189-Texto Do Artigo-10739-11362-10-20160701
ABSTRACT: Michel Foucault's empirical and theoretical studies tribute enlarge knowledge
concerning power relationships. He does not build a general theory of power, but his empiri-
cal studies provide relevant insights on how the power relationships are established and
work. In this essay, I intended to define the basic elements bf his conceptions of power
based on his ideas abm.it the political meanings of philosophical-juridical and historical-
political discourses, outlined through the savage's and the barbarian's metaphors
busca que não se reduz àquilo que convém co- ra o qual se direcionaram as análises de Fouca-
nhecer, mas que pressupõe a constante expan- ult.
são dos limites do conhecimento. Tudo isso nos . Tais deslocamentos dizem respeito a mudan-
sugere o tamanho do risco ao tentar elaborar ças de enfoque na problematização do poder. Co-
os princípios básicos da concepção de poder de mo destaca Antonio Maia, "na medida em que
Foucault, que sempre esteve ligada a casos sin- Foucault ia se aprofundando nas pesquisas em
gulares e mesmo determinada por eles. Em Fou- torno das formas pelas quais, na Civilização Oci-
cault, os avanços da pesquisa é que determi- dental, se estruturam as diversas práticas (e
nam o conteúdo dos conceitos. Mas, ainda as- as instituições que lhe eram e são correlatas)
sim, a tarefa proposta tem mérito. Sua impor- que veiculam e fazem funcionar as relações de
tância decorre do fato de fornecer um instru- poder, foi paulatinamente desenvolvendo dife-
mento para a análise das relações de dominação rentes categorias, para dar conta do material
identificadas em nossa sociedade. A analítica do analisado" (Maia, 1995, p.93J.
poder é antes um método de abordagem da rea-
lidade do que uma teoria. No livro A Vontade de O selvagem e o ••economismo"
Saber, primeiro volume da História da Sexualida- na teoria do poder
de, Foucault deixa bem claro o fato de não se tra- O selvagem é aquele que preexiste a qualquer
tar, na sua obra, de uma Teoria do poder, a- civilização. Sua relação com outros indivíduos é
histórica e desvinculada da pesquisa empírica, pautada pelo medo e insegurança. Predominam
mas antes de uma analítica: "O que está em jo- os interesses egoístas. Há um estado de anar-
go nas investigações que virão a seguir é dirigir- quia, pois não há nada que regularize o convívio
mo-nos menos para uma 'teoria' do que para de uns com os outros. Nesse "estado de natu-
uma 'analítica' do poder: para uma definição do reza", nome dado pelos filósofos contratualis-
domínio específico formado pelas relações de po- tas a esse momento fictício em que a humanida-
der e a determinação dos instrumentos que perc de se encontraria num estágio anterior ao da ci-
mitem analisá-lo" (Foucault, 1979b, p.BOJ. vilização, cada um por si próprio deve se defen-
Uma outra ressalva que fazemos aqui diz res- der da ameaça representada pelo outro.
peito ao deslocamento/modificação na obra de Um único direito existe nesse mundo do sel-
Foucault, ao longo da década de 70, que se ob- vagem: o direito de natureza. "O direito de natu-
serva no tratamento dado à questão do poder. reza, a que os autores geralmente chamam jus
Três tecnologias de poder são estudadas pelo natura/e, é a liberdade que cada homem possui
autor durante o período que vai do início dos de usar seu próprio poder, da maneira que qui-
anos 70 - quando a concepção da genealogia do ser, para a preservação de sua própria nature-
poder começa a tomar forma nítida - até sua za, ou seja, de sua vida" [Hobbes, 1979, p. 781.
morte, em 1984: o poder disciplinar, o bio- O selvagem age livremente de acordo com sua
poder e a governamentalidade. Citarei breve- própria vóntade, desejos e interesses, sem ne-
mente em que consistem essas tecnologias de nhuma coerção externa que o contenha. Mas
poder, pois o objetivo·desse trabalho é outro, is- desse modo os indivíduos não conviveriam a não
to é, o de trazer à luz alguns elementos básicos se~ sob o risco da guerra de todos contra to-
presentes na obra de Foucault a respeito do po- dos. O selvagem, então, presta-se a um contra-
der, que dão contornos não definitivos, mas se- to com seus iguais- já que todos possuem esse
guros, à analítica do poder. direito de natureza - fundando a civilização, o
O poder disciplinar é noção central no pensa- Estado, que tem no corpo do representante seu
mento de Foucault nos anos de 73 a 75. A obra centro de controle e decisão2 • Segundo Hob-
clássica é Vigiar e Punir. Essa tecnologia tem im- bes, o homem no estado de natureza reconhece
plicações importantes em sua concepção de po- a necessidade de "renunciar a seu direito a to-
der: refere-se aos mecanismos- a vigilância inin- das as coisas, contentando-se, em relação aos
terrupta - com os quais o poder domestica os outros homens, com a mesma liberdade que aos
corpos e mentes, ao mesmo tempo em que pro- outros homens permite em relação a si mes-
duz um saber destinado ao controle. A noção de mo." [Hobbes, 1979, p. 791 O Estado soberano
bio-poder representa uma mudança de direção é formado a partir da soma dos múltiplos pode-
em relação ao poder disciplinar, pois denota que res individuais e, pelo contrato social, tem o po-
não somente os corpos individualizados são alvo der de legislar [dizer o que é o bem e o mal, o jus-
do poder, mas, incorporando a noção de espé- to e .o injusto) sobre a vida do conjunto dos con-
cie, é a população com suas leis e regularidades tratantes, assim como deve manter a ordem so-
que se torna o alvo dessa tecnologia que incide cial.
no conjunto dos vivos. Esse tipo de problemati- A Teoria do Poder que se desenvolve a partir
zação no pensamento de Foucault é predomi- dos filósofos contratualistas dos séculos XVII e
nante no período de 76/77. A partir de 78, a go- XVIII, especialmente a que remonta ao Leviatã
verna mentalidade abre uma outra perspectiva de Hobbes, fundamenta-se na idéia jurídica da
para sua análise do poder. Daí até a sua morte, soberania e do contrato. É uma teoria compro- 2. Para Hobbes o Estado· po-
de ser monárquico. governado
o autor entra no domínio da ética. Nos dois últi- metida, entre outras coisas, em explicar a ori- por um só homem, ou mesmo
por mais de um. como
mos volumes da História da Sexualidade (O uso gem da política. A idéia do selvagem e do contra- numa assembléia.
dos prazeres e O cuidado de sí},a problemática to serve para tornar inteligível o momento em
do 'governo de si' torna-se o ponto principal pa- que um poder soberano fundaria a ordem políti-
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A partir dessa leitura, baseada na idéia do de relações sempre tensas, sempre em ativida-
bárbaro e da dominação, deve-se pensar que, de, que um privilégio que se pudesse deter; que
sob a ordem e as leis, murmuram os gritos e es- lhe seja dado como modelo antes a batalha per-
corre o sangue derramado dos que estiveram pétua que o contrato que faz uma cessão ou
na batalha de onde uma determinada configura- uma conquista que se apodera de um domínio. Te-
ção de força saiu vencedora e se manteve. Isso mos, em suma, que admitir que esse poder se
significa, em resumo, que estamos numa bata- exerce mais do que se possui, que não é 'privilé-
lha constante; que as relações de poder são re- gio' açlquirido ou conservado da classe dominan-
lações de dominação em relativa transforma- te, mas o efeito conjunto de suas posições es-
ção, que podem tender para um equilíbrio das re- tratégicas - efeito manifestado e às vezes re-
lações de força ou reforçar a imposição de uma conduzido pela posição dos que são dominados."
força sobre outra. (Foucault, 1977, p. 291.
Em que o modelo da guerra é tão caro a Fou- Seguindo por esse caminho, o do confronto e
cault? Para entendermos a força desse para- da guerra permanentes, o autor analisa as pro-
digma em Foucault, precisamos antes ressal- duções discursivas e compreende os discursos
tar o caráter relaciona! em sua concepção de po- enquanto peças inseridas num dispositivo de po-
der: der, organizando-se em blocos táticos dispos-
"O que caracteriza o poder que estamos anali- tos num campo de batalha. Nessa relação de po-
sando é que traz à ação relações entre indiví- der manifestada na produção dos discursos, a
duos {ou entre grupos}. Para não nos deixar busca da verdade, ou melhor, dos discursos con-
enganar; só podemos falar de estruturas ou siderados verdadeiros pela sociedade, está em
de mecanismos de poder na medida em que jogo e motiva a luta. Isso se deve ao fato de a ver-
supomos que certas pessoas exercem poder dade estar inevitavelmente relacionada ao po-
sobre outras. O termo 'poder' designa relacio- der; ela "não existe fora do poder ou sem po-
namentos entre parceiros {e com isto não der". Sobre o jogo travado entre os indivíduos
menciono um jogo de soma zero, mas sim- pela verdade dos discursos, Foucault nos diz: "A
plesmente, e por ora me referindo em termos verdade é deste mundo; ela é produzida nele gra-
mais gerais, a um conjunto de ações que indu- ças a múltiplas coerções e nele produz efeitos
zem a outras ações, seguindo-se uma às ou- regulamentados de poder. Cada sociedade tem
tras}"(Foucault, 1982, p. 217l. seu regime de verdade, sua 'política geral de ver-
Tiramos daí que o poder se dá numa relação dade': isto é, os tipos de discursos que ela aco-
entre indivíduos e que pressupõe uma inter(a- lhe e faz funcionar como verdadeiros; os meca-
çãol, um movimento. nismos e as instâncias que permitem distinguir
Ainda sobre o caráter relaciona! do poder e os enunciados verdadeiros dos falsos; a manei-
suas implicações no processo de sujeição dos in- ra como se sanciona uns e outros; as técnicas e
divíduos - superando o modelo jurídico da sobe- os procedimentos que são valorizados para a ob-
rania que insiste em analisar as relações de po- tenção da verdade; o estatuto daqueles que
der a partir de seus termos primitivos, o indiví- têm o encargo de dizer o que funciona como ver-
duo dotado de direitos e poderes naturais- Fou- dadeiro." (Foucault, 1 979a, p. 121.
cault vai em direção daquilo que é central na sua E aqui percebemos a presença nietzschiana
obra genealógica: a formação dos sujeitos. Co- no pensamento de Foucault: não há uma verda-
mo ele' explica: "Dever-se-ia tentar estudar o po- de essencial no mundo, a qual caberia aos indiví-
der não a partir dos termos primitivos da rela- duos buscar. Há, sim, um conhecimento do mun-
ção, mas a partir da própria relação na medida do que é fruto de uma perspectiva. Foucault, no
em que ela é que determina os elementos sobre seu livro A verdade e as formas jurídicas, se vale
os quais incide: em vez de perguntar a sujeitos do aforismo 1 09 da Gaia Ciência, em que
ideais o que puderam ceder de si mesmos ou de Nietzsche diz: "Mas o caráter do mundo é, pelo
seus poderes para deixar-se sujeitar, deve-se in- contrário, o de um caos eterno, não pelo fato da
vestigar como as relações de sujeição podem fa- ausência de uma necessidade, mas pela ausên-
bricar sujeitos" (Foucault, 2002, p. 3191 6 . cia de uma ordem, de encadeamento de forma,
Quanto à questão inicial da guerra como mo- de beleza, de sabedoria, e de toda a estética hu-
delo de inteligibilidade das relações de poder, as mana." (Nietzsche, 1978, p. 1991 Num outro
noções correlativas de tática e estratégia, as- momento, Foucault cita o aforismo 333 da mes-
sim como as de batalha e confronto, são instru- ma obra de Nietsche, para dizer que não há co-
mentos com os quais Foucault tenta tornar nhecimento sem batalha, sem violência e falsifi-
compreensíveis as relações de dominação. Nu- cação sobre aquilo que se conhece. No ato de co-
ma passagem em Vigiar e Punir ele esclarece nhecer, uma luta se trava no sentido de confor-
sua concepção do poder fundada no modelo da mar (tornar coerente) um mundo sem lei e sem
guerra: "o estudo desta microfísica supõe que o formas. A verdade seria da ordem da cria- 6. Num texto escrito pouco
antes de sua morte, chamado
poder nela exercido não seja concebido como ção/invenção humana, pois não há conhecimen- "Uma estética da existência",
Foucault se refere, para além
uma propriedade, mas como uma estratégia, to em si. Decorre disso que o saber, incluindo o das práticas de assujeitamento
na formação do sujeito, a uma
que seus efeitos de dominação não sejam atri- científico, está intrinsecamente ligado a uma re- outra maneira, mais autôno-
ma, "atràvés das práticas de li-
buídos a uma 'apropriação', mas a disposições, lação de poder, pois é fundado sobre conheci- bertação, de liberdade ... "
(Foucault, 1994, p. 734)
a manobras, a táticas, a técnicas, a funciona- mentos que se propõem verdadeiros: "Não é
mentos; que se desvende nele antes uma rede possível que o poder se exerça sem saber, não é
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possível que o saber não engendre poder." Nesse redimensionamento do papel do Estado
(Foucault, 1979a, p. 1421 em relação ao poder, ao invés de um modelo cen-
Deve-se entender também que, em Foupault, tralizador que pressupõe um ponto (o Estado)
a sujeição dos indivíduos ao poder se dá a nível lo- de onde emanam as relações de poder, devemos
cal, microfísico, e é identificada no momento entender a dinâmica de tais relações adotando
mesmo em que os corpos são submetidos a a idéia de uma rede que atravessa os vários fo-
uma determinada relação de força; e que a domi- cos de poder presentes na sociedade. Sobre a
nação pressupõe um exercício constante de um idéia de rede, assim explica Antônio Maia: "Rede
poder que se materializa nos seus corpos, cri- esta que permeia todo o corpo social, articulan-
ando sensações, desejos e saber. No cap. VIII da do e integrando os diferentes focos de poder
Microfísica do Poder, Foucault diz o seguinte: (Estado, escola, prisão, hospital, asilo, família,
"Mas quando penso na mecânica do poder, pen- fábrica, vila operária, etc.J que se apóiam uns
so em sua forma capilar de existir, no ponto em nos outros".
que o poder encontra o nível dos indivíduos, atin- Um outro ponto essencial à analítica de Fou-
ge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, cault diz respeito ao caráter positivo, produtivo
suas atitudes, seus discursos, sua aprendiza- do poder. E nesse ponto ele opera mais um des-
gem, sua vida cotidiana. O século XVIII encon- locamento em relação à noção de poder fundada
trou um regime por assim dizer sináptico de po- sob o signo da lei, na qual o poder é essencial-
der [o poder disciplinar], de seu exercício no cor- mente negativo e repressivo (a proibição é a for-
po social, e não sobre o corpo social." (Foucault, ça fundamental quando olhamos a partir desse
1979a, p.131J ponto de vistaJ. Como ele diz, "Temos que deixar
Com relação ao poder do Estado na perspec- de descrever sempre os efeitos do poder em ter-
tiva foucaultiana, antes de considerá-lo como fo- mos negativos: ele 'exclui', 'reprime', 'recalca',
co das relações de poder que perpassam o cor- ·censura·, ·abstrai·, 'mascara·, 'esconde·. Na
po sacia f , é preciso entender que o Estado e su- verdade, o poder produz realidade, produz cam-
as instituições existem por apoiarem-se nas re- pos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e
lações de poder que estão investidas no corpo o conhecimento que dele se pode ter se origi-
social: "Ora, penso que, sem chegar a dizer que nam nessa produção." (Foucault, 1977, p. 1721
o poder de estado deriva das outras formas de O autor reconhece que há uma dificuldade em se
poder, ele é, ao menos, fundamentado sobre livrar dessa concépção jurídica que vê o poder
elas, e são elas que permitem ao poder de esta- como algo essencialmente repressivo, porque
do existir." (Foucault, 2003, p. 2681. E se de fa- ela "parece se adaptar a uma série de fenôme-
to podemos observar uma força considerável nos que dizem respeito aos efeitos do poder. "
nos aparelhos de estado, é porque estes se in- (Foucault, 1979a, p. 71 Mas então ele se per-
vestem das relações de força presentes na soci- gunta se o poder obteria aceitação e seria obe-
edade: "L .. l o Estado, com toda a onipotência decido se somente dissesse não. E responde:
do seu aparato, está longe de ser capaz de ocu- "O que faz com que .o poder se mantenha e seja
par todo o campo de reais relações de poder, e aceito é simplesmente que ele não pesa só co-
principalmente porque o Estado apenas pode mo uma força que diz não, mas que de fato ele
operar com base em outras relações de poder já permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma
existentes. O Estado é a superestrutura em re- saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo co-
lação a toda uma série de redes de poder que in- mo uma rede produtiva que atravessa todo cor-
vestem o corpo, sexualidade, família, parentes- po social muito mais do que uma instâm;:ia nega-
co, conhecimento, tecnologia e etc." (Foucault, tiva que tem pOr fUnÇãO reprimir. uB (idem,
1982, p.122J Podemos dizer, então, que ao mu- 1979a, p. 7J.
darmos o poder de estado, não necessariamen- Numa relação de poder, é importante dizer
te estamos mudando as outras formas de domi- que, para Foucault, a resistência não corres-
nação presentes no seio da sociedade. Foucault pende a um elemento externo o qual incidiria so-
nos dá o exemplo da URSS, onde houve uma mu- bre a relação como uma força autônoma. Não há
dança nos quadros governantes e nos modos de uma força de resistência na sociedade pela qual
produção econômicos, mas as mesmas rela- surgiriam as revoltas e rebeliões, mas estraté-
ções de poder que subjugavam as pessoas em gias locais (que podem se inscrever num conjun-
suas vidas cotidianas no mundo capitalista to de estratégias globais) destinadas a alterar
7. "Como se pode dizer que eram encontradas no sistema socialista ou transformar as relações de dominação, cujo
derivam do poder de estado o
conjunto das relações de po-
der que existem entre os dois (Foucault, 20031. sucesso depende de uma série de táticas e da
sexos, entre os adultos e as cri-
anças, na famflia, nos escritóri- Pelo o que foi exposto acima sobre o poder do própria articulação dessas estratégias a um ní-
os, entre os doentes e os sau-
dáveis, entre os normais e os Estado, percebemos claramente em Foucault o vel globa.l. Assim, a resistência ao poder é o ou-
anormais?" (Foucault, 2003,
p.268) abandono da noção de soberania- que situa o po- tro termo da relação e ela primeiramente de-
8. Não podemos deixar de der em termos de Direito-, pois as relações de nuncia, como um "interlocutor irredutível", uma
notar que Foucault não ignora
totalmente o caráter negativo poder que se dão fora do Estado não podem ser relação de força que se faz presente.
do póder. Segundo ele, o po-
der não é fundamentalmente analisadas em termos de proibição ou de impo- A possibilidade de resistência significa que
repressivo; e se por acaso ele
se exerce de modo repressivo, sição de uma lei; e também o abandono de um não há, para Foucault, um poder absoluto e infa-
é porque nesse caso age de
maneira precária. modelo centralizador no qual o Estado "detém a lível que deixaria imobilizados aqueles sobre os
prerrogativa de ser o centro [focal constituidor quais atua. Quando diz que há poder em todo lu-
E das relações de poder." (Maia, 1995, p. 871. gar, ele quer afirmar que na sociedade existem
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múltiplas relações de poder e não exclusivamen- exercido, e seu apoio, uma vez que sem a possi-
te que a existência de um poder irresistível e oni- bilidade de resistência, o poder seria equivalen-
presente atue nos corpos dos indivíduos. Assim te à determinação física)" (idem, 1 982, p. 90J
ele explica a relação entre poder e resistência: Penetrar nos domínios da obra de Foucault,
"Não coloco uma substância da resistência face tentando decifrar os mecanismos de sujeição e
a uma substância do poder. Digo simplesmente: controle das subjetividades através do instru-
a partir do momento em que há uma relação de mental oferecido pela analítica do poder, é um de-
poder, há uma possibilidade de resistência. Ja- safio e muito há por fazer nessa tarefa. Tentei
mais somos aprisionados pelo poder: podemos ressaltclr a contribuição de Foucault para a com-
sempre modificar sua dominação em condições preensão do fenômeno do poder fazendo refe-
determinadas e segundo uma estratégia preci- rência a dois mundos bem diferentes um do ou-
sa." (Foucault, 1 979a, p. 241 J tro: o mundo do selvagem e o do bárbaro. A par-
Por fim, vale lembrar também que Foucault, tir desses dois mundos, a Teoria do poder (com o
em seu texto de 1 982 O sujeito e o poder, define selvagem) e a analítica do poder de Foucault
a liberdade como condição para o exercício dopo- (com o bárbaro) tentam dar conta da dimensão
der. Nesta altura de seu trabalho, o que alguns do poder em nossas vidas. A Teoria do poderes-
chamam de "último Foucault", é revelada sua tá preocupada fundamentalmente com o poder
preocupação com as questões éticas em torno do Estado e sua origem, enquanto a analítica do
das quais os indivíduos devem buscar sua liber- poder redimensiona o papel do Estado e parte
tação9 . Escreve ele: "O poder é exercido so- para a análise das relações de poder que se dão
mente sobre sujeitos livres e apenas enquanto em domínios diversos da sociedade, não admi-
são livres. Por isto, nós nos referimos a sujeitos tindo o Estado como foco exclusivo irradiador
individuais ou coletivos que são encarados sob dessas relações. E contra o mundo do selva-
um leque de possibilidades no qual inúmeros mo- gem, com seu direito de natureza e sua disposi-
dos de agir, inúmeras reações e comportamen- ção em fundar a ordem a partir do contrato soci-
tos observados podem ser obtidos." (Foucault, al, Foucault nos apresenta o bárbaro na sua
1982, p.90J Continua dizendo que, numa rela- eterna luta com o outro, visando a alcançar uma
ção onde não há possibilidade de reação por par- posição de domínio. O bárbaro é uma figura que,
te daquele que está submetido a uma relação de por ser naturalmente guerreira, permite a
força, não há relação de poder, mas sim uma re- Foucault tratar a questão da "guerra como 'ana-
lação de "constrangimento físico". Como afir- lisador' das relações de poder." (Aiessandro
ma: " ... não há confrontação face a face entre po- Fontana, no posfácio a Em defesa da sociedade,
der e liberdade, que são mutuamente excluden- Foucault, 2002, p. 330J. Já a figura do selva-
tes (a liberdade desapareceria sempre que o po- gem, ilustrada na Teoria do poder, apresenta de
der fosse exercido), mas uma interação muito forma figurada alguns pontos para os quais
mais complicada. Nessa relação, a liberdade po- Foucault dirige sua crítica quando se dedica a es-
de aparecer como condição para exercício do po- tudar as relações de poder: o poder como pro-
der (simultaneamente sua pré-condição, já que priedade; a lei como encarnação do poder; o 'eco-
a liberdade precisa existir para o 'poder' ser nomismo' nas relações de poder e o Estado co-
mo foco das relações de poder que atravessam impõe a nós hoje não é o de procurar libertar o in-
a sociedade. divíduo do Estado e suas instituições, mas o de
Terminamos aqui com as palavras de Foucault nós nos libertarmos, a nós mesmos, do Estado
sobre o projeto político (que sua morte prema- e do tipo de individualização a ele vinculado. É
tura deixou inacabado) que envolve a constru- preciso promover novas formas de subjetivida-
ção de uma vida autônoma e livre: "poder-se-ia de, recusando o tipo de individualidade que nos
dizer, para concluir, que o problema, ao mesmo foi imposto durante tantos sééulos." (Foucault,
tempo político, ético, social e filosófico que se 1982, p.85J
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