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Thiago Mota
Abstract: Bearing in mind the problem of the relation between power technologies and
the capitalist mode of production, this paper briefly revisits the conceptual tools of the
genealogical analysis of power developed by Michel Foucault, discussing its main
concepts: sovereignty, biopower, discipline and biopolitics. Then, the hypothesis that the
relation between power technologies and capitalism is one of reciprocal conditioning is
supported, that is, those are, at the same time, cause and effect of this, and vice versa.
Finally, a map of the practices of resistance to power and capitalism that characterize
contemporaneity is sketched.
Keywords: Biopower. Capitalism. Economy. Resistance. Sovereignty.
Introdução
Que relação existe entre as relações de poder e as relações econômicas ou, mais
especificamente, as técnicas de poder e o modo de produção? Em particular, que relação
existe entre as tecnologias de poder e o capitalismo? Que relação se estabelece, no curso
da história moderna, entre o processo de produção de sujeitos e o processo de acumulação
de capital? O que significa essa relação? De modo geral, essas são as perguntas filosóficas
acerca das quais este estudo visa refletir.
No que segue, sustenta-se a hipótese de que, no pensamento de Foucault (2008b;
2012; 2016; 2020), a relação entre as tecnologias de poder e o modo de produção
Doutor em filosofia. Professor da Universidade Estadual do Ceará. thiago.mota@uece.br.
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1. Genealogia do poder
significa anular os outros dois conceitos, que têm de continuar presentes, embora em segundo
plano (CASTRO, 2014, p. 74-5). Assim, a genealogia do poder é a etapa do pensamento de
Foucault que nasce da arqueologia do saber. Nesta, a prioridade é dada ao problema do saber;
os problemas do poder e do sujeito são coadjuvantes (VEIGA-NETO, 2007). Com a passagem
para a genealogia, o foco se desloca para o problema do poder. Isso não significa, porém, que
os problemas do saber e do sujeito nem que a arqueologia desapareça. Ao contrário, eles
permanecem lá, em segundo plano, mas ao mesmo tempo como pressupostos necessários das
análises de Foucault acerca do poder.
De modo geral, em filosofia política, compreende-se que poder é autoridade,
dominação, comando. Por vários motivos, a concepção de poder de Foucault é inovadora em
relação a essa tradição (DELEUZE, 1988, p. 34). Ele não enuncia o que seriam os princípios
fundamentais dessa concepção, mas formula certo número de proposições gerais que a definem
(FOUCAULT, 2020, p. 89-92). Tendo em vista o problema da relação entre as tecnologias de
poder e o modo de produção, aqui se destaca três dessas proposições.
Em primeiro lugar, para Foucault (2020, p. 89-90), o poder não é uma coisa nem um
objeto (como um cetro ou uma coroa). Ele também não pode ser apropriado, vendido ou
comprado, pois não é um bem nem uma propriedade. O poder não é uma substância, mas algo
que se exerce, uma relação entre, no mínimo, dois termos ou duas forças. Ao dizer que o poder
não é um bem ou uma propriedade no sentido econômico, Foucault traça uma linha de
demarcação entre as relações de poder, que são objeto da análise genealógica, e as relações de
produção, que são objeto da análise econômica. Entretanto, há um intercâmbio entre essas
espécies de relações e de análises. É o pensamento que nasce desse intercâmbio que lhe permite
pensar a relação entre o político e a economia em novos termos. Tal relação não é da ordem do
isomorfismo, subordinação ou funcionalidade, mas da ordem do agenciamento (DELEUZE;
GUATTARI, 2011, p. 24), ou seja, da reunião entre elementos heterogêneos, síntese disjuntiva
ou acoplamento.
Em segundo lugar, conforme Foucault (2020, p. 90), as relações de poder são imanentes
a relações de outros tipos, econômicas, sociais, jurídicas, psicológicas, epistêmicas etc. As
relações de poder são, ao mesmo tempo, efeito e causa dessas outras relações. Elas se
condicionam de maneira recíproca. Unilateralmente, nenhuma relação é determinante. Logo, as
relações de poder não determinam em última instância as demais relações, pois não há uma
“última instância”. Nesse sentido, a ideia de condicionamento recíproco se associa a uma
atitude antifundacionista, que não nega a existência de um fundamento último, mas rejeita o
próprio problema da fundamentação. Do ponto de vista econômico, convém reter que as
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técnicas de poder e os modos de produção são mutuamente imanentes, eles são causa e efeito
uns dos outros.
Em terceiro lugar, de acordo com Foucault (2020, p. 91), onde há poder, também há
resistência. A resistência não se encontra no exterior do poder, pois este é estritamente
relacional. Ou seja, toda relação de poder é uma tensão entre poder e resistência. Em todo o
tecido da rede de relações de poder se pulverizam múltiplos focos de resistência, que atravessam
tanto os estratos sociais quanto as camadas do foro íntimo dos indivíduos. Esses pontos de
resistência são os alvos das estratégias de poder, que não poderiam existir sem eles. Vale dizer
que se as técnicas de poder são objeto de práticas de resistência, os modos de produção se
transformam por causa de processos revolucionários, como dizem os marxistas (MARX, 2016).
No entanto, a tensão existente na luta de classes não pode ser definitivamente suprimida, pois
até mesmo em uma sociedade pós-revolução, poder e resistência não deixariam de se implicar
mutuamente. Na vida concreta das sociedades, existe uma agonística geral entre poder e
resistência, que não tem trégua nem termo (MOTA, 2021).
Cabe lembrar que Foucault (2020) critica o que ele chama de “hipótese repressiva”,
dominante na tradição do pensamento político no Ocidente. Para ele, o poder não tem o papel
de simples repressão, opressão, coação ou proibição, mas um papel diretamente produtor e,
nesse sentido, positivo: o poder produz sujeitos. A história das lutas de poder é, ao mesmo
tempo, a história dos processos de subjetivação. No que concerne ao problema da relação entre
as tecnologias de poder e o modo de produção, a produção de sujeitos é, entre outras coisas,
produção de força de trabalho necessária à reprodução e à acumulação da riqueza. Pode-se dizer
que a análise econômica se ocupa da produção da produção dos produtos (mercadorias),
enquanto a análise genealógica se ocupa, entre outras coisas, da produção dos produtores
(trabalhadores). Assim, por exemplo, na sociedade capitalista, a acumulação de capital tem
como correlato uma acumulação de sujeitos (MARX, 2015, 4ª seção, cap. XIII apud
FOUCAULT, 2014, p. 157, n. 50).
Em suma, a genealogia do poder desenvolvida por Foucault é o estudo histórico de
diferentes tecnologias de poder e das racionalidades que as dirigem. Como essas tecnologias de
poder se relacionam com o modo de produção capitalista? Para responder essa questão, é
preciso compreender o que são a soberania, o biopoder, a disciplina e a biopolítica.
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2. Soberania e biopoder
dois polos interligados: a disciplina, isto é, a série dos controles disciplinares dos indivíduos, e
a biopolítica, ou seja, a série dos controles reguladores das populações.
3. Disciplina e biopolítica
que Foucault (2008b, p. 58) entende que os homens não formam naturalmente populações. Para
fins de controle regulatório, a biopolítica totaliza a multiplicidade dos seres humanos, as
comunidades, os povos, transformando-a em população, massa, espécie. As populações são
efeitos ou produtos de operações de poder, políticas públicas, ações de gestão, toda uma série
de práticas e instrumentos de totalização, massificação ou especificação. É desse modo que a
biopolítica visa abarcar toda a vida.
4. O triângulo soberania/disciplina/biopolítica
condições de otimização do funcionamento delas. É nesse sentido que há uma relação de duplo
condicionamento entre a triangulação soberania/disciplina/biopolítica e o capitalismo.
homem, que não é o ariano, mas o proletário (personificado na figura do próprio Stalin). Esse
proletário é convocado a participar da Revolução e da guerra contra a classe inimiga, a
burguesia. Os dissidentes políticos e aqueles que, em geral, não se enquadram no modelo
soviético de homem (loucos, mendigos, vagabundos, prostitutas, homossexuais etc.) são
considerados degenerações da espécie, enfermidades, anomalias a serem medicalizados ou
enviados para fazendas de trabalhos forçados (gulags). O exílio na Sibéria – o isolamento, o
clima, a vastidão, o abandono –, é um bom exemplo de um poder tanatopolítico, que não se
efetua na forma do “fazer morrer”, mas na do “deixar morrer”.
A alusão às caraterísticas compartilhadas pelo nazismo e pelo stalinismo é bastante
elucidativa no que diz respeito ao problema da relação entre as tecnologias de poder e o modo
de produção capitalista. Em suas formas mais radicais, as tecnologias tanatopolíticas são
incompatíveis com o capitalismo. Como pensam os neoliberais (FOUCAULT, 2008a, p.
151), no longo prazo, tanto o nazismo quanto o stalinismo acarretaram a abolição da liberdade
econômica (laissez-faire, laissez-passer), estatizando e planificando toda a produção, seja em
função de uma “economia de guerra”, seja de uma “economia de revolução”. Do ponto de
vista histórico, o capital abandonou Hitler e Stalin quando esses demonstraram que não iam
satisfazer seus interesses e quando se percebeu que os interesses do nazismo e do stalinismo
eram inseparáveis de projetos políticos de destruição, que acarretariam milhões de mortes
nos campos de extermínio e nos gulags. Com o fim da guerra e o estabelecimento do Estado
de bem-estar social, ficou claro que, mais do que a uma tanatopolítica, o capitalismo é
funcional quando está associado a uma biopolítica.
Em terceiro lugar, o dispositivo de segurança é uma tecnologia biopolítica
característica de sociedades liberais (FOUCAULT, 2008b) que tem como objetivo
administrar a aleatoriedade dos fenômenos populacionais em um meio determinado. Alvo de
discursos e práticas de gestão, esse meio é o espaço em que a população vive e circula. Ele é
composto tanto por elementos naturais (clima, rios, montes, fauna, flora etc.) quanto por
elementos artificiais (cidades, vilas, estradas etc.). A população, que é produzida nesse meio,
com emprego do dispositivo de segurança, é uma multiplicidade de sujeitos biologicamente
ligados a uma materialidade histórica determinada. Por sua vez, essa materialidade histórica
é constituída de eventos aleatórios, contingentes, futuros. Tendo em vista regular a
aleatoriedade da população, no início da Segunda Revolução Industrial (1850-1945),
começam a se desenvolver fortemente ciências como a geografia, física e humana, a
demografia, a estatística e, com elas, o dispositivo de segurança.
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propósito tentar reunir aqui, de maneira sistemática, os inúmeros cacos desse vaso partido que
é a concepção de capitalismo de Foucault. Em vez disso, apenas se lançará uma pista, um ponto
de partida, uma perspectiva para a compreensão da relação entre poder e capitalismo que se
encontra implícita nas análises genealógicas realizadas por Foucault.
Na tradição marxista, de modo geral, a sociedade capitalista ou o capitalismo são
concebidos como um conjunto de fenômenos e processos que constituem, em sua base, uma
infraestrutura econômica e, em sua superfície, uma superestrutura ideológica (MARX, 2016).
Assim, na infraestrutura da sociedade, encontra-se um modo de produção, designadamente, o
capitalista. Por sua vez, na superestrutura da sociedade se situa o aparelho político-jurídico do
Estado liberal capitalista e as formas de ideologia (filosofia, ciências, artes, religião etc.)
características daquela sociedade. Para o marxismo, assim como a infraestrutura determina a
superestrutura, a economia determina o poder em “última instância” (ENGELS, 1978). Nesse
sentido, o poder estatal capitalista seria um efeito de superfície, que visaria simplesmente
instrumentalizar a repressão de uma classe, isto é, o proletariado, em favor dos interesses
econômicos da classe dominante, ou seja, a burguesia.
De maneira completamente diferente, do ponto de vista de Foucault, toda abordagem do
problema da relação entre tecnologias de poder e modo de produção econômica deve partir de
uma crítica à ideia de um condicionamento simples e unilateral, de uma subordinação de uma
superestrutura por uma infraestrutura, do político pela economia, das relações poder pelas
relações de produção (DELEUZE, 1988, p. 34). Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se
dizer que, de um lado, o modo de produção é causa e efeito das tecnologias de poder (soberania,
disciplina e biopolítica). De outro lado, as tecnologias de poder também são causa e efeito do
modo de produção. Isso significa, por exemplo, que o modo de produção capitalista não está
ligado apenas à repressão (embora essa continue à disposição do Estado soberano atual, cujos
interesses convergem com os do capital). Além disso, o capitalismo também implica o emprego
dos métodos e das práticas de controle disciplinares e reguladores, mobilizando, de acordo com
seus fins, a série de técnicas individualizantes e totalizantes do biopoder, que não visa reprimir,
mas incitar, incentivar, estimular, motivar.
Considerando somente a relação entre o capitalismo e o biopoder, tem-se o seguinte. De
um lado, um certo número de exigências de ajuste populacional, que são características do
processo histórico de desenvolvimento da sociedade capitalista, vai acarretar o nascimento do
biopoder, no século XVIII. De outro lado, o mesmo biopoder também vai impor determinadas
condições ao cálculo econômico capitalista. Por isso, pode-se dizer que o processo de adaptação
dos indivíduos e da população ao modo de produção capitalista não obedece apenas à
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racionalidade econômica, mas também a uma racionalidade política (ou governamental), que
diz respeito especificamente às relações de poder, seu desenvolvimento, manutenção,
aprofundamento, expansão.
Em outras palavras, cabe dizer que o modo de produção capitalista demanda, em larga
escala, a inserção e a acomodação controlada dos corpos individuais no aparelho de produção.
Essa demanda é atendida, precisamente, com base nas operações da tecnologia de controle
disciplinar. Ao mesmo tempo, o modo de produção capitalista depende do ajuste e da adaptação
do corpo populacional aos processos econômicos. Esse ajuste é um dos objetivos da tecnologia
de controle regulatório, isto é, a biopolítica. Portanto, o biopoder opera um duplo ajuste entre o
político e a economia. Um primeiro ajuste visa o corpo individual e é realizado por meio de
técnicas de vigilância e punição, no âmbito das instituições disciplinares. O outro ajuste incide
sobre os fenômenos globais da população e é efetuado pelos mecanismos biopolíticos, para
além dos limites institucionais.
Por certo, a rejeição da análise genealógica ao princípio da determinação econômica em
última instância é inegociável e expressa a atitude antifundacionista que a marca. Todavia, os
pensamentos de Marx e de Foucault não são necessariamente incompatíveis. Para se
compreender adequadamente a relação entre eles, é preciso que não se faça uma leitura
“economicista” do primeiro nem uma leitura “politicista” do segundo. A crítica de Marx ao
capitalismo tem relevância analítica demais para ser simplesmente deixada de lado. Além disso,
tal rejeição seria inútil do ponto de vista das lutas e práticas de resistência. As contribuições de
Marx são vastas, suas implicações, necessárias. Entre outras coisas, o pensador alemão
diagnosticou problemas como a alienação do trabalho e do trabalhador (MARX, 2004), a
dominação pela ideologia (MARX; ENGELS, 2007) e o fetichismo da mercadoria (MARX,
2015). O pensamento de Marx também possibilitou que se fizesse, por diferentes vias, por
exemplo, as críticas à reificação (LUKÁCS, 2018), à racionalidade instrumental e indústria
cultural (ADORNO, 2020) e à sociedade do espetáculo (DEBORD, 2007). Não há motivo nem
vantagem para a análise genealógica em excluir por princípio a possibilidade de uma
interlocução com Marx e com parte dos marxistas.
Foucault não pensou a produção em sentido econômico, isto é, a produção de produtos,
bens ou mercadorias. Ele também não pensou a produção dos seres humanos enquanto
mercadorias (reificação). Ele pensou, por exemplo, a produção dos produtores das mercadorias,
os trabalhadores, enquanto sujeitos. A produção dos trabalhadores é um caso do que Foucault
(2001b, p. 1047) chamou de “subjetivação” (assujettissement). Certamente, a produção de
sujeitos é condicionada em parte por exigências oriundas do modo de produção. Porém, ela
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7. Focos de resistência
Para concluir, é preciso não esquecer que, onde existe poder, também existe resistência.
Apesar de tudo, nem as tecnologias de poder, nem o capitalismo são onipotentes. Existe um
“fora” do poder, uma espécie de outside, de dehors. Se o biopoder abarca a vida humana como
um todo, de maneira análoga, as forças que resistem a ele se apoiam em toda a vida dos
indivíduos e das populações (PELBART, 2009, 59). Há tempos, as lutas deixaram de ser
travadas em virtude dos antigos direitos formais e abstratos (liberdade, igualdade, fraternidade)
que se fundam na soberania e na razão de Estado, têm como titular legítimo o burguês ou
capitalista e encontram no liberalismo seu discurso e suas técnicas. Em revide ao alastramento
do biopoder, a resistência também passou a ser feita em função da integralidade da vida. Assim,
atualmente, as lutas constroem suas plataformas de atuação tanto em torno da satisfação das
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necessidades vitais (comer, beber, fazer sexo, vestir-se, morar etc.) quanto da realização das
virtualidades e desejos (demandas por direitos ao corpo, à cidade, à felicidade etc.).
Apesar de a complexidade das relações de poder jamais se reduzir à ideia de luta de
classes (que é a versão biológico-econômica da guerra de raças), pode-se dizer que os
trabalhadores foram e são capazes de resistência organizada, efetiva e potente. A certa altura,
eles encontraram seu discurso no socialismo. Porém, esse nunca pôde se tornar prática, senão
de forma “deturpada” (talvez não tanto como se imagina, mas ainda assim deturpada). Nos dias
atuais, o proletariado está longe de poder pretender ser o sujeito da revolução e se percebe que
a luta de classes está longe de ser a única a ser lutada. As lutas se multiplicaram e desdobraram,
assim como seus atores. A revolução parece ter se extraviado devido à perda de seu grande
herói. Essa é a marca do niilismo e melancolia de nossa época. No entanto, isso não significa
que os trabalhadores tenham perdido por completo sua capacidade de resistência. Essa não deve
ser menosprezada, mas reativada. Para isso, é preciso ter clareza de que existe uma relação de
interseccionalidade (DAVIS, 2016) e conexões de rede entre a luta de classes (entre a burguesia
e o proletariado, o capital e o trabalho) e diversas outras lutas.
Do mesmo modo que o poder, a resistência adquiriu múltiplas faces, que se
disseminaram por toda parte, em diversos pontos do tecido social. Há focos de resistência na
psiquiatria e na medicina social (as faces do louco, do portador de necessidades especiais ou
síndromes, do dependente químico); nas políticas de segurança (as faces do delinquente, do
presidiário); na família e na escola (as faces do jovem, do aluno), no ambiente de trabalho, no
campo, na fábrica e no escritório (as faces do trabalhador, certamente, mas também do
desempregado, “lumpenproletário”, e do aposentado, do agricultor, do sem-terra); nas políticas
de gestão da sexualidade (as faces da mulher, do homossexual, da lésbica, do bissexual, do
transexual, do queer); no racismo, tanto cultural quanto de Estado (as faces do índio, do negro,
do imigrante, do refugiado, do colonizado); no espaço da cidade (as faces do favelado, do sem-
teto, do usuário de transportes públicos); no ciberespaço (as faces do usuário de internet, do
hacker) etc. Ora micropolíticas, ora macropolíticas, todas essas lutas são bastante concretas.
Elas não nutrem o sonho da grande revolução, mas não cessam de construir alternativas que
viabilizam, em alguma medida, mesmo em condições extremas, a satisfação das necessidades
e a realização dos desejos, por meio da luta.
Apesar das táticas da resistência se articularem, por vezes, como reivindicações pelos
direitos humanos, não é a humanidade que está em questão aí. Em geral, a estratégia das práticas
de resistência consiste em tentar revirar a vida, tomada pelo poder e pelo capitalismo, contra
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eles próprios. Nessa luta, o que está em jogo é a vida. Embora o poder e o capitalismo procurem
submeter a vida por inteiro, e o consigam, em grande parte, a vida é o que resiste.
Referências
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