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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v7i1.

20767

O Lugar das Contracondutas na Genealogia Foucaultiana


do Governo
[The Place of the Counter-Conducts in the Foucauldian Genealogy of
the Government]

Helrison Silva Costa*

Resumo: Neste artigo, analisamos as contracondutas apresentadas


por Michel Foucault no curso de 1978 Sécurité, Territoire, Population.
Nossa sugestão é a de que ao examinarmos o pastorado cristão e as
reações a esta forma de poder caracterizada pela condução da vida é
possível perceber um deslocamento no pensamento político foucaul-
tiano que passa a compreender o poder como práticas de governo.
Essa pista leva à localização das contracondutas que surgem em re-
lação ao pastorado e permanecem nas reações frente às práticas de
governo modernas. Nesses termos, as contracondutas aparecem como
ações ético-políticas, estando na origem da “atitude crítica” da moder-
nidade. Assim, analisando a genealogia do governo apontamos que as
lutas contemporâneas definidas como “lutas desassujeitadoras” (luttes
de désassujettissement) têm seu rastro nas contracondutas e na crítica
foucaultiana.
Palavras-chave: Contracondutas, poder pastoral, governo, governa-
mentalidade, crítica.
Abstract: In this paper, we analyse the counter-conducts presented by
Michel Foucault in the course of 1978 Sécurité, Territoire, Population.
Our suggestion relies on the examination of the Christian pastorate
and the reaction to this form of power characterized by the conduct
of life; from which is possible to notice Foucault has dislocated his
political thought, considering power as practices of government.
This understanding leads the counter-conducts that come with the
pastorate and remain in the reactions front of the practices of govern-
ment. Hence, the counter-conducts appear as ethical and political
actions, at the origin of the critical attitude of modernity. Thus,
when we analyse the genealogy of the government we believe that
the contemporary struggles defined as “desubjectifications struggles”
(luttes de désassujettissement) have their traces in the counter-conducts
and in the Foucauldian critique.
Keywords: Counter-conducts, pastoral power, government, govern-
mentality, critique.

* Doutorando em Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Bolsista do CNPq. Mestre em
Filosofia pela UFMG e Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
E-mail: hcosta.fil@outlook.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1061-3818.

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Introdução seu ensejo de governar os homens.


Poderíamos atribuir a importân-
No arco das pesquisas genealógi- cia do estudo das contracondutas
cas foucaultianas, a noção de po- ao menos a três aspectos princi-
der é estendida para uma com- pais.
preensão das práticas de governo. Primeiramente, o estudo das
No curso de 1978 no Collège contracondutas permite apreen-
de France emph§écurité, Terri- der o lastro histórico de um voca-
toire, Population, Foucault as- bulário técnico que precisa a con-
sume como tarefa a realização de cepção de poder enquanto con-
uma genealogia da governamen- dução de condutas, estendendo
talidade. Naquele ano, o escopo a analítica das relações de poder
consiste em identificar historica- em seu aspecto micropolítico até
mente os entrecruzamentos e re- a análise das práticas de governo
des que se ligaram para a forma- da governamentalidade. É a partir
ção das tecnologias governamen- da abordagem das contracondu-
tais. Nesse percurso, o autor lo- tas que Foucault pode problemati-
caliza na genealogia das práticas zar questões políticas assimilando
de governo uma certa forma de também uma perspectiva ética, tal
condução de condutas desenvol- como empreende em seus últimos
vida e ampliada pelo cristianismo trabalhos, a partir da articulação
desde os seus primórdios, a partir do governo de si e dos outros no
do século III até o século XVI, a âmbito da governamentalidade.
que Foucault se refere como poder Segundo, a análise das con-
pastoral. Nesse quadro, o tema tracondutas identifica comporta-
das contracondutas aparece na es- mentos adversos e interpelações
teira do pastorado na medida em às práticas pastorais que se formu-
que Foucault investiga as resis- lam no interior mesmo da pasto-
tências e insubmissões específicas, ral cristã. Do mesmo modo, iden-
“as formas de ataque e de contra- tifica também reações às práticas
ataque que se afirmaram no pró- de governo mobilizadas pela ra-
prio campo do pastorado” (FOU- zão de Estado, configurando con-
CAULT, 2004, p. 198). As práti- tracondutas especificamente reli-
cas de condução de condutas co- giosas e contracondutas especifi-
locadas pelo pastorado incitam o camente políticas. Isso muito con-
surgimento de práticas de contra- tribui para corroborar a perspec-
condutas que assumem a função tiva foucaultiana que entende o
de estabelecer táticas de enfrenta- poder como um conjunto de rela-
mentos às investidas do poder e ao ções estratégicas que é localizado

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em um campo imanente, o que O termo contraconduta na refor-


significa procurar no terreno onde mulação da noção de poder
as práticas de poder são investi-
das as lutas e as criações que con- Na aula de 1º de março de 1978
figuram o jogo das condutas e das o tema do poder pastoral é abor-
contracondutas no campo da go- dado na tentativa de extrair o las-
vernamentalidade. tro histórico que o liga ao novo
Por fim, é ainda na localização tópico de análise, precisamente, o
das contracondutas que Foucault das contracondutas. A tese do au-
situa a genealogia de um com- tor é a de que a as técnicas empre-
portamento que se caracteriza por endidas pela pastoral cristã pro-
ser uma atitude outra em relação dutoras de um poder ao mesmo
aos modos instituídos e normali- tempo individualizante e totali-
zados das práticas de governo que zante se fazem presentes na go-
caracterizam as lutas da contem- vernamentalidade política mo-
poraneidade. Nessa senda, será derna, seja na forma de razão de
pensado por Foucault o apareci- Estado ou liberalismo. No iní-
mento da atitude crítica que se de- cio da modernidade, essas técni-
fine, grosso modo, como um ethos cas ultrapassam o âmbito religi-
característico da modernidade, o oso em que estavam circunscritas,
qual interpela os modos de go- o que coloca em evidência a ques-
verno das práticas governamen- tão de como governar em diferen-
tais. tes campos sociais.
Sem a pretensão de explorar Todas as lutas importantes ocor-
em sua totalidade a extensa gama ridas no Ocidente desde o século
de possiblidades que esses as- XIII até o século XVI - cujo ápice
pectos comportam, nosso intuito se deu na Reforma e na Contrar-
é o de compreender como essa reforma - tomam corpo em torno
problemática toma corpo na pes- da prática pastoral. Isso por-
quisa genealógica da governamen- que o pastorado surge a partir da
talidade e se torna imprescindí- ideia desenvolvida pela Igreja de
vel para a abordagem do poder. que cada indivíduo, deveria “ser
Para tanto, pretende-se nuançar governado e deixar-se governar”
os pontos acima sugeridos com (FOUCAULT, 2015, p.35); em toda
o propósito de localizar o lugar sua vida e ações. Essa prática
das contracondutas na genealogia de governo assume como escopo
do governo e, assim, situando o “conduzir a conduta dos indiví-
tema na governamentalidade sob duos” (FOUCAULT, 2004, p.125)
a égide da crítica. e para isso, faz funcionar uma di-
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reção da consciência conjugada a mas interrogavam sobre o modo


um sistema de obrigações e pro- de sua atuação. Assim, as con-
dução de verdades. tracondutas religiosas aparecem
As técnicas e procedimentos do como forma de reação aos mo-
poder pastoral amplamente de- dos de governo do poder pastoral
senvolvidos pela Igreja desde a e contribuem para a reformula-
patrística grega, e mais especifi- ção da noção de poder que passa
camente por São Gregório de Na- a ser entendido como prática de
zianzo no século IV, receberam a governo. Vemos, então, que as
designação de oikonomia psuchôn, batalhas em torno do poder pas-
ou seja, economia das almas. Fou- toral em vez de promover o desa-
cault destaca o uso do termo oi- parecimento dessa prática política
konomia para designar a prática promoveram “um prodigioso for-
pastoral. O termo passa para o talecimento que saiu dessa série
mundo romano como regimen ani- de agitações e de revoltas” (FOU-
marum, isto é, regime das almas, CAULT, 2004, p. 153), pois “ques-
o que suprime a referência ao ca- tionam o modo de governo pasto-
ráter material do termo grego oi- ral, mas não o governo pastoral”
konomia e se aproxima de uma co- (CANDIOTTO, 2010, p.110. Gri-
notação moral com a utilização do fos do autor). No lugar da suplan-
termo regimen. Dessa forma, em tação do poder pastoral as bata-
francês o que melhor designa essa lhas em torno dele tiveram como
prática de governo não seria éco- efeito uma intensificação maior
nomie (economia), mas o termo das práticas de condução de con-
conduite (conduta), o qual apa- dutas, tanto em sua forma pro-
rece tardiamente na França no sé- testante quanto católica, que pro-
culo XVII nos escritos de Michel vocaram um profundo rearranjo
de Montaigne comportando uma do dispositivo pastoral, como ob-
dupla referência: 1) A conduta é serva Candiotto: “Na dimensão
a atividade que consiste em con- espiritual, ocorre majoração das
duzir, a condução; 2) A maneira condutas de devoção, dos con-
como uma pessoa se conduz, como troles espirituais, da relação en-
se deixa conduzir, como se é con- tre fiéis e seus pastores; quanto
duzido e como se comporta sobre à extensão material, assume ou-
o efeito de uma conduta (FOU- tros âmbitos tais como a propri-
CAULT, 2004, p. 196-197). edade, a educação das crianças”
Foucault nota que nenhuma (2010, p.112). Nas seitas protes-
dessas lutas visavam eliminar as tantes desenvolve-se um pasto-
práticas de governo do pastorado, rado meticuloso embora hierar-

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quicamente flexível, já na Igreja ria do pastorado, enquanto prática


Católica ocorre um acirramento de governo insere-se na história
das práticas pastorais e o enrije- da governamentalidade que com-
cimento das estruturas hierárqui- preende as relações no governo de
cas. Com efeito, evidencia-se e si e dos outros.
assume maior proporção o pro-
blema da condução de condutas, a
Não houve passagem do
partir do que se desenvolverá prá-
pastorado religioso à ou-
ticas de governo em âmbitos di-
tras formas de conduta,
versos da sociedade: “arte pedagó-
de condução, de direção.
gica, arte política, arte econômica,
Houve, de fato, intensifi-
se vocês quiserem – e de todas ins-
cação, multiplicação, pro-
tituições de governo, no senso am-
liferação geral dessa ques-
plo que tinha a palavra governo
tão e de suas técnicas de
nessa época” (FOUCAULT, 2015,
conduta. Com o século
p.36). A partir disso, a reflexão
XVI entra-se na era das
em torno da multiplicidade das
condutas, na era das di-
práticas de governo surge como
reções, na era dos gover-
um problema político que cor-
nos (FOUCAULT, 2004, p.
responde à “governamentalização
236).
da sociedade” (FOUCAULT, 2015,
p.41).
O poder pastoral serve como A questão do governo se alastra na
porta de entrada a Foucault no modernidade e adentra o âmbito
tema do governo. Ele localiza político, inserido a pergunta sobre
com esta prática um tipo novo como melhor governar às práticas
de arranjo político que colocava de poder nascentes, seja a razão de
como problema central os modos Estado e posteriormente o libera-
de condução. Forma-se um poder lismo. O problema é colocado nos
que se pergunta initerruptamente seguintes termos:
sobre a maneira de melhor gover-
nar o outro, de guiar suas ações Segundo qual racionali-
com o propósito de conduzi-lo ao dade, qual cálculo, qual
melhor lugar. A técnica pastoral tipo de pensamento se po-
coloca como objetivo conduzir a derá governar os homens
conduta dos homens, mantendo no quadro da soberania?
sua especificidade sem se con- (...) sobre o quê, espe-
fundir com um poder político ou cificamente, deve incidir
econômico. Dessa forma, a histó- esse governo dos homens,
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que não é aquele da Igreja, Ao inserir as relações de poder na


que não é aquele do pas- chave do governo, Foucault con-
torado religioso, que não segue desarmar a ideia do Estado
é da ordem do privado, como um lugar privilegiado da
mas que é da função e da análise política, bem como coloca
alçada do soberano e do em xeque a existência cristalizada,
soberano político? (FOU- forte e duradoura dessa institui-
CAULT, 2004, p.238). ção de modo que ele a percebe
como um efeito do processo de go-
vernamentalização implementado
Desse modo, o que Foucault faz a partir do século XVI; um efeito
é traçar a genealogia do governo das relações estratégicas de poder
moderno perseguindo o que em abarcadas pela governamentali-
sua análise coincide também com dade. Destarte, a governamentali-
a genealogia do Estado moderno, dade permite tratar o problema da
uma vez que considera este último condução dos indivíduos fora das
apenas como um efeito do pro- dimensões cristalizadas da corres-
cesso de governamentalização da pondência entre governo e Estado,
sociedade, como evidencia: este último é tomado pelo autor
não como uma unidade oriunda
Não se pode falar do da multiplicidade das relações de
Estado-coisa como se poder, mas ele mesmo é con-
fosse um ser se desen- siderado como uma multiplici-
volvendo a partir dele dade de forças. Sendo assim,
mesmo e se impondo por Foucault prescinde partir do Es-
um mecanismo espontâ- tado considerando-o como o nú-
neo, como automático, aos cleo central do poder a partir do
indivíduos. O Estado é qual se pode deduzir o controle
uma prática. O Estado exercido em nossa sociedade. O
não pode ser dissociado que ele faz é perscrutar o apare-
do conjunto de práticas cimento das formas de governo,
que fizeram efetivamente que se desdobram em um Estado
que o Estado se tornasse governamentalizado, no lugar de
uma maneira de governar, tentar compreender as transfor-
uma maneira de agir, uma mações como uma crescente es-
maneira também de se re- tatização da sociedade. Desse
lacionar com o governo modo, uma sociedade governa-
(2004, p.282). mentalizada obedece a uma fun-
ção de governo que se desloca do

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poder pastoral, cujo objetivo era estudos de Foucault, estendendo-


assegurar a salvação da alma dos se dessa vez até as práticas de po-
indivíduos (salut), até o objetivo der antigas, o que permite melhor
de assegurar a salvação do indiví- pensar a governamentalidade pro-
duo em seus aspectos vitais (santé) duzida pelo conjunto de relações
fora da transcendência, de modo de governo de si e dos outros.
que a prosperidade dos sujeitos O que vemos acontecer em 78
governados possa ser garantida. é a tentativa de localizar termos
É importante considerar que a e análises históricas que possibi-
análise realizada por Foucault so- litem a compreensão do desloca-
bre o poder pastoral não se res- mento operado na noção de poder.
tringe ao curso de 78, privilegi- Assim, Foucault dedica-se a uma
ado aqui pelos nossos propósitos. apreciação acerca do vocabulário
Se no curso desse ano ele encon- técnico por ele utilizado. Nota-
tra as descontinuidades entre a se a construção de um léxico que
governamentalidade moderna e a possa designar o conjunto de no-
prática do poder pastoral a par- ções e reflexões inéditas que apa-
tir do século III, no curso Du gou- recem a partir da inserção do po-
vernement des vivants de 1980 en- der na trilha do pastorado cris-
contra formas de governo ligadas tão na história do governo. O uso
à direção da consciência que são do vocábulo “contraconduta” cor-
anteriores a esta datação e que responde a uma opção justificada
estão presentes no cristianismo pelo autor a partir da recusa de
primitivo do século I. O influxo outros termos, como se segue: “re-
do tema da direção da consciên- volta de conduta”, palavra muito
cia nas considerações do governo precisa e muito forte para desig-
não foi desconsiderado pelo autor nar certas formas de resistência
que volta a examiná-lo nos cur- mais difusas e sutis; “desobediên-
sos Subjectivité et Verité em 1981 e cia”, considerado um termo muito
L’hermeneutique du Sujet em 1982, fraco para designar esse tipo espe-
desta vez procurando compreen- cífico de enfrentamento; “insub-
der as relações de governo de si missão”, demasiado restrito à in-
no contexto grego da Antiguidade submissão militar; “dissidência”,
e em que estas se distinguem das muito ligado ao movimento de re-
práticas de direção cristãs, tema já sistência soviético apesar de de-
assinalado em 1980 com a distin- signar precisamente os movimen-
ção entre exomolegese e exogorese. tos em relação à condução de con-
Isso significa que mais uma vez dutas. Ademais, o uso do termo
a questão do governo perpassa os “contraconduta” tem a vantagem

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de se referir ao senso ativo da tizar seu caráter produtivo. Isso


palavra “conduta”. Daí a não- distancia ainda mais Foucault de
utilização do termo “inconduta” uma concepção jurídica de po-
que apenas designa um senso pas- der que o entende como domi-
sivo ou de negação. Além disso, nação e repressão. A contracon-
a utilização desse termo impede a duta designa, portanto, o movi-
substantificação, comportada, por mento nos jogos de poder capaz
exemplo, pelo termo dissidência, de criar outras possibilidades de
no epíteto dissidente. Foucault ação, na medida em que recusa,
considera perigoso essa substan- não propriamente o governo, mas
tificação, que abre espaço para o modo como se é governado. As-
se afirmar, por exemplo, que um sim, Lorenzini (2016, p. 10) nota
louco numa instituição psiquiá- que a noção de conduta não apa-
trica é um dissidente, atribuindo rece simplesmente como o nega-
um aspecto de santificação e he- tivo da contraconduta, mas refere-
roicização sobre o qual o autor se a uma conotação positiva na
desconfia da utilidade para a luta medida em que comporta a pos-
política. Desse modo, a noção sibilidade do sujeito conduzir-se
de contraconduta desloca o foco a si mesmo em meio à condução
para observação das práticas que exercida por outros. Portanto, é
compõem a relações de poder que na ambiguidade comportada nas
atravessam os sujeitos. relações de governo que reside a
Tais considerações demonstram possibilidade de contracondutas
a preocupação foucaultiana em e se evidencia a dimensão ético-
encontrar designações que evi- política das relações de poder na
denciem a mudança operada na articulação entre governo de si e
concepção de poder. Na medida governo dos outros.
em que ele é compreendido como A partir disso, podemos afirmar
condução de condutas a noção de que o termo contraconduta apa-
resistência (porque ligada à con- rece no terreno das estratégicas
cepção bélica de poder) torna-se onde se movimentam os mecanis-
insuficiente para caracterizar as mos e as práticas de governo. As
dimensões produtivas dos com- relações de poder correspondem
portamentos e dos movimentos à condução de condutas, ou seja,
que procuram alterar os modos de à capacidade de certos indivíduos
condução das práticas de governo, ou grupos interferirem no com-
devendo ela própria ser reformu- portamento dos outros, limitando
lada. De fato, a própria reformu- suas ações. Tudo é colocado em
lação do poder serve para enfa- termos de imanência e estratégias

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e é nessa concepção que adquire dida por Foucault no curso de


força a noção de contraconduta, 78 apresenta-se uma história das
enquanto o movimento que mobi- contracondutas que acompanham
liza as práticas para criar outras as diferentes tecnologias de go-
possibilidades de agir no mundo, verno, elas assinalam a crise de
a partir da interpelação das prá- determinadas práticas de governo
ticas de poder que tendem ao ex- e movimentam as disposições das
cesso de governo. estratégias nos jogos de poder.

As contracondutas no campo da Se é verdade que o pas-


governamentalidade torado é um tipo de po-
der bem específico que
Na história da governamentali- se dá por objeto a con-
dade inserem-se as contracondu- duta dos homens- quero
tas religiosas enquanto os movi- dizer por instrumento os
mentos que procuram contestar a métodos que permitem
atuação do poder pastoral. Fou- conduzi-los e por alvo a
cault identifica cinco formas mai- maneira pela qual eles se
ores de contraconduta, a saber, o conduzem, pela qual eles
ascetismo, as comunidades, a mís- se comportam-, se, por-
tica, a Escritura e a crença esca- tanto, o pastorado é um
tológica. Demarca-se a especifi- poder que tem mesmo por
cidade desses comportamentos de objetivo a conduta dos ho-
resistência nas relações de poder mens, creio que, corre-
em que estão inseridos. Contudo, lativamente a isso, apa-
“as contracondutas não podem receram movimentos tão
ser restritas ao pastorado, pois se específicos quanto o po-
trata de uma ferramenta concei- der pastoral (FOUCAULT,
tual, cujo campo de aplicação, de 2004, p.198).
um teórico e histórico ponto de
vista, é muito extenso” (LOREN-
ZINI, 2016, p. 12), isto é, elas No prolongamento do curso é pos-
integram um campo mais vasto sível notar que Foucault acompa-
de pesquisa que é o da governa- nha as transformações e as espe-
mentalidade em seu aspecto ético- cificidades das contracondutas em
político. Desse modo, podemos relação a cada forma de arte de go-
afirmar que concomitantemente verno. O autor salienta a alteração
à história da governamentalidade quanto ao campo de atuação das
propriamente política empreen- contracondutas que desliza pau-
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latinamente do pastorado para o rior das relações do poder pasto-


âmbito político como atesta o in- ral engendra-se movimentos que
cremento no processo de governa- têm como escopo alterar as téc-
mentalização. Como ressalta Da- nicas de governo, bem como os
vidson (2011, p.26) se o ‘governo efeitos que elas produzem. Con-
dos homens’ é entendido como forme Foucault, as contracondu-
uma atividade que se dá sobre tas caracterizam-se por serem mo-
as condutas individuais, o ‘poder vimentos que colocam como obje-
pastoral’ concentra sua atividade tivo outra conduta. Dessa relação
no regime das instituições reli- agonística que se desenvolve en-
giosas, enquanto a governamen- tre a conduta e a contraconduta
talidade concentra sua atividade expressa-se o caráter de insubor-
na direção das instituições polí- dinação das reações aos modos de
ticas. Ressaltamos a impossibili- governo.
dade apontada por Foucault de se De fato, o poder pastoral ativa
referir a isso como um processo técnicas de governo assujeitado-
de secularização ou autonomiza- ras as quais circunscrevem os in-
ção de um campo em relação a ou- divíduos a um sistema de obedi-
tro. ência. Por sua vez, as contracon-
Definida a contraconduta como dutas religiosas serão o compor-
face produtiva que altera as prá- tamento responsável por questi-
ticas de governo estabelece-se seu onar os discursos de verdade do
vínculo na governamentalidade, pastorado que exerce poder sobre
enquanto o jogo constituído entre os indivíduos na medida em que
a “insubordinação da liberdade e solicita uma obediência absoluta.
a incidência de governo” (LOREN- Tazzioli argumenta no sentido de
ZINI, 2016, p. 12). Desse modo, que as contracondutas ao se colo-
a vontade de ser conduzido de carem como reação às investidas
maneira outra pode ser empirica- de poder enquanto condução de
mente localizada em relação a um conduta comportam o enfrenta-
poder que é exercido, em relação mento dos efeitos normativos atu-
a uma “outridade”. Isto é: “re- antes no poder pastoral, que aca-
sistência sempre aponta para uma bam por produzir: “uma assi-
mudança, modificação, transfor- metria constitutiva, como práticas
mação de uma situação especí- e formas de vida que aparecem
fica, para que o indivíduo seja como discordantes em relação aos
conduzido (ou para conduzir a si códigos normativos que elas con-
mesmo) autrement” (LORENZINI, trariam (counter-act) e alteram”
2016, p. 12). Logo, no inte- (2016, p. 99). O caráter de de-

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sobediência e insubordinação das namentais para conduzir a con-


contracondutas em relação às nor- duta dos indivíduos. A partir
mas de conduta e verdades pré- disso ele pode pensar o problema
fixadas que as práticas de poder da resistência nos termos da con-
fabricam evidenciam seu aspecto traconduta, ou seja, “a contracon-
ético-político ao apontar para o duta se torna para a relação de
sujeito que é governado e governa poder uma condição de sua pos-
a si mesmo. Muito embora em sibilidade; um ponto de acopla-
1978 Foucault esteja mais preo- mento essencial às estratégias que
cupado em analisar os desdobra- se intercambiam de uma parte à
mentos políticos desses movimen- outra” (MALETTE, 2006, p. 73).
tos, o autor também aponta para Foucault irá perceber no gesto da
uma dimensão ética em torno da contraconduta uma decisão do su-
problemática analisada ao se refe- jeito que recusa certas formas de
rir à motivação do sujeito gover- governo. Trata-se de uma deci-
nado, na tentativa de exercer um são ética de como governar a si
maior governo sobre si mesmo. mesmo em meio às interferências
As contracondutas surgem no externas em sua conduta e que te-
mesmo espaço onde se dão as apli- rão efeitos políticos. É este mo-
cações do poder, na medida em vimento que irá permitir a apro-
que a existência de relações de ximação foucaultiana com a defi-
poder pressupõe sujeitos que se nição de Kant com a Aufklärung.
recusam a serem governados de As reações ao poder não são atitu-
forma irrestrita. Para Foucault des mecânicas, devendo ser com-
os mecanismos de poder governa- preendidas a partir dos modos de
mentais funcionam com base na subjetivação dos sujeitos que exer-
aceitação dos indivíduos em se- cem distintas práticas e estabele-
rem conduzidos desse modo. Por- cem uma pluralidade de relações
tanto, relações de poder, ao con- sociais. Com efeito, há uma reto-
trário da dominação, implicam mada da tese presente em La vo-
em que o indivíduo deve ser li- lonté de Savoir (1976) acerca do
vre para escolher ser governado poder que não se dá sem resistên-
ou não ser governado assim. Go- cia. A noção de governo permite
vernar implica em estruturar o pensar esta relação como con-
campo de liberdade e o campo duta/contracondutas. Para Can-
de possibilidade de ações do su- diotto, isso tem como efeito o des-
jeito. Então, a noção de con- locamento de uma “análise de dis-
duta é fundamental para redefini- positivos anônimos” para o pro-
ção das relações de poder gover- blema do governo como “relação

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entre indivíduos agentes” (CAN- variadas técnicas de governamen-


DIOTTO, 2010, p. 111). Assim, o talidade das quais elas tentam es-
poder pastoral que engatilha uma capar” (TAZZIOLI, 2016, p. 99
série de contracondutas, se forma, - grifo da autora). Não existindo
ele mesmo, em um campo de lu- possibilidade de ausência de go-
tas e enfrentamentos, como reação verno, as contracondutas devem
a um conjunto de acontecimen- ser uma condição permanente que
tos, estabelecendo-se uma “corre- não têm outra finalidade senão a
lação imediata e fundadora en- de se insurgir frente aos modos
tre a conduta e a contraconduta” de governo, compondo o jogo da
(FOUCAULT, 2004, p. 199). governamentalidade. Não existe
Logo, as contracondutas são de- assim um lugar de liberdade ab-
finidas por sua forma, concer- soluta ou de felicidade irrestrita,
nente a uma reação à imposição porém isso não significa que não
de formas de conduta, quanto por se deve empreender lutas que tor-
seus objetivos de introduzir ou- nem a existência humana mais li-
tros modos de funcionamento das vre, insuflada por uma prevalên-
práticas de conduta. A noção cia mais acentuada do governo de
de contraconduta é marcada por si, quer dizer, do governo que o
uma “dependência teórica” sobre sujeito exerce sobre si mesmo.
a noção de conduta, de modo que Em nosso entendimento, essa li-
“embora Foucault originalmente mitação conceitual de dependên-
a construa como um conceito fi- cia a uma conduta (conceitual e
losófico bastante rico e interes- não prática, pois como vimos as
sante, ele nunca concedeu a ele contracondutas alteram e produ-
um status conceitual autônomo” zem as práticas de governo) é re-
(LORENZINI, 2016, p. 9 – grifo solvida por Foucault a partir de
do autor). Concorda com essa uma outra abordagem do pro-
opinião Tazzioli ao afirmar que blema do governo que dispensa
para Foucault a noção de contra- a análise centrada na contracon-
conduta permite uma revisão dos duta. Mesmo após todo esforço
jogos estratégicos colocados em de definição o termo cede lugar à
termos de poder/resistência, de atitude crítica. Esse termo apa-
modo que o prefixo “contra” não rece pela primeira vez na confe-
caracteriza uma forma reativa ao rência à Sociedade Francesa de Fi-
poder. Isso porque permanece “ losofia em abril de 1978, isto é,
a produtividade das contracondu- apenas algumas semanas após o
tas e a irredutibilidade delas aos fim do curso no Collège de France
limites e condições impostas por naquele ano. Na ocasião, Foucault

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retoma a análise do pastorado e meio aos jogos de poder. Assim,


apresenta a reelaboração do poder existe um caráter localizado das
como condução de condutas. No contracondutas em relação às prá-
entanto, o termo contraconduta ticas de governo “na forma de uti-
não aparece, estando implícito na lização permanente de elemen-
noção a ser desenvolvida de ati- tos táticos que são pertinentes na
tude crítica, enquanto o ethos que luta” (FOUCAULT, 2004, p.219).
caracteriza a ação dos indivíduos Dessa forma, no curso de 78, as
de pôr em questão as investidas contracondutas fazem aparecer a
do poder. Tal questionamento ex- relação existente entre o governo
pressa uma atitude refletida de se de si e dos outros que marcará os
colocar frente às práticas de go- últimos estudos foucaultianos.
verno, inquirindo o modo como A problemática em torno da go-
se é governado e recusando deter- vernamentalidade será retomada
minadas formas de condução de por Foucault, a partir das contra-
conduta. Diante disso, a atitude condutas sob a égide da crítica,
crítica será o aporte histórico- ligando a história do pastorado às
filosófico por meio do qual Fou- práticas de governo contemporâ-
cault desenvolve sua concepção de neas. Com efeito, a atitude crítica
filosofia empreendendo uma ten- enquanto movimento de interpe-
tativa de conceitualização do es- lação do poder que se exerce a par-
tudo das contracondutas no âm- tir da questão de “como não ser
bito do poder pastoral e das prá- governado?” (FOUCAULT, 2015,
ticas de resistências. É nesses ter- p. 36-37) desdobra-se das con-
mos que Foucault aproxima ati- tracondutas. Como aponta Fré-
tude crítica e Aufklärung e pode deric Gros (2006, p.163), a partir
fazer sua inserção na tradição crí- da aproximação a Kant e a ques-
tica inaugurada por Kant. tão da Aufklärung, Foucault rea-
liza uma leitura que tem como re-
ferência a noção de contraconduta
A abertura das contracondutas
extraída dos estudos do poder
para a crítica e para luta política
pastoral, de modo que a leitura
Como vimos, as reações em torno permanece em um nível empírico
das práticas de governo não impli- de análise, recusando a perspec-
cam em ruptura nem tampouco tiva transcendental utilizada pe-
procuram inserir modos de go- los autores neo-kantianos.
verno exteriores ao âmbito onde No entanto, é a partir dos estu-
emergem. Elas se constituem de dos das contracondutas que Fou-
maneira indefinida e aberta em cault chega à noção de atitude crí-

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tica, a qual dará sustentação ao está sendo governado. Sendo as-


autor para propor uma aproxima- sim, a especificidade da atitude
ção com Kant. Conforme ressal- crítica a qual nos referíamos pode
tam Lorenzini e Davidson (2015, ser extraída da relação com o
p.16), a ideia de crítica não parte avanço da governamentalização
do pensamento de Kant, ela está da sociedade intensificada a par-
arraigada nas contracondutas pas- tir da modernidade, de modo que
torais. Kant apenas aparece em se considerarmos o comentário de
um segundo momento, precisa- Gros: “a crítica, tal como se encon-
mente a partir da proximidade, tra aqui identificada, não é uma
na leitura que o próprio Foucault teoria, nem uma doutrina, nem
realiza da atitude crítica como in- um sistema: é uma recusa em ser
terpelação dos efeitos de verdade governado assim ou desse modo,
que permite ao sujeito diminuir uma recusa em obedecer” (GROS,
a dependência quanto a governos 2006, p. 162). A crítica foucaul-
externos, ampliando as possibili- tiana se define em relação à ati-
dades do governo de si mesmo e tude crítica formulada a partir da
que corresponderia à saída da me- análise das contracondutas reli-
noridade descrita por Kant na de- giosas desenvolvidas no seio das
finição do Esclarecimento. Diante lutas antipastorais e, portanto, se
disso, a atitude crítica será o su- caracteriza pela dispersão e não-
porte histórico-filosófico por meio identificação com um sistema filo-
do qual Foucault desenvolve sua sófico, teórico e abstrato.
concepção de filosofia empreen- Foucault associa as lutas em
dendo uma tentativa de conceitu- torno das práticas pastorais aos jo-
alização do estudo das contracon- gos de poder da atualidade: “elas
dutas no âmbito do poder pastoral visam uma realidade histórica que
e das práticas de resistências. existe de uma maneira que não é
Com efeito, o aparecimento da talvez aparente, mas é extrema-
atitude crítica como um ethos pre- mente sólida nas sociedades oci-
dominante na modernidade liga- dentais desde séculos e séculos”
se à problemática crescente e cada (FOUCAULT, 2001, p. 548). Isto é,
vez mais central das artes de go- as lutas da contemporaneidade se
verno na modernidade que re- dão em torno da maneira de não
monta ao surgimento do poder ser governado do mesmo modo
pastoral. Esses dois acontecimen- que ocorria com o poder pastoral.
tos estão relacionados na medida Tais lutas poderiam ser classifica-
em que as investidas de poder ge- das como contracondutas.
ram reações por parte de quem Essas lutas se configuram como

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lutas imediatas, localizadas na co- dernas de governo conseguem al-


tidianidade e que tocam aos as- cançar. As lutas contra a sujeição
pectos mais imediatos da vida hu- aparecem antes em nossa Histó-
mana compondo os jogos de poder ria, não é uma novidade do nosso
em torno da loucura, da medicali- presente. Como vimos, a própria
zação da vida, das lutas prisionais, Reforma assinala uma crise em re-
da captura do corpo e da sexuali- lação à experiência ocidental da
dade, da ecologia, etc. A dificul- subjetividade.
dade em perceber essas lutas se
dá precisamente pelo caráter dis-
perso que elas apresentam. Por se Todos os movimentos que
exercerem em uma dimensão co- tiveram lugar nos séculos
tidiana e incidirem no rastro de XV e XVI, encontrando
“uma forma de poder que não é sua expressão e justifica-
exatamente nem um poder polí- ção na Reforma, devem
tico ou jurídico, nem um poder ser compreendidos como
econômico, nem um poder de do- os indicadores de uma
minação ética, e que, no entanto, crise maior que afeta a
teve grandes efeitos estruturantes experiência ocidental da
no interior de nossas sociedades” subjetividade e de uma
(FOUCAULT, 2001, p.548). revolta contra o tipo de
Em Le Sujet et le pouvoir de poder religioso e moral
1982, Foucault identifica três ti- que havia dado forma, na
pos distintos de lutas sendo a pre- Idade Média, a essa sub-
dominante na atualidade as que jetividade (FOUCAULT,
são opostas às formas de assujei- 2001, p. 1047).
tamento que ligam o sujeito a ele
mesmo, assegurando que ele es- Desse modo, Foucault relaciona
teja submetido aos outros. Dito as lutas contemporâneas ao hori-
de outro modo, as contracondutas zonte histórico do pastorado, ou
da nossa atualidade se localizam seja, as lutas contra a sujeição
em meio às investidas das práti- são prolongamentos das lutas em
cas refletidas de poder que pro- torno da maneira de ser gover-
curam governar os indivíduos in- nado. Assim: “a razão pela qual
terferindo sobre a conduta deles. esse tipo de luta tende a prevale-
Elas se configuram assim como lu- cer em nossa sociedade se deve ao
tas que contestam os modos como fato de que uma nova forma de
se é governado nos mais variados poder político se desenvolveu de
âmbitos onde as tecnologias mo- maneira contínua desde o século
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XVI” (FOUCAULT, 2001, p. 1047). sentido de desassujeitar os indi-


Essa nova forma de poder pro- víduos enredados nessas relações
piciou o aparecimento do Estado de poder. A partir dessa aná-
que arregimenta técnicas indivi- lise o pensamento político de Fou-
dualizantes e totalizantes. Por- cault se desdobra em uma pers-
tanto, as lutas contemporâneas se pectiva ético-política onde o su-
efetivam em relação aos modos jeito aparece como produtor (e
de individualização que procuram não só efeito) de práticas que mo-
atar os indivíduos a identidades dificam as formas de governo que
pré-fixadas e fazer com que se re- o perpassam. Tal movimento não
conheçam em verdades absolutas. pode prescindir da crítica enten-
dida como forma de contestação
do excesso de governos alheios.
Considerações Finais
Sendo assim, o tema das con-
No curso de 1978, Foucault apre- tracondutas em 78 abre cami-
senta a noção de contraconduta a nho, portanto, para desdobramen-
partir da necessidade de ampliar e tos ainda não totalmente rastre-
reformular a noção de resistência ados nos estudos foucaultianos.
em razão do deslocamento quanto O aspecto instável da governa-
à compreensão do poder. O termo mentalidade atesta que as relações
tenta contornar a dimensão nega- de poder envolvem sujeitos livres.
tiva que se imagina do lado do Essa noção, portanto, abarca “o
contrapoder e abre espaço para conjunto de práticas pelas quais
compreensão da relação entre go- pode-se constituir, definir, orga-
verno de si e dos outros. nizar, instrumentalizar as estraté-
Como vimos, o poder é pen- gias que os indivíduos, em sua li-
sado a partir do pastorado cristão berdade, podem ter uns em rela-
que exerce um poder individua- ção aos outros” (FOUCAULT, M.
lizante e totalizante, cujo escopo 2001e, p. 1052). Ao entender
consistia na condução dos indiví- o exercício do poder como rela-
duos. O poder pastoral está na gê- ção estratégica em que um in-
nese das práticas governamentais divíduo age e interfere na con-
que atravessam a modernidade e duta do outro, exercendo sobre
chegam até o nosso presente. A ele um governo, é imprescindível
governamentalidade atual funci- que em ambos os lados dessa re-
ona por meio de práticas que têm lação haja liberdade, pois, “o po-
como efeito a individuação dos su- der só se exerce sobre ‘sujeitos li-
jeitos sobre os quais exercem, o vres’ e enquanto ‘livres’- entende-
que por sua vez mobiliza lutas no mos por isso sujeitos individuais

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ou coletivos que têm diante deles de governo e não violência estrita.


um campo de possibilidade onde O poder, em vez de reprimir, esti-
várias condutas, várias reações e mula, ele mesmo, a criação da li-
diversos modo de comportamento berdade.
podem tomar lugar” (FOUCAULT, Como conclusão, as lutas em re-
M. 2001e, p. 1056). Ocorre as- ação ao poder devem ser da ordem
sim que ao recusar pensar o po- de criar formas de subjetivação
der como dominação e repressão, que escapem ao modo como o po-
onde aquele que sofre o poder não der determina a liberdade dos in-
teria qualquer possibilidade de re- divíduos. Para isso, se faz preciso
sistência, Foucault se desvencilha uma provocação permanente das
da dicotomia entre poder e liber- práticas de governo, estimulando
dade. A relação entre esses ter- formas de vida livres. Entende-
mos, para Foucault, não é de ex- mos que é nessa relação que se dá
clusão, aparecendo mais como um o embate entre poder e liberdade e
“agonismo” do que um “antago- onde Foucault situa a atitude crí-
nismo”. Estabelece-se um jogo tica. Assim, a atitude crítica situ-
complexo em que a liberdade vai ada na problemática da liberdade
ser condição de existência do po- ganha contornos mais finos, o que
der, pois é preciso liberdade para abre um amplo campo de investi-
que o poder se exerça, ela é con- gação e problematização.
dição para que haja uma relação

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Recebido: 18/12/2018
Aprovado: 29/03/2019
Publicado: 13/05/2019

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