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Pagina I de 14 Bonfeati, PF O retrato de Dorian Gray: uma possivel analise junguiane a partir do arquétipo do Puer aetermis O retrato de Dorian Gray: uma possivel analise junguiana a partir do arquétipo do Puer aeternus The picture of Dorian Gray: a possible Jungian analy: of Puer acternus is from the archetype El retrato de Dorian Gray: una posible andlisis junguiana a partir del arquetipo de Puer aeternus Paulo Ferreira Bonfatti! Resumo objetivo deste artigo é contribuir para a compreensto da dinimica psicolégica de Dorian Gray. protagonista do romance O rerrato dle Dorian Gray. de Oscar Wilde, a partir da teoria junguiana. Na trama da obra, tenciona-se depreender esse personagem com base no conceito do arquétipo do Puer aetermus — entendido como o adulto que quer ser tuma eterna crianga, permanecendo para sempre jovem endo querendo crescer. Essa perspectiva considera que o arquétipo do Puer e stias manifestacdes podem ser vistos nifo s6 na Psicologia Clinica contemporinea como também em diversas outras expresses arquetipicas. como a Literatura. Na andlise do drama desse personagem, perceber-se-A 0 carter inescapivel de seu fim trigico, considerando-o capturado por essa dindmica psiquica do Puer aeternus a0 tentar negar a passagem do tempo, o envelhecimento, o amadurecimento, os estabelecimentos de virtculos afetivos e suas relagdes com o mundo, Palavras-chave: Psicologia junguiana. Puer aefernus. Dorian Gray. Literatura. Oscar Wilde. Abstract ‘The purpose of this article is to contribute to the understanding of the psychological dynamics of Dorian Gray, protagonist of Oscar Wilde's novel The picture of Dorian Gray from Jungian theory. Within the plot of the work. it is intended to deduce this character from the concept of the archetype of Puer aetermus — understood as the adult who wants to be an eternal child, remaining forever young and not wanting to grow up. This perspective considers that the Puer archetype and its manifestations can be seen not only in contemporary clinical psychology but also in several other archetypal expressions such as literature. In the analysis of the drama of this character will be perceived as being inescapable from. its tragic end, considering it captured by this psychic dynamics of Puet aeternus in trying to deny the passage of time, aging, maturation, establishments of affective bonds and their relations with the world. Keywords: Jungian Psychology. Puer aeternus, Dorian Gray, Literature, Oscar Wilde. Resumen, El propésito de este articulo es contribuir a la comprensién de la dinémica psicoldgica de Dorian Gray, protagonista de Ia novela de Oscar Wilde EI retrato de Dorian Gray a partir de la teoria junguiana, Dentro de la trama de la obra, se pretende entender a este petsonaje a partir del concepto dei arquetipo Puer aeternus, entendido como el adulto que quiere ser un nifio etemo. permanecer siempre joven y no + Psicélogo elinico de orientacto junguiana e professor do CESIF, possuio Titulo de Especialista em Psicologia Clinica outorzado pelo CRP 04, Especialista em Psicologia Junguiana pelo Instituto Janguiano do Rio de Janeiro Especialista e Mestre em Citueia da Religido pela UFIF e Doutor em Psicologia Clini pela PUC-Rio. Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), So Jodo del-Rei, outubro-dezembro de 2019, 3447 Pagina 2 de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis ‘querer crecer. Esta perspectiva considera que el arquetipo de Puer y sus manifestaciones pueden verse no solo en la psicologia clinica contempor’nea, sino también en Varias ottas expresiones arquetipicas com la literatura. En el anzlisis del drama de este petsonaje se percibiré como ineludible de su trigico final, considerindolo capturado por esta dinémica psiquica de Puver aeternus al tratar de negar el paso del tiempo, el envejecimiento, la maduracién, los establecimientos de vinculos afectivos y sus relaciones con el mundo. Palabras clave: Psicologia jungiana, Puer aeternus. Dorian Gray. Literanura. Oscar Wilde Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), So Jodo del-Rei, outubro-dezembro de 2019, 3447 Pagina 3 de 14 Bonfeati, PF O retrato de Dorian Gray: uma possivel analise junguiane a partir do arquétipo do Puer aetermis Introdugio Youth's like diamonds in the sun, And diamonds are forever (..] Forever young want t0 be forever young Do you really want to live forever Forever, and ever? (Marian Gold, Bernhard Lloyd, Frank Mertens) Conceito basilar na teoria junguiana, a concepsio de arquetipos aponta que eles seriam padroes psiquicos herdados de estruturagio, uma predisposigao inerente para a elaboracao de imagens paralelas, de estruturas semelhantes e universais da psique (Boufatti, Nogueira, Telles & Souza, 2018) Tung aponta que © arquétipo se manifesta em formatos semelhantes em diversos locais, periodos, culturas, sonhos e diversas outras expresses da psique — segundo ele, essas expresses seriam as imagens arquetipicas (Jung, 2000). A ideia de arquétipo remete a outro conceito jumguiano, que é 0 de inconsciente coletivo — um substrato psiquico comum a toda a humanidade, Assim sendo, por essas caracteristicas, a “[...] explorago do conceito de arquétipo e stias manifestagdes possuii grande valor compreensivo nao s6 na clinica, como também nas mitologias, na filosofia, nas religides e na arte ~ espagos onde podemos encontrar. suas, manifestagdes [...)” Bonfatti, Nogueira, Telles & Souza, 2018, p. 545) Segundo Samuels, Shorter e Plaut (1988, p. 38), em tese, “[...] poderia existir qualquer niimero de arquetipos”. Diante dessa incomensurabilidade de arquétipos, a proposta deste artigo é se dedicar a um especifico: o arquétipo do Puer aeternus — © etemo joven ~ que, num dos aspectos multifacetados e peculiares de sua dinamica psiquica, busca permanecer eternamente numa juvenilidade, objetivando, assim, evitar o crescimento, Como arquétipo, a dinimica do Puer aeternus pode ser encontrada em Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: diversas instineias. Na pritica da clinica psicolégica, por exemplo, © Puer pode ser observado em pessoas que procuram, incausavel e literalmente, —infindaveis cirurgias plasticas e tratamentos conhecidos como anti-aging, para uma _possivel paralisacdo do tempo em seus corpos. Isso sem considerar aqueles que nao perduram e nem se aprofindam ou se comprometem nas relagdes afetivas, nos estudos ou em seus trabalhos, mantendo-se em situagdes de coustante superficialidade e evitagao de envolvimentos Em uma perspectiva arquetipica, além da Psicologia Clinica, podemos observar 0 Puer na mitologia. Nesse sentido, James Hillman (1998e) procura idemtificar, compreender e problematizar as questdes do Puer em diversas passagens com. lisses, Dioniso, Cristo, Mereiitio, Atis, Eros Horo, Faetonte, Edipo e tantos outros Também na arte, considerando-a como uma das formas de expresso psiquiea (Jung, 1987), podemos, da mesma maneira, observar 0 tema do Puer se manifestando em diversas expressdes sendo estas, inclusive, objeto de reflexdes psicolégicas. Marie-Louise von Franz (1992), por exemplo, se dedica a analisar 0 Puer tanto no livto O pequeno principe, de Saint-Exupéry (2009), quanto no de Brino Goetz (1995), Das Reich ole Raum — obra pouco conhecida no Brasil, cuja tradugao de Franz é apresentada com o titulo O reino sem espaco, De forma aniloga, podemos pereeber © Puer no classico personagem de Peter Pan que no queria crescer, morava na “Terra do Nunca” com os “uneninos perdidos”, nao tina sombra e sempre era alegre e aventureiro anie, 2012). Também identificamos a manifestagao desse arqutipo no personagem de Mozart, inconsequente e imaturo, mas extremamente ctiativo, diante de um senex (velho) e austero, prosaico e desimaginoso como o personagem de Salieri, no filme Amadeus, de Milos Fonnan (1984), Acompanhando essa concepeao das manifestagdes dos arquétipos em diversas instancias, o que se pretende com este breve mbro de 2019, 3447 Pagina 4 de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis trabalho é tentar construir uma contribuigao de uma possivel compreensio da dinimica psicolégica jungniana de Dorian Gray, persouagem principal da obra O reirato de Dorian Gray, publicada em 1890, ‘nico romance do escritor britanico do século ‘XIX, Oscar Wilde (Wilde, 1969). Nesse sentido, tenciona-se compreender a psicologia de seu protagonista a partir do conceito do arquétipo do Puer aeternus — entendendo-o numa dinamica psiquica que busca ser uma etema crianga, negando seu crescimento e buscando permanecer para sempre jovem. Nessa tentativa de compreensio do drama do personagem, entender-se- que Dorian Gray nao poderia escapar de seu fim trégico, haja vista a captura pela dindmica arquetipica do Puer aerernus, ao tentar negar a passagem do tempo, 0 envelhecimento, oo amadurecimento, os estabelecimentos de vinculos afetivos ¢ seus relacionamentos com 0 mundo. 0 arquétipo do Puer aeternus na Psicologia junguiana — reves. comentirios Na Psicologia ~—_junguiana, encontramos diversas passagens que se dedicam ao Puer aeternus, 0 eterno jovem. Sao nmitos os autores que citam e se dedicam ao tema e, sem querer esgota-los, apontamos, ilustrativamente, alguns em que se podem depreender perspectivas distintas e complementares acerca do Puer Pieri (2002, p. 415) assevera que. para o ponto de vista redutivo, o Puer tem uma dificuldade de separar-se dos Ingares figuras da origem ¢, portanto, pela dificuldade de existir no lugar em que ndividno ja se encontra verdadeiramente, mas tambem por vivacidade © uma impacigncia, que acaba por levar_em diregao a uma ttopia abstrata, produzindo no individuo reiterados desgjos de iniciar e jamais introduzindo-o em verdadeiro ‘proprio inicio Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: Fi do ponto de vista construtivo, 0 mesmo autor afirma que “[...] ‘o eterno adolescente” indica, em seutido contratio, a verificagao da verdadeira disponibilidade pata 0 inicio e, portanto, a possibilidade de renovacao” (Pieri, 2002, p. 415). Samuels, Shorter e Plaut (1988) Jembram também uma polaridade em que. por um lado, 0 Puer esta ligado a uma perspectiva neurotica, idealista, com dificuldades de se estabelecer — sendo impaciente, imaginative e desligado das origens. Por outro, pode estar “[...] em evolucao perpétua, de se redimir pela inovéncia, de visualizar novos comesos um simbolo para a possibilidade de reconciliar opostos” (p. 181). Enconttamos no proprio Jung, ji em Simbolos da Transformacao (2017), © Puer sendo apresentado em diversas passagens associado a questio matemna, que & uma constante em sua percepgao, mas também como possibilidade de renovagio e renascimento, como se pode observar em ‘Mysterium Coniunctionis (2015). Ademais, em Tipos_psicolégicos. (1991), é apresentado também como renascimento & restauragio capaz de unit os opostos. Ontrossim, em Os arguétipos eo inconsciente coletivo (2000), 0 percebemos na psicologia do arquétipo matemo, da crianga e do srickster. Em Resposta a Jé (1983), é visto como sempre mutavel, nao necessariamente, numa perspectiva de inconscigncia, mas também como uma potencialidade e nascido da sabedoria Conjuntamente, como Dionisio extitico e agitado em —Aspectos. do drama contempordneo (2012) ou come 0 espitito mercurius em Estudos alquinicos (2016). Dois outros autores junguianos que também se dedicaram 4 questio do Puer aeternus foram Marie-Louise von Franz & James Hillman, Franz, em sua obra Puer aeternus: a Inta do adulto contra 0 paraiso da inféincia (1992), apresenta suas ideias a partir de una série de 12 palestras no inverno entre 1959- mbro de 2019, 3447 Pagina 5 de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis 1960 no C. G. Jumg Institute de Zurique Sua perspectiva é também de um Puer ligado a questo materna e se aproxima de um viés patolégico que inviabiliza a autorrealizagao e degreda a personalidade Puer a uma concepgao imatura e superficial em todas as instancias da vida Hillman tem alguns trabalhos acerca da questio do Puer e seis deles foram coligidos no livro O livro do Puer: ensaios sobre 0 arguétipo do Puer aetermus (1998e). Antes da publicagao desse livro de compilagdes, Hillman publicou “A grande mae, seu filho, seu herdi ¢ o Puer”, no Livro organizado por Patricia Berry chamado Pais ¢ mies: seis estudos sobre o fundamento arquetipico da psicologia da familia (1979). Nesse artigo, Hillman escreve inicialmente uma “Apologia ao leitor”, dizendo que decidiu publicé-lo autecipadamente a um outro livro seu, @ época ainda em fase de elaboragao.? por uma “razio urgente”, Para Hillman (1979, p. 98), essa urgéncia se configurou devido a0 fato de que A idea do “complexo matermo” ainda predomina na andlise dos homens jovens. E ainda considerada 0 fundamento do “problema do Puer” e do “desenvolvimento do ego”. Creio que se trata de um terrivel engano, com conseqiiéncias individuais e coletivas. Ver apenas neurose do complexo matemo uo fenomeno do Puer significa Tomar o espirito doente © ignorar as ‘oportunidades de movimento a que o espirito incita na psique coletiva através de sua inearnacao [sic] nos homens dominados pelo Pus. Vale ressaltar nessa passagem que Hillman nao nega que possa haver a questao do complexo matemo,? mas sim que 0 Puer esse artigo publicado iniciaimente no tivro corganizado por Patricia Betry (1979), Hillman nto deixa claro qual lio futuro seria esse. Em seu Livro do Puer: ensaios sobre o arquétipo do Puer determus(19986), no qual reencontramos o mesmo artigo como mesmo titulo “A grande mae, seu filho, Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: nao ficaria circunscrito apenas a essa questo. Isso sem dizer que ele, ao apontar as potencialidades do Puer em outro texto, ndo nega a existéncia de um Puer negativo tao prejudicial quanto um Senev negativo (Hillman, 19981), De mais a mais, esse autor também € prédigo em amplificar as possibilidades e potencialidades que 0 Puer tem além da questio matema (Hillman, 19985). De fato, 0 que se pode perceber & que, como todo arquétipo, ha sempre uma miriade de ramificagdes. Com base nessas possibilidades se tentara propor algumas reflexdes acerca do personagem Dorian Gray no romance de Wilde numa perspeetiva do Puer. Aobra, o artista e 0 Puer As vezes, por prazer, 0s homens da equipagem Pegam win albairos, imensa ave dos mares Que acompania, indolente parceiro de viagem, O navio a singrar por glauicos patamares. Tao logo o estendem sobre as tdbuas do comes, © monarea do cul, camhestro e ervergonhado, Deixa pender, qual par de remos junto aos és, ‘4s asas em que falge wm branco imaculado. ‘Antes to belo, como é feio na desgraca Esse vigiante agora flcido e acanhado! Uin, com 0 cachimbo, the enche 0 bico de famaca, ‘Outro, a coxear, inita 0 enfermo outrora alado! 0 Poeta se compara ao principe da altura Que enfrenta os vendavais eri da seta no Exilado no chao, em meio a turba obscura, ‘As asas de gigante impedem-no de andar. (Charles Baudelaire, O albatraz) sett herdi eo Puer”, no hi nenhuma mengo & publicagao feita ao livro organizado por Berry. ® Mesmo porque, em outros textos, Hillman (1998a, 19981) aponta @ possibilidade da questo materna presente a dinimica psiquica do Puer, apesar de achar que no se deve seguir apenas “esse modo de pensar” (1998d, p. 186). mbro de 2019, 3447 Pagina 6 de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis Em 0 retrato de Dorian Gray (Wilde, 1969), obra tantas vezes traduzida e produzida de forma filica,* Dorian Gray é uum homem belo e jovem de 20 anos que vivia na Inglaterra aristocritica e hedonista do século XIX e que teve o auge de sua beleza fisica imortalizada nas tintas de um quadro para o qual fora modelo. Diante de sua bela imagem gravada e imortalizada na tela, Dorian fica horrorizado com a ideia de envelhecer e perder o fiescor e beleza de sua juventude registiada na eternidade pelo pintor. Tentando evitar 0 devir inexoravel do envelhecimento, faz um ingénuo pacto para que a sua imagem retratada na tela envelheea enquanto Dorian nfo — permaneceria jovem e belo para sempre (Wilde, 1969), Evidentemente, a _perspectiva implacavel que se apresentara é que esse arranjo enigmatico para que o tempo nao passe para seu corpo tera um prego penoso para sua alma, Uma cobranga que sera traduzida numa dinamica psiquica que emeigira a partir da propria Sombra — conceito junguiano compreendido como tm, lado desconhecido e muitas — vezes aterrorizante da psique para o ego quando nao assimilado (Pieri, 2002). “Todo individuo é acompanhado por uma sombra, e quanto menos ela estiver incorporada 4 sua vida consciente, tanto mais escura [perigosa] e espessa ela se tomard [..] isolada da conscigneia” (Jung, 1985, p. 7 * Segundo Toffoli (2013. p. 2). além de diversas versGes para o teatro, desde 1910, foram produzidas dezenove adaptagdes para o cinema. “Em 1910, Dorian Grays Portret foi ditigida pelo russo Axel ‘Strom; em 1913 por Phillips Smalley: em 1916, ma adaptagio feita por Rowland Talbot foi dirigida por Fred W Durrant: em 1917 Das Bildhis de Dorian Gray foi ditigida por Richard Oswald: em 1918 Az Ele’ kirdlva foi ditigida por Alféd Deésy: em 1943 foi a famosa adaptagao dirigida por Albert Lewin: em 1969 a Televisa produziu a telenovela £! Reirato de Dorian Gray, ditigida por Emesto Alonso: em 1970 Dorian Grew. filme conhecido como The Evils of Dorian Grav ot The Secret of Dorian Gray, foi dirigido por Massimo Dallamano: em 1973 Glenn Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: Observa-se que, quando nao hi essa assimilagdo, a Sombra se toma autnoma, nao ¢ integrada e se manifesta patoligica e destzutivamente na dinamica psiquica, Esse evento psiqnico, no direcionamento a ser proposto, ocorre com o protagonista do_ romance de Wilde Quando Dorian Gray se deparow com seu retrato pronto, disse: ~ Que tristeza! ~mummurou Dorian Gray, de olhios fixos na propria imagem. ~ Que tristeza! Ficarei velho, hortivel, medonho Mas este retrato continnara sempre jovem, Nunca sera mais velho do que neste determinado dia de juno... Ab, se pudesse dar-se 0 contrétio! Se ew pemuanecesse mogo € 0 retrato envelhecesse! Para iss... para isso... eu daria tudo, E verdade: nao hi xno mundo 0 que en nao desse. Daria minha A partir desse pacto, ainda por se revelar a0 proprio Dorian, temos 0 desenrolar da historia, pois, sequencialmente, Dorian apaixona-se rapidamente por Sibyl Vane, uma jovem artista que vira, numa noite, apresentando- se num pequeno e modesto teatro. Entao lhe pede em casamento. A moca, de origem humilde, fica lisonjeada e encantada. Sua mae e ismio preocupam-se com o imediatismo da proposta e com as diferengas sociais entre os dois. Dorian convida seus dois amigos, Basil ¢ Lorde Henry Wotton, para assistir a uma das apresentagdes da moga, mas percebe que, Jordan dirigin uma versio feita para a televiséo: em 1976 outra adaptagio para a televisto foi dirigida por John Gorrie: em 1977 Le Portrait de Dorian Gray foi dirigida por Pierre Boutron: em 1983 outra vversdo para televisao intitulada The Sins of Dorian Gray foi ditigida por Tony Maylam; em 2001 Dorian, conhecida como Pact with the Devil. foi ditigida por Allan A Goldstein; em 2004 uma adaptagao foi ditigida por Brendan Dougherty Russo eno mesmo ano por David Rosenbaum: em 2006 por Duncan Rey; em 2007 por Jon Cunningham: em 2009 por Jonathan Coutemanche ¢ a iltima em 2009 por Oliver Parker”, mbro de 2019, 3447 Pagina 7 de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis indo além do véu da paixdo, a moga nao s6 representa muito mal naquela noite como também é uma péssima atriz. Dorian fiea totalmente desapoutado. Seus amigos, antes de irem embora, procuram consolé-lo salientando a beleza da jovem. Dorian vai até 0 camarim ao final daquela apresentagao. Sibyl esta feliz e diz-lhe que, daquele momento em diante, s6 vivera para © amor de Dorian e que nao mais seguir a vida de atriz. Todavia, Dorian nio esta mais apaixonado por Sibyl e assim a Lumilha e despreza. Vira-lhe as costas para munea mais voltar, deixando-a _abandonada, menosprezada, aténita e ferida (Wilde, 1969) Ao voltar para casa, muito aborrecido por seu desapontamento com a idealizagdo nao comespondida por Sibyl, Dorian vai admirar seu retrato, em busca de uma espécie de autoconsolo, e fica impactado ao perceber que o quadro havia se alterado, Sutilmente, seu belo sortiso pintado nao era mais mesmo e apontava um trago de cinismo e maldade. Dorian assim entende, pela primeira vez, que o quadro refletia a parte sombria de sua alma Para contomar tal situagdo, ele deveria desculpar-se com Sibyl e assim © quadro voltatia a0 normal. Entretanto, era tarde demais: Sibyl, arrasada com o desprezo de Dorian, havia cometido snicidio. A partir de entéo, Dorian compreende que o pacto havia se coneretizado. @, a0 tomar conscigncia de que seria etemamente imortal, jovem e belo, passa a viver tudo que lhe era ou nao pemnitide moralmente Comega a ter uma conduta fria e interesseira com todos 4 sua volta, Induz pessoas a atos despreziveis ¢ criminosos, ficado sempre impune, pois munca é descoberto ou visto. Esfaqueia ¢ assassina seu amigo Basil quando este descobre o que acontece entre Dorian e 0 quadro. Leva outro amigo ao suicidio apés induzi-lo a desfazer-se do cadaver de Basil. Diante dessas atrocidades, nada acontece aparentemente a Dorian, pois, apenas sta imagem no quadro se altera e registra suas monstruosidades, Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: transformando-sepaulatinamente numa figura aterrorizante (Wilde, 1969), Dorian vai levando assim sta vida, ¢ muitos anos se passa desde 0 sinistro acto com 0 quadro, Somente aos 40 anos, bastante angustiado com o vazio € tédio de sua vida eterna, Dorian decide buscar a cura de sua alma sem sentido, Pretende levar uma vida melhor, sem magoar quem quer que seja e por isso ndo se aproveita de uma jovem e ingénua campouesa como sempre fizera com as pessoas. Refletindo sobre si mesmo, se da conta de que sua soberba 0 levou aquela vida de perversidades. Atordoado, amaldigoa sua beleza, sua mocidade etema e seu pacto, pensando que sem eles sua vida seria outta bem melhor. O que mais o atormenta é a morte, mesmo em vida, da sua alma, Contuito com tudo o que se deparava de si mesmo, Dorian lembra-se de que havia escondido 0 quadio num quarto desocupado e fechado que fora de seu av6 € no qual, ha muitos anos, néo entrava, Vai até esse quarto, olha o quadro depois de tanto tempo e grita de terror diante da homifica imagem que estava registrada na tela. Apesar de suas tentativas de realizar boas intengdes, 0 quadro nao se alterara para melhor como esperava, Pior: a imagem era um terrivel monstro que se apresentava vivo na pintura a gotejar sangue e cada vez mais horrendo (Wilde, 1969) Entéo Dorian percebe claramente a realidade: somente por vaidade, mas nao por verdadeita intencionalidade, ele nao seduziu a camponesa. Ao mesmo tempo. sua hipocrisia colocou-lhe no rosto apenas uma mascara da bondade e compaixao. Ele sabia que 0 ttnico registro e prova viva de suas agdes, de seu vil caréter, de sua consciéneia, era o quadro. Entao, resolve destrui-lo. E, com a mesma faca com que matara o artista que o pintara, trespassa 0 retrato e morre (Wilde, 1969). Apés essa brevissima sintese do romance de Oscar Wilde, tentaremos examind-lo a huz da Psicologia junguiana e, especialmente, a partir da dinamica do Puer acternus. mbro de 2019, 3447 Pagina 8 de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis Como apontou-se anteriormente, slo muitas as possiveis ramificagdes do Puer. Marie-Louise von Franz, em seu livro Puer aetermus: a luta do adulto contra 0 paraiso da inféncia, afirma que o problema central do Puer, na dinamica individual, esti relacionado a questo materna (Franz 1992), No homem Puer, esse complexo cria uma dependéncia, fazendo-o permanecer etemamente numa dimensio infantil em que acaba superficializando todas as suas relagoes, Segundo Franz_——_(1992), arquetipicamente, a imagem da mae perfeita, que tudo da, sem nenhum defeito, assume os aspectos da Deusa Deméter dos Mistérios de Eléusis onde © Deus-crianga era cultuado. Nas relagdes afetivas, cada vez que wn homem tomado pelo Puer se apaixona por uma mulher e descobre que ela & um ser humauo comum, a paixio desaparece ¢, inevitavelmente, procurara outra mulher para projetar a imagem buscada, repetindo sempre a_ mesma historia. Sonha sempre com uma mulher maternal que © tomara nos seus bragos & realizara todos os seus desejos (Franz, 1992) Numa perspectiva junguiana (Jung, 1987), a ctiagao artistica esté intimamente ligada a dinamica psiquica do artista. Assim, a obra de um eseritor “[..] diz Tespeito a seu proprio problema, pois, de ‘outro modo, nao haveria inspiracao (Franz, 1992, p. $8). Em O retrato de Dorian Gray, Wilde sugere que criador e criatura estao vinculados a uma dinamica matema. Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde, ou Oscar Wilde, nascew na Irlanda em 1854. Foi escritor, poeta e dramaturgo bem popular de sua época em Londres. Hoje ele € lembrado por suas pegas e pelas circunstincias de sua prisio numa Inglaterra que soffia forte influéncia vitoriana, que acabou causando direta ou indiretamente sua morte precoce (Schiffer, 2011). Sua mie, mesmo sendo esnobe, ‘megalomaniaca, narcisista e andar pela casa Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: como uma diva do teatro, era carinhosa e afetiva e sempre teve enone influéneia em. sua vida. Desejava ter uma filha e, mesmo sendo algo aceito na alta sociedade & época, curiosamente vestia 0 pequeno Oscar com roupas femininas (Schiffer, 2011). J4 mogo tomou-se gracioso e alto. e, sendo excéntrico, atraiu a atengao de todos devido ao seu modo de falar e vestir como um Dandi. Quando foi para Oxford, eriou um estilo sofisticado nas maneiras de se tratar: chamou tanto a atengao que logo passou a ser imitado, Falava e gesticulava afetadamente, era brilhante ao expor stias ideias e um génio criativo na arte de escrever, No auge de sua carreira, em 1895, foi preso e condenado a dois anos por ser homosexual. Perdeu tudo e, enquanto cumpria pena, foi amrasado pela imprensa, abandonado pelos amigos; suas pegas foram retiradas dos palcos; seus bens levados a leilao, e pior ainda: teve que lidar com a morte da mie, que ele amava profandamente ¢ a qual era bastante ligado. Mais tarde, sua mulher pedi separagio ele também perden o direito de educar seus filhos que, inclusive, mudaram de nome. Em 1900, com apenas 46 anos, morreu em Paris num autoexilio solitério com meningite, aleoolismo e sifilis (Schiffer, 2011). O retrato de Dorian Gray & 0 ttnico romance de Wilde (1969). Nele 0 autor da forma e forga a dois personagens: Dorian Gray, 0 Puer aeternus, e Lord Henry Wotton, o mais velho, cinico e que em nada cr — a enantiodromia que se apresenta como 0 Senex, 0 seuil, o vellio enrijecido a favor da etema auséneia de mmidangas (Bernardi, 2008). O esctitor concilia nos dois os aspectos opostos: de um lado, 0 paraiso das fantasias da infincia; de outro a vida sem essas fantasias e o sentimento de que a vida perdeu o seu valor sem elas, on seja, a desilusio (Franz, 1992), Segundo Franz, 0 Puer“{...] tem un medo terrivel de se prender, de entrar no tempo e no espago, totalmente, e ser o ser humano especifico que ele é” (Franz, 1992, mbro de 2019, 3447 Pagina 9 de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis p. 11). Hillman também aponta que “O mundo horizontal, 0 continuo do tempolespago, a que chamamos de ‘realidade’, nao é seu mundo” (Hillman, 1998f, p. 38). Dorian teme a velhice, 0 tempo é 0 comprometimento com o viver a vida, comprometer & se prender (Franz 1992), Ele se apaixona pelo quadtro, inveja- o, gostaria de sé-lo, de ser para sempre jovem, nao envelhecer. Diz que se matara antes disso acontecer. Venderia até sua alma para ser fisica e eternamente como o quadro no dia em que foi fimalizado, ao paso que este envelheceria (Wilde, 1969) Viu-se que antes de Dorian perceber que sen pacto havia sido consumado, apaixona-se por Sibyl Vane, mas nao por ela e, sim, por seus papéis de atriz, Fica eucantado com aquele amor ideal e artificial de uma personagem, mas, quando Sibyl revela nao ser tdo boa attiz e se propoe a nao mais representar 0 amor, mas a vivé-lo com Dorian, ele se decepciona, sentindo que ela “[.] maton [o sen amor, que ela é] superficial e estiipida [e que, agora, nio estimula nem sua] imaginagao [ou sua] curiosidade. [Nas palavras de Dorian, ela havia armuinado o] romance da [sua] vida L..]” (Wilde, 1969, pp. 97-98). Diante dessa muptura da imagem idealizada de amor, Dorian simplesmente despreza e abandona Sibyl, que acaba se sticidando por isso. Franz aponta a dificuldade do Puer de estabelecer vinculos amorosos (Franz, 1992), pois Eros esti preso a uma dindmica psiquica matema e as projeces dessa mesina dindmica, Sua facilidade de sair das relagdes, sem nenhuma “tansigao”, é de se notar (Franz, 1992, p. 61), bem como sua instabilidade ligada a dificuldade de lidar com a anima (Franz, 1992) — aspecto feminino da personalidade masculina a que © Puer precisa se ater (Hillman, 19986) Hillman, por sua vez, aponta que o Per, em uma dinamica narcisica, nio tem “[...] nenhuma necessidade de relacionamento ou da mulher, a menos que seja alguma puella {menina] magica ou alguma figura maternal qe possaadmiravelmente _refletir” Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: (Hillman, 1998f, p. 40) a si mesmo. 0 Puer é autossuticiente, ja perfeito em si mesmo, sem precisar investir ou desenvolver. Em suas relagdes, ele é fhio e distante (Hillman, 1998f). Depois da morte de sua paixdo que desconstruin sua idealizagao, Dorian descobre que seu pacto com o retrato havia se concretizado. O quadro envelheceria Dorian nao. Sente-se etemamente belo e joven e, como diz Wilde em seu texto, (© quadro seria para ele o mais mégico dos espelhos. Assim, como Ihe revelara seu compo, iria revelarthe a alma, E, quando sobre ele caisse invemo, Dorian ainda estaria naquele ponto em que @ primavera estremece & chegada do verao. Quando o sangue desaparece do rosto do retrato, ali deixando palida mascara de giz. com olbos plimbeos, ele ainda conservaria o encanto da adolescéncia, Nao feneceria uma so flor de sua beleza. Nao se enffaqueceria uma imica pulsacao de sua vida, Assim como as denses da Grécia, ele seria forte, ¢ gil, € alegre, Que importa o que acontecesse a colorida imagem da tela? Ele estaria seguro, Era isso o importante. (Wilde, 1969, p. 116) Sim, com seu pacto, Dorian seria um deus grego, imortal e nunca envelheceria “Porque a eternidade é imutavel, aquilo que € governado apenas pelo Puer no envelhece. Também nao tem nenhuma face organica de maturagio que mostre a mordida do tempo” (Hillman, 1998f, p. 41) Certa vez, numa perspectiva autoerdtica (Hillman, 19986) de uma “[..) Pueril imitagao de Narciso, ele beijara, ou fingira beijar. os labios pintados que agora tao cruelmente Ihe sorriam [em seu retrato]” (Wilde, 1969, p. 115). Asombraé escondida nos pecados da tela, ela sera ocultada e envelhecida, mas sempre tetia vida, a0 passo que Dorian seria etemamente jovem, delo e com “um frescor etemo” (Hillman, 1998f, p. 42). Nas palavras de Wilde (1969, p. 128): “O que os vermes eram para 0 cadaver, seus pecados seriam para a imagem pintada na tela, Arruinar-lhe-iam a beleza e Ihe destruiriam a graga. Iriam mbro de 2019, 3447 Pagina 10de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis profani-la, tomando-a vergonhosa, E, no entanto, ela ainda viveria. Sempre teria vida” Para Hillman (1998b, p. 149), 0 corpo do Puer é um corpo sem feridas, sem cicatrizes, puro, imaculado, sem danos e, consequentemente, sem nenhum tipo de iniciagdo on, muito” menos, “[..] decomposigao de partes decadentes [..]”. Ser ferido é ser mortal e, de acordo, ainda, com Hillman (1998bpp. 147-148), © homem pues, psiquicamente falando, esconde sua ferida, uma vez que ela revela © segredo que enfiaquece essa forma de conscigncia [..] a ferida € a nossa mortalidade [..]. A limitagio através da ferida leva [..] & consciéncia [..]. Essa conscientizagdo mortal, ou conscientizagao cdo morrer, pode curar 2 feria, pois a ferida ‘nao @ mais tio necessiria. Nesse sentido, ‘uma ferida é a cura da consciéncia do puer a medida que a cura ocorte, 0 curador ferido pode comesar a constelar-se. Todavia, tudo aponta que Dorian nao vivencia, toma consciéneia, permite ou considera. suas feridas. Ele nio tem nenhuma cicatriz em seu corpo, mas suas feridas estio perpetuamente abertas. e igmoradas no quadro. Seu corpo permanece etemamente imaculado e sna imagem pintada na tela que é entregue aos vermes da alma, Dorian tinha tudo do seu modo e sob seu controle, ou pelo menos achava que tinha, No entanto, entrar em contato com 0 processo. de crescimento _psicolégico, chamado por Jung (1986) de individuagao, acarreta um softimento, pois somos roubados da capacidade de organizar nossa vida de acordo com nossa vontade (Franz, 1992). Dorian recusou dar curso da individuagio em sua vida e isolou o quadro, escondendo-o: “O Puer avternus tenta 0 tempo todo manter-se a margem da vida, nao se entrega, para nao ser surpreendido por situagdes desagradaveis” (Franz, 1992, p. 136), ou mesmo por nao querer se prender a uada, De acordo também com Hillman, © Puer nao se atém ao “tempo, Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: espago e causalidade” (1998¢, p. 173) e Dorian, com seu pacto, vive justanente nessa dimensio Dorian guardou o quadro numa sala onde deveria esconder o curioso segredo de sta vida € ocultar sua alma aos olhos do mundo e de si mesmo. O texto diz que [4] fazia mais de quatro anos que ali nao entrava Usara-a, a principio, como sala de bringuedo, em ctianga, e depois como sala de estudo. Era um aposento grande, bem proporcionado, constmuido especialmente pelo timo Lord Kelso [ava de Daria] para ser usado por seu neto. Ao qual, devida sua estranhia semelhanga com ame. e por coutras 1az0es, ele sempre odiara e desejara conservara distincia, Pareceu’a Dorian que ppouco tinha mudade [..] onde ele tantas vyezes se eseondera em crianga [.J, como se [embrava bem de tudo isso! Cada momento de sua infincia solitaria Ihe voltou a Jembranca. Reviu a pureza de sua vida de adolescente [.] onde deveria esconer 0 retrato. (Wilde, 1969, p. 131) Essa passagem do romance nos remete a pontos bastante significativos sobre a formagao da personalidade de Dorian: sua mie, diz o livro, era linda, romantica, extraordindria, como todas as mulheres da familia, ao passo que “[...] os homens eram uns coitados (...]” (Wilde, 1969, p. 40). Todos se apaixonavam por ela, mas preferiu um rapaz pobre, o qual seu pai, © avo de Dorian, nao aceitou de modo algum, a ponto de mandar maté-lo meses depois. A filha gravida, viva e desamparada, voltou para a casa do pai, mas ela mmea mais Ihe dirigiu a palavra e, um ano depois, moureu, deixando Dorian ainda bebé, reeém-nascido no meio da dor e filho do amore da morte. Foi criado por un velho empederido © abastado que o via como Jembranga viva do ddio que sentia pela filha (Wilde, 1969) Franz fala das “eriangas negligenciadas”, os érfiios de camadas altas “[...] que tiveram todas as caréncias, exceto dinheiro.” (Franz, 1992, p. 45). Que crescem rapidamente, mas em que podemos mbro de 2019, 3447 Pagina II de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis ver stias—_expressdes—_falsamente amadurecidas. Nao elaboraram suas “[...] ifusdes infantis, mas apenas as reprimiram [conjuntamente ao] desejo de ter una mie qne as amassem” (Franz, 1992, p. 46) as acompanham para sempre. ‘A histéria do nascimento e da infincia de Dorian é pungente significativa, ¢ a questéo matema é uma, nao a tinica, das chaves de leitura plausivel Ele poderia esconder o quadro em qualquer lugar de sua mansao herdada do avo, mas escolhen justamente sta sala da infineia, onde ficava isolado e escondido do mundo de forma atemporal. La, ele tudo podia, no meio de seus brinquedos e fantasia. La era poderoso e invencivel, Ii era a sua Pasdrgada (Bandeira, 2007), ld era o paraiso e la deixou o seu retrato pintado, © Puer vive na fantasia e, para se entregar a realidade, tera desilusdes e, no fim de tudo, encontrara a morte. Se o ego aceitar a vida, também aceitara a morte no sentido mais profimdo da palavra e é isso que 0 Puer nao deseja. “Ele se recusa a aceitar que € mortal e € por isso que recusa arealidade, pois esta lhe traz a cousciéncia de sua impoténcia e finitude.” (Franz, 1992, p. 178). Uma das possibilidades de transformagao do Puer € o trabalho, sem o qual ele nfo eruza a fionteira entre a fantasia e a agdo (Franz, 1992). Mas os deuses nao trabalham e isso é insuportavel para 0 Puer. Dorian vivia das rendas de uma grande heranga que recebera e munca precisou lutar por nada, pois também ja tina tudo. E, percebendo sua imortalidade, comega a experimentar de tudo sem a nada se apegar ou se prender, De tempos em tempos, interessou-se por tapetes, colesdes, religides, teorias, perfumes, misica, joins, bordados... Na descrigao do autor: “Tinha a extraordinéria faculdade de absorver [.] por aquilo a que se dedicasse” (Wilde, 1969, p. 147). Ia como um _ beija-flor, experimentando flores aqui e ali, e, como um bom Puer, nao se prendia a nada, pois tudo the causava enfado e impaciéncia Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: (Franz, 1992). Hillman (1998c) observa que © Puer esti sempre interessado numa novidade e tem um descaso com a normalidade (1998c), © que toma essa sensibilidade do Per — algo pseudopsicolégico, sem alma. Segundo esse autor, essa [.] _atimde do puer mostra _[, superficialmente, um] ponto de vista estética: o mundo como imagens belas ou como vasto cenitio. A vida se toma Iiteratura, aventura do intelecto ou da ciencia, da religiao on da agao, mas sempre iefletida e nao-relacionada e, portanto, ngo-psicolégica. [...] com fome oral © fantasias infantis de onipotencia [..]. (Hillman, 19986, p. 41) Assim, 0 Puer muitas vezes inspira, transborda, cria, imagina e, por isso, voa como o altaneiro e belo albatroz (Baudelaire, 2012) na imensidao do espago de possibilidades sem se deter a nenhum pedaco de terra firme. Todavia, quando lhe & inevitavel pousar na enfadonha tangibilidade do dia a dia, tomna-se um espirito claudicante sobre a terra (Hillman, 19980) Apontou-se que um dos problemas do Puer & a sua relagao com a sombra — umn. lado obscuro da personalidade ~, pois ela se apresenta agressiva e destrutiva quando no assimilada (Franz, 1992). Dorian comega a ver 0 imo de Sibyl em todos os hngares com o intuito de maté-lo. Enquanto isso, cada vez mais, 0 quadro vai se transformando em algo terivel e assustador, tormando sua vida insuportavel. Dorian diz no livro: “O infeliz camponés que morreu esta melhor do que eu, Nao tenho medo da morte” (Wilde, 1969, p. 219). E, mais adiante, também afuma: Eu gostaria de poder amar, exclamou Dorian Gray, com profunda tristeza na voz — mas parece que perdi a capacidade de sentir paixdo e esqueci o desejo. Estou por demais concentrado em mim mesmo. Minha propria personalidade tomou-se um. mbro de 2019, 3447 Pagina 12 de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis farclo para mim. Quero escapar, fig, esquecer. (Wilde, 1969, p. 220) Aqui, Eros foi novamente negligenciado, a vida de Dorian é a vida do Puer. E “[...] a crianga que existe na pessoa adulta [, € ela a] fonte de softimento: é a parte que sofie, pois a parte adulta pode aceitar a vida como ela é [...]” (Franz, 1992, p. 86), nao sofie tanto, E como Lord Hemy Wotton diz: “De que adianta a um homem. ganhar 0 mundo, se viver a perder a [...] propria alma?” (Wilde, 1969. p. 230). Nada pesava a consciéncia de Dorian, mas, diz 0 texto: “A morte viva de sua alma era o que o perturbava” (Wilde, 1969, p. 237). Assim, Dorian comegava a pensar que a morte seria um alivio. Todavia, por outro lado, a morte para o Puer “{...] nao importa, porque o puer da a sensagao de que pode voltar outra hora, comegar de novo [..] preso num estado atemporal, inocente dos anos que passam, em desacordo com 0 tempo. Seu vagar é [..] sem ligagdes, nao como uma odisseia da _experiéneia” (Hillman, 1998f, pp. 38-39). ‘Assim, ao final, o texto relata que Dorian, jé nao suportando mais, “Mataria 0 passado e, depois que este mortesse, ele estaria livre. Mataria aquela monstruosa vida da alma; sem suas _hediondas adverténcias, conheceria a paz. Apanhou a arma [uma faca] e apunhalou varias vezes a tela” (Wilde, 1969, p. 239) E © texto continua descrevendo a ‘altima cena do romance Quando [os empregados) entraram., viram, dependurado na parede; um magnifico retrato do patro, tal qual o haviam visto da ‘hima vez, em todo o esplendor de sua mocidade € beleza. Caido no chao estava ‘um morto, em traje de noite, com una faca sotertada no coragao. Murcho, enruzado: rosto repulsive. Somente depois de Ihe cxaminaram os ancis, foi que 0 reconheceram, (Wilde, 1969, p. 240) Hillman (1998d, p. 195) observa que, muitas vezes, 0 Puer “[...] aparece como estilo especifico de adolescéncia Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: prolongada, chegando até os quarenta anos —e as vezes terminando com a morte”. Porém, segundo ainda esse autor, a morte para o puer “{...] toma-se nao mais terror, ‘mas conforto natural ¢ bem acolhido [...)” (Hillman, 1998a, p. 77) © uma possivel autodestruigao corre porque the falta reflex psiquica, lidando com a morte como uma busca de cura (1998a). Hillman (1998a) aponta também o aspecto do Puer, da etema e esperangosa possibilidade de mudanga e transformagao —una erianga é sempre uma promessa. Von Franz (1992, p. 313), do mesmo modo, afirma que o Puer representa uma “[... possibilidade de renovagao criativa, de uma primeira conscientizagao do self, mas, por causa de uma certa fraqueza do ego e una diferenciagao insuficiente ou falha da anima, essas figuras de Pver tormam wn passaporte para a morte, para a loucura ou para ambas” A morte de Dorian, que aponta um suicidio, remete-nos a outra obra de Hillman, Sticédio e alma (1993), em que a questo nao € a busca de um juizo ético de valor contra ou a favor do suicidio, mas sim o que ele significa para a alma humana, para apsique Aexperiéneia da morte, diz Hillman (1993, p. 78), “[..] & necesséria para separarmo-nos do fitso coletivo da vida e descobrimmos a individualidade”, & isso requer coragem. A medida que a individualidade cresce, cresce também a realidade da morte, A andlise,o crescimento ou a individuagio defrontam-se sempre com a morte, com: qualquer tipo de morte e sé a psique pode afirmar que sentido tem cada um desses tipos de morte. Para Hillman (1993), experiéneia da morte € um requisito para a vida psiquica e a crise suicida € uma das maneiras de se experimentar a morte. Assim, devemos considerar o snicidio como uma tentativa de transformagao da psique — uma tentativa de se coneretizar no corpo aquilo que deveria ser simbolizado, mbro de 2019, 3447 Pagina 13 de 14 Bonfeati, PFO retrato de Dorian Gray: wna possivel andlise jungutana a partir do arquétipo do Puer aetermis Em Dorian, 0 suicidio € uma tentativa literalizada de mudar de wna esfera psiquica para outra por meio da morte, Ela aparece a fim de dar lugar a una transformagao rapid, radical e conereta, A alma de Dorian Ihe pedia para ser realizada € 0 tinico caminho possivel que restou. diante de tantos medos de crescer e viver, foi o suicidio Vivo ou semivivo, Dorian era 0 etemo Puer, com medo de mourer e de se transforma. E, morendo, buscou a tentativa de realizagao de sua alma Consideragées finais Reduzir uma obra de arte a uma perspectiva psicoldgica é um homicidio da alma e, certamente, nfo foi essa a intengao Ademais, sabe-se que as possibilidades de anilises psicolégicas de uma obra literdia sto miiltiplas, e buscar compreender o romance de Oscar Wilde a luz da teoria junguiana a partir do Puer aeternus & apenas mais uma, Assim sendo, néo se tem a pretensio de esgotar nem a obra e, muito menos, a questio do Puer: Tendo isso claro, 0 esforgo empreendido de couduzir o leitor a essa possibilidade de analise objetivou trazer as também —multiformes dificuldades potencialidades do Puer. Apontou-se desde a possibilidade de —_renascimento, transformagao, criatividade, renovagao, unio de opostos, reinveng’o, recusa a tudo que seja ligado ao siams quo estabelecido pelo senex até a permanéncia numa dinamica materma, infantil, incestuosa, narcisica, nostalgica, _incorruptivel, imaculada, temporal, autodestrutiva, amoral, transitéria, auttoerstica vulnervel. © que se vislumbrou como possibilidade analitica aqui presente foi que Dorian nao consegniu realizar e transcender simbolicamente sua transformagao psiquica por meio das potencialidades “positivas” do Puer. Ao couttitio disso, literalizou sua transformagao e ereseimento que fora tanto Pesquisas e Priticas Psicossociais 14(4), Sio Jodo del-Rei, outubro: tempo negados e abarcados por uma dinimica “negativa” ou patologica do Puer. Por outro lado, diante dos incontomaveis acontecimentos apresentados no enredo do romance, o fim tragico do protagonista aponta aspectos significativos, pois sugere ser sua morte literalizada como saida tinica plausivel na busca de transformagio de uma vida atemporal e terrivel que no levava ao contato com sua sombra e, muito menos, ao seu crescimento psicologico. Espera-se que esta tentativa de compreenséo tenha aberto ao leitor nao s6 horizontes para o diilogo entre a arte literéria e a Psicologia junguiana, bem como uma maior possibilidade de entendimento da dinimica do Puer — aspecto arquetipico e tao comum em nossa sociedade contemporinea Referéncias Battie, J. (2012). Peter Pan: edicao definitiva, comentada e ilustrada, Si0 Paulo: Jorge Zahar Bandeira, M. (2007). Vou-me embora para a Pasargada. In E. Moraes (Org.) Sao Paulo: José Olympio. Baudelaire, C. (2012). As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira Bemardi, C. (2008), Visio geral. In D. M. R. Monteiro (Org). 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