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RESUMO: O presente artigo mostra que o conceito de “governo” de Michel Foucault ocupa o espaço
aberto por sua crítica ao poder moderno. Foucault passa aos poucos do conceito de poder à noção
de governo em suas análises. Porém, não se trata de substituição de conceitos equivalentes, mas de
um refinamento conceitual que ilumina a dimensão da atividade dos sujeitos como base das relações
sociais e políticas modernas. Assim, este texto tem dois momentos distintos e complementares: mostra
a possibilidade de passar do conceito de poder ao conceito de governo, pelo menos como elemento
central da análise social e política, e discute o alcance do conceito de governo, que se instala em uma
dimensão diferente daquela do poder.
PALAVRAS-CHAVE: Poder. Governo. Foucault. Atividade. Política.
1
Este artigo é parte dos resultados de pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do EditalUniversal 14 / 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732016000400006
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Professora de Filosofia Política no Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da UFSCar.
Mestre e Doutora em Filosofia pela USP, autora dos livros Subjetividade, espaço e tempo em David Hume
(Editora Humanitas/FAPESP, 2015) e Política e moral em Foucault: entre a crítica e o nominalismo
(Edições Loyola, 2015). E-mail: stivalmonica@gmail.com
3 Discuti a crítica de Foucault ao conceito de poder em artigo intitulado “Foucault e o fim do
poder moderno”, publicado na Revista DoisPontos, v. 13, n. 2, 2016, do qual este artigo é uma
continuação. Agradeço a leitura dos dois artigos e os comentários de Maria Isabel Limongi.
poder, ou pelo menos ele não é apenas essa produtividade do poder político
em relação às vidas individuais. Então, o que é poder para Foucault?4
Tanto a disciplina, que inicia nos séculos XVII e XVIII, quanto a
biopolítica, que nasce um pouco depois, na Inglaterra, colocam em cena
uma maneira de pensar o poder como “tecnologia de poder” (já em Marx,
por exemplo). Pode-se ver essa tecnologia em funcionamento no exército,
na educação ou na sexualidade, como mostra Foucault. Há uma “invenção
no nível das formas de poder” que ocorre concretamente, nos séculos XVII,
XVIII e XIX, justapondo-se à representação jurídica do poder. Por isso,
nesse sentido preciso, “[...] o poder tornou-se materialista. Ele cessa de ser
essencialmente jurídico.” (FOUCAULT, 2001, p. 1013). Isso não significa
que a representação jurídica do poder tenha saído de cena, mas apenas que
há algum tempo ela não é exclusiva na determinação concreta das malhas do
poder. Contudo, a descrição da história dessas tecnologias de poder muitas
vezes não ultrapassa, ao que parece, a dimensão de análise que encontramos
desde os primórdios da modernidade como circunscrição do poder político.
Para encontrar as tecnologias de poder que coexistem com a representação
jurídica do poder, parece ser útil considerar as relações de poder e, mais do
que isso, a constituição dessas relações. Esse horizonte de análise, indicado
por Foucault por meio da noção de governo, abre uma dimensão a mais nas
análises do poder, pois precede a própria relação de poder.
Para chegar a esses conceitos, ou pelo menos para situar a dimensão
em que se instalam, vale retomar muito brevemente a crítica de Foucault ao
sentido moderno do poder político. O sentido da recusa da noção moderna
de poder está na recusa da função do aspecto jurídico do poder político,
combinado na noção moderna de representação à força em sentido físico.
Trata-se, na combinação entre esses dois aspectos do poder, da posse, posse
legítima (potestas) e posse da força (potentia). Porém, há primazia do primeiro
aspecto em relação ao segundo. Nesse sentido, o poder é sobretudo resultado
de uma alienação, de uma autorização prévia que independe do modo
concreto como a relação de forças se determina. Não há propriamente relação
em jogo. Ao contrário, o olhar sobre as “relações de poder” com que Foucault
procura, num primeiro momento, tomar distância da chave de análise jurídica,
enfatiza a equação das forças, a assimetria de uma relação que pode ser de
4
Esta primeira seção, que tem por função esclarecer o ponto de partida e o vocabulário da seção
seguinte – que é o foco deste artigo –, retoma, em parte, desenvolvimentos publicados no livro Política
e moral em Foucault: entre a crítica e o nominalismo (Edições Loyola, 2015).
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Aqui tomo distância crítica em relação a Foucault, que certamente quis distinguir estratégia
e moral. Isso porque, apesar de ter a vantagem de marcar o caráter fluido, contingente e concreto
de constituição de um objeto ou sujeito histórico, excluindo a tese simplista de complô, intenção
primordial ou conspiração, a ideia de “estratégia sem estrategista” torna os produtos desse conjunto
difuso de causas um fato sem sujeitos ativos, sem posição política e moral tomadas durante o processo
histórico em questão.
II
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Isso significa que, para pensar a democracia como “poder do povo”, é preciso mais do que pensar
se o povo detém meios para isso (instituições); é preciso pensar se o povo tem vontade. Há uma
espécie de “vontade geral”? Há uma unidade política que possa definir uma vontade radical para essa
unidade? Nessa chave, “democracia liberal” é um quadrado redondo, pois a vontade é reduzida ao
interesse individual como lugar da determinação dos fins. E o que resta ao demos é apenas a definição
circunstancial dos meios, dada pela estrutura institucional – a “população” legitima a forma, não os
fins. Esse parece ser o engodo do liberalismo político e de toda aposta no procedimento como elemento
principal de uma ordem social justa.
que não se anulam, mas que produzem resistência ao mesmo tempo em que
cerceiam, como quer Foucault. Lebrun acusa Foucault de reduzir seu escopo
aos pequenos poderes, dimensão na qual se justifica uma “teoria do poder”
fluida. Afinal, aquele jogo de poder não se desenrola na matriz “ordem e
obediência”, que é a matriz da soberania, mas nas múltiplas relações de poder
– o que não descarta, é preciso ressaltar, o poder político. Com uma teoria
do poder fluida, solta em uma infinidade de relações microfísicas, Foucault
perderia de vista, assegura Lebrun, a “[...] matriz ‘ordem/obediência’ (‘eu
tenho poder, portanto você não o tem’) [...].” (LEBRUN, 2007, p. 21).
Lebrun supõe que Foucault se restringe à disciplina para pensar a
obediência, equívoco que se multiplica em diversos comentários recentes à
obra de Foucault. A disciplina não é mais que um dispositivo entre outros,
central por um período apenas da história da governamentalidade e, ademais,
não diz respeito exclusivamente à esfera do Estado11. Quando Foucault discute
a obediência, em A vontade de saber e em Vigiar e punir, pode-se imaginar que
a obediência é pensada por ele exclusivamente na chave da disciplina. Em
meados dos anos 70, tem-se o desenvolvimento de uma chave de análise capaz
de se contrapor ao modelo jurídico e, ao mesmo tempo, abrir espaço à reflexão
sobre a produção da obediência. Porém, pode-se notar que, aos poucos, essa
questão da disciplina torna-se ainda mais localizada e secundária em relação ao
governo ou à política voltada à população. Trata-se de mais do que disciplina,
trata-se de orientar ou conduzir a coletividade, a unidade política, ou ainda
a si próprio e aos outros. Para Foucault – a fim de tomar uma dessas direções
como exemplo –
[...] o meio aparece como um campo de intervenção em que, em vez de
atingir os indivíduos como um conjunto de sujeitos de direito capazes
de ações voluntárias – o que acontecia no caso da soberania –, em vez de
atingi-los como uma multiplicidade de organismos, de corpos capazes de
11
É interessante notar que a disciplina no exército, por exemplo, é um modo novo de organização desse
conjunto de homens, digamos, para manter a indeterminação. Como aparece a disciplina no exército,
ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII? “Toda uma enorme transformação que fez que, no exército,
que era até então essencialmente constituído de pequenas unidades de indivíduos relativamente
intercambiáveis, organizados em torno de um chefe, essas unidades fossem substituídas por uma
grande unidade piramidal, com toda uma série de chefes intermediários, de suboficiais, de técnicos
também, essencialmente porque havia sido feita uma descoberta técnica: o fuzil de tiro relativamente
rápido e ajustado.” (FOUCAULT, 2001, p. 1007). É interessante observar que a disciplina aparece
quando se passa de pequenas unidades organizadas em torno de um chefe a uma grande unidade
piramidal. Além disso, no primeiro modelo os elementos são intercambiáveis, o que é pressuposto
de uma igualdade entre eles, talvez como na sociedade indígena considerada por Pierre Clastres, em
contraposição à “unidade hierárquica” do modelo disciplinar, que imprime diferença entre os homens.
III
dada à ascendência que é exercida por certos cidadãos sobre certos outros.” (FOUCAULT, 2008, p.
146). Cf. também p. 162 e p. 190.
ABSTRACT: This article shows that Michel Foucault’s concept of government occupies the space
opened for his critique of modern power. Foucault passes gradually from the concept of power to the
notion of government in their analysis. However, it is not a replacement of equivalent concepts, but
a conceptual refinement that illuminates the dimension of activity of subjects as the basis of modern
social and political relations. Thus, this article has two distinct and complementary stages: it shows the
possibility of moving from the concept of power to the concept of government, at least as the central
concept to the social and political analysis, and it discusses the scope of the concept of government,
which is installed in a different dimension from that of power.
KEYWORDS: Power. Government. Foucault. Activity. Politics.
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Recebido em 20/11/2015
Aceito em 11/01/2016