“GRANDIOSO PORQUE Et BOM”
Quando Deus finalmente conversa com J6, ele rejeita a logica cruel
| que culpa a vitima. Ele o faz ao renunciar o pressuposto meritocré-
} tico de que Jé e scus companheiros compartilham. Nem tudo o que
| acontece é recompensa ou castigo para o comportamento humano,
| Deus proclama dentro de um remoinho. Nem toda chuva tem fina-
| lidade de molhar a plantacao de pessoas honradas, nem toda seca
tem finalidade de castigar quem é perverso. Afinal, chove em Ingares
| onde ninguém vive — em regides selvagens, que nao tém vida huma-
na. A criagdo nao é apenas pelo bem dos seres humanos. O cosmos
| € maior ¢ os caminhos de Deus, mais misteriosos do que a imagem
antropomorfica sugere.*
Deus confirma a honra de J6, mas o castiga por pressupor que com-
preenden a légica moral dos seus preceitos. Isso representa um distan-
ciamento radical da teologia do mérito construida em Génesis e Exodo.°
| Ao renunciar a ideia de que ele tem autoridade sobre uma meritocracia
| césmica, Deus afirma seu poder ilimitado e ensina a J6 uma licdo de
humildadc. Fé cm Deus significa accitar a grandiosidade ¢ 0 mistério da
criagav, nao esperando que Deus dispense recompensas ¢ castigos com
| mn Deus di pt ig
} base no mérito e merecimento de cada pessoa.
|
| A questao do mérito reaparece em debates cristaos sobre salvagao: os
I podem conquistar a salvacao por meio de observancia religiosa
i | e obras de caridade, ou Deus esta totalmente livre para decidir quem
| ira salvar, independentemente de como as pessoas vivem a vida?> A
| primeira opgao parece mais justa, uma vez que recompensa a bondade
| | ecastiga o pecado. No entanto, segundo a teologia, ha um problema;
afinal, questiona a onipoténcia de Deus, Se a salvagao € algo que pode-
| mos conquistar e, portanto, merecer, entao Deus € obrigado, de certa
| maneira, a reconhecer nosso mérito. A salvacdo se torna, pelo menos
| em Parte, uma questdo de autoajuda, e isso implica um limite para o
| poder infinito de Deus.
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'
55ATIRANIA DO MERITO
A segunda apcio, enxergar a salvagdo como uma dadiva nao conqui,
tada, afirma a onipoténcia de Deus, mas, ao fazer isso, cria um Problem,
diferente: se Deus é responsavel por tudo no mundo, entio ele deve se
Tesponsavel pela existéncia do mal. Mas se Deus € justo, como ele
Permitir 0 softimento ¢ o mal que ele pode evitar? Se Deus € Todo-Poderosy,
@ existéncia do mal parece sugerir que ele é injusto. Do ponto de vist,
teoldgico, é dificil, se no impossivel, ter estes trés pontos de vista simul.
taneamente - que Deus é justo, que Deus é onipotente e que o mal existe?
Uma forma de solucionar essa dificuldade € atribuir o livre-arbitrig
aos seres humanos, Isso transfere a responsabilidade pelo mal de Deu
para nos. Se, além de estabelecer a lei, Deus concedeu a cada um de nis
a liberdade de decidir entre obedecer e desobedecé-la, € responsabilidade
nossa se escolhemos fazer o mal em vez de fazer o bem. As pessoas que
agem mal merecerao qualquer castigo que Deus distribuir, neste mundo
ou no préximo. O sofrimento delas nao constituira maldade, mas sim
apenas castigo por sua transgressao.*
Um dos primeiros proponentes dessa solugao foi um monge britani-
co do século V chamado Pelagius. Apesar de nao ser muito conhecido,
alguns comentaristas modernos argumentaram que, como campeio do
livre-arbitrio e responsabilidade individual na teologia crista antigs,
Pelagius foi um precursor do liberalismo.?
No entanto, em seu tempo, a solugao de Pelagius resultou em feror
oposigdo de ninguém menos que Santo Agostinho, o mais formidavd
filésofo cristéo da época. Para Santo Agostinho, atribuir o livre-arbitrio
a seres humanos nega a onipoténcia de Deus e enfraquece o significado
de sua dadiva definitiva, 0 sacrificio de Cristo na cruz. Se seres humanos
so tao autossuficientes a ponto de conquistar salvagao por conta propria,
por meio de obras de caridade e realizando sacramentos, a Encarnagit
torna-se desnecessaria. Humildade diante da graga divina da espatt!
para orgulho dos esforgos de uma pessoa."
Apesar da insisténcia de Santo Agostinho em relagao a salvagao p™
meio apenas da graca, as praticas da Igreja trouxeram o mérito de volt!
Ritos ¢ rituais - batismo, oragdo, frequentar missa, realizar sacrament
nao permanccem muito tempo sem provocar um senso de eficacia eo"
56"GRANUIOSO PORQUE E BOM”
os participantes. Nao é facil sustentar a crenga de que a observancia
| religiosa dos fiéis esta incorporada em observancia externa, mediada e
reforcada por uma ordem complexa de praticas da Igreja, onze séculos
depois de Santo Agostinho ter censurado a salvagao por mérito.
| A Reforma Protestante nasceu de um argumento contra 0 mérito. A
questo que Martinho Lutcro tinha contra a Igreja catélica de sua época
cra apenas em parte sobre a venda de indulgéncias, pratica corrupta por
meio da qual pessoas ricas tentavam comprar a salvagao. (De forma mais
precisa, 0 pagamento supostamente acelerava a peniténcia e encurtava 0
tempo de purgatério de uma pessoa.) Sua visio mais ampla, seguindo
Santo Agostinho, era de que a salvagao é totalmente uma questao de gra-
¢a divina e nao pode ser incitada por nenhum esforgo para conquistar a
benevoléncia de Deus, seja por obras de caridade ou realizagao de ritos.
Nao podemos mais rezar para chegar ao paraiso e pagar para entrar. Para
Lutero, a eleigdo é uma dadiva totalmente imerecida. Tentar aumentar as
chances comungando ou frequentando a missa, ou ainda, tentando con-
vencer Deus de nosso mérito é tao presuncoso que chega a ser blasfémia."
| A rigorosa doutrina da gracga de Lutero era resolutamente antime-
ritocrdtica. Rejeitava a salvacao por meio de obras de caridade e nao
deixava espaco para a liberdade humana de vencer pelo proprio esforgo.
Ainda assim, paradoxalmente, a Reforma Protestante que ele langou
resultou na feroz ética meritocratica do trabalho que os puritanos e seus
sucessores trouxeram para os Estados Unidos. Em A ética protestante
e oespirito do capitalismo, Max Weber explica como isso aconteceu.'?
Assim como Lutero, Joao Calvino, cuja teologia inspirou os puritanos,
defendia que a salvagdo era uma questdo de graga divina e nao de mérito
humano ou merecimento. Quem sera salvo ¢ quem sera condenado esta
predestinado e nao sujeito 4 mudanga com base em como as pessoas
vivem a vida. Nem mesmo os sacramentos podem ajudar. Apesar de que
devem ser celebrados para aumentar a gloria divina, “eles nao sao meio
para alcangar a graga.”3
| Adoutrina calvinista da predestinagao criou um suspense insuportavel,
Nao € dificil enxergar por qué. Se vocé acredita que seu lugar na vida
apés a morte € mais importante do que qualquer cvisa com a qual vocé
|
57ATIRANIA DO MERITO
Se importa neste mundo, vocé vai querer desesperadamente saber se estg
entre os escolhidos ou os condenados. Mas Deus nao anuncia isso com
antecedéncia, Nao conseguimos idemtificar, observando 0 comportamenty
das pessoas, quem é escolhido e quem é condenado. Os eleitas sio «4
Igreja invisivel de Deus”.
De acordo com Weber, “uma questao impunha-se de imediato a cada
fel individualmente e relegava todos os outros interesses a segundo plano,
Serei ew um dos eleitos? E como ew vou poder ter certeza dessa eleigio?” A
persisténcia ea urgéncia dessa pergunta direcionaram calvinistas a certa
versao da ética do trabalho. Uma vez que todas as pessoas sao chamadas
por Deus a trabalhar em uma vocacio, trabalhar com dedicagao nesse
chamado é sinal de salvagao.!¥
O objetivo de um trabalho como esse nao é aproveitar a riqueza que
ele produz, mas sim, glorificar Deus. Trabalhar para esbanjar consuno
seria desviar-se desse objetivo, uma espécie de corrupgao. O calvinismo
combinou trabalho extenuante com ascetismo. Weber ressalta que essa
abordagem disciplinada do trabalho - dedicar-se ao trabalho, mas con-
sumir pouco — produz o actimulo de riqueza que alimenta o capitalismo,
Mesmo quando as motivagées religiosas originais esvaem-se, a ética
protestante do trabalho e do ascetismo proporciona a base cultural para
o acimulo capitalista.
Mas para nossos propésitos, a importancia desse drama est na tensio
que desenvolve entre mérito ¢ graca. A vida inteira dedicada ao trabalho
disciplinado como voca¢ao de uma pessoa nao é, por certo, um caminho
para a salvacao, mas sim uma forma de saber se a pessoa (ja) esta entre
os eleitos. E sinal de salvagao, nao a fonte.
No entanto, provou-se dificil, se nao impossivel, evitar a mudanga de
visdo de que uma atividade mundana como essa € sinal de eleigdo, para
enxerga-la como fonre. Psicologicamente, € dificil sustentar 0 conceitu de
que Deus nao ira observar 0 trabalho fiel que anmenta sua gloria. Uma
vez que sou incentivado a inferir a partir de minhas obras de caridade
que estou entre os eleitos, é dificil evitar 0 pensamento de que minhas
boas ages de alguma mancira contribuiram para minha eleigdo. Dentro
da teologia, a ideia de salvagao por meio de obras, uma ideia meritocré-
58“GRANDIOSO PORQUE £ BOM”
tica, j4 estava presente no contexto — tanto na énfase catdlica em ritos e
sacramentos quanto na concepg¢ao judaica de conquistar a graca divina
por observar a lei e defender preceitos éticos do pacto de Sinai.
Conforme o conceito calvinista de obra por voca¢4o evoluiu para a
ética puritana do trabalho, ficou dificil evitar sua implicacao merito-
cratica — de que a salvagao é conquistada e que o trabalho é fonte, nao
meramente sinal, da salvacao. “Ora, em termos praticos isso significa
que, no fim das contas, Deus ajuda a quem se ajuda”, observou Weber;
“por conseguinte o calvinista, como de vez em quando também se diz,
‘cria’ ele mesmo sua bem-aventuranga ctcrna — em rigor o correto seria
dizer: a certeza dela.” Alguns luteranos acusavam essa linha de pensa-
mento por “santificag4o pelas obras”, exatamente a doutrina que Lutero
considerou uma afronta a graga divina.'*
A doutrina calvinista de predestinacao, combinada a ideia de que a
pessoa eleita deve fazer jus 4 sua eleicdo por meio do trabalho por vo-
cacao, resulta em uma concepcao de que sucesso mundano é uma boa
indicagao de quem esta destinado a salvacao. “A todos, sem distingdo,
a Providéncia divina pés 4 disposigaéo uma vocacao (calling) que cada
qual devera reconhecer e na qual devera trabalhar”, Weber explicou. Isso
confere influéncia divina na divisao do trabalho e apoia a “interpretagdo
providencialista do cosmos econémico”.!”
Comprovar o estado de graca de uma pessoa por meio da atividade
mundana traz de volta a meritocracia. Os monges da Idade Média for-
mavam uma espécic de “aristocracia cspiritual”, seguindo sua vocagio
ascética longe das ocupagdes mundanas. Mas com o calvinismo, a ascese
cristé “ingressa no mercado da vida” e “fecha atras de si as portas do
mosteiro”. Todos os cristaos foram chamados para trabalhar e provar sua
f€ em atividades mundanas. “Uma vez ancorada sua ética na doutrina
da predestinacao”, o calvinismo substituiu “a aristocracia espiritual dos
monges situada além e acima do mundo [...] [pela] aristocracia espiritual
dos santos no mundo desde toda a eternidade predestinados por Deus.”"¥
| Confiante de sua eleigdo, essa aristocracia espiritual dos eleitos des-
prezava, com desdém, as pessoas aparentemente destinadas a danagio.
Nesse ponto, Weber vislumbra 0 que eu chamaria de versio inicial de
arrogancia meritocratica.
59ATIRANIA DO MERITO
E que para esse estado de graca dos eleitos e, portanto, santos pel
Braga divina, nav era adequada a solicitude indulgente com og
Pecados do préximo apoiada na consciéncia da propria fraqueza,
mas sim 0 ddio e o desprezo por um inimigo de Deus, alguém que
Portava em si 0 estigma da perpétua danagao."”
A ética protestante do trabalho, portanto, nao s6 da origem ao espi-
tito do capitalismo. Ela também promove uma ética de autoajuda e de
responsabilidade pelo destino, convenientes a modos meritocraticos
de pensar. Essa ética libera uma torrente de esforgo ansioso e enérgico,
que gera grandc riqueza, mas ao mesmo tempo revela 0 lado negativo da
responsabilidade e de vencer pelo proprio esforgo. A humildade induzi-
da da suscetibilidade diante da graca abre caminho para a arrogancia
resultante da crenga no préprio mérito.
PENSAMENTO OPORTUNO: ENTAO E AGORA
Para Lutero, Calvino e os puritanos, debates sobre mérito eram sobre
salvacao — os escolhidos conquistam e, portanto, merecem sua eleigao
ou seria a salvagdo uma dadiva da graca, além de nosso controle? Para
nos, debates sobre mérito s4o sobre sucesso mundano — os bem-sucedidos
conquistam e, portanto, merecem seu sucesso ou seria a prosperidade
consequéncia de fatores além de nosso controle?
A primeira vista, esses dois debates parecem ter pouca coisa em
comum. Um é religioso, 0 outro é secular. Mas ao olhar de perto, a
meritocracia de nossos dias carrega em si marcas da contestagio teol6-
gica da qual surgiu. A ética protcstante do trabalho comegou como um
tenso didlogo entre graca € mérito, suscetibilidade e autoajuda. Ao fim,
0 mérito eliminou a graga. A ética do dominio e de vencer pelo proprio
esforco oprimiu a ética da gratiddo e da humildade. Trabalhar e se ¢S-
forgar passou a scr impcrativo préprio, independente da ideia calvinist
de predestinacao ¢ da ansiosa busca por um sinal de salvacio.
Etentador atribuir triunfo do dominio e mérito a tendéncia secular de
nossos dias. A medida que a fé em Deus diminui, a confianga na agencia
60“GRANDIOSO PORQUE £ 00M"
humana se fortalece; quanto mais nos concebemos como autossuficientes,
capazes de vencer pelo préprio esforco, menos temos motivos para nos
sentir em divida ou gratos por nosso sucesso.
Mas mesmo hoje em dia nosso comportamento em relagao ao sucesso
nio é tao independente da fé providencial tanto quanto 4s vezes pensamos
ser. A ideia de que somos agentes humanos livres, capazes de ascender
e de obter sucesso por meio de esforgo proprio é apenas um aspecto da
meritocracia. Igualmente importante é a convicgdo de que as pessoas
bem-sucedidas merecem seu sucesso. Esse aspecto triunfalista da merito-
cracia gera arrogancia entre vencedores e humilhacao entre perdedores.
Reflete um residuo de fé providencial que persiste no vocabulério moral
de sociedades sob outros aspectos seculares.
Max Weber observou:
Os afortunados raramente se contentam com o fato de serem afortu-
nados. Além disso, necessitam saber que tém o direito a sua boa sor-
te. Desejam ser convencidos de que a “merecem” e, acima de tudo,
que a merecem em comparacdo a outros. Desejam acreditar que
‘os menos afortunados também esto recebendo o que merecem.”?
A tirania do mérito surgiu, ao menos em parte, desse impulso. A or-
dem meritocratica de hoje moraliza 0 sucesso de maneira a repetir uma
fé providencial de outrora: apesar de pessoas bem-sucedidas nao deve-
rem o poder e a riqueza a intervengdo divina — elas ascendem gragas a0
proprio esforco e ao trabalho arduo -, o sucesso delas reflete sua virtude
superior. Pessoas ricas sdo ricas porque merecem mais do que as pobres.
Esse aspecto triunfalista da meritocracia é uma espécie de providen-
cialismo sem Deus, pelo menos sem um Deus que intervém nos assuntos
dos seres humanos. Quem é bem-sucedido consegue isso por conta pré-
pria, mas seu sucesso atesta sua virtude. Esse modo de pensar aumenta
os riscos morais da competigao econémica. Santifica os vencedores ¢
infama os perdedores. >
O historiador cultural Jackson Lears explica como 0 pensamento
providencialista persiste mesmo apés 0 declinio das ideias calvinistas de
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