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AS SETE PORTAS - Bagatelas -— BOTHO STRAUSS Tradugéo: Pedro Feijé TEATRO UNIVERSITARIO DO PORTO 1993 Por vezes, durante largos minutos da nossa vida, 0 nosso quotidiano, parecem dangar na orla do fogo. J néo vemos uma porta mas sim sete portas entreabertas. Isso poderia significar 0 verdadeiro fim: saidas desesperadas na penumbra! Ja nao € uma saida, mas toda uma série de saidas abertas que nao nos deixam hipéteses de escolher 0 tinico bom caminho. Face aos mistérios forcados, face a esta arena de portas entreabertas, ficar sentado 6 a decisao mais decidida, Pois um pouco mais tarde a iltiséo desvanece: nao era senéo uma piada maliciosa aos nossos sentidos que 0 diabo se permitiu fazer. Aqui nao ha limbo, nao ha. inferno dulcificado, nao é sendo 0 diabo que se esconde nesta comparagao defeituosa. As diferentes cenas passam-se em frente a sete portas dispostas em semicirculo, tendo uma de vidro opaco na parte superior. © PROPRIETARIO (Abrem-se duas portas. O Presidente do Conselho de Administragao @ 0 Inquilino entram ao mesmo tempo) INQUILINO ~ O senhor o Proprietario? PRESIDENTE ~ De que é que se trata? INQUILINO ~ E 0 senhor? PRESIDENTE — Nos somos uma sociedade civil imobiliéria, eu sou 0 Presidente do Conselho de Administragao. INQUILINO — O senhor é 0 meu senhorio? PRESIDENTE - Onde mora? Para cada um dos nossos prédios temos um responsavel autorizado. INQUILINO — Eu no falo com subordinados. Nao serve de nada falar com subordinados. PRESIDENTE ~ Dirija-se ao responsdvel do seu prédio, INQUILINO — O senhor o Proprietario e é a si que eu tenho alguma coisa a dizer. PRESIDENTE — Teria dificuldade em compreendé-lo. Nao costumo dar-me com os inquilinos. INQUILINO — Mas enfim, eu moro na rua Doutor Charcot, n? 15! PRESIDENTE - Sim, e depois? O senhor nao sabe quem é o responsavel por esse prédio? INQUILINO ~ Sei muito bem. PRESIDENTE - Entéo dirija-se a pessoa em questao. INQUILINO — $6 falarei com o proprietario em pessoa PRESIDENTE — O que tem de especial esse prédio da rua Dr. Charcot, n° 15? INQUILINO — O senhor pergunta-me isso a mim? PRESIDENTE ~ Eu nao conhego o prédio da rua Dr. Charcot n° 15. Como & que eu poderia conhecer todos os prédios que a nossa sociedade possui? Eu sou um gestor, nada mais, INQUILINO — (Abre violentamente as portas) Onde esta o meu senhorio? Deixer-me encontra-lo! Preciso da mais alta instancia. PRESIDENTE Espere! No nosso grupo nao ha mais nada acima de mim. Desse Ponto de vista, o senhor esté em presenga da pessoa ad hoc. INQUILINO — Mas 0 senhor nao conhece o prédio onde moro. PRESIDENTE — A titulo pessoal, néo. Deveria contudo, conhecé-lo como um. objecto. Basta-me uma vista de olhos nos ficheiros. INQUILINO — Um homem que tem uma casa e nao a conhece! Eis aquilo de que eu sempre tive medo! PRESIDENTE — Concerteza o senhor nao quer obrigar-me a explicar-ihe porque & que eu sou um proprietario no sentido corrente do termo. INQUILINO — O prédio n? 15 da rua Dr. Charcot pertence-the ou nao? PRESIDENTE ~ A titulo pessoal, nao, INQUILINO — Mas que diabo ainda ha de pessoal em si? PRESIDENTE — A titulo pessoal estou aqui, a sua frente. Nao perca isso de vista, No nosso grupo nao hé nada acima de mim. INQUILINO ~ O seu orgulho e 0 seu grupo nao fazem de si um proprietario. PRESIDENTE — O senhor conseguiu subir até a direceao. Mas 6, visivelmente, uma incdgnita que o senhor procura. INQUILINO — Tenho algumas coisas a dizer ao proprietario. PRESIDENTE — O senhor sabe muito bem que hoje em dia praticamente ja no existe um proprietario em pessoa. INQUILINO ~ Ah, sim? E 0 que é que existe no seu lugar? PRESIDENTE — Existem sociedades, grupos, consércios, cartelizacao dos carteis, INQUILINO — Pare! Isso so devaneios de um louco! Dum parandico! Nao quero saber de nada disso! PRESIDENTE = Trata-se aqui menos de loucura que de dados econdmicos ‘conoretos. O senhor vai ter problemas se ndo perder essa sua ideia de encontrar 0 proprietario em pessoa INQUILINO ~ A minha ideia, como? Eu procuro-o, preciso dele. Ele tem...Ele deve cowvir-me. PRESIDENTE ~ E a mim...a mim o senhor nao quer dizer, a mim, que personifico 0 espirito da propriedade na sua forma mais moderna, INQUILINO — Nao confio em si e, para mais, 0 senhor nao conhece o prédio onde eu moro. Eis do que se trata: nessa casa — a casa que pertence ao meu senhorio — esté outra casa PRESIDENTE — Uma casa dentro da casa? INQUILINO ~ Sim, absolutamente. PRESIDENTE ~ Como se pode compreender isso? INQUILINO — Nao me cabe a mim dizer-tho. PRESIDENTE — 0 senhor quer dizer-me que ha j& outra pessoa — um outro ser, outro homem — que mora nessa casa? INQUILINO — Nao quero dizer nada disso. PRESIDENTE -— Entao quer dizer-me: mora outra casa na sua casa, INQUILINO ~ Exacto. PRESIDENTE ~ Mas isso é um disparate: uma casa dentro duma casa? Tive um longo dia de reunides; nao me diga disparates. INQUILINO — Nao Ihe digo mais nada. PRESIDENTE ~ Tem razdo, Um disparate desse género ja nos teria chegado aos ouvidos. Tenho a certeza: a sociedade nao possui nenhuma casa onde ja exista outra...Ponha essa merdosa fora, esse estorvo! Trate-the da satide! Enfim, quero dizer, nao é preciso levar este assunto a tribunal. Nesses casos, € a lei do mais forte, Ponha essa puta na rua! INQUILINO ~ © senhor est muito longe de ser 0 meu proprietario. Ao menos, convenceu-me disso PRESIDENTE ~ Pérra, mas eu sou seu proprietario! E se nao acredita vou fazer ‘com que compreenda: eu sou o presidente da nossa sociedade civil imobiliéria e do nosso grupo de gestores. Tenho os meios, meu caro senhor, para resolver essas. questées de casas que moram dentro doutras casas e dos loucos que me contam essas histérias! Ai, pode confiar em mim. INQUILINO — Nao tenho intengdo de Ihe falar mais disto. Vou deixé-lo plantado ai, perdido, para que resolva este enigma de que Ihe falei. Saiba somente que hé-de tomar consciéncia dos meios limitados de que dispée, face & casa n° 15 da rua Dr. Charcot PRESIDENTE - Bom, mantenhamos os pés assentes na terra! Beba, esqueca, sortia... Desde hé quanto tempo é que essa casa mora na sua casa? Nao, meu Deus! Eu nao posso dizer estas asneiras, sendo acabo por acreditar nelas. ‘$6 me faltava mais isto, O amor tem os seus limites, meu amigo! INQUILINO ~ A culpa de se ter enervado é sé sua. PRESIDENTE — Claro que estou enervado, que diabo! Até tenho caibras no cérebro. O que me est a ver & veneno, veneno mortal INQUILINO — Nao entendo porque entrou nesta discussa0 se nao é, de facto, 0 proprietario, PRESIDENTE ~ Mas sim, sou! Claro que sou! Cale-se. INQUILINO — O senhor devia ter estado calado. Nao se ter deixado levar, enfim, era © que eu Ihe teria aconselhado, PRESIDENTE - Mas 0 senhor ameagou-me quando sai do Conselho de Administragao, ameagou-me com esta estupidez devoradora, com essa loucura escaldante! O senhor esta bem colocado para saber como é dificil evitar um assassino do esprit. INQUILING ~ Sim, No fundo, impossivel PRESIDENTE — Desde que ele 0 mordeu, ndo ha outro remédio senéo esperar que © sangue da sua loucura se dilua no seu sangue. Eu mesmo tive essa experiéncia no Conselho de Administragao quando o Sr. Pourisous teve 0 seu ataque pelo que, obviamente, ja néo podia ser candidato a presidéncia: estava completamente esgotado, perdeu a cabega. E eu digo-lhe também, nesse momento ja era demais para mim. Tudo a nossa volta era cinzento e apertado: uma palavra mais e também. eu perdia a cabega! INQUILINO ~ Andava @ procura do meu proprietério e encontro um presidentezeco ‘sujeito a vertigens. E desesperante! PRESIDENTE — Acredite em mim: sou tudo menos uma pilha de nervos. INQUILINO — O senhor ¢ uma pilha de nervos. O senhor desde que nasceu sempre foi uma pilha de nervos. PRESIDENTE — Nisso, esta enganado, INQUILINO — Nao, nao estou. PRESIDENTE - Se o senhor soubesse quantas decisdes importantes tenho de tomar por dial INQUILINO — No entanto, eu reconhego uma pilha de nervos @ primeira vista. Reconhego-a a mais de cem metros. Posso dizer, quando olho para uma pilha de nervos: tu és um deles. Tenho um instinto infalivel para isso. PRESIDENTE ~ Instinto: ¢ justamente isso que Ihe falta INQUILINO ~ Oh, néo! PRESIDENTE — Oh, sim! INQUILINO = Ha! (como quem diz “6 incrivel’) PRESIDENTE - Ha! (como quem diz aquilo quo 6) INQUILINO ~ Tssssss! (como quem diz: “ele néo acredita em mim." Seguem-se sons exprimindo a auto — afirmagao de um @ a dtivida do outro) PRESIDENTE — Fritffittt INQUILINO — Hum! (divertido) PRESIDENTE - Phhhhhh! INQUILINO — Bbbbbbbbbbb! (fazendo vibrar os /Abios) PRESIDENTE — Kkkkkkkk! (um pouco como um animal que grunhe) INQUILINO — A. (breve, com desprezo) PRESIDENTE — Mm (resmungandb, pensativo) INQUILINO ~ Mm (igualmente pensativo) REGRESSO (Entram por uma das portas Encenador e a Mulher) ENCENADOR — Aqui temos 0 televisor, por baixo 0 gravador. Estas a ver as ultimos, minutos da emissdo, O teu marido esta sentado dentro desta caixa de vidro, em cena, € 0 Guy Laffont faz-Ihe a pergunta capital, a titima (numa das portas, o vidro opaco é substituido por um vidro transparente e a cabega do Homem aparece com auscultadores.) E tudo, ou nada. Transpira, morde os labios. Ouve a pergunta, ouve 8 primeiros compassos do enigma musical, responde como um tiro, tu gritas, milhdes de pessoas também a uma sé voz... Falso. Resposta falsa. Esta acabado. Perdeu. Levantas-te, pegas na garrafa, das uma golada. Sabes, se fosse um filme, eu mostrava as ruas da viléria, absolutamente vazias, toda a gente sentada em frente ao televisor, comendo amendoins — e depois, o grito que ecoa em todas as ruelas, um grito que vem de todas as janelas ao mesmo tempo. S6, em casa, andas de um lado para 0 outro, voltas a por com insisténcia no lugar tudo aquilo que estava no seu lugar. Finalmente, paras em frente a um vaso, hesitas um instante, € de repente fé-lo cair com o cutelo da mo. Gravaste 0 programa no video, e repetes ara ti propria sem parar 0 momento da derrota. Murmuras: "naturalmente ele ndo me telefona’, Cena seguinte: regresso do candidato derrotado. Entra, senta-se silenciosamente & mesa e, destrogado, mergulha na sua refeicao... (O Homem entra por uma das portas, senta-se 4 mesa, comega a comer. O encenador retira-se.) HOMEM ~ Viste bem o colega candidato que tomou o Extremo Oriente? MULHER — O vencedor? HOMEM — Esse nojento, MULHER — Ele sabia daquilo. Um campeéo do saber. HOMEM - Esse vadio especialista da China, Esse camelo desse espertalhao. E por ele que te deixas impressionar? Para jd, 0 Guy Laffont é 0 homem menos culto que eu tenho encontrado. Se ele ndo tivesse as suas fichinhas. MULHER - Tu ndo sabes mesmo nada, Paul. HOMEM — Eu sabia que nao era Liszt. MULHER — Mas era...? Tristéo e Isolda, HOMEM ~ Sim, porra, eu sou um conhecedor de Liszt. MULHER — No entanto deverias ter percebido que nao era Sansdo e Dalila! Para que serviu marrar durante trés meses dia apés dia deitados na cama a ouvir as cassetes. Meu Deus, para qué tudo isso? HOMEM — Mas era s6 um jogo, um jogo! MULHER — Mas como é que tu chegaste a Saint-Saens? HOMEM — Nao me perguntes mais nada! Nunca mais me perguntes nada! MULHER — Nés nunca tinhamos ouvido 0 que quer que fosse de Saint-Saens. HOMEM — Tu ndo. Eu, sim. Vamos as vezes buscar coisas que remontam mais longe do que aquilo que a gente pensa: 0 meu primeiro professor de piano, no principio dos anos 50, era comunista, MULHER — Vai para 0 teu escritério. Ocupa-te do teu banco de dados. Nao mexas mais no saber. HOMEM ~ Gozemos! Ha coisas mais importantes na vida que Liszt e companhia. MULHER - Sabes, eu acho que essa histéria de responder mal, & pura e simplesmente, mais importante que tudo o resto. HOMEM ~ Va la! Amanhd tudo vai parecer diferente. MULHER — Tenho medo que amanha tudo parega exactamente igual. HOMEM ~ Ah sim? Pensas isso? Apesar de tudo... quem cede é o mais inteligente. MULHER ~ O inteligente nao cede. Impée-se. HOMEM — Pois sim. Doravante, e até ao fim dos teus dias, viveras com um vencido do saber, (Por uma porta entram em cena a Mulher do Microfone e Aquele que Previne & Exorta, Sentam-se num sofé.) UM ERRO MULHER ~ Senhor Gorchinski ha ja vinte anos que anuncia nos seus livros a auto destruigdo da humanidade. HOMEM - Como? Desculpe, é que sou um pouco duro de ouvido. MULHER — (mais alto) Ha ja vinte anos...nao esté alto de mais. No posso gritar assim ai microfone. O som sairia distorcido. O senhor compreende-me? HOMEM - Ora bem. Veja, nada disto é novo, ha ja vinte anos que num dos meus livros fiz alusdo ao facto de 0 nosso destino, como espécie que pretende ser o “coroar da criagao”, estar de certa forma sem saida. Hoje em dia, diria mesmo que... MULHER — (recomega a entrevista a meia voz como no principio) Senhor Gorchinski HOMEM - Sim? MULHER — Ha ja vinte anos que anuncia nos seus livros a auto destruigéo da humanidade. (cobre o microfone) Compreende-me? HOMEM - Exacto, MULHER — Bem, diria que a evolucdo do nosso planeta confirmou entretanto as suas teses? HOMEM - Sera que poderia falar um pouco mais alto? MULHER - (alto) Pensa que as suas teses...ndo stop, vamos recomegar. Preciso da pergunta exacta, Problema de raccord. HOMEM — Veja, a histéria da humanidade, o espago histérico compreende apenas seis mil anos. De certa forma ainda somos muito jovens. MULHER - (alto) Um instante, se faz favor! A perguntal Eu tenho de fazer a pergunta HOMEM — Sim. Infelizmente sim, deveria eu dizer. Sem restrigdes. Pelo contrario. Pode pegar em cada um dos meus livros e sublinhar trés vezes cada um dos meus pensamentos, de tal forma os desenvolvimentos devastadores das ultimas décadas me dao razéo. MULHER - Noutros termos, o senhor fica na concepgdo de saber que o homem é um erro no programa da criagéo? HOMEM — Um erro? Qual? A senhora sabe que aqui e ali me pode ter escapaco um pequeno erro, Numa obra de uma tal amplitude, como é 0 caso da minha, é, no fundo, inevitavel. Mas onde quer chegar, no particular? MULHER — Nao no particular, mas sim no geral. Eu compreendi-o bem: a humanidade no Seu Conjunto, o homem em si é de uma maneira geral um erro. (mais alto) O erro da humanidade! HOMEM - Ah, sim! Claro. Eu sei o que quer dizer agora. Desculpe-me. Estive ausente durante uns segundos, mente captus. Retomemos: um erro. Melhor: ERRO. Claro. Evidentemente. © homem — um erro da natureza. O cérebro humano, um erro da evolugéo. Podemos ver as coisas desta maneira, eu assim as vi sem a minima dtivida MULHER — Contudo deixa lugar a um optimismo critico? HOMEM - Se me permite acrescento isto: ndo vejo as coisas de forma diferente, mesmo no futuro...no caso onde o futuro ainda me dé oportunidade! (ri) NO SALAO DE AUTOMOVEIS (Dois homens @ um jovem vendedor no sofé. Em cima de uma coluna um projector que mostra os tltimos modelos) 1° HOMEM — Procedeu-se a um teste na estrada para este carro? (0 vendedor cai para a frente, batendo com 0 peito nos joelhos) A cada uma das nossas perguntas, 0 senhor cai com a cabega para a frente. (Os dois homens levantam-no) 2° HOMEM ~ Entao que ha de novo? 1° HOMEM — O senhor estava a rogar a loucura, ou de onde vem? 2° HOMEM — O senhor no esté a altura de se medir connosco. 1° HOMEM — Se calhar tem medo de clientes como nés, amadores de filosofia. 2° HOMEM — Saiba que diante de um carro deste prego, 0 Sécrates que dorme em nés nao se apaga. A forga de questées aproximamo-nos progressivamente da coisa, do objecto, 1° HOMEM — Levados pela seguinte convic¢do: seria magnifico fechar uma lacuna gragas a este automével 2° HOMEM ~ Para saber se ele é capaz, sé um ensaio com um modelo que nunca tenha efectuado um ensaio 0 pode demonstrar. Um modelo desta classe e nenhum outro. 1° HOMEM — Nés queremos domar um automével que nunca tenha feito as suas provas no transito, que esteja pleno de vida e virgem. 1° HOMEM — Um automével adolescente, um automével, uma potra mecdnica com todo 0 seu humor impulsivo caprichoso, 2° HOMEM — Eis-nos aqui, homens, amarrados ao pensamento como ao automével 1° HOMEM — Dois espiritos perpetuamente emitindo hipéteses 2° HOMEM ~ Que seguramente nunca cruzaram o seu caminho. 1° HOMEM ~ Seguramente, nunca! 2° HOMEM ~ Tem mulher? Filhos? (0 vendedor abana a cabega. cai para a frente sobre os joelhos, levantam-no) 1° HOMEM ~ Onde esta a sua filha? VENDEDOR — No estrangeiro. 1° HOMEM — Ah! 2° HOMEM — Fraquezas do dolar! 1° HOMEM — De maneira nenhuma. 2° HOMEM — Nao? ” {OMEM — Neste momento, nao, VENDEDOR — Porqué um automével? 1° HOMEM — Como diziamos: seria bom preencher uma lacuna: 2°HOMEM ~ Mesmo sendo com um carro de sonho. 1° HOMEM ~ Eu tinha pensado num carro que tivesse a forma de uma confortavel maquina autofagica. Mas, infelizmente, nao hd nada disso aqui. VENDEDOR = Donde vem essa sua imprudéncia que Ihe permite afirmar que nao ha nada de tal aqui? 1° HOMEM — Impudicia? Por favor, que linguagem! Impudicial VENDEDOR — Quando digo impudicia, quero dizer imprudéncia. 2°HOMEM — O senhor pensa imprudéncia quando diz impudicia 1° HOMEM ~ Imprudéncia, quando se trata de impudicia, 2° HOMEM — O senhor diz imprudéncia e quer dizer impudicia, 1° HOMEM - Toda a gente pode constatar que se trata de um insulto imparavel. VENDEDOR ~ Nao me ponha na siluacdo abjecta de ter de compreender esta maldita situagao. 1° HOMEM — De maneira nenhuma! De maneira nenhuma! 2° HOMEM — De qualquer modo o senhor é zeloso. Sim, zeloso, por amor de Deus! VENDEDOR — Ja nao posso mais! Ja nao posso mais! (pde-se atrés de uma porta) 1° HOMEM — Eis um momento que nos vai estragar a tarde toda. 2° HOMEM — Jé ndo esperamos nada, nem ninguém. 1° HOMEM — Nos nossos dias, um vendedor de carros deve ter nervos de ago. 2° HOMEM — Deve ser um verdadeiro ferreiro. 1° HOMEM — E, no entanto, estar actualizado. 2° HOMEM — Mas s6 durante alguns momentos, depois pode voltar a mergulhar no jardim das delicias. Soberbo! 1° HOMEM — Nu, como Jupiter sem poemas. 2° HOMEM ~ Nu como um isco. }* HOMEM — Nu como um carogo. 2"HOMEM — Como 0 descarogamento, a destruigao de bairros inteiros nas grandes cidades. 1* HOMEM ~ A destruigao dos ninhos de varejas! (O Vendedor espreita por tras da porta) 2° HOMEM - O senhor esta, de novo, no limiar da loucura VENDEDOR - Ja estou a sintonizar melhor. 2° HOMEM — Pusemo-lo num estado de excitago, que qualquer observador ‘externo teria achado exagerado. E agora, afirma o contrario. E classico. 1° HOMEM — Se alguma vez tivesse sentido, nem que fosse de longe, a famosa espada de Damdécles em cima da sua cabeca, poderia talvez por-se no lugar daquele que leva a sua pobre vida com o peso das emissées difundidas pelos satélites de televisdo. 2° HOMEM - Que vai de Trieste a Copenhaga 1° HOMEM ~ Poderia entéo pér-se no lugar de alguém que precisa de um carro para fugir, seja indo para cima de Copenhaga, seja descendo para abaixo de Trieste! VENDEDOR — iija-se com delicadeza ao gerador. 1° HOMEM — Quer dizer, ao Criador? VENDEDOR - Ao gerador! 2° HOMEM — Aquele que estd na origem de todos e qualquer um? 1° HOMEM — Querem parar de jogar ao pastor metafisico! 2° HOMEM — Ao boi piedoso! 1° HOMEM - Ao vaqueiro bovino! 2° HOMEM — Ao porqueiro com olho de vitela! 4° HOMEM — Ao boi com ventre de porco! 2° HOMEM — A cabra com perna de boil VENDEDOR - Vocés so sonémbulos! Sonambulos! 1° HOMEM ~ A sua palavra preferida. 2° HOMEM — Fleuma britanico. 1° HOMEM — Aquilo que, compreendam-me, nao é 0 meu caso. 2° HOMEM ~ Se o senhor no esta a altura de negociar connosco, uma pequena palavra chega e trataremos do mesmo assunto com os seus superiores. 19 1° HOMEM ~ Mas ha uma coisa que o senhor deve ter em conta: nao saimos daqui sem carro. 2° HOMEM — Em caso algum, sem um carro magnifico. 1° HOMEM — Exacto! Restrico salvadoral Nao tora as coisas mais faceis, mas sim mais singulares. 20 REFUGIO (Homem @ mulher sentados num sofa) HOMEM ~ A tua mae, que assentou arraiais em nossa casa com um prisioneiro, do qual ela primeiro tomou conta ¢ que em seguida se tomou seu amante; essa mulher casada com um pastor de Selestat que encontrou refiigio em nossa casa desde ‘ontem, gostaria de todas as maneiras de a conhecer. Simplesmente, cumprimenta- la. MULHER — Nao sei se ela esta com vontade de ver alguém . Esta demasiado apaixonada, HOMEM — Mas ela mora aqui, na nossa casa. E nossa héspede. Heide acabar por me cruzar com ela, um dia. MULHER - Ela nunca sai do quarto. Passa os dias na cama com ele. HOMEM ~ Como é que isso tera acontecido? MULHER - Eles simplesmente trocaram correspondéncia varias vezes quando ele estava na choga. Ao principio eram corteses € respeitosos da moral religiosa Depois comegaram a ser cada vez mais ternos. E agora, esta paixdo. HOMEM — Aquilo que eles estdo a fazer os dois é aquilo que, sem duvida, se chama de reinsergaio, nao? O teu pai, ao menos, esta ao corrente? MULHER ~ Sim, claro. Ele nao sabe que esto aqui, embora saiba que partiram os dois juntos. Sim, isso ele sabe. HOMEM — E tu nao tens vergonha? MULHER - Vergonha? (Ri) Nao. Porqué? Pelo contrario, estou contente que a minha mae esteja tao feliz, 21 HOMEM ~E 0 teu pai, nao te da pena? MULHER ~ A culpa é dele. Se durante todos estes anos ele néo tivesse empestado a nossa atmosfera com o seu halito viciado e amargo de ressacado, isso nao teria acontecido. HOMEM — Nao acredito nisso. Uma coisa como esta nao acontece por razées tao banais. Acontece e chega. Sem raz4o. Mas o velho marido, ele sim, sofre. Sera que pensas nisso? MULHER — Tu nem sequer 0 conheces. Ele é como 0 pobre Job que gosta tanto de falar. E um palrador da miséria, HOMEM — Normalmente, és uma boa alma. De onde vem de repente esse sorriso satanico e luxurioso nos teus labios? (O Prisioneiro, um homem fraco, 0 cabelo desgrenhado, entra por uma das sete portas com uma grande toalha 4 volta do corpo) PRISIONEIRO ~ Vocés falaram de Job, n&o foi? Entao, deixem que 0 cite: "Se ao menos vocés me escutassem em vez de me acalmar com fracas consolagées". Mil vezes repeti isto na minha cela (senta-se entre os dois, no sofé) Aquando do célebre nautrégio do ferry no Canal da Mancha, um homem declarou-se imediatamente culpado porque nao tinha fechado a tempo as escotilhas, depois da partida do barco. Foi por ai que agua entrou, 0 que fez com que o ferry adomasse em poucos minutos. Esse homem queria ser culpado, mas as autoridades impediram-no. A parte civil, os armadores, os fretadores, todos se opuseram a fim de 0 impedir de ser 0 culpado. Sé ele? Isso era impossivel. Mas ele era 0 culpado A sua negligéncia tinha causado a morte a cento ¢ trinta @ cinco pessoas. Como poderia ele expiar isso? Mas ele queria-o. Ele queria carregar sozinho 0 enorme peso da expiagdo. O facto de cometer um crime apenas para entrar em contacto ‘com esse poder que castiga, esse poder que esté acima de todos os outros, néo se pode pensar que se trata de um mobil irrisério. Mesmo se hoje em dia quase ninguém 0 confesse; a maior parte dos prisioneiros sao durdes, perfeitamente integrados na nossa época, que sd tém na cabega as redugdes de pena e liberdade, 2 condicional, quando na verdade nao querem sendo sair da choca para voltar a cometer os mesmos crimes mais ou menos grandes... ¢ naturalmente para voltar a entrar em contacto com o castigo. Digo-vos: no fundo do coraggo e nas suas pulsées mais profundas, um criminoso é um monge penitente, um flagelador, um masoquista cristéo. Em caso algum é vitima da sociedade ou da sua educacao: um doente a ressacar castigo. Mas 0 que € que eu estou para aqui a dizer? (bate com os punhos na cabega e, em seguida, olha para eles) A minha inteligéncia nao tem nada a ver connosco, ndo & verdade? Ela tem qualquer coisa de mau em sil Tu, miserdvel intelig€ncia! Tu nao pensas isto de nés dois! HOMEM — (para a muther) O que é que ele fez, de facto? PRISIONEIRO — (levanta-se de repente) Prefiro nao assistir a isto... (uma voz de mulher chama por trés da porta: Micha! Micha) Se vao falar de mim, s6 € preciso dizerem-me: desapareco num instante (saf pela porta) HOMEM - Esta furioso. MULHER — Quando ele cora, véern-se as grades incrustadas na sua cara (Atras das portas, 0 barulho de carros num parque. Entram em cena o guarda- costas e 0 guarda do parque.) OS GUARDAS (Atras das portas, 0 barulho de carros num parque. Entram em cena o guarda — costas @ 0 guarda do parque.) GUARDA-COSTAS — O senhor procura um guarda —costas? GUARDA DO PARQUE — Procuro. GUARDA-COSTAS ~ Para si mesmo? GUARDA DO PARQUE - Sim. GUARDA-COSTAS — Posso perguntar-Ihe qual é a sua profissio? GUARDA DO PARQUE ~ Sou guarda neste enorme parque. GUARDA-COSTAS - O senhor é...guarda de um parque? GUARDA DO PARQUE ~ Isso mesmo. GUARDA-COSTAS - E procura alguém que 0 guarde enquanto guarda os carros? GUARDA DO PARQUE ~ Nem s6. Ele tem de me acompanhar a casa, de manha e noite, quando volto ao trabalho. Mais ainda, tera de estar sempre a frente do sitio. onde eu me encontro. GUARDA-COSTAS — Sabe quanto isso custa, meu caro senhor? GUARDA DO PARQUE ~ Imagino. Informei-me. GUARDA-COSTAS ~ Informou-se. Portanto, aquilo que pede € proteccao total. Existe algum perigo premente que ameace a sua vida? GUARDA DO PARQUE ~ Esse tipo de perigo existe sempre. GUARDA-COSTAS ~ Sim, claro. E evidente. Pode ser agredido. Esvaziarem-Ihe a caixa do parque e arrumarem-no. GUARDA DO PARQUE ~ Justamente, e isso 6 sé um exemplo. GUARDA-COSTAS — Ent&o perdoe-me, Mas qualquer um poderia contratar um quarda — costas pelas mesmas razGes. Chegariamos entao a situagdo em que cada individuo um pouco fraco fizesse, do primeiro que Ihe aparecesse, o seu guarda — costas. GUARDA DO PARQUE - Sé sociedade, hoje em dia, uma lei bastante justa, dado o estado da nossa GUARDA-COSTAS - Sim, entdo e eu contrataria um guarda — costas um pouco mais forte do que eu e esse de seguida contrataria outro um pouco mais forte... Ouga ld! A nossa sociedade nao seria mais do que uma brigada de protecgao pessoal. GUARDA DO PARQUE - E no cimo estaria aquele que se revelasse o mais forte GUARDA-COSTAS - Exacto, GUARDA DO PARQUE ~ Teriamos, enfim, descoberto da maneira mais natural e mais justa do ponto de vista social, 0 homem mais forte. GUARDA-COSTAS ~ Pare, por amor de Deus. Isso é absurdo! GUARDA DO PARQUE - E possivel, mas no aplicavel. Isso quereria dizer que no momento em que eu reclamo a justiga mais absoluta encontrar-me-ia na extremidade do sistema como o tiltimo dos seus membros, j4 que 86 sou capaz de proteger carros no pessoas. Abaixo de mim, ja no haveria pessoas; abaixo de mim, s6 existiria o mundo dos carros vazios nos parques. 25 GUARDA-COSTAS ~ Resumindo, protecedo pessoal, vinte e quatro horas por dia, no €? Isso vai custar-ihe uma dezena de milhar de francos por més, pelo menos, 0 dobro daquilo que ganha. Mais ainda como eu sou assalariado, € preciso acrescentar a isto as cargas sociais e 0s descontos. Isto nao é propriamente uma selva, GUARDA DO PARQUE — Nao Ihe faltard nada. Partilhare meu salario consigo. GUARDA-COSTAS - 0 seu salario! Sao cinco mil liquidos, no? GUARDA DO PARQUE ~ Cinco mil e quinhentos GUARDA-COSTAS — Eu s6 0 ougo porque me da pena. De facto, deveria cobrar imediatamente, as ajudas de custo e fazer-the pagar a sua insoléncia. Ougo-o porque me diverte. E também porque me da pena. GUARDA DO PARQUE - E verdade, estou reduzido a suscitar a sua pena. Sem isso, isto no funcionaria. Impus a mim proprio, depois da morte do meu irmao, esta situagéo desumanamente inferior. Ninguém me castiga, nenhuma lei, nenhuma autoridade que reclame a expiagdo. E se tudo se tivesse realizado, segundo a vontade do Todo Poderoso, poderia ter continuado a ter uma vida tao agitada, de forma téo louca como tinha antes da morte do meu irméo. Se nao me tivesse levantado por mim proprio, se nao me tivesse castigado a mim proprio, impondo-me estar, sem dignidade, ao servico dos carros estacionados, acredite-me que nunca nada, mas mesmo nada, me teria acontecido. Peniténcia? Ela nao me foi pedida. Antigamente acabava-se em cinzas e po e eu aqui, engulo fumos de escape. GUARDA-COSTAS — Ao ouvilo dir-se-ia que é responsavel pela morte do seu irmao. GUARDA DO PARQUE - Claro. Carrego em mim essa responsabilidade. Eu sabia que ele ia morrer. Sabia-o claramente. E nunca Ihe disse. 26 GUARDA-COSTAS ~ Talvez ele nao quisesse ter ouvido. GUARDA DO PARQUE — Sim, sim. O senhor nao conheceu o meu irmao! Ele queria saber tudo até ao minimo detalhe; e preparava-se. Era mesquinho. GUARDA-COSTAS ~ Ele mesmo nao poderia ter-se apercebido que morria, que devia morrer, que ia morrer, ou sei Id?! GUARDA DO PARQUE ~ Juro que ele n&o notou nada, absolutamente nada. Estava aqui na caixa e a morte surpreendeu-o. Tinha uma gota de café no dedo quando tocou num cabo eléctrico, e foi isso que o matou. GUARDA-COSTAS — Mas como é que o senhor podia adivinhar com uma tal exactidao que tal acidente aconteceria nese momento? GUARDA DO PARQUE - Justamente porque ele lia tudo, Nao conseguia impedir- se de ler tudo 0 que Ihe caia debaixo dos olhos. Eu tinha acabado de fazer uma pequena etiqueta com uma mindsoula inscrigao: * Atengéo — Perigo de Morte”, tinha-the porto um bocado de fita adesiva e, por assim dizer, deixei-a pousar-se por cima do cabo descamado, instalado de fresco atras da caixa dos fusiveis. Eu sabia que ele ia lé-la! Eu tinha a certeza disso, GUARDA-COSTAS — Entdo foi o senhor que mandou o seu irmao para a morte! Vamos por ordem...mas devagar. Primeiro, 0 senhor tomou-se cuimplice da morte do seu irméo, pertencendo naturalmente a principal responsabilidade a direcg&o da ‘obra que nao deve instalar cabos sem protecedi. GUARDA DO PARQUE - Evidentemente. Isso nés sabemos os dois. Mas 0 meu crime nao pode certamente estar no facto de ter prevenido de perigo de morte. Eu escrevi: "Atencio ~ Perigo de Morte" GUARDA-COSTAS ~ Deveria ao menos ter posto um grande cartaz com uma caveira pintada por cima, em vez de ter escrito uns gatafunhos minusculos. 2 GUARDA DO PARQUE - Mas ele no compreendia esse género de sinais, Andavamos sempre a bulha por causa disso. Ele néo conseguia decifré-los. Mil vezes entrou na casa de banho errada; os pictogramas HOMEM/ SENHORA, nada a fazer; 0s sinais de circulagao, muito dificilmente, No fundo, ele era picto-deficiente. Nada mais sendo letras, letras, letras, engolia-as. Quanto mais pequenas fossem mais ele gostava disso. Pequenas, mintisculas, espinhosas, desde que se parecessem com qualquer coisa, entéo atirava-se para cima delas. Um verdadeiro mesquinho. Uma caveira com dois ossos cruzados, té-la-ia considerado como um. aviso para ces. Té-la-ia arrancado e deitado ao chio. A ideia de perigo nunca Ihe teria passado pela cabega. Teria pensado, e com razdo, que estavam a gozar com ele. GUARDA-COSTAS — Suponhamos que tudo se passou da forma como o senhor descreveu. Admitindo isso, preciso de saber agora com exactidéo a resposta a minha segunda pergunta. E, se nao me responder de maneira satisfatéria, 6 porque andou a enganar-me. Mostrar-Ihe-ei o verdadeiro significado de expiar. E, se ndo me responder de maneira satisfatéria, a "Atengao — Perigo de Morte’, esta a compreender!? O senhor nao tem o direito de me levar para uma conversa da qual nenhum de nos sai ileso! Portanto, porque raio 0 seu maldito irmao se teria regozijado, sim re-go-zi-jé-do, se sabia que mortia, que ia morrer? GUARDA DO PARQUE — Porque no havia nada na vida que he desse mais gozo do que saber que eu ficaria infeliz. E a sua morte mergulhou-me imediatamente na infelicidade. Mas agora que jd me flagelei, rebaixei e humilhei 0 suficiente, saio tao fraco desta situagéio que tenho o direito de ser protegido. GUARDA-COSTAS — Pega entéo guarda-costas a Nosso Senhor. Nao Ihe custa nada, GUARDA DO PARQUE ~ O senhor € 0 mais forte. Conhece os deveres que a fratemidade impe. Nao se refugie numa frivolidade blasfematoria! GUARDA-COSTAS ~ O senhor esta a ver onde isto nos leva: o senhor esta a pedir- me caridade. GUARDA DO PARQUE — N&o 0 nego de forma alguma. No que diz respeito a forca, eu sou pobre; 0 senhor € rico. Estou roido pela anguistia e o senhor é um homem intrépido, Tais diferengas de caracter tém tendéncia para se completarem. Gragas a minha fraqueza, 0 senhor recebe uma confirmagao permanente da sua forga, ¢ eu exploro-a GUARDA-COSTAS — Quga: eu j& protegi presidentes, empregadas de bares, politicos e Jean Nohain. Duma forma ou de outra, a pessoa em questo tem de me dar vontade a mim de a proteger. GUARDA DO PARQUE - Eu néo quero estar aqui propriamente armar-me, mas enso que posso ser considerado como um individuo que suscita vontade de ser protegido. GUARDA-COSTAS ~ O senhor é um maricas, 6 0 que 6. De que é que tem mado, ‘em particular? GUARDA DO PARQUE - Tenho medo de todas as formas de violéncia, contra as quais poderia estar protegido. Ou seja, ndo tenho medo das bombas atémicas, de meteoros, de explosées demograficas, das epidemias virais e outras causas naturals. Mas tenho medo, por exemplo de estar na presenga de pessoas aos tiros. GUARDA-COSTAS — Mas isso nao acontece todos os dias. GUARDA DO PARQUE — O ciimulo do horrivel, como 0 préprio nome indica, na verdade nunca acontece s6 uma vez? E nesses casos, é bom ter um guarda-costas a seu lado, GUARDA-COSTAS — O que o senhor tem, na realidade, ¢ a necessidade infantil de se esconder atrés de um irmao mais velho. Agora ele deixou-o e pronto. 29 GUARDA DO PARQUE — Nao, no. O meu irmao era mais novo. E justamente isso que € deprimente, nesta historia. Era ele 0 quarda do parque. E eu, no meu desespero, corti para todos os lados e depois, de repente, tomei conta do seu lugar. GUARDA-COSTAS ~ E agora por metade do seu salario o senhor propbe-me que... GUARDA DO PARQUE ~ Partihara também 0 apartamento comigo. GUARDA-COSTAS - ...fique aqui a seu lado, no meio dos tubos de escape a poluir os brénquios. GUARDA DO PARQUE - Pense na enorme seguranga que compra ao mesmo tempo. Se hoje em dia proteger um politico com alto cargo, deve contar permanentemente e quase sem interrupgao com atentados que a todo o momento Ihe podem custar a vida. E, na sua idade, se calhar vai pensar um pouco, antes de se por na frente de um representante do povo — que até pode ser impopular ~ e cair sob a chuva de balas. Por outro lado, ao pé de mim, que sou um homem da vida quotidiana, insignificante, 0 risco, para si, de vir a sucumbir num atentado é extraordinariamente pequeno. Em comparagao, um homem como eu garante-the uma esperanga de vida, do ponto de vista profissional, de oitenta, oitenta e cinco, mesmo noventa e cinco por cento. Deve tomar isto em conta, Num dos lados, @ quase inevitavel chuva de balas; do outro, um risco maximo de cinco por cento. E desses cinco por cento incluem os prejuizos que so devidos aos gazes de escape © aos eventuais inoidentes draméticos. GUARDA-COSTAS ~ Digo-Ihe a alto e bom som: O senhor nao precisa de guarda-costas. Nao tenho a minima utilidade. O senhor é como a r daquela histéria. Fique tranquilo, que nada Ihe acontecerd. GUARDA DO PARQUE ~ Trata-me como uma razinha? Efectivamente sou-o, 30 Uma pobre razinha, Pelo menos, como Ihe parego, neste momento. Talvez se lembre que a pobre razinha foi atirada contra ao muro e transformou-se no filho de um rei GUARDA-COSTAS ~ O senhor quer, por acaso, que eu o atire contra © muro? GUARDA DO PARQUE ~ Nao de todo necessdrio, So tem de assinar este contrato comigo e vai ver o que se esconde atras de mim, GUARDA-COSTAS - 0 seu tio da América, nao? GUARDA DO PARQUE - Nao Ihe vou dizer mais nada. No entanto esta a ir no bom ‘caminho, GUARDA-COSTAS — Sabe o que se esconde atrés de si? Eu sei Airas de si esconde-se toda uma organizagao de pequenas ras. De razinhas organizadas, e de fracalhotes. O senhor no @ um individuo; foi 0 que eu logo vi Mas ndo vou representar para si, para uma horda de merdosos e cobardes, 0 papel do gigante idiota. Nao sou um gigante, nem um bom samaritano. Sou um empregado de ombros largos ¢ habituado 2 utilizagao de armas de fogo. Protejo personalidades altamente colocadas. No sou guarda — costas para um guarda de parque. Nao estou aqui para isso, nem para isso fui formado, Mesmo que trinta Iliputianos me propusessem, cada um, quatro mil francos por més para guardar a sua gruta, eu no aceitaria proteger um tinico. Nao protejo liliputianes. Os pequenos devem agrupar-se e protegerem-se a si proprios. Aquele que precisa da minha proteceao é aquele que é grande, que esté em pé, 86, notavel. GUARDA DO PARQUE - Como um guarda-costas da minha pessoa seria absolutamente necessério que abandonasse progressivamente esse género de ideias, GUARDA-COSTAS — Eu nunca serei seu guarda-costas! Nunca, nunca, nuncal GUARDA DO PARQUE ~ Acaba de conseguir passar a primeira meia hora do teste. Conseguiu-ol Meu Deus, estou tao aliviado, Estou muito contente consigo. Uma conversa animada 6 a melhor protecgao que um homem possa ter...olhe: al GUARDA-COSTAS — Meu Deus! O que 6? Um monstro.... colosso. GUARDA DO PARQUE ~ Sim. Um verdadeiro gigante. Olhe... nao! Nao atire! Ele vai-se embora, Esté a ver? Ele esta a ir-se embora. Ele deve fazé-lo. O seu tempo acabou, Nao me conseguiu apanhar. 32 UM MENSAGEIRO (Abremse todas as portas, barulhos de escritéri, os telefones ronronam, os computadores apitam @ as impresoras crepitam. De porta em porta cruzam-se ‘empregados com dossiers e documentos impressos. De repente, 0 silencio ao fundo, ouve-se vir alguém, pesadamente carregado. O Homem sé em cena. Entra pela porta um Mensageiro com um grande pacote) MENSAGEIRO ~ Senhor Paul Titou? HOMEM ~ Sim. MENSAGEIRO — Trago aquele pacote que o senhor sabe. HOMEM ~ Para mim? Eu sabia! Um pacote pesado, néo 6? MENSAGEIRO — Sim, um pacote de consequéncias pesadas. (escreve no seu caderno de encomendas) Qual é a sua profisséo, senhor Titou? HOMEM — Profissé0? Qualquer uma. MENSAGEIRO ~ Como? Nao tem profiss0? HOMEM — Tenho, tenho. O que 6 que eu sou? Como é que se chama a isso? Espere. Eu anotei isso em algum lado. MENSAGEIRO — Nao se preocupe. Init, HOMEM — Hoje em dia as profissdes parecem-se todas umas com as outras. Toda a gente faz entrar dados, remexe-os e depois olha fixamente para essa espécie de expectoragao de letras luminosas pondo-as em seguida na meméria. E mais ou menos isso 0 essencial, nao 6? (P6e-se em frente ao pacote) Entdo ¢ aqui dentro que se encontra o desarmamento mundial? B MENSAGEIRO — E neste pacote que se encontram as manivelas das duas maiores poténcias. Sem elas, nada funciona. A coisa esta neste momento nas suas aos. HOMEM ~ Porqué nas minhas? MENSAGEIRO ~ Escolhemos 0 seu, entre milhdes de enderegos, por ser o de um dos homens mais insignificantes do planeta HOMEM ~ E como souberam que eu era dos mais insignificantes? MENSAGEIRO — Gragas & tecnologia moderna, um homem como 0 senhor pode ser seleccionado entre a populago mundial em menos de meio segundo. HOMEM — Devia ter duvidado disso. Eu vejo bem a ironia do meu destino. Na lista mundial dos insignificantes, cheguei a um dos primeiros lugares. Um recorde é um recorde. Um dia, isso ia ser notado. MENSAGEIRO - O senhor continuara a ser como até hoje, um homem andnimo. Saiba que no mundo, para além de mim, s6 0 programa sabe quem o senhor é e ‘onde esté o pacote do desarmamento. Eu proprio estou de tal maneira ligado ao programa que nem mesmo nas circunstancias mais extremas poderia revelar o seu nome ou a sua morada HOMEM —O que é que eu faco agora com 0 pacote? MENSAGEIRO - Vai coloca-lo, fechado como esta, no armario do seu quarto. Dentro de um prazo desconhecido, viremos busca-lo e sera mandado para um pouco mais longe. HOMEM ~ Para onde? MENSAGEIRO ~ Para outra pessoa. 4 HOMEM ~ Entao 6 segredo? MENSAGEIRO ~ Segredo? O que € que quer dizer com segredo? Diria antes, anénimo. Tao anénimo como o senhor e eu. 35 © SUICIDADO E 0 NADA (Na cena vazia das Sete Portas, 0 Suicidado e o Nada estao face a face) SUICIDADO ~ Tu és portanto o Nada! NADA ~ E tu, és portanto 0 Suicidado! SUICIDADO ~ E tu 0 Nada, nao 6? NADA — Sim... (O Suicidado rebenta numa gargalhada, 0 Nada néo consegue impedir-se de rir, 0 Suicidado bate nos ombros do Nada) SUICIDADO ~ Era exactamente desta maneira que eu tinha imaginado 0 Nadal Um homenzinho. NADA ~ Lamento desapontar-te. SUICIDADO — Mas 0 Nada, por amor de Deus, tem de ser qualquer coisa de grandioso, qualquer coisa de inimaginavel, pelo menos. NADA - Penso que deveriamos passar meia hora juntos para nos conhecermos. SUICIDADO — Um encontro infinitamente mediocre! Nao estava a espera disto. Contigo para todo 0 sempre! NADA ~ Passaste para 0 outro lado. SUICIDADO ~ Sim. Até ai chego eu. Passei para o outro lado. Sem poder voltar para tras. Impossivel adiar isto. E n&o poderiamos chegar a uma forma de separago antecipada entre nés? NADA ~ Eu sou o teu Nada e assim ficarei 36 SUICIDADO — Quero que saibas que me desesperas, NADA ~ Esse é um problema que temos de resolver os dois. SUICIDADO ~ Mas, por amor de Deus, é inconcebivel que um homem como eu, que ainda ha pouco em todo 0 seu esplendor trégico punha fim aos seus dias, se encontre neste momento ligado a um ser que tem por nome Nada e que, na verdade, me faz lembrar para todo 0 sempre Bouchencol, 0 meu assistente de laboratério permanentemente alagado em suor. Concerteza que nao é sd isto que 0 Nada me pode oferecer. NADA — Deverias pintar de vermelho vivo 0 cinzento da minha pessoa. Por prudéncia, deverias ver em mim o teu castigo pessoal, naquilo que chamas @ minha mediocridade. SUICIDADO — Noutros termos: devo considerar como meu purgatorio, a forma como me vou aborrecer contigo, incessante e fatalmente. NADA - (com um sorriso trocista) Mas de que é que estas para ai a falar? SUICIDADO — © meu purgatorio. Nao te fagas de idiotal NADA — Desculpa-me. E que a palavra tem tanta piadal Bom, bom, eu aguento-me. E tu aguenta-te também! (desata a rir) SUICIDADO — Pergunto-te, sua espécie de idiota sub-dotado, se o meu purgatério é a tua companhia? NADA ~ (desata a rir) Ah! Ah! An! Ah! SUICIDADO - Meu cheirinho do Inferno! Meu fogo redentor, se compreendes melhor assim! NADA — (seriamente) Eu no percebo nada disso. Estas a pedir de mais. 37 SUICIDADO ~ Es um inculto! O Nada ¢ estipido, servil, simplorio, aborrecido e inculto, Podemos dar-Ihe todos os qualificativos conhecidos, menos um: grande. Sabes, isto ndo ¢ muito facil para mim: tinha-me preparado para qualquer coisa de grandioso, sublime. E agora sinto-me enganado para todo o sempre. NADA — Cada um tem o Nada que merece. SUICIDADO ~ Entao sou a vitima de um erro! Sou 0 homem que desenvolveu a electrografia do sonho. Ali, do outro lado, era o investigador numero um no campo do sono. Sou o homem que desenvolveu o T..S. quase até 2 sua realizagao completa e que, nao péde - nem quis - acabé-lo! NADA ~ Sim, mas quem era esse teu assistente de laboratério, Bouchenco!? Que tipo de homem era ele? SUICIDADO — Parece-me a mim que s6 te interessas pelos teus iguais. Bouchencol convir-te-ia perfeitamente! Tinha 0 mesmo género de envergadura que tu! Tinha desenvolvido uma instalagéo com a qual se teria podido gravar os sonhos do homem, os seus abismos mais profundos, tomné-los visiveis num ecra, p6-los em stock, agrupé-los, difundi-los como qualquer filme. Ultrapassa concerteza a tua compreensao? Também ultrapassava a minha! NADA ~ Isso tudo que me contas é muito interessante. Gosto muito de te ouvir. SUICIDADO — Que nogdo podes tu ter da existéncia humana? O homem é um ser que se alimenta, trabalha e dorme. Em geral este é 0 desenrolar de um dia para qualquer ser humano, E quando ele dorme, sonha. Toda a gente sonha. Estés a entender-me? NADA ~ Estou. $6 gostava de saber que tipo de homem era esse Bouchencol, SUICIDADO — Torturas-me! Estou a tentar dar-te uma ideia dos limites a que um homem que pensa e que pesquisa pode chegar quando apaixonado pela 38. investigacao e as raz6es que 0 levam ao terrivel acto que eu acabo de cometer. Tento fazer-te compreender, que no momento em que me encontrei frente a0 meu aparelho, o meu Tradutor das Imagens dos Sonhos que estava quase pronto, senti- me o homem mais s6 no mundo. NADA — Mas 0 Bouchencol nao estava ld consigo? SUICIDADO ~ Bouchencol? Uma criatura insignificante! Um estudante! Um assistente! Um ajudante, e dos mais desastrados. Um Nadal NADA ~E melhor que nada SUICIDADO ~ Bom, bom. Como quiseres. Nao queria chatear-te. Senta-te. Sinto- me triste. Preciso dizer-te que consegui finalmente, numa experiéncia feita em mim mesmo, gravar na totalidade, e em continuo, as fases de um sonho numa dada noite. Vi os resultados no dia seguinte. E, meu amigo! Cinco horas mais tarde estava tudo acabado. Terminado, destruldo, apagado, aniquilado, tudo o que tinha contribuido para a construgéo espiritual daquela maquina diabélica: 0 software, 0 hardware e para ser mais coneréto, toda a minha existéncia. Nao restava um Unico trago do meu sonho por entre os homens. (Nada abana a pema que esté cruzada por cima da outra) SUICIDADO ~ Nada disto te interessa, pois nao? NADA - Interessa. Admiro-te. O mundo inteiro admira-te. SUICIDADO — A maior parte do tempo estava rodeado de lambe-botas, que, olhados mais de perto, mostravam ser verdadeiros sédicos. Estou farto. Chega de “pequenas fraquezas humanas" que s40 desculpadas com tanta complacéncia eu no Ihes perdoo! NADA ~ Nao 6 preciso ser téo radical. O que é preciso é encontrar compromissos, sendio ninguém se entende. 39 SUICIDADO — Pergunto-me 0 que ganhamos quando nos livramos da vida se, quando aqui chegamos, ouvimos as mesmas imbecilidades que ouviamos no outro lado. NADA — Continuas indignado, a bradar aos oéus. Nao vale a pena olhar mais para cima. Aqui, s6 estou eu. Nada para a frente, nada para os lados. Nada para cima, nada para baixo. Aqui também ninguém consegue atravessar paredes. A Unica renga, & que aqui podemos tentar fazé-lo um niimero infinito de vezes, enquanto que do outro lado. SUICIDADO — De todas as formas, deve haver alguma coisa que possamos fazer para nos ocuparmos, sem darmos cabo dos nervos um ao outro! NADA — Pfff! Aqui? Que outra coisa?... Nao vejo nada melhor, em principio, do que falarmos um pouco um com 0 outro. Nada de comer, dormir, sonhar. © que podemos entio fazer que seja de facto importante? Somente falar um com 0 outro. Podia ser pior. SUICIDADO ~ Isto € 0 Inferno! © Inferno! NADA — Claro, Claro. SUICIDADO ~ E nunca me deixards $6? NADA ~ Isso 6 impossivel, nao faz parte da minha natureza. SUICIDADO Entéo falemos. Falemos, falemos mais. Falemos até néo aguentar mais. NADA — Aqui aguenta-se sempre. SUICIDADO ~ Entao até 4 loucural 40 NADA ~ Nos aqui s6 temos 0 eternamente idéntico. Praticamente ¢ isso que eu te posso propor. A deméncia e essa outra coisa em...éncia, como se diz, a. mmmeéncia, SUICIDADO ~ A decéncia. NADA ~ Nao. SUICIDADO - A deliquescéncia, a deficiéncia, a degenerescéncia, a desflorescéncia, a dependéncia, a displic NADA — Nao, no. Deméneia e... que se lixe n&o consigo encontrar a palavra. De qualquer forma tudo isso aqui no funciona. Nao temos aqui ambiente para isso. (encontra a palavra). Suficiéncial Deméncia e suficiéneia. Como acabo de dizer, no temos espago para isso aqui. Enfim, conseguimos. Aqui quando procuramos uma palavra e ndo a encontramos pode durar meia etemidade. Por vezes, meia eternidade 4 NOITE DE NUPCIAS (Ela sentada em cima de um sofé, triste, no seu vestido de noiva. Ele, para a alegrar um pouco, levanta 0 colarinho @ danga @ frente dela. Por cima da porta esté um enfeite de papel verde palido.) ELA — Que bela noite, ELE — Tango de niipcias! ELA —Nupcias! Nao esta aqui ninguém. Nao ha viv'alma. ELE — Sim, sé mesmo nés. Felizes até nao poder mais e depois esquecemo-nos de convidar as pessoas. ELA — Mesmo os aniversarios tém mais piada. E por isso que eles voltam sempre! ELE ~ Esta quase a ser 0 teu outra vez, ELA — Nem pais, nem amigos, nem um tinico convidado. Afinal, porque € que néo convidaste ninguém? ELE — Eu no conhego ninguém. E tu porque é que nao convidaste ninguém? ELA — Desde que te conhego, também ja néio conhego ninguém. ELE — Seria mais justo dizer que durante bastante tempo s6 nos ocupamos de nés proprios ELA ~ Sim, tens razao. ELE — E isso entristece-te? 42 ELA — Nao. Isso ndo me entristece; é-me igual; se € isso que queres dizer. Estou ‘somente face a um enigma. ELE — (passa a mo no enfeite de papel) Sim. Mas 0 que é isto? Cai assim do muro ¢ faz um barulho doce. ELA — E para mim um enigma que nao tenha chegado uma tnica flor, um tinico telegrama, uma Gnica carta. Seré que dissemos a alguém que nos iamos casar hoje? ELE — Eu ndo disse a ninguém, porque nao conhego ninguém, ELA — Que nao venha absolutamente ninguém, isso é outra historia. A culpa pode ser nossa, Isso pode ser porque nos afastémos de toda a gente. ELE - E porque estavamos tao felizes, deviamos constantemente estar a incomodar os nossos conhecidos. ELA - Mas, para mim, 0 enigma @ que ninguém tenha mandado nada! Talvez tenhas esquecido alguma coisa? ELE — Eu? Nada se passou. No fundo, sabes, a culpa é nossa. Completamente felizes @, quando chegamos ao dia da festa, propriamente dito, ficamos aqui completamente estUpidos, sem nos preocupar com nada. ELA — Um dia de festa! Justamente. Que alguns dos nossos conhecidos nao estejam aqui, nao me ineomoda nada, Mas devia ao menos ter sido uma festa! E, por isso, ndo posso deixar de nos repreender um pouco. ELE — A dmnica coisa que eu posso ainda fazer, talvez seja convidar alguns desconhecidos. ELA ~ Os desconhecidos raramente tém vontade de vir a festas. Ficam por al plantados e olham para nés com olhos de bogas. J se sabe como é, basta olhar para eles na rua 4B ELE —A partir do momento que eles entrarem, talvez jd ndo se comportem tao mal como se fossem desconhecidos. Sou capaz de pé-los, em dois tempos e tes movimentos, num ambiente de festa. ELA — Serd que nao te estés a sobrestimar um pouco? Ha muitos anos que ja ndo te das com estranhos. ELE — Exacto. Talvez tenha perdido o treino. Mas na minha vida jé lidei com bastantes desconhecidos. E no foi com eles que eu tive as experiéncias mais infelizes. Sei como hei-de lidar com eles, ELA — Seja 0 que for, eu nao entendo. E ninguém telefona. Verifica se o telefone esta avariado. ELE - (levanta 0 telefone) O telefone nao esta avariado. Esta de perfeita satide! ELA - Hum! Se calhar, engandmo-nos no dia?! ELE — No dia do casamento? Nés, nao. Talvez os outros. Nés casamos pura e simplesmente no dia em que tinhamos decidido casar. ELA—E que dia era? ELE —A ceriménia estava prevista para hoje, e nés casamos hoje. ELA — Hoje! Hoje! Que dia? Na igreja ndo havia calendario. O padre abengoa seja quem for que Ihe estenda o anelar. ELE —Nés queriamos casar dia trinta de Setembro, e foi o que fizemos. ELA -E hoje? ELE -Bem...6. ELA — Que dia da semana? ELE —Penso que 6 sdbado. ELA —E hoje é sébado? ELE — Ouve: ontem fui ao barbeiro, Houve alguém que disse: "hoje é sexta-feira’ Eu acreditei nisso. E disse: "Caso-me este fimde-semana.” Al, uma ovagao. Barulho de tesouras e maquinas de barbear, entao quem é a eleita? Para onde vo em lua-de-mel?.. ete. ELA ~ Este fim-de-semana... este fim-de-semana, eis 0 problema. Na verdade, ja faz dois dias. E que hoje domingo, meu caro marido. Nos casmos, portanto, num domingo. ELE —Como ¢ que sabes isso? ELA — Porque ninguém nos telefona. Toda a gente pensa que nos casémos no sébado, como esta escrito na tua agenda, e que fomos em lua-de-mel no domingo. ELE — Mas ontem também ninguém nos telefonou. ELA — Ontem, no dia do teu casamento, foste ao barbeiro. E eu, como deve ser, ainda nao tinha vindo para aqui. Foi ontem portanto que todos telefonaram. ELE — Ontem no barbeiro, estava um homem sentado ao meu lado que disse alto & bom som: hoje ¢ sexta-feira. E isso foi ontem! ELA —E tu, quando vais 2o barbeiro, quando um cliente que vem sei Id de onde te diz 0 dia em que estamos, tu acreditas. Essas pessoas nem sabem distinguir os dias do fim-de-semana. Sexta, s4bado e domingo é para eles a mesma sopa de lazer. ELE — Seja, Admita-se. Portanto, nés casémos um dia mais tarde. 45 ELA - Mais tarde? ELE - Mais tarde do que 0 previsto. Néo vamos criar um problema por causa disso. ELA~E como é que isso teré acontecido? ELE — Porque nés estavamos sempre felizes. Nao te esquegas disso! ELA - Por um lado, sim; mas por outro, © quotidiano tomou mais importancia ELE — Mas esse quotidiano, ja que the queres dar um nome, ndo pode tornar-se mais importante, j4 que nés estavamos sempre felizes. ELA ~ E, por causa das merdas, estamos agora nesta depressdo em que nos encontramos, tendo como prenda esta noite de niipcias absolutamente deserta. Sem flores. Sem felicitagdes. Sem telefonemas. E nos convidados, nem se fala! ELE - Sabes, se estés téo chateada mais vale telefonares a alguém. Talvez te felicitem. ELA - Eu? Telefonar a alguém? No dia do meu casamento? Se ha um dia em que eu quero que me telefonem, 6 hoje. Ou ontem, Mas ontem - por causa dele! - ainda nao estava propriamente casada. E todos os telefonemas @ desejos de felicidade ricochetearam na minha auséncia casta. ELE — Mas pensas que é mesmo ele que afasta as pessoas de nés? ELA~ Quem? ELE —0 quotidiano. ELA — Sim. E 0 que eu penso. ELE — Se os teus pais ainda fossem vivos, de certeza que nao estévamos a espera de um telefonema. 46 ELA — Nao me vais repreender pelo facto de os meus pais j4 nao estarem vivos? ELE — Eu nao te repreendo nada. Eu também ja nao tenho pais. ELA — Que éramos os dois érfaos, ja 0 sabiamos antes do casamento. Nao vais comegar agora a bater nessa tecla, pois néo? ELE ~ Pelo contrario. E exactamente porque éramos os dois orféios de pai e mae que nos quisemos casar. Plenamente conscientes do facto de ja nao ter pais acabémos por aceder a essa felicidade total ELA — Entéo nao te queixes. Nos casimos e, de uma certa maneira, ainda doi quando nos chamamos, ainda hoje, érfaos de pai e mae. ELE — De qualquer modo, os pais constituem os elementos essenciais num dia destes e a sua auséncia nota-se particularmente. ELA — E s6 porque nao conhecemos ninguém neste grande e vasto mundo, s6 porque nos perguntamos quem havemos de convidar para 0 nosso casamento, que acabamos por falar sempre nos nossos pais ja falecidos! E mesmo tu, ndo se consegue francamente dizer que estejas entusiasmado em receber solenemente a tua mulher aqui em casa, Nao vejo flores, néo ougo musica. Nao vejo nenhuma mesa decorada, Da tua parte, nada. ELE - Esqueces constantemente que estévamos pura e simplesmente felizes demais - e, sem duvida, eu principalmente - para pensar neste género de realidades. Se queres que te diga . tive muita dificuldade em pendurar aquele enfeite. E a isso ninguém liga. ELA — Foste tu que penduraste esse enfeite? ELE — Sim, fui eu que o pendurei. a7 ELA — E tu pensas que é a primeira vez que eu estou a ver esse enfeite aqui? ELE — Um enfeite como este, ou do mesmo tipo, um enfeite em si, ja deves ter visto muitos. ELA - Esse enfeite, j4 0 tinhas pendurado quando eu ca vim tomar o primeiro conhaque a casa ELE — Ah, sim? Nao me lembro, ELA ~ Penduras esse enfeite com regularidade, cada vez que o teu coragao 0 diz. Em cada ocasiao que seja mais ou menos particular. ELE — As ocasiées mais ou menos particulares, que na vida me poderiam ter incitado a pendurar este enfeite, posso conté-las pelos cinco dedos da minha mao. © meu nascimento, a morte dos meus pais, 0 nosso casamento e, admita-se, 0 primeiro conhaque que bebeste em minha casa. ELA —Em todo o caso, esse enfeite nao é 0 sinal de um acontecimento nico. ELE — Se eu 0 arrancasse, isso sim, seria Unico. ELA — Nao, no facas isso. ELE — Ja nao consigo olhar para ele. ELA — Ja estas farto de o ver. Isso compreende-se. ELE — Um enfeite de que duvidamos desta forma ¢ ja para mim um sinal de luto! V4, vamos arrancé-lo! ELA — Nao! Isso nao! Sendo deixariamos de ter decoragao para a festa. Ao fime ao cabo, podemos atribuir-Ihe um caracter tinico, exactamente como ha uns tempos atrés, como recordagéo do primeiro copo que bebemos juntos que, & preciso dizé- lo, ndo é totalmente inocente naquilo que se passa hoje. 48 ELE — Confesso-te que um enfeite, cujo efeito produzido pela sua presenca suspensa, esta totalmente estragado, néo me permitira aproximar-me dele, nem pela porta de servigo dos sentimentalismos, nem sobre as muletas de um compromisso de compaixio. Este enfeite nunca mais ser 0 mesmo. ELA — Mas nés também nao, meu querido... ELE — 0 que 6 que isso quer dizer? Pensava que nos encontravamos no limiar de uma nova vida em comum. Nao vou deixar que um enfeite murcho me imponha um significado simbélico, Se este enfeite te lembra unicamente este mesmo enfeite, que me parece ja ter sido ai pendurado num momento preciso, entéo falhou ‘completamente 0 seu objectivo, a saber: dar um sinal de felicidade para um futuro ‘em comum que nunca existiu. Falnou completamente. ELA — Pobre enfeite! Como ele esta ali pendurado tao infeliz, neste momento! Ao vé-lo @ ao ouvir-te falar, pode acreditar-se que as coisas ndo véo muito bem entre nés. ELE - Pegote que nao continues a deixarte levar por essas provocagées hipdcritas. S6 Ihe é mais facil marcar pontos, mostrando a sua miséria de forma descarada. Ele é ainda capaz de encontrar quem seja partidério do seu passado simbdlico, ELA ~ Estas bastante duro comigo, hoje @ noite. Nunca te ouvi falar nesse tom. ELE — Bom, se eu... Ah, sacana! ELA - Se te enervas dessa forma por causa de um enfeite inofensivo, 0 que has-de dizer da Selma, a minha tartaruga que eu decid finalmente trazer para casa! ELE — Mas eu gosto da Selma! 49 ELA — E porque nunca te aconteceu, de manhd, ainda meio adormecido, estares a barbear-te @ a sentires qualquer coisa que rasteja nos teus pés nus. Ai, gostava de te ouvir. ELE — Tens de reconhecer que ha um fosso profundo entre um enfeite que no dia do nosso casamento se enrodilha, com todas as suas contradigées, como se fosse uma cobra, a volta de dois seres que acabam de se juntar, e uma tartaruga que faz cécegas nos dedinhos de um homem em pé, frente ao lavatorio. ELA — Sim, evidentemente. Tens razéio. Sé me pergunto como € que a Selma e ele se vo entender. ELE - Ela? Estas a perguntar-me isso... a sério? ELA — Pergunto-me isso perfeitamente a sério. (Barulhos de escrit6rio, cruzam-se empregados entre as portas.) 50 ipoLos (Homem, s6, em cena. Entra a rapariga por uma das portas) RAPARIGA ~ Ah! Es tu! HOMEM ~ Eu? Nao... porque? RAPARIGA — Mas eu conhego-te. HOMEM ~ Talvez da televise. Fui uma vez ao concurso do Guy Laffont. RAPARIGA — (segue no interior o circulo das portas. No exterior, 6 seguida, de vidro em vidro, pela sombra de um homem) n&o podemos dar um passo sem pensar os Burning Tears. De facto, andamos todos aqui sem esperanga como em Raining March. Esvaziados ¢ hiperactivos no mais puro estilo do Dick Moby Show. E, no que diz respeito as perspectivas mais longinquas, eu diria: Peggy Hom, @ assim, no fundo esta tudo dito, Tudo é falso, nao é verdade? Se eu compreendo bem, tudo de passa segundo 0 slogan: Falstaff meets Docteur Laenec. Quero dizer, isto agora parece — se um pouco com o Stokely Nightmare, mas auténtico. A maior parte de nés toma-se por Samuel Hotchkins e, na realidade, nao so sendo uns miseravels Nick MacBone. Se eles tivessem um pouco mais de Lisa Battlestrong no sangue, ndo os tomariamos por uma subespécie dos Flower Brokers. E obvio que nem todos podem exprimir-se de uma forma tao limpida como Lou in the Sun. (Abre-se uma porta. Aparece um jovem em contra-luz que se apoia na ombreira da porta de uma forma provocante.) RAPARIGA ~ (Baixinho para 0 homem) Tira-me Daquil...Ajuda-me! Eu, na realidade sou uma pessoa inteligente. Alguém que escreveu cartas. Eu sei ler os mapas... SI

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