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Livro 1 – DIREITOS HUMANOS

Ficha técnica e expediente


É permitida a reprodução total ou parcial, desde que se respeite a fidelidade ao
texto original, seja citada a fonte conforme as normas vigentes e não seja para
venda ou qualquer fim comercial.
O conteúdo desta publicação é de inteira responsabilidade dos autores.
Diagramação: Caroline Cunha Rodrigues, Desirée Cunha Rodrigues
Ilustração de capa: Desirée Cunha Rodrigues
Colaboração: Celso Gomes Travassos, Mariana Nascimento Souza e Monique
Alvares Assis
Revisão ortográfico-gramatical: Meire Avelar Bernardes, Ronald Rocha

Ficha Catalográfica

M663c
Minas Gerais. Governo do Estado.
Direitos humanos [recurso eletrônico] / Governo do Estado, Lucas
Costa dos Anjos, Tayara Talita Lemos e Thelma Yanagisawa Shimomura
(org.).- Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 2018.
48p. ; il. - (Coleção direitos humanos e ditadura; v. 1).

ISBN 978-85-99528-85-3 (Coleção). ISBN 978-85-99528-86-0 (Volume 1)

1. Direitos humanos. 2. Políticas públicas. 3. Cidadania. 4. Justiça de


transição. 5. Comissão da verdade. I. Anjos, Lucas Costa dos. II. Lemos,
Tayara Talita. III. Shimomura, Thelma Yanagisawa (org.).

CDD: 323.81044

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Ana Cláudia Ribeiro CRB 6/2868.
Autores: Lucas Costa dos Anjos, Tayara Talita Lemos
Organizadora: Thelma Yanagisawa Shimomura

Direitos Humanos. Coleção Direitos Humanos e Ditadura.


Livro 1: Direitos Humanos
Palavras-chave: Direitos Humanos, Justiça de Transição,
Comissão da Verdade, Ditadura.
Apresentação
Os textos aqui apresentados foram elaborados por solicitação da Secretaria
de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania de Minas Gerais
(Sedpac), visando ao importante objetivo de disseminar o conhecimento sobre os
direitos humanos, as comissões da verdade e a ditadura militar no Brasil.
O presente curso virtual, denominado Formação em Direitos Humanos:
Entendendo a Ditadura e as Comissões da Verdade, aborda três temas principais,
que se dividem em módulos distintos: Direitos Humanos; Justiça de Transição
e Comissões da Verdade; A Comissão da Verdade em Minas Gerais apurando
as violações aos Direitos Humanos. O seu propósito é que tais livros sirvam de
material educativo à disposição das pessoas interessadas, seja na plataforma online,
seja em versão impressa para posterior distribuição nas escolas públicas da Região
Metropolitana de Belo Horizonte.
A realização do curso se tornou possível mediante a colaboração mútua
entre a Diretoria de Políticas de Promoção em Direitos Humanos da Sedpac,
responsável pela estrutura virtual, a Secretaria de Estado de Educação de Minas
Gerais, que possibilitou a impressão e a distribuição dos materiais, o Centro de
Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal de Juiz de Fora, que
contribuiu com a redação do primeiro volume, e o Arquivo Público Mineiro, que
cooperou na edição do material.
Assim, a Sedpac cumpre a sua tarefa de difundir os acontecimentos do
período ditatorial-militar, elucidando as múltiplas violações à dignidade humana.
Considerando o impacto social e histórico dos fatos apurados, que reverberam até
os dias de hoje, a Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos da
Sedpac convida todos os leitores a se incorporarem à tarefa de analisar, entender e
superar o trauma histórico provocado pelas ações estatais que violaram os direitos
humanos. Trata-se de, reconhecendo e respeitando as pessoas atingidas àquela
época, buscar a verdade e contribuir para a construção de um país democrático,
justo, soberano e com memória política integral.

Setembro de 2018,
Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos
Sumário

Página
1. O que são Direitos Humanos? Por que é importante falar 09
sobre Direitos Humanos?
1.1 O termo Direitos Humanos 09
1.2 A Dignidade da Pessoa Humana e os fundamentos dos direitos 11
humanos
1.3 Direitos Humanos e Democracia 13
2. Gerações de direitos humanos e afirmação ao longo da História 16
2.1 Classificação em Gerações: o início 16
2.2 Classificação em gerações: o desenvolvimento 18
2.2.1 Primeira Geração 18
2.2.2 Segunda Geração 19
2.2.3 Terceira Geração 23
2.2.4 Quarta e Quinta Gerações: podemos falar em novas 26
gerações?
2.3 Críticas ao uso da classificação em gerações 28
2.4. O Programa Bolsa Família: um exemplo integrador das dimen- 30
sões/gerações
3. Direitos Humanos e Cidadania: participação e controle social 32
4. Sistema internacional de proteção dos direitos humanos 36
4.1. Direito Internacional dos Refugiados 36
4.2. Direito internacional humanitário 37
4.2.1. Direito de Genebra 37
4.2.2. Direito de Haia 38
4.2.3. Direito de Roma 39
4.3. Direito Internacional dos Direitos Humanos 39
4.4. Sistemas regionais de proteção aos direitos humanos 40
4.4.1. Sistema Europeu 40
4.4.2. Sistema interamericano 41
5. Reparações a direitos humanos violados na ditadura: as Comissões 43
da Verdade
Referências bibliográficas 45
9

1. O que são Direitos Humanos? Por que é importante


falar sobre Direitos Humanos?1

1.1 O termo Direitos Humanos

Direitos Humanos é um termo do qual sempre ouvimos falar em noticiários,


redes e ambientes sociais, mas muito pouco se discute sobre o seu conceito e sobre
a gama de significados que a expressão pode assumir, dada a sua consolidação ao
longo da história e a partir dos contextos dentro dos quais ela emerge.
O tema se torna especialmente importante diante das inúmeras violações
aos direitos humanos que são noticiadas no dia a dia e denunciadas em órgãos
nacionais e internacionais, levantando o debate público sobre a necessidade de
proteção às pessoas que podemos chamar de titulares de direitos humanos.
Poderíamos dizer, de forma resumida, que direitos humanos são um
conjunto de direitos estabelecidos em normas jurídicas contidas em tratados
internacionais, declarações, acordos e convenções, relativos a um núcleo de
proteção à pessoa humana e à sua dignidade. Os direitos humanos são universais,
indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados: devem ser tratados de forma
global e igualitária pelos Estados, sujeitos de direito internacional que têm o dever
de promover e proteger os direitos humanos internacionalmente consagrados. Tais
direitos podem se referir a todas as pessoas, de forma ampla e genérica, como
também podem se direcionar a algum aspecto específico da pessoa humana que
mereça proteção ou, ainda, a um grupo de pessoas que, por alguma razão, esteja
em condição de vulnerabilidade permanente ou temporária.
Deste modo, temos normas jurídicas de direitos humanos que tratam das
pessoas em situação de refúgio e migração, de mulheres e crianças, de pessoas
idosas, de direitos civis e políticos, de pessoas com deficiência, de proibição do
tráfico de pessoas, de garantia a uma alimentação digna, de garantia à liberdade, à
saúde, à moradia, à igualdade e de pessoas atingidas por tortura, apenas para dar
alguns exemplos.

1 “Este livro foi baseado em GOMES, David Francisco Lopes. Coleção Cadernos de Direitos Hu-
manos: Cadernos Pedagógicos da Escola de Formação em Direitos Humanos de Minas Gerais |
EFDH-MG. Fundamentação em Direitos Humanos e Cidadania V.01. Belo Horizonte: Marginália
Comunicação, 2016.”
10

Da esquerda à direita:
Belo Horizonte, 2016.
Os direitos humanos, na medida em que passam a ser incorporados pela
Hebron, Territórios
Palestinos, 2017. ordem jurídica dos países, assumem a denominação de direitos fundamentais.
Ouro Preto, 2016. Assim, quando a Constituição da República Federativa do Brasil foi promulgada em
Fotografias: Gilvan
1988 e incorporou ao seu texto os direitos humanos como direito à vida, à liberdade,
Borges. Reprodução
autorizada pelo à igualdade, à segurança e à propriedade, juntamente aos seus desdobramentos
autor. – como a liberdade de crença, religião e expressão, a igualdade de gêneros e a
igualdade racial –, houve a consolidação destes como direitos fundamentais
que fazem parte do rol de direitos protegidos pelo País, mesmo que alguns dos
tratados internacionais que tutelam direitos humanos não tenham sido assinados
ou promulgados pelo Brasil. Apesar de diversas teorias tratarem de critérios que
diferenciam o uso de um ou outro termo, quando falamos de direitos humanos
ou direitos fundamentais, estamos falando dos mesmos conteúdos, ou seja, dos
mesmos direitos que cabem a quaisquer pessoas, independentemente de suas
diferenças biológicas, culturais, sociais, políticas, ideológicas.
Como começar a pensar em direitos humanos e a falar sobre a necessidade
de sua proteção? Reflita a partir da tirinha abaixo.

Tiras em quadrinhos
“Armandinho”,
por Alexandre
Beck. Reprodução
autorizada pelo
autor.
11

1.2 A Dignidade da Pessoa Humana e os fundamentos


dos direitos humanos

Você já deve ter ouvido que a expressão Dignidade da Pessoa Humana,


afinal, está no primeiro artigo da nossa Constituição, como um dos fundamentos do
Estado Democrático de Direito2. Então, concretizar a dignidade em suas diversas
dimensões e também tê-la como fio condutor para as decisões políticas e jurídicas,
deve ser um objetivo a ser perseguido pelo Estado brasileiro.
Muitos autores apontam a dignidade da pessoa humana como o maior
fundamento dos direitos humanos, o elemento justificador desses direitos e de todas
as ações que se dirigem à sua concretização. Para compreendermos a importância
do conceito de dignidade da pessoa humana, é necessário considerar a construção
histórica do conceito de direitos humanos.
Você já deve ter ouvido muitas vezes que todos são iguais e que devem
ter os mesmos direitos e deveres, mas violências cotidianas demonstram que nem
todas as pessoas enxergam as relações humanas dessa maneira.
A ideia de igualdade, no formato em que a conhecemos, relaciona-se de
forma muito próxima à ideia de dignidade da pessoa humana que chegou até nós,
especialmente, por meio das grandes revoluções burguesas (Americana e Francesa,
no século XVIII). Assim, foi construída desde a passagem do feudalismo ao
capitalismo, em um período que denominamos de Idade Moderna ou Modernidade.
Antes da Idade Moderna (1453-1789), isto é, até o fim da chamada Idade
Média (476-1453), as pessoas eram concebidas como se fossem naturalmente
diferentes em decorrência do contexto social em que nasceram. O valor das pessoas
era determinado pelas classes sociais às quais pertenciam. Havia, portanto, uma
hierarquia de valores com base na desigualdade social imposta pela condição e pelo
contexto dentro do qual as pessoas nasciam. Os direitos que as pessoas poderiam
ter estavam vinculados a tal hierarquia. Uma pessoa nobre teria mais valor e mais
direitos que uma pessoa na condição de serva ou escrava. Não havia mobilidade
nessa pirâmide de hierarquia social e as pessoas eram condenadas a viver assim,
sendo consideradas desiguais por natureza. Obviamente, tudo isso gerava exclusão,

2 “ Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Muni-
cípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamen-
tos:
I - a soberania;
II - a cidadania
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos
ou diretamente, nos termos desta Constituição.
12

dominação e aprofundamento das desigualdades.


Na Idade Moderna, o quadro passa a ser diferente. Vários fatores
contribuíram para essa mudança de perspectiva sobre as classes sociais antes
imutáveis. Vejamos alguns exemplos:
•O Iluminismo (século XVIII visto como o século das luzes) trouxe a ideia
da razão e da racionalidade como atributos universais de todos os seres humanos;
•A passagem do feudalismo ao capitalismo envolveu um forte movimento
cultural, científico, filosófico, político e comercial, que promoveu a valorização do
indivíduo e deslocou o lugar ocupado pela figura divina, antes tida como centro de
todas as coisas.
Os acontecimentos históricos decorrentes desses fatores também
contribuíram para semelhante mudança de visão, tais como a Revolução Americana
(1776) e a Revolução Francesa (1789). Esses dois grandes eventos do século XVIII
são interpretados como marcos históricos fundamentais para o nascimento da
Idade Moderna.

Na Modernidade, a visão de desigualdade natural entre os seres humanos foi


substituída pelo entendimento de que todos são iguais por natureza. Neste sentido,
as desigualdades existentes não decorrem de uma desigualdade natural entre as
pessoas, mas resultam da vida em sociedade, das explorações, das opressões, da
distribuição desigual de renda, da cultura. A noção de igualdade surge e passa
a nortear o gozo de uma vida mais digna e mais justa para todas as pessoas,
independentemente de sua origem ou condição social.
A dignidade da pessoa humana perpassa esta compreensão sobre a ideia de

São Luís, Maranhão,


2018. Fotografia:
Leonne Sá Fortes.
Reprodução
autorizada pelo
autor.
13

igualdade e de justiça devidas a todas as pessoas, para além de qualquer característica


individual ou social – como cor, raça, classe, crença religiosa, nacionalidade ou
orientação sexual. Portanto, todo ser humano é dotado de um valor universal que
lhe é atribuído pelo fato de se tratar de um ser humano, simplesmente por sua
natureza humana.
Deste modo, a dignidade da pessoa humana consolidou-se como a motivação,
a causa e o fundamento dos direitos humanos.

1.3 Direitos Humanos e Democracia

Por tudo isso, a construção, a efetivação e a concretização dos direitos


humanos têm muito a ver com um projeto de democracia próprio de Estados que
têm o poder limitado pelo Direito. Isso nos permite dizer que os direitos humanos,
ou direitos fundamentais, são direitos baseados na dignidade da pessoa humana
que limitam e coordenam a atuação do Estado Democrático de Direito. Neste
contexto, a arbitrariedade, o poder e os abusos devem ser limitados por meio das
leis e das Constituições democraticamente construídas.
Essa construção democrática tem várias dimensões. Por exemplo, as
pessoas podem, por meio do voto, eleger candidatos para o poder legislativo, esfera
do Estado responsável por elaborar as leis e as adequações ao texto constitucional,
como também podem escolher os candidatos para o poder executivo, que irá
elaborar as políticas públicas e executar as leis aprovadas pelo legislativo. Este
modelo formal de democracia é chamado de democracia representativa.
Todavia, não é apenas pelo voto que se faz democracia. Também é possível
que esse modelo predominante hoje em dia nos países, seja complementado por
outras vias, como a democracia participativa. A sociedade civil também poderá se
organizar no sentido de estabelecer demandas, regras e programas voltados aos
direitos humanos em vigor, ampliando o contato da população com as decisões
políticas. As associações de bairro, as organizações não governamentais, os
sindicatos e os movimentos sociais em geral são bons exemplos de sociedade civil
organizada que se estrutura para participar da política.
A importância da participação da população na política é revelada quando
decisões legislativas ou de governo na perspectiva de representação formal,
acabam por priorizar uma democracia da maioria, sendo que tal maioria pode
corresponder não ao aspecto quantitativo da população, mas aos segmentos de
maior poder na estrutura política e socioeconômica. As minorias sociais que não se
veem representadas nessas pautas e decisões predominantes (as leis e os grandes
14

programas governamentais) podem


ficar no prejuízo?
Se estivermos falando de
democracia, é claro que todas as
pessoas devem ser contempladas
por direitos e garantias. Para tanto,
além do poder executivo e do poder
legislativo, há também o poder
judiciário. Os juízes, juntamente a
todo o aparato da justiça existente
nos países democráticos, cumprem
a função de equilibrar esses poderes
e efetivar os direitos e garantias
fundamentais de todas as pessoas,
indistintamente.
Vejamos um exemplo:
quando o Supremo Tribunal Federal,
a mais alta corte do sistema de
justiça, regulamentou a união entre
pessoas do mesmo sexo, estava ali
Belo Horizonte, desempenhando um papel de efetivar o direito à igualdade e de criar parâmetros
2016. Fotografia:
para realizar os direitos patrimoniais – entre outros – decorrentes de um casamento
Gilvan Borges.
Reprodução ou de uma união estável entre pessoas que, por razões culturais e sociais, não
autorizada pelo tinham seus direitos contemplados. Esta decisão aconteceu no ano de 2011 e pode
autor. ser relembrada aqui. Então, o poder judiciário, além de interpretar as leis de acordo
com seu tempo, também está apto a corrigir algumas das distorções presentes
no sistema legislativo, de forma a adaptá-lo às mudanças históricas e culturais.
O poder judiciário deve atuar promovendo as correções em jurisprudência que
vise resguardar e efetivar direitos das minorias que, porventura, tenham ficado
esquecidos ou negligenciados pelos poderes legislativo e executivo.
Então, neste momento, já discutimos o que são os direitos humanos, para
quê eles servem e como seu conceito se relaciona com o projeto de democracia
e de Estado de Direito que temos, bem como os fundamentos que serviram para
justificar o seu uso ao longo do período de sua construção e afirmação.
O que mais importa agora é compreender que, independentemente das
fundamentações filosóficas e das teorias políticas ou científicas que nos auxiliam
no objetivo deste estudo, tais direitos nasceram em circunstâncias marcadas por
lutas ao longo da história, em defesa de liberdades negativas (as que demandam
uma não atuação do Estado em relação aos indivíduos) ou liberdades positivas
15

(as que exigem uma atuação mais próxima do Estado, conferindo direitos). Assim,
absorver a ideia de direitos humanos com base em sua afirmação ao longo da
história é fundamental para pensar em formas eficazes de protegê-los e assegurar
que seus titulares usufruam destes direitos com segurança.
As próximas seções deste curso abordarão o tema de forma mais específica e
facilitarão o aprendizado sobre como os direitos humanos afirmaram-se e passaram
a ser considerados pautas que demandam obrigações por parte dos Estados e das
pessoas, ou seja, mandamentos éticos de conduta que regulam a vida em sociedade
e que oferecem padrões de comportamento e de proteção a todos os indivíduos.

Jerusalém, 2017. Fotografia: Gilvan Borges. Reprodução autorizada pelo autor.


16

2. Gerações de direitos humanos e afirmação ao longo


da História

2.1 Classificação em Gerações: o início

Considerando-se a compreensão sobre os conceitos de direitos humanos e


a tomada de consciência quanto à necessidade de sua proteção, percebe-se o modo
como esses direitos se consolidaram com a teoria política e a ciência do Direito.
Para entender como essa conquista se deu, é preciso introduzir uma noção muito
utilizada: a ideia de gerações ou dimensões de direitos humanos.
Essa ideia de gerações é extremamente didática para situar os direitos
humanos no tempo e nos contextos históricos dentro dos quais eles emergem,
porque traz a percepção de que são os eventos históricos que pedem proteção a
cada um dos direitos como demandas sociais e históricas. Dessa forma, se em um
momento os direitos individuais, como a liberdade pessoal, precisaram de maior
proteção e efetivação por parte do Estado e da sociedade, em outro momento foram
os direitos sociais – como a saúde, o salário, os direitos dos trabalhadores – que se
mostraram mais urgentes.
Esta distribuição em gerações, apesar de muito didática, traz alguns
problemas que também serão abordados neste momento do curso. Será aproveitado
o caminho didático que essa perspectiva oferece para, ao final, pensar nos equívocos
a que essa ideia pode conduzir.
Há registros de que, em 1979, o jurista tcheco-francês Karel Vasak abordou,
pela primeira vez, a ideia dos direitos humanos distribuídos em três gerações,
durante aula inaugural no Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em
Estrasburgo. Ao pensar nos direitos humanos, Vasak apontou um vínculo destes
com os três ideais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
Assim, os direitos humanos de primeira geração estariam vinculados aos
direitos individuais e de liberdade, atribuindo maior atenção às possibilidades do
agir humano sem a influência ou os freios estatais. Desse modo, falar sobre direitos
de liberdade implicaria referir-se também a uma esfera de abstenção à atuação
estatal (de não atuação, de inação).
Já os direitos humanos de segunda geração, ligados aos direitos de igualdade,
significariam os direitos sociais; aqueles que, ao contrário dos anteriores, precisariam
de uma atuação mais direta do Estado, uma prestação, portanto. O Estado, desse
modo, estaria se comportando de forma prestacionista ao implementar direitos
voltados ao objetivo de igualar as pessoas, independentemente de suas diferenças
ou mesmo em virtude delas. Neste sentido, a atuação estatal seria necessária diante
17

do direito à saúde, à educação, à previdência, ao salário, ao trabalho digno e ao


lazer, por exemplo.

Jordânia, 2017.
Fotografia:
Gilvan Borges.
Reprodução
autorizada pelo
autor.

Já os direitos de terceira geração, vinculados à fraternidade, visariam


a volver os olhos para os direitos da humanidade como um todo e, para isso,
deveríamos pensar em direitos de proteção ao meio ambiente, ao desenvolvimento,
à paz, ou seja, em direitos que atendessem a uma projeção de futuro dentro de uma
sociedade global. É nesse contexto que tais direitos passam a incorporar também os
chamados direitos difusos e coletivos, como os direitos do consumidor, dos povos
indígenas, da criança e do adolescente, da pessoa idosa, da pessoa com deficiência
etc.
18

2.2 Classificação em gerações: o desenvolvimento

A tentativa de vincular a evolução dos direitos ao tempo histórico foi


consolidada e melhor desenvolvida pelo pensador Norberto Bobbio, no ano de
1992, em uma consagrada obra intitulada A Era dos Direitos. Nesse livro, o autor
desenvolveu com profundidade a teoria das gerações de direitos, apontando,
inclusive, para uma quarta geração, a qual passaria a preocupar-se com a proteção
do patrimônio genético. Tal preocupação, no início da década de 1990, ganhava
um sentido particularmente diferente do que hoje a questão assumiu, diante do
desenvolvimento de tantas tecnologias vinculadas ao estudo dessa modalidade
pertencente às ciências da vida. Entretanto, vale a pena mencionar as reflexões
de Bobbio, uma vez que sua obra desempenhou e ainda desempenha papel tão
relevante para a Ciência do Direito.

2.2.1 Primeira Geração

Assim como Karel Vasak, o estudioso italiano aponta os direitos de primeira


geração como aquelas liberdades que teriam o poder de limitar a atuação estatal,
impedindo, assim, arbitrariedades e preservando direitos individuais, como a vida
e a liberdade. Por essa razão, podemos dizer que são percebidos como direitos
negativos, uma vez que o Estado precisa deixar de intervir nas liberdades das
pessoas. Bobbio localiza historicamente a luta por esses direitos nas duas grandes
revoluções liberais burguesas que marcam o século XVIII, ao lutarem contra
Estados absolutistas e poderes desmedidos em relação aos indivíduos: a Revolução
Francesa, de 1789, e a Revolução Norte-Americana, de 1776. Essas duas revoluções,
embora tenham muitas diferenças entre si, significaram a oposição ao poder
ilimitado da monarquia e às desigualdades sociais que ainda eram muito presentes
na Modernidade, como heranças da Idade Média, mas também como resultados de
novas formas de exploração.
Podemos dizer que esses dois movimentos nos ajudam muito a compreender
a consagração dos primeiros direitos humanos que foram construídos na nossa
trajetória histórica porque os documentos que proclamaram direitos deles
decorrentes ainda hoje são lembrados e repetidos por dezenas de países e
organizações internacionais. Assim, por exemplo, como resultado da Revolução
Francesa, tivemos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,
que, por meio de 17 artigos, pensava nas liberdades civis e na igualdade entre as
pessoas. A declaração de direitos, fruto da Revolução Norte-Americana, é a própria
Constituição dos Estados Unidos, em vigor até hoje, com algumas adaptações e
19

revisões: as chamadas emendas.


A garantia de direitos que esses movimentos previram foi organizada de
forma individual para cada pessoa – direitos individuais. Então, cada indivíduo
passou a ter direito à vida, à igualdade, à liberdade, à propriedade, à segurança, ao
sigilo das correspondências, à inviolabilidade de seu domicílio, a apenas ser punido
nos termos previstos em lei, entre outros. Isso nos oferece a visão de um Estado
que deveria, a partir de então, deixar de intervir em uma esfera de direitos que até
esse momento era controlada por meio da monarquia. Tais Direitos Humanos, os
de primeira geração, passam também a ser conhecidos como Direitos Civis.
Mas os Direitos Civis não seriam suficientes para conter a intromissão
estatal, já que o próprio Estado poderia modificar essas leis e declarações. Foi nesse
momento também que os movimentos que lutam por direitos passaram a pensar
no direito de interferir na elaboração legislativa. Chamamos esses novos direitos
de políticos, envolvendo um conjunto de regras que regulam a participação da
população de um país no processo político. Mas o importante é que eles permitam
a participação do indivíduo na vida pública, concedendo aos cidadãos o sufrágio
universal, o voto secreto, o poder de escolha e também a capacidade de candidatar-
se para cargos públicos. Além dessas condições, que são básicas na participação
política, também integram os direitos políticos: o voto em plebiscitos e referendos;
a movimentação popular; a organização de partidos políticos e a participação em
suas atividades.
Esse conjunto de direitos civis e políticos tornaram-se o agrupamento que
atualmente chamamos de direitos individuais e que correspondem à primeira
geração de direitos humanos.

2.2.2 Segunda Geração

A consagração desses direitos de primeira geração não foi suficiente para se


evitarem as desigualdades sociais alarmantes e a miséria ao longo do século XIX.
A liberdade alcançada incluía também uma liberdade de mercado, que gerava uma
concorrência muitas vezes desleal. Em decorrência, nesse período observamos uma
ampla concentração de riquezas nas mãos de algumas poucas empresas e pessoas,
dando origem à formação de cartéis e monopólios, algo que podemos chamar de
concentração do mercado. Sem a justa concorrência, poucas empresas conseguiam
estabelecer os preços dos seus produtos livremente, prejudicando os indivíduos
como um todo, e, de forma mais cruel, os mais pobres. No final do século XIX,
portanto, o cenário geral era de miséria e opressão no cotidiano dos mais pobres e
de concentração de riquezas para o mercado econômico. Esse quadro exigia uma
20

intervenção do Estado.
Isso seria contrário às lutas pela liberdade e não intervenção do Estado,
buscadas na primeira geração?
Na verdade, não. Naquele momento as pessoas lutavam para se livrar das
arbitrariedades da monarquia e de uma intervenção que era herança do modelo
de sociedade que vinha da Idade Média. Agora, era necessário um rearranjo para
conter as desigualdades sociais ad vindas de outras causas. Para tentar remediar
esse quadro, algumas ações começaram a ser realizadas por meio de intervenções
e prestações do Estado para assegurar educação e saúde, proteger o trabalho,
regular a economia. No entanto, essas intervenções eram mais pontuais, pois ainda
predominava a imagem de uma sociedade na qual o Estado não pode intervir.
No início do século XX, as contradições desse novo modelo ainda
predominavam e os efeitos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da
Revolução Russa (1917) trouxeram modelos de sociedade e de economia diferentes
como reação ao modelo capitalista. Em 1919, a Alemanha também criou uma
nova Constituição, a Constituição de Weimar que levou à prática diversos direitos
sociais, ao mesmo tempo em que consolidava o modelo de Estado Social ou Estado
de bem-estar social, com suas novas concepções de sociedade e de regulação da
economia por parte do Estado. Esse novo modelo foi implantado em diferentes
lugares do mundo, em momentos históricos distintos. A democracia e o Estado de
Belo Horizonte, Direito permaneceram. A diferença é que, agora, havia leis regulando o mercado, a
2017. Fotografia: economia, assegurando educação e saúde, protegendo os trabalhadores.
Leonne Sá Fortes.
É aí que se pode falar em outra dimensão de direitos a ser construída: os
Reprodução
autorizada pelo direitos de segunda geração, que decorreram da luta de classes e das desigualdades
autor. sociais sentidas pela classe operária no século XIX e que se traduzem nos direitos
trabalhistas, econômicos e sociais.
Dizer que todos são iguais perante a
lei resolvia apenas parte dos problemas, pois
reconhecer, do ponto de vista formal, uma
igualdade perante a lei não é a mesma coisa
que dar condições e oportunidades iguais.
Assim, se uma pessoa nasce pobre, dentro
de um contexto de miséria, sujeita à fome,
a várias privações, ela não terá as mesmas
oportunidades de disputar um emprego com
quem teve acesso às melhores escolas, a uma
alimentação equilibrada e a condições sociais
privilegiadas. E isso quase nada tem a ver com
mérito, pois a estrutura de desigualdade social
21

é reproduzida de geração em geração e


uma criança que nasce em uma família que
não herdou patrimônio e propriedades,
certamente, terá muito mais dificuldades
de prover-se e desenvolver-se em condições
de igualdade ao longo da vida. Da mesma
maneira, aqueles direitos políticos que
surgiram no século anterior (os de primeira
geração) permitiam que algumas pessoas
votassem, mas aquelas que não possuíam
patrimônio e as mulheres eram privadas
desse direito. Desse modo, pode-se dizer
que com apenas aqueles direitos havia uma
democracia excludente, já que ter igualdade
São Luís, Maranhão,
perante a lei é uma igualdade formal (e isso, apesar de muito importante,
2018. Fotografia:
não é suficiente), mas que precisa ser proporcionada por uma igualdade de
Leonne Sá Fortes.
Reprodução autorizada condições e de oportunidades, algo que se chama igualdade material.
pelo autor.

Alcântara, Maranhão, 2018. Fotografia: Leonne Sá Fortes. Reprodução autorizada pelo autor.
Com a intenção de criar uma sociedade com menos privilégios de uns em
Hebron, Territórios relação a outros e de combater os resultados problemáticos que a livre concorrência
Palestinos, 2017. e o livre mercado (conquistas das revoluções burguesas da geração anterior)
Fotografia: geravam, a classe trabalhadora operária se moveu em uma tentativa de luta por
Gilvan Borges.
direitos sociais, que previam mais do que simples abstenções e não intervenções do
Reprodução
autorizada pelo Estado, exigindo desse uma implementação de direitos. Tais direitos deveriam ser
autor. capazes de conter as desigualdades e promover uma vida mais digna, com trabalho,
saúde, moradia e educação.
Desse modo, esses direitos de segunda geração são entendidos como
direitos positivos, que demandam ação por parte do Estado.
Para resumir, podemos entender como exemplos de direitos econômicos
a proibição à formação de cartéis e monopólios, a proibição a preços abusivos,
a proteção aos valores do trabalho e da livre iniciativa, a proteção à liberdade
de escolha profissional e a proibição à concorrência desleal. Como exemplos de
direitos sociais, tem-se a saúde pública, a educação pública, a previdência social, a
assistência social, a moradia e o lazer. Por fim, são exemplos de direitos trabalhistas
a regulamentação da jornada de trabalho, o salário mínimo, o descanso semanal
remunerado, as férias remuneradas e a garantia por tempo de serviço (o FGTS) e
o direito de greve.
23

Campo de
2.2.3 Terceira Geração refugiados de Al
Aroub, Territórios
Os direitos de segunda geração foram capazes de reduzir as desigualdades Palestinos, 2017.
sociais. Entretanto, não puderam lidar com alguns outros problemas muito comuns Fotografia:
Gilvan Borges.
nas sociedades.
Reprodução
Vejamos: quando o Estado Social buscou promover a igualdade material, autorizada pelo
partiu de um padrão de igualdade previamente determinado, isso é, a igualdade autor.
entre indivíduos do sexo masculino, brancos, heterossexuais, adultos, consumidores
ativos e em idade economicamente ativa. Ao promover condições para que todas as
pessoas pudessem viver de acordo com esse padrão, alguns grupos com necessidades
particulares e específicas acabaram sendo deixados de lado, como as mulheres, os
negros, os homossexuais, as crianças, os adolescentes, os idosos, os índios, pessoas
em desvantagem nas relações de consumo. Isso quer dizer que a igualdade material
ainda não era tão adequada como desejável. Assim, as demandas do século XX
passaram a ser objeto de luta de novos movimentos que nasceram na sociedade.
Neste momento do curso você já deve ter percebido que os direitos humanos
são sempre reflexos de construções sociais e que, para serem pensados pelas casas
legislativas (vereadores, deputados, senadores) e para serem transformados em
leis, geralmente passaram por longo processo de luta promovida por movimentos
organizados.
24

Os direitos de terceira geração nascem dessas lutas de minorias, ao longo


do século XX, que reivindicavam o direito à diferença, a prerrogativa de gozar de
direitos, apesar e também em virtude das diferenças. Ou seja, ser diferente não
poderia ser um problema para ter acesso a direitos e garantias fundamentais e para
o gozo de uma vida digna. É exatamente em razão dessas diferenças que as pessoas
deveriam receber proteção específica, a fim de terem igual oportunidade de acesso
a novos direitos, os quais passamos a chamar de direitos coletivos: aqueles que
determinados grupos sociais detêm por precisarem de proteção específica perante
as estruturas de violência e de opressão existentes.
Um exemplo pode esclarecer essa questão: imagine uma pessoa com uma
deficiência física que lhe impõe o uso de uma cadeira de rodas. Para que essa
pessoa tenha autonomia para ir à escola e tenha acesso ao banheiro, à biblioteca,
à sala de aula, à entrada e à saída das dependências dessa escola é necessário
que o ambiente seja adaptado para uma cadeira de rodas. Mas, no Brasil e em
vários países do mundo essa não era a regra. Precisamos, então, de demandas de
setores da sociedade civil nesse sentido, até que se criou uma legislação específica
(Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) e um tratado internacional,
os quais passaram a obrigar os estabelecimentos de ensino e outras entidades a
se adaptarem para dar acessibilidade a qualquer indivíduo que naquele ambiente
queira entrar e permanecer, com mobilidade e alcance para todas as possibilidades
ali contidas. Isso é um exemplo claro de promoção de igualdade material, de
igualdade de oportunidades.
O mesmo pode ser dito com relação às políticas de cotas para ingresso nas
universidades públicas. Sabemos que o preconceito racial no Brasil é um problema
sério e que até hoje atinge a sociedade. Os dados revelam que, apesar de termos
um número enorme de pessoas negras e pardas, a maior parte das pessoas que
frequentam a universidade é branca3.
Esta não é uma questão de mérito de um segmento da população em
detrimento de outros, pois reflete uma sociedade historicamente desigual que
atribui menores salários a pessoas negras e reproduz discursos e práticas racistas,
além de mecanismos de exclusão social em instituições, no mundo do trabalho e em
diversos espaços de relações sociais. A distribuição de renda no Brasil relaciona-
se ao histórico processo de exclusão social em nosso país4. Desse modo, o retrato
de uma maioria branca nas cadeiras das universidades é uma cruel realidade a ser
3 “Veja notícia do IBGE sobre o assunto. Em 2012, o Instituto realizou pesquisa que de-
monstrava como a população negra e parda triplicou na universidade em 10 anos, mas ainda assim
não era suficiente para conter a desigualdade. Em 2017, o Guia do Estudante atualizou esse dado,
demonstrando ainda que a desigualdade permanecia. Outra análise sobre os mesmos dados foram
realizadas pela EBC-Agência Brasil.”
4 Sobre a inserção de pessoas negras no mercado de trabalho, veja os dados do IBGE em
https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/04062004pmecoreshtml.shtm
25

combatida pela Lei de Cotas, hoje em vigor e que vem mudando esse panorama.
Por outro lado, juntamente com os direitos coletivos, temos outra categoria
de direitos de terceira geração, que podemos chamar de direitos difusos. A
sobrevivência do planeta Terra encontra-se ameaçada diante de vários fatores: a
sociedade altamente industrializada, o fim da água potável, o desequilíbrio dos
ecossistemas, o aquecimento global. Esses problemas direcionam nosso olhar para
um conjunto de direitos que não se identificam com uma única geração de pessoas,
indivíduos ou grupos ou apenas com o momento atual, mas que se referem a
toda e qualquer pessoa, à humanidade que precisa ser protegida e à manutenção
de gerações futuras. Esses direitos, frutos também de lutas dos movimentos
ambientalistas, são difusos, ou seja, se
irradiam para toda a sociedade e visam
assegurar à espécie humana o direito de
viver em um meio ambiente ecologicamente
equilibrado.
Outra categoria de direitos de
terceira geração é a dos direitos individuais
homogêneos. Já dissemos que as relações
econômicas geram desequilíbrios, uma vez
que os indivíduos acabam em uma situação
de maior fragilidade diante do poder
econômico de grandes empresas. Os direitos
individuais homogêneos pertencem a essas
pessoas na condição de indivíduos (e não
de grupos sociais, nem à humanidade como
um todo), mas relacionam-se a problemas
que afetam a todas as pessoas de modo
semelhante, de modo homogêneo. Um bom
exemplo dessa categoria são os direitos do
consumidor, especificados no Código de
Defesa do Consumidor.
Norberto Bobbio aponta para o fato
de que esses direitos de terceira geração
Uberlândia, 2016. estão ligados àquela dimensão da solidariedade pertinente à Revolução
Fotografia: Gilvan Francesa, uma vez que o direito ao desenvolvimento, à paz internacional,
Borges. Reprodução
a um ambiente protegido e à comunicação são preocupações solidárias
autorizada pelo autor.
com gerações futuras. Em relação a essa geração, para o autor, “o mais
importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver
num ambiente não poluído.” (BOBBIO, 2004, p. 9). O italiano estaria esboçando
26

a preocupação que o Direito deve ter em relação à manutenção da vida digna na


Terra.

2.2.4 Quarta e Quinta Gerações: podemos falar em


novas gerações?
A teoria das gerações está ligada ao desenvolvimento histórico e às lutas por
direitos que se deram ao longo do tempo. Partindo dessa perspectiva, poderíamos,
então, imaginar que novas gerações de direitos podem surgir a cada momento
em que novas lutas, novas demandas e novos interesses aparecem. É assim que
Norberto Bobbio entendia e, por meio dessa ótica, outros autores e outras autoras
passaram também a defender a existência de novas gerações de direitos, tal como
fez o constitucionalista brasileiro Paulo Bonavides.
A percepção de Bobbio o levou a teorizar sobre uma quarta geração
de direitos humanos, que nasce em um contexto em que a bioética deveria ser
considerada em relação às novas descobertas da ciência. Para ele, o patrimônio
genético seria essa nova geração merecedora da atenção do direito e da proteção
estatal, uma vez que a vida humana é o que mais estaria em jogo. Outras pessoas
que pretenderam estudar a questão também perceberam que a dimensão da vida,
a partir da bioética, deveria ser objeto das preocupações do Estado e do Direito,
em todas as suas especificidades: manipulação genética, eutanásia, livre escolha
pela morte, suicídio assistido. Atualmente, vários países já têm legislação a respeito
desses assuntos, inclusive o Brasil (que proíbe a patente de materiais genéticos, por
exemplo).
Muitas pessoas que estudaram essa questão verificaram também uma
tendência a serem reconhecidas mais gerações. Daí que uma quinta geração começou
a ser cogitada, também ligada a desenvolvimentos tecnológicos e melhoramentos:
os direitos ligados à cibernética e aos seus possíveis efeitos indiretos que afetam
a vida humana. Aqui, o que está em jogo são as novas possibilidades e os novos
riscos trazidos pela expansão do mundo virtual, como, por exemplo, problemas
ligados a informações pessoais e manipulações de dados no contexto da internet,
a rede mundial de computadores.
Mas o brasileiro Paulo Bonavides entende essas gerações de outra forma.
Para ele, os direitos de quarta geração seriam direitos à democracia, ao pluralismo,
ao acesso a informações e à globalização democrática e os direitos de quinta
geração se referem ao direito à paz (BONAVIDES, 2008).
Algumas dessas pessoas que teorizaram tais questões teriam mais razão?
Pode-se dizer que não. Uma vez que a disputa por narrativas de direitos é
27

algo vivo e está em curso a cada instante e que o Direito não é uma ciência exata,
cada uma dessas narrativas e teorias contribuiu e ainda contribui para a evolução
da ciência do Direito e do alargamento dos direitos humanos e de sua proteção.
Todas essas teorias e estudos apenas nos ajudam a entender como esses direitos
merecem cada vez mais nossa atenção.
Ao se localizarem as gerações de direitos no tempo e na história, Norberto
Bobbio sugere que tais direitos apresentam-se em gerações, porque se dão como
aspectos da evolução moral e histórica da civilização. Se a técnica também é capaz
de produzir novas situações, a ética jurídica deve ser capaz de efetivar direitos a
elas vinculados. Isso leva a crer que a classificação ou distribuição dos direitos
em gerações poderia se expandir ao longo dos anos e séculos, na medida em que
novos direitos venham a ser afirmados e construídos. É o que fica evidente das
considerações de Bobbio:

Os direitos de terceira geração, como o de viver num ambiente não


poluído, não poderiam ter sido sequer imaginados quando foram
propostos os de segunda geração, do mesmo modo como estes últimos
(por exemplo, o direito à instrução ou à assistência) não eram sequer
concebíveis quando foram promulgadas as primeiras declarações
setecentistas. Essas exigências nascem somente quando nascem
determinados carecimentos. Novos carecimentos nascem em função da
mudança das condições sociais e quando o desenvolvimento técnico
permite satisfazê-los. (BOBBIO, 2004, p. 10)

Mas, para ele, não é tanto a busca pelos fundamentos o que mais importa,
mas a sua realização e implementação:

trata-se de saber se a busca do fundamento absoluto, ainda que


coroada de sucesso, é capaz de obter o resultado esperado, ou seja,
o de conseguir de modo mais rápido e eficaz o reconhecimento e a
realização dos direitos do homem. (BOBBIO, 2004, p. 15).

É preciso dizer que, quando o autor usa o termo “homem”, não está
excluindo outros gêneros dessa proteção, pois se trata de um uso temporal, uma vez
que foi utilizado na década de 1990 em uma espécie de reflexo da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão; e em 1789, na Revolução Francesa, no contexto
da conquista dos direitos de primeira geração, mas também de um momento em
que a igualdade de gênero não se apresentava de forma tão intensa e disseminada
como nos dias de hoje. Tudo isso, antes ainda de uma revisão de significados e
sentidos dos termos e de um maior cuidado com a proteção de todos os gêneros,
faz-nos também perceber que esse esforço sobre o uso da linguagem adequada
(pessoas, indivíduos, seres humanos ao invés de homem ou homens) também é
sinal dessa evolução dos direitos humanos no tempo, já que afirmar a igualdade
28

entre os gêneros faz parte das lutas do nosso tempo, em que combatemos essas
violências específicas.
É certo, portanto, que a afirmação de direitos humanos é um problema
conceitual, filosófico, jurídico, mas também político, que envolve a relação do
indivíduo com o Estado (chama-se relação vertical), dos indivíduos entre si
(denominam-se relações horizontais) e também dos Estados no plano internacional,
como pode evidenciar, apenas a título de exemplo, a situação das pessoas refugiadas
e migrantes na atualidade.
A construção de direitos no plano das normas jurídicas, inserindo-os nos
textos legais, tem suma importância, mas não é suficiente para que tais direitos
sejam concretizados. Para que essa materialização aconteça, é preciso que haja
esforços políticos, judiciais (fala-se aqui da justiça no plano da jurisdição, ou seja, o
trabalho realizado pelos juízes e tribunais, contando com todo o sistema da justiça),
nas relações internacionais (ao se criarem normas internacionais, que devem ser
cumpridas por todos os países e fiscalizadas pelo Direito Internacional) e também
ações por parte da sociedade civil, por meio de seus atos organizados em direção
às demandas que podem surgir no seio social e à maneira de filtrá-las e levá-las às
instituições responsáveis por sua efetivação.

2.3 Críticas ao uso da classificação em gerações

A partir dessas informações, que nos ajudam a compreender melhor a


origem e a necessidade de proteção dos direitos da pessoa humana, é possível
perceber alguns problemas na classificação em gerações.
O primeiro desses problemas é o seguinte: a divisão dos direitos no
tempo pode gerar a impressão de que tais direitos estiveram presentes apenas
naquele momento, específicas do recorte temporal, e logo foram substituídos em
importância e em necessidade de implementação pela geração subsequente, o que
não é verdade. Essa forma de interpretar pode oferecer uma falsa impressão de que
os direitos de uma geração deixam de existir na geração seguinte. Mas os direitos
humanos, desde que afirmados e construídos historicamente, apenas se ampliam
e se adaptam ao seu tempo. A ciência do Direito, ao acompanhar os movimentos
sociais, as organizações de luta por direitos da sociedade e os seus deslocamentos
temporais, tenta trazer novas contribuições às formas de interpretar os direitos
humanos e melhores formas de concretizá-los. Assim, não é possível dizer que uma
geração se sobrepõe a outra. De fato, a distribuição temporal das gerações apenas
contribui para compreender como os vários direitos humanos, hoje passíveis de
29

proteção, foram construídos pelas próprias demandas da sociedade e não mais


deixaram de reclamar atenção por parte do Direito e da Política.
Outra questão que pode aparecer como crítica a essa teoria da classificação
dos direitos em gerações é o seu deslocamento em relação à realidade das muitas
pessoas que estão abaixo da linha de proteção e visibilidade estatal: a imensa massa
de miseráveis, aqueles que Bobbio teria chamado de sem-direitos. O autor assim
denuncia:

Não se poderia explicar a contradição entre a literatura que faz


a apologia da era dos direitos e aquela que denuncia a massa dos
“sem-direitos”. Mas os direitos de que fala a primeira são somente os
proclamados nas instituições internacionais e nos congressos, enquanto
os direitos de que fala a segunda são aqueles que a esmagadora
maioria da humanidade não possui de fato (ainda que sejam solene e
repetidamente proclamados). (BOBBIO, 2004, p. 11)

Ora, não há pessoas mais humanas que outras e todas merecem a proteção
do Estado. Até mesmo aquelas consideradas criminosas têm direito à sua defesa
com justiça e ao acesso aos meios de prova que possam servir para que sejam
adequadamente enquadradas na lei e recebam penas justas, previstas pelo
ordenamento jurídico vigente. Isso não quer dizer impunidade. Confira aqui o que
o professor, advogado e ativista de direitos humanos, Renan Quinalha, tem a dizer
sobre o tema.
Quando tratamos esses direitos de forma universalizada, sem considerar
as particularidades regionais de cada povo e civilização, tendemos a fazê-lo sob a
visão da cultura ocidental hegemônica, europeia ou norte-americana, ignorando
as diferenças próprias de cada cultura. Essa postura, muito própria do Ocidente
colonizador, acaba desvalorizando, por exemplo, as dificuldades na efetivação
dos direitos humanos muito básicos em países mais pobres economicamente.
Essa perspectiva, que podemos chamar de colonial, convida-nos a olhar para os
direitos humanos a partir de um olhar decolonial, que, por sinal, tem mais a ver
com a história do Brasil. Essa nova proposta para pensar os direitos nos países que
foram colonizados e que não conseguiram desenvolver-se devido à sua forma de
colonização, seria guiada por um pensamento crítico, que se desenvolve a partir
dos “de baixo”, dos explorados pelo capitalismo. Esse enfoque é voltado para um
pensamento político e teórico que visa desconstruir as visões colonizadoras, que
ignoram as dificuldades de desenvolvimento econômico, industrial, e que, por
outro lado, valorizam as peculiaridades culturais, históricas, políticas dos países
explorados, colonizados.
Diante dessas considerações, acabamos por preferir o termo “dimensões”
ao termo “gerações” de direitos humanos. Isso porque se a nossa visão sobre
30

a afirmação de direitos ao longo da história ficasse prejudicada, tenderíamos a


materializar tais direitos de forma equivocada. A sua concretização depende de
legislações, de políticas públicas, de tratados internacionais, de ações e de decisões
judiciais que deem conta dos direitos humanos de forma integral e articulada, tendo
em vista a sua interdependência.
Vamos ver um exemplo que poderá esclarecer essa questão?

2.4. O Programa Bolsa Família: um exemplo integrador


das dimensões/gerações

Muitas pessoas desinformadas criticam o Bolsa Família, um programa


governamental criado em 2003, que visa combater a pobreza e a desigualdade
social no Brasil. O mesmo programa, no entanto, tem sua eficácia reconhecida
e elogiada pelo próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), como política
pública essencial à redução das desigualdades no País, e também por seu efeito
multiplicador de renda, com óbvios benefícios econômicos para toda a sociedade,
não apenas para os beneficiários diretos do programa5.
O programa se baseia em três eixos principais:
1- Complemento da renda: é concedido pelo governo um valor em moeda
corrente, mensalmente, às famílias beneficiárias. O valor é variável, de acordo com
a composição de cada família e com a renda familiar. Veja aqui.
2- Acesso a direitos: com base em compromissos firmados pelas famílias
beneficiárias, para reforçar o acesso à educação, à saúde e à assistência social.
3- Articulação com outras ações: várias políticas sociais que buscam
estimular o desenvolvimento das famílias, contribuindo para que elas superem a
situação de vulnerabilidade e de pobreza, promovendo a mobilidade social.
As críticas que algumas pessoas fazem se dirigem a uma suposta transferência
de renda que se prestaria a uma suposta troca de favores entre governantes e
governados. Mas desconhecem os critérios, efeitos e transformações já geradas pelo
Programa Bolsa Família, bem como o aspecto integrador entre direitos humanos
de várias dimensões ou gerações. Vasta bibliografia – livros, artigos, cartilhas,
pesquisas – já foi produzida sobre o programa e pode ser acessada aqui.
À primeira vista poderia parecer que o Programa se prestaria apenas a
atender a um ponto dos direitos de segunda dimensão, chamados de direitos
sociais, já que o aspecto da transferência de renda tem como objetivo solucionar
uma situação de falta de recursos, que é emergencial. Sob esse ponto de vista
5 GÓES, Carlos; KARPOWICZ, Izabela. Inequality in Brazil: a regional perspective. Fundo
Monetário Internacional. 2017. Disponível em: https://www.imf.org/~/media/Files/Publications/
WP/2017/wp17225.ashx
31

estreito e raso, o programa jamais conseguiria cumprir com sua proposta de


reduzir as desigualdades sociais, já que as carências e ausências são cíclicas para
os beneficiários, além de toda uma conjuntura que sustenta a miséria no País.
Então, o Programa Bolsa Família resolveu dar respostas também a essa
conjuntura. Para tanto, ataca três problemas de forma coordenada6:
1º) A violência de gênero: A opressão de gênero provoca uma maior
vulnerabilidade entre as mulheres, que apresentam maior percentual de miséria
em relação aos homens. Diante desse fato, o valor em moeda corrente referente
ao complemento da renda é necessariamente recebido pelas mulheres, que passam
a administrar com segurança essa renda mensal, mesmo se um parceiro do sexo
masculino vier a abandonar o lar, o que é comum em uma sociedade machista e
patriarcal como a brasileira. Assim, aquela antiga configuração do homem como
provedor de um lar é questionada, uma vez que ela mesma já não se sustenta em
nossa cultura, perante a situação de que a maior parte das mulheres, atualmente,
cumpre jornadas triplas de trabalho – dois períodos fora de casa, cumprindo ainda
tarefas domésticas e cuidados com os filhos. Além disso, a renda garante que a
mulher cuide dos seus filhos e do seu sustento sem submeter-se às violências de
uma figura masculina, que também não são raras. Desse modo, além da renda
complementar, o Bolsa Família consegue atender aos direitos de outras dimensões,
gerações, ligados à liberdade, autonomia individual, igualdade e diminuição das
violências.
2º) A falta de educação formal para os filhos das famílias mais pobres: Um
dos critérios para que a família receba o benefício é que a criança permaneça na
escola, recebendo educação formal e impedindo que a desigualdade social seja
reproduzida. Na escola a criança passa a ter contato com outras visões de mundo,
além da educação formal. Também, é na escola que a criança poderá ter acesso à
cultura, esporte, lazer, alimentação balanceada e ainda conviver com outras pessoas,
aumentando o seu círculo de socialização. Isso, certamente, contribui para que se
transforme em um adulto mais capaz de desenvolver profissões diversificadas e
romper com o padrão de miséria.
3º) O clientelismo político: Ao oferecer uma complementação de renda,
diminui-se a prática de se trocarem favores materiais por votos, que funciona como
moeda de troca para antigos grupos detentores do poder, algo ainda muito comum
no País. O combate às velhas práticas coronelistas pode desenvolver a consciência
política das pessoas, dando-lhes mais autonomia na escolha de novos candidatos e
governantes.
6 Esses desdobramentos foram também desenvolvidos em GOMES, David Francisco Lopes.
Coleção Cadernos de Direitos Humanos: Cadernos Pedagógicos da Escola de Formação em Direi-
tos Humanos de Minas Gerais| EFDH-MG. Fundamentação em Direitos Humanos e Cidadania
V.01. Belo Horizonte: Marginália Comunicação, 2016, p. 39-40.
32

Por meio dessa ação integrada, articulando as várias gerações, dimensões dos
direitos humanos, o Programa Bolsa Família tem conseguido atingir seu objetivo de reduzir
a miséria e enfrentar as desigualdades sociais. Tal exemplo revela como as abordagens
fragmentadas não funcionam na prática. Por isso, é importante compreender-se a relevância
didática da abordagem às gerações, como também os problemas que semelhante visão
carregaria se não existisse uma articulação entre as categorias dos direitos.

3. Direitos Humanos e Cidadania: participação e controle social

Se você chegou até aqui já consegue perceber a importância de falar-se em


Direitos Humanos quando se vive em sociedade e quando se compartilha uma vida
na coletividade. Como praticamente todos vivem em sociedade e, por isso, mantêm
relações sociais, é fundamental que as pessoas se respeitem mutuamente e, juntas,
procurem um projeto de vida boa, uma vez que as relações também constituem as
identidades pessoais.
Nesse sentido é que se fala em democracia participativa e representativa. É
importante usar adequadamente o direito político ao voto, a fim de exercer influência
sobre as decisões políticas que irão guiar os rumos do País, estado e município,
assim como a constituição de direitos de cada uma e de cada um. Mas também
é importante conhecer as formas de participação direta; ou seja, de democracia
participativa. Esse conjunto de direitos políticos, que envolve a representação e a
participação, também faz parte da cidadania.
A cidadania, como exercício da liberdade política, dá-se especialmente nos
espaços públicos, naqueles espaços que podem ser compartilhados socialmente.
Ela aparece quando as pessoas se reconhecem umas nas outras e exercem formas
de política variadas7. Esse reconhecimento facilita a identificação de pautas comuns
nos grupos sociais, mesmo que as pessoas pensem de forma diferente. Dessa forma,
se alguém deseja fazer parte de uma associação que se preocupa com direitos de
pessoas em situação de rua, mesmo que tenha ideologias e posturas distintas dos
demais indivíduos membros, por se reconhecerem nessa pauta específica, pode
desenvolver ações para efetivar o direito do grupo que apresenta a necessidade
específica. Isso configura uma das dimensões da cidadania.
A luta política e pela cidadania começa, geralmente, nesse reconhecimento,
nos espaços públicos. Então, política não é apenas aquela exercida pelos governantes
e pelo poder legislativo. A cidadania tem uma dimensão política e se faz política o

7 Essa ideia da política como atividade humana que se dá na pluralidade foi desenvolvida
pela teórica política Hannah Arendt. In: ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto
Raposo, Rev. Adriano Correia. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
33

tempo todo.
Por exemplo, participar de uma audiência pública no município, que tem
por objetivo discutir a educação infantil, abordando os debates sobre o Plano
Municipal de Educação, é ali fazer política e exercer o direito e o dever à cidadania.
A participação em um Conselho Municipal ou Estadual – como o da mulher, o de
saúde, o de direitos humanos, o de habitação –, significa participar em um espaço
público e fazer política. Integrar uma organização não governamental (ONG), uma
associação de bairro, é exercer a cidadania.
Preocupar-se com a harmonia da sociedade dentro da qual se vive é,
sobretudo, um exercício de cidadania.
Percebe-se, então, que a construção dos direitos humanos ao longo da
história tem tudo a ver com esse exercício, não é mesmo?
Cada nova luta, nova revolução ou novo movimento social que se empenhou
para conquistar um direito, demonstrou que para se ter direitos humanos é preciso
exercer a cidadania.
Então como definir o que é cidadania?
A partir dessa perspectiva panorâmica, cidadania é o conjunto de ações
que os indivíduos e grupos sociais – os chamados cidadãs e cidadãos – praticam
ao participar da vida em sociedade, construir politicamente os direitos humanos e
consolidar as suas garantias. Tal processo pode acontecer mediante a democracia
representativa (o direito de votar e ser votada, votado) ou a democracia participativa

Buenos Aires, Argentina, 2017. Fotografia: Leo Lopes de Sá. Reprodução autorizada pelo autor.
34

(associações, manifestações, movimentos sociais, audiências públicas, orçamento


participativo, ONGs etc.).
Ao lado dessa luta pela construção de direitos, a cidadania atua também no
sentido de fazê-los efetivos, concretos. Para tanto, os cidadãos devem fiscalizar a
atuação dos poderes públicos, que têm por obrigação concretizar os direitos. Esse
controle social deve observar vários problemas, a fim de evitá-los, denunciando-os e
os deixando à mostra: as desigualdades sociais, o autoritarismo das decisões – uma
vez que o sistema democrático não admite autoritarismo –, a falta de transparência
nas decisões, o privilégio de certos grupos, a falta de prestação de contas, a violência
por parte de algumas instituições estatais.
Mas como seria possível exercer esse controle com continuidade e eficácia?
É fundamental que haja espaços e mecanismos para melhorar a participação
social dentro do Estado. Para além dos mecanismos de gestão e de administração
centralizados dos Estados – e que são até necessários para tornar as decisões mais
rápidas e resolutivas –, existem também algumas aberturas possíveis, como as
parcerias com empresas privadas e com organizações da sociedade civil. Mas, para
que os interesses privados não se sobreponham aos interesses públicos, é preciso
que a sociedade se organize continuamente e procure ocupar os espaços públicos
com mais regularidade. Logo, se a sociedade civil buscar maior participação na
elaboração das políticas públicas, nas formas de atuação do Estado, ela estará
dando legitimidade às suas ações. Isso quer dizer que a sociedade estará aprovando
as ações do Estado, ao mesmo tempo em que as influencia.
Por outro lado, a sociedade civil organizada também pode controlar
essas ações, além de legitimá-las, para garantir que o Estado cumpra aquilo
que a Constituição e as demais leis estabelecem. Isso pode suceder por meio
das mencionadas audiências públicas, como também pelo envio de petições,
reclamações, representações ou queixas de quaisquer pessoas ou grupos ao poder
legislativo, que as receberá por meio de comissões temáticas pertencentes às suas
estruturas. Então, qualquer pessoa ou grupo pode redigir um documento, relatando
uma queixa, reclamando por uma solução, ou ainda emitindo sua opinião.
Temos também um importante mecanismo de fiscalização sobre a ação do
Estado: a Lei de Acesso à Informação. Tal lei obriga os municípios, os estados e
a União a oferecerem informações às pessoas interessadas sobre seus órgãos e
serviços, bem como aspectos que dizem respeito a despesas, receitas, convênios
celebrados, remuneração de servidores e sanções aplicadas a entidades que se
relacionam de alguma forma com o poder público. Ela dá origem, por exemplo,
aos portais de transparência que existem hoje em municípios, estados e União, que
oferecem informações sobre os dados fiscais e financeiros desses entes.
Além disso, há também ações judiciais que podem ser propostas por
35

qualquer cidadã ou cidadão: as chamadas ações populares. Essas ações estão


previstas na Constituição Federal e em lei específica – Lei da Ação Popular – que
as regulamentam com o objetivo de anular atos prejudiciais ao patrimônio público
ou de entidades de que o Estado participe, além de atos lesivos à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Uma
característica importante dessa ação é sua conexão com o exercício da cidadania,
uma vez que pode ser proposta por qualquer pessoa em dia com suas obrigações
eleitorais, sem qualquer custo. Portanto, os cidadãos poderão exercer o controle
sobre a atuação estatal e sobre a coisa pública.
Existem, então, apesar de ser a democracia vigente, predominantemente,
representativa, diversos mecanismos de acesso e de participação da sociedade, que
permitem aos cidadãos participarem de forma mais ativa na política e, com isso,
contribuírem com a construção e a efetivação de direitos.
36

4. Sistema internacional de proteção dos direitos humanos

Assim, como no âmbito das legislações internas de cada país, também


é possível observar hoje em dia a consolidação de sistemas internacionais de
proteção aos direitos humanos, sejam regionais, como na União Europeia e no
continente americano, sejam de alcance internacional, como na Organização das
Nações Unidas. Nesse curso, um dos objetivos centrais deste capítulo é apresentar
as diferentes formas com que os direitos humanos são protegidos atualmente, o que
também exige uma análise desses sistemas internacionais.
A exemplo do enfoque, para fins didáticos, sobre a divisão em gerações e
dimensões dos direitos humanos, como foi apresentado em item anterior, também
é possível dividir o sistema internacional de proteção aos direitos humanos em três
perspectivas. Para Cançado Trindade (2003), seriam elas: o direito internacional
dos refugiados, o direito internacional humanitário e o direito internacional dos
direitos humanos. Essa divisão se justifica, de vez que a proteção internacional dos
Direitos Humanos agrega diferentes temáticas, que são analisadas mais facilmente
por meio desses três conjuntos.

4.1. Direito Internacional dos Refugiados

Essa matéria busca entender o deslocamento internacional de pessoas ou


populações por motivo de fundado temor a perseguição ou em razão de raça,
religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Uma imagem recente
(2015) e bastante significativa para esses grupos populacionais específicos é aquela
de uma criança síria, Alan Kurdi, morta em uma praia da Turquia. Considerada uma
das cem fotos mais impactantes de todos os tempos, a imagem retrata a gravidade
da crise humanitária na Síria. Seu pai tentava fugir do conflito por meio de uma
pequena embarcação com destino à Europa. Havendo naufrágio, o resultado foi
retratado por uma imagem que, na verdade, reflete o destino de refugiados que
fogem, às centenas, de conflitos no Oriente Médio e no Norte da África. Essas
pessoas deixam seu país de origem para fugir às perseguições étnicas, religiosas e
políticas, em busca de maior segurança e abrigo no continente europeu.
O principal tratado internacional que aborda esse tema é o Estatuto dos
Refugiados, de 1951, que obriga os países que concordaram em assumir esse
compromisso, internacionalmente, a oferecer refúgio por temor de perseguição ou
em razão de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas. Os
benefícios da concessão de refúgio também são estendidos aos familiares da pessoa
37

refugiada, como cônjuges, filhos e filhas, pais etc.


No Brasil, a Lei nº 9.474 de 1997 aumentou o rol de situações em que o
Brasil é obrigado a conceder refúgio: fundados temores de perseguição por motivos
de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas e generalizada
violação aos direitos humanos. Recentemente, a Lei de Migração (Lei nº 13.445,
de 24 de maio de 2017) ampliou os direitos dos imigrantes e, especialmente,
daqueles solicitantes ou em condição de refúgio, estabelecendo os direitos humanos
como um dos princípios da política migratória. Destaca-se desta lei o repúdio
e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação, a
acolhida humanitária e a não criminalização da migração.

4.2. Direito internacional humanitário

Por mais estranho que possa parecer à primeira vista, a proteção internacional
aos direitos humanos também abrange as normas antigamente denominadas
como direito internacional humanitário, direito da guerra ou direito dos conflitos
armados. O uso da força na sociedade internacional somente é admitido, como
regra, em duas situações específicas: em condições de legítima defesa e quando
autorizado por um órgão especializado, o Conselho de Segurança da ONU. Essas
são as normas que determinam os casos em que os países podem recorrer ao uso
da força em suas ações ou de defesa de suas próprias nações. Elas são encontradas
na Carta da Organização das Nações Unidas.
O direito internacional humanitário disciplina conflitos armados depois
do seu início, tanto internos aos países, quanto internacionais. São normas de
direitos humanos que têm como finalidade limitar ou reduzir os efeitos gravosos
dos conflitos armados. Há várias normas firmadas internacionalmente para regular
tais conflitos. Elas se encontram divididas em quatro eixos principais:

4.2.1. Direito de Genebra: são as normas que protegem aqueles que não participam,
ou deixaram de participar, em um conflito armado. Trata-se da categoria de
pessoas protegidas em um conflito, como a população civil de um país em guerra,
as pessoas feridas e enfermas nos campos de batalha, as pessoas náufragas e as
pessoas prisioneiras de guerra.
38

Kobani, Síria, 2013-


2015. Fotografia: 4.2.2. Direito de Haia: são as normas de direito internacional humanitário que
Gabriel Chaim/DOC regulam o conflito, restringindo os meios à disposição dos combatentes para a
Galeria. Reprodução
condução de suas hostilidades – por exemplo, a proibição de armas químicas e
autorizada pelo autor.
biológicas –, para se evitarem sofrimentos excessivos. Essas normas possuem três
princípios: da humanidade, para que se reduza o sofrimento humano; da
Kobani, Síria, 2013-
necessidade, pelo qual o ataque a um objetivo militar não deve ser gratuito, 2015. Fotografia:
inútil em termos estratégicos; e da proporcionalidade, pelo qual um ataque Gabriel Chaim/DOC
não pode produzir perdas humanas na população civil e danos a bens civis, Galeria. Reprodução
desproporcionais à vantagem militar obtida. autorizada pelo autor.
39

4.2.3. Direito de Roma: regula as consequências da violação ao restante do


direito internacional humanitário. O principal tratado é o Estatuto de Roma, de
1998, que criou o Tribunal Penal Internacional. Basicamente, o Estatuto de Roma
e o funcionamento do Tribunal Penal Internacional verificam, processam e julgam
violadores às normas de direito internacional humanitário.

4.3. Direito Internacional dos Direitos Humanos

São as normas que regulam os direitos humanos garantidos em tempos de


paz e dos quais os indivíduos precisam para realizar plenamente sua existência
como seres humanos, a exemplo dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais, entre outros. As bases do atual direito internacional dos direitos humanos
foram lançadas pela Carta da ONU, de 1945, e pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948.
Isso não significa que inexistiam normas de Direito Internacional dos
Direitos Humanos antes, como a proibição da escravidão no século XIX. O que
não existia era um conjunto sistematizado de normas de direitos humanos que
protegessem, de forma ampla e geral, todo e qualquer indivíduo pelo fato de
constituir-se como ser humano.
Na Carta da ONU, o artigo 1º estabelece, entre os principais objetivos da
ONU, o propósito de promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às
liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, de sexo, de idioma ou
de religião.
A ONU requereu à Comissão de Direitos Humanos, criada em 1946, a
redação de um documento que pudesse mencionar os direitos ausentes na Carta
da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em 1948 não era um
documento jurídico obrigatório, como os tratados o são para países assinantes. Era
tão somente um ideal comum a ser atingido pelos povos e nações. Hoje em dia,
a maioria dos princípios de direitos humanos contidos na Declaração Universal
é considerada obrigatória para os países, na medida em que integra o costume
internacional. Nesse sentido, é o documento que melhor complementa a Carta da
ONU.
40

Kobani, Síria, 2013- 4. 4. Sistemas regionais de proteção aos direitos humanos


2015. Fotografia:
Gabriel Chaim/DOC
Galeria. Reprodução 4.4.1. Sistema Europeu
autorizada pelo autor.

O tratado mais importante no sistema europeu é a Convenção Europeia


para a Proteção dos Direitos do Homem e suas Liberdades Fundamentais, de 1950,
criado no contexto do Conselho da Europa, organização internacional europeia,
em 1949, responsável por garantir direitos políticos e liberdades civis no continente
europeu atualmente, sem ligação com a União Europeia.
São 47 países membros, mais do que o número de componentes da União
Europeia, como são os casos da Rússia e Turquia. Todos os membros do Conselho
da Europa são partes na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do
Homem e suas Liberdades Fundamentais.
Com o Tratado de Lisboa (2007), que entrou em vigor em 2009, a União
Europeia ingressou na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem
e suas Liberdades Fundamentais, somando 48 membros. Assim, as instituições
europeias também têm que respeitar os princípios da convenção.
Em 1994 foi instituída a Corte Europeia de Direitos Humanos, que possui a
competência para julgar casos de violação a direitos humanos nos países membros
da Convenção.
41

A Corte Europeia é formada por 47 juízes: cada país nomeia três pessoas
e uma delas é eleita. Além disso, indivíduos, grupos de indivíduos e ONGs
podem levar petições ao conhecimento da Corte – artigo 34. Nesses casos, devem
comprovar que foram vítimas de violação, para formular uma denúncia. Brasileiros
em Portugal podem buscar auxílio na Corte, por exemplo, já que a vítima não
precisa ter nacionalidade europeia.

4.4.2. Sistema interamericano

Dois tratados são fundamentais para esse sistema: a Carta da Organização


dos Estados Americanos, de 1948, e o Pacto de São José da Costa Rica, de 1969.
Oficialmente, esse pacto é a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que
só recebeu a adesão do Brasil em 1992, após as transformações políticas ocorridas
na década de 1980. Havia grande resistência, no período da ditadura civil-militar no
Brasil, à adesão a esses sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos,
considerando-se as violações que ocorriam em território nacional.
A Carta da OEA foi complementada pela Declaração Americana sobre
os Direitos e Deveres dos Homens (1948). Atualmente, vários princípios da
Declaração Americana sobre os Direitos e Deveres dos Homens são obrigatórios,
por força do costume internacional.
O sistema interamericano de defesa aos direitos humanos conta com dois
órgãos de monitoramento: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a
Corte Interamericana de Direitos Humanos:
• Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Conforme o artigo 106, da Carta da OEA:
Haverá uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos
que terá por principal função promover o respeito e a defesa dos
direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização
em tal matéria. Uma convenção interamericana sobre direitos
humanos estabelecerá a estrutura, a competência e as normas de
funcionamento da referida Comissão, bem como as dos outros
órgãos encarregados de tal matéria.
A Convenção Interamericana é um tratado e seu cumprimento é obrigatório,
mas somente 25, dos 35 países-membros da OEA, o integram. Os Estados Unidos
da América do Norte e o Canadá, por exemplo, não fazem parte.
A Comissão é formada por sete membros, com sede em Washington, nos
EUA, funcionando como um filtro, antes que reclamações referentes à violação
42

de direitos humanos possam chegar ao conhecimento da Corte Interamericana de


Direitos Humanos. Têm legitimidade para levar essas reclamações à Comissão os
indivíduos, os grupos de indivíduos e as ONGs – artigo 44. Não há exigência de
que o reclamante seja a vítima.
Se não for o caso de arquivamento, a Comissão possui poderes para
investigar e requerer informações às partes envolvidas – artigos 48 e 49. Sempre
procura uma solução amigável, porém, se não for encontrada, produz um relatório
com fatos e recomendações, circulando-o entre os Estados envolvidos – artigo 50.
Em prazo de três meses, a questão pode ser levada à Corte Interamericana
de Direitos Humanos. Tem legitimidade para tanto, conforme o artigo 61, a própria
Comissão ou algum Estado parte, o que os indivíduos não podem fazer. A Corte
tem sete juízes e sede em San José, na Costa Rica. A competência para julgamento
depende do consentimento de cada país. Somente poderá ser julgado pela corte o
Estado que se submeter a tal prerrogativa. O Brasil declarou, em 1998, aceitar a
competência da Corte.
• Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos pode emitir sentenças
obrigatórias, com a condenação dos países por meio de indenizações, que podem
ser executadas nos tribunais internos do violador, além de exigir a adequação de
suas leis e práticas administrativas, de forma a eliminar instrumentos de violação
aos direitos humanos. O cumprimento das sentenças é monitorado pela Assembleia
Geral da OEA – artigo 65.
O Brasil foi denunciado e algumas vezes condenado pelo sistema
interamericano de proteção aos direitos humanos. Uma importante denúncia foi
feita junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso de violência
doméstica cometida contra Maria da Penha Maia Fernandes, praticada por seu
então marido, que a atingiu com arma de fogo, entre várias outras violências.
Ao examinar os fatos, a Comissão entendeu que o Estado Brasileiro teve
responsabilidade pelas violações aos direitos da vítima, já que os instrumentos
de investigação e responsabilização penal do agressor foram insuficientes para
proteger os direitos humanos envolvidos e também inexistiu um processo eficiente
contra o então cônjuge, no referente à reparação da vítima e à garantia de sua
segurança, seja física, seja emocional. Devido a tais agressões, Maria da Penha
sofreu paraplegia irreversível e outras sequelas. O Brasil tomou medidas no sentido
de efetivar mecanismos de proteção às vítimas de violência doméstica no País: a Lei
Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006) e a Lei 10.886, de 2004, que acrescentou
ao artigo 129 do Código Penal brasileiro a forma especial de “violência doméstica”.
Tudo isso demonstra como o aparato internacional de proteção aos direitos
humanos pode ter repercussão no âmbito interno dos países.
43

5. Reparações a direitos humanos violados na ditadura:


as Comissões da Verdade

No Brasil, vivemos um período chamado de ditadura civil-militar que


durou 21 anos (1964-1985). Chamamos a nossa ditadura de civil-militar porque
ela contou com o apoio e a participação de civis, de grandes empresas e de grupos
políticos que não compunham os quadros militares da época. Foi um período em
que grandes violações de direitos humanos aconteceram baseadas em violências,
torturas, estupros, desaparecimentos forçados, silêncios, censuras e proibições,
que se materializaram em várias esferas distintas.
Outros países da América Latina também passaram por essas situações e até
hoje se esforçam para promover reparações sobre esse passado. O Brasil, em 2010,
foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a adotar práticas
que reparassem violações a direitos humanos, cometidas durante esse período e
que resgatassem a memória sobre os acontecimentos, que por tanto tempo ficaram
escondidas, visando a esclarecer os abusos cometidos. O resgate à memória tem
o objetivo de revelar coisas que não merecem ser repetidas, ou seja, lembrar para
que “não se esqueça e nunca mais aconteça”. A decisão de 2010 analisava um
caso específico ocorrido no período da ditadura, na região do Araguaia, que ficou
conhecido por Guerrilha do Araguaia. Tal sentença tinha o objetivo de reparar as
vítimas e trazer à tona a memória sobre o caso em foco, podendo ser lida aqui.
A partir desse episódio, um conjunto de iniciativas foi pensado no que se
refere ao Brasil, a fim de reparar não apenas o caso acima narrado, mas recuperar
a história e outras violações acontecidas.
Foi, então, criada a Comissão Nacional da Verdade (CNV), por meio da
Lei 12.528/2011, e outras comissões análogas em âmbito estadual e municipal,
que têm como principal objetivo apurar as graves violações aos direitos humanos,
cometidas entre 1948 e 1988.
Para que servem essas Comissões?
Ao promover o esclarecimento de torturas, mortes, desaparecimentos
forçados, ocultações de cadáveres, em suma, dos fatos e circunstâncias relacionados
a graves violações aos direitos humanos, as Comissões poderiam encaminhar
as informações obtidas aos órgãos públicos competentes, a fim de auxiliar na
localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos,
colaborar para a apuração de violações a direitos humanos, recomendar a adoção
de medidas e políticas públicas para prevenir novas violações, além de promover a
reconstrução da história.
Neste mesmo contexto nasce a Comissão da Verdade em Minas Gerais
(Covemg), que surgiu mediante um projeto de lei apresentado à Assembleia
Legislativa de Minas Gerais, em 2012, pela deputada Liza Prado, transformado na
Lei nº 20.765/2013.
Juntamente com outros instrumentos e medidas voltados à reparação e
ao resgate à memória, as Comissões compõem a Justiça de Transição, que busca
a afirmação do direito à verdade, à memória e à justiça, de forma integrada e
articulada.
A Justiça de Transição e as Comissões da Verdade são objeto do próximo
módulo deste curso!
45

Referências bibliográficas

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Correia. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

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BRASIL. Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para


a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9474.
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BRASIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de


Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm>, acesso em 12/06/2018.

BRASIL. Lei nº 10.886, de 17 de junho de 2004. Acrescenta ao artigo 129 do


Código Penal brasileiro a forma especial de “violência doméstica”. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.886.htm>,
acesso em 12/06/2018.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha: Cria


mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>,
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