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TECNOLOGIAS DE PODER E CAPITALISMO:

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONDICIONAMENTO RECÍPROCO


ENTRE O POLÍTICO E A ECONOMIA EM FOUCAULT

POWER TECHNOLOGIES AND CAPITALISM:


CONSIDERATIONS ON THE RECIPROCAL CONDITIONING OF THE
POLITICAL AND THE ECONOMY IN FOUCAULT

Thiago Mota

Resumo: Tendo em vista o problema da relação entre as tecnologias de poder e o modo


de produção capitalista, este artigo revisita sucintamente o instrumental conceitual da
análise genealógica do poder desenvolvida por Michel Foucault, discutindo seus
principais conceitos: soberania, biopoder, disciplina e biopolítica. Em seguida, sustenta-
se a hipótese de que a relação entre as tecnologias de poder e o capitalismo é de
condicionamento recíproco, ou seja, aquelas são, ao mesmo, causa e efeito deste, e vice-
versa. Por fim, esboça-se um mapa das práticas de resistência ao poder e ao capitalismo
que marcam a contemporaneidade.
Palavras-chave: Biopoder. Capitalismo. Economia. Resistência. Soberania.

Abstract: Bearing in mind the problem of the relation between power technologies and
the capitalist mode of production, this paper briefly revisits the conceptual tools of the
genealogical analysis of power developed by Michel Foucault, discussing its main
concepts: sovereignty, biopower, discipline and biopolitics. Then, the hypothesis that the
relation between power technologies and capitalism is one of reciprocal conditioning is
supported, that is, those are, at the same time, cause and effect of this, and vice versa.
Finally, a map of the practices of resistance to power and capitalism that characterize
contemporaneity is sketched.
Keywords: Biopower. Capitalism. Economy. Resistance. Sovereignty.

Introdução

Que relação existe entre as relações de poder e as relações econômicas ou, mais
especificamente, as técnicas de poder e o modo de produção? Em particular, que relação
existe entre as tecnologias de poder e o capitalismo? Que relação se estabelece, no curso
da história moderna, entre o processo de produção de sujeitos e o processo de acumulação
de capital? O que significa essa relação? De modo geral, essas são as perguntas filosóficas
acerca das quais este estudo visa refletir.
No que segue, sustenta-se a hipótese de que, no pensamento de Foucault (2008b;
2012; 2016; 2020), a relação entre as tecnologias de poder e o modo de produção


Doutor em filosofia. Professor da Universidade Estadual do Ceará. thiago.mota@uece.br.
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capitalista é uma relação de condicionamento duplo, de “mão-dupla”, de


condicionamento recíproco. Ou seja, o desenvolvimento do modo de produção capitalista
condiciona as transformações das técnicas de poder e vice-versa. Há aí uma circularidade
que exclui toda possibilidade de uma determinação última de um dos polos dessa relação
pelo outro. Eles se determinam mutuamente.
Essa hipótese implica que as técnicas de poder se modificam de modo a repercutir
as exigências que advêm do modo de produção, mas também se modificam para
responder a demandas oriundas do próprio poder em seu desenvolvimento, manutenção,
ampliação, aprofundamento. Analogamente, o modo de produção não é determinado
unilateralmente pelo poder, embora também o seja, em parte. Ambos têm, em certa
medida, capacidade de autodeterminação. Isso é uma precaução de método: não se deve
reduzir os fenômenos analisados às suas determinações econômicas, assim como também
não se deve reduzi-los à sua dimensão política. Trata-se, antes, de tentar pensar de outra
forma a indissociabilidade entre o político e a economia (FOUCAULT, 2012, p. 21), sem
reduzi-los um ao outro.
Assim, tendo em vista o problema da relação entre as tecnologias de poder e o
capitalismo, de início, discute-se algumas das proposições gerais que constituem a
concepção de poder de Foucault (2020), expondo suas implicações de caráter econômico.
Em seguida, analisa-se brevemente as distinções entre poder soberano e biopoder e entre
disciplina e biopolítica e as noções de dispositivo de sexualidade, guerra de raças e
dispositivo de segurança. Com isso, aborda-se diretamente o problema da relação entre o
capitalismo e as tecnologias de poder, argumentando em favor da hipótese de que há um
condicionamento recíproco entre eles. Por fim, procura-se esboçar uma paisagem das
forças que resistem, hoje, às tecnologias de poder e ao capitalismo.

1. Genealogia do poder

A genealogia do poder é um dos eixos do pensamento de Foucault, que se constrói, de


maneira assistemática, em torno de uma triangulação entre os conceitos de saber, poder e
sujeito. Em geral, entende-se que esses conceitos são os objetos de uma arqueologia, uma
genealogia e uma ética (VEIGA-NETO, 2007, p. 47-8). Ao longo de sua obra, Foucault vai
girando ou torcendo esse triângulo, de modo a pôr ora um, ora outro desses conceitos em
primeiro plano. Porém, pôr em primeiro plano um conceito pertencente a uma triangulação não
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significa anular os outros dois conceitos, que têm de continuar presentes, embora em segundo
plano (CASTRO, 2014, p. 74-5). Assim, a genealogia do poder é a etapa do pensamento de
Foucault que nasce da arqueologia do saber. Nesta, a prioridade é dada ao problema do saber;
os problemas do poder e do sujeito são coadjuvantes (VEIGA-NETO, 2007). Com a passagem
para a genealogia, o foco se desloca para o problema do poder. Isso não significa, porém, que
os problemas do saber e do sujeito nem que a arqueologia desapareça. Ao contrário, eles
permanecem lá, em segundo plano, mas ao mesmo tempo como pressupostos necessários das
análises de Foucault acerca do poder.
De modo geral, em filosofia política, compreende-se que poder é autoridade,
dominação, comando. Por vários motivos, a concepção de poder de Foucault é inovadora em
relação a essa tradição (DELEUZE, 1988, p. 34). Ele não enuncia o que seriam os princípios
fundamentais dessa concepção, mas formula certo número de proposições gerais que a definem
(FOUCAULT, 2020, p. 89-92). Tendo em vista o problema da relação entre as tecnologias de
poder e o modo de produção, aqui se destaca três dessas proposições.
Em primeiro lugar, para Foucault (2020, p. 89-90), o poder não é uma coisa nem um
objeto (como um cetro ou uma coroa). Ele também não pode ser apropriado, vendido ou
comprado, pois não é um bem nem uma propriedade. O poder não é uma substância, mas algo
que se exerce, uma relação entre, no mínimo, dois termos ou duas forças. Ao dizer que o poder
não é um bem ou uma propriedade no sentido econômico, Foucault traça uma linha de
demarcação entre as relações de poder, que são objeto da análise genealógica, e as relações de
produção, que são objeto da análise econômica. Entretanto, há um intercâmbio entre essas
espécies de relações e de análises. É o pensamento que nasce desse intercâmbio que lhe permite
pensar a relação entre o político e a economia em novos termos. Tal relação não é da ordem do
isomorfismo, subordinação ou funcionalidade, mas da ordem do agenciamento (DELEUZE;
GUATTARI, 2011, p. 24), ou seja, da reunião entre elementos heterogêneos, síntese disjuntiva
ou acoplamento.
Em segundo lugar, conforme Foucault (2020, p. 90), as relações de poder são imanentes
a relações de outros tipos, econômicas, sociais, jurídicas, psicológicas, epistêmicas etc. As
relações de poder são, ao mesmo tempo, efeito e causa dessas outras relações. Elas se
condicionam de maneira recíproca. Unilateralmente, nenhuma relação é determinante. Logo, as
relações de poder não determinam em última instância as demais relações, pois não há uma
“última instância”. Nesse sentido, a ideia de condicionamento recíproco se associa a uma
atitude antifundacionista, que não nega a existência de um fundamento último, mas rejeita o
próprio problema da fundamentação. Do ponto de vista econômico, convém reter que as
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técnicas de poder e os modos de produção são mutuamente imanentes, eles são causa e efeito
uns dos outros.
Em terceiro lugar, de acordo com Foucault (2020, p. 91), onde há poder, também há
resistência. A resistência não se encontra no exterior do poder, pois este é estritamente
relacional. Ou seja, toda relação de poder é uma tensão entre poder e resistência. Em todo o
tecido da rede de relações de poder se pulverizam múltiplos focos de resistência, que atravessam
tanto os estratos sociais quanto as camadas do foro íntimo dos indivíduos. Esses pontos de
resistência são os alvos das estratégias de poder, que não poderiam existir sem eles. Vale dizer
que se as técnicas de poder são objeto de práticas de resistência, os modos de produção se
transformam por causa de processos revolucionários, como dizem os marxistas (MARX, 2016).
No entanto, a tensão existente na luta de classes não pode ser definitivamente suprimida, pois
até mesmo em uma sociedade pós-revolução, poder e resistência não deixariam de se implicar
mutuamente. Na vida concreta das sociedades, existe uma agonística geral entre poder e
resistência, que não tem trégua nem termo (MOTA, 2021).
Cabe lembrar que Foucault (2020) critica o que ele chama de “hipótese repressiva”,
dominante na tradição do pensamento político no Ocidente. Para ele, o poder não tem o papel
de simples repressão, opressão, coação ou proibição, mas um papel diretamente produtor e,
nesse sentido, positivo: o poder produz sujeitos. A história das lutas de poder é, ao mesmo
tempo, a história dos processos de subjetivação. No que concerne ao problema da relação entre
as tecnologias de poder e o modo de produção, a produção de sujeitos é, entre outras coisas,
produção de força de trabalho necessária à reprodução e à acumulação da riqueza. Pode-se dizer
que a análise econômica se ocupa da produção da produção dos produtos (mercadorias),
enquanto a análise genealógica se ocupa, entre outras coisas, da produção dos produtores
(trabalhadores). Assim, por exemplo, na sociedade capitalista, a acumulação de capital tem
como correlato uma acumulação de sujeitos (MARX, 2015, 4ª seção, cap. XIII apud
FOUCAULT, 2014, p. 157, n. 50).
Em suma, a genealogia do poder desenvolvida por Foucault é o estudo histórico de
diferentes tecnologias de poder e das racionalidades que as dirigem. Como essas tecnologias de
poder se relacionam com o modo de produção capitalista? Para responder essa questão, é
preciso compreender o que são a soberania, o biopoder, a disciplina e a biopolítica.
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2. Soberania e biopoder

Em Foucault (2020, p. 127), o poder soberano ou, simplesmente, a “soberania” possui


uma fórmula geral: trata-se de um poder de “fazer morrer ou deixar viver”. Definido desse
modo, o poder soberano, que nasce na Europa do século XVI, baseia-se na relação de poder
macropolítica entre o soberano e o súdito, em que o Estado sempre figura como um dos polos.
O soberano tem sobre o súdito um “direito de espada”, podendo dispor de sua vida e, sobretudo,
de sua morte. Trata-se de um poder centrado na morte (“fazer morrer”), que se demonstra, da
maneira mais enfática, nos suplícios públicos (FOUCAULT, 2014). O poder soberano é um
mecanismo de repressão, isto é, de confisco, retirada, saque, extorsão, expropriação,
apoderação, por parte do soberano, de produtos, trabalho, tempo, corpo, sangue, da própria vida
dos súditos. Em suma, trata-se de um poder negativo porque, por meio dele, o soberano reprime,
barra, dobra ou destrói as forças dos súditos. Contudo, apesar de dispor da vida e da morte do
homem, o poder soberano não é capaz de intervir em seu funcionamento biológico. Com a
revolução industrial e a explosão demográfica, no século XVIII, a velha mecânica do poder
soberano se torna insuficiente. Surge, então, a necessidade da implementação de uma nova
tecnologia de poder.
A nova tecnologia de poder é o biopoder, que inverte a fórmula do poder soberano: trata-
se, agora, de um poder de “fazer viver ou deixar morrer” (FOUCAULT, 2020, p. 130). Nascida
no século XVIII, essa nova forma de exercício do poder vai se basear em múltiplas relações de
força, tanto micro quanto macropolíticas, nas quais o Estado pode ou não figurar como um dos
polos. Com o nascimento do biopoder, o poder soberano não se extingue, mas passa a ser uma
peça integrante de uma tecnologia de poder mais ampla. Em geral, a tecnologia do biopoder
não é centrada na morte, mas na vida dos homens (“fazer viver”). Assim, o biopoder é um
mecanismo de produção, isto é, de incitação, indução, reforço, desvio, prêmio, controle,
vigilância, treinamento, majoração, organização, otimização, enfim, de gestão das forças. O
biopoder é positivo porque, através dele, são produzidas forças e vidas. E ao produzir a vida do
ser humano, o biopoder é capaz de intervir em sua estrutura biológica, por meio de métodos e
técnicas específicas. Com o advento do biopoder, a vida humana, em sentido biológico, entrou
na história política, isto é, nos cálculos explícitos do poder e do saber.
Basicamente, a genealogia do poder elaborada por Foucault estuda duas formas de
exercício do biopoder, isto é, duas formas não de repressão, mas de controle, que constituem
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dois polos interligados: a disciplina, isto é, a série dos controles disciplinares dos indivíduos, e
a biopolítica, ou seja, a série dos controles reguladores das populações.

3. Disciplina e biopolítica

O poder disciplinar ou, apenas, a “disciplina” é a tecnologia de biopoder que visa,


particularmente, o controle dos indivíduos (FOUCAULT, 2020, p. 131). A disciplina nasce no
século XVIII e se exerce em múltiplas relações de poder micropolíticas (carcereiro/preso,
oficial/soldado, patrão/empregado, médico/paciente, professor/aluno, pai/filho), nas quais o
Estado não figura como polo. Logo, a relação repressiva soberano/súdito está fora de sua alçada.
As disciplinas são praticadas em diversas instituições que compõem a paisagem da sociedade
moderna: prisão, exército, hospital, fábrica, escola, família etc. O poder disciplinar se localiza,
basicamente, em instituições disciplinares como essas, embora também possa ultrapassar seus
muros, em certas circunstâncias. De modo geral, a disciplina é um mecanismo de poder que
objetiva a vigilância, a punição, a docilização, em suma, o disciplinamento dos corpos dos
indivíduos.
Assim, a disciplina é uma anatomia política do corpo individual. De um lado, ela é uma
anatomia porque é um saber que tem em mira o corpo humano e suas forças. De outro lado, ela
é política uma vez que analisa esse corpo e suas forças, na medida em que eles se situam em
relações de poder com outros corpos e forças. Para fins de controle, a disciplina individualiza a
multiplicidade dos seres humanos, transformando-a em corpos, indivíduos, sujeitos. Foucault
não pressupõe que os seres humanos existam naturalmente como corpos, indivíduos ou sujeitos.
Pelo contrário, os sujeitos são produzidos pelo poder, por exemplo, em instituições disciplinares
através de uma série de técnicas e procedimentos de individualização. O indivíduo é um
produto, um efeito, um resultado dessas técnicas. Assim, a disciplina constitui uma tomada de
poder sobre o homem enquanto corpo por um mecanismo individualização; ela é
individualizante.
Em Foucault (2014), o exemplo mais cru do poder disciplinar é a prisão, instituição
caracteristicamente moderna, que individualiza os presos (cada um em sua cela), mantendo-os
sob constante vigilância e ameaça de punição. Daí a forma arquitetônica que muitas prisões vão
assumir a partir do século XIX, isto é, o panóptico, estrutura que garante a sensação de
vigilância ininterrupta. Vale dizer que a arquitetura panóptica não se encontra apenas em
prisões, mas em uma série de outras instituições, como exércitos, escolas, hospitais e fábricas.
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Portanto, no que concerne à modernidade, é possível falar em um panoptismo social ou em uma


sociedade panóptica.
A disciplina produz indivíduos obedientes do ponto de vista político e úteis do ponto de
vista econômico (FOUCAULT, 2014, p. 133-4). Ao conceber o homem como corpo, a
disciplina também o concebe como máquina, um corpo-máquina. Com isso, o poder disciplinar
objetiva inserir e integrar do corpo humano tanto no aparelho de controle político quanto no
aparelho de produção econômica. Este último é o aparelho produtivo capitalista, que se encontra
plenamente delineado já no começo da Primeira Revolução Industrial (1760-1820). Com a
Segunda Revolução Industrial (1850-1870), o corpo-máquina dos indivíduos disciplinados se
torna ainda mais evidente e seus vestígios também estão presentes na Terceira Revolução
Industrial (1950). Nesse contexto econômico, o poder disciplinar não visará matar ou exercer
violência sobre o indivíduo, mas fazê-lo viver, de maneira controlada, para ampliar suas
aptidões e, com isso, tornar suas forças utilizáveis. Portanto, há um paralelo evidente entre
disciplina e capitalismo. Isso significa que, embora haja uma relação entre eles, o capitalismo
não é, unilateralmente, causa da disciplina nem a disciplina é, de modo unilateral, causa do
capitalismo. O capitalismo é causa e efeito da disciplina, ao mesmo tempo em que esta é causa
e efeito daquele. O que existe entre eles é uma relação de condicionamento recíproco, em que
as relações de poder e as relações de produção se reforçam mutuamente.
De forma distinta da disciplina, a biopolítica tem por objetivo a gestão da população
(FOUCAULT, 2020, p. 131). Nascida no século XIX, no início da Segunda Revolução
Industrial (1850-1945), a biopolítica se efetiva em relações de poder em que a população
sempre figura como um dos polos e o Estado pode ou não figurar como outro. Ela não se
localiza, exercendo-se fora das instituições, por assim dizer, ao “ar livre”. De um lado, a
biopolítica é “biológica”, uma vez que seu alvo é a espécie humana enquanto população e suas
forças. De outro lado, ela é “política”, pois faz referência às relações de poder que configuram
uma população e suas forças. Vale destacar que o nascimento dessa nova tecnologia de poder
não implica a extinção da disciplina nem tampouco da soberania. Pelo contrário, a biopolítica
da população vem se acoplar a elas.
Em outras palavras, a biopolítica visa o corpo-espécie humanidade e seus processos
biológicos. Nesse sentido, ela é uma tecnologia de controle populacional que lida com
problemas como sexualidade, natalidade, mortalidade, proliferação, longevidade, morbidades,
epidemias, higiene pública, infância, juventude, velhice, habitação, imigração, meio geográfico
(clima, hidrografia, vegetação) etc. A própria cidade, enquanto produto de um processo racional
de urbanização, é um dos objetos da biopolítica (FOUCAULT, 2008b, p. 451-3). Cabe lembrar
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que Foucault (2008b, p. 58) entende que os homens não formam naturalmente populações. Para
fins de controle regulatório, a biopolítica totaliza a multiplicidade dos seres humanos, as
comunidades, os povos, transformando-a em população, massa, espécie. As populações são
efeitos ou produtos de operações de poder, políticas públicas, ações de gestão, toda uma série
de práticas e instrumentos de totalização, massificação ou especificação. É desse modo que a
biopolítica visa abarcar toda a vida.

4. O triângulo soberania/disciplina/biopolítica

Diferentes tecnologias de poder incidem sobre a vida humana, de um extremo ao outro,


da privacidade do indivíduo à publicidade da população, porque são capazes de estabelecer
agenciamentos ou acoplamentos entre si. Um desses agenciamentos que, por sinal, é
particularmente importante, é aquele que assume a forma da triangulação entre soberania,
disciplina e biopolítica (GADELHA, 2016, p. 20). Essa possante combinação é efetivamente
capaz de intervir na vida dos seres humanos enquanto sujeitos de direito, corpos e populações.
Convém esclarecer que a soberania está para a lei assim como o biopoder está para a
norma (FOUCAULT, 2012, p. 45-6). A lei é a forma jurídico-política da repressão, da coação,
da proibição, da interdição. A norma, ou ainda, o normal é o parâmetro com base no qual se
exerce o controle, a vigilância e a regulação. Ao contrário do poder soberano, tanto a disciplina
quanto a biopolítica se efetuam como processos de normalização que incidem, de um lado,
sobre o corpo individual e, de outro, sobre a população. Do ponto de vista do poder disciplinar,
normalizar significa adaptar os eventos a uma norma pré-estabelecida. Já do ponto de vista da
biopolítica, normalizar quer dizer gerir as tendências gerais da população, mantendo-as dentro
de uma faixa de tolerância. Assim, o resultado direto da expansão e da capilarização da
tecnologia de poder centrada na vida, ou seja, o biopoder, esteja ele associado à soberania ou
não, é a formação de uma sociedade de normalização.
Pode-se dizer que não somente o biopoder (FOUCAULT, 2020, p. 132), mas a
triangulação entre soberania, disciplina e biopolítica é necessária ao desenvolvimento do modo
de produção do capitalismo industrial. Por sua vez, o desenvolvimento do capitalismo também
é necessário à estabilização, aprofundamento e expansão das tecnologias de poder que
constituem a triangulação mencionada. De modo, por um lado, as tecnologias de poder
respondem a demandas oriundas da produção econômica. Por outro lado, as tecnologias de
poder também exigem transformações ao modo de produção, que precisa se adequar a
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condições de otimização do funcionamento delas. É nesse sentido que há uma relação de duplo
condicionamento entre a triangulação soberania/disciplina/biopolítica e o capitalismo.

5. Dispositivo de sexualidade, guerra de raças e dispositivo de segurança

A análise genealógica também tem como objetos, entre outros, o dispositivo de


sexualidade (FOUCAULT, 2020), a guerra racial (FOUCAULT, 2012) e o dispositivo de
segurança (FOUCAULT, 2008b). Em primeiro lugar, o dispositivo de sexualidade é a
articulação entre os controles disciplinares e as regulações biopolíticas, pois diz respeito tanto
aos indivíduos quanto à população, sendo, ao mesmo tempo, individualizante e totalizante. A
sexualidade é objeto dos discursos e das práticas da religião, da ciência, da moral, da política,
da economia, que fazem do sexo um instrumento de subjetivação de indivíduos e populações.
Foucault (2020) diferencia a sexualidade, que é um componente de um dispositivo de saber-
poder, do sexo, que é uma ideia produzida por esse dispositivo. Ele mostra que, no decorrer da
história, o discurso sobre a sexualidade foi recobrindo o corpo, os genitais, os prazeres, as
relações entre as pessoas, o casamento etc., para, finalmente, criar a ideia do sexo. Ou seja, a
ideia do sexo é um elemento de um dispositivo de sexualidade, ou ainda, uma economia política
do corpo.
O dispositivo de sexualidade toma corpo, por exemplo, nas práticas e discursos
característicos da medicina social, que nasce no século XIX como parte de uma estratégia
biopolítica (FOUCAULT, 2001a). Vale dizer que, no contexto da Segunda Revolução
Industrial, a medicina social é uma resposta direta às exigências do processo de
desenvolvimento do modo de produção capitalista, que necessita de mão-de-obra em
quantidades cada vez maiores e em boas condições de saúde. Um trabalhador doente não
produz o mesmo que um trabalhador saudável. Por isso, o capitalismo não implica uma
privatização da medicina, mas sim a sua socialização. Daí o nascimento de uma medicina
“social”. A necessidade e a utilidade da medicina social se explicam pelo interesse,
alimentado na sociedade capitalista, de uma tomada de poder sobre o sexual, o corporal, o
somático, o biológico, em suma, sobre a vida.
Em segundo lugar, a guerra de raças é uma estratégia de poder em que a soberania, a
disciplina e a biopolítica se agenciam de modo a formar uma tecnologia de poder centrada na
morte, isto é, uma “tanatopolítica” (AGAMBEN, 2007) ou uma “necropolítica” (MBEMBE,
2018). A fim de estudar o discurso da guerra de raças, Foucault (2012, p. 24) se apoia no que
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designa como a “hipótese de Nietzsche”, segundo a qual o conceito de guerra forneceria um


modelo geral para a análise das relações de poder. Por isso, ele inverte a célebre máxima de
Claus von Clausewitz e afirma que “a política é a guerra continuada por outros meios”
(FOUCAULT 1997, p. 23). A genealogia do discurso sobre a raça mostra que, originalmente,
esse conceito não tem sentido biológico. Ele cumpre, antes, um papel político em uma série
de relatos históricos, que narram as guerras entre as raças. No discurso da guerra racial, a
multiplicidade dos seres humanos se transforma em raça. Com o surgimento das teorias sobre
a evolução e a degeneração da espécie humana, o discurso racial incorpora a biologia; a
guerra de raças passa ser narrada pela ciência, como um enfrentamento biológico.
Desse modo, o racismo faz parte das experiências totalitárias tanto do nazismo quanto
do stalinismo. No caso do nazismo (FOUCAULT, 2012, p. 309-12), trata-se de um racismo
étnico que planeja e executa, por um lado, a destruição das raças inimigas, que são concebidas
como degeneradas (judeus, ciganos, eslavos, negros, homossexuais etc.). Por outro lado, ele
procura promover a regeneração e a autossuperação de uma raça (os arianos), através de sua
exposição à morte patriótica na guerra. Portanto, trata-se de um racismo político com um
caráter evolucionista. O nazismo busca possibilitar, por meio da disciplina e da guerra, a
evolução do povo alemão e, por conseguinte, da humanidade. No nazismo, o direito de “fazer
morrer ou deixar viver”, baseado na racionalidade do poder soberano, agencia-se ao direito
de “fazer viver ou deixar morrer”, que se baseia na racionalidade do biopoder. Ou seja, a vida
dos arianos é promovida às expensas da morte de milhões de não arianos. “Os massacres se
tornaram vitais”, diz Foucault (2020, p. 129) com clara ironia. Entretanto, com o
desdobramento da guerra, esse agenciamento entre soberania, disciplina e biopolítica que é o
nazismo se converte em uma tanatopolítica, isto é, um poder de “fazer morrer ou deixar
morrer”. É essa lógica mortal que circula nos campos de concentração e de extermínio
nazistas, mas, por fim, também na alta cúpula do partido nazista, que se suicida. O próprio
Hitler também se mata, mas não sem antes conclamar o povo alemão à destruição total. Esse
é o teor do célebre telegrama 71, de Hitler: “Se a guerra está perdida, que pereça a nação”
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 114-5; FOUCAULT, 2012, p. 311)
Outra forma de agenciamento entre soberania, disciplina e biopolítica, em que o poder
de “fazer viver” e o poder de “fazer morrer” se vinculam, ou seja, outra forma de
tanatopolítica é o stalinismo (FOUCAULT, 2012, p. 312-5). O stalinismo também se associa
ao racismo, mas lhe confere um viés que é, antes, econômico que político. Ele articula o
discurso marxista acerca da luta de classes ao discurso darwinista sobre a luta entre as
espécies. Logo, o stalinismo também é evolucionista. Ele procura promover um certo tipo de
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homem, que não é o ariano, mas o proletário (personificado na figura do próprio Stalin). Esse
proletário é convocado a participar da Revolução e da guerra contra a classe inimiga, a
burguesia. Os dissidentes políticos e aqueles que, em geral, não se enquadram no modelo
soviético de homem (loucos, mendigos, vagabundos, prostitutas, homossexuais etc.) são
considerados degenerações da espécie, enfermidades, anomalias a serem medicalizados ou
enviados para fazendas de trabalhos forçados (gulags). O exílio na Sibéria – o isolamento, o
clima, a vastidão, o abandono –, é um bom exemplo de um poder tanatopolítico, que não se
efetua na forma do “fazer morrer”, mas na do “deixar morrer”.
A alusão às caraterísticas compartilhadas pelo nazismo e pelo stalinismo é bastante
elucidativa no que diz respeito ao problema da relação entre as tecnologias de poder e o modo
de produção capitalista. Em suas formas mais radicais, as tecnologias tanatopolíticas são
incompatíveis com o capitalismo. Como pensam os neoliberais (FOUCAULT, 2008a, p.
151), no longo prazo, tanto o nazismo quanto o stalinismo acarretaram a abolição da liberdade
econômica (laissez-faire, laissez-passer), estatizando e planificando toda a produção, seja em
função de uma “economia de guerra”, seja de uma “economia de revolução”. Do ponto de
vista histórico, o capital abandonou Hitler e Stalin quando esses demonstraram que não iam
satisfazer seus interesses e quando se percebeu que os interesses do nazismo e do stalinismo
eram inseparáveis de projetos políticos de destruição, que acarretariam milhões de mortes
nos campos de extermínio e nos gulags. Com o fim da guerra e o estabelecimento do Estado
de bem-estar social, ficou claro que, mais do que a uma tanatopolítica, o capitalismo é
funcional quando está associado a uma biopolítica.
Em terceiro lugar, o dispositivo de segurança é uma tecnologia biopolítica
característica de sociedades liberais (FOUCAULT, 2008b) que tem como objetivo
administrar a aleatoriedade dos fenômenos populacionais em um meio determinado. Alvo de
discursos e práticas de gestão, esse meio é o espaço em que a população vive e circula. Ele é
composto tanto por elementos naturais (clima, rios, montes, fauna, flora etc.) quanto por
elementos artificiais (cidades, vilas, estradas etc.). A população, que é produzida nesse meio,
com emprego do dispositivo de segurança, é uma multiplicidade de sujeitos biologicamente
ligados a uma materialidade histórica determinada. Por sua vez, essa materialidade histórica
é constituída de eventos aleatórios, contingentes, futuros. Tendo em vista regular a
aleatoriedade da população, no início da Segunda Revolução Industrial (1850-1945),
começam a se desenvolver fortemente ciências como a geografia, física e humana, a
demografia, a estatística e, com elas, o dispositivo de segurança.
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Na conexão entre o dispositivo de segurança e o capitalismo, encontra-se um exemplo


notável de ajuste biopolítico da população ao modo de produção. Trata-se da gestão das
multiplicidades urbanas, ou seja, as cidades, em função da dinâmica da produção (laissez-faire)
e da circulação (laissez-passer), que é característica de uma sociedade industrial e de consumo
(FOUCAULT, 2008b, p. 451-3). Em outras palavras, temos aí o urbanismo enquanto
dispositivo de gestão e policiamento da cidade, que se encarrega do desenho da morfologia
urbana, do planejamento e do ordenamento do território, de seu paisagismo e lida com
problemas como: edificações, ruas, avenidas e estradas, tráfego e transportes de pessoas e
mercadorias, praças e parques, saneamento básico, processos de favelização e gentrificação etc.
O desenvolvimento desse dispositivo de segurança urbanístico é correlato do desenvolvimento
da cidade-mercado, que se torna um elemento-chave do capitalismo industrial a partir de
meados do século XIX. Em outros termos, vê-se que a relação entre o dispositivo de segurança
e o capitalismo é de condicionamento mútuo.

6. Soberania, biopoder e capitalismo

Entendido como um complexo de soberania, disciplina e biopolítica, o poder produz


populações politicamente obedientes e economicamente úteis. Todo poder procura ajustar,
adaptar, acomodar a população tanto aos processos de gestão política quanto aos processos de
produção econômica. Por essa razão, o poder não tem em vista necessariamente oprimir nem
exterminar a população. Isso só acontece quando o agenciamento entre soberania, disciplina e
biopolítica converge para uma tanatopolítica, uma “arquitetura da destruição”. Foi isso o que
aconteceu nos casos extremos do nazismo e do stalinismo. Porém, mais frequentemente, o poder
visa fazer com que os comportamentos dos indivíduos e da população sejam controlados e
regulados, de modo otimizar suas competências e, por conseguinte, elevar a empregabilidade
de suas forças. Nesse sentido, a produção, o mercado e o trabalho em condições normais, bem
como as incapacidades e os acidentes (gestão de risco) são objetos de regulação biopolítica.
Logo, existe um paralelo ou, mais precisamente, uma relação de condicionamento recíproco
entre as tecnologias de poder (soberania, disciplina e biopolítica) e o modo de produção
capitalista.
Foucault jamais se concentrou no estudo do problema do capitalismo, do modo de
produção, do sistema ou da sociedade capitalista, embora o tema reapareça, de forma
fragmentária em vários de seus escritos, algumas vezes em momentos decisivos. Está fora de
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propósito tentar reunir aqui, de maneira sistemática, os inúmeros cacos desse vaso partido que
é a concepção de capitalismo de Foucault. Em vez disso, apenas se lançará uma pista, um ponto
de partida, uma perspectiva para a compreensão da relação entre poder e capitalismo que se
encontra implícita nas análises genealógicas realizadas por Foucault.
Na tradição marxista, de modo geral, a sociedade capitalista ou o capitalismo são
concebidos como um conjunto de fenômenos e processos que constituem, em sua base, uma
infraestrutura econômica e, em sua superfície, uma superestrutura ideológica (MARX, 2016).
Assim, na infraestrutura da sociedade, encontra-se um modo de produção, designadamente, o
capitalista. Por sua vez, na superestrutura da sociedade se situa o aparelho político-jurídico do
Estado liberal capitalista e as formas de ideologia (filosofia, ciências, artes, religião etc.)
características daquela sociedade. Para o marxismo, assim como a infraestrutura determina a
superestrutura, a economia determina o poder em “última instância” (ENGELS, 1978). Nesse
sentido, o poder estatal capitalista seria um efeito de superfície, que visaria simplesmente
instrumentalizar a repressão de uma classe, isto é, o proletariado, em favor dos interesses
econômicos da classe dominante, ou seja, a burguesia.
De maneira completamente diferente, do ponto de vista de Foucault, toda abordagem do
problema da relação entre tecnologias de poder e modo de produção econômica deve partir de
uma crítica à ideia de um condicionamento simples e unilateral, de uma subordinação de uma
superestrutura por uma infraestrutura, do político pela economia, das relações poder pelas
relações de produção (DELEUZE, 1988, p. 34). Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se
dizer que, de um lado, o modo de produção é causa e efeito das tecnologias de poder (soberania,
disciplina e biopolítica). De outro lado, as tecnologias de poder também são causa e efeito do
modo de produção. Isso significa, por exemplo, que o modo de produção capitalista não está
ligado apenas à repressão (embora essa continue à disposição do Estado soberano atual, cujos
interesses convergem com os do capital). Além disso, o capitalismo também implica o emprego
dos métodos e das práticas de controle disciplinares e reguladores, mobilizando, de acordo com
seus fins, a série de técnicas individualizantes e totalizantes do biopoder, que não visa reprimir,
mas incitar, incentivar, estimular, motivar.
Considerando somente a relação entre o capitalismo e o biopoder, tem-se o seguinte. De
um lado, um certo número de exigências de ajuste populacional, que são características do
processo histórico de desenvolvimento da sociedade capitalista, vai acarretar o nascimento do
biopoder, no século XVIII. De outro lado, o mesmo biopoder também vai impor determinadas
condições ao cálculo econômico capitalista. Por isso, pode-se dizer que o processo de adaptação
dos indivíduos e da população ao modo de produção capitalista não obedece apenas à
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racionalidade econômica, mas também a uma racionalidade política (ou governamental), que
diz respeito especificamente às relações de poder, seu desenvolvimento, manutenção,
aprofundamento, expansão.
Em outras palavras, cabe dizer que o modo de produção capitalista demanda, em larga
escala, a inserção e a acomodação controlada dos corpos individuais no aparelho de produção.
Essa demanda é atendida, precisamente, com base nas operações da tecnologia de controle
disciplinar. Ao mesmo tempo, o modo de produção capitalista depende do ajuste e da adaptação
do corpo populacional aos processos econômicos. Esse ajuste é um dos objetivos da tecnologia
de controle regulatório, isto é, a biopolítica. Portanto, o biopoder opera um duplo ajuste entre o
político e a economia. Um primeiro ajuste visa o corpo individual e é realizado por meio de
técnicas de vigilância e punição, no âmbito das instituições disciplinares. O outro ajuste incide
sobre os fenômenos globais da população e é efetuado pelos mecanismos biopolíticos, para
além dos limites institucionais.
Por certo, a rejeição da análise genealógica ao princípio da determinação econômica em
última instância é inegociável e expressa a atitude antifundacionista que a marca. Todavia, os
pensamentos de Marx e de Foucault não são necessariamente incompatíveis. Para se
compreender adequadamente a relação entre eles, é preciso que não se faça uma leitura
“economicista” do primeiro nem uma leitura “politicista” do segundo. A crítica de Marx ao
capitalismo tem relevância analítica demais para ser simplesmente deixada de lado. Além disso,
tal rejeição seria inútil do ponto de vista das lutas e práticas de resistência. As contribuições de
Marx são vastas, suas implicações, necessárias. Entre outras coisas, o pensador alemão
diagnosticou problemas como a alienação do trabalho e do trabalhador (MARX, 2004), a
dominação pela ideologia (MARX; ENGELS, 2007) e o fetichismo da mercadoria (MARX,
2015). O pensamento de Marx também possibilitou que se fizesse, por diferentes vias, por
exemplo, as críticas à reificação (LUKÁCS, 2018), à racionalidade instrumental e indústria
cultural (ADORNO, 2020) e à sociedade do espetáculo (DEBORD, 2007). Não há motivo nem
vantagem para a análise genealógica em excluir por princípio a possibilidade de uma
interlocução com Marx e com parte dos marxistas.
Foucault não pensou a produção em sentido econômico, isto é, a produção de produtos,
bens ou mercadorias. Ele também não pensou a produção dos seres humanos enquanto
mercadorias (reificação). Ele pensou, por exemplo, a produção dos produtores das mercadorias,
os trabalhadores, enquanto sujeitos. A produção dos trabalhadores é um caso do que Foucault
(2001b, p. 1047) chamou de “subjetivação” (assujettissement). Certamente, a produção de
sujeitos é condicionada em parte por exigências oriundas do modo de produção. Porém, ela
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também obedece a regras e procedimentos que são independentes da dinâmica da economia,


mesmo no caso da produção do sujeito trabalhador. Pelo menos em parte, essas regras e
procedimentos funcionam com base em uma racionalidade que é do poder, e não da economia.
Certas técnicas de poder nada têm a ver com a economia. Por exemplo, os suplícios, os
conventos e os confessionários, em suas filigranas, detalhismos e rebuscamentos, não
repercutem uma lógica econômica (a “lógica do capital”), mas um refinamento, uma ostentação
e um esbanjamento que são característicos da racionalidade específica do poder. Foucault não
pensou o modo de produção, que é objeto da análise econômica. Ele pensou os processos de
subjetivação e as técnicas de poder, que são objeto da análise genealógica. Isso não significa
que o modo de produção não exista nem que a análise econômica deva ser descartada. É mais
interessante pensar que há uma relação de complementaridade entre elas.
Pode-se dizer que as perspectivas de Foucault e de Marx são diferentes. Porém, elas
podem ser concebidas como complementares. Uma análise histórica mais completa e radical
das tecnologias de poder e do modo de produção do tempo em que vivemos parece requerer,
cada vez mais, uma aliança entre eles (LEMKE, 2004). A aliança que se sugere aqui, necessita,
obviamente, de maior desenvolvimento e dos devidos ajustes e “costuras”. Isso ultrapassa o
propósito deste artigo. Por ora, é suficiente lançar uma pista que não se seguirá aqui: a chave
para a compreensão da relação entre poder e capitalismo no século XXI talvez esteja em um
agenciamento entre Marx e Foucault.

7. Focos de resistência

Para concluir, é preciso não esquecer que, onde existe poder, também existe resistência.
Apesar de tudo, nem as tecnologias de poder, nem o capitalismo são onipotentes. Existe um
“fora” do poder, uma espécie de outside, de dehors. Se o biopoder abarca a vida humana como
um todo, de maneira análoga, as forças que resistem a ele se apoiam em toda a vida dos
indivíduos e das populações (PELBART, 2009, 59). Há tempos, as lutas deixaram de ser
travadas em virtude dos antigos direitos formais e abstratos (liberdade, igualdade, fraternidade)
que se fundam na soberania e na razão de Estado, têm como titular legítimo o burguês ou
capitalista e encontram no liberalismo seu discurso e suas técnicas. Em revide ao alastramento
do biopoder, a resistência também passou a ser feita em função da integralidade da vida. Assim,
atualmente, as lutas constroem suas plataformas de atuação tanto em torno da satisfação das
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necessidades vitais (comer, beber, fazer sexo, vestir-se, morar etc.) quanto da realização das
virtualidades e desejos (demandas por direitos ao corpo, à cidade, à felicidade etc.).
Apesar de a complexidade das relações de poder jamais se reduzir à ideia de luta de
classes (que é a versão biológico-econômica da guerra de raças), pode-se dizer que os
trabalhadores foram e são capazes de resistência organizada, efetiva e potente. A certa altura,
eles encontraram seu discurso no socialismo. Porém, esse nunca pôde se tornar prática, senão
de forma “deturpada” (talvez não tanto como se imagina, mas ainda assim deturpada). Nos dias
atuais, o proletariado está longe de poder pretender ser o sujeito da revolução e se percebe que
a luta de classes está longe de ser a única a ser lutada. As lutas se multiplicaram e desdobraram,
assim como seus atores. A revolução parece ter se extraviado devido à perda de seu grande
herói. Essa é a marca do niilismo e melancolia de nossa época. No entanto, isso não significa
que os trabalhadores tenham perdido por completo sua capacidade de resistência. Essa não deve
ser menosprezada, mas reativada. Para isso, é preciso ter clareza de que existe uma relação de
interseccionalidade (DAVIS, 2016) e conexões de rede entre a luta de classes (entre a burguesia
e o proletariado, o capital e o trabalho) e diversas outras lutas.
Do mesmo modo que o poder, a resistência adquiriu múltiplas faces, que se
disseminaram por toda parte, em diversos pontos do tecido social. Há focos de resistência na
psiquiatria e na medicina social (as faces do louco, do portador de necessidades especiais ou
síndromes, do dependente químico); nas políticas de segurança (as faces do delinquente, do
presidiário); na família e na escola (as faces do jovem, do aluno), no ambiente de trabalho, no
campo, na fábrica e no escritório (as faces do trabalhador, certamente, mas também do
desempregado, “lumpenproletário”, e do aposentado, do agricultor, do sem-terra); nas políticas
de gestão da sexualidade (as faces da mulher, do homossexual, da lésbica, do bissexual, do
transexual, do queer); no racismo, tanto cultural quanto de Estado (as faces do índio, do negro,
do imigrante, do refugiado, do colonizado); no espaço da cidade (as faces do favelado, do sem-
teto, do usuário de transportes públicos); no ciberespaço (as faces do usuário de internet, do
hacker) etc. Ora micropolíticas, ora macropolíticas, todas essas lutas são bastante concretas.
Elas não nutrem o sonho da grande revolução, mas não cessam de construir alternativas que
viabilizam, em alguma medida, mesmo em condições extremas, a satisfação das necessidades
e a realização dos desejos, por meio da luta.
Apesar das táticas da resistência se articularem, por vezes, como reivindicações pelos
direitos humanos, não é a humanidade que está em questão aí. Em geral, a estratégia das práticas
de resistência consiste em tentar revirar a vida, tomada pelo poder e pelo capitalismo, contra
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eles próprios. Nessa luta, o que está em jogo é a vida. Embora o poder e o capitalismo procurem
submeter a vida por inteiro, e o consigam, em grande parte, a vida é o que resiste.

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