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Comissão

Comissão da da
doRelatório
Rio Verdade
Verdade do Rio

Relatório

dezembro | 2015
Comissão da Verdade
doRelatório
Rio
Comissão da Verdade do Rio

Relatório

dezembro | 2015
© 2015 Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio)
Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a
fonte.

COMISSÃO DA VERDADE DO RIO


Álvaro Machado Caldas
Eny Raimundo Moreira
Geraldo Cândido da Silva
João Ricardo Wanderley Dornelles
Rosa Maria Cardoso da Cunha
Vera Ligia Huebra Neto Saavedra Durão

Comissão da Verdade
doRelatório
Rio
Comissão da Verdade do Rio

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Relatório
R585r
Álvaro Machado Caldas
Rio de Janeiro (Estado). Comissão da Verdade do Rio. Eny Raimundo Moreira
Relatório / Comissão da Verdade do Rio. – Rio de Janeiro: CEV-Rio, 2015. Geraldo Cândido da Silva
456 p. João Ricardo Wanderley Dornelles
Rosa Maria Cardoso da Cunha
ISBN 978-85-67728-02-5 Vera Ligia Huebra Neto Saavedra Durão
1. Ditadura militar – Rio de Janeiro 2. Violação de direitos humanos. 3. Relatório final.
Título.

CDD 323.81044 dezembro | 2015


AGRADECIMENTOS
Ao longo de suas atividades, de maio de 2013 até dezembro de 2015,
a Comissão da Verdade do Rio contou com a colaboração de diver-
sas instituições, grupos e indivíduos que auxiliaram e contribuíram
na busca pela verdade. Agradecemos em especial aos atingidos pela
violência de estado; familiares de mortos e desaparecidos; coletivos
e comitês populares por memória, verdade e justiça; instituições de
defesa e promoção de direitos humanos; sindicatos; universidades;
escolas; Comissão Nacional da Verdade; comissões estaduais, muni-
cipais e setoriais da verdade; arquivos públicos; instituições legisla-
tivas, executivas e judiciárias. À Ordem dos Advogados do Brasil e
à Caixa de Assistência do Advogado do Rio de Janeiro agradecemos
pelo apoio e pela estrutura fundamentais para o funcionamento da
Comissão. A CEV-Rio reconhece que as parcerias firmadas foram
imprescindíveis tanto para alcançar os resultados apresentados
neste relatório, quanto para a promoção de um processo participati-
vo, transparente e democrático no curso de seus trabalhos.

COMISSÃO DA VERDADE DO RIO


EXPEDIENTE
Por designação do governo estadual, a Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio) foi integrada por sete membros.
Da posse, em 8 de maio de 2013, até a apresentação deste Relatório Final, em 10 de dezembro de 2015, perma-
neceram Álvaro Machado Caldas; Eny Raimundo Moreira; Geraldo Cândido da Silva e João Ricardo Wanderley
Dornelles. Designados para a composição inicial, mas desligados antes da conclusão dos trabalhos, os membros
Marcello Augusto Diniz Cerqueira (exonerado em 8 de julho de 2014), Wadih Nemer Damous Filho (renunciou
em 15 de maio de 2015) e Nadine Monteiro Borges (se desligou em 5 de agosto de 2015). Rosa Maria Cardoso
da Cunha e Vera Ligia Huebra Neto Saavedra Durão assumiram, respectivamente, em 2 de junho de 2015 e 7
de agosto de 2015, tendo permanecido até o final. Sob a coordenação de seus membros titulares, os trabalhos da
CEV-Rio foram desenvolvidos por um grupo de assessores e pesquisadores, constituído por servidores públicos
nomeados para a Comissão ou cedidos de outros órgãos da administração pública. Também integraram a equi-
pe pesquisadores contemplados pelo edital nº38/2013 do Programa “Apoio ao estudo de temas relacionados ao
direito à memória, à verdade e à justiça relativas a violações de direitos humanos no período de 1946 a 1988”,
da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), e pesquisa-
dores colaboradores que ampliaram o escopo das pesquisas desenvolvidas. A todos eles, a CEV-Rio expressa
o reconhecimento pelo apoio dispensado. Fundamental também para o resultado dos trabalhos desenvolvidos
foi a colaboração das comissões da verdade municipais e setoriais instaladas por todo o Estado, com as quais a
CEV-Rio celebrou acordos de cooperação técnica. A equipe da CEV-Rio encontra-se listada a seguir:
Coordenadores das pesquisas FAPERJ: Angela Moreira; Daniela Silva Fontoura de Barcellos; José
María Gómez; Leonilde Servolo de Medeiros; Marcos Luiz Bretas; Ozanan Vicente Carrara; Vanessa Oli-
veira Batista Berner

Pesquisadores FAPERJ: Abner Sótenos; Adriana de Jesus Garcia Pinto; Adriana Ramos Costa; Ale-
jandra Luisa Magalhães Estevez; Alexandre Bernardino Costa; Alexandre Miguel França; Aline Borghoff
Maia; Aline Melo; Alline Schllarlcher; Américo Freire; Ana Carolina Antão; Ana Carolina Reginatto; Ana
Claudia Diogo Tavares; Ana Lectícia Félix Angelotti; Ana Lima Kallás; Ana Luiza Ramos; Ana Maria Costa;
Annagesse Feitosa; Ana Paula Poll; Ana Vasconcelos Ottoni; André Rocha Carneiro; Andrea Salameia Bru-
xel; Andrea Schettini; Andrea Streva; Angelo Eduardo Duarte de Oliveira; Antonio Sidekum; Ayra Guedes
Garrido; Beatriz Rodrigues Neves da Costa; Bernardo de Paola Bortolotti Faria; Bethânia Assy; Bianca Ca-
sais Machado Guimarães; Carolina Arieira Rosas; Carolina Genovez Parreira; Carolina Gonçalves Alves;
Secretaria Executiva: Virna Virgínia Plastino Caroline Proner; Christiane Itabaiana Martins Romêo; Daniel Chedier Maurell; Delma Pessanha Neves;
Diana Stephan; Dulce Pandolfi; Edgard Bedê; Eduardo Neville Raposo Gameiro Torres; Eleonora Mesquita
Assessoria: Ana Carolina da Cunha Borges Antão; Ana Carolina Grangeia Cardoso; Andrea Bandeira de Ceia; Elisandra Galvão; Elizabeth Linhares; Ellen Mendonça; Erick Sobral Diniz; Fábio Malini de Lima;
Mello Schettini; Antonio Henrique Lago; Caroline Cunha Faria; Denise Assis; Diego Moreira Maggi; Fabio Fabrício Teló; Fernanda Cerny Lucas Corrêa; Fernanda F. Pradal; Fernanda Raquel Abreu Silva; Fernando
de Almeida Cascardo; Lucas Pedretti Lima; Marcelo José Cruz Auler; Natália Cindra Fonseca; Pedro Anto- Filipo Vinciguerra Leite da Silva; Gabriel Bastos; Gabriel Bernardo Corrêa; Gabriela Naves Freitas; Gus-
nio Sarno Bomfim; Vítor de Lima Guimarães tavo das Neves Bezerra; Iby Montenegro de Silva; Isabella Maio; Jean Sales Rodrigues; Jéssica Moreira;
Jorge Luis Rocha; José Luiz Niemeyer dos Santos Filho; Juliana Neuenschwander Magalhães; Katiússia
Assessoria de Comunicação: Renata de Sequeira Sigarro Freire Rodrigues; Larissa da Veiga Martins; Lucas de Abreu Gava; Lenilson Naveira; Letícia Ferreira;
Lígia Nonato dos Santos; Lior Zalis; Lorena Lucas Regattieri; Lucas Teixeira Petitdemange; Lúcia Maria
Assessoria Administrativa: Fernanda Pires Gonçalves Lira; Marta Regina Pinto Pinheiro de Assis; Luciana Boiteux; Luciana Gomes; Luciana Heymann; Luciana Lombardo; Luiz Edmundo Mora-
es; Lusmarina Campos Garcia; Manuel Eugenio Gándara Carballido; Marco Antonio dos Santos Teixeira;
Estagiários: Ana Carolina da Silva Feliciano; Julia Araújo Ferreira da Silva; Juliano de Souza Oliveira Marco Aurélio Vannucchi; Maria Clara de Almeida Leal; Maria Izabel Varella; Maria Paula Miller Duarte;
Patiu; Rebeca Síntique Nunes da Silveira Mariana Graciotti; Mariana Macedo Fernandes da Silva; Mariana Trotta Delalanna Quintans; Marilda
Vilela Iamamoto; Mariana Caldas Pinto Ferreira; Marina do Rosário Silva; Miriam Pires; Natacha Nicaise;
Estagiários Voluntários: Ana Luiza Ramos Fernandes; Angelo Remedio Neto; Bárbara Rodrigues do Natália Fonseca Lopes; Natália Guindani; Natasha Gomes; Ninna de Araújo Carneiro Lima; Patrícia Su-
Espírito Santo; Cairo de Souza Barbosa; Frederico Boghossian Torres; Isadora Libório de Andrade Oliveira; nah; Paulo Fontes; Priscila Cabral Almeida; Rafael José Abreu de Lima; Rafaela Domingos Pereira; Rafaela
Maria Paula Gomes Werneck Rupp; Raphael Jonathas de Lima; Rayanne Medeiros; Rayssa Duarte da Silva; Ricardo Azevedo; Ricardo
Braga; Roberta Maria Gomes; Rodrigo Penutt da Cruz; Rodrigo Torrero; Rogério Barros Sganzerla; Simo-
Design Gráfico: Marcelo Santos de Oliveira ne Cuber Araújo Pinto; Tatiana Silva Fontoura de Barcellos; Tatiane González Barbosa; Thiago da Silva
Pacheco; Vanessa Matheus Cavalcante; Verena Alberti; Vicente Arruda Câmara Rodrigues; Vinicius Silva

Pesquisadores colaboradores: Demian Melo; James Green; João Areas; Juliana Oakim; Marco M. Pes-
tana; Marcos Arruda; Pedro Henrique Pedreira Campos; Natacha Nicaise; Renan Quinalha; Thula Rafaela
de Oliveira Pires
Sumário PARTE IV
A ESTRUTURA DO ESTADO DITATORIAL............................................................................................................. 259
AGRADECIMENTOS.................................................................................................................................................... 7 Capítulo 17 – A CONSTRUÇÃO DA ESTRUTURA DE INFORMAÇÕES ...........................................................................................................................................260
EXPEDIENTE................................................................................................................................................................ 9 Capítulo 18 - A ESTRUTURA JURÍDICA DA REPRESSÃO....................................................................................................................................................................275
APRESENTAÇÃO....................................................................................................................................................... 15 Capítulo 19 - LOCAIS DE PRISÃO E TORTURA ....................................................................................................................................................................................284
PARTE I 1. DESTACAMENTO DE OPERAÇÕES DE INFORMAÇÕES - CENTRO DE OPERAÇÕES DE DEFESA INTERNA ( DOI - CODI ).......288
A COMISSÃO DA VERDADE DO RIO....................................................................................................................... 17 2. DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL ( DOPS/GB ).........................................................................................................................297
Capítulo 1 - AS LUTAS SOCIAIS E OS ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA 3. CASA DA MORTE DE PETRÓPOLIS..................................................................................................................................................................................303
COMISSÃO DA VERDADE DO RIO............................................................................................................................................................................................................. 19 4. 1º BATALHÃO DE INFANTARIA BLINDADA DO EXÉRCITO ( BIB )......................................................................................................................310
Capítulo 2 - O MANDATO LEGAL E AS ATIVIDADES DA COMISSÃO DA VERDADE DO RIO...................................................................................................... 34 5. 1ª COMPANHIA DE POLÍCIA DO EXÉRCITO DA VILA MILITAR ........................................................................................................................318
PARTE II 6. HOSPITAL CENTRAL DO EXÉRCITO...............................................................................................................................................................................323
O GOLPE DE 1964 E A DITADURA........................................................................................................................... 51 7. BASE AÉREA DO GALEÃO.....................................................................................................................................................................................................328
Capítulo 3 - ANTECEDENTES E O GOLPE............................................................................................................................................................................................... 52 8. INSTITUTO PENAL CÂNDIDO MENDES ( PRESÍDIO ILHA GRANDE )..............................................................................................................331
Capítulo 4 - A DITADURA COMO IMPLEMENTAÇÃO DE UM MODELO DE DESENVOLVIMENTO............................................................................................. 62 9. COMPLEXO PENITENCIÁRIO FREI CANECA..............................................................................................................................................................335
PARTE III 10. INSTITUTO PENAL TALAVERA BRUCE........................................................................................................................................................................338
VIOLÊNCIA E TERROR DO ESTADO........................................................................................................................ 75 11. ESTÁDIO CAIO MARTINS...................................................................................................................................................................................................342
Capítulo 5 - CONFLITOS E REPRESSÃO NO CAMPO........................................................................................................................................................................... 76 12. BASE NAVAL DA ILHA DAS FLORES.............................................................................................................................................................................345
Capítulo 6 - REPRESSÃO AOS TRABALHADORES NA CIDADE.......................................................................................................................................................... 96 13. DEPARTAMENTO AUTÔNOMO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - DOPS/RJ....................348
Capítulo 7 - MILITARES PERSEGUIDOS.................................................................................................................................................................................................108 14. FORTALEZA DE SANTA CRUZ..........................................................................................................................................................................................350
Capítulo 8 - A DITADURA NAS FAVELAS CARIOCAS ..........................................................................................................................................................................116 15. CENTRO DE ARMAMENTO DA MARINHA..................................................................................................................................................................353
Capítulo 9 - COLORINDO MEMÓRIAS: DITADURA MILITAR E RACISMO ....................................................................................................................................125 16. NAVIOS - PRISÃO.....................................................................................................................................................................................................................356
Capítulo 10 - MULHERES NA LUTA CONTRA A DITADURA: O TERROR DO ESTADO E A VIOLÊNCIA SEXUAL ...............................................................137 17. YPIRANGA FUTEBOL CLUBE............................................................................................................................................................................................359
Capítulo 11 - HOMOSSEXUALIDADES, REPRESSÃO E RESISTÊNCIA DURANTE A DITADURA ............................................................................................149 18. ANTIGA DELEGACIA DA POLÍCIA CIVIL DE MACAÉ.............................................................................................................................................361
Capítulo 12 - VOZES DESPERTADAS.......................................................................................................................................................................................................160 19. INVERNADA DE OLARIA.....................................................................................................................................................................................................363
Capítulo 13 - INVENTÁRIO DE CICATRIZES..........................................................................................................................................................................................168 20. CASA DE SÃO CONRADO....................................................................................................................................................................................................368
MÁRIO ALVES..................................................................................................................................................................................................................................170 21. SÍTIO NÃO - IDENTIFICADO DE SÃO JOÃO DE MERITI ......................................................................................................................................370
JOSÉ ROBERTO SPIEGNER.......................................................................................................................................................................................................177 PARTE V
JORGE LEAL GONÇALVES PEREIRA.....................................................................................................................................................................................180 AUTORIA DAS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS......................................................................... 375
RUBENS PAIVA...............................................................................................................................................................................................................................183 Capítulo 20 – AUTORES DAS GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS SEGUNDO A CEV-RIO..................................................................................376
MARILENA VILLAS BOAS PINTO E MÁRIO DE SOUZA PRATA...............................................................................................................................191 Capítulo 21 - RELAÇÃO DE AUTORES DE GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS......................................................................................................388
STUART EDGARD ANGEL JONES...........................................................................................................................................................................................195 PARTE VI
RAUL AMARO NIN FERREIRA.................................................................................................................................................................................................201 O QUE RESTA DA DITADURA................................................................................................................................ 423
HONESTINO MONTEIRO GUIMARÃES...............................................................................................................................................................................209 Capítulo 22 - O LEGADO DO TRAUMA NAS GERAÇÕES QUE SE SEGUIRAM..............................................................................................................................424
FERNANDO SANTA CRUZ E EDUARDO COLLIER ........................................................................................................................................................213 Capítulo 23 - A REPETIÇÃO DAS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS......................................................................................................................................431
Capítulo 14 - CHACINAS............................................................................................................................................................................................................................216 Capítulo 24 – CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES............................................................................................................................................................................440
Capítulo 15 - ATENTADOS À BOMBA......................................................................................................................................................................................................225 CONCLUSÕES.................................................................................................................................................................................................................................440
Capítulo 16 - MORTOS E DESAPARECIDOS .................................................................................................................................................................................242 RECOMENDAÇÕES.......................................................................................................................................................................................................................442
APRESENTAÇÃO
Comissões da Verdade são instituições que garantem às vítimas de graves violações de direitos hu- vante pois reconta a história da barbárie e violência do passado, conectando esta violência com suas formas
manos, em grande parte crimes de lesa-humanidade, o direito de tornarem públicas as atrocidades remanescentes.
que sofreram e de identificarem seus algozes. Permitem que familiares de pessoas atingidas possam
saber o que ocorreu com seus entes queridos. Possibilitam à sociedade conhecer o contexto histórico e As Comissões da Verdade beneficiam a sociedade quando funcionam com outras instituições que compõem
os motivos que determinaram o exercício da violência, inscrita em seu corpo social. a Justiça de Transição. Isto significa que Comissões reclamam a judicialização das violações que revelam e
exigem que suas verdades sejam reafirmadas como verdade judicial. Elas fazem parte de um processo no qual
A satisfação destes direitos, por si só, já constituiria legitimação suficiente para a criação de mais de se interpenetram os direitos à memória, à verdade, à justiça e à reparação. O caminho a seguir é memória e
uma centena de Comissões da Verdade em todo o mundo, desde o início da década de 70. Mas, sobre- verdade, mais justiça e reparação.
tudo, cabe a elas um papel político e educacional de grande valor para a democracia. Benéfico não só
para os que sobreviveram aos fatos, mas especialmente para as novas gerações: o papel de reescrever No Brasil, após o golpe de 1964, demoramos 50 anos para criar Comissões da Verdade. Tivemos não somente
a história, contada até então de forma deturpada pelos que excutaram as violações. Uma história uma distensão gradual da ditadura pelos militares no poder, mas também uma reconstrução gradual da demo-
mentirosa e omissa, indigna de figurar nos livros e na memória de qualquer país. Dessa forma, a cracia pelos que fizeram a transição. As vozes das vítimas foram abafadas por um longo período para que não
função fundamental das Comissões da Verdade excede o reconhecimento de direitos individuais e co- denunciassem, entre outras questões, a participação dos civis na ditadura, inclusive daqueles que conduziam
letivos. Elas ampliam o movimento pela democratização das sociedades em que vivemos. Radicalizam a transição. O silenciamento dos atingidos atrasou a luta pela verdade e, em especial, por justiça.
este movimento pela exposição da voz e da dor das vítimas.
Em seu funcionamento, a CEV-Rio investigou questões de natureza teórica, histórica e factual, com ênfase
A pauta do que se designa como Justiça de Transição, integrada por concretizações do direito à me- nas graves violações de direitos humanos, na identificação de seus autores e na exposição de seus cenários e
mória, à verdade, à reparação e à justiça, na qual se inserem as Comissões da Verdade, certamente circunstâncias. Pôs em relevo o depoimento das vítimas e as políticas repressivas impostas a um conjunto de
não assegura a completa democratização da sociedade. Mas as instituições da democracia represen- grupos e atores sociais. Realizou suas atividades em constante relação com as vítimas e com a sociedade civil.
tativa, como é entendida no mundo ocidental, também não as asseguram. A construção - contínua e
interminável - da democracia requer diferentes implementos e variadas lutas. Exige a possibilidade Apresenta-se aqui o resultado dos trabalhos da Comissão da Verdade do Rio, com a esperança de que este re-
de participação de todos, da coexistência de diferentes propostas e partidos, da implementação de di- latório represente um passo relevante na construção do Nunca Mais.
reitos sócioeconômicos e da garantia dos direitos dos grupos oprimidos por questões étnicas, raciais,
religiosas e de gênero. Nesta construção, a atuação das Comissões da Verdade é extremamente rele-

Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2015

ÁLVARO MACHADO CALDAS


ENY RAIMUNDO MOREIRA
GERALDO CÂNDIDO DA SILVA
JOÃO RICARDO WANDERLEY DORNELLES
ROSA MARIA CARDOSO DA CUNHA
VERA LIGIA HUEBRA NETO SAAVEDRA DURÃO
PARTE I
A COMISSÃO DA
VERDADE DO RIO

Foto: Bruno Marins


A Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio) foi criada mediram esforços para exigir do Estado brasileiro a são apenas algumas das marcas da ditadura que fatos para que as milhares de pessoas vitimadas não
pela lei 6.335/2012 para esclarecer as graves viola- necessária investigação, responsabilização e repara- persistem no nosso cotidiano. Espera-se que suas fossem esquecidas. Passados mais de 30 anos do fim
ções de direitos humanos praticadas pelo Estado, no ção dos crimes perpetrados no passado. páginas possam ajudar a fortalecer as lutas políti- do regime militar, estas lutas continuam em curso e
período entre 1946 e 1988, contribuindo para efeti- cas que, ainda hoje, enfrentam o legado autoritário se tornam cada vez mais necessárias para a compre-
var o direito à memória e à verdade histórica. Iniciou A homenagem estende-se, também, a todas as ví- do regime militar, abrindo caminho para o avanço ensão da relação entre a violência do passado e a do
seus trabalhos em 8 de março de 2013, concluindo-os timas da ditadura esquecidas pela história oficial: da democracia. presente.
em 13 de novembro de 2015. Ao longo de dois anos e os indígenas presos, torturados, mortos e expulsos
oito meses, a CEV-Rio dedicou-se ao esclarecimento de suas terras ancestrais; os moradores de favelas, Capítulo 1 - AS LUTAS SOCIAIS E OS A partir dos anos setenta, presos políticos, militan-
de casos de prisão ilegal, tortura, morte, desapare- violentamente removidos de suas casas por conta de ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA tes exilados, familiares de mortos e desaparecidos,
cimento forçado e ocultação de cadáver, ocorridos no políticas urbanas excludentes; as mulheres humi- COMISSÃO DA VERDADE DO RIO advogados, jornalistas, religiosos, intelectuais, ar-
estado do Rio de Janeiro, especialmente a partir do lhadas, violentadas e discriminadas; gays, lésbicas, tistas, sindicalistas, estudantes, camponeses, entre
golpe de 1964, e procurou identificar as estruturas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros As lutas por memória, verdade e justiça no Rio muitos outros brasileiros e brasileiras desafiaram a
os locais e as instituições relacionadas às sistemáti- submetidos a forte censura e violenta repressão por de Janeiro e no Brasil começaram muito antes da recusa do governo em admitir a prática de graves
cas violações de direitos humanos. forças policiais; homens e mulheres negros que, de- criação da CEV-Rio. Os trabalhos da Comissão be- violações de direitos humanos. O cerceamento de in-
vido à cor de sua pele e às denúncias contra o racis- neficiaram-se dos esforços anteriores em registrar formações e a difusão do medo não impediram que
A instalação da CEV-Rio representa um importan- mo foram monitorados e perseguidos pelos órgãos e esclarecer as violações de direitos humanos per- as famílias dos atingidos pelo terror de Estado se
te passo no longo caminho de produção da memória repressivos; camponeses que tiveram suas vidas e petradas no passado recente. Destacam-se algumas mobilizassem para denunciar os crimes praticados
e de construção da verdade sobre a ditadura mili- suas terras usurpadas pelos interesses dos grandes iniciativas promovidas pelas vítimas, familiares e contra seus entes queridos. Missas, cartas endere-
tar brasileira. Este percurso tem sido trilhado com latifundiários, apoiados pelos governos militares; e organizações de direitos humanos, e por instâncias çadas às autoridades e campanhas internacionais
os incansáveis esforços de ex-presos e perseguidos todos os trabalhadores e trabalhadoras, submetidos do Estado brasileiro que, após pressão de movimen- foram algumas das formas de resistência exercidas,
políticos, de familiares de mortos e desaparecidos a arrocho salarial, flexibilização das legislações tra- tos sociais, passaram a reconhecer torturas, assas- fundamentais para tornar públicas as atrocidades
e de uma juventude militante que tomou para si a balhistas e mecanismos de concentração de renda, sinatos e desaparecimentos forçados praticados por cometidas nos centros de prisão e tortura. Foram
luta por memória, verdade e justiça em nosso país. impostos pelo projeto econômico de cunho empresa- agentes estatais. emblemáticas as missas realizadas na Catedral da
A CEV-Rio é, portanto, o resultado de lutas sociais rial-militar, implementado com o golpe de 1964. Sé, em São Paulo, organizadas em homenagem à
anteriores e de movimentos de resistência que, até Da luta dos familiares às Diretas Já morte de alguns militantes, como a de Luiz Eduardo
hoje, buscam superar o legado de violência deixado Este relatório procura documentar as violações de da Rocha Merlino em 1971, de Alexandre Vanucchi
pela ditadura. direitos humanos cometidas durante a ditadura, A resistência à ditadura militar teve início nos pri- Leme em 1973 e de Vladmir Herzog em 1975, que
conferindo centralidade à memória das vítimas e meiros dias do golpe de 1964 e assumiu, ao longo contaram com a presença de milhares de pessoas.
O presente relatório presta homenagem aos homens dos grupos sociais atingidos pela violência estatal. dos 21 anos do regime de exceção, as mais variadas
e mulheres que ousaram lutar por uma sociedade Denuncia ainda as continuidades de um passado formas. Contudo, foi somente a partir de meados da Também expressivas foram as cartas e telegramas
mais justa e igualitária e que, por conta de seus ide- que se atualiza constantemente no presente e evi- década de setenta que movimentos, grupos, associa- enviados por familiares aos presidentes ditadores e
ais e atuações políticas, foram perseguidos, presos, dencia os obstáculos para a efetivação do Nunca ções e indivíduos passaram a se organizar em torno às autoridades militares, cobrando informações so-
torturados e mortos pelo Estado brasileiro; que arris- Mais. As recentes intervenções das Forças Armadas da luta por verdade, memória e justiça dos crimes bre a morte ou o desaparecimento de algum parente
caram suas vidas denunciando as torturas sofridas no espaço urbano, a implementação de políticas de praticados pela ditadura, objetivando esclarecer as ou companheiro. Um exemplo é a carta endereçada
em dependências militares e centros clandestinos de segurança pública guiadas pela lógica de combater reais circunstâncias das prisões ilegais, torturas, a um general não identificado na qual Mariana La-
prisão; que seguem buscando os restos mortais de um “inimigo interno”, a criminalização dos movi- desaparecimentos forçados e assassinatos; apurar a nari, mãe de Raul Amaro Nin Ferreira, cobra expli-
seus filhos, filhas, irmãos, irmãs, sobrinhos, amigos mentos sociais e o monopólio dos grandes grupos de responsabilidade dos agentes estatais envolvidos na cações sobre a morte do filho:
e companheiros; e que, nos últimos trinta anos, não comunicação, entre uma série de outras questões, prática destes crimes; e preservar a memória desses

18 19
interior do DOI-CODI do II Exército e a decisão do de tortura no período de dezembro de 1968 a julho líticos de oposição e presos e presas políticas, os fa-
“ Justamente hoje, 12 de Novembro, completam-se 3 meses Juiz Jorge Fracquer Scartezini, da 5ª Vara da Justi- de 1972. miliares tiveram importância central na luta pela
da morte de meu filho mais velho, engenheiro Raul Amaro ça Federal paulista, proferida em 1980, culpando o anistia, intensificada a partir de 1974, com a “dis-
Nin Ferreira que trabalhava, a convite, junto ao gabinete do Estado Brasileiro pela prisão ilegal, tortura e morte A Comissão Interamericana de Direito Humanos, tensão política” do governo do General Geisel. Em
Ministro da Indústria e do Comércio. Tinha 27 anos e foi pre- do operário Manoel Fiel Filho, na sede do DOI-CO- por sua vez, recebeu, entre 1969 e 1977, ao menos 77 1975, teve início, em São Paulo, o Movimento Femi-
so por acaso, numa batida da polícia na rua, ao voltar de DI de São Paulo, em 1976. denúncias de violações de direitos humanos contra o nino pela Anistia (MFA), idealizado por Terezinha
uma festa, na madrugada de 1. de Agôsto; no dia 12 de Agôsto Brasil4, apesar de o país ainda não ser, à época, sig- Zerbine (esposa de um militar cassado), e posterior-
morreu no Hospital Central do Exército. Não morreu de morte Em razão da violenta repressão e da censura que natário da Convenção Americana sobre Direitos Hu- mente difundido por todo o país.
natural, mas foi assassinado: seu corpo conservava marcas de caracterizaram os anos setenta, as denúncias con- manos (ou Pacto de São José da Costa Rica). Destas,
sevícia, suas coxas formavam um hematoma inteiriço... Quem tra a ditadura ganharam maior visibilidade quando somente 20 foram aceitas como casos concretos, dos De início organizado por mulheres, o movimento
é o responsável por sua morte? (…) Quem o supliciou afinal? conseguiram ultrapassar as fronteiras nacionais. quais apenas um não se referia à prática de tortura, pela anistia ganhou força em diversos setores da
(…) Subscrevo-me como uma mãe brasileira, profundamente Foram determinantes, nesse contexto, a atuação de desaparecimento forçado, prisão arbitrária e assas- sociedade brasileira e passou a mobilizar grupos
atingida, decepcionada e angustiada1.” militantes exilados e banidos do país. Em 1969, por sinato5. O primeiro caso em que a CIDH decidiu que como movimento estudantil, Movimento Democráti-
exemplo, Miguel Arraes, ex-governador de Pernam- o Estado era responsável pelas violações de direitos co Brasileiro - MDB (partido de oposição consentida
À época, algumas ações judiciais2 foram ajuizadas buco, criou a Frente Brasileira de Informações, co- humanos alegadas, publicado em 1973, foi o do líder ao governo militar), setores progressistas da Igreja
na esfera cível por familiares com o intuito de res- nhecida como “Front”, boletim mensal que circulava sindical Olavo Hansen, preso, torturado e assassi- Católica e de profissionais liberais. O ano de 1977
ponsabilizar o Estado brasileiro pelas torturas e em vários países, denunciando as ações dos gover- nado no interior do DOPS de São Paulo. O governo, marcou a retomada das manifestações públicas em
assassinatos e obter informações sobre as circuns- nos militares. Já em 1971 foi divulgado o documen- contudo, negou-se a investigar o crime. Em regra, a defesa das liberdades democráticas nas principais
tâncias da morte de militantes e o destino de seus tário Brazil: a report on torture, com depoimentos litigância jurídica exercida no plano internacional, capitais do país. Com a palavra de ordem “Libertem
corpos. A via judicial, contudo, apresentou muitas de ex-presos políticos, exilados no Chile após serem apesar da pouca repercussão, contribuía para gerar nosso presos! Agora, já!”, estudantes protestavam
dificuldades para as famílias, frente à excessiva de- libertados no sequestro do embaixador suíço no Bra- algum nível de constrangimento moral e político contra a prisão e tortura de presos políticos e, com
mora do Poder Judiciário, à falta de acesso à infor- sil, no qual relatavam torturas sofridas, a condição para o Estado brasileiro. outros setores da sociedade, criaram os “Comitês
mação e às constantes negativas apresentadas pelo de exilados e defendiam a necessidade de se dar con- Primeiro de Maio pela Anistia”, que abriram cami-
Estado, que se recusava a reconhecer os crimes de tinuidade à luta política no Brasil. A partir de meados da década de setenta, estrutu- nho para uma campanha nacional pela anistia6.
seus agentes. Duas exceções merecem destaque: a rou-se a Comissão de Familiares de Mortos e De-
sentença, proferida pelo juiz federal Márcio José de Ainda no plano internacional, destacaram-se as de- saparecidos Políticos (CFMDP), após uma série de Posteriormente, em fevereiro 1978, foi criado, no
Moraes, da 7ª Vara da Justiça Federal de São Paulo, núncias promovidas por entidades de direitos hu- encontros e reuniões entre familiares de vítimas da Rio de Janeiro, o Comitê Brasileiro pela Anistia
em 27 de outubro de 1978, na vigência do governo do manos, como a Anistia Internacional e a Comissão ditadura, ocorridos na Comissão Justiça e Paz, em (CBA), integrado por advogados, familiares, ami-
General Ernesto Geisel, responsabilizando a União Interamericana de Direito Humanos (CIDH), órgão São Paulo, e nos escritórios dos advogados dos mi- gos de presos e exilados políticos e ex-presos políti-
Federal pela prisão e morte de Vladmir Herzog no da Organização dos Estados Americanos (OEA). litantes, como o de Modesto da Silveira, no Rio de cos recém-libertos, contando com representação em
1. Documento disponível em: FERREIRA, Felipe Nin; FERREIRA, Raul Nin; Desde o final dos anos 1960, a Anistia Internacional Janeiro. A luta das famílias desenvolveu-se, desde diversos estados e em outros países. Reivindicando
ZELIC, Marcelo. Raul Amaro Nin Ferreira: Relatório. Rio de Janeiro:Ed. PUC-
-Rio, 2014. p. 31-32. promoveu campanhas em defesa dos presos políticos o início, em torno da coleta de informações e de or- uma anistia ampla, geral e irrestrita, os CBAs pro-
2. Entre as ações judiciais ajuizadas à época, destacam-se: ação cível pro- e divulgou torturas e assassinatos praticados pelo ganização de dossiês de militantes presos, mortos curaram reorganizar os movimentos sociais pela
posta por Elizabeth Chalupa Soares, viúva de Manoel Raimundo Soares em
1973; ação cível proposta em 1979 por Mariana Lanari Ferreira, mãe de Raul regime militar e publicou em 1972 o relatório Report ou desaparecidos. Em conjunto com advogados, po- redemocratização e popularizar a bandeira de luta
Amaro Nin Ferreira, morto após ser torturado no DOI-CODI/RJ e no HCE;
ação cível proposta em 1979 por Dilma Borges Vieira, esposa de Mário Alves on Allegations of Torture in Brazil3 (Acusações de 4. Somente entre 1969 e 1970 foram enviadas 40 petições versando sobre vio- em torno, entre outras questões, do esclarecimento
de Souza Vieira; ação cível proposta em 1983 por Felícia Soares, esposa de lações de direitos humanos praticadas pelo Estado brasileiro. Ver: Informes
Ruy Frazão Soares, militante do PCB desaparecido em 1974. (TELES, Jana- Tortura no Brasil), no qual analisou as denúncias anuais da CIDH. Disponíveis em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/anu- das torturas, mortes e desaparecimentos, da liber-
ína de Almeida Teles. Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e a ales.asp.
luta por “verdade e justiça”no Brasil. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladmir 5. SANTOS, Cecília MecDowell. Memória na Justiça: A mobilização dos di- 6. ARAUJO, Maria Paula. Uma história oral da anistia no Brasil: Memória,
(org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 3. ANISTIA INTERNACIONAL. Reports on allegation fo torture in Brazil. Lon- reitos humanos e a construção da memória da ditadura no Brasil. In: Revista Testemunho e Superação: In: MONTENEGRO, A.; RODEGHERO, C.; ARAUJO,
2010. p. 253-298). dres: Amnesty International Publication, 1972. Crítica de Ciências Sociais. n. 88, 2010. M. Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil. p. 53-96.

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tação dos presos políticos, da devolução dos restos como Leonel Brizola, Miguel Arraes e Luis Carlos em 2 de agosto de 1979, sendo “concedida anistia a
mortais das vítimas desaparecidas, da revogação Prestes, não foram contempladas. Tais mudanças todos quantos, no período compreendido entre 02 de
da Lei de Segurança Nacional e da responsabiliza- possibilitaram a libertação de alguns presos políti- setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, comete-
ção dos agentes estatais envolvidos em violações de cos e o retorno de militantes ao país, mas estavam ram crimes políticos ou conexo com estes”.
direitos humanos7. longe de encerrar a luta pela anistia. Como relata
Geraldo Cândido, sindicalista engajado na luta con- Contrariando reivindicações dos CBAs e dos setores
A luta pela anistia foi encampada, no final da dé- tra a ditadura: progressistas da sociedade, a lei excluiu da anis-
cada de setenta, por presos políticos, que, de den- tia todos os condenados pelos chamados “crimes de
tro dos presídios, manifestaram-se em repúdio ao “ Nós fizemos muitas passeatas, era sempre nos finais da sangue” (terrorismo, assalto, sequestro e atentado
projeto de anistia parcial, então defendida pelo go- tarde. Essa época eu já estava no metrô, já tinha direito pessoal) e criou a figura do “crime conexo”, compre-
verno militar. Em verdade, na condição de vítimas, sindical, e trabalhava no centro da cidade. Ainda não esta- endido como “crimes de qualquer natureza relacio-
sobreviventes e testemunhas de graves violações de va liberado não, que ainda não tinha o sindicato. Tinha a nados com crimes políticos ou praticados com moti-
direitos humanos, os presos políticos já travavam, associação, mas eu trabalhava ali no centro, na Presidente vação política”10. Isto terminou beneficiando agentes
há pelo menos quinze anos, uma dura luta de resis- Vargas, quando saia, cinco horas, eu vinha para as manifes- estatais perpetradores das torturas, assassinatos e
tência dentro dos cárceres, nem sempre levada ao tações pela anistia. A polícia vinha e dissolvia a manifesta- desaparecimentos forçados. Na interpretação con-
conhecimento da população. Representativos dessa Presos políticos no pátio do Presídio Frei Caneca. Em pé: Paulo Roberto ção pela anistia na base do cassetete e da bomba de gás. Na servadora da lei, crimes praticados por policiais ou
Jabur, Gilney Viana, Carlos Alberto Sales, Jesus Parede Soto, Jorge Santos
luta foram o abaixo-assinado, conhecido como “Ba- Odria, Jorge Raymundo, Antonio Mattos e Perly Cipriano. Sentados: Cinelândia, a gente ia, às vezes saia em passeata, ia até na militares ficaram imunes à jurisdição penal. A Lei
gulhão”, firmado por 35 presos políticos de São Pau- Paulo Henrique Lins, Alex Polari, Nelson Rodrigues, Manoel Henrique Assembleia Legislativa, fazia a chamada dos mortos, com a de Anistia foi recebida como uma vitória parcial
Pereira, José Rezende e Helio da Silva.
lo, enviado ao presidente do Conselho Federal da Crédito: Acervo Exposição Fotográfica 30 anos de luta pela anistia no PM no nosso encalço.Você imagina só, já em 1979. Pela anis- pelos movimentos sociais. Nas palavras de Suzana
OAB, relatando violações de direitos; o “Documento Brasil da Comissão de Anistia tia, a nossa luta é para garantir o retorno dos companhei- Lisboa, ex-integrante da Comissão Especial sobre
sobre a Justiça Militar”, no qual 26 presos políticos ros, uma lei para beneficiar os que estavam no exílio, e os Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP):
do Rio de Janeiro analisavam o papel da Justiça No final da década de setenta, o grito pela anistia

aqui no Brasil que foram presos, enfim8.”
Militar na legitimação da tortura, dirigido à OAB ampla, geral e irrestrita tomava as ruas, as univer- Desde o primeiro momento a gente denunciou que aquela
em 1976; e o manifesto “Nosso Testemunho”, com sidades, os jornais, os sindicatos, os presídios e os Em 1979, eram muitos projetos de anistia que esta- lei era parcial, era restrita, que os torturadores não estavam
relatos individuais e coletivos de tortura, assinado movimentos sociais, que unidos exigiam a volta da vam em discussão no Congresso Nacional. A princi- anistiados. Porque se excetuavam dos crimes conexos aqueles
por presos políticos do Complexo Frei Caneca, no democracia e a restituição dos direitos civis e políti- pal divergência consistia na abrangência de quem que tinham sido condenados pelos chamados crimes de san-
Rio de Janeiro, em 1979. cos. Fruto da pressão social, em outubro de 1978, o tinha direito a ela. O projeto vitorioso, que selou o gue, então os nossos, que estavam presos, condenados pelo cri-
AI-5 foi revogado, restituindo-se o direito ao habeas controle dos militares no processo de transição de- me de sangue, também não podiam... também teriam que ser
As greves de fome também constituíam importantes corpus e, em dezembro, a Lei de Segurança Nacional mocrática brasileiro, previa uma anistia de caráter anistiados. Eles não foram. Muitos ficaram na cadeia, saíram
formas de resistência. Ganhou destaque a Greve Na- foi reformada, de modo a extinguir a pena de morte e parcial e “recíproca”: beneficiou parcialmente os opo- um ano depois, saíram em liberdade condicional, em função
cional de Fome, realizada em prol da anistia, iniciada de prisão perpétua, a diminuir a pena de alguns dos sitores do regime e irrestritamente os torturadores da reformulação da Lei de Segurança Nacional que atenuou
em 22 de julho de 1979, no Presídio Milton Dias Mo- crimes nela previstos e a determinar o recolhimen- 9
. Proposto pelo presidente, General João Batista Fi- as penas; então, anistia parcial, restrita, não trouxe de volta
reira, no Complexo Frei Caneca. A ação, que durou 32 to dos presos políticos em local diverso do destinado gueiredo, o projeto resultou na lei 6.683, sancionada os desaparecidos, não voltaram nem na forma de um atestado
dias, obteve a adesão de mais de 50 presos políticos, aos presos comuns, passando a reconhecer a exis- de óbito. Isso era uma frase que a gente dizia. Os desapareci-
8. Entrevista com Geraldo Cândido em 7 de abril de 2015. Projeto de Pesqui-
detidos em diferentes locais do país, e alcançou ampla tência de presos políticos no Brasil. Outra importan- sa: Arqueologia da reconciliação: formulação, aplicação e recepção de polí- dos não voltaram nem na forma de um atestado de óbito11.”
ticas públicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditadura
repercussão nas mídias nacionais e internacionais. te conquista foi a revogação, em dezembro de 1978, militar. CPDOC/Fundação Getúlio Vargas. 10. Artigo 1º, § 1º da Lei 6.683 de 1979.
do decreto de banimento de 126 exilados. Contudo, 9. TELES, Janaína de Almeida. Disputas pela Interpretação da Lei de
Anistia de 1979. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/
11. Entrevista com Suzana Lisboa em 15 de outubro de 2014. Projeto de Pes-
quisa: Arqueologia da reconciliação: formulação, aplicação e recepção de po-
7. Ver: Programa Mínimo de ação do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). pessoas consideradas “indesejáveis” pelos militares, search?q=cache:yq2gjcbStvIJ:www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/ar- líticas públicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditadura
Disponível em: http://www.gedm.ifcs.ufrj.br/upload/documentos/101.pdf. ticle/viewFile/18/15+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br&client=safari. militar. CPDOC/Fundação Getúlio Vargas.

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A comemoração também não se estendeu às famí- tornava pública a existência do centro clandestino No início da década de 1980, a sociedade brasileira presidente e vice-presidente da República, respec-
lias dos mortos e desaparecidos políticos. Para elas, de prisão e tortura, montado pelo Exército brasilei- reconquistava seus espaços políticos. Às denúncias tivamente. A escolha marcou um processo de “ne-
a única alternativa oferecida foi um “atestado de ro na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro. Em 3 de dos familiares e ex-presos somavam-se as múltiplas gociação pelo alto para a sucessão presidencial”14 e
paradeiro ignorado” ou de “morte presumida”, nos fevereiro de 1981, Inês conseguiu identificar a casa lutas pela redemocratização do país. Surgiam novos evidenciou a intenção dos setores militares e conser-
casos de vítimas desaparecidas, sem que implicasse que serviu de aparelho para a repressão. movimentos e se reconstruíam antigas pautas, como vadores de manter a transição democrática sob con-
qualquer esclarecimento por parte do Estado. Maria as organizações de favelas e de bairros, as comis- trole. Com a morte de Tancredo Neves antes mesmo
Amélia Teles, integrante da CFMDP, expressa a de- Importante ação dos familiares, no final de 1979, foi sões de saúde, o movimento de mulheres, de negros, de tomar posse, José Sarney assumiu a presidência.
cepção vivenciada pelos familiares: a organização de um dossiê relatando os crimes pra- contra a carestia e o movimento estudantil. Naquele Em 1985, foi convocada Assembléia Nacional Cons-
ticados pela ditadura, apresentado no II Congresso contexto, contudo, o protagonismo na retomada das tituinte que, instalada em 1º de fevereiro de 1987,
“ E os desaparecidos? Porque todo mundo voltou. Todo mun- pela Anistia, em Salvador, ampliado e editado pela manifestações públicas foi assumido pelos traba- promulgou dia 20 de outubro de 1988 a nova Cons-
do voltou, mas os desaparecidos... Cadê notícia? (…) Aí, nos Assembléia Legislativa do Rio de Grande do Sul em lhadores. Em maio de 1978, metalúrgicos do ABC tituição Federal.
anos 1980, quando termina a anistia, nós ficamos sozinhos e 1984, contemplando o caso de 339 vítimas fatais da paulista iniciaram a primeira greve do país após a
nós fomos procurar articular com a América Latina, com es- ditadura, dos quais 144 permaneciam desapareci- edição do AI-5. Entre 1979 e 1980, o movimento gre- Da redemocratização à instituição da
ses outros familiares. E esses outros familiares, principalmen- das. Em 1980, familiares organizaram a primeira vista espalhou-se pelo país. Com o fim do bipartida- Comissão Nacional da Verdade
te da Argentina, é que nos ensinaram esse negócio de verdade caravana de busca dos restos mortais dos desapa- rismo em 1980 foi fundado o Partido dos Trabalha-
e justiça nos anos 1980. (…) Então a gente foi pautado pelas recidos da Guerrilha do Araguaia, contando com o dores (PT), acompanhado da criação de importantes Com a posse de José Sarney no início de 1985, dava-
duas palavrinhas, verdade e justiça. (…). Nem com atestado apoio da Igreja Católica. entidades sindicais13. -se por encerrado o período da ditadura militar. Ape-
de óbito nós recebemos noticia dos desaparecidos. Nenhum sar do retorno à ordem constitucional democrática,
atestado de óbito. Essa declaração de ausência era ridícula. Frente ao silêncio e à impunidade, promovidos pela Em 1984, milhões de pessoas exigiram a volta das o acerto de contas com o passado estava longe de
Ridícula, uma desconsideração muito grande com os familia- Lei de Anistia, em fevereiro de 1982, vinte e dois fa- eleições diretas para Presidente da República na se concretizar. Em 1985, foi fundado, no Rio, o Gru-
res e resolvia muito pouco12.” miliares de desaparecidos da Guerrilha do Araguaia campanha “Diretas Já”. Em 2 de março do ano ante- po Tortura Nunca Mais (GTNM), integrado por ex-
recorreram ao Poder Judiciário a fim de localizar os rior, o deputado federal Dante de Oliveira (PMDB) -presos e perseguidos políticos, familiares, estudan-
Nos anos posteriores, a luta por verdade e justi- restos mortais e obter informações sobre a operação apresentou ao Congresso Nacional a emenda cons- tes e militantes de direitos humanos. Desde então, o
ça foi fortalecida pelos testemunhos de ex-presos realizada pelo Exército. O processo durou mais de titucional que restabeleceria o voto popular direto GTNM tem se destacado na luta pela investigação,
e perseguidos políticos, agora em liberdade. Em 20 anos, tendo transitado em julgado somente em para Presidente na eleição do ano seguinte. Os comí- responsabilização e reparação dos crimes praticados
agosto de 1979, foram localizados, pela primeira dezembro de 2007. Apesar da decisão favorável aos cios em prol da emenda levaram multidões às ruas pela ditadura.
vez e ainda sob a vigência da ditadura militar, os familiares, que determinou a abertura dos arquivos de Curitiba, São Paulo, Belo Horizonte, Goiânia. No
restos mortais de um desaparecido político. Suza- relativos à Guerrilha do Araguaia, o Estado brasi- Rio, foi realizada manifestação em 10 de abril de O ano de 1985 foi um marco na história democrática
na Lisbôa conseguiu encontrar os restos mortais de leiro não localizou ou identificou os corpos dos mi- 1984, quando a Av. Presidente Vargas foi tomada por com a publicação do livro Brasil: Nunca Mais. Ini-
seu companheiro, Luis Eurico Tejera Lisbôa, en- litantes. Após a sentença, o governo chegou a insti- um milhão de pessoas que levavam cartazes e faixas ciado em 1979, e desenvolvido pelo Conselho Mun-
terrado com nome falso no Cemitério Dom Bosco, tuir comissões com a finalidade de realizar buscas em favor das eleições diretas e do fim da ditadura. dial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo,
em Perus, São Paulo. Por sua vez, em setembro do na região, mas não houve resultado conclusivo. As o projeto visava documentar as violações de direi-
mesmo ano, a única sobrevivente da Casa da Mor- Forças Armadas continuam negando a existência de A maior mobilização de rua não conseguiu, contudo, tos humanos praticadas durante a ditadura, tendo
te, Inês Etienne Romeu, entregou ao Conselho Fe- documentos sobre a Guerrilha. Nesse período, fami- garantir a aprovação da emenda Dante de Olivei- como fonte os processos judiciais de presos políticos
deral da OAB uma denúncia por escrito, na qual liares conseguiram localizar em 1991 duas ossadas ra no Congresso. Em 1984, foram eleitos pelo co- que transitaram na Justiça Militar de abril de 1964
no Cemitério de Xambioá (TO). Uma foi identificada légio eleitoral Tancredo Neves e José Sarney, para a março de 1979. Ao final, com o esforço de advo-
12. Entrevista com Maria Amélia de Almeida Teles em 28 de abril de 2015.
Projeto de Pesquisa: Arqueologia da reconciliação: formulação, aplicação e
em 1996 como sendo de Maria Lucia Petit, militante 13. SANTANA, Marco Aurélio. Trabalhadores, sindicatos e regime militar no 14. NERY, Vanderlei. Diretas Já: mobilização de massas com direção burgue-
recepção de políticas públicas relativas à violação de direitos humanos du- do PCdoB, morta na guerrilha. Brasil. In: PINHHEIRO, Silton. (org.) O que resta da transição. 1ª Ed. São sa. In: PINHHEIRO, Silton. (org.) O que resta da transição. 1ª Ed. São Paulo:
rante a ditadura militar. CPDOC/Fundação Getúlio Vargas. Paulo: Boitempo, 2014. pp. 189-191. Boitempo, 2014. p. 260.

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gados de presos políticos, foram obtidas cópias de Paulo, onde militantes políticos assassinados pela Janeiro, até então sob guarda da Polícia Federal, Também em 1993, a CFMDP organizou um encontro
707 processos completos e dezenas de outros incom- ditadura foram enterrados com nomes falsos. Ape- foram recolhidos ao Arquivo Público do Estado do com vistas à elaboração de projeto de lei que tratasse
pletos, ultrapassando 1 milhão de páginas. O pro- sar de os familiares saberem de sua existência des- Rio de Janeiro (APERJ). Nesse conjunto documen- da questão dos mortos e desaparecidos políticos. O
jeto tornou-se referência na agenda da Justiça de de 1979, a vala só foi encontrada durante uma in- tal, encontrava-se o acervo das polícias políticas que então presidente Itamar Franco não deu andamento
Transição brasileira, contribuindo para preservar as vestigação realizada pelo repórter Caco Barcellos. atuaram no âmbito federal e estadual, tanto no Rio à iniciativa. No ano seguinte, de disputa eleitoral,
informações sobre graves violações de direitos hu- Logo após a descoberta, a prefeita Luiza Erundina de Janeiro quanto no então estado da Guanabara. familiares apresentaram uma carta compromisso,
manos. Em 2011, foi lançado o Brasil: Nunca Mais (PT) criou a Comissão Especial de Investigação das Houve denúncias de destruição e ocultação de docu- assinada pelos dois principais candidatos à Presi-
digital, por meio do qual é possível acessar todo o Ossadas de Perus, composta por familiares e mi- mentos, especialmente daqueles relativos aos mili- dência da República: Fernando Henrique Cardoso e
acervo digitalizado. litantes, e a Câmara Municipal de São Paulo ins- tantes desaparecidos17. Luís Inácio Lula da Silva.
taurou uma CPI para investigar as irregularidades
Outra vitória foi conquistada no final de 1985: a praticadas no enterro das vítimas. Tanto a Comis- No ano seguinte, a CFMDP fundou o Instituto de Diante do comprometimento firmado na carta e da
aprovação da Emenda Constitucional nº26, que ex- são quanto a CPI estenderam seus trabalhos para Estudo sobre a violência de Estado e em 1995 publi- forte pressão da sociedade civil, Fernando Henri-
pandia a anistia aos servidores civis da Adminis- os demais cemitérios da capital e cidades vizinhas. cou o Dossiê de Mortos e Desaparecidos Políticos a que, vitorioso na eleição, aprovou, em 4 de dezembro
tração direta e indireta, bem como a militares que Com o final do mandato de Erundina, a partir de partir de 1964, resultado da sistematização de pes- de 1995, a lei 9.140, que deu o pontapé inicial no
haviam sido punidos por atos de exceção. A medi- 1993, nenhum informe oficial sobre a investigação quisas feitas nos arquivos do Instituto Médico Legal processo de reconhecimento pelo Estado brasileiro
da beneficiou 164 sindicalistas destituídos de seus das ossadas foi divulgado16. (IML) de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Pernam- das graves violações de direitos humanos pratica-
mandatos, incluindo Luís Inácio Lula da Silva. As buco, nos arquivos das Polícias Políticas de Pernam- das por seus agentes durante a ditadura. A lei criou
lacunas da Lei de Anistia foram posteriormente ob- No Rio de Janeiro, em setembro de 1991, o GTNM buco, do Paraná, da Paraíba, de São Paulo e do Rio a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
jeto de intenso debate durante a Assembléia Cons- obteve apoio técnico para exumar 2.100 ossadas de de Janeiro, nos arquivos do Instituto de Criminalís- Políticos (CEMDP), previu a possibilidade de inde-
tituinte. Ao final, o artigo 8ª do Ato das Disposições uma vala comum, localizada no Cemitério Ricardo tica Carlos Éboli e no projeto Brasil: Nunca Mais. nização pecuniária aos familiares e apresentou uma
Constitucionais Transitórias (ADCT), único dis- de Albuquerque, na qual militantes políticos haviam lista de 136 nomes de desaparecidos políticos auto-
positivo da CF/88 a tratar da anistia, reafirmou o sido enterrados como indigentes, entre 1971 e 1974. Munidos desta documentação e frente aos testemu- maticamente reconhecidos pelo Estado.
direito à promoção, estabelecido na Emenda Cons- Contudo, devido à falta de financiamento, a equipe nhos de ex-presos políticos, familiares apresenta-
titucional 26/85, estendendo-o a trabalhadores do técnica encerrou seus trabalhos dois anos depois e ram denúncias ao Conselho Regional de Medicina No contexto de amadurecimento democrático, a
setor privado. Definiu também, pela primeira vez, as ossadas foram encaminhadas para o Hospital do Rio de Janeiro (Cremerj), exigindo a cassação do CIDH realizou, pela primeira vez, em 1995, visita
a possibilidade de reparação econômica ao anistia- Geral de Bonsucesso. À época, foram também loca- registro de médicos que colaboraram com a ditadura in loco no Brasil. Em seu relatório sobre a situação
do político, ainda que restrita aos casos de aero- lizados outros dois cemitérios (da Cacuia e de Santa emitindo laudos falsos (omitiam a prática de tortura dos direitos humanos no país, identificou, dentre os
nautas prejudicados por portarias expedidas pelo Cruz) que receberam corpos de militantes mortos ou a causa da morte) ou prestando assistência du- principais problemas: a administração da justiça, a
Ministério da Aeronáutica, e ampliou o alcance durante a ditadura. Mais recentemente, no dia 11 rante sessões de tortura. Os processos instaurados existência de grupos de extermínio, a discrimina-
temporal do benefício15. de novembro de 2011, foi inaugurado o Memorial do no Cremerj resultaram na cassação dos registros de ção racial, a violência policial e sua impunidade, a
Cemitério Ricardo de Albuquerque, no qual constam Amílcar Lobo, José Lino Coutinho de França Neto prática da tortura como meio de investigação, o sis-
Ao longo da década de noventa, uma pluralidade de os nomes de 14 militantes assassinados. (Dr. Coutinho), Rubens Pedro Macuco Janini e Ri- tema penitenciário e a competência dos tribunais
ações foi realizada no campo da memória, verdade cardo Fayad18. militares para julgar delitos comuns cometidos por
e justiça. Foi localizada em 1990 a vala clandesti- Em 1992, após pressões de movimentos sociais, os policiais estaduais19. Ficava evidente que a ditadu-
na de Perus, no Cemitério de Dom Bosco, em São acervos das polícias políticas sediadas no Rio de 17. LOMBARDO, Luciana. Nos arquivos da polícia política: Reflexões sobre ra passara, mas suas sequelas se faziam cada vez
uma experiência de pesquisa do DOPS do Rio de Janeiro. In.: Revista Acervo,
Rio de Janeiro. Jan-junho 2014, p. 264. mais aparentes.
15. MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas 16. BRASIL. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. 18. Os quatro nomes citados estão incluídos na listagem de autores de gra-
consequências - um estudo do caso brasileiro. Dissertação apresentada ao IEVE Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado; Org. Crimeia Schmi- ves violações de direitos humanos apresentada pela CNV. BRASIL. Comissão
curso de pós-graduação em Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras dt et al..Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964- Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. Volumes I, p. 877, 907, 19. CIDH. Informe sobre a situação dos Direitos Humanos no Brasil. 1995.
e Ciências da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2003, p.119. 1985). 2 ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p. 26. 923, 926. Disponível em: http://cidh.oas.org/countryrep/brazil-port/Introducion.htm.

26 27
Nesse mesmo ano, cansados de esperar por uma do Direito à verdade e à memória20, publicado em pela violência de Estado22. manifestações foi realizada com o objetivo de promo-
providência do Poder Judiciário brasileiro, familia- 2007, a CEMDP reconheceu 362 casos de mortos e ver o direito à verdade e de revogar a lei 1.111/2005,
res de 22 desaparecidos da Guerrilha do Araguaia desaparecidos. Atualmente vinculada à Secretaria Em dezembro de 2001, foi criada a Comissão Es- sancionada pelo presidente Luís Inácio Lula da
decidiram denunciar o caso à CIDH. Formulada de Direitos Humanos da Presidência da República, pecial de Reparação do Rio de Janeiro, através da Silva. De acordo com a referida norma, o sigilo de
pelo Centro pela Justiça e Direito Internacional a CEMDP desenvolve ações de busca, localização e lei estadual 3.744, regulamentada pelo Decreto nº. documentos era considerado “imprescindível à segu-
(CEJIL) e pela Human Rights Watch/Americas, e identificação de restos mortais de pessoas desapare- 31.995/2002. A Comissão iniciou seu funcionamen- rança da sociedade e do Estado” e a consulta pública
com a participação da CFMDP e do GTNM como co- cidas na Guerrilha do Araguaia, integrando o Grupo to somente em 2004 e teve por objetivo promover poderia ficar indefinidamente vedada, deixando a
-peticionários, a denúncia buscava a responsabiliza- de Trabalho Araguaia, coordenado pela Secretaria a reparação de pessoas detidas sob acusação de te- decisão para uma comissão formada exclusivamente
ção do Estado brasileiro frente às graves violações de Direitos Humanos da Presidência da República, rem participado de atividades políticas entre 1964 e por membros do Poder Executivo24.
de direitos humanos perpetradas no contexto da Ministério da Justiça e Ministério da Defesa. 1979 ou tenham ficado sob guarda dos órgãos públi-
guerrilha. O Brasil ratificara a Convenção America- cos no Estado do Rio. Recebeu, durante o prazo de Pressionado pelos movimentos sociais, e após re-
na sobre Direitos Humanos em 1992 e reconhecera É preciso destacar a importância do ano de 2001 90 dias, 1.114 pedidos de indenização de ex-presos e comendação feita em 2005 pelo Comitê de Direitos
a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana de para a implementação de políticas públicas de re- perseguidos políticos. Depois de intensa mobilização Humanos da ONU, segundo a qual o Brasil deve-
Direitos Humanos em 1998. O caso Gomes Lund e paração, tanto no nível nacional quanto estadual. e pressão da sociedade civil, a Comissão finalizou ria tornar públicos todos os documentos relevan-
outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, após trâ- Em agosto foi criada a Comissão de Anistia, no âm- seus trabalhos em abril de 2013, com a apreciação tes sobre abusos de direitos humanos, o presidente
mite perante a CIDH, foi encaminhado em 2009 à bito do Ministério da Justiça, composta por 26 con- de todos os requerimentos, dos quais 917 foram de- Lula assinou o decreto 5.548 de 18 de novembro de
Corte Interamericana. selheiros, em maioria da sociedade civil, com a fina- feridos, 190 indeferidos e 7 arquivados23. Apesar de 2005. No mês seguinte, a ministra-chefe da Casa
lidade de reparar moral e economicamente pessoas concluída a análise dos casos, nem todos os pedidos Civil, Dilma Rousseff, anunciou a transferência
Em 1996, a CEMDP iniciou seus trabalhos buscan- que tiveram atividades profissionais e estudantis de reparação aprovados foram pagos pelo Governo da documentação relativa ao período da ditadura
do promover o reconhecimento e a reparação pecu- prejudicadas por motivação política, de 1946 até do Estado. Atualmente, grupos da sociedade civil militar, então sob poder da Agência Brasileira de
niária de pessoas que, em razão da participação em 1988. Até setembro de 2014, haviam sido apresen- lutam pela criação de uma nova Comissão Especial Inteligência, para o Arquivo Nacional (AN). Foram
atividades políticas, de 2 de setembro de 1961 a 16 tados aproximadamente 74.000 requerimentos, dos de Reparação em razão da persistência da demanda transportados arquivos do Serviço Nacional de In-
de agosto de 1979, foram mortas ou desapareceram quais 62.000 foram apreciados e, destes, 35.000 fo- por reparação no Rio de Janeiro e da existência de formações, do Conselho de Segurança Nacional e
em dependências policiais, militares ou assemelha- ram deferidos21. Desde 2007, com a gestão de Paulo pleitos que não foram apresentados no prazo de en- da Comissão Geral de Investigações do Ministério
das, por causas não naturais ou em situações de Abrão, a Comissão passou a promover não somente cerramento da Comissão. da Justiça. De 2006 até 2012, outros 40 acervos fo-
custódia estatal. Após pressão dos familiares em a reparação pecuniária das vítimas e de seus fami- ram reunidos no AN25.
2002 o prazo da lei foi extendido até 5 de outubro liares, como também políticas públicas de memó- Uma das principais lacunas do processo de redemo-
de 1988 e em 2004 ampliou-se a competência da ria e de educação em direitos humanos, dentre as cratização brasileiro consistiu na falta de acesso aos Em dezembro de 2009, a 11ª Conferência Nacional
CEMDP para casos de mortes em decorrência de quais: as Caravanas da Anistia, que consistem em documentos produzidos pela ditadura. A manuten- de Direitos Humanos reuniu em Brasilia 1.200 de-
repressão policial em manifestações públicas ou sessões públicas itinerantes de apreciação de re- ção do segredo sobre a repressão política foi regra legados, convocados pela Secretaria Especial de Di-
conflitos armados com o poder público. querimentos de anistia política acompanhadas por nos governos democráticos instaurados após o fim reitos Humanos para revisar o Programa Nacional
atividades educativas e culturais, e o Projeto Clíni- da ditadura. Em 2005, por iniciativa de familiares, de Direitos Humanos (PNDH), cuja primeira edição
No final de 2006, a CEMDP encerrou a primeira cas do Testemunho, responsável pela formação de ex-presos e perseguidos políticos, estudantes e pro- havia sido publicada em 1996 e a segunda em 2002.
etapa de trabalho que consistiu na análise, inves- núcleos de apoio e atenção psicológica aos afetados fessores universitários foi criado, em São Paulo, o Aprovado, o PNDH 3 promoveu avanço ao estabele-
tigação e julgamento de 480 pedidos de reparação e Movimento Desarquivando o Brasil. Uma série de
24. BRASIL. Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
reconhecimento, dos quais 136 casos já constavam 20. BRASIL. COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS IEVE Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado; Org. Crimeia Schmi-
como reconhecidos. Em seu relatório final, intitula- POLÍTICOS. Direito à Memória e à Verdade. Secretaria Especial de Direitos
Humanos: Brasília, 2007.
22. SIGMUND FREUD ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA [coedição]. Clínicas
do testemunho: reparação psíquica e construção de memórias. Porto Alegre:
dt et al..Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-
1985). 2 ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. p. 43.
21. Arquivo CNV, 08802.007896/2014-38: Ofício nº 323/2014/CA da Comissão Criação Humana, 2014. 25. ISHAQ, Vivien; FRANCO, Pablo; SOUSA, Teresa. A escrita da repressão e
de Anistia/MJ, em resposta ao Ofício nº 628/2014 da CNV, p. 3. 23. Ver: http://www.rj.gov.br/web/seasdh/exibeconteudo?article-id=1857470. da subversão 1964-1985. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012. p.11.

28 29
cer como um de seus sete eixos orientadores o “Di- A Corte ainda afirmou que a Lei de Anistia de 1979 Em cumprimento às resoluções da Corte Intera- presidencial de 13 de janeiro de 2010, foi instituído
reito à memória e à verdade”, no qual recomendou- carece de efeitos jurídicos e não deve continuar re- mericana foi criado em março de 2012, no Minis- o grupo de trabalho responsável por elaborar o ante-
-se a criação de uma Comissão Nacional da Verdade, presentando um obstáculo para a investigação e tério Público Federal (MPF), o Grupo de Trabalho projeto de lei para a criação da CNV. Encaminhado
com a tarefa de examinar as violações de direitos punição dos responsáveis por graves violações. A Justiça de Transição, com o objetivo de oferecer ao Congresso Nacional em maio, o projeto resultou
humanos praticadas por agentes estatais no contex- pedido dos peticionários, a Corte considerou a ne- apoio jurídico e operacional aos Procuradores da na lei 12.528, sancionada pela presidenta Dilma
to da repressão política da ditadura. cessidade de criação de uma comissão da verdade República na investigação e persecução penal das Rousseff, em 18 de novembro de 2011.
como mecanismo fundamental para a apuração dos graves violações de direitos humanos cometidas no
Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal crimes cometidos no passado26. Victória Grabois, in- período ditatorial. De 2008 até o presente, foram A CNV iniciou seus trabalhos em 16 de maio de
(STF) examinou a Arguição de Preceito Fundamen- tegrante do GTNM e familiar de desaparecidos na iniciadas treze ações penais versando sobre delitos 2012, com a posse de seus membros, e os concluiu
tal (ADPF) nº 153 proposta pelo Conselho Federal Guerrilha, afirma a necessidade de que o governo de sequestro qualificado ou ocultação de cadáver em 10 de dezembro de 2014, com a publicação de
da OAB dois anos antes. A ação visava questionar cumpra a sentença: praticados por agentes da repressão28. A posição do seu Relatório Final. Teve por objetivo analisar e
a compatibilidade da Lei de Anistia com a Consti- Poder Judiciário frente a essas ações tem sido, con- esclarecer violações de direitos humanos pratica-
tuição Federal de 1988, de modo a invalidar a in- “ Nós já estamos em 2015, já faz cinco anos, e muito pouco tudo, pouco satisfatória. As decisões não respeitam das pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, bus-
terpretação da lei que outorga anistia a agentes es- dessa sentença foi cumprida (…) O Brasil assinou o Pacto de os preceitos do Direito Internacional dos Direitos cando consolidar o direito à memória e à verdade
tatais, acusados, entre outros crimes, pela prática San José da Costa Rica, Fernando Henrique Cardoso assinou Humanos e variam de juiz para juiz. O processo histórica. A CNV representou um avanço para a
de tortura, homicídio, desaparecimento forçado e esse pacto em 1998. Se o Brasil pertence à OEA, ele tem que judicial impõe às vítimas e familiares ritual buro- consolidação da Justiça de Transição no país: am-
estupro. Por sete votos a dois, o STF posicionou-se seguir o Pacto de San José da Costa Rica e acatar a decisão da crático desgastante e pouco eficaz. Nas palavras da pliou o debate sobre a temática da ditadura, facili-
contrariamente à revisão da Lei de Anistia, indo Corte. O importante dessa decisão da Corte Interamericana militante Maria Amélia Teles, tou o acesso a documentos e pesquisas; promoveu
de encontro às demandas dos movimentos sociais a oitiva de centenas de vítimas e testemunhas e o

não se refere só ao Araguaia, mas a cerca de quinhentos bra-
e à normativa e jurisprudência internacionais em sileiros que são mortos e desaparecidos políticos. E também O Poder Judiciário, ele exige da vítima, do sobrevivente, depoimento de agentes públicos e reconheceu ofi-
matéria de direitos humanos. aqueles que foram torturados têm direito, novamente, de indi- tudo. Ele suga tudo. Ele quer que você dê detalhes, que você dê cialmente, pela primeira vez, 377 agentes estatais,
ciar os seus algozes27.” a vírgula, que você dê o documento, que você dê a hora. Então, militares e civis responsáveis pelas torturas, as-
Passados oito meses da referida decisão, foi publica- é muito desgastante, exaustivo. Você fica louca de tanta coisa. sassinatos e desaparecimentos forçados. Além de
da a sentença da Corte Interamericana de Direitos Considerando a sentença da Corte Interamericana, Então, só isso já é um preço. Um preço muito alto que você ser a terceira comissão do mundo a indicar nomi-
Humanos no caso Gomes Lund e outros (Guerri- a OAB interpôs recurso, que ainda espera julgamen- paga para ter justiça29.” nalmente os autores das graves violações, a CNV
lha do Araguaia) vs. Brasil, cujo conteúdo contras- to, no âmbito da ADPF nº 153, pleiteando que o STF defendeu a não aplicação dos dispositivos legais
tou frontalmente com o entendimento adotado pelo se manifeste acerca da decisão internacional. Nesse As lutas dos familiares e militantes de direitos hu- de anistia aos militares responsáveis pelos crimes
STF. A sentença internacional constituiu um marco mesmo sentido, em maio de 2014, o Partido Socialis- manos, a judicialização de casos relativos ao período de lesa-humanidade e apresentou um conjunto de
importante. Pela primeira vez, o Brasil foi interna- mo Liberdade promoveu a ADPF nº 320, com a qual ditatorial, a aprovação do PNDH 3 e a publicação recomendações pertinentes à democratização das
cionalmente condenado pela prática de graves vio- pretende que o STF reconheça o efeito vinculativo da sentença da Corte Interamericana possibilita- Forças Armadas e da sociedade brasileira.
lações de direitos humanos durante a ditadura. Na da decisão da Corte Interamericana para impedir a ram um cenário político favorável à instituição de
sentença, a Corte Interamericana declarou que o Es- aplicação da Lei de Anistia em casos de graves viola- uma Comissão Nacional da Verdade (CNV). Por ato Das demandas sociais à criação da
tado brasileiro foi responsável pelo desaparecimen- ções de direitos humanos por agentes públicos. 28. BRASIL. Ministério Público Federal. Grupo de trabalho justiça de tran-
Comissão da Verdade do Rio
to forçado dos militantes da Guerrilha do Araguaia sição: atividades de persecução penal desenvolvidas pelo Ministério Públi-
co Federal: 2011-2013. Coordenação e organização de Raquel Elias Ferreira
e obrigou o Brasil a localizar o paradeiro das vítimas Dodge. Brasília: MPF/2ª CCR, 2014. Ver também: MPF. Atuação do grupo de As lutas e demandas sociais que se espalharam pelo
26. CORTE IDH. Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Bra- trabalho Justiça de Transição. Disponível em: http://www.prrj.mpf.mp.br/ins-
desaparecidas, identificar seus restos mortais e con- sil. Sentença de 24 de novembro de 2010. titucional/crimes-da-ditadura/atuacao-1. país desde o final da ditadura militar tiveram refle-
duzir investigações criminais sobre os fatos. 27. Entrevista com Victória Grabois em 13/03/2015. Projeto de Pesquisa: Ar-
queologia da reconciliação: formulação, aplicação e recepção de políticas
29. Entrevista com Maria Amélia Teles em 28/04/2015. Projeto de Pesquisa:
Arqueologia da reconciliação: formulação, aplicação e recepção de políticas
xo no estado do Rio de Janeiro. Merece destaque a
públicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditadura militar. públicas relativas à violação de direitos humanos durante a ditadura militar. atuação, a partir de 2011, do Coletivo RJ Memória,
CPDOC/Fundação Getúlio Vargas. CPDOC/Fundação Getúlio Vargas.

30 31
Verdade e Justiça, determinante para a criação da do Estado a devida reparação. mória vinculado a políticas de direitos humanos e (Wadih Damous, Nadine Borges, Geraldo Cândi-
CEV-Rio. O grupo é parte de um processo nacional de cultura. Ao longo de 2014, um conjunto de ativi- do, Marcelo Cerqueira, Eny Moreira, João Ricardo
mais amplo, de formação da Rede Brasil Memória, Frente à consolidação de redes de mobilização no dades políticas e culturais foi organizado em frente Dornelles e Álvaro Caldas) tomaram posse na sede
Verdade e Justiça, estimulada pela Secretaria Espe- campo da memória, verdade e justiça, chamam aten- ao local, desde exposição de fotos, graffiti, apresen- da OAB/RJ, com a presença do então governador
cial de Direitos Humanos da Presidência da Repú- ção formas de ação política direta, empreendidas por tações de dança e de peças teatrais, rodas de capo- Sérgio Cabral, da ministra de Direitos de Humanos
blica e composta por comitês (ou coletivos) da socie- atores da sociedade civil. Representativos dessas eira e de samba e projeções de documentários, até a da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
dade civil disseminados pelos diferentes estados do ações foram os escrachos (ou esculachos) realizados promoção de debates sobre a destinação do edifício. da República Maria do Rosario, de ex-presos po-
país. O Coletivo RJ estruturou-se em torno de qua- a partir de 2012. Inspirados na experiência argenti- Apesar da intensa mobilização, as reivindicações líticos, de familiares de mortos e desaparecidos e
tro objetivos centrais: a criação de uma comissão da na, e realizados por grupos de jovens, os escrachos ainda não foram atendidas pelo Governo do Estado. militantes de direitos humanos, dando início aos
verdade autônoma e independente, a abertura dos são manifestações pacíficas e simbólicas que visam trabalhos da Comissão.
acervos documentais produzidos no período da dita- denunciar e expor publicamente perpetradores das As campanhas, mobilizações, escrachos e interven-
dura militar, o cumprimento integral da sentença da violações de direitos humanos. No Rio de Janeiro, ções artísticas por memória, verdade e justiça con-
Corte Interamericana e o resgate da memória e da a Articulação Estadual pela Memória, Verdade e tribuíram para dar forma ao atual cenário político
verdade sobre a história da resistência à ditadura30. Justiça realizou em 2012 o escracho do ex-diretor do Rio de Janeiro composto por uma pluralidade de
Também foi importante a criação em 2012 da Articu- do DOI-CODI, General José Antônio Nogueira Be- movimentos, grupos, entidades, partidos políticos,
lação Estadual pela Memória, Verdade e Justiça do lham, dos militares e ex-torturadores Dulene Aleixo associações, ONGs, coletivos e sindicatos que de-
Rio de Janeiro, composta por uma série de organiza- Garcez dos Reis e Lício Augusto Ribeiro Maciel e da batem as mais diversas pautas da agenda pública,
ções da sociedade civil, como movimentos estudantis estátua do Marechal Castelo Branco, na praia do dentre elas a temática da Justiça de Transição e do
(Centros Acadêmicos e Diretórios de Estudantes), Leme. Victória Grabois, militante do GTNM, relata legado da ditadura militar no estado.
movimentos da juventude (como o Levante Popular uma dessas experiências:
da Juventude) e movimentos e organizações popula- Como resultado desta mobilização da sociedade,
res, cujo objetivo comum era fortalecer e unificar as “ A gente fez um escracho na frente da casa do Lício [Ma- em 27 de setembro de 2011, foi apresentado na As-
lutas nesse campo31. ciel], esse que matou o André [Grabois], meu irmão. (…) E sembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
os vizinhos de classe média alta falam assim: “Mas tem tortu- (ALERJ) o Projeto de Lei nº 889-A/11, primeiro no
Ainda nesse contexto, setores da sociedade civil cria- rador no meu prédio?” Eu falei: “Tem”. “Eu vou prestar aten- país a dispor sobre a criação de uma comissão da
ram as suas próprias comissões de verdade, dando ção nele agora”, ela disse. Uma mulher: “Que vergonha. Um verdade em âmbito estadual. Os deputados Gilber-
contornos peculiares à Justiça de Transição brasi- torturador que mora no meu prédio!” Eu falei: “Pois é. No seu to Palmares (PT), Graça Matos (PMDB), Luiz Paulo
leira. Comissões setoriais, sindicais e universitárias prédio mora um torturador”. Isso é muito bom. E ele ficava (PSDB) e Paulo Ramos (então PDT) apresentaram
multiplicaram-se pelo país, de modo a descentrali- atrás da janela. Disse que ele não morava mais lá. Mas ele a primeira versão do texto que viria a instituir a
zar e potencializar a construção da verdade. Mais apareceu. Nós vimos ele atrás das cortinas. Muito bom32.” CEV-Rio. O processo legislativo para a aprovação do
recentemente, em dezembro de 2014, foi lançado, no projeto levou 1 ano e 20 dias para conclusão, já que
Rio de Janeiro, o Grupo Filhos e Netos por Memória, Também emblemática foi a Campanha “Ocupa uma parcela significativa dos deputados, contrária
Verdade e Justiça com o propósito de debater os efei- DOPS: ocupar a memória para não esquecer a nossa a criação de uma Comissão da Verdade, reiterada-
tos transgeracionais da violência de Estado e cobrar história” lançada em fevereiro de 2014, que tem por mente obstruía as votações. O projeto foi aprovado,
objetivo transformar o prédio do Departamento de em plenário, em 24 de outubro de 2012, dando ori-
30. Ver: http://coletivorj.blogspot.com.br/p/sobre_27.html
31. INSTITUTO DE ESTUDOS DA RELIGIÃO (ISER). I Relatório Semestral Ordem Política e Social (DOPS) em centro de me- gem a lei 6.335 que instituiu a CEV-Rio.
de Acompanhamento da Comissão Nacional da Verdade (maio a novembro
de 2012). Rio de Janeiro, 2012, p. 41. Disponível em: http://www.iser.org.br/ 32. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Alto Comissariado das Nações
website/wp-content/uploads/2013/11/I-Relatório-Semestral-de-Acompanha- Unidas para Direitos Humanos. Rule of law tools for pos-conflict states: truth Em 8 de maio de 2013, os membros da CEV-Rio
mento-CNV-ISER-2012.pdf. commissions. Nova York e Genebra: 2006.

32 33
Capítulo 2 - O MANDATO LEGAL E AS nais4. Quanto mais integrados forem esses elemen- seus objetivos; colaborar com todas as instâncias do cido em dois anos para a conclusão dos trabalhos,
ATIVIDADES DA COMISSÃO DA VERDADE tos, mais eficaz torna-se a atuação das comissões da Poder Público para a apuração de violações de direi- contados a partir da instalação. Tal prazo foi pror-
DO RIO verdade, cujos objetivos centrais consistem em reve- tos humanos; recomendar adoção de medidas e polí- rogado por 8 meses, mediante o decreto estadual nº
lar a verdade oficial dos fatos, preservar as provas ticas para prevenir futuras violações; promover, com 45.025, de 4 de novembro de 2014. A composição da
As comissões da verdade são órgãos oficiais, tem- sobre as violações de direitos humanos pretéritas e base nos informes obtidos, a reconstrução histórica Comissão foi definida a partir do critério da plura-
porários e sem caráter judicial, que investigam cir- apresentar ao Estado recomendações de políticas dos casos de graves violações de direitos humanos lidade, devendo ser integrada por sete membros,
cunstâncias, causas e consequências das violações públicas a fim de promover mudanças institucionais ocorridos no passado, colaborando para a prestação designados pelo Governo do Estado do Rio, entre
de direitos humanos ocorridas em determinado pe- e prevenir a repetição futura de tais violações. de assistência às vítimas. brasileiros de reconhecida idoneidade e conduta
ríodo de tempo, conferindo destaque e importância ética, residentes no Rio de Janeiro, identificados
aos testemunhos das vítimas1. As múltiplas experi- Dos cinco pilares mencionados, o Estado brasileiro A legislação atribuiu à CEV-Rio a competência de com a defesa da democracia e dos direitos huma-
ências de comissões da verdade, em diferentes pa- contemplou especialmente um deles, a reparação de receber testemunhos, informações, dados e docu- nos, ficando vedada a participação de membros das
íses do mundo nas últimas três décadas, são fruto caráter pecuniário às pessoas atingidas pela violên- mentos que lhe fossem encaminhados, assegurada Forças Armadas e Órgãos de Segurança de Estado,
do reconhecimento do direito das vítimas, de seus cia de Estado, deixando os demais em segundo pla- a não identificação do detentor ou depoente; requi- assim como colaboradores do regime militar nos
familiares e da sociedade de conhecer a verdade so- no. As demandas por justiça foram particularmente sitar informações, dados e documentos de órgãos e mais diversos níveis de representação do Estado
bre os padrões de violência cometidos no passado, sufocadas, em razão da interpretação conservadora entidades do Poder Público, ainda que em qualquer ou da sociedade.
incluindo a identificação dos perpetradores, as moti- conferida à Lei de Anistia de 1979. Mais recente- grau de sigilo; convocar, para entrevistas ou tes-
vações que deram origem a tais violações, bem como mente, com a instituição da Comissão Nacional da temunhos, pessoas que pudessem guardar relação A lei delimitou os marcos materiais, espaciais
o destino final de pessoas desaparecidas2. O direito Verdade, o país deu um importante passo para a efe- com fatos e circunstâncias examinados; determinar e temporais para as atividades da CEV-Rio. No
à verdade afasta as tentativas de esquecimento e de tivação do direito à verdade. Inserida nesse contex- a realização de perícias e diligências para coleta ou marco material, a lei definiu que a CEV-Rio deve-
negacionismo, evitando que violações de direitos hu- to, a lei estadual nº 6.335 de 24 de outubro de 2012 recuperação de informações, documentos e dados; ria buscar esclarecer graves violações de direitos
manos voltem a se repetir no futuro. criou a Comissão Estadual da Verdade do Rio. promover audiências públicas; requisitar proteção humanos entre 1946 e 1988. Ao usar a expres-
aos órgãos públicos para qualquer pessoa que se são “graves violações de direitos humanos”, a lei
Estas comissões fazem parte de uma estratégia mais Os marcos legais de atuação da encontre em situação de ameaça em razão de co- orientou a CEV-Rio a submeter seu trabalho aos
ampla da Justiça de Transição, conceito relativo ao Comissão da Verdade do Rio laboração com a CEV-Rio; promover parcerias com imperativos do Direito Internacional dos Direitos
conjunto de medidas judiciais e não judiciais, adota- órgãos e entidades, públicos ou privados, nacionais Humanos (DIDH). O legislador optou por utilizar
das em um contexto de transformação política, que De acordo com a lei 6.335/12, a CEV-Rio buscou ou internacionais, para intercâmbio de informações, conceito próprio da ordem internacional, em vez
visam reparar os crimes perpetrados por regimes re- acompanhar e subsidiar a CNV nos esclarecimen- dados e documentos; requisitar o auxílio de entida- de simplesmente enumerar tipos penais ou direi-
pressivos no passado3. São cinco os principais pilares tos das graves violações de direitos humanos, pra- des e órgãos públicos; requerer ao Poder Judiciário tos fundamentais constitucionalmente previstos. O
da justiça de transição: verdade, memória, justiça, ticadas entre 1946 e 1988. Seus principais objetivos acesso a informações dados e documentos públicos uso do conceito de graves violações levou a CEV-Rio
reparação e implementação de reformas institucio- foram: esclarecer fatos e circunstâncias dos casos e privados, necessários para o desempenho de suas a limitar suas análises às violações cometidas por
1. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comissão de Direitos Humanos. de graves violações; identificar e tornar públicas as atividades. Nos moldes de outras comissões da ver- agentes públicos ou por pessoas a seu serviço ou
Uptade Set of Principles for the protection and promotion of human rights
through action to combat impunity. E/CN.4/2005/102/Add.1.08.fev. 2005. De- estruturas, locais, instituições e circunstâncias rela- dade, a CEV-Rio não teve competência jurisdicional que contavam com o apoio ou interesse do Estado,
finição D. Ver também: GONZÁLEZ, Eduardo; VARNEY, Howard. Busca da
verdade: elementos para a criação de uma comissão da verdade eficaz. Bra-
cionadas à prática de violações de direitos humanos, ou persecutória. Ou seja, não lhe foi atribuída a pos- restando excluída de seu mandato a apuração de
sília: Comissão de Anistia, Nova York: Centro Internacional para a Justiça suas eventuais ramificações nos aparelhos estatais sibilidade de responsabilizar civil ou criminalmente condutas cometidas por particulares, sem a parti-
Transição, 2013. p. 9.
2. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Alto Comissariado das Nações Uni- e na sociedade; encaminhar, à CNV, toda e qualquer agentes envolvidos na prática de graves violações de cipação direta ou indireta do Estado.
das para Direitos Humanos. Rule of law tools for pos-conflict states: truth
commissions. Nova York e Genebra: 2006. informação obtida que pudesse auxiliá-la a alcançar direitos humanos durante a ditadura.
3. TEITEL, RUTI. Transitional Justice Genealogy. In: Harvard Human Rights
Journal. Vol. 16, 2003, p.69. Ver também: INTERNATIONAL CENTER FOR 4. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Alto Comissariado das Nações Uni-
De acordo com o DIDH, ocorrem violações de direi-
TRANSITIONAL JUSTICE. What is transicional justice? Disponível em: ht- das para Direitos Humanos. Rule of law tools for pos-conflict states: truth O prazo de funcionamento da CEV-Rio foi estabele- tos humanos quando o Estado infringe normas esta-
tps://www.ictj.org/about/transitional-justice. commissions. Nova York e Genebra: 2006. p. 5.

34 35
belecidas nos tratados de direitos humanos, de acor- derrogáveis pelo Direito Internacional dos Direitos desaparecimentos forçados, contemplando-se nestes bro de 1988, datas de promulgação de duas consti-
do com a interpretação que lhes conferem os órgãos Humanos (como o direito à vida e à integridade pes- os casos de ocultação de cadáveres, de modo a subsi- tuições democráticas. A CEV-Rio, assim como fez a
competentes. Tais violações podem ocorrer em virtu- soal) e, portanto, não passíveis de suspensão em situ- diar as pesquisas realizadas pela CNV7. Ainda que CNV, privilegiou o esclarecimento das violações pra-
de da atuação dos Poderes Executivo, Legislativo e ações excepcionais (como o estado de emergência, a tenha direcionado seus esforços prioritariamente a ticadas a partir do golpe de Estado de 1964.
Judiciário ou do Ministério Público e em decorrência guerra, o estado de perigo, etc.), quanto para indicar investigações de graves violações, a CEV-Rio buscou
da ação de agentes públicos e pessoas a serviço de a transgressão a normas imperativas do direito inter- apurar também outros tipos de violações de direi- As atividades da Comissão da Verdade
qualquer ente da federação, no nível nacional, regio- nacional (normas de ius cogens), como aquelas refe- tos humanos cometidas durante a ditadura, como a do Rio
nal ou local. Violações de direitos humanos também rentes à proibição do genocídio, dos crimes de guerra perseguição ao movimento negro, a remoção forçada
podem resultar da atuação de grupos que agem com e dos crimes de lesa humanidade. de moradores de favela, a expropriação das terras A equipe de trabalho e as frentes de atuação da CEV-
o apoio ou a aquiescência do Estado, mesmo quando dos trabalhadores rurais, a discriminação contra Rio
não se comprove um vínculo formal do agente com Diante da inexistência de um rol taxativo de gra- mulheres e homossexuais e a restrição dos meios de
o poder público e ainda da atuação de particulares ves violações de direitos humanos em tratados in- subsistência e da qualidade de vida dos trabalha- Na fase inicial, a CEV-Rio dedicou-se à sua es-
quando se demonstre que o poder público não em- ternacionais ou na legislação interna, tem cabido dores urbanos. São violações que, apesar de tradi- truturação administrativa. O decreto estadual nº
pregou a devida diligência para prevenir e sancio- prioritariamente aos tribunais internacionais de cionalmente não serem conceituadas como graves 44.103, de 12 de março de 2013, que regulamentou
nar o ocorrido5. direitos humanos a identificação de tais violações. pelo arcabouço liberal do Direito Internacional dos a lei 6.335/12, determinou que a Comissão seria
De forma geral, pode-se dizer que hoje constituem Direitos Humanos, merecem nossa atenção, pois constituída por sete membros, uma secretária exe-
Nesse ponto, é preciso considerar uma questão en- graves violações de direitos humanos: detenções/ além de atingirem milhares de vidas, encontram-se cutiva e dez assessores.
frentada pela CEV-Rio no que se refere a conflitos prisões arbitrárias e ilegais; tortura e outros trata- associadas à prática sistemática de prisões ilegais,
por terra e repressão no campo ocorridos no estado mentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; torturas, desaparecimentos forçados e execuções. Inicialmente, a composição do colegiado era for-
do Rio de Janeiro. No contexto rural, a maior parte execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais; de- mada por Álvaro Caldas, jornalista, ex-membro
das violações de direitos humanos foram praticadas saparecimentos forçados; deslocamento forçado de No marco espacial, coube a CEV-Rio o exame das do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário
por agentes privados que contavam com a anuência, populações; e a discriminação sistemática com base violações de direitos humanos ocorridas no Estado (PCBR) e ex-preso político; Eny Moreira, advoga-
conivência ou omissão do poder público.Em razão no gênero ou na raça6. do Rio de Janeiro. Suas atividades procuraram elu- da de presos políticos, idealizadora e co-autora do
dos critérios acima expostos, tais violações foram ob- cidar as estratégias repressivas no estado, sem que Projeto Brasil Nunca Mais; Geraldo Cândido, sin-
jeto de investigação da CEV-Rio e são consideradas Com base nessas considerações, a CEV-Rio orientou isso implicasse desconsiderar a estrutura geral do dicalista e ex-senador da República; João Ricar-
como de responsabilidade do Estado brasileiro. seus trabalhos para o exame e esclarecimento dos ca- Estado ditatorial. No que se refere aos mortos e de- do Dornelles, advogado e professor da PUC-Rio;
sos de prisões ilegais e arbitrárias, torturas, mortes saparecidos, a CEV-Rio considerou todos os casos de Marcello Cerqueira, advogado de presos políticos e
Os principais elementos que caracterizam uma viola- (execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais) e vítimas da ditadura nascidas no Rio de Janeiro e vice-presidente da União Nacional dos Estudantes
ção de direitos humanos como grave são o caráter in- de vítimas que, apesar de nascidas em outro estado, (UNE) em 1964; e Nadine Borges, advogada, ex-co-
6. Estas violações foram caracterizadas como graves em uma série de docu-
derrogável dos direitos afetados e/ou a vulneração de mentos internacionais dentre os quais destaca-se, sem pretensão de exaus- foram mortas ou desapareceram no Rio de Janeiro. ordenadora da CEMDP, ex-Secretária Nacional de
tão: ONU. Study concerning the right to restitution, compensation and reha-
normas imperativas do direito internacional. Dessa bilitation for victims of gross violations of human rights and fundamental Promoção dos Direitos Humanos da Secretaria de
freedoms. Relatório submetido pelo Relator Especial Theo Van Boven. E/
forma, a expressão “graves violações de direitos hu- CN.4/Sub.2/1993/8, 2 de julho de 1993, para. 13. ONU. Resolução 61/153 da O marco temporal das investigações foi definido pela Direitos Humanos da Presidência da República e
manos”, mesmo não sendo estática, é utilizada para Assembléia Geral. “La tortura y otros tratos o penas crueles, inhumanos o lei 6.335/12 como aquele previsto pelo artigo 8º do assessora da CNV. A presidência da CEV-Rio ficou
degradantes” ((A/61/443/Add.1 y Corr.1). 14 de fevereiro de 2007. ONU. Reso-
designar tanto a violação a direitos considerados in- lução 61/173 da Assembléia Geral. “Execuciones extrajudiciales , sumarias o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a cargo de Wadih Damous, advogado trabalhista,
arbitrarias”. (A/61/443/Add.2 y Corr.1). 1 de março de 2007. ONU. Observação
5. ONU. Responsabilidad del Estado por hechos internacionalmente ilícitos. Geral nº31 do Comitê de Direitos Humanos. Naturaleza de la obligación jurí- (ADCT), entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outu- presidente da Comissão Nacional de Direitos Hu-
Resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas, 56º período de sessões, dica general impuesta a los Estados Partes en el Pacto. U.N. Doc. CCPR/C/21/
Doc. AG/RES/56/83, 28 de Janeiro de 2002. CORTE IDH. Caso Velasquéz Ro- Rev.1/Add.13, de 26 de maio de 2004, par. 18. ONU. Observação geral Nº29, manos da OAB e ex-presidente da Seccional do Rio
driguez vs. Honduras. Sentença de mérito de 29 de julho de 1988. Série C,
Nº4, para. 169- 172; Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de
Estados de emergencia. (artigo 4), CCPR/C/21/Rev.1/Add.11, 31 de agosto de
2011, para. 11. CORTE IDH. Barrios Altos vs. Peru. Sentença de 14 de março
7. Para uma análise mais aprofundada desses conceitos, ver: capitulo 7 (Qua-
dro conceitual das graves violações) do Relatório Final da CNV e o documen-
de Janeiro da OAB por dois mandatos (2007-2009
2006. Série C Nº 149, para. 85-86; Caso Massacre de Mapiripan vs. Colombia. de 2001. Série C, Nº 75, para. 41. CORTE IDH. Gelman vs. Uruguai. Sentença to intitulado “Embasamento jurisprudencial internacional do quadro concei- e 2010-2012). Em julho de 2014, a presidência foi
Sentença de 15 de setembro de 2005. Série C N.º134, para. 120-122. de 24 de fevereiro de 2011. Série C, Nº 221, para. 205. tual adotado pela CNV” (Arquivo CNV, 00092.002740/2014-11.

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assumida interinamente por Nadine Borges. Wa- direitos humanos, apontando os responsáveis e es- a) GT DOPS oito diligências no local. Em algumas, os integran-
dih Damous retoma a presidência em outubro do clarecendo o modelo de funcionamento estatal bem tes do GT estiveram acompanhados de ex-presos
mesmo ano ficando até junho de 2015, quando Rosa como a institucionalidade social do regime autori- O GT DOPS resultou de uma antiga demanda da políticos e de agentes do INEPAC, o que permitiu
Cardoso da Cunha é nomeada presidente da Comis- tário, com ênfase nas seguintes temáticas: financia- sociedade civil de transformar o prédio do ex-Depar- o levantamento de informações acerca da conserva-
são da Verdade do Rio. Rosa é advogada, atuou em mento e apoio civil-empresarial à ditadura, atuação tamento de Ordem Política e Social do então Esta- ção das características originais do espaço. Durante
defesa de presos políticos e foi membro da CNV.. dos poderes Executivo, Legislativo e Judicial e a res- do da Guanabara (DOPS), na Rua da Relação, em as visitas foi localizada, no interior do prédio, vasta
Em 7 de agosto de 2015, Vera Ligia Huebra Neto ponsabilidade das Forças Armadas. centro de memória. Tombado em 1987 pelo Instituto documentação abandonada, em avançado estado de
Saavedra Durão, jornalista e ex-presa política, jun- Estadual de Patrimônio Cultural (INEPAC), devido deterioração devido às inadequadas condições de ar-
tou-se à equipe. IV. Centros Clandestinos e Oficiais de Repressão e à sua importância histórica e arquitetônica, “princi- mazenamento.
Lugares de Resistência palmente pela celebração aos brasileiros que ali fo-
Na etapa inicial, além da equipe de assessores, foram ram torturados pelas suas ideias e práticas políticas
definidos os temas que deveriam ser investigados, as Identificar e tornar públicas as estruturas, os locais, progressistas e populares”8, pertence atualmente à
fontes de pesquisa e os meios necessários à sua reali- as instituições e as circunstâncias relacionadas à Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.
zação. Foram estabelecidas cinco frentes de atuação: prática de violações de direitos humanos;
O GT, sob a coordenação da CEV-Rio, fomentou o
I. Mortos e Desaparecidos Políticos Revelar o método de funcionamento desses locais. debate e a reflexão sobre a história do prédio, pro-
moveu a articulação política em torno da trans-
Esclarecer casos de morte e desaparecimento; V. Observatório para a Não-Repetição formação do espaço em centro de memória, acom-
panhou as obras na fachada do prédio e organizou
Identificar fatos, circunstâncias e autoria desses fatos; Mapear os padrões de violações de direitos humanos atividades, como seminários, diligências, audiências
atuais que se relacionam com a violência institucio- públicas e reuniões com as autoridades estatais. O
Utilizar acervos arquivísticos como fontes de pes- nalizada durante a ditadura militar, recomendar Seminário “DOPS: Ocupar a Memória – Um Espa-
quisa (Arquivo Nacional, Arquivo Público do Estado ao Estado a adoção de medidas e políticas públicas ço em Construção”, ocorrido em novembro de 2013
do Rio de Janeiro, entre outros). para evitar a repetição de tais práticas. em frente ao edifício, contou com a participação de
ex-presos e perseguidos políticos, militantes de di-
II. Planos e Atentados Terroristas praticados por Grupos de Trabalho reitos humanos e gestores de políticas públicas. A
agentes do Estado audiência pública, realizada em agosto de 2014, em
Além das frentes de atuação da CEV-Rio, foram conjunto com a Comissão de Direitos Humanos e
Investigar e explicar os atentados ocorridos no Rio estruturados Grupos de Trabalho (GT) para apoiar Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do
de Janeiro durante a ditadura, como o caso do Rio- as iniciativas que vinham sendo realizadas por Rio de Janeiro (ALERJ), propôs a afetação do pré-
centro e da bomba que explodiu na OAB; órgãos do poder público ou entidades da socieda- dio à Secretaria Estadual de Cultura com o objetivo Durante diligência realizada pelo GT Dops encontraram-se documentos
de civil. Os encontros desses grupos aconteceram de garantir a execução de uma política organizada da repressão em avançado estado de abandono e deterioração
Foto: Bruno Marins
Esclarecer o funcionamento do Estado de exceção. periodicamente e reuniram pessoas engajadas no em quatro pilares: Memória e Conhecimento, Ges-
tema da Justiça de Transição; entidades de direi- tão Participativa, Direitos Humanos e Integração b) GT Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao
III. Financiamento, Estruturas e Institucionalidade tos humanos e de memória, verdade e justiça; as- Comunitária. Outras importantes iniciativas foram Movimento Sindical
da Repressão sessores da CEV-Rio; e convidados que auxiliaram as diligências no interior do prédio. Foram feitas
no desenvolvimento dos trabalhos. Os GTs consti- Para que a CEV-Rio pudesse aprofundar suas in-
Identificar a cadeia de comando das violações de tuídos foram: 8. INEPAC. Processo nº E-18/300071/87. Ofício Nº16/INEPAC/87 de 11 de mar- vestigações acerca da repressão aos trabalhadores
ço de 1987.

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foram mobilizados representantes de diferentes ca de reparação voltada para os afetados pela vio- o Museu Imperial ofertava acesso aos arquivos his- os depoentes transitassem da posição de vítima à de
centrais sindicais, tais como Central Única dos lência do Estado ditatorial. O GT objetivou, assim, tóricos da 37ª Delegacia de Polícia de Petrópolis; o testemunha. A realização dos Testemunhos da Ver-
Trabalhadores, Central Sindical e Popular – Con- auxiliar a CEV-Rio na coleta dos depoimentos re- Centro de Defesa dos Direitos Humanos realizava dade, no formato de audiência pública, representou,
lutas, Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras servados e públicos, bem como reforçar o caráter inúmeros debates e campanhas e o Comitê Petrópo- assim, uma forma de reparação aos atingidos pela
do Brasil, União Geral dos Trabalhadores, Inter- pedagógico, político e reparatório dos testemunhos lis em Luta organizava atos públicos sobre o tema. ditadura, pois ajudou a reconstruir a memória cole-
sindical e Força Sindical. prestados à Comissão. tiva, associando a singularidade das experiências a
O GT dedicou-se à investigação dos fatos relacionados uma narrativa compartilhada socialmente.
Os principais objetivos do GT foram levantar quan- Diversas atividades foram realizadas no âmbito do à Casa da Morte e procurou contribuir para a cons-
tos e quais sindicatos sofreram invasão e interven- GT. Destacam-se as audiências públicas sobre os trução de políticas de não-repetição, prestando apoio
ção a partir do Golpe de Estado de 1964; estimar efeitos transgeracionais da violência de Estado, que às iniciativas de criação de um memorial na cidade.
quantos trabalhadores foram submetidos a viola- contaram com a participação de integrantes do Gru-
ções de direitos humanos, analisar a rede de repres- po Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, O GT se reuniu seis vezes na cidade de Petrópolis e
são aos trabalhadores, e, por fim, apontar as evidên- criado em dezembro de 2014. Também foram rele- contou com a participação do Centro de Defesa dos
cias da participação e do apoio de empresas públicas vantes o ato que debateu, por meio de depoimentos Direitos Humanos de Petrópolis, do Comitê Petró-
e privadas ao regime militar. de militares perseguidos e torturados, a violência polis em Luta e do Coletivo RJ Memória Verdade
sofrida por esse grupo e a audiência pública sobre o e Justiça, tendo realizado intervenções em conjunto
A CEV-Rio estabeleceu cinco categorias traba- Hospital Central do Exército, na qual foram ouvidos com a Juventude do Partido dos Trabalhadores em
lhistas prioritárias, seguindo a orientação do GT testemunhos de ex-presos internados no local. Petrópolis, Levante Popular da Juventude, União
Trabalhadores da CNV: bancários, metalúrgicos, da Juventude Socialista de Petrópolis, Quizomba,
portuários, petroleiros e ferroviários. A partir da d) GT Casa da Morte de Petrópolis Partido Comunista Revolucionário, Partido Comu-
demanda de outras categorias organizadas, foram nista do Brasil e, como observador, o Grupo Tortura
acrescentados também jornalistas, operários na- A CEV-Rio realizou inúmeras reuniões em Petró- Nunca Mais do Rio de Janeiro.
vais e metroviários. Para contar a história da luta polis, em diálogo com atores locais interessados em
e resistência dos trabalhadores, o GT Ditadura e debater as violações de direitos humanos ocorridas Audiências Públicas/Testemunhos da Verdade
Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sin- na cidade durante a ditadura. Petrópolis apresen-
dical desenvolveu análise documental, coletou de- tou um cenário fértil para o trabalho da Comissão, A CEV-Rio teve como uma de suas principais ati-
poimentos privados e realizou cinco atividades pú- em razão das lutas em torno da construção de um vidades os Testemunhos da Verdade, uma tomada
blicas que somaram 22 depoimentos. espaço de memória na antiga Casa da Morte, centro pública de depoimentos de ex-presos e perseguidos
de prisão e tortura montado pelo Exército brasileiro políticos e de familiares de mortos e desaparecidos.
c) GT Testemunhos durante a primeira metade dos anos 1970. Em todos eles, foram realizadas conversas anterio-
O primeiro Testemunho da Verdade realizado pela CEV-Rio lotou o
res com os depoentes, valendo-se da metodologia de- plenário da ALERJ para ouvir os depoimentos de Dulce Pandolfi (foto) e
O GT Testemunhos foi concebido em parceria com o Uma série de ações, oficiais e não oficiais, já vinha senvolvida pelo Projeto Clínicas do Testemunho, que Lucia Murat
Foto: Fabio Cascardo
Projeto Clínicas do Testemunho, do Instituto Proje- sendo desenvolvida na cidade: a Procuradora Fe- visa trabalhar o cuidado, a clareza do depoimento e
tos Terapêuticos do Rio de Janeiro. O Projeto, liga- deral Vanessa Seguezzi conduzia investigações so- o caráter político do testemunho público.
do à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, bre os possíveis desaparecidos políticos da Casa da Ao longo de quase três anos de trabalho foram reali-
oferece assistência psicológica aos afetados pela Morte; a Prefeitura, na figura do Procurador-Geral Ao dar voz aos afetados pela violência de Estado, o zadas 80 audiências públicas sendo, a maioria, Teste-
violência estatal, capacita profissionais e elabora Marcos São Thiago, havia se comprometido com a Testemunho da Verdade contribuiu para evidenciar munhos da Verdade. Somando-se com os depoimen-
subsídios para a construção de uma política públi- desapropriação e criação de um memorial na casa; os efeitos de tão longo silenciamento e permitiu que tos privados, a CEV-Rio ouviu mais de 200 pessoas.

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Diligências das esferas municipal, estadual e federal9. (FAPERJ) à disposição para negociações referentes b) “Arqueologia da reconciliação: formulação, aplica-
ao financiamento de projetos de pesquisas que sub- ção e recepção de políticas públicas relativas à viola-
A CEV-Rio realizou visitas de reconhecimento a sete Plenárias de Recomendações sidiariam os trabalhos da Comissão. ção de direitos humanos durante a ditadura militar”
centros de repressão da ditadura para coleta de in- (CPDOC/FGV - Coordenado por Angela Moreira Do-
formações, documentos e dados: Destacamento de A edição do Fórum de Participação de 10 de outubro No dia 04 de outubro de 2013, a FAPERJ lançou o mingues da Silva)
Operações de Informações - Centro de Operações de de 2014 inaugurou uma nova atividade: as Plenárias edital nº38/2013 Programa “Apoio ao estudo de te-
Defesa Interna do 1º Exército (DOI-CODI), Departa- de Recomendações. Estas Plenárias reuniram repre- mas relacionados ao direito à memória, à verdade c) “O Testemunho como Janela: O Perfil dos Atin-
mento de Ordem Política e Social (DOPS), Vila Mi- sentantes da sociedade civil e especialistas em temas e à justiça relativas a violações de direitos huma- gidos e a Estrutura Repressiva do Estado Dita-
litar, Ilha das Flores (São Gonçalo), 1º Batalhão de relacionados aos trabalhos da Comissão com o obje- nos no período de 1946 a 1988”10. Este edital visou torial no Rio de Janeiro a partir de Testemunhos
Infantaria Blindada do Exército de Barra Mansa (1º tivo de debater publicamente a construção das reco- a seleção de projetos coordenados por pesquisadores dados à Comissão de Reparação do Estado do Rio
BIB), Ypiranga Futebol Clube e antiga delegaci de mendações que deveriam constar neste Relatório. vinculados a instituições de ensino e pesquisa sedia- de Janeiro” (PPGHIS/ UFRJ - Coordenado por
Polícia Civil de Macaé. A partir dessas diligências, das no Estado do Rio de Janeiro e seguiu orientações Marcos Luiz Bretas)
que contou com a participação de ex-presos políticos, Entre os 18 Fóruns, cinco assumiram o formato de que estruturavam o próprio ordenamento dos tra-
foi possível identificar celas destinadas à prisão e Plenária, em que se discutiram: a abordagem da di- balhos da CEV-Rio. A iniciativa teve investimento d) “Justiça autoritária? Uma investigação sobre a
tortura de opositores e confeccionar croquis dos cô- tadura nos espaços de ensino (10/10/2014); liberda- total de R$ 2 milhões, distribuídos entre sete proje- estrutura da repressão no Poder Judiciário do Esta-
modos utilizados pela repressão e na configuração de de expressão, liberdade de manifestação e demo- tos contemplados, de seis universidades do Estado do do Rio de Janeiro (1964-1985)” (FND/UFRJ - Co-
espacial da época, uma vez que os locais sofreram cratização dos meios de comunicação (28/11/2014); do Rio de Janeiro (UFRJ, UFRRJ–CPDA, UFF-VR, ordenado por Vanessa Oliveira Batista Berner)
reformas ao longo do tempo. Para a tarefa, cabe des- autos de resistência (31/10/2014); desmilitarização PUC-RIO, FGV, IBMEC).
tacar a colaboração da equipe do núcleo pericial da da Justiça (29/04/2015) e resoluções da Corte Inte- e) “A estrutura de atuação do Poder Judiciário no
CNV, que elaborou laudos periciais e relatórios téc- ramericana de Direitos Humanos no caso Gomes O edital resultou de uma ação inédita no que diz res- Estado do Rio de Janeiro durante o governo mili-
nicos a partir das diligências. Lund e outros (“Araguaia”) vs. Brasil (12/06/2015). peito às atividades das Comissões da Verdade insta- tar e recomendações para políticas públicas de não
ladas no Brasil e um marco na Justiça de Transição. repetição neste âmbito” (IBMEC - Coordenado por
Fórum de Participação Parceria com a Fundação Carlos Chagas Filho de A parceria da CEV-Rio com os grupos de pesquisas Daniela Silva Fontoura de Barcellos)
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro se deu em vários âmbitos de atuação: seminários
A CEV-Rio procurou atuar em sintonia com os fa- realizados nas respectivas universidades, coleta pú- f) “O 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exérci-
miliares de mortos e desaparecidos, ex-presos po- Na posse da CEV-Rio, o então governador do Estado, blica e privada de depoimentos, divulgação das pes- to e a repressão militar no Sul Fluminense” (UFF/
líticos, militantes por memória, verdade e justiça Sergio Cabral, anunciou o compromisso em apoiar o quisas em jornais de grande circulação, acesso aos Volta Redonda - Coordenado por Ozanan Carrara)
e com as organizações de direitos humanos e da estudo de temas relacionados à apuração de viola- arquivos e digitalização de acervos.
sociedade civil. Construiu o Fórum de Participa- ções de direitos humanos durante o período da di- g) “Políticas Públicas de Memória para o Estado do
ção como um instrumento de gestão participativa tadura, colocando a Fundação Carlos Chagas Filho As pesquisas contempladas pelo edital da FAPERJ Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não-
e espaço institucional de divulgação das atividades de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro foram: -repetição” (NDH/PUC-Rio - Coordenado por José
realizadas e de apresentação das investigações em 9. Dentre os participantes, destacam-se: Associação Nacional dos Anistiados María Gómez)
andamento. Realizadas mensalmente, na última Políticos, Aposentados e Pensionistas; Centros Acadêmicos das universida- a) “Conflitos e repressão no campo no estado do Rio
des públicas do RJ; Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis;
sexta-feira de cada mês, ocorreram 18 edições do Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça; Comissão de Direitos Humanos da de Janeiro (1946-1988)” (CPDA/UFRRJ - Coordena- Pesquisadores Colaboradores
OAB; Conselho Regional de Psicologia; Grupo Tortura Nunca Mais; Instituto
Fórum, com uma média de 50 participantes por Estudos da Religião (ISER); Movimento Popular de Favelas; União Brasilei- do por Leonilde Medeiros)
ra dos Estudantes Secundaristas. É importante lembrar também que repre-
encontro, reunindo mais de 70 entidades e órgãos sentantes de diversos arquivos estiveram presentes como, Arquivo Nacional, Na discussão para a elaboração deste Relatório Fi-
públicos, além de diversos setores governamentais CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação da FGV), APERJ (Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro), Arquivo Geral da Cidade do Rio de
nal foram identificados alguns temas não contem-
Janeiro, Centro de Documentação da CUT e Arquivo de Memória Operária 10. Colaborou na elaboração do projeto que deu origem a este edital a pesqui- plados pelas pesquisas em andamento e que ganha-
do Rio de Janeiro. sadora Luciana Lombardo.

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ram importância nos trabalhos da Comissão, em Os textos produzidos pelos colaboradores tiveram os colaboradores que permitiram, com sua generosa a capital do Estado do Rio de Janeiro, mas também
razão de manifestação nos depoimentos colhidos seguintes títulos: cooperação, ampliar a perspectiva inicial que es- as demais regiões.
ou documentos encontrados nos arquivos. A CEV- truturou as atividades desta Comissão. Todas as
-Rio convidou, então, pesquisadores externos para a) “Colorindo memórias e redefinindo olhares: dita- pesquisas estarão disponíveis na versão digital Em 26 de junho de 2015, a CEV-Rio realizou um
colaborar, ampliando as pesquisas nas seguintes dura militar e racismo no Rio de Janeiro” (Pesquisa- deste Relatório. encontro com as Comissões Municipais da Verdade,
frentes: empresariado, grande imprensa e a questão dora: Thula Rafaela de Oliveira Pires) a fim de incluí-las no processo de elaboração deste
da dívida pública; a ditadura nas favelas cariocas; a Parceria com as Comissões Municipais da Verdade Relatório Final. Durante a reunião, as comissões
violência contra a população negra; a perseguição a b) “A ditadura nas favelas do Rio de Janeiro” (Pes- presentes12 apresentaram as principais linhas de
pessoas LGBT e a violência de gênero exercida pelo quisadores: Juliana Oakim e Marco Pestana) A construção de uma Comissão Municipal seguiu o pesquisa e os resultados obtidos.
Estado ditatorial. seguinte procedimento: a CEV-Rio fez contato com
c) “Ex-presas na justiça de transição brasileira: a sociedade civil organizada da cidade visando de- Parceria com as Comissões Estaduais da Verdade
acordar as múltiplas vozes silenciadas” (Pesquisa- bater o tema da ditadura e das violações de direitos
dora: Natacha Nicaise) humanos ocorridas naquele período; em seguida, Além de trabalhar junto com as comissões munici-
foram realizadas reuniões de trabalho para que a pais instaladas no Estado do Rio de Janeiro, a CEV-
d) “Ditadura e homossexualidades no estado do Rio proposta de uma Comissão da Verdade fosse pensa- -Rio realizou parcerias com Comissões Estaduais
de Janeiro” (Pesquisadores: James Green e Renan da coletivamente; paralelo a esse processo foi possí- da Verdade, como as de Pernambuco, Paraíba e São
Quinalha) vel, em alguns municípios, envolver órgãos do poder Paulo, e comissões municipais de outros Estados,
público local que já trabalhavam com essa pauta; o como a de Juiz de Fora, que se deram através do
e) “A ditadura militar e o capitalismo brasileiro” pleito era proposto no formato de projeto de lei que intercâmbio de pesquisas e informações e na parti-
(Pesquisador: Demián Melo) passaria por aprovação na Câmara Municipal para cipação de eventos.
ser sancionado pelo prefeito. A CEV-Rio estimulou a
f) “As empresas nacionais de construção e a dita- criação de Comissões da Verdade em nove municí- Nos dias 16 e 17 de abril de 2015, a CEV-Rio sediou o
dura civil-militar, 1964-1988” (Pesquisador: Pedro pios: Niterói, Macaé, Volta Redonda, Duque de Ca- Encontro Nacional das Comissões Estaduais da Ver-
Henrique Pedreira Campos) xias, São Gonçalo, São João de Meriti, Barra Mansa, dade, que tinha por objetivo promover o intercâmbio
Nova Friburgo e Petrópolis11. de experiências e incentivar a colaboração entre as
g) “Grupos midiáticos e ditadura: estudo de caso comissões. Participaram do Encontro representan-
das Organizações Globo” (Pesquisador: João Braga As Comissões Municipais tiveram papel fundamen- tes da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo
Arêas) tal na identificação de indivíduos e grupos sociais - Rubens Paiva, Comissão Estadual da Memória e
atingidos pela ditadura militar, desenvolvendo pes- Verdade Dom Helder Câmara, Comissão Estadual
h) “Quem se beneficiou da Dívida Pública durante a quisas, colhendo testemunhos e mapeando os espa- da Verdade do Paraná – Teresa Urban, Comissão
Ditadura” (Pesquisador: Marcos Arruda) ços de memória e locais de prisão e tortura em seus Estadual da Verdade e da Preservação da Memória
respectivos municípios. Os trabalhos das Comissões da Paraíba e de Minas Gerais, além do Rio de Janei-
Os resultados das pesquisas, que subsidiam este são de extrema importância, pois evidenciam que a ro. Foram convidados, também, o MPF, a Comissão
Relatório Final, foram apresentados durante Semi- repressão e a violência da ditadura atingiram não só Especial sobre Mortos e Desaparecidos, a Comissão
nário “Construindo a Verdade – Pesquisas sobre a 11. Cabe salientar que a Comissão Municipal da Verdade de Petrópolis foi de Anistia e o Núcleo de Estrutura Temporária para
criada em julho de 2014, pela lei nº 7.207, de 23 de julho de 2014, mas até o
Seminário “Construindo a Verdade – Pesquisas sobre a ditadura de 64 ditadura de 64 no Rio de Janeiro”, no Arquivo Na- momento ainda não foi regulamentada. Para dar continuidade a esse trâmite, a Organização do Acervo da CNV visando debater e
no Rio de Janeiro”, promovido pela CEV-Rio, no Arquivo Nacional, reuniu
pesquisadores que subsidiaram o trabalho da CEV-Rio cional. A atividade reuniu os sete projetos contem- foi instalado, em 18/04/2015, o grupo “Pró-Comissão Municipal da Verdade
de Petrópolis”, com o objetivo de regulamentar a Comissão Municipal da
Foto: Bruno Marins plados pelo edital da FAPERJ e os pesquisadores Verdade de Petrópolis conforme os critérios da lei e propor uma concepção 12. Niterói, Macaé, Volta Redonda, Duque de Caxias, São Gonçalo e Petró-
participativa e democrática. polis.

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dar prosseguimento ao que a CNV e as Comissões Por isso, decidimos: exemplo, no projeto Clínicas do Testemunho da Co- Parceria com o Arquivo Público do Estado do Rio de
Estaduais apresentam como recomendações em missão de Anistia. Janeiro
seus relatórios. 1. Criar uma rede nacional de comissões da verda-
de, com uma coordenação para fazer cumprir e dar Parceria com a Secretaria Estadual de Educação O acesso à vasta documentação utilizada nas in-
No encontro, todas as comissões tiveram a oportuni- prosseguimento ao que a CNV e demais Comissões vestigações abordadas neste Relatório resulta de
dade de apresentar as pesquisas feitas e comparti- da Verdade recomendam em seus relatórios; A CEV-Rio entende que homenagem a ditadores importante parceria entre a CEV-Rio e o Arquivo
lharam métodos de trabalho e linhas de pesquisas, e aos responsáveis por graves violações de direi- Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Além
além de relatar casos que poderiam ser investigados 2. Buscar cooperação de entidades da sociedade civil tos humanos, através da nomeação de instituições de a equipe contar com a estrutura necessária ao de-
de forma colaborativa. Para garantir o prossegui- comprometidas com o Estado de Direito para a con- ou logradouros públicos, é incompatível com a senvolvimento de suas pesquisas, parte dos pesqui-
mento dos trabalhos desenvolvidos pelas comissões, tinuidade deste trabalho; democracia. Em agosto de 2013, a Comissão, em sadores teve acesso direto aos fichários do DOPS, o
redigiu-se uma carta que foi assinada por todas as parceria com a Superintendência de Promoção de que dinamizou as investigações. Destaca-se, ainda,
comissões presentes. 3. Solicitar uma audiência pública ao Supremo Tri- Direitos Humanos da Secretaria de Estado de As- o auxílio dado pelo APERJ aos pesquisadores dos
bunal Federal para tratar do cumprimento da deci- sistência Social e Direitos Humanos (SEASDH) e projetos contemplados pelo edital FAPERJ e pesqui-
Carta das Comissões Estaduais da Verdade são da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com a Secretaria de Estado de Educação, iniciou sadores colaboradores.
da aplicação da Lei de Anistia, da judicialização dos um trabalho de sensibilização com professores e
Reunidos no Rio de Janeiro, nos dias 16 e 17 de abril casos de crimes de lesa humanidade e do prossegui- alunos do ensino médio e fundamental do Colé- Como o APERJ é a instituição responsável pela
de 2015, os signatários assumem a responsabilida- mento dos processos já existentes. gio Estadual Presidente Costa e Silva, em Nova guarda dos documentos produzidos pelas polícias
de de dar continuidade ao processo de desconstru- Iguaçu, na Baixada Fluminense, a fim de propor políticas que atuaram no âmbito dos estados da
ção do legado autoritário da ditadura civil-militar 4. Solicitar ao Poder Executivo a articulação e cons- a mudança do nome da instituição. No dia 13 de Guanabara e do Rio de Janeiro, a CEV-Rio solicitou
de 1964, pois entendem que a luta por verdade não trução de uma política nacional de espaços de memó- dezembro do mesmo ano, o colégio passou a se ao órgão um parecer técnico sobre a documentação
se encerra após o término dos trabalhos da Comis- ria nas cidades brasileiras, para que sejam promo- chamar Abdias Nascimento, nome escolhido pela encontrada no prédio do DOPS. Devido ao estado de
são Nacional da Verdade (CNV) e a entrega do seu vidos debates permanentes, como ação fundamental comunidade escolar. armazenamento do material, não foi possível veri-
relatório final. que possa garantir a não repetição dos crimes ocor- ficar toda a documentação. No entanto, as equipes
ridos na ditadura. Para tanto, contou-se com a iniciativa do quadro do APERJ e do Centro de Referência das Lutas Po-
Reafirmamos nosso compromisso com a expansão docente da instituição, que já desenvolvia o pro- líticas - Projeto Memórias Reveladas, vinculado ao
das políticas de memória, verdade e reparação em 5. Direcionar o esforço das Comissões da Verda- jeto pedagógico intitulado Saber Étnico Racial. A Arquivo Nacional, detectaram a presença de docu-
curso, mas precisamos avançar no processo de tran- de Estaduais para a busca e entrega de provas de escolha do nome de Abdias Nascimento homena- mentos que poderiam auxiliar no esclarecimento da
sição para uma democracia mais ampla. A questão crimes de lesa humanidade ao MPF visando a sua geia, portanto, uma referência na militância do estrutura e do funcionamento do aparato repressivo
hoje colocada em nossa agenda é Justiça. judicialização. movimento negro e uma figura política importan- do Estado durante a ditadura militar. As equipes
te na história do Brasil, que lutou pela democracia concluíram ser necessária a higienização dos docu-
Neste momento em que a nação exige a apuração e 6. Intensificar a busca de informações sobre os de- e pela igualdade racial antes, durante e depois da mentos encontrados para que possam ser posterior-
punição para tantos crimes, como forma de evitar saparecidos políticos e apoiar a reconstituição e o ditadura. Abdias foi fundador do Teatro Experi- mente manuseados. Apesar de notificadas as instân-
a sua repetição, não podemos aceitar que permane- trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desa- mental do Negro e o primeiro deputado federal a cias administrativas responsáveis, o grupo flagrou
ça a impunidade dos crimes de lesa humanidade parecidos Políticos. dedicar seu mandato à luta contra o racismo. Foi a permanência do material no prédio do DOPS, nas
praticados pela ditadura e por aqueles que a CNV senador e, no governo de Leonel Brizola, nomeado mesmas condições de abandono. Ao retornar em
identificou, muitos já denunciados pelo Ministério 7. Intensificar as políticas de reparação, principal- Secretário de Defesa e Promoção das Populações nova diligência, foi possível identificar que a docu-
Público Federal (MPF). mente no âmbito do apoio psicológico aos atingidos Afro-Brasileiras do Estado do Rio de Janeiro. mentação havia sido retirada da sala e levada para
pela repressão e seus familiares, como se dá, por local desconhecido.

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Uma grande parte da documentação trabalhada A fim de construir uma agenda comum de pesquisa (CSN), na Casa da Morte de Petrópolis, no 1º Ba-
pela CEV-Rio, disponível fisicamente no APERJ, foi nos arquivos da Companhia Siderúrgica Nacional talhão de Infantaria Blindada do Exército (BIB) de
digitalizada. Este acervo será destinado ao APERJ (CSN), o AN foi também um importante aliado da Barra Mansa e no DOI-CODI do 1º Exército.
e nele constarão os documentos analisados, referen- CEV-Rio e da Comissão da Verdade de Volta Redon-
ciados ou não ao longo deste Relatório Final, bem da. Tal parceria foi fortalecida em reunião realiza- A elaboração do Relatório Final
como as fotografias e os vídeos das atividades, os do- da, em 12 de fevereiro de 2015, com o procurador do
cumentos internos da Comissão (como ofícios e rela- Ministério Público Federal de Volta Redonda, Julio A partir de julho de 2015, as atividades da CEV-Rio
tórios de diligência), os testemunhos e depoimentos José Araújo Junior, e representantes da companhia. passaram a ser direcionadas para a elaboração des-
coletados. O objetivo é que o fundo documental possa Pelo acordo firmado, a CSN permitiu acesso a um te Relatório, no atendimento da obrigação estipula-
ser público e acessível, para que se torne ferramenta grupo de pesquisadores das duas comissões aos ar- da no artigo 2º da lei 6.335/2012, segundo o qual “a
de trabalho e pesquisa para os cidadãos interessa- quivos gerais da companhia, a fim de obter e verifi- Comissão deverá apresentar, ao final, relatório cir-
dos. A CEV-Rio entende que este é um passo fun- car se há informações sobre funcionários e registros cunstanciado, contendo as atividades realizadas, os
damental para concretizar o modelo transparente e do período da ditadura, quando a companhia era fatos examinados, as conclusões e recomendações”.
aberto de trabalho que pautou sua atuação. estatal. Para isso, foi preciso montar uma equipe
permanente capacitada pelo curso “Noções de Meto-
Parceria com o Arquivo Nacional dologia para a Pesquisa em Acervos Arquivísticos”,
promovido pelo AN e realizado em 05 de março de
O Arquivo Nacional (AN) contribuiu nas diversas fren- 2015, na Universidade Federal Fluminense (UFF)
tes de pesquisa da CEV-Rio. A riqueza do seu acervo, o de Volta Redonda.
fato de ele ser digitalizado e a permissão de livre aces-
so deram outra dimensão ao trabalho da Comissão. Parceria com o Ministério Público Federal

Entre as atividades realizadas de parceria, desta- O Art. 4º da lei que instituiu a CEV-Rio determinou
cam-se o tratamento conferido ao acervo da Fede- que era seu dever “colaborar com todas as instân-
ração dos Trabalhadores em Agricultura do Rio de cias do Poder Público para apuração de violação
Janeiro (FETAG-RJ), no bairro do Fonseca, em Ni- de direitos humanos, observadas as disposições le-
terói. Em atenção ao pedido do projeto de pesquisa gais”. Deste modo, apesar de não possuir caráter
da FAPERJ “Conflitos e repressão no campo no es- jurisdicional ou persecutório, a CEV-Rio pôde re-
tado do Rio de Janeiro – 1946-1988”, que trabalhou querer, bem como fornecer, ao Ministério Público
este acervo e detectou os documentos nele reunidos, Federal (MPF) informações, dados e documentos,
funcionários da Coordenação de Preservação do públicos ou privados, necessários para o desempe-
Acervo do Arquivo Nacional realizaram, em 01 de nho de suas atividades.
agosto de 2014, visita de assistência técnica à sede
da FETAG, a fim de avaliar o estado de conservação O MPF foi, assim, um importante parceiro em al-
do acervo daquela instituição e prestar orientações gumas das investigações empreendidas pela CEV-
quanto aos procedimentos e tratamentos que deve- -Rio, como no caso de Stuart Edgard Angel Jones,
riam ser realizados. de Raul Amaro Nin Ferreira, de Mario Alves, nos
arquivos da Companhia Siderúrgica Nacional

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PARTE II
O GOLPE DE 1964 E A
DITADURA

Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã


BR_RJANRIO_PH_0_FOT_01996_005

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Capítulo 3 - ANTECEDENTES E O GOLPE tuição de 1946, foi estabelecida a ordem democráti- 1947, porém, em pleno governo Dutra, o PCB volta- O redator do documento foi o então coronel Golbery do
ca, ainda que o período tenha sido marcado por uma ria a ser ilegal. Antes, participou ao lado do PTB da Couto e Silva. Entre seus signatários estavam futuros
Com o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, democracia frágil e instável, permeada por diversas campanha “queremista” que defendia a permanên- generais que, junto com Golbery, estariam na linha de
o mundo passou a viver a chamada Guerra Fria. tentativas de golpes de Estado. cia de Vargas no poder. Adotou a linha da “ordem e frente da conspiração e no primeiro escalão do governo
Este contexto foi marcado por uma disputa política, tranquilidade” para garantir a democracia. do país durante a ditadura, tais como Sylvio Frota, Ed-
econômica e ideológica entre o modelo capitalista, Novos partidos políticos foram organizados: o Par- nardo D’Ávila Melo, Antonio Carlos Muricy, Jurandir
representado pelos Estados Unidos da América, e tido Trabalhista Brasileiro (PTB), que tinha como Em 1949, a sucessão presidencial voltou a movimen- Bizarria Mamede, Adalberto Pereira dos Santos, Eu-
o modelo socialista, liderado pela União das Repú- base os sindicatos criados no período Vargas, bus- tar as forças políticas do país. Eleições foram convo- ler Bentes, Sizeno Sarmento e Amauri Kruel.
blicas Socialistas Soviéticas (URSS). A disputa por cando organizar os trabalhadores por meio de con- cadas para 1950. Em 3 de outubro daquele ano, os
hegemonia entre estes dois blocos de poder resul- cessões de direitos sociais e de luta por um desen- brasileiros deram vitória a Getúlio Vargas, do PTB. O documento teve ampla repercussão entre políticos
tou, em diversos momentos, em conflitos violentos volvimento nacional independente do capitalismo O candidato da UDN, Brigadeiro Eduardo Gomes, oposicionistas liderados por radicais da UDN, parti-
que nada lembravam a ideia de frieza. Ao longo das internacional. Getúlio Vargas era o presidente de sofreu nova derrota. Getúlio venceu com 48% dos vo- do conservador do período, e entre setores militares.
décadas de 1960 a 1980, a América Latina se tor- honra da nova sigla. O Partido Social-Democráti- tos, ante 29% dos votos de Eduardo Gomes e 20% de A reação do governo Vargas foi imediata. Goulart foi
nou um dos principais palcos desta disputa, com gol- co (PSD), que representava a burocracia estatal e Cristiano Machado, candidato do PSD. O resultado destituído da pasta do Trabalho e Ciro do Espírito
pes de Estado e ditaduras militares patrocinadas e antigas oligarquias rurais, tradicionais grupos da do pleito foi duramente questionado pela UDN, com Santo, da pasta do Exército, sendo substituídos por
apoiadas pelos Estados Unidos da América, receosos burguesia agrária, industriais e comerciantes e destaque para o jornalista Carlos Lacerda. Hugo de Faria e pelo general Zenóbio da Costa.
de perderem influência no continente. refletia uma política conservadora. A União Demo-
crática Nacional (UDN), que nasceu em São Paulo, Os três anos e meio do governo Vargas foram de Contudo, Getúlio não abriu mão de efetivar a pro-
O início da Guerra Fria levou à criação no Brasil em 1944, como oposição ao governo Vargas, criada grande efervescência política. O presidente eleito posta feita por Jango. Em 1º de maio, durante as co-
da Escola Superior de Guerra (ESG) em 1949 como por intelectuais liberais e segmentos de esquerda, retomou a política desenvolvimentista de viés na- memorações do Dia do Trabalho, o presidente anun-
Instituto de Altos Estudos de Política, Defesa e Es- contando com a adesão de segmentos da burguesia cionalista de incentivo à industrialização do país, ciou em discurso empolgado o novo valor do mínimo
tratégia, subordinada ao chefe do Estado Maior das industrial e financeira de viés liberal, que se opu- investimentos em infraestrutura e no setor energé- de 2.400 cruzeiros. O fato acelerou a conspiração
Forças Armadas. O anteprojeto de regulamento da nha à intervenção do Estado na economia e a um tico, no campo econômico, e de aproximação com as dos setores que desejavam tirar Vargas do poder. A
ESG foi feito por um grupo da cúpula militar, sob a modelo de desenvolvimento nacionalista. Defendia, massas populares, no campo social. O que irritou as oposição anti-Varguista ganhou um caráter golpista
direção do General Oswaldo Cordeiro de Farias, com ainda, uma aliança com o capital internacional. A oposições defensoras do capital internacional, que através de manobras institucionais.
a participação de militares norte-americanos, inspi- UDN acabou sendo dominada pela corrente interna começaram a fazer dura oposição ao governo.
rado no modelo do National War College. O nasci- situada mais à direita e sua parte centro-esquerda Em junho de 1954, o líder da UDN, Afonso Arinos,
mento da ESG, no quadro da Guerra Fria, seguia os fundou o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Afas- O golpe de Estado de 1964 começou a ser gestado no encaminhou ao Congresso um pedido de impeach-
conceitos da estratégia geopolítica norte-americana, tado Vargas, as eleições ocorreram e foram venci- ano de 1954, no Rio de Janeiro. Em fevereiro daque- ment do presidente, rejeitado na Câmara por 136
que colocava o Brasil na órbita da potência hegemô- das pelo General Dutra, candidato da aliança PTB/ le ano, 42 coronéis e 39 tenentes-coronéis do Exérci- votos contra 35. Os grupos mais reacionários das
nica do Ocidente, os Estados Unidos da América. PSD, que derrotou o Brigadeiro Eduardo Gomes, to divulgaram o “Manifesto dos Coronéis” com duras Forças Armadas e da Cruzada Democrática lança-
candidato da UDN. críticas ao governo de Getúlio Vargas, que voltara ao ram uma ofensiva contra militares nacionalistas,
No plano nacional, após a derrota das forças nazi- poder em 1950. O estopim para a publicação do ma- sob o pretexto de eliminar os comunistas. A ala mais
-fascistas em 1945, ganharam força os movimentos O Partido Comunista Brasileiro (PCB) reorganizou- nifesto foi a proposta feita por João Goulart, o Jan- direitista da UDN, reunida no Clube da Lanterna,
contra o governo Vargas. Assim, abriu-se uma nova -se e voltou à legalidade com a decretação da anis- go, então Ministro do Trabalho de Vargas, de elevar cujo dirigente era Carlos Lacerda, pregava a derru-
conjuntura de democratização que teve como conse- tia, em abril de 1945, e a libertação de Luiz Carlos em 100% o salário mínimo, atendendo à reivindica- bada de Vargas e a implantação de uma ditadura
quência imediata o fim da ditadura do Estado Novo Prestes, que foi eleito Secretário-Geral do partido, ção da Comissão Intersindical Pró-Salário mínimo no país para restaurar a ordem e a moralidade na
mediante uma transição controlada. Com a Consti- depois de duas décadas de clandestinidade. Em dos trabalhadores da indústria. sociedade brasileira.

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Na madrugada de 5 de agosto, um acontecimento O suicídio de Vargas derrotou, momentaneamente, Gerais. Para compor a chapa, a vice-presidência foi apoio civil e militar, o levante se limitou a Aragar-
inesperado acelerou a crise e o isolamento do gover- as pretensões golpistas dos conspiradores civis e mi- oferecida a João Goulart (PTB). Naquela época, o ças, em Goiás, e foi derrotado em 36 horas.
no. Um grupo de pistoleiros atacou Lacerda à por- litares. Contudo, a pressão anti-getulista não cessou voto no vice não era vinculado ao voto no presidente.
ta de sua residência, no Rio. Lacerda sobreviveu, com a morte do presidente. O cargo foi assumido pelo O Partido Social Progressista (PSP), paulista, lan- A carreira do tenente-coronel Burnier, líder de Ara-
mas seu segurança, Major Rubens Vaz, foi atingi- vice João Café Filho, que nomeou políticos udenistas çou Adhemar de Barros. A UDN optou pela candida- garças, ganhou novos rumos após o golpe de 1964.
do e morto. Um grupo de oficiais conspiradores da ou próximos do partido para compor seu Ministério. tura do General Juarez Távora. Na ditadura, foi guindado a patente de Brigadeiro
Aeronáutica instaurou um inquérito próprio para As exceções foram as pastas da Justiça e da Guer- do Ar. No governo Médici, chefiou o Centro de In-
investigar o crime, violando a competência da polí- ra, ocupadas, respectivamente, pelo jurista Seabra Em 3 de outubro de 1955, Kubitschek foi eleito presi- formações da Aeronáutica (CISA), depois de uma
cia e a hierarquia da Presidência da República. Três Fagundes e pelo General Henrique Teixeira Lott. dente. Mais uma vez, a UDN tentou contestar o resul- tentativa frustrada de explodir o Gasômetro e jogar
dias após o ocorrido, Gregório Fortunato, chefe da Eduardo Gomes, candidato da UDN, derrotado por tado das urnas com a tese de que a Constituição de- ao mar políticos importantes, como JK, no episódio
guarda pessoal de Getúlio, foi preso e confessou o Getúlio nas eleições de 1950, assumiu o Ministério terminaria que para ser declarado vitorioso no pleito, conhecido como Operação Parasar. Também coman-
crime. Diversos setores conservadores da sociedade da Aeronáutica. Na pasta da Fazenda foi empossado o candidato deveria ter obtido a maioria absoluta dos dou a tortura a presos políticos na Base Aérea do
e das Forças Armadas voltaram a exigir a renúncia Eugenio Gudin, economista liberal representante de votos. Para garantir a posse do presidente vitorioso, Galeão, onde foi morto Stuart Angel Jones.
de Vargas. grandes corporações norte-americanas. A chefia da o Marechal Henrique Teixeira Lott articulou um con-
Casa Militar foi entregue ao General Juarez Távora. tragolpe preventivo. Com a posse de Kubitschek, ele A Era JK foi marcada por um intenso crescimento
Em 24 de agosto, após reunião com seu Ministério, o foi confirmado como Ministro da Guerra. do país, alavancado pelo Plano de Metas. Com a en-
presidente decidiu por um “licenciamento”. Retirou- A UDN, aproveitando o espaço aberto pelo governo trada maciça de capital estrangeiro, se deu uma in-
-se para seu quarto e se suicidou com um tiro no pei- Café Filho, partiu para o confronto com os getulistas Apesar de ter começado sob a contestação de mili- dustrialização pautada no setor de bens duráveis,
to. Sua carta-testamento causou um grande impacto do PTB. Café Filho passou a ser visto como um trai- tares e setores civis descontentes com o resultado com destaque para a indústria automobilística e que
na população, levando o povo às ruas, despertado dor pelos trabalhistas e foi aconselhado pelos seus das urnas, o governo Juscelino acabou se fortale- gerou a inserção, no cotidiano das classes médias ur-
por um sentimento nacionalista e anti-imperialista. novos aliados a tomar medidas drásticas contra os cendo e se estabilizando. Ainda assim, ocorreram banas, de produtos como eletrodomésticos, produtos
herdeiros do Varguismo, como a suspensão dos seus duas tentativas frustradas de golpe durante o perí- para higiene e limpeza do lar e peças de vestuários
“ Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo co- direitos políticos. Até a cassação de registro do PTB odo em que Juscelino ocupou a Presidência da Re- fabricados em massa. Houve, ainda, uma intensa
ordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. (...) chegou a ser aventada. pública: o Levante de Jacareacanga, em 1956, e a urbanização do país. A maior realização do governo
Não me acusam, me insultam, não me combatem, caluniam, e Revolta de Aragarças. de Juscelino Kubitschek foi a construção, no planal-
não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz Os udenistas temiam nova derrota nas eleições gerais to central do país, de uma nova capital: Brasília.
e impedir a minha ação para que eu não continue a defender, de 1954 e na eleição presidencial de 1955. A estraté- A rebelião de Jacareacanga aconteceu no sul do Es-
como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. gia adotada foi tentar atropelar o calendário eleito- tado do Pará, no início de 1956, um mês após a posse A concessão de facilidades fiscais e econômicas para
Sigo o destino que me foi imposto. (...) ral. Capturado pela política da UDN, Café Filho che- de Juscelino e foi uma iniciativa de oficiais da Aero- o capital estrangeiro e a dependência de financia-
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação gou a fazer um pronunciamento sobre os riscos que náutica inconformados com a eleição de Kubitschek. mento externo geraram uma herança maldita para
do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a uma agitação eleitoral poderia representar naquele Foram 19 dias de rebelião até serem controlados pe- os governos que sucederam JK: déficits constantes
calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. momento, numa tentativa de adiar os pleitos. Mas o las tropas governistas, sob o comando de Lott. Todos da balança de pagamentos com elevação da dívida
Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou adiamento não tinha base legal. Nem a justiça eleito- os envolvidos, que haviam se refugiado na Bolívia, externa desaguaram em problemas cambiais e cres-
o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida ral, nem os generais legalistas, entre eles o General foram posteriormente anistiados por Juscelino. An- cimento da inflação. Em 1957, a taxa de inflação fe-
para entrar na História1.” Lott, aceitavam alterar o calendário eleitoral. tes de terminar seu mandato, Juscelino teve de en- chou em 7%; em 1958, subiu para 24,4%; em 1959,
frentar, ainda, a Revolta de Aragarças, que explodiu cravou em 39,4%.
1. Carta Testamento de Getúlio Vargas, 23/08/1954. Disponível em: http://
O PSD decidiu lançar como candidato à presidência em dezembro de 1959, liderada pelo então tenente-
www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohis- Juscelino Kubitschek, então governador de Minas -coronel João Paulo Moreira Burnier. Por falta de Além disso, o governo JK cometeu um erro signifi-
toria/getulio-vargas/carta-testamento-de-getulio-vargas.

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cativo que levou ao empobrecimento de parcelas da Guevara, ministro da Economia de Cuba. A homena- aos conspiradores em defesa da legalidade. A deter- vel apoio dos deputados pessedistas e petebistas, a
população e aumentou o desequilíbrio regional: o gem a Guevara deixou Carlos Lacerda irado. minação do governador gaúcho levou o ministro De- Câmara dos Deputados aprovou uma emenda que
Nordeste e o Norte foram esquecidos pelo Plano de nis a ordenar o bombardeio ao Palácio Piratini, em alterava a forma de governo no Brasil, até então
Metas. A própria industrialização que empreendeu Em 25 de agosto de 1961, sete meses após a posse, Porto Alegre. O comandante militar do III Exército, presidencialista, para o parlamentarismo. A novida-
exigiria uma reforma agrária, a modernização das numa Brasília recém-inaugurada, o presidente elei- General José Machado Lopes, negou-se a cumprir a de garantiu, por um lado, a ida de Jango para o pla-
relações sociais no campo, o que não ocorreu. Não to renunciou ao cargo e deixou o país atônito. Jânio ordem e optou por cerrar fileiras na campanha lega- nalto. Por outro, impediu a posse com plenos pode-
à toa, durante seu governo houve a expansão das deixou Brasília sob a alegação de que “forças terrí- lista de Brizola, que também teve adesão de vários res, que só lhe seriam restituídos após um plebiscito
Ligas Camponesas, surgidas em 1955, no Engenho veis levantaram-se contra ele, difamando-o”. Ao con- generais, de parlamentares no Congresso e de forças realizado em janeiro de 1963.
Galileia, em Vitória de Santo Antão, Zona da Mata trário do que previa, porém, o povo não exigiu sua populares, o que ajudou a arrefecer o ímpeto golpista.
de Pernambuco. volta e o Congresso aceitou a renúncia. Com a retomada do presidencialismo, Goulart pas-
A pressão contra Goulart permaneceu até sua che- sou a trabalhar para que fossem aprovadas, no Con-
A antessala do golpe O governo João Goulart gada à capital federal. Dez oficiais da Aeronáutica gresso, as reformas de base. Tratavam-se de mudan-
tentaram impedir seu desembarque no aeroporto de ças estruturais para o país, defendidas pelos grupos
Nas eleições presidenciais de 1960, Carlos Lacerda No momento da renúncia, o vice João Goulart estava Brasília. Enquanto o oficialato o golpeava, os sar- nacionalistas, sindicatos e organizações de esquer-
avalizou a candidatura de Jânio Quadros e conven- fora do país, em missão oficial de visita à China. A gentos procuravam defender a posse do presidente da. Os destaques do pacote eram a reforma política,
ceu a UDN a apoiá-la. Na opinião do líder udenista, situação de Jango era extremamente delicada. Polí- da República e bloquear a ação dos conspiradores. com a garantia de voto aos analfabetos, a reforma
a vitória de Jânio era certa. A previsão se concreti- ticos e setores das Forças Armadas eram contrários bancária, a urbana e a mais polêmica de todas: a
zou e Quadros se elegeu com uma votação estrondo- ao retorno de Goulart e sua posse como presidente, Finalmente, no dia 2 de setembro, com considerá- reforma agrária.
sa de 5,6 milhões de votos, ante 3,8 milhões de seu tal como previa a Constituição.
opositor, o Marechal Henrique Teixeira Lott, candi-
dato do PSD. Para a vice-presidência, foi eleito João O Ministro da Guerra, Odílio Denis, informou que
Goulart, lançado pelo PTB. Jango seria preso se desembarcasse no Brasil. Os
militares radicalizaram e chegaram a ordenar que
Jânio assumiu prometendo varrer a corrupção da fossem reprimidas manifestações a favor de Goulart.
administração pública, bandeira da sua campa- No Rio, a casa do líder comunista, Luís Carlos Pres-
nha, que tinha como símbolo uma vassoura. Sem tes, foi invadida pela polícia sem ordem judicial. O
maioria na Câmara Federal, ele precisava costurar Marechal Henrique Teixeira Lott, uma liderança dos
apoios, dadas as dificuldades econômicas que her- setores nacionalistas das Forças Armadas, reagiu e
dou do governo JK. divulgou manifesto em defesa da posse de Goulart.
Mas ao contrário do que ocorreu em Jacareacanga
Em plena Guerra Fria, Jânio decidiu retomar relações e em Aragarças, quando teve sucesso ao abortar as
com a União Soviética, o que lhe rendeu um telegra- tentativas de golpe, Lott foi preso e encaminhado à
ma de congratulações de Prestes, presidente do PCB. Fortaleza da Lage, na Baía de Guanabara.
Também negociou acordos com a China Comunista.
Em agosto de 1961, depois de condecorar o astronauta O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola,
soviético Iuri Gagárin, primeiro homem a ir ao espaço, divulgou um manifesto declarando seu apoio à posse
Mais de 150 mil pessoas estiveram no Comício da Central. Convocados pelas centrais sindicais, os trabalhadores deram seu apoio à Reforma Agrária e à
concedeu a mais alta comenda nacional, a Grã-Cruz de João Goulart, assumindo um papel decisivo du- nacionalização das refinarias de Petróleo anunciadas por Jango
da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a Ernesto Che rante a crise. Brizola tomou a iniciativa de resistir Crédito: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã BR_RJANRIO_PH_0_FOT_00161_021

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A luta pelas reformas aumentou o clima de radica- O golpe civil-militar adiante uma campanha para dominar o sistema, Militar, ninho de conspiradores militares, tinha en-
lização que tomava conta do país. Em outubro de tanto em termos políticos quanto ideológicos”2. Es- dereço na Avenida Rio Branco.
1963, Lacerda acusou Jango de ser golpista e suge- O Rio de Janeiro foi palco privilegiado da maio- tas duas entidades formaram o núcleo da conspi-
riu que os Estados Unidos interviessem na política ria dos acontecimentos que precipitaram o Golpe ração, exercendo pressão sobre o corpo de oficiais e Carlos Lacerda, governador da Guanabara, um dos
brasileira para garantir a democracia no continente. civil-militar de 1964, apesar da iniciativa do golpe estimulando um harmonioso relacionamento ideoló- principais artífices civis do golpe, tinha seu quartel
A atitude de Lacerda causou revolta entre ministros ter partido de Minas Gerais. Abrigou o comício da gico e político entre os militares e os empresários. general no Palácio Guanabara. Seus grandes alia-
militares, que pediram a prisão do governador da Central, a sede da temida Confederação Geral dos dos, os jornais O Globo e o Jornal do Brasil, tam-
Guanabara. Jango reagiu enviando um projeto ao Trabalhadores (CGT), boa parte dos sindicatos que A ESG, cujo principal expoente era o general Gol- bém trabalhavam articulados na cidade, junto com
Congresso solicitando a decretação do Estado de Sí- apoiavam Jango e a sede da União Nacional dos Es- bery do Couto e Silva, um dos cérebros do golpe, o Correio da Manhã e a Tribuna da Imprensa, do
tio, mas acabou recuando. tudantes (UNE). Na ex-capital federal também es- também era sediada no bairro da Urca. O coman- próprio Lacerda.
tavam sediados os dois mais importantes órgãos da do militar dos conspiradores, sob as ordens do chefe
Isolado, Jango decidiu reforçar sua aliança com os conspiração pela derrubada de Goulart: o Instituto do estado-maior do Exército, general Humberto de Na madrugada de 31 de março, as tropas do General
sindicatos e com setores da esquerda. Decidiu en- Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto Alencar Castello Branco, entrincheirava-se no Mi- Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, se-
campar a bandeira das reformas em praça pública, de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). nistério da Guerra, na Presidente Vargas. O Clube diada em Juiz de Fora, tomaram a iniciativa da rup-
no Comício de 13 de março de 1964 na Central do
Brasil. Cercado por milhares de trabalhadores e for- O IBAD se apresentava como um órgão de estímu-
ças de esquerda, o presidente anunciou o decreto da lo à livre empresa. Na prática, funcionava como
Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA), de- uma entidade política conservadora que combatia
sapropriando 20 quilômetros de terras ao longo das as ideias nacionalistas e o governo de João Goulart.
rodovias, ferrovias e açudes do país. O Instituto acabou sendo extinto em dezembro de
1963, por ordem judicial, pois havia financiado polí-
Dois dias após o comício, Jango encaminhou ao Con- ticos na eleição de 1962, com cinco milhões de dóla-
gresso a Mensagem Anual da Presidência, na qual res vindos dos EUA.
definia a agenda das reformas e propunha uma con-
vocação de um plebiscito para aprová-las. Em 30 de Já o IPES foi criado em 1962 e funcionou por dez
março, pouco depois da Revolta dos Marinheiros, anos. Tinha escritórios em vários grandes centros do
que acabaram anistiados por seu governo, João Gou- país, como São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizon-
lart fez um discurso no Automóvel Clube do Brasil, te. No entanto, sua sede principal ficava no Edifí-
no Rio, em uma cerimônia promovida por três mil cio Avenida Central, no coração do Rio. O Instituto
sargentos. Discursou a favor das reformas e invocou funcionava como um centro de formulação do pen-
o apoio das Forças Armadas para realizá-las. samento conservador, que congregava intelectuais,
militares ligados à Escola Superior de Guerra (ESG)
Os boatos cultivados nas fileiras militares e disse- e grandes empresários. No âmbito do IPES, prepa-
minados no seio da elite burguesa, massivamente ravam-se textos para os editoriais dos jornais, carti-
difundidos pela grande imprensa eram de que Jango lhas e roteiros para filmes e programas de televisão.
daria um golpe para se perpetuar no poder, com o Nas palavras do cientista político René Dreifuss, au-
Os tanques alinhados em frente à sede do Comando do Exército no dia
apoio da esquerda. tor do mais completo estudo sobre o complexo IPES/ do golpe apontam para um futuro de violência
IBAD, trava-se de uma ação das elites para “levar 2. DREIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado. Rio de Janeiro: Petrópolis, Crédito: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã
1981, p. 229. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_05609_018

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tura da legalidade marchando pela estrada União/In- ranças presas e foram nomeados interventores para Como se pode constatar, uma prova irrefutável de
dústria à caminho da Guanabara, sob as bênçãos de ficar à frente dos sindicatos. “ É indispensável fixar o conceito do movimento civil e mili- que, sem o apoio empresarial, a conspiração não
Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais. O ob- tar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o chegaria a lugar algum.
jetivo de Mourão era ocupar o Ministério da Guerra. Em torno das duas da tarde do dia 2 de abril, os milita- seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento,
res abriram fogo contra os manifestantes que se aglo- não só no espírito e no comportamento das classes armadas, Com as prisões abarrotadas, os golpistas não hesita-
Enquanto as tropas de Mourão colocavam o golpe em meraram na frente do Clube Militar, na Cinelândia, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolu- ram em criar alternativas carcerárias pouco ortodo-
marcha, João Goulart avaliava a situação com seus centro do Rio. A multidão ameaçava invadir o Clube, ção. A revolução se distingue de outros movimentos armados xas e totalmente ilegais, abrindo espaços em navios,
ministros. Num primeiro momento optou por tomar enquanto carros da Polícia Militar passavam e seus pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de estádios e clubes para levar os opositores. Casas e
medidas duras para o que considerava uma rebelião ocupantes eram vaiados. Em breve intervalo de tem- um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A revolução escritórios eram invadidos.
da tropa. Mas foi alertado por San Tiago Dantas, po, chegava o choque do Exército para dispersar a ma- vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. (...)3.”
que foi seu primeiro ministro durante o parlamen- nifestação. A tropa abriu fogo, fazendo vários feridos, Cassados, presos e exilados os opositores, a recém-
tarismo, sobre a possibilidade de o movimento em entre eles a dona de casa Labib Carneiro Habibude, de No dia seguinte, foi divulgada a primeira lista com -instalada ditadura iniciou a implementação de um
Minas ter o apoio do Departamento de Estado dos 65 anos, e Ari Oliveira Mendes Cunha. Ambos morre- os indivíduos que teriam seus direitos políticos cas- projeto de desenvolvimento associado ao imperia-
Estados Unidos. Dantas sabia que o governo ameri- ram às 22hs, na emergência do Hospital Souza Aguiar. sados. Eram 102 nomes, sendo 40 congressistas. A lismo multinacional, baseado numa altíssima con-
cano apoiava a sublevação. Isto pesou na decisão do Eram as duas primeiras vítimas do regime de terror lista continha nomes como Leonel Brizola, Francis- centração de renda, no aprofundamento das desi-
presidente de não resistir para evitar um banho de que se instalou no país naquele momento. co Julião, Luiz Carlos Prestes, Abelardo Jurema e gualdades, no sobreendividamento do Estado, na
sangue. De fato, o governo americano já estava des- Rubens Paiva. supressão dos direitos trabalhistas e na perseguição
locando uma força tarefa para o litoral brasileiro, a Por fim, vitorioso o golpe, se a deposição do presiden- aos sindicatos, que durou 21 anos.
4ª Frota: era a operação Brother Sam. te João Goulart levou manifestantes para a porta do O núcleo que comandou a derrubada de Jango se
Clube Militar, também arrastou, no mesmo dia 2 de concentrava nas Forças Armadas, na Escola Supe-
A esquerda organizada nos sindicatos, no PCB, em abril, à Avenida Rio Branco, o coração financeiro do rior de Guerra e no IPES, e já tinha um plano es-
organizações como a POLOP, Ação Popular e a UNE Rio, centenas de pessoas portando faixas contra o boçado para o novo país que queriam construir. Os
aguardava nos grandes centros, com destaque para comunismo, em mais uma edição da Marcha da Fa- quadros formados no IPES viriam a ocupar cargos
o Rio de Janeiro, uma ordem para reagir. Concomi- mília com Deus pela Liberdade. chaves na nova administração do Estado. O alvo
tantemente, João Goulart voava pelo país em bus- principal era a estrutura de planejamento governa-
ca de um pouso seguro, que mais uma vez foi o Rio Embora Ranieri Mazzili tenha sido empossado mental e de definição de política econômica, como
Grande do Sul. Ainda com o presidente em território à frente do Executivo, o poder de fato ficou com o o estabelecimento do Ministério do Planejamento e
nacional, o Congresso Nacional, desrespeitando a chamado “Comando Supremo da Revolução”, criado duas outras áreas consideradas estratégicas: a Casa
Constituição, declarou vaga a Presidência da Repú- pelo general Costa e Silva. O comando era composto Civil e a Casa Militar, mais o controle das atividades
blica, consumando o golpe de Estado. Ranieri Mazzi- por três membros: o brigadeiro Francisco de Assis de coleta de informações, que desaguaria na criação
li assumiu o cargo sob tutela militar. Correia de Melo, o vice-almirante Augusto Rade- do Serviço Nacional de Informações (SNI).
maker e o próprio Costa e Silva, como representante
O novo regime imprimiu sua marca repressora logo do Exército e homem-forte do triunvirato. No melancólico balanço de fechamento do IPES fei-
nas primeiras horas. No dia 1º de abril de 1964, de- to pelo seu vice-presidente, o engenheiro Glycon de
sarmados, os defensores da legalidade foram rapi- Em 09 de abril, este comando assinou o Ato Institu- Paiva, falando sobre Golbery do Couto e Silva, es-
damente esmagados pelo golpe militar. Logo veio a cional nº 1, que marcou o final do período constitucio- creveu: “Dinheiro dos empresários lhe não faltava”4.
repressão à classe operária. A CGT e outras articu- nal do país. O Ato continha a célebre formulação jurí- 3. Ato Institucional no 1, Diário Oficial da União, em 9/4/1964.
lações dos trabalhadores foram invadidas, suas lide- dica que buscou dar legitimidade ao golpe de Estado: 4. ASSIS, Denise. Propaganda e Cinema a Serviço do golpe. Rio de Janeiro:
MAUAD, 2001, p. 23.

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Médici inspeciona as obras da Ponte Rio-
Capítulo 4 - A DITADURA COMO o governo do presidente João Goulart teria objetivos Niterói em agosto de 1973
IMPLEMENTAÇÃO DE UM MODELO DE comunistas, foram fatores explorados pelos setores Crédito: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da
Manhã
DESENVOLVIMENTO1 civis e militares que articularam o golpe de Estado. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_18171_070

O Brasil já era plenamente capitalista na ocasião O golpe de 1964, apesar de assumir a configuração
do golpe militar de 1964. Com a chegada de Vargas de um regime militar, sinalizou para os setores con-
ao poder, em 1930, o país passou por um intenso servadores civis que estes poderiam orientar deci-
processo de industrialização, que se aprofundou sões de seu interesse ao aparelho de Estado. Sendo
durante o mandato de Juscelino Kubitschek (1956- uma ditadura, a colaboração de setores civis com os
1960), quando foram implantadas a moderna in- militares foi feita sem que fossem prestadas contas
dústria automobilística e uma indústria de bens do custo social das medidas adotadas. Dessa forma,
duráveis, especialmente a partir de investimentos o período que se sucedeu ao golpe foi caracterizado
expressivos do capital estrangeiro. No mesmo pe- pela formação de grandes grupos econômicos nacio-
ríodo, intensificou-se a urbanização do país, com nais e por altas taxas de crescimento do Produto In-
uma forte migração da população do campo para os terno Bruto (PIB), em especial entre os anos de 1969
grandes centros urbanos e suas respectivas regiões e 1973, no que os ideólogos do regime chamaram de
metropolitanas. A decisiva intervenção do Estado “milagre econômico”.
na modernização econômica expressou-se tanto
pela criação de empresas estatais, quanto pelo in- A política econômica da ditadura favoreceu e acele-
vestimento em infraestrutura e pelo planejamen- rou a centralização e concentração de capitais prin-
to econômico. A Companhia Siderúrgica Nacional cipalmente, por meio da política salarial restritiva
(1941), a Companhia Mineradora Vale do Rio Doce e da criação do Fundo de Garantia por Tempo de
(1942), a Companhia Hidrelétrica do São Francis- Serviço (FGTS), que eliminou entraves de encargos
co (1945), a Petrobrás (1952), e o Banco Nacional trabalhistas nos processos de fusões e aquisições de
de Desenvolvimento Econômico (BNDE) (1952) são empresas. Do ponto de vista social, os trabalhado-
símbolos desse processo. res foram extremamente penalizados neste período.
Em 1972, mesmo ano em que o PIB do país cresceu
Depois de altas taxas de crescimento econômico vi- 11,7%, o Brasil tornou-se o campeão internacional
vidas pela economia brasileira durante este período, em acidentes de trabalho2. Além disso, em 1974 o
instalou-se a partir de 1962 uma recessão econômi- salário mínimo chegou ao seu patamar mais baixo,
ca. Problemas no balanço de pagamentos e a alta equivalendo a 54,48% do que valia em 19603. Os tra-
inflacionária afetaram gravemente o quadro eco- balhadores e os migrantes que vieram da zona rural
nômico. Este quadro, aliado ao contexto de acirra- para os centros urbanos em busca de melhores con-
mento das lutas sociais no campo e na cidade e ao dições de vida viram os serviços públicos deteriora-
temor alimentado nas classes média e alta, de que rem-se, deparando-se com a inexistência de equipa-
1. Este capítulo apresenta as pesquisas realizadas pelos integrantes do Cole- mentos urbanos e serviços públicos que garantissem
tivo Mais Verdade, Demian Melo, João Braga Arêas, Marcos Arruda e Pedro
Henrique Pedreira Campos em colaboração com a CEV-Rio. O texto na ínte- 2. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
gra dos pesquisadores se encontra disponível na mídia do Relatório e no site 3. De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos So-
da CEV-Rio. cioeconômicos (DIEESE).

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educação para seus filhos, saúde para o conjunto da fices da entidade, tendo antes mesmo da ditadura A título de exemplificação de quadros ipesianos no golpe de 1964, como o IPES6. Empresários como Mar-
família, e condições dignas de habitação. elaborado um imenso banco de dados de “subversi- governo Castelo Branco, podemos citar o Ministro co Paulo Rabello, da empreiteira Rabello, e Amyn-
vos brasileiros”. Este arquivo foi o embrião do órgão da Saúde Raimundo de Moura Brito, os Ministros thias Jacques de Moraes, da Servienge, financiaram
Este capítulo apresentará diversas dimensões vin- criado após o golpe, em junho de 1964, o Serviço Na- da Educação Flávio Suplicy de Lacerda, Pedro Alei- extensamente as atividades do instituto. Uma figu-
culadas aos aspectos econômicos da ditadura, a sa- cional de Informações (SNI)4, do qual Golbery foi o xo e Raymundo Augusto de Castro Moniz de Aragão; ra central nesse processo foi Haroldo Cecil Poland,
ber: a participação empresarial no golpe e na for- primeiro chefe. os Ministros da Justiça e Negócios Interiores Milton dono da empreiteira Metropolitana, presidente do
mulação das políticas da ditadura; o crescimento Campos, Juracy Montenegro Magalhães e Memde Sinicon. Poland era próximo do coronel Golbery do
de empresas e setores determinados devido à sua Para a construção e efetivação do seu projeto, o IPES Sá; o Ministro das Minas e Energias Mauro Thibau; Couto e Silva e foi um dos principais articuladores
proximidade com a cúpula do poder ditatorial, em contou com mais de 400 empresas e muitas pesso- o Ministro da Indústria e Comércio Daniel Agosti- civis do golpe. Ele ajudou a levar outros empresários
especial as empreiteiras e a Rede Globo; a partici- as físicas associadas, e constituiu-se à nível nacio- nho Franco e Paulo Egídio Martins; os Ministros da para a causa golpista, inclusive empreiteiros, e teve
pação de empresários no financiamento da repres- nal. Para isto, após sua consolidação nos estados da Agricultura Oscar Thompson Flores, Nei Aminthas atuação política intensa nos primeiros anos do novo
são política direta; e, por fim, a questão do sobre- Guanabara e de São Paulo, o instituto fundou ou- de Barros Braga e Severo Fagundes Gomes; o Minis- regime político7.
-endividamento do Estado brasileiro no período. tras unidades no Brasil, como o IPESul, o IPES Per- tro da Fazenda Octávio Gouvêa Bulhões; o Ministro
Em razão destas vinculações da ditadura, é corren- nambuco, o IPES Belo Horizonte, o IPES Paraná, o do Planejamento Roberto de Oliveira Campos; os Se antes do golpe de 1964 havia no país empresas
te o uso do termo ditadura empresarial-militar, no IPES Manaus, o IPES Santos e o IPES Belém. Estas Ministros do Trabalho e Previdência Social Arnaldo importantes no setor de construção já com projeção
intuito de se destacar quais segmentos da socieda- unidades, apesar de autônomas, eram coordenadas Sussekind e Luiz Gonzaga do Nascimento e Silve. nacional, ao final do regime tínhamos um quadro de
de se beneficiaram dos mais de vinte anos de arbí- e reguladas pelo Comitê Nacional. Para tornar sua grandes grupos empresariais, de diversificada ativi-
trio – e, por consequência, apontar também para ação mais ampla, criou “ipesinhos” em cidades do in- Do ponto de vista das políticas formuladas no bojo dade econômica e atuação internacional, formados
aqueles que foram os alvos privilegiados da violên- terior, como a unidade de Nova Friburgo, no estado do IPES e posteriormente encaminhadas pela dita- a partir de firmas da construção. Esses conglomera-
cia do regime: os trabalhadores. do Rio de Janeiro, e nas empresas, onde a orientação dura, destaca-se as reformas do sistema financeiro, dos econômicos (como Odebrecht, Camargo Corrêa
era a de que os “empresários levem para dentro de que será abordada mais à frente. No campo traba- e Andrade Gutierrez) permanecem poderosos tanto
O papel do Instituto de Pesquisas e suas empresas as ideias democráticas do IPES”5. lhista, foi introduzida a primeira flexibilização de econômica, como politicamente, até hoje. Examinar
Estudos Sociais (IPES) direitos com a Lei 5.107 de 1966, que acabou com o seu desenvolvimento ao longo da ditadura parece
Ainda no período pré-golpe, a entidade promo- a estabilidade por tempo de serviço dos trabalhado- necessário, visto que aquele foi um período central
Como explicitado no capítulo anterior, o Instituto de veu cursos e seminários, formando os quadros que res da iniciativa privada, criando um fundo basea- para o impulso ao setor e às empresas do ramo.
Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) foi uma entida- passariam a ocupar os principais postos da admi- do numa poupança forçada, o FGTS. Por sua vez, o
de que congregou setores civis, notadamente os em- nistração pública durante os governos ditatoriais FGTS se tornaria a principal carteira do Banco Na- Depois de formadas, as empreiteiras brasileiras se
presários, e militares oriundos da Escola Superior dos generais Castelo Branco e Costa e Silva. Nes- cional de Habitação (BNH), criado em 1964 pela lei organizaram em aparelhos da sociedade civil, que
de Guerra (ESG), tornando-se um dos principais ses fóruns, também foram delineadas as diretrizes nº 4.380, com o propósito de “combater o déficit ha- desenvolviam atuação coletiva para influenciar e
espaços de articulação entre os golpistas. A origem econômicas e institucionais, bem como as medidas bitacional”, mas que acabou tendo a maior parte dos pressionar por políticas públicas favoráveis. Elas
do IPES partiu do contato entre o empresário Paulo adotadas pela ditadura nos primeiros anos. Dois in- seus recursos investidos para moradias de classe estavam presentes em organismos como o carioca
Ayres Filho (do ramo farmacêutico) com o empre- telectuais do IPES que se destacam nesse contexto média, enriquecendo grandes firmas construtoras. Clube de Engenharia (1880), o Instituto de Enge-
sário de origem americana Gilbert Huber Jr. (pro- são Paulo Assis Ribeiro e Roberto Campos. Assim, a nharia paulista (1916), em organizações próprias,
prietário da Listas Telefônicas Brasileiras) no Rio condução da política econômica entronizou grandes As empresas nacionais de construção como a Câmara Brasileira da Indústria da Cons-
de Janeiro, que por sua vez recrutou João Batista interesses capitalistas no novo esquema do poder. trução (Cbic, 1957) e o Sindicato Nacional da Cons-
Leopoldo Figueiredo (Itaú e Scania), que acabaria Os empreiteiros tiveram importante participação 6. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. 3ª ed. Petrópolis:
se tornando líder do IPES em São Paulo. O general 4. Ver capítulo 17 deste Relatório.
5. Ata do IPES Comitê Diretor de 27.11.1962, Comitê Executivo de 29.11.1962
em agências que ajudaram a desestabilizar o gover- Vozes, 1981. Em particular, p. 636.
7. Mais detalhes sobre sua trajetória podem ser encontrados em CARVALHO,
Golbery do Couto e Silva foi um dos principais artí- e Roteiro básico para um programa de ação a longo prazo, de 06.06.1963. no João Goulart e organizar o esforço civil-militar do Luiz Maklouf. Cobras Criadas: David Nasser e O Cruzeiro. 2ª ed. São Paulo:
Arquivo Nacional. Fundo IPES. EdSENAC-SP, 2001.

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trução Pesada (Sinicon, 1959). Também nas asso- fraestrutura. Associado a isso, os fundos setoriais cisco de Moraes (da empreiteira paulista Constran) teiras brasileiras desfrutassem, sem concorrência
ciações e aparelhos sindicais de projeção regional, tinham grande previsão de arrecadação, o que lhes e Murillo Mendes (da mineira Mendes Júnior); Ân- estrangeira, da rica demanda de obras públicas no
como a Apeop (Associação Paulista de Empreiteiros permitia contrair empréstimos internacionais, que gelo Calmon de Sá, Ministro da Indústria no gover- país ao longo da década de 1970. Os efeitos foram a
de Obras Públicas), a mineira Sicepot-MG (Sindi- eram fartos e baratos até 1973, conforme exposto no Geisel, além de presidente do Banco Econômico ampliação das margens de lucros de cada uma das
cato da Construção Pesada de Minas Gerais) e a acima. Desta forma, houve uma soma de recursos e diretor da empreiteira Odebrecht no período; e obras, além da facilitação das práticas cartelistas,
fluminense Associações de Empreiteiros do Estado nunca antes alocada em obras públicas, gerando Eliseu Resende, diretor-geral do Departamento Na- muito comuns no setor. As associações e sindica-
do Rio de Janeiro (Aeerj), fundada no mesmo ano uma demanda sem precedentes para as emprei- cional de Estradas de Rodagem (DNER), no período tos eram os lugares preferenciais para a realização
da fusão do estado do Rio de Janeiro com a Guana- teiras. A manutenção das obras de grandes empre- de 1967 a 1974, e Ministro dos Transportes (1979- desses acertos, como divisão dos projetos a cargo de
bara, em 1975. endimentos, como as usinas de Itaipu, de Angra e 1982), que tinha grande trânsito entre os empresá- cada empresa, margens de ganho em cada obra, sub-
Tucuruí, Ponte Rio-Niterói permitiram às maiores rios da construção, em particular os mineiros, tendo contratação e lances em licitações e concorrências.
Essas associações tiveram na ditadura um cenário empreiteiras a manutenção de um alto nível de ati- ocupado também o cargo de diretor da Odebrecht.
ideal para o desenvolvimento de suas atividades e vidade até o final do regime. Recursos orçamentários, reserva de mercado, isen-
de suas empresas filiadas. Nesse período, elas dis- Os contatos eram diretos com agentes do aparelho de ções fiscais, facilidades para aquisição de máquinas
puseram de acesso direto ao poder, detendo força Esses empresários e representantes dos seus inte- Estado e com as forças armadas durante a ditadu- com linha especial de crédito do Banco Nacional do
para pautar as políticas públicas e angariar fatias resses agiam nas autarquias e empresas estatais, ra. Um mecanismo usado pelos empresários do setor Desenvolvimento Econômico (BNDE) e outras me-
expressivas do orçamento público, direcionados em especial nas que contratavam serviços de en- para facilitar sua atuação junto a agências estatais didas de benefício foram colocadas à disposição das
para projetos de obras. genharia, como Eletrobrás e suas subsidiárias, Pe- era a contratação de oficiais militares para os qua- grandes empreiteiras. Sem falar nos recursos públi-
trobrás e empresas do grupo, BNH, Departamento dros da diretoria das construtoras. Foi o que fizeram cos direcionados através do instrumento específico
Algumas das mais poderosas entidades do setor – Nacional de Estradas de Rodagem (DNER), Rede empresas como a Mendes Júnior, a Rabello e a Setal. do regime para a política habitacional, o BNH.
como o Clube de Engenharia, a Cbic e o Sinicon – Ferroviária Federal (RFFSA), Portobrás, Telebrás,
tinham sede no Rio de Janeiro. E apesar de sentir dentre outras agências estatais. No âmbito regional Outra medida favorável ao setor foi a criação de Uma área interessante de favorecimento a partir
a decadência de empresas de origem no estado, pa- e local o poder e influência desses empresários tam- uma reserva de mercado para as empreiteiras bra- da década de 1970 foi a política externa, com au-
reciam ter papel fundamental no mercado nacional bém eram visíveis, em especial em pastas de obras sileiras sobre as obras públicas realizadas no país. xílio para a atuação internacional das empreiteiras
de obras públicas, dados os importantes projetos de- públicas e empresas contratadoras de obras (Cedae, Após a campanha realizada durante o governo Cas- brasileiras através de crédito para suas atividades
senvolvidos no estado no período, como a ponte Rio- DER-RJ, Sabesp, DER-SP, etc). telo Branco (1964-1967) pelos empresários da enge- no exterior, possibilidade de dedução do Imposto de
-Niterói, o metropolitano do Rio de Janeiro, a rodo- nharia – com a liderança do Clube de Engenharia Renda sobre a Pessoa Jurídica nos ganhos auferidos
via Rio-Santos, as usinas termonucleares de Angra Há indícios da relação de figuras-chave da ditadura – contra a presença de firmas estrangeiras em áreas no exterior, e suporte diplomático às suas incursões
I e II, dentre outros projetos. com empresários do setor. Podemos citar os exem- e projetos em que havia empresas domésticas capa- na América do Sul, África e Oriente Médio.
plos de Mário Andreazza, Ministro de Transportes citadas, o governo Costa e Silva resolveu reverter a
Após o golpe de Estado, a presença dos empreitei- (1967-1974) e do Interior (1979-1985), que circulava política de contratação de empresas de fora do país. Por fim, a própria política sindical, trabalhista e sa-
ros no aparelho de Estado ao longo dos 21 anos de entre empreiteiros e suas organizações, sendo pre- Após o Ato Institucional nº 5, com o Congresso Na- larial da ditadura era benéfica às empresas de cons-
regime ditatorial foi intensa. Tornaram-se figuras sença constante em atividades e congressos promo- cional fechado, o governo federal baixou, no início de trução, grandes empregadoras de força de trabalho.
de influência, especialmente em áreas específicas, vidos por entidades como Sinicon e Cbic; Antonio 1969, um decreto-lei que impedia empresas de en- A política de “arrocho salarial” permitiu a redução
como pastas ligadas às políticas de Transportes, Delfim Netto, ministro nos governos Costa e Silva, genharia não-brasileiras de realizar obras e outros das despesas em detrimento do valor real do salário
Energia, Obras e infraestrutura em geral. Parte Médici e Figueiredo, próximo do empresário Sebas- serviços demandados pelo aparelho de Estado e suas dos operários. Em relação à saúde e à segurança nos
significativa dos recursos públicos durante o cha- tião Camargo (presidente da Camargo Corrêa) e li- agências. A medida, justificada por questões como canteiros de obras, não havia controle efetivo por
mado “milagre brasileiro”, era direcionada para gado a outros empresários do setor, inclusive tendo segurança nacional e incentivo ao desenvolvimento parte dos governos ditatoriais, o que permitiu que
investimentos estatais, na forma de obras de in- feito elogios públicos a figuras como Olacyr Fran- da tecnologia doméstica, permitiu que as emprei- os empresários do setor economizassem em equi-

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pamentos de segurança, em favor de suas margens revistas, que tinha alguns canais de televisão lo- a empresa dos EUA. Contudo, o procurador-geral da O empresariado e a repressão política
de lucro. A consequência nefasta foi o aumento do cais nos Estados Unidos. República e o presidente Castelo Branco, em mar-
número de acidentes e mortes no trabalho da cons- ço de 1967, afirmaram que a operação fora legal. O Como se percebe pelo estudo dos casos acima, a
trução civil, setor que passou a liderar essas estatís- A Constituição brasileira proibia a participação do caso foi definitivamente arquivado pelo presidente ditadura permitiu a obtenção de vantagens e fa-
ticas. Por sua vez, as intervenções nos sindicatos e a capital estrangeiro nos meios de comunicação. Uma Costa e Silva. Percebe-se, assim, que a ditadura vores para segmentos específicos do empresariado.
repressão aos sindicalistas limitaram as possibilida- multinacional não poderia ter participação acioná- militar tinha interesse na expansão de pelo menos De forma mais geral, garantiu um ambiente pro-
des de reação da classe trabalhadora. ria, fazer parte de direção ou auferir lucro de uma uma grande empresa de telecomunicações10. pício para os negócios, sufocando manifestações
empresa de mídia brasileira. Tais normas não foram sindicais e a luta pela extensão dos direitos. Com
Organizações Globo e o intercâmbio de respeitadas pelos acordos assinados a partir de 1962 A proximidade entre Roberto Marinho e a cúpula da isso, muitos empresários se dedicaram ao finan-
favores entre Marinho e o grupo Time-Life, no contexto de ditadura tornou-se ainda mais inconteste a partir da ciamento direto da repressão política. Ficou céle-
organização da Rede Globo. publicação, em 2014, de documentos norte-america- bre a participação de Hening Boilesen, do grupo
Como exposto no capítulo anterior deste relatório, nos até então confidenciais. São telegramas do em- Ultra, não só no financiamento, mas também nas
no primeiro momento o golpe de 64 foi apoiado pela O assessor da Globo na elaboração dos contratos foi baixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, en- próprias sessões de tortura de militantes de oposi-
maioria dos veículos de comunicação. Contudo, ne- o advogado Luiz Gonzaga do Nascimento e Silva, viados aos seus superiores, em 1965. Neles, Gordon ção, embora existam evidências de que outros civis
nhum ficou tão marcado pelo intercâmbio de favo- próximo de Roberto Campos, que seria Ministro do narra os bastidores da sucessão de Castelo Branco compareciam às dependências de locais onde eram
recimentos quanto as Organizações Globo. Mesmo Planejamento de Castello Branco e um dos mento- e observa que Roberto Marinho, seu interlocutor, perpetradas graves violações aos direitos humanos
fazendo um recente mea culpa8, o gesto não apaga res da política econômica de abertura ao capital es- vinha “trabalhando silenciosamente” pela prorroga- para assistir e se comprazer com o sofrimento de
a forte atuação do empresário de jornais e TVs em trangeiro após o golpe de 1964. ção ou reeleição do presidente da República. Tam- seus opositores11. Boilesen se destaca por ter sido
favor do regime implantado no país, pós 1964. bém tratava das pretensões do general Costa e Silva o responsável por organizar, junto a outros empre-
A Time-Life enviou cerca de 6 milhões de dólares à (que se tornaria o chefe de Estado em 1967). sários, a arrecadação de fundos para a Operação
O crescimento vertiginoso das Organizações Globo empresa de Marinho entre 1962 e 1966, valor ex- Bandeirantes (Oban), criada em São Paulo, pelo
a partir de suas relações com a ditadura militar, pressivo para a época. Os investimentos do grupo O empresário das Organizações Globo vinha conta- comandante do II Exército, general José Canavar-
chama a atenção. O Globo foi atuante na campanha americano eram mais de trinta vezes o valor do ca- tando vários indivíduos centrais do governo ditato- ro Pereira, em conjunto com a Secretaria de Segu-
contra o governo Goulart e as entidades de esquer- pital da Globo. Ademais, de acordo com os contratos, riais, como o general Ernesto Geisel, chefe da Casa rança do estado, chefiada por Hely Lopes Meirelles,
da em geral. Roberto Marinho associou-se a Manoel a Time-Life não figurava como mera financiadora: Militar, o general Golbery do Couto e Silva, chefe do para unificar o combate aos opositores do regime.
Nascimento Brito (Jornal do Brasil) e João Calmon tinha direito a 30% dos lucros da TV Globo e detinha Serviço Nacional de Informação (SNI) e Luiz Vian- Nesses encontros, falava aos presentes: “vocês são
(Diários Associados) e montou a “Rede da Democra- 30% do patrimônio da emissora. A empresa america- na, chefe da Casa Civil. Marinho observava que as beneficiados pela revolução e devem colaborar”12.
cia”, veiculando propaganda contra o governo, com na tinha participação em administração, programa- eleições diretas poderiam consagrar a oposição, ris- Esta colaboração era retribuída sob a forma de fa-
o objetivo de assustar a classe média, e colocá-la a ção, treinamento de pessoal, contabilidade e venda co que não existiria se o pleito fosse indireto, vide a vores estatais para a viabilização de negócios, como
favor de um golpe de Estado. de anúncios da TV Globo9. força do governo no Congresso. Sua desenvoltura em se pode perceber no caso de Sebastião Camargo,
meio à cúpula político-militar permitia-lhe tratar de da empreiteira Camargo Corrêa, um dos maiores
Ressalta-se que ainda antes do golpe, as empre- Em março de 1966, foi criada uma Comissão Parla- temas estratégicos, como a sucessão presidencial e a contribuintes com a “caixinha da Oban”, que conse-
sas estrangeiras já vinham buscando proeminên- mentar de Inquérito (CPI) para investigar as rela- nomeação de cargos do primeiro escalão do governo. guiu contratos para a construção de grandes obras
cia na economia brasileira, processo que se apro- ções da Globo com o grupo. A CPI aprovou por unani- públicas, como a Ponte Rio-Niterói.
fundou com a ditadura militar. Nesse contexto, midade o parecer que considerava inconstitucional a
situam-se as ligações entre a Globo e a empresa associação entre as empresas de Roberto Marinho e
norte-americana Time-Life, importante editora de 9. COUTINHO, Eduardo Granja.”Ecos do golpe no mundo da cultura” IN COU- 11. SOUZA, Percival de. Autópsia do medo. Porto Alegre: Globo, 2000.
TINHO, Eduardo Granja e IASI, Mauro Luís. Ecos do golpe, a persistência da 10. HERZ, Daniel. A história secreta da Rede Globo. Rio Grande do Sul: Tchê!, 12. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional
8. O GLOBO. “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”. 31/08/2013. ditadura 50 anos depois. Rio de Janeiro: Mórula, 2014, p.114. 1989. p. 183 e 190. daVerdade. Brasília: CNV, 2014. Volume II, p.332.

68 69
No que se refere a essa caixinha, destaca-se o ban- Casa da Morte, em Petrópolis. No caso da Usina de rio, que se tornou ator do endividamento brasileiro. os interesses corporativos transnacionais, levou a
quete organizado pelo ministro Delfim Netto no Campos, seu proprietário Heli Ribeiro era membro Desde o golpe de 1964, os banqueiros prestaram in- dívida para outra direção.
Clube São Paulo, antiga residência da senhora Vi- da Tradição, Família e Propriedade (TFP), organi- teiro apoio à ditadura recém-formada e organizaram
ridiana Prado, durante o qual cada banqueiro doou zação que contribuiu com a deposição do governo diversos congressos a fim de preparar sua versão pri- Entre 1964 e 1985 a dívida pública explodiu: passou
o montante de US$ 110 mil. Além dos banqueiros, João Goulart em 1964. Também membro da TFP, o vatista de Reforma Bancária. de 3,5 bilhões de dólares, representando menos de
diversas corporações financiaram a formação do ór- filho de Heli Ribeiro, João Lysandro, conhecido pelo 5% do PIB, para 105 bilhões de dólares, ou 46% do
gão, como os grupos Ultra, Ford, General Motors13, epíteto de “João Bala”, teria sido ativo ao lado de Os bancos brasileiros e os estrangeiros sediados no PIB. Houve um crescimento de 3000% no período.
Camargo Corrêa, Objetivo e Folha, além de trans- outros agentes da repressão numa das ações mais Brasil serviram de intermediários na captação de Sobretudo a partir de 1969, esse crescimento ex-
nacionais como Nestlé, General Eletric, Mercedes brutais denunciadas sobre aquele período: a inci- empréstimos para o setor público brasileiro. A Re- ponencial excedeu a capacidade de pagamento dos
Benz, Siemens e a Light14. neração de corpos mutilados de opositores políti- solução nº 63, de 21 de agosto de 1967, do Banco devedores mediante seus saldos comerciais, não
cos, nos fornos da usina. Central do Brasil (BCB)18 permitiu aos bancos co- somente pelo montante dos empréstimos tomados,
Formas de apoio correspondente aconteceram tam- merciais e de investimento contratar diretamente mas principalmente pelo caráter pernicioso dos
bém no Rio de Janeiro. Revelações do ex-delegado do No período da transição democrática, quando ele- empréstimos no exterior e repassá-los às empresas juros flexíveis. Outro fator foi a capitalização dos
DOPS do Espírito Santo, Cláudio Guerra, dão conta mentos da chamada “comunidade de informações” no Brasil. Ao criar vínculos com grupos financeiros juros cujo pagamento atrasava, fazendo com que o
do financiamento à nível nacional do aparelho de re- perpetraram ataques terroristas para sabotar o pro- transnacionais, os banqueiros brasileiros aumenta- Estado tomasse mais empréstimos para pagar dívi-
pressão da ditadura. Segundo ele, o Banco Mercan- cesso de abertura, houve apoio financeiro de grupos ram seu acesso a recursos externos, ampliando sua da do que para investimentos produtivos, fato que
til de São Paulo e o Sudameris destacaram-se como empresariais, como o já mencionado Banco Mercan- competitividade e a garantia de maiores lucros. A transformou o endividamento externo numa bola
os maiores provedores de recursos para os agentes til de São Paulo e o Sudameris. Há ainda denúncias liberalização do sistema creditício internacional em de neve impagável.
da repressão no Rio. Viabilizaram o pagamento de de uso da tecnologia de explosivos usados por em- favor dos grandes grupos financeiros se deu em pre-
uma espécie de bolsa mensal para os agentes, em presas de construção civil para os atentados da di- juízo da soberania dos países que buscavam recur- Entre 1969 e 1985 o Brasil teve três presidentes-
contas de “laranjas”15 ou sob nomes falsos, além do reita terrorista ao final da ditadura17. Isto é, mesmo sos para desenvolver suas economias e atender as -ditadores: os generais Médici, Geisel e Figueiredo.
pagamento de prêmios em dinheiro em decorrência quando parte significativa do empresariado estava necessidades básicas dos seus povos. É importante ressaltar que, sob estas autoridades,
da captura e do assassinato de opositores do regi- apoiando o processo de abertura, grandes homens os Ministros da Fazenda Delfim Netto, Mario Hen-
me ditatorial. Também Camilo Cola, dono da Viação de negócio ainda sustentavam ações que marcariam O objetivo inicial dos empréstimos em moeda era rique Simonsen e Ernane Galvêas abriram a econo-
Itapemirim e deputado capixaba pela Arena, cum- tragicamente a vida pública do país, como o atenta- financiar investimentos produtivos, capazes de mia aos bancos e corporações transnacionais, apro-
priu a tarefa de arrecadar recursos com outras em- do à sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) gerar excedentes que cobrissem os juros e viabili- fundaram a exploração das classes trabalhadoras,
presas, como a Gasbrás e a White Martins, com o no Rio de Janeiro, em 27 de agosto de 1980, e a ten- zassem o pagamento do principal da dívida. Eram e destruíram as condições de um desenvolvimento
fim de apoiar a repressão16. tativa de explodir uma bomba dentro do auditório vistos como combustível financeiro para a indus- endógeno, soberano e democrático para o Brasil.
do Riocentro, no dia 30 de abril de 1981. trialização do Brasil e para a construção de uma Para garantir este modo de gestão da economia,
Além de financiamento, setores privados fornece- infraestrutura a serviço do desenvolvimento eco- o governo impunha ao país uma brutal repressão,
ram entre outros bens, espaços usados para a tor- O setor bancário e a dívida pública nômico. Contudo, a “financeirização” promovida prendendo e assassinando muitos dos que se opu-
tura, assassinato e ocultação de cadáveres, como a brasileira pelo Estado ditatorial, em estreito consórcio com nham ao regime ditatorial.
Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes, e a
Como foi dito neste capítulo, a política econômica da 18. “O BANCO CENTRAL DO BRASIL, na forma da deliberação do Conselho Durante o governo Médici (1969-1973), o PIB cres-
13. LANGGUTH, A. J. A face oculta do terror. Rio de Janeiro: Civilização Bra- Monetário Nacional, em sessão realizada em 17.8.1967, de acordo com o dis-
sileira, 1979, p.108. ditadura favoreceu e acelerou a concentração de ca- posto nos arts. 4º, inciso V, e 9º da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, ceu em média 10,7% ao ano. Neste período, o estoque
14. MONIZ BANDEIRA, Luiz Alberto. Cartéis e Desnacionalização: a expe- e art. 29 da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, RESOLVE: I - Facultar aos
riência brasileira, 1964-1974. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975, pitais. Esse processo também se deu no setor bancá- bancos de investimento ou de desenvolvimento privados e aos bancos comer- da dívida externa alcançou uma taxa de crescimento
p.197-207.
15. Intermediários em transações financeiras fraudulentas. 17. OTAVIO, Chico & DUARTE, Alessandra. “Linha direta com o terror: Agen-
ciais autorizados a operar em câmbio a contratação direta de empréstimos
externos destinados a ser repassados a empresas no país, quer para financia-
anual de 13,8% e passou de 4,379 bilhões de dólares,
16. NETTO, Marcelo & MEDEIROS, Rogério. Memória de uma guerra suja. da do sargento que morreu no Riocentro revela, após 30 anos, rede de conspi- mento de capital fixo, quer de capital de movimento, observado o disposto representando 11% do PIB, para 13,760 bilhões de
Rio de Janeiro: Topbooks, 2012. radores do período”. O Globo, 24/04/2011. nesta Resolução e nas demais normas legais e regulamentares em vigor (...).”

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dólares, ou 16,6% do PIB. O serviço da dívida exce- anterior, aumentando o total devido e os encargos crescente de marginalizados. O sobre endividamento
deu o saldo comercial em 8,395 bilhões de dólares, futuros – os devedores estavam sujeitos mais do que do Brasil é, portanto, ao mesmo tempo um problema
que tiveram que ser refinanciados, ou pagos com nunca à intervenção externa nas suas decisões de técnico e político, e um problema contábil e ético. E
novos empréstimos. Note-se que em 1973 as taxas política econômica. coloca no banco dos réus os fazedores de política de
de juros internacionais haviam crescido entre dois e então (os generais-presidentes, seus ministros e di-
quatro pontos percentuais, onerando enormemente A partir de 1980, o Brasil passou a transferir mais retores das agências governamentais), tanto quanto
os encargos anuais, dado que os contratos da dívida capital para o exterior do que a receber. Só de juros, os conglomerados bancários e as empresas do setor
incluíam a cláusula dos juros flutuantes. havia pago 57,3 bilhões de dólares. Sob a regência industrial que participaram desta ciranda do sobre-
do Ministro da Fazenda Ernane Galvêas, a dívida -endividamento.
O governo Geisel (1974-1978), em vez de apren- externa em proporção ao PIB dobrou, passando de
der a lição herdada do seu antecessor, escolheu a 24,6% em 1979 para 48,2% em 1984. A escolha do
importação de divisas como fonte essencial de fi- governo ditatorial foi seguir a receita dos credores,
nanciamento do seu projeto de desenvolvimento canalizada através do Fundo Monetário Internacio-
econômico. Na sua administração a dívida externa nal (FMI): incentivo às exportações, compressão das
explodiu, passando de 13,7 bilhões para 52,2 bi- importações, da demanda interna e dos investimen-
lhões de dólares. Ou seja, quase quadruplicou. A tos sociais, e prioridade ao pagamento em dia dos
relação dívida externa/PIB passou de 17% em 1973 encargos da dívida externa. O padrão de consumo
para 26% em 1978, ou um crescimento médio de da população e seu bem-estar se deterioraram. Cres-
21%. Apesar do intenso esforço exportador, a dife- ceram os índices de pobreza, marginalização e vio-
rença entre o saldo comercial e o serviço a pagar lência urbana e rural.
alcançou US$ 39,2 bilhões negativos, colocando a
economia do país em alto grau de vulnerabilidade. Mesmo tendo sido o Estado, diretamente ou através
Os juros pagos chegaram a representar cerca de das estatais, o protagonista do sobre endividamento
40% do serviço total da dívida no período, que re- brasileiro, as grandes empresas nacionais e trans-
presentou a consolidação da hegemonia dos bancos nacionais também foram responsáveis. Entretanto,
na economia e o caráter predominantemente finan- não foram responsabilizadas. Ao contrário, foram
ceiro e especulativo do endividamento. estimuladas pelo próprio Estado a investir nos tí-
tulos do governo, tornando-se credoras da dívida
O governo Figueiredo (1979-1984) coincidiu com o interna e passando a contar com lucros financeiros
processo recessivo internacional e a crise do dólar provenientes das altas taxas de juros.
dos Estados Unidos. O Brasil, altamente endivida-
do em dólares, estava particularmente vulnerável Em suma, os governos ditatoriais realizaram a fa-
à instabilidade dessa moeda. A elevação dos juros çanha de transformar o Estado brasileiro numa
norte-americanos pelo Federal Reserve de 10,9% em máquina parasitária, usando os fundos públicos a
1978 até alcançar 19,6% em 1981 drenou recursos serviço do pagamento dos juros aos grandes grupos
de todo o mundo para os bancos daquele país. Além econômicos e financeiros estrangeiros e nacionais. O
de estarem presos à dívida impagável – tomando custo disso foi arcado pela estrutura produtiva na-
empréstimos para pagar as obrigações da dívida cional, o mercado interno, os assalariados e a massa

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PARTE III
VIOLÊNCIA E
TERROR DO
ESTADO

Foto: Bruno Marins

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Capítulo 5 - CONFLITOS E REPRESSÃO NO CAMPO1 Região Município Quantidade de conflitos
Metropolitana 94

Embora o estado do Rio de Janeiro seja sempre apontado como um Cachoeiras de Macacu 16

dos mais urbanizados do Brasil e pouco se fale sobre suas áreas ru- Duque de Caxias 8
Itaboraí 3
rais, ele foi palco de situações de violência ainda pouco conhecidas e Itaguaí 2
de importantes conflitos fundiários entre 1946 e 1988, como mostra Magé 43

o Quadro 1 com 219 situações mapeadas. Tal levantamento não es- Maricá 1

gota o universo de casos ocorridos no período, mas mostra que parte Nova Iguaçu e Japeri 11
Paracambi 3
deles se reitera nos mesmos lugares ao longo dos anos. Como se Rio Bonito 1
pode observar há uma forte concentração na Região Metropolitana Rio de Janeiro 5

(quase metade dos casos identificados) e na Costa Verde2. São Gonçalo 1


Costa Verde 56
Parati 25
O olhar sobre os conflitos no campo não pode se restringir à repres- Angra dos Reis 28
são e à violência que partiu diretamente dos órgãos do Estado. Ao Mangaratiba 3

fazer uma análise da documentação gerada pelo Serviço Nacional de Baixadas Litorâneas 20
Araruama 1
Informação (SNI) e pelos Inquéritos Policiais Militares (IPMs), des-
Cabo Frio 2
de logo se percebe que ela retrata apenas uma parte do que ocorreu Casimiro de Abreu 9
no campo fluminense no período. Entrevistas, material de impren- São Pedro da Aldeia 2

sa, arquivos sindicais e da Comissão Pastoral da Terra mostram Silva Jardim 6


Médio Paraíba 21
como instituições estatais tiveram papel importante na coação dos
Barra Mansa 3
trabalhadores, entre elas o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária Pinheiral 1
(Ibra), o Instituto Brasileiro de Defesa Florestal (IBDF) e a Empre- Resende 1

sa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Rio Claro 3


Valença 5
Volta Redonda 3
O território fluminense recebeu, ao longo do século XX, em espe- Piraí 5
cial a partir dos anos 1930, migrantes de diferentes pontos do país Serrana 12

(principalmente do Espírito Santo, Minas Gerais, Pernambuco, Pa- Macuco 1


Nova Friburgo 1
raíba). Também se verificou uma intensa mobilidade interna de sua
Petrópolis 2
população (em especial trabalhadores rurais vindos de áreas onde Santa Maria Madalena 2
a cafeicultura estava em plena decadência), em busca de terras em Teresópolis 1
Trajano de Moraes 5
1. Capítulo construído em colaboração com a pesquisa Conflitos por Terra e Repressão no Campo no Centro-Sul Fluminense 8
Estado do Rio de Janeiro (1946-1988) financiada pela Faperj e coordenada por Leonilde Servolo de Miguel Pereira 1
Medeiros, professora do CPDA/UFRRJ.
2. Os casos escolhidos para análise foram: na Região Metropolitana, o Núcleo Colonial Papucaia Vassouras 7
e seu entorno, em especial a fazenda São José da Boa Morte, em Cachoeiras de Macacu; Fazenda Noroeste Fluminense 1
Conceição de Suruí e áreas da Companhia América Fabril, em Magé; fazendas São Lourenço e Ca-
Porciúncula 1
pivari, em Duque de Caxias; Pedra Lisa, localidade hoje pertencente ao município de Japeri, mas
antes pertencentes a Nova Iguaçu. Na Costa Verde, selecionamos conflitos que ocorreram em Paraty Norte Fluminense 7
(Trindade, Praia do Sono, Campinho da Independência, São Roque, Taquari, Barra Grande, São Campos 5
Gonçalo) e, em Angra dos Reis (Santa Rita do Brachuy). Na Região das Baixadas Litorâneas, o caso
da fazenda Campos Novos e seu entorno. No Médio Paraíba, em Valença, fazendas Santa Mônica e São João da Barra 2
Conquista. Na Região Serrana, em Trajano de Moraes, a fazenda Santo Inácio. Finalmente, no Norte Total de conflitos registrados no estado 219
Fluminense, em Campos, a ocupação do Imbé e conflitos trabalhistas ocorridos em diversas usinas.
Fonte: Elaboração dos pesquisadores do Projeto a partir dos dados obtidos no NMSPP/CPDA/UFRRJ; Fetag/RJ; Centro de Documentação Dom
Tomas Balduíno; Projeto Brasil Nunca Mais; Plataforma Memória Reveladas; jornais e entrevistas realizadas em diferentes momentos.

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projetos de colonização criados pelo governo federal tes em torno do desenvolvimento e da industrializa- envolvidas, “eram o principal problema social exis- pelo PCB. Como desdobramento, ocorreram vários
em diversos pontos da Baixada Fluminense ou de ção, em especial o significado das grandes proprie- tente no campo fluminense entre 1950 e o início da encontros locais e estaduais para estimular a ex-
empregos urbanos, numa fase de expansão indus- dades e da reprodução, no seu interior, de relações década de 1960”4. pansão da organização dos camponeses, termo que
trial. A mobilidade interna para as áreas de fron- de opressão. O tema da reforma agrária ganhou pro- começava a circular e ganhar significado político.
teira entre urbano e rural, em especial na Região jeção como condição de superação do atraso, então Na década de cinquenta começaram a ocorrer inter- Como parte desse esforço, foi criada a Federação
Metropolitana, também foi consequência de uma considerado atributo das áreas rurais. Tratava-se de venções do governo estadual nesses conflitos, com das Associações de Lavradores do Estado do Rio de
política segregacionista empreendida na cidade do modernizar a produção, com introdução da mecani- desapropriação de terras. O primeiro caso de que Janeiro (Falerj), logo após a realização da I Confe-
Rio de Janeiro (como é o caso das reformas do pre- zação e aportes de crédito, condições para a melho- se tem notícia é o de Pedra Lisa, onde os posseiros rência dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do
feito Pereira Passos, das remoções de populações de ria de vida das populações que viviam no campo. resistiram às tentativas de despejo, armados de fa- Estado do Rio de Janeiro, em Niterói, entre 28 e 30
cortiços, favelas etc), bem como da construção de li- cas, foices, enxadas e espingardas de caça. A locali- de agosto de 1959.
nhas ferroviárias, rodovias e instituição de políticas As disputas por terra se acirraram, em especial dade foi desapropriada pelo então governador Mi-
de transporte visando facilitar o deslocamento dos na Região Metropolitana: as tentativas de despejo guel Couto. Os jornais fluminenses constantemente O crescimento das organizações se somava e se arti-
que viviam nas periferias. mobilizavam os trabalhadores e provocavam sua alertavam para os riscos de subversão e advertiam culava com outras formas de luta, definidas em cada
resistência. Naquele momento, a categoria grileiro sobre a proximidade das regiões de conflito agrário local, conforme a configuração de forças presentes e
A primeira metade do século foi marcada pelos refle- passou a recobrir todos aqueles que tentavam se em relação à capital federal. Esse argumento foi re- as possibilidades de ação na justiça, manifestações
xos da crise da cafeicultura do Vale do Paraíba e das apropriar de terras onde estavam trabalhadores petidamente usado no IPM 709, que investigou as públicas, apelo a autoridades, denúncia nos jornais.
lavouras de laranja da Baixada Fluminense. Neste que, por sua vez, passaram a se identificar como atividades do PCB. Ao longo desses passos iniciais da organização, a re-
último caso, a historiografia reitera a ideia de que posseiros3. Embora pagando taxas pelo uso da ter- pressão já era forte, especialmente depois da cassa-
as terras foram abandonadas, levando ao assorea- ra ou para cortar madeira, ou seja, reconhecendo As associações de lavradores foram, em diversos esta- ção do registro do PCB em 1947.
mento dos rios. Um dos resultados foi um surto de que a propriedade pertencia a outro, o argumento dos brasileiros, uma primeira tentativa de unificar as
febre amarela que levou à necessidade de obras de do uso da terra para garantir o sustento da família lutas camponesas sob as mesmas bandeiras e tirá-las As associações de lavradores desde logo teceram la-
saneamento e consequente valorização fundiária do se sobrepunha no momento da disputa. Grileiros e de sua dimensão local para articulá-las na constru- ços com diferentes entidades com as quais tinham
entorno da capital. Ao longo dos anos 1930 e 1940, posseiros se constituíram, antes de mais nada, como ção de um conjunto de reivindicações que ultrapas- afinidades políticas, como o Sindicato dos Ferrovi-
ocorreram iniciativas estatais para reordenar a ocu- categorias políticas de enfrentamento. sava de longe os conflitos pontuais.5 É o momento em ários, dos Têxteis e dos Rodoviários. Esses víncu-
pação dos espaços com a criação de núcleos coloniais que começou a se produzir o reconhecimento político los fortaleciam a solidariedade entre esses grupos,
que, segundo a expectativa do governo, dissemina- Em todo o país (e o Estado do Rio de Janeiro não fu- do campesinato e em que suas demandas e lutas pas- contribuindo para a quebra de isolamento das lutas
riam a pequena propriedade e serviriam de polos de gia à regra), a ausência de um cadastro rigoroso de sam a ecoar nos jornais e nos debates políticos como dos camponeses. Do ponto de vista político, havia
produção de alimentos para uma cidade que já então terras e a delimitação controversa das propriedades, luta por reforma agrária. circulação cada vez mais ampliada de lideranças, de
despontava como centro industrial e, portanto, com por vezes com superposição de limites, criavam di- novas bandeiras e de palavras de ordem, ao mes-
rápido crescimento populacional. A instalação da ficuldades para definição do que eram efetivamente No plano nacional, em 1954, foi criada a União dos mo tempo em que se disseminavam propostas que
Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), da Fábrica terras da União ou terras devolutas, quem eram os Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ul- tendiam a construir atores políticos unificados, mos-
Nacional de Motores (FNM) e da Refinaria Duque de posseiros, quem detinha a propriedade legal. Esse tab), em evento realizado em São Paulo, convocado trando quão falaciosas eram, já então, as rígidas se-
Caxias (Reduc) foram momentos importantes desse quadro era particularmente agudo no que é hoje a parações entre rural e urbano.
processo. A consequência dessas iniciativas foi um Região Metropolitana. Os despejos, pela sua recor- 4. GRYNSZPAN, Mário. Mobilização camponesa e competição política no es-
tado do Rio de Janeiro: 1950-1964. 2 v. Dissertação (Mestrado). Programa de
amplo fluxo migratório de trabalhadores em busca rência, abrangência espacial e número de pessoas Pós-Graduação em Antropologia Social, MN/UFRJ, Rio de Janeiro, 1987, p.16. Do final de 1961 em diante, no Rio de Janeiro, as ocu-
5. As primeiras associações de lavradores começaram a aparecer na segunda
de meios para sobreviver. metade da década de 1940, criadas nas áreas onde ocorriam despejos. É o pações de terra como ação coletiva começaram a ser
3. Alguns grileiros eram influentes políticos locais. É o caso, por exemplo, de
Getúlio Moura, político de Nova Iguaçu que foi inclusive candidato a gover-
caso de Pedra Lisa, localizada no então Município de Nova Iguaçu, e de Xe-
rém, em Duque de Caxias. Esta última iniciativa logo depois assumiu o nome
mais frequentes. Três casos ganharam maior noto-
Ao longo da década de 1950, foram intensos os deba- nador do Estado do Rio de Janeiro. Mas havia também empresas, como é o de Associação dos Lavradores Fluminenses (ALF), mostrando sua intenção riedade. O primeiro deles foi a ocupação da Fazenda
caso da América Fabril, em Magé. de atuar para além de seu local de origem.

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São José da Boa Morte, em Cachoeiras de Macacu, dual, nacional, sem descartar influências inter- nização dos despejados e resolução de controvérsias, por uma intensa articulação política dessas organi-
em fins de 1961. Os camponeses foram duramente nacionais) e que fizeram do debate sobre reforma e também pela introdução de controle policial nas zações, algumas delas juntando-se com o Instituto
reprimidos, mas, em 1963, nova ocupação ocorreu agrária uma questão candente nos anos que ante- áreas de tensão social. Pelo Plano, foram decretadas de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto
no mesmo local, seguida de novo violento despejo. cederam o golpe militar e um campo de interven- desapropriações de 18 áreas7. Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), entidades
O segundo evento foi a ocupação do Imbé, em Cam- ção relevante após 1964. que tiveram um papel proeminente nas articulações
pos dos Goytacazes, em 1963, agregando lavradores No plano federal, o tema da reforma agrária tam- golpistas. Em 1963, por exemplo, quando a ocupação
das periferias da cidade, grande parte deles ex-mo- Ação do Estado e as desapropriações bém estava em discussão e centenas de projetos fo- do Imbé ganhou as páginas dos jornais locais e re-
radores de usinas da região campista e que estavam ram apresentados ao Legislativo, tentando dar-lhe percutiu nacionalmente, Iris Meinberg, presidente
sendo dispensados pela introdução de algumas mu- No final dos anos cinquenta e início dos anos ses- um corpo normativo. Nenhum deles foi aprovado no da Confederação Rural Brasileira e ativa opositora
danças no processo produtivo. O terceiro caso foi o senta, diversas desapropriações foram realizadas período em questão, mas, mesmo assim, algumas da reforma agrária, foi a Campos intervir na situ-
chamado levante de Capivari, em Duque de Caxias, por ação do governo estadual e, depois, pelo federal. desapropriações foram feitas, já no governo João ação. Da mesma forma, no final de abril de 1963,
em junho de 1963, decorrente da ameaça de despejo Marco desse tipo de ação foi a criação do Plano Piloto Goulart, em áreas de grande tensão. No caso do Rio quando ocorreu uma passeata que reuniu três mil
de uma área que já havia sido declarada de utili- de Ação Agrária, transformado em lei em 1959, com de Janeiro, foram dez, sendo apenas duas fora da lavradores numa caminhada ao Palácio do Ingá,
dade pública por interesse social pelo governo fede- o nome de Plano de Colonização e Aproveitamento Região Metropolitana. Algumas delas já haviam sede do governo estadual, Ieda França, diretora da
ral. Um dos resultados foi medidas mais rigorosas, de Terras Devolutas e Públicas (Lei nº 3.961, Diário sido objeto de intervenção do governo estadual, um Farerj, afirmou ao Jornal do Brasil que os proprie-
em especial prisões, para reprimir iniciativas desse Oficial do Estado do Rio de Janeiro, de 24/06/1959). indicador das dificuldades que se antepunham a es- tários estavam se armando, alarmados com o am-
tipo. Em Magé, por exemplo, as ocupações levaram A demanda por reforma agrária era respondida com sas ações e da continuidade dos conflitos. biente de agitação e dispostos a reagir contra qual-
à decretação da prisão preventiva do líder Manoel planos de colonização, linguagem que traduzia fun- quer invasão de suas terras8.
Ferreira de Lima e seu enquadramento, em 1963, damentalmente o desejo de intervenções pontuais Finalmente, é importante lembrar que, tanto no
na Lei de Segurança Nacional. e a utilização de terras devolutas, cuja demarcação plano estadual como no federal, a decretação de uma O golpe e seus desdobramentos: as
ainda precisaria ser feita. área como de interesse para desapropriação apenas ações do Estado
Nos anos 1970, foi a vez das áreas litorâneas, em es- iniciava um processo, que só se consumava com o
pecial na Costa Verde, com a construção da rodovia Essa legislação revelava que a questão da terra pagamento da terra, o que poderia levar anos para O golpe teve profundos efeitos sobre o campo. A re-
Rio-Santos e a proliferação de investimentos turís- era percebida pela ótica da dificuldade da separa- ocorrer ou mesmo não acontecer. Nesse meio tempo, pressão foi imediata: lideranças tiveram que aban-
ticos a ela relacionados. Nas áreas tradicionalmen- ção entre terras devolutas e terras particulares, as ameaças de despejo e a violência continuavam. donar seus lugares de moradia e trabalho; casas
te marcadas pela produção de cana de açúcar (em mostrando o quanto, mais de cem anos depois, as dos trabalhadores que viviam nas áreas de conflito
especial Campos dos Goytacazes), eclodiram confli- determinações da Lei de Terras de 1850 ainda per- À medida que o debate em torno da questão agrá- foram invadidas e reviradas em busca de documen-
tos em torno dos direitos trabalhistas. Nas antigas maneciam sem efeito prático6. Também apontava a ria crescia em todo o país, as entidades patronais tos e armas; famílias foram ameaçadas e coagidas
áreas cafeicultoras, a substituição por uma pecuária íntima relação estabelecida com a chamada questão rurais também se movimentavam, colocando-se de para revelar o paradeiro do pai (em geral, os homens
extensiva levou à expulsão de um grande número urbana (havia previsão de áreas de terras para as- forma cada vez mais visível no debate político. No eram os mais diretamente envolvidos nos conflitos).
de trabalhadores, ocasionando conflitos e violências sentar famílias faveladas e apoio aos que viviam em plano nacional, o início dos anos 1960 foi marcado Em locais onde tinha havido ocupações, como São
nem sempre visibilizadas. cidades e povoados e optassem por se transformar José da Boa Morte, o Exército iniciou a busca por
em agricultores). Destacam-se as situações de lití- 7. Entre estas, 11 se localizavam na Baixada (São Pedro e Tenente Pacheco, comunistas nos primeiros dias após o golpe. Rela-
em Nova Iguaçu; São José da Boa Morte, em Cachoeiras de Macacu; São Lou-
O desenvolvimento dos conflitos no território flu- gio, que eram equacionadas pela proposta de inde- renço, Capivari, Penha-Caixão e Piranema, em Duque de Caxias; Santa Alice, tos colhidos sobre lugares diferentes (Baixada Flu-
em Itaguaí; Vargem Grande, em Itaboraí e parte em Cachoeiras de Macacu;
minense não pode ser explicado sem que se esta- 6. Com a regulamentação, em 1854, da Lei de Terras, foi atribuído às provín- e Rio do Ouro e Cachoeiras, em Magé) e sete fora (Paraty-Mirim e Indepen- minense, Região Serrana, Imbé), com pessoas que,
cias o comando da medição, legitimação e titulação de terras, respeitando dência, em Paraty; Largo, Ponta do Largo e Atalho, em São João da Barra;
beleçam relações entre organizações locais e o que os direitos dos posseiros e antigos sesmeiros. No entanto, a iniciativa pri- Engenho do Mato, em Niterói e Rio das Ostras, em Casimiro de Abreu). à época, eram crianças ou adolescentes, filhos de
se passava no Brasil. São diferentes atores que se meira, que desencadeava todo o processo de demarcação, estava nas mãos
dos particulares, que resistiam a fazer essa delimitação, uma vez que o não
Em outros estados (São Paulo, Goiás, Pernambuco, Rio Grande do Sul) os
governos estaduais também estavam intervindo de forma semelhante sobre 8. GRYNSZPAN, M. Mobilização camponesa e competição política no estado
entrecruzavam em diferentes planos (local, esta- registro formal e a abundância de terras deixavam terrenos disponíveis para a questão agrária. do Rio de Janeiro: 1950-1964. 2 v. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-
apropriação e uso futuro. -Graduação em Antropologia Social, MN/UFRJ, Rio de Janeiro, 1987.

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trabalhadores com algum grau de envolvimento nos ocorreu no passado, embora sob novas formas. É foram fechadas logo após o golpe e suas lideranças
conflitos, apontam o padrão de violência que se de- o caso da proposta da construção da barragem “ Os lavradores entendiam que a reforma agrária era a so- cassadas, presas ou ficaram sob estrita observação.
flagrou. no rio Guapiaçu e que vai atingir por volta de lução do homem do campo, mas a polícia e os grileiros sempre O mesmo ocorreu com a União Operária Valenciana,
três mil pessoas, muitas delas já afetadas, nos nos perseguiam por causa desse nome “reforma agrária” – só que reunia trabalhadores das mais diversas catego-
anos 1960, por sucessivas intervenções fundiá- de falar esse nome eles vinham, prendiam, perseguiam, mes- rias, incluindo-se trabalhadores rurais. Sua sede foi
Dimensões da memória rias do governo federal.* Trata-se de uma situa- mo antes de 1964. imediatamente invadida e fechada, suas principais
ção exemplar, em que as memórias são ativadas O Dácio [grileiro] colocou o gado na roça dos posseiros e ele lideranças perseguidas, alguns sendo presos e tortu-
As entrevistas com os que estiveram à frente e trazem à tona eventos traumáticos do passado. teve o apoio do delegado daquela época, o Péricles Gonçalves, rados e suas atividades objeto de IPM específico. Ao
dos conflitos e foram os principais atingidos que autorizou que ele tirasse a cerca de todos os lavradores mesmo tempo houve mudanças institucionais impor-
pela repressão política mostram muitas vezes * Algumas das famílias foram removidas da área do Imbé, em Campos pra colocar o gado. O Dácio só chegou com agressão, acoberta- tantes, inauguradas com o Ato Institucional nº 1. Por
uma memória que destaca, principalmente, o dos Goytacazes, e de outras áreas de conflito do estado e assentadas nas do pelo delegado e com a ajuda da polícia. Nós tivemos muita meio dele, no Estado do Rio de Janeiro, deputados
protagonismo que tiveram, enfatizando geral- glebas Vecchi e Quizanga, em Cachoeiras de Macacu, entre 1966 e 1967. represália do delegado, que espancou lavradores, prendeu que apoiavam as lutas dos trabalhadores tiveram
mente a coragem e astúcia para resistir à re- lavradores. Naquela época muitos lavradores se apavoraram seus mandatos cassados. É o caso de Adão Pereira
pressão, tanto estatal como privada. As ações com o espancamento dos grileiros e da polícia e deixaram as Nunes, Afonso Celso, Demisthoclides Batista, Tenó-
empreendidas para conseguir a desapropriação suas terras10.” rio Cavalcanti.
das terras também foram objeto de destaque.
Muitos entrevistados construíram uma narra- O depoimento de Roseli Borges, neta de Satiro Bor- Muitos sindicatos foram fechados e reabertos tempos Paralelamente à repressão e violência, foram cria-
tiva que aponta para o caráter heroico da luta ges, liderança da ocupação do Imbé, ilustra essas depois. A Federação das Associações de Lavradores do dos instrumentos legais para atuar sobre as áreas
dos trabalhadores, na qual pouco aparece os ações: Estado do Rio de Janeiro (Falerj), então dirigida por de tensão social, como é o caso do Estatuto da Terra
que desistiram e migraram em busca de ou- José Pureza da Silva, Bráulio Rodrigues da Silva e que previa a desapropriação e a distribuição de imó-
tras alternativas. As dificuldades e fracassos, “ Desde criança você ver eles [Exército] (...) amarrarem Manoel Ferreira de Lima, sofreu intervenção. Mesmo veis em casos de conflito social manifesto, mas tam-
quando se evidenciam, servem como elemento uma corda no pescoço do cavalo e vir na travessa da casa os novos diretores da Federação, indicados por padre bém visando promover a adequação da agricultura
da trajetória de dificuldades enfrentada para se e meter esporro naquele cavalo e o cavalo levar a casa com Carvalho, ligado aos Círculos Operários e pessoa de a um padrão de desenvolvimento marcado pela ra-
chegar à conquista da terra. No seu conjunto, tudo. A gente ali olhando e o meu avô debaixo de chicote. confiança da ditadura, não deixaram de ser vigiados cionalidade empresarial11. Esse documento também
essas memórias revelam o caráter de classe da (...) Pra quando chegar depois dos meus filhos já casados e e de sofrerem pressão. Padre Carvalho tem seu nome definia que a propriedade da terra deveria cumprir
repressão política durante a ditadura. eu aqui dentro (...) agora que a gente pensava que ia che- citado diversas vezes nos IPMs e também era moni- uma função social.
gar a paz vem esse negócio de botar barragem pra tirar a torado. No que diz respeito aos assalariados, embora
Muitos dos relatos são memórias herdadas por gente daqui. Pra mim é muito [humilhante], demais (...). não tenha havido intervenção sobre o Sindicato dos As ideias presentes no Estatuto da Terra eram, por
familiares ou de pessoas que viveram os con- E de repente a gente vai ter que sair daqui, morar em outra Trabalhadores Rurais de Campos, o seu presidente à um lado, modernizar o campo, medida entendida
flitos, mas não estavam envolvidos diretamen- comunidade e montar tudo de novo?9” época, Antônio João de Faria, respondeu a IPM, sen- como condição para a melhoria de vida dos traba-
te neles. Trata-se de depoimentos que indicam do acusado de subversivo e agitador. No entanto, foi lhadores; por outro, fazer uma distribuição limitada
uma memória difusa sobre os acontecimentos, Os proprietários de terras e grileiros se apropriavam sobre o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de de terras, em áreas de conflito, de forma a tirar os
destacando aspectos que não costumam estar da palavra de ordem contra a subversão, legitimada Açúcar e Álcool do Norte Fluminense, que mantinha camponeses das influências da esquerda organizada
presentes no depoimento das lideranças. pelo Estado, para expulsar lavradores de suas ter- uma representação importante junto aos trabalha- (nessas alturas, já bastante abalada pelas prisões,
ras, como nos conta Rosa Geralda Silveira, antiga dores das usinas (inclusive de parte dos rurais), que porém, conforme pensavam os militares, sempre
Há ainda que chamar a atenção para a memória liderança na Fazenda Campos Novos: a repressão se abateu mais fortemente: suas portas
presentificada por ameaças de repetição do que 11. Na mensagem que acompanhou o Estatuto da Terra ao Congresso Nacio-
nal, falava-se na prioridade à reforma agrária como modo de “promover a
10. Entrevista com Dona Rosa concedida a Leonilde Medeiros e Sônia Lacer- justa distribuição de propriedade, com igual oportunidade para todos”, fato
9. Entrevista com Roseli Borges. Acervo NMSPP/CPDA/UFRRJ. da em 1983. Acervo NMSPP/CPDA/UFRRJ. que mostrava a preocupação dos militares com a questão fundiária.

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com possibilidade de se recuperar). pressão para assinatura de documentos de como- Resistência em condições adversas do filho de um dos lavradores. Também em Xerém,
datos ou aluguéis, onde se determinava um prazo Duque de Caxias, a resistência continuou geran-
No que diz respeito às desapropriações, as pressões curto para saída da área, destruição de lavouras e Num contexto repressivo, havia pouco espaço para do, inclusive, uma organização própria, o Núcleo
dos setores patronais e a redução dos conflitos fun- casas e processos judiciais contra as famílias que organização, protestos, manifestações públicas. A Agrícola Fluminense.
diários, produto da desarticulação das organizações se recusaram a sair. resistência persistia, mas em condições adversas.
de trabalhadores que os explicitavam e os traziam Um caso ilustrativo é o de Cachoeiras de Macacu, Apesar das condições desfavoráveis, a existência
para o espaço público, fizeram com que, na realida- No entanto, houve outra política de grande impac- onde os camponeses que participaram da ocupação de uma lei que promovia o reconhecimento legal
de, elas não ocorressem. Mesmo assim, ao longo des- to, que levou ao aparecimento de conflitos em áreas tiveram que responder a um IPM, que se desdobrou da reforma agrária como parte dos instrumentos
se período, algumas áreas foram decretadas como onde, até o início dos anos 1970, pareciam ausentes. no processo 7477/69. Esses lavradores se instalaram de regulação do território brasileiro proporcionou
prioritárias para fins de reforma agrária. No caso do Trata-se da importância que passou a ser dada ao nas redondezas, de onde começaram a ser expulsos, condições para lutas em torno da aplicação dessa
Estado do Rio de Janeiro, nos anos 1970, somente turismo, como nova frente de expansão do capital. O cerca de dois anos depois, pela Guarda Rural do mesma lei. Dessa forma, o Estatuto da Terra tor-
duas áreas foram desapropriadas, ambas no Muni- caso mais notório é a construção da rodovia que liga Ibra, que passou a atuar na região com o objetivo de nou-se um campo de disputa política, com os advo-
cípio de Magé: a gleba América Fabril e a fazenda a cidade do Rio de Janeiro à Santos, em São Paulo, regularizar os lotes e, principalmente, perseguir “co- gados do sindicalismo procurando explorar possí-
Conceição de Suruí. e que tem seu traçado cortando o litoral dos dois es- munistas”. Há diversos relatos de casas incendiadas veis brechas para beneficiar os trabalhadores em
tados. A estrada atraiu investimentos na região da e pessoas presas. Um dos guardas foi assassinado áreas de conflito. Com efeito, o Estatuto da Terra
Desenvolveu-se no país uma política de estímulo à Costa Verde, provocou especulação imobiliária e dis- em 1975 por vingança. passou a fazer parte do ideário e do repertório das
modernização das atividades agropecuárias, levan- puta por terras, colocando em xeque a ocupação das ações da entidade sindical representativa, no pla-
do à empresarialização do setor, como previa o Es- áreas próximas ao mar por caiçaras e comunidades “ Aí foi naquela época de 1964, aquela revolução, que até no nacional, dos trabalhadores rurais, a Confede-
tatuto da Terra, mas sem alterações importantes na negras, constituídas por descendentes dos escravos hoje eu não entendo o que é isso. Diz que era comunismo, não ração Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
estrutura de propriedade. A concepção de desenvol- que permaneceram ali desde o declínio da cafeicul- entendo, só sei que o negócio era feio. Aí entrou o Exército, (Contag), que encaminhava sistematicamente ao
vimento rural foi ganhando cada vez mais o senti- tura na região13. Não por acaso, na década de 1970, entrou aqui fazendo uma zoeira danada. Aí passou os tempos, governo federal (em suas diferentes instâncias)15
do que lhe impunham as forças hegemônicas: a sua grande parte dos conflitos fundiários no estado ocor- eles fizeram, tiraram o pessoal da área, daqui, foi para outra relatórios de conflitos, em especial os relacionados
identificação com modernização da base técnica e riam nessa região, em especial em Angra dos Reis e área, para desocupar a terra aqui. (...) Mas foi muito difícil à tentativa de expulsão de posseiros, solicitando a
produtiva12. No Estado do Rio de Janeiro, na região Paraty. Neles predominou a ação do poder privado, mesmo, porque aqui na época o pessoal já tinha os lotes me- desapropriação da área “por interesse social, nos
canavieira de Campos, foi intensa a modernização, por meio da ação de jagunços na expulsão das famí- didos, era entregue pelo Ministério da Agricultura. O Exército termos do Estatuto da Terra”.
com os estímulos do Programa Nacional do Álcool lias. A violência foi intensa com queima de casas e entrou, tirou todo mundo. (...) O Exército botava fogo, casa
(Proálcool). Esse processo trouxe uma mudança das destruição de roças. com tudo, casa era de sapé, eles chegavam com o cara dentro, Documentos produzidos pelos sindicatos16 mostram
relações de trabalho e crescimento do número de riscavam fósforo e queimavam, botavam fogo. (...) Eles disse- as arbitrariedades a que os trabalhadores estavam
conflitos trabalhistas. ram que tinha um negócio de comunismo no meio, não sei14.” submetidos e relatam com detalhes as ações de ja-
gunços, da polícia e de guardas florestais: queimas
Caso singular é o da Fazenda Santa Mônica, em Nesse contexto de resistência às expulsões formou- de casas, destruição de lavouras, prisões arbitrá-
Valença. Antiga área do Ministério da Agricultu- -se, em Nova Ribeira, um grupo de treinamento rias etc. Essa documentação, que revela o modo de
ra, foi nos anos 1970 repassada à Embrapa, que de guerrilha ligado a grupos da esquerda armada. agir da repressão no campo, também fornece um
passou a promover ações para expulsão dos lavra- Essa iniciativa resultou na prisão de lideranças (o interessante quadro da prática sindical: tratava-
dores lá residentes há muito tempo. Entre elas, a pároco local e um casal de membros da VAR-Pal- -se de conhecer os conflitos, documentá-los, buscar
13. Algumas dessas comunidades reivindicavam que as terras lhes foram dei-
xadas como herança pelos antigos senhores (como é o caso de Campinho da mares) e de dois camponeses, além do assassinato 15. Presidente da República, ministérios vários (Agricultura, Justiça, Exérci-
12. Mesmo a política de colonização que foi incentivada no período adequou- Independência e Santa Rita do Brachuy) e passaram a se autodenominar, a to etc.), além do Ibra, depois Incra.
-se a essa perspectiva, levando agricultores com experiência na agricultura partir da Constituição de 1988, como quilombolas, em busca da regularização 14. O lavrador refere-se na verdade à Guarda do Ibra, que comumente era 16. Parte substancial da documentação sindical analisada consiste em ofícios
modernizada do Sul para as regiões Centro-Oeste e Norte, buscando lá difun- das suas terras a partir de outros fundamentos legais. O mesmo se deu em confundida com o Exército. Entrevista concedida a Fabricio Teló e Ricardo dirigidos à Presidência da República e a ministérios denunciando as tensões
dir outro estilo de uso da terra e racionalidade. Campos Novos, Cabo Frio. Braga em 08/11/2014. Acervo NMSPP/CPDA/UFRRJ. que percorriam o campo.

84 85
explicações para sua origem, narrar as violências, já atuava junto aos trabalhadores do campo, con- tos por terra em Duque de Caxias e Nova Iguaçu ela Um novo ciclo de lutas: retomada
elementos que compunham relatórios a serem en- trapondo-se às teses defendidas pelos comunistas. esteve presente. Na região Serrana, em Trajano de das ocupações de terra e das lutas de
viados às autoridades, com pedidos de providências. Essa ação foi visível no Nordeste, principalmente Moraes, apoiou famílias ameaçadas de despejo na assalariados
por meio do Serviço de Assistência Rural de Natal, Fazenda Santo Inácio, propriedade de um militar
Mesmo considerando que havia pouca ação voltada no Rio Grande do Norte, e do Serviço de Orien- de uma tradicional família da região cujo patriarca O final dos anos 1970 e o início dos anos 1980 mar-
para a mobilização e organização dos trabalhadores, tação Rural, em Pernambuco; no Sul, pela ação deu nome ao município. Em todos esses lugares, a caram uma retomada das manifestações em espaços
o fato é que, de alguma forma, os conflitos eram pu- das frentes agrárias, com destaque para a Fren- CPT estimulou a organização dos trabalhadores e a dos trabalhadores rurais de todo o país. Trata-se de
blicizados e ganhavam algum tipo de apoio. É por te Agrária Gaúcha; no Sudeste, pelo trabalho dos formação de chapas de oposição a sindicatos que ela um novo momento, em que começaram a se eviden-
esse caminho que o sindicalismo rural desenvolveu Círculos Operários Cristãos dos Estados de São considerava como pelegos e que não encaminhavam ciar sintomas de crise do regime militar e crescia a
uma associação entre reforma agrária e Estatuto da Paulo e Rio de Janeiro19. o que considerava como os verdadeiros interesses pressão social por maior liberdade de expressão, de
Terra, fazendo uma leitura particular dessa lei, en- dos trabalhadores. Nas regiões onde atuava, conta- organização, sindical e partidária, eleições diretas,
fatizando sua dimensão desapropriadora. O Estatu- No território fluminense, destacou-se a ação do pa- va com o apoio dos bispos locais, como Dom Adria- anistia aos presos políticos etc.
to contribuiu também para a consolidação de uma dre Antonio Carvalho, ligado aos Círculos Operários no Hipólito (Nova Iguaçu), Dom Waldir Calheiros
cultura fundada na prudência sindical17 e pautada e diretor do Plano Agrário no governo Badger Silvei- (Volta Redonda), Dom Clemente Isnard (Nova Fri- Numa conjuntura nacional marcada não só pelo
por um aprendizado sobre como apresentar deman- ra. Como apontado anteriormente, a ação desse pa- burgo), Dom Vital Wilderink (Itaguaí) e Dom Mauro aparecimento de novas demandas e experiências or-
das e se fazer ver por meio de envio de ofícios às au- dre foi acompanhada pelos militares, apesar de sua Morelli (Duque de Caxias). ganizativas por parte dos trabalhadores, ganharam
toridades, traduzindo as ameaças que os trabalha- adesão ao golpe e de seu ideário anticomunista. Nos expressão entidades de apoio de diversos tipos: orga-
dores sofriam.18 Por esse caminho, conseguiram-se anos 1970, no entanto, um novo ator eclesial pas- Havia também uma atuação de outras confissões nizações não governamentais, tais como Associação
algumas poucas desapropriações, como é o caso das sou a desempenhar um papel relevante: a Comissão religiosas junto aos trabalhadores rurais, como é o Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Federação
anteriormente mencionadas em Magé. Pastoral da Terra (CPT). Criada em 1975, a partir caso dos metodistas em Duque de Caxias que, já no dos Órgãos para Assistência Social e Educacional
de um encontro de bispos afinados com os princípios início dos anos 1980, criaram a Pastoral Ecumêni- (Fase), Centro Ecumênico de Documentação e In-
Nesse contexto, chama atenção a importância assu- da Teologia da Libertação, ela se mostrou como um ca de Xerém20. formação (Cedi), Instituto Brasileiro de Análises So-
mida pela ação das advogadas e dos advogados sin- espaço de reflexão e intervenção sobre os conflitos cioeconômicas (Ibase); e uma série de entidades de
dicais: militantes no movimento estudantil e parti- por terra. Embora os principais nomes ligados à sua Ao longo de sua atuação, os agentes de pastoral atuação local que deram suporte e/ou promoveram
cipantes de organizações de esquerda, como PCB ou criação (Dom Thomas Balduíno, Dom Moacir Grec- também foram objeto de violência: ameaças eram programas de formação de trabalhadores rurais e
outras organizações. O Estado do Rio de Janeiro foi chi, Dom Pedro Casaldáliga) fossem ligados aos pro- constantes e culminaram na invasão da própria iniciaram campanhas de apoio às suas demandas,
uma peça chave nessa articulação e alguns advoga- blemas fundiários das regiões Norte e Centro-Oeste, sede da entidade na cidade do Rio de Janeiro, em como é o caso da Campanha Nacional pela Reforma
dos circulavam entre a Federação e a Contag, como a CPT começou a atuar no Rio de Janeiro em 1976, 1984, por policiais que estavam em busca de docu- Agrária. Além disso, militantes exilados no exterior
foram os casos de Aurora Coentro e Altamir Petter- inicialmente nos conflitos em Paraty. Em pouco tem- mentos que comprovassem que a entidade estimu- e antigas lideranças que haviam sido presas, fora-
sen. Havia claramente uma estratégia de ação sin- po ela se expandiu para outros lugares e sua parti- lava ocupações de terra. gidas ou silenciadas retomavam os contatos com os
dical que passava pela defesa dos direitos, exploran- cipação foi particularmente incisiva em Cachoeiras trabalhadores. É o caso, entre outros, de José Pu-
do a legislação existente. de Macacu, onde esteve à frente de um trabalho de reza, Bráulio Rodrigues, Manoel Ferreira de Lima,
formação que resultou em nova ocupação da Fazen- Laerte Bastos, Francisco Silva, João Correa de Pau-
Outro ator importante no estímulo à organização da São José da Boa Morte em 1980. Nessa ocasião, la. Vários deles atuaram decisivamente em algumas
e resistência foi a Igreja. Desde os anos 1960, ela vários trabalhadores foram presos, juntamente com iniciativas de luta por terra no estado, desde mea-
17. NOVAES, Regina Célia R. De corpo e alma. Catolicismo, classes sociais e o pároco de Santana de Japuíba. Também nos confli- dos dos anos 1970.
conflitos no campo. Rio de Janeiro: Graphia, 1997.
18. PALMEIRA, Moacir. A diversidade da luta no campo: luta camponesa e 19. José Rotta, dos Círculos Operários de São Paulo, tornou-se presidente da 20. DABUL, Ligia. Um tanto da história de Xerém, Análise social e eclesial. In
diferenciação do campesinato. In: PAIVA, Vanilda (org.). Igreja e questão Federação desse estado no período que antecedeu o golpe e foi nomeado, em Oliveira, Rafael Soares (coord). Unidade e prática da fé: Pastoral Ecumênica Nesse momento de início de abertura política, no
agrária. São Paulo, Edições Loyola, 1985. abril de1964, interventor da Contag. em Xerém. Rio de Janeiro: Cedi, 1987.

86 87
entanto, as concepções da polícia sobre os conflitos No que se refere aos assalariados rurais, o desrespei- apoio a regiões de conflito. É o caso de José Pureza o polo dessas iniciativas, onde se acirrou a disputa
pouco mudaram. Um bom exemplo é o que Delegado to aos direitos trabalhistas reconhecidos em lei desde da Silva, que retornou ao Rio no final dos anos 1970, por diversas áreas, várias delas polos de conflito
de Polícia de Cabo Frio, Tito Lívio Seródio, afirmou 1963 era uma constante, em especial na região cana- após sua liberação da prisão, participou de diversos desde os anos 1950.
para a imprensa, ao receber uma denúncia de um vieira. Havia denúncias sobre pagamento do salário encontros sindicais e passou a assessorar a regional
atentado contra um posseiro na Fazenda Campos feito através de vales, um número expressivo de tra- sindical de Cabo Frio e São Pedro da Aldeia. No entanto, para além desses elementos e da reto-
Novos, em Cabo Frio: balhadores não tinha sequer carteira assinada e não mada da organização abordada no tópico anterior,
recebia férias e décimo-terceiro salário. Alguns ga- Além de ter uma assessoria jurídica, como destaca- é preciso considerar uma importante mudança na
“ além do mais, naquela fazenda, todos os posseiros são nhavam, no final da safra, uma pequena quantia em do anteriormente, a Fetag montou, já nos anos 1970, conjuntura política do estado, com a eleição de Leo-
comunistas e agitadores. Só vou lá armado até os dentes. A dinheiro, chamada de agrado. Não utilizavam equi- uma assessoria educacional, bastante afinada com as nel Brizola como governador em 1982. Brizola havia
solução para aquilo lá é um avião americano soltar uma pamentos de proteção, como luvas e botas, e eram diretrizes emanadas da Contag. Enviou uma delega- apoiado a criação do Movimento dos Agricultores
bomba atômica e acabar com aquele pessoal21.” forçados a adquirir seus instrumentos de trabalho. A ção ao III Congresso da Contag, realizado em 1979, sem Terra (Master), no Rio Grande do Sul, quando
alimentação era considerada deficiente e não era for- momento em que foram cunhadas novas diretrizes de assumiu o comando daquele estado (1959/1963); foi
No início dos anos 1980, o Estado do Rio de Janeiro necida pelos empregadores. Também era denunciada ação para o sindicalismo. Como resultado das defi- coordenador da Campanha da Legalidade, em 1962,
já era considerado bastante urbanizado: 92% de sua a exploração pelo pagamento por tarefa, sem os tra- nições desse congresso, no Estado do Rio passaram deputado federal pelo Estado da Guanabara quando
população, segundo dados do Censo de 1980, vivia balhadores saberem com clareza o preço da tonelada, a ocorrer mobilizações de trabalhadores em espaços terminou seu mandato no governo do Rio Grande do
nas cidades, com grande concentração na Região da linha ou do metro cortado de cana. Nesse contexto, públicos para expressar suas reivindicações. Deram- Sul e considerado o estimulador dos Grupos de Onze
Metropolitana. Apesar disso, começaram a ocorrer os caminhos escolhidos pelo sindicato foram as ações -se pelo menos duas grandes concentrações na sede e cuja presença foi relatada em alguns depoimen-
ocupações de terra com a presença de alguns sin- na justiça e, já nos anos 1980, seguindo os passos do do Incra, na cidade do Rio de Janeiro. Uma delas em tos colhidos. Teve seu mandato de deputado federal
dicatos, da CPT e do Núcleo Agrícola Fluminense sindicalismo pernambucano, a greve, realizada pela 15 de dezembro de 1980 e a outra em 15 de junho de cassado e tornou-se um exilado político. Sua eleição
(NAF), com ação em Xerém, Duque de Caxias. Ocor- primeira vez em 1984. 1981, que contaram com um número expressivo de para o governo do Rio de Janeiro contribuiu para
reram ocupações em Cachoeiras de Macacu, na Fa- participantes de diferentes pontos do estado e que de- desencadear uma série de processos políticos, entre
zenda São José da Boa Morte, que foi um dos polos Para entender esse novo momento é preciso con- mandavam desapropriação de uma série de fazendas, eles a ocupação de terras, em especial pela sua pos-
mais importantes de conflitos no estado nos anos que siderar diversos elementos. Da mesma forma que algumas delas com histórico de conflito que vinha dos tura de negociar e evitar repressão.
antecederam o golpe e na década de 1970. Grandes em diferentes pontos do país, os trabalhadores anos 1950 ou 1960. Para tanto, combinava-se o ato
mobilizações foram feitas, o que redundou na sua rurais fluminenses estiveram ativos, recriando público com a entrega de relatórios e demandas, con- Formas de violência: uma primeira
desapropriação em 1981. Em agosto de 1983, 72 fa- sindicatos onde eles haviam desaparecido (como solidando um modo de atuação utilizado já no período aproximação
mílias, organizadas pelo NAF e pela CPT, ocuparam é o caso de Nova Iguaçu); formando chapas de anterior ao golpe e que era retomado em condições
uma área em Xerém e acabaram por ser assentadas oposição sindical para tentar assumir a direção políticas mais favoráveis. Sem dúvida, essas ações As violências sofridas pelos trabalhadores do cam-
em Italva, então distrito de Campos dos Goytacazes, de sindicatos considerados “pelegos” (Cachoeiras devem ser vistas como um componente importante po são reveladoras do que ocorreu nesse estado e
em 1984. Quase à mesma época, ocorreu a ocupa- de Macacu, Trajano de Moraes, entre outros) ou de impulso à redemocratização, que se fazia também particularmente na região Metropolitana, confor-
ção de Campo Alegre, em Nova Iguaçu, também com pouco atuantes (Paraty); criando organizações a partir de uma série de iniciativas locais. me mostra o Quadro 2. Violações de direitos, a se-
a presença do NAF e da CPT, como desdobramento não sindicais que expressassem as demandas dos guir. Nele elas são quantificadas a partir de uma
de um conflito em Parque Estoril e Nova Aurora, no trabalhadores (caso do NAF) e etc. É nesse quadro que ocorreu a retomada das ocu- tipologia que agrega as ações mais recorrentes e
mesmo município. A elas se sucederam várias ou- pações de terra, relacionadas a um conjunto de passíveis de contagem.
tras, que marcaram em especial a primeira metade No que se refere à Fetag/RJ, ela procurou se apro- mudanças no próprio estado, como a urbanização
dos anos 1980. ximar de antigas lideranças dos anos 1960 e trouxe intensa, a pressão por lotes para moradia e a exis- Como se verifica, a ocorrência de violências acompa-
algumas delas para participar de cursos de forma- tência de áreas disponíveis no meio rural próxi- nha o alto nível de conflitos na Região Metropolita-
21. “Briga por terra em Cabo Frio tem mais um posseiro ferido”. Jornal do ção para narrar suas experiências e inclusive dar mas a centros urbanos. A Baixada Fluminense foi na. É nela que ocorrem a maioria dos assassinatos
Brasil, 05/03/1978.

88 89
Região/ Assassinatos Desaparecidos Tortura Prisões Agressão Contratos forçados de
e prisões. Os dados trazem à tona diferentes faces Município física parceria e
da violação de direitos dos trabalhadores, perpetra- arrendamento
Duque de Caxias 1 - 5 8 1 -
das ora pelo Estado, ora pelo poder privado, neste
Nova Iguaçu 2 - 1 1 - -
caso sempre com omissão, quando não apoio, das Magé 5 - 1 6 2 -
instituições estatais. Ao lado delas há uma enorme Cachoeiras de Macacu 20 3 5 141 3 -
quantidade de despejos, destruição de benfeitorias e Rio Bonito 2 - - - 1 -
Itaguaí 1 - - - - -
casas, difíceis de contabilizar.
Paracambi 1 - - - - -
Rio de Janeiro 3 - - - 1 -
Muitas dessas violações de direitos humanos não Parati 2 - - 1 6 4
se tornaram visíveis, não foram noticiadas pela im- Angra dos Reis - - - 2 - 2
Silva Jardim 1 - - - 4 -
prensa, mas são parte de uma memória que perma-
Casimiro de Abreu - - - - 1 -
nece oculta e que às vezes se revela em comentários São Pedro da Aldeia 1 - - 7 1 -
lacônicos sobre tempos difíceis, mas também em Cabo Frio 3 - - 7 7 -
relatos detalhados onde as emoções e o sofrimento Valença - - 2 - 2 2
Pinheral - - - - 7 -
vêm à tona. Repete-se assim o silêncio sobre a his-
Um costume perverso: a expulsão das famílias. A violência foi intensa Teresópolis - - - 1 1 -
tória cotidiana de um importante segmento dos tra- no campo com queima de casas e destruição de roças. Na foto, casa Macuco - - - - 1 -
balhadores. Se isso é possível dizer sobre o Brasil sendo destruída por trator em Paraty em 1978
Santa Maria Madalena 1 - - - 2 -
Foto: Adriana Mattoso
como um todo, mais ainda sobre os trabalhadores Trajano de Moraes - - - 7 - -

do Estado do Rio de Janeiro, que se identifica como da Embrapa. O Poder Judiciário, em muitas situ- Vassouras 1 - - - 2 -
Porciúncula - - 1 - 1 -
metrópole e polo de atração turística e não valoriza ações, emitiu liminares de reintegração de posse a
Campos - - 3 3 - -
suas áreas rurais. favor dos que se diziam proprietários, sem ouvir os São João da Barra 1 - - - -
réus, sem verificar se era efetivo o cumprimento da TOTAIS RJ
Ao longo da ditadura, muitos camponeses e apoia- função social da propriedade e sem analisar os da- 45 3 18 184 43 8

dores de suas lutas foram perseguidos, ameaçados e dos dos registros de imóveis, potencializando a vio- Observações:
mortos porque ofereceram resistência à apropriação lência contra os camponeses. Em outros, a violência a) Na coluna Assassinatos só foram considerados os mortos identificados e aqueles casos que envolveram ação ou omissão dos
de suas terras ou à violação de seus direitos traba- foi perpetrada por jagunços, a mando de empresas agentes do Estado. Por isso, os números diferem da tabela original da pesquisa Conflitos por Terra e Repressão no Campo no Es-
lhistas. Foram anos em que se intensificaram o de- que buscavam se apossar de terras de posseiros tado do Rio de Janeiro (1946-1988).
senraizamento e as migrações com ocorrência de re- para dar-lhes outa destinação, com a conivência ou b) No caso das agressões físicas, não há identificação de número e nome nos seguintes conflitos: São Gonçalo, Bananal (ambos
moções de populações pelo Estado e foram anuladas omissão do Estado. em Paraty), Ariró e Brachuy (em Angra dos Reis), Três Poços (Volta Redonda), Santo Inácio (Trajano de Moraes), Ponte Funda
desapropriações anteriormente decretadas. Casas e (Petrópolis), Alpina (Teresópolis).
lavouras foram destruídas em diversas regiões. Fa- Diferentes agentes que apoiaram as lutas de re- c) No caso da coluna “contratos forçados”, o número corresponde à quantidade de conflitos em que houve ocorrências desse tipo.
mílias que estavam construindo e reconstruindo la- sistência no campo: militantes partidários, padres, d) Em Angra dos Reis, o número se refere aos conflitos em que houve prisões. Não foi possível identificar o número de presos.
ços de sociabilidade e solidariedade foram obrigadas advogados, estudantes, agentes de pastoral tiveram e) Os casos de desaparecimento não foram incluídos na lista de mortos e desaparecidos presente no capítulo 16 deste relatório,
a deixar as terras onde viviam. um papel extremamente importante, dando publici- por não se tratarem de pessoas nascidas ou desaparecidas no estado do Rio de Janeiro. Elas foram incluídas nesta tabela por
dade a demandas e a violações de direitos, produzin- terem atuado em conflitos de terra do estado.
Em diversos casos, os atos de violência foram come- do articulações entre diferentes segmentos, median- Fonte: elaboração dos pesquisadores do Projeto a partir dos dados obtidos no NMSPP/CPDA/UFRRJ; Fetag/RJ; Centro de Docu-
tidos por agentes do Estado: Exército, Polícia Mili- do reivindicações junto ao Estado e à sociedade. Eles mentação Dom Tomas Balduíno; Projeto Brasil Nunca Mais; Plataforma Memória Reveladas; jornais e entrevistas realizadas em
tar e Polícia Civil, Guarda do Ibra, do IBDF, agentes também foram vítimas da violência. diferentes momentos.

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O fim da ditadura militar e as novas trabalhadores rurais sem terra ou com pouca ter- No Estado do Rio de Janeiro, não por acaso, as de- quer outro tipo de registro oficial perante o Sistema
perspectivas abertas para a luta por terra ra. Também foi recuperada a proposta, presente no sapropriações feitas no âmbito do Plano Regional de de Justiça e Segurança Pública, tampouco perante a
e por direitos Estatuto da Terra, da seleção de áreas prioritárias Reforma Agrária do Rio de Janeiro (PRRA/RJ) envol- Justiça Militar, o que dificulta o acesso a documentos
para reforma agrária, apontando para a possibili- veram áreas cujos conflitos vinham, muitas vezes, que comprovem tais perseguições. A interpretação e
As mudanças ocorridas nos primeiros anos de 1980, dade de transformações fundiárias em áreas mais dos anos 1950/1960, que já haviam sido desapropria- a aplicação dada à Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79)
tais como uma nova postura do governo estadual amplas e não somente de intervenções pontuais em das e devolvidas aos antigos proprietários após o gol- têm impedido a investigação e sanção de violações
em relação aos conflitos e consequente criação de focos de conflito. pe, mantendo-se, porém, como focos de conflito. de direitos humanos ocorridas durante a vigência da
mecanismos institucionais para tratá-los, foram ditadura civil-militar, tornando as disposições des-
acompanhadas por mudanças no plano federal, A resistência à Proposta de Plano foi forte, em No entanto, isso não significou que o ciclo de vio- ta lei incompatíveis com os direitos consagrados na
com o advento da Nova República. As grandes mo- especial dos representantes dos proprietários de lência fosse interrompido. Caso exemplar é o assas- Convenção Americana de Direitos Humanos.
bilizações populares, tanto urbanas quanto rurais, terra que, um mês após seu anúncio, fizeram um sinato, já em 1988, logo após a aprovação da nova
que acompanharam o fim do regime militar reacen- congresso em Brasília para discuti-la. Dele se origi- Constituição, de Sebastião Lan, líder sindical de Se as condições políticas sem dúvida mudaram com
deram o debate em torno da realização da reforma nou a União Democrática Ruralista, entidade que Cabo Frio e São Pedro da Aldeia, morador da Fa- a volta da democracia, é preciso lembrar que muitas
agrária “ampla, massiva e imediata”, como deman- abertamente pregava o uso das armas para barrar zenda Campos Novos, local de conflitos fundiários práticas de violações de direitos humanos, implemen-
dava a Contag e novas entidades emergentes como ocupações de terra. desde os anos 1950 e desapropriada em 1982. tadas na ditadura, permanecem ainda hoje. Ao longo
o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). dos últimos trinta anos, os dados sobre a violência
O resultado dessa polarização levou a recuos na No território fluminense, uma avassaladora es- no campo, sistematizados pela CPT desde 1985, são
Num primeiro momento, a Nova República abriu proposta apresentada. A ênfase na negociação com peculação imobiliária na região metropolitana, a eloquentes: assassinatos, ameaças, desapropriações,
espaço para a institucionalização do tema da refor- os proprietários em lugar da desapropriação; o fim pecuarização da região serrana, a modernização destruição de casas e benfeitorias, continuam sendo
ma agrária, quer criando um ministério especial- da conotação punitiva que as desapropriações ti- do setor sucroalcooleiro campista, alimentado por práticas recorrentes, mesmo com os avanços nos últi-
mente voltado para ele – o Ministério da Reforma nham na proposta original; a polêmica a respeito fartos subsídios governamentais e, nas regiões li- mos 30 anos. Da mesma forma, em nome de projetos
Agrária e Desenvolvimento (Mirad), quer um gru- da definição do que era imóvel “produtivo” (portan- torâneas, investimentos turísticos que não respei- de desenvolvimento, camponeses continuam sendo
po de trabalho para elaborar uma Proposta de Pla- to, não passível de desapropriação) foram alguns taram antigos ocupantes, produziram profundas removidos de suas terras, como demonstram fatos
no Nacional de Reforma Agrária (PNRA), composto dos elementos que passaram a ganhar destaque no transformações nas áreas rurais e na vida das po- recentes como a construção do porto do Açu, em São
por representantes da sociedade civil afinados com debate. Outro aspecto foi a retomada da discussão pulações. Alguns segmentos resistiram a partir de João da Barra, e a barragem do rio Guapiaçu.
as demandas dos trabalhadores. Nesse documento, sobre a utilização das terras públicas para assenta- concepções vigentes sobre direito à terra e foram
a reforma agrária aparecia como uma das priorida- mentos. A Casa Civil da Presidência da República e perseguidas. Uma parcela pequena conseguiu aces-
des do novo governo e, para implementá-la, a de- os ministérios militares tiveram protagonismo nes- so à terra e pôde continuar se reproduzindo como
sapropriação por interesse social era considerada sa mudança, atualizando a percepção da questão lavrador ou camponês. Outras não puderam fazer o
o principal instrumento. A indenização das terras fundiária como ligada à segurança nacional. mesmo e migraram em busca de terra ou, o que foi
desapropriadas seria feita com base no valor de- mais comum, tentaram a sobrevivência nas perife-
clarado para fins de cobrança do imposto territo- Apesar de todas essas dificuldades, foram realiza- rias urbanas, agravando a profunda desigualdade
rial rural. Sendo este um preço reconhecidamente das diversas intervenções em áreas de conflito, em social com que convivemos.
abaixo do vigente no mercado, a proposta assumia, alguns casos garantindo a terra a trabalhadores que
de forma explícita, a concepção de desapropriação nela já viviam e estavam ameaçados de expulsão, Entre os camponeses que foram perseguidos políti-
como uma penalização dos proprietários fundiários em outros assentando os que haviam participado de cos e atingidos pela repressão no período de 1946 a
por não darem à terra uma função social. A meta ocupações e acampamentos. 1988, relativamente poucos sofreram processo judi-
era assentar, no prazo de 15 anos, sete milhões de cial ou foram objeto de abertura de IPM ou de qual-

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Mortos e desaparecidos Mortos 12. Manoel Mangueira Casos para os quais não 12. Edval José dos Santos 23. Manoel Alexandre dos Santos
do campo Local: Fazenda Campos Novos/Cabo Frio há informações biográficas Local: Itaguaí Local: Estrada do Carmo/Cachoeiras de
1. Amâncio Bonifácio da Cruz e São Pedro da Aldeia e circunstâncias da morte Data: 03/07/1987 Macacu
A pesquisa desenvolvida pela Local: São Gonçalo/Paraty Data: 1977 13. Felix Resende Data: 01/08/1981
CEV-Rio, em parceria com o Pro- Data: por volta de 1975 13. Mário Vaz 1. Ademir Barreto Local: Patis/Cachoeiras de Macacu 24. Manoel Francisco Flor
grama de Pós-Gradução de Ciên- 2. Vitório da Cruz Local: Fazenda Mato Alto/Guaratiba/Rio Local: Fazenda do Capixaba/Nova Iguaçu Data: 01/10/1981 Local: Gleba América Fabril/Magé
cias Sociais em Desenvolvimento, Local: São Gonçalo/Paraty de Janeiro Data: 1987 14. Jaime Brito da Silva Data: Não identificada
Agricultura e Sociedade da Uni- Data: por volta de 1975 Data: Novembro de 1965 2. Ademir Pereira Local: Fazenda Lagoinhas/Cachoeiras de 25. Manoel Guilherme Gonçalves
versidade Federal Rural do Rio 3. Augusto Rodrigues de Souza 14. Nilson Diogo Local: Cachoeiras de Macacu Macacu Local: Fazenda Quizanga/Cachoeiras de
de Janeiro (CPDA-UFRRJ), con- Local: Fazenda Soarinho/Cachoeiras de Local: Sítio das Palmeiras/Vassouras Data: 1981 Data: Maio/1976 Macacu
tabilizou 16 camponeses mortos, Macacu Data: 17 de junho de 1986 3. Adevanir 15. Jairo Cleso dos Santos Data: 1980
três desaparecidos durante a di- Data: 19/02/1982 15. Sebastião Gomes dos Santos Local: Pau Grande/Magé Local: Fazenda dos Machados/Paracambi 26. Manoel Muniz
tadura e outros 29 casos para os 4. Benício Gomes de Oliveira Local: Gleba Nova Ribeira/Cachoeiras Data: Década de 1980 Data: 06/01/1987 Local: Maraporã/Cachoeiras de Macacu
quais não dispõe de informações Local: Fazenda Campos Novos/Cabo Frio de Macacu, 4. Adilson da Silva Moura 16. Jairo Passos Ferreira Data: 1979
biográficas e contexto das mor- Data: 20 de fevereiro de 1978 Data: maio de 1969 Local: Gleba Vecchi/Cachoeiras de Local: Fazenda Barnabé/Cachoeiras de 27. Ordiney Acácio de Araújo
tes. A lista revela os 48 nomes 5. Cecílio Alves Sttelet 16. Sebastião Lan Macacu Macacu Local: Fazenda Bacaxá/Rio Bonito
dos camponeses atingidos pela Local: Morumbeca/Santa Maria Data: 10 de junho de 1988 Data: 19/07/1978 Data: 1981 Data: 29/11/1979
repressão no Estado do Rio de Ja- Madalena Local: Fazenda Campos Novos/Cabo Frio 5. Alcides Desidério Rodrigues 17. João Lourenço 28. Valci Graça
neiro no período de 1946 a 198822. Data: 29 de junho de 1987 e São Pedro da Aldeia Local: Cachoeiras de Macacu Local: Cachoeiras de Macacu Local: Faraó/Cachoeiras de Macacu
Destes, 16 mortos23 e um desapa- 6. Concelsa dos Santos Silva Data: 1979 Data: 07/01/1981 Data: 01/12/1980
recido24 atendem aos parâmetros Local: São Pedro d’Aldeia Desaparecidos 6. Alcides Gonçalves 18. João Ouverney 29. Zé da Bota
necessários para serem incluídos Data: 29/08/1986 Local: Cachoeiras de Macacu Local: Cachoeiras de Macacu Local: Gleba América Fabril/ Magé
na lista de mortos e desapareci- 7. Félix Escobar Sobrinho 1. Daniel Nunes (Maninho) Data: 1980 Data: 1981 Data: Não identificada
dos presente no capítulo 16, por Local: Cordovil, Rio de Janeiro Local: desconhecido, provavelmente 7. Antonio Januario 19. Josino Simões Dias
se tratarem de pessoas nascidas Data: 3 de outubro de 1971 Maranhão Local: Magé Local: Cachoeira Grande/Magé
ou mortas no estado do Rio de Ja- 8. Ivo Alves Data: desconhecida Data: Não identificado Data: 28/12/1984
neiro e por possuírem suficiente Local: Fazenda Conceição/Silva Jardim 2. Jorge Gomes dos Santos 8. Aurélio Albino da Silva 20. Julio Rita da Silva
comprovação documental. Data: 08/01/1976 Local: Cachoeiras de Macacu/RJ e Local: Cachoeiras de Macacu Local: Cachoeiras de Macacu
9. José Ferreira Nunes Filho Imperatriz/MA Data: 1979 Data: 1979
22. A relação informa nome, local e data de morte Local: Fazenda Bacaxá/Rio Bonito Data: 1989 9. Benedito Pereira 21. Juvenal do Espírito Santos
ou desaparecimento dos camponeses. Mais de-
talhes envolvendo as fontes e as circunstâncias Data: 9/11/1979 3. Josué Gomes dos Santos Local: Xerém/Duque de Caxias Local: Faraó/Cachoeiras de Macacu
podem ser obtidos no material produzido pela
pesquisa do Programa de Pós-Graduação de Ci- 10. José Teodoro (José Matias) Local: Cachoeiras de Macacu/RJ e Data: Setembro/1964 Data: 1982
ências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura Local: Nova Aurora/Nova Iguaçu Imperatriz/MA 10. Cassimiro Soares 22. Lourenço Camelo de Mesquita
e Sociedade da Universidade Rural do Rio de Ja-
neiro (CPDA-UFRRJ), que pode ser encntrada no Data: 1953 Data: 1989 Local: Cachoeiras de Macacu Local: Rio de Janeiro
site da CEV-Rio.
23. Desses 16 mortos, 14 nomes são inéditos. 11. Jotaci Teixeira da Silva Data: 1980 Data: 30/07/1977
Sebastião Gomes do Santos e Félix Escobar So-
brinho já haviam sido reconhecidos pela lista de Local: Fazenda Tipiti/São João da Barra 11. Docilina Correa
mortos e desaparecidos do Relatório da Comissão
Nacional da Verdade. Data: 31/03/1983 Local: Cachoeiras de Macacu
24. Trata-se de Daniel Nunes, nascido em Itape- Data: 1981
runa (RJ).

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Capítulo 6 - REPRESSÃO AOS deferidos que possuem algum movimento político foi sentido pelos trabalhadores urbanos. Em outras Nascimento Silva e pelo chefe do Estado Maior da
TRABALHADORES NA CIDADE identificado pelo requerente, 46% referem-se aos palavras, partiremos do ponto de vista daqueles que 3ª Zona Aérea, coronel Carlos Alberto Martins Al-
movimentos operário ou camponês, frente a 53% dos foram primeiramente atingidos pelas violações de varez, todos fiéis ao presidente João Goulart. Esta
No dia 13 de março de 1964, João Goulart discur- movimentos estudantil, institucional, religioso e da direitos humanos entre 1964 e 1988. tropa tinha ordens do brigadeiro Francisco Tei-
sava para cerca de 200 mil pessoas na Central do luta armada combinados. A análise esclarece ainda xeira de acabar com aquela ação policial contra a
Brasil, no centro da cidade do Rio de Janeiro. que a maior parte das prisões sofridas pelos traba- O golpe de 1964 e os primeiros dias da classe trabalhadora. Na iminência de um confron-
lhadores militantes concentra-se no ano de 19642. À ditadura to e frente à inferioridade numérica, os homens do
“ Aqui estão os meus amigos trabalhadores, vencendo uma título de comparação, a maior parte das prisões da- DOPS abandonaram o local.
campanha de terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente queles militantes de movimentos estudantil e luta Um relatório produzido em 31 de março de 1964 pelo
organizada para impedir ou perturbar a realização deste me- armada se concentram entre 1968 e 1970. detetive do Departamento de Ordem Política e So- No dia 1º de abril de 1964, porém, as histórias tive-
morável encontro entre o povo e o seu presidente, na presença cial do Estado da Guanabara (DOPS/GB) José Paulo ram outro final. Os principais sindicatos e federa-
das mais significativas organizações operárias e lideranças De maneira muito semelhante, observa-se que, dos Boneschi4 demonstra que as movimentações golpis- ções sindicais dos estados da Guanabara e do Rio
populares deste país. 986 processos finalizados e deferidos da Comissão tas na cidade do Rio de Janeiro começaram naquele de Janeiro tiveram suas sedes invadidas pelas for-
Chegou-se a proclamar, até, que esta concentração seria um de Anistia do Ministério da Justiça que dizem res- dia. O documento relata uma operação realizada ao ças militares e policiais. Muitos de seus membros
ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a peito ao estado do Rio de Janeiro e que apresentam final da tarde: sob as ordens do Diretor do DOPS/ foram demitidos e presos sem mandado de prisão,
reação ainda fosse a dona da democracia, e a proprietária atividade laboral do requerente, mais da metade são GB, Cecil de Macedo Borer, cerca de 25 homens ar- ou seja, ilegal e arbitrariamente. Aqueles traba-
das praças e das ruas. Desgraçada a democracia se tiver que de trabalhadores urbanos (53%)3. mados com metralhadoras invadiram a sede da Fe- lhadores que foram presos denunciaram ainda que
ser defendida por tais democratas. deração Nacional dos Estivadores, na Rua Santa sofreram humilhações, espancamentos e condições
Democracia para esses democratas não é o regime da liberda- Evidentemente, esses números não esgotam o uni- Luzia 173, no Centro. O objetivo era “deter todos os insalubres nas prisões. O objetivo da reação era de-
de de reunião para o povo: o que eles querem é uma democra- verso de atingidos pela ditadura. Ao contrário, os de- membros da direção do Comando Geral dos Traba- sarticular as organizações sociais de massa e, dessa
cia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufo- poimentos coletados pela CEV-Rio levam a crer que lhadores (CGT), que ali estavam reunidos a fim de maneira, destruir a base de sustentação política de
cado nas suas reinvindicações. A democracia que eles desejam esses processos representam apenas uma pequena estruturarem uma greve geral em todo país, a qual Jango, minando a possibilidade de resistência ao
impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da amostra. Uma das observações cabíveis é que antes deveria ser deflagrada às primeiras horas do dia 1º golpe. Nesses estados estavam localizadas grandes
anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses mesmo do recrudescimento da repressão em 1968, de abril”5. Ao adentrar o sétimo andar do edifício, o indústrias e empresas de serviços como Petrobras,
dos grupos a que eles servem ou representam1.” cristalizado no Ato Institucional nº5, a classe tra- detetive Boneschi deu voz de prisão a todos os sindi- Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Fábrica
balhadora foi extremamente afetada. Na verdade, calistas reunidos. Porém, deparando-se com o gran- Nacional de Motores (FNM), Embratel, Eletrobrás,
Dezenove dias depois, o então presidente sofreria um podemos dizer que ela foi acossada pela repressão de número de pessoas e tendo veículos insuficientes Furnas, Rede Ferroviária Federal (RFFSA), dentre
golpe militar e sairia do país. Seu discurso naquele desde as primeiras movimentações golpistas, como para conduzir todos à delegacia, teve necessidade de outras. Por esse motivo, possuía um movimento
comício – organizado pelas entidades sindicais – an- se verá a seguir. telefonar para pedir reforços a seu superior. sindical forte e organizado.
tecipou com precisão o caráter antipovo, anti-sindi-
cato e anti-reforma da ditadura que veio em seguida. Se o objetivo do capítulo 4 deste relatório é explorar Dentre os detidos estavam o deputado Hércules O Sindicato dos Operários Navais de Niterói e São
o projeto de desenvolvimento econômico implemen- Corrêa e o presidente do Sindicato dos Aeroviá- Gonçalo, por exemplo, era uma das principais enti-
Uma análise dos 1114 processos da Comissão Espe- tado pela ditadura civil-militar, as próximas linhas rios, comandante Mello Bastos, que conseguiram dades sindicais brasileiras nas décadas de 1950 e
cial de Reparação da Secretaria de Estado de Assis- buscarão relatar a maneira pela qual esse projeto sair do edifício. Eles retornaram momentos depois 1960, chegando a ter 30 mil associados no período6.
tência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro 2. Relatório de Pesquisa: O Testemunho como Janela: O Perfil dos Atingidos com 200 homens da Infantaria da Aeronáutica li- Foi um dos primeiros atingidos. Sua sede, construí-
e a Estrutura Repressiva do Estado Ditatorial no Rio de Janeiro a partir de
fornece uma amostra do período: dos 415 processos Testemunhos dados à Comissão de Reparação do Estado do Rio de Janeiro. derados pelo tenente coronel Maurício Eugênio do
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Federal Ru- 6. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Benedito Joaquim dos Santos no Teste-
1. INSTITUTO JOÃO GOULART. Discurso de João Goulart no comício de 13 ral do Rio de Janeiro (UFRRJ). 4. Apontado como torturador por ex-presos políticos, tal como consta no Ca- munho da Verdade do Sindicato dos Operários Navais, realizado em parceria
de março de 1964, na Central do Brasil, Rio de Janeiro. Disponível em: http:// 3. Acervo CEV-Rio. Relatório Parcial Consultoria Comissão de Anistia do Mi- pítulo 21 deste relatório. entre Comissão da Verdade em Niterói e Comissão da Verdade do Rio, em
www.institutojoaogoulart.org.br/conteudo.php?id=31. nistério da Justiça. 5. APERJ, Fundo Polícias Políticas, Setor DOPS, Pasta 5, Dossiê 4. 25/09/2013.

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da pelos próprios trabalhadores, recebeu o Congres- como o DOPS/RJ, o CAM, a Fortaleza de Santa Cruz passava a Estrada de Ferro Leopoldina. Ao chega- da então diretoria tiveram seus mandatos cassados.
so Latino Americano de Solidariedade a Cuba em e o Estádio Caio Martins. Para atender à necessi- rem a Niterói sofriam toda sorte de torturas. O fer- A repressão sobre os bancários também se deu no
1959, que foi proibido de ser organizado no estado dade de alocação da grande quantidade de presos, roviário Eilton Fonseca relata: interior das empresas. No Banco do Brasil, onde
da Guanabara pelo governador Carlos Lacerda. Em esse último foi transformado em local de prisão em trabalhava boa parte da militância, foi instaurada
1963, o local chegou a ser visitado pelo presidente massa. Por lá passaram pelo menos 339 pessoas8. “ Ao passarem diante da mesa, um dos soldados violenta- uma Comissão Geral de Inquérito (CGI), que passou
João Goulart, em consideração à participação do mente arrancava-lhes os fechos de suas calças, da cintura à a perseguir os sindicalistas através de demissões,
sindicato na Campanha da Legalidade. Não coinci- Os trabalhadores do município de Macaé – conheci- braguilha, fazendo com que suas calças arriassem, tendo os transferências ou de retiradas de cargos. Nos bancos
dentemente, já no primeiro dia da ditadura, a sede da à época como “Moscouzinha”, em referência à for- mesmos que segurá-las. A intenção era ridicularizá-los e aba- privados não foi diferente: sem a mesma segurança
foi invadida pelas forças policiais e militares. O sin- te presença comunista na cidade – formam um caso tê-los moralmente. de seus colegas dos bancos estatais, eram arbitra-
dicalista José Gonçalves conta: emblemático da passagem por locais de prisão em Depois foram jogados em uma prisão úmida e sombria, onde riamente demitidos ou transferidos. O bancário Auri
massa, da movimentação em direção a Niterói e de Gomes da Silva foi preso após a invasão ao sindicato

permaneceram por três dias, sem água e sem comida, pois a
Fui a última pessoa a pegar o microfone para pedir que violações de direitos humanos. No dia 31 de março comida servida era uma mistura de água salgada, feijão e ar- e passou sete dias no DOPS/GB. Saiu para respon-
todos saíssem do sindicato, porque tínhamos a informação de de 1964, camponeses, professores, jornalistas, médi- roz cru, que era jogada por baixo das portas, algumas vezes der em liberdade e, ao voltar ao trabalho, no Banco
que a polícia ia invadir o local. Saímos igual a ratos com medo cos, advogados, e principalmente ferroviários foram pisadas e chutadas pelos soldados, sendo impossível comê-las. Lar Brasileiro, foi surpreendido com uma ordem de
dos gatos. (...) Depois de ter recebido a ordem para voltar ao às ruas e se articularam com o comandante do Forte A água era tomada com as mãos, em reservatórios destinados transferência sem justificativa, tornando-se eviden-
trabalho, recebi a notícia, do meu chefe, de que estava preso. Marechal Hermes, major Costa Braga, para resistir à descarga da privada, o que tornava as condições da prisão te que se tratava de perseguição política13.
Acabei sendo levado e passei o pior momento da minha vida7.” ao avanço das tropas golpistas do general Mourão ainda mais infectas, exalando um cheiro insuportável10.”
Filho. Tendo em vista o iminente derramamento de Outra entidade de destaque era o Sindicato dos Me-
Junto a outros operários navais, passou por tor- sangue, o major recuou e os trabalhadores que par- Não somente os ferroviários foram atingidos: um talúrgicos do Rio de Janeiro. Sua sede, chamada
turas psicológicas: “Perfilaram todos os presos. O tiram em defesa da democracia foram presos no dia relatório produzido pela Delegacia Regional do Tra- Palácio do Metalúrgico, foi construída pelas mãos
comandante disse ‘Pelotão, sentido’”. Os militares 1º de abril. Para receber tal volume de detenções, o balho (DRT)11 em 1964 lista um total de 48 entida- dos próprios trabalhadores da categoria. Quando
então bateram as botas e engatilharam as armas. ginásio do Ypiranga Futebol Clube, o principal cen- des sindicais do então estado do Rio de Janeiro que inaugurada, em 1959, era a segunda maior sede
“Eu me senti morto”. A cena se repetiria no Centro tro de atividades sociais do município, foi transfor- sofreram intervenções naquele ano12. Ou seja, seus sindical da América Latina. O espaço era inclusive
de Armamento da Marinha (CAM) de Niterói, para mado em local de prisão em massa. Curiosamente, diretores democraticamente eleitos foram destituídos utilizado por outras entidades sindicais e foi palco
onde foram levados em seguida. Além das prisões, o clube continuou funcionando. O ferroviário Lau- do cargo sindical, sendo substituídos por funcionários de momentos históricos marcantes, como a visita do
a ditadura também buscou desorganizar a catego- ro Martins relata que nos dias em que havia bailes colaboradores do golpe que eram indicados pela DRT. cosmonauta soviético Yuri Gagarin em 1962. Poucos
ria pela destruição de sua identidade: o Ministro ou shows, os presos eram levados a um salão para dias antes do golpe militar de 1964, abrigou também
do Trabalho do governo do general Castelo Branco, que o ginásio fosse utilizado, passavam a ter aces- No estado da Guanabara, a repressão aos sindicatos a Revolta dos Marinheiros. O ato com dois mil ma-
Arnaldo Lopes Sussekind, mudou o enquadramen- so controlado aos banheiros e dormiam no chão. Os não foi menos brutal. O Sindicato dos Bancários, por rinheiros e fuzileiros navais contou com a presença
to sindical dos operários navais, transferindo-os frequentadores dos bailes conseguiam vê-los; alguns exemplo, possuía grande notoriedade junto à cate- de lideranças políticas, sindicais e estudantis, como
para a categoria metalúrgica. riam, os ofendiam e os ameaçavam9. De lá, cerca de goria por sua capacidade de mobilização na luta por Leonel Brizola e João Cândido, líder da Revolta da
100 trabalhadores foram levados em caminhões do direitos. Assim como outros, sofreu com a repressão Chibata, ocorrida em 1910. Os revoltosos exigiam
Tal como os operários navais, grande parte dos tra- Exército ao CAM e ao Estádio Caio Martins. desde o primeiro dia da ditadura, e foi submetido melhores condições a bordo dos navios e reformula-
balhadores presos das regiões da Baixada Litorânea a uma primeira intervenção, que durou dois anos. ção do regulamento disciplinar da Marinha, além de
e do Norte Fluminense eram levados para o muni- Esse era também o destino dos ferroviários presos Prisões e demissões foram efetuadas, e os membros declararem apoio às reformas de base. Após firma-
cípio de Niterói, onde se situavam locais de prisão em São Gonçalo e em outros municípios por onde 10. FONSECA, Eilton. Estação Bendengó. Uma trilha de luta dos ferroviários do um acordo, o presidente João Goulart anistiou os
macaenses. Rio de Janeiro: Achiamé, 1996, p.67.
7. Acervo CEV-Rio. Testemunho de José Gonçalves no Testemunho da Verda- 8. Para mais informações, ver o capítulo 19 deste relatório. 11. Órgãos regionais do Ministério do Trabalho.
de do Sindicato dos Operários Navais, realizado em parceria entre Comissão 9. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Lauro Martins no Testemunho da Verdade 12. Acervo CEV-Rio. Lista de entidades sob intervenção no RJ. 13. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Auri Gomes da Silva no Testemunho da
da Verdade em Niterói e Comissão da Verdade do Rio, em 25/09/2013. da Comissão Municipal da Verdade de Macaé, em 19/06/2014. Verdade do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, em 19/11/2013.

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marinheiros, o que agravou a crise política de seu alvos considerados prioritários. Orientaram contra a rede de arapongas16, infiltrando agentes militares qualquer movimento grevista no dia do golpe18. Os
governo. No dia 1º de abril de 1964, a sede foi in- classe trabalhadora uma rede de vigilância montada ou policiais, e elaborando relatórios sobre reuniões, encontros eram realizados até mesmo à revelia do
vadida pelas forças militares golpistas e teve seus anteriormente. Exemplar disso é a Comunicação nº assembleias ou atos públicos. As informações eram presidente da empresa, almirante Lúcio Meira.
móveis completamente destruídos. Diversos sindi- 65, de 18 de março de 1964, do DOPS/GB, que con- centralizadas pelo Serviço Nacional de Informações
calistas foram detidos arbitrariamente, e instaurou- siste em uma relatoria sobre uma operação aprovada (SNI), e aqueles suspeitos de “subversão” eram fi- A gestão da CSN passou a contar com estreita re-
-se um Inquérito Policial Militar (IPM) para investi- pela Secretaria de Segurança para vigiar as ativida- chados e inseridos em um Cadastro Nacional. lação com o Exército, através da nomeação de mi-
gar as acusações de “subversão por meios violentos” des sindicais no “Comício pelas Reformas”. A região litares de altas patentes para cargos de diretoria
ou “incitamento à luta de classes”14. No processo de da Central do Brasil foi dividida em sete áreas moni- Nas empresas estatais, a estrutura de vigilância so- e chefia da empresa, incorporação dos sargentos
investigação, documentos da diretoria, como atas de toradas por funcionários do DOPS infiltrados e equi- fisticou-se, fazendo parte de seu corpo institucional. e oficiais do BIB ao quadro de inquilinos de casas
reuniões e assembleias, e até mesmo livros com ca- pados com aparelhos de rádio previamente instala- Nelas foram criadas as Assessorias de Segurança e da CSN, e articulação de prisões de trabalhado-
pas vermelhas foram confiscados para serem usados dos e escondidos em locais estratégicos. O objetivo Informação (ASIs), que passaram a gerir informa- res, que eram encaminhados ao BIB e à AMAN.
como provas de subversão. desta espionagem era informar “acerca do número de ções – muitas vezes distorcidas – das atividades de Nos primeiros dias da ditadura, foram efetuadas
componentes dos deslocamentos, dizeres das faixas seus empregados. Essas informações eram também 58 prisões de trabalhadores da CSN. O primeiro
exibidas, além das letras que compunham as músicas trocadas com outros órgãos da repressão. O bancá- preso, às 10h do dia 1º de abril, foi o presidente do
que, em quase todas as passeatas, eram entoadas pe- rio sindicalista Edmilson Martins de Oliveira relata Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redonda, João
los manifestantes”15. A relatoria apresenta informa- sua experiência após ter sido preso: Alves dos Santos Lima Neto, dentro da usina. Além
ções detalhadas, citando inclusive movimentações de disso, documentos encontrados pela Comissão Mu-
bancários, securitários, petroleiros, têxteis, operários “ Ficamos trabalhando, mas sob suspeita dentro do banco. nicipal da Verdade de Volta Redonda nos arquivos
navais, portuários, estivadores, metalúrgicos, ferro- Era Banco do Brasil, e a partir daí você era encostado. De- da CSN mostram que 113 funcionários foram de-
viários, padeiros, sapateiros, e “delegações sindicais pois da abertura [política], quando abriram os arquivos, eu mitidos e outros 11 foram compulsoriamente apo-
de Macaé, Barra Mansa, Magé e outros municípios consegui ver algumas informações que eram mandadas para sentados após o Ato Institucional nº 1, somando um
fluminenses”. Também está registrada a prisão de o banco e eram coisas assim: “Edmilson Martins de Oliveira, total de 124 servidores afastados19. Oficialmente, a
três homens flagrados junto a um carro que supos- membro do Partido Comunista desde 1950”. Em 1950 eu tinha empresa falava em demissões “por conveniência do
tamente continha “livros subversivos” e “material de 12 anos, eu nunca fui do PCB. Minha vida profissional toda serviço, com base no conceito emitido pelo respecti-
Interior do Palácio do Metalúrgico depredado após invasão de forças
militares no dia 1º de abril de 1964 propaganda comunista”. ficou prejudicada17.” vo chefe de departamento”20, mas os motivos reais
Foto: Acervo Ulisses Lopes, Arquivo de Memória Operária do Rio de eram envolvimento com o sindicato, movimentos
Janeiro (AMORJ)
Com o passar do tempo, a estrutura de vigilância foi Na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), loca- ou partidos políticos, participação ou incitação à
aprimorada. A repressão tornou-se rotineira, pas- lizada no município de Volta Redonda, ocorreram greve do dia 1º de abril, e até mesmo presença no
A repressão rotineira e a gestão sando a estar presente no dia a dia dos trabalha- reuniões, antes mesmo do golpe, entre forças milita- Comício de Central do Brasil.
militarizada das empresas dores. Os DOPS, as DRTs e as agências militares res e diretores da empresa estatal, para traçar um
de inteligência – Centro de Informações do Exérci- plano que garantisse a presença de tropas do Exér- A articulação entre a CSN e o Exército continuou
O momento inicial de invasões, prisões, intervenções to (CIE), Centro de Informações da Marinha (CE- cito do 1º Batalhão de Infantaria Blindada (BIB) e mesmo após o fim da ditadura militar. Em 1988,
e abertura de IPMs e CGIs nos primeiros meses da NIMAR) e Centro de Informações da Aeronáutica da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN)
ditadura demonstra que os militares golpistas, em (CISA) – intensificaram a vigilância das ativida- em pontos estratégicos da usina, de modo a evitar 18. Acervo CEV-Rio. Boletim de Serviço n° 71 da Companhia Siderúrgica
Nacional.
articulação com as DRTs e as polícias civil e militar, des das categorias trabalhistas, estabelecendo uma 19. Relatório de Pesquisa: O 1º Batalhão de Infantaria Blindada do Exército
16. Funcionários que contribuíam com órgãos da repressão, informando ati- e a repressão militar no Sul Fluminense. Universidade Federal Fluminense
possuíam um grande número de informações sobre os vidades supostamente subversivas de seus colegas de trabalho. Alguns, prin- (UFF).
cipalmente aqueles que atuavam na estrutura de Estado, ganhavam gratifi- 20. Arquivo Brasil: Nunca Mais Digital: Pasta BNM 497, p.85, ofício
14. RAMALHO, José Ricardo. Metalúrgicos do Rio de Janeiro e a repressão cação salarial para exercer essa atividade. L.S.G./135/02.02, assinado pelo Cel. Ene Garcez dos Reis, Chefe da Linha de
política do pós-1964. In: RAMALHO, José Ricardo; SANTANA, Marco Aurélio. 17. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Edmilson Martins de Oliveira no Teste- Serviços Gerais, encaminhado ao delegado José da Silva Franco, adjunto do
Trabalho e tradição sindical no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 15. Acervo CEV-Rio. Comunicação 65 do DOPS sobre Comício da Central. munho da Verdade do Sindicato dos Bancários do Rio, em 19/11/2013. DOPS/RJ, ao justificar a demissão do eletricista Alberto Almirante Barbosa.

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dezoito mil metalúrgicos fizeram uma greve no mu- Empresas privadas também colaboraram com os rado. Fiquei até 1978 nessa situação, não podia mais pagar roporto estar em uma Área de Segurança Nacional.
nicípio de Volta Redonda, exigindo, principalmente, golpistas, repassando informações e elaborando as aluguel, então fui morar no Morro do Alemão. Morar no mor- Em 1979, quando trabalhava para a empresa que
jornada semanal de 40 horas e reajuste salarial de chamadas “listas negras”, que eram enviadas aos ro não é nada demais, mas o problema é que eu não tinha em- administrava o metrô do Rio de Janeiro e já como di-
26% acima da inflação21. Depois de fracassadas as DOPS e a outras empresas com nomes dos demiti- prego e dinheiro. Foram cinco anos ou mais nessa situação. rigente sindical dos metroviários, Geraldo mais uma
negociações iniciais, os grevistas decidiram ocupar a dos por motivações políticas. Somado a isso, tornou- Os trabalhadores sofreram perseguição política, acusados de vez teve problemas devido o atestado. Um coronel,
usina siderúrgica com o apoio da comunidade local. -se comum a exigência do Atestado de Antecedentes fazer agitação para o partido comunista23.” chefe da empresa, confirmou que ele seria demitido
A direção da empresa solicitou à Justiça mandato de Políticos e Sociais, mais conhecido como “atestado porque o SNI informara que era elemento muito pe-
reintegração de posse e a intervenção do Exército. A ideológico”, para o candidato a um posto de traba- rigoso, monitorado vinte e quatro horas por dia.
invasão das tropas militares, em 9 de novembro da- lho, o que afetou a empregabilidade dos demitidos
quele ano, resultou no assassinato de três trabalha- por motivações políticas. Tal prática empurrou mi- Muitos trabalhadores que perderam o emprego pas-
dores: Carlos Augusto Barroso, de 19 anos, Walmir lhares de pessoas para o desemprego ou para a al- saram a depender da ajuda de familiares, amigos
Freitas Monteiro, de 27 anos, e William Fernandes ternância constante de empregos. e companheiros de categoria. “No período em que
Leite, de 22 anos22. estávamos demitidos, durante quatro meses nós re-
Esse foi o caso de Geraldo Cândido, membro da Co- cebemos sacolas de gêneros alimentícios dos compa-
missão da Verdade do Rio, sindicalista e ex-militante nheiros ferroviários e outras categorias”, relata Nil-
da Ala Vermelha, dissidência do Partido Comunista son Ferreira, diretor do Sindicato dos Ferroviários
do Brasil (PCdoB). Em 1962, participou de um pi- do Rio de Janeiro cassado e demitido em 196424.
quete organizado pelo sindicato na porta da fábrica
onde trabalhava. O protesto foi bem sucedido, mas É importante ressaltar que não somente lideranças
Geraldo foi detido em seguida pelo DOPS/GB e per- do movimento operário sofriam as arbitrariedades
deu o emprego. Mais tarde, soube que agentes do da ditadura. Qualquer um que participasse de cam-
Geraldo Cândido, membro da Comissão da Verdade do Rio, presta seu
DOPS/GB estavam trabalhando dentro da fábrica testemunho no Seminário DOPS, em 4 de novembro de 2013 panhas salariais, assembleias, greves, chapas de
em busca de subversivos, fazendo um levantamento Foto: Bruno Marins eleição de sindicatos, panfletagens ou que meramen-
para saber quem estava pichando e panfletando. te fosse visto com jornais considerados “subversivos”
Anos mais tarde, quando trabalhava numa empresa poderia ser demitido, transferido arbitrariamente
“ Eles pressionavam os companheiros da fábrica para que no Aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro, a chefia para outros locais de trabalho ou ter a carreira pro-
me entregassem, mas eles não falavam nada. Fui preso, mas exigiu que todos os funcionários apresentassem o fissional estagnada. A repressão tinha como um de
como levava uma vida normal, fui liberado. Só que eu fui de- Atestado de Antecedentes Políticos e Sociais, com o seus principais objetivos inibir a classe trabalha-
mitido da fábrica. Disseram que eu estava sendo demitido por- carimbo do DOPS/GB, a fim de saber se havia algum dora de lutar por seus direitos, tais como melhores
que o sindicato tinha me entregado. A partir daí, arranjava subversivo entre eles. Prejudicado pela resposta do condições de trabalho ou aumento salarial.
um emprego, trabalhava um ou dois meses e era demitido. Eu órgão, que o apontou como subversivo, Geraldo ape-
Forças militares em frente à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) na greve de 1988 era um funcionário qualificado, por isso conseguia emprego, lou da demissão junto à chefia, que respondeu: “De Essa conjugação de estratégias antissindicais e re-
Foto: Arquivo Nacional Acervo da Delegacia de Defesa Institucional da
Superintendência Regional da Polícia Federal (DELINST)
eu tinha um curso do SENAI. Por orientação da minha orga- jeito nenhum. Você só consegue o atestado se estiver pressivas da parte das forças militares, polícias civil
nização, os militantes que estavam na Frente de Massa faziam assinado por três grandes empresários ou oficiais e militar, DRTs, ASIs e do empresariado consolidou
21. ABC DE LUTA. Exército invade a CSN, ocupada por grevistas, e mata curso no SENAI para ter facilidade de acesso às indústrias, das Forças Armadas”. Na semana seguinte, Geraldo uma gestão militarizada nas empresas e fábricas,
três operários. Disponível em: http://www.abcdeluta.org.br/materia.asp?id_
CON=328. trabalhos como metalúrgicos, estaleiros etc. Só que eu entrava foi demitido, servindo de justificativa o fato de o Ae-
22. Os nomes dos trabalhadores mortos pelo Exército na greve de 1988 não na fábrica e era demitido por causa da perseguição, eu estava
figuram na lista de mortos e desaparecidos (capítulo 16) deste relatório por- 23. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Geraldo Cândido no Seminário DOPS –
que tal episódio ocorreu após o período de escopo de análise previsto pela lei na lista negra dos órgãos de segurança. Passei a ser monito- Um Espaço em Construção, em 04/11/2013. 24. FONSECA, Eilton. Estação Bendengó. Uma trilha de luta dos ferroviários
que criou a CEV-Rio. macaenses. Rio de Janeiro: Achiamé, 1996, p.73.

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ou um “novo regime fabril”25. Os instrumentos cons- to – ou seja, sequestrado – à delegacia da Polícia brasileiro cresceu a taxas superiores a 10% ao ano, de carga e afundou, matando oito pessoas. Dentre
truídos pelo Estado Novo para mediação dos con- Federal, no Centro do Rio de Janeiro. Lá os detidos “o salário mínimo chegou ao seu patamar mais bai- elas estava Nilkon Vianna, pai de três filhos. Sua
flitos entre capital e trabalho foram aproveitados permaneceram incomunicáveis por dez dias. Duran- xo, equivalendo a 54,48% do que valia em 1960”29. O viúva, Maria Luiza, só recebeu indenização na dé-
e ampliados pela ditadura militar, com o intuito de te esse período, os policiais informaram que eles se- índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, cada de 1990, e a prometida ajuda para custear a
aumentar o controle sobre a classe trabalhadora. riam transferidos para o DOI-CODI, mas o Cardeal passou de 0,50 na década de 1960 para 0,59 na déca- escola dos filhos nunca foi recebida33. O ritmo das
Dom Eugênio Sales interveio na situação e pressio- da de 198030, enquanto a participação do rendimen- obras, porém, impunha indiferença frente a essas
“ Sob a ditadura militar, o Estado estará presente nas fá- nou para que a prisão seguisse os trâmites legais. to do trabalho na economia nacional passou de 60% mortes e condições severas de trabalho. “Se al-
bricas, não como árbitro, mas como “agente patronal”. Por Após 40 dias presos, o juiz deu parecer favorável aos em 1964 para 38% em 198831, dados que confirmam guém morria, a gente esquecia rápido e continuava
meio dos sindicalistas “pelegos”, nomeados interventores dos bancários, que foram soltos seis dias depois. o aprofundamento da desigualdade social. a obra”, relata Raimundo Miranda, que trabalhou
sindicatos, dos espiões e dos chefes militares (em alguns ca- na ponte. Certo dia trabalhou debaixo de chuva
sos militares reformados ou civis respaldados por uma dou- Impedir a luta por direitos trabalhistas por meios A Ponte Presidente Costa e Silva, popularmente co- mesmo com 39,5ºC de febre: “Não tinha isso de não
trina de controle militarizado da classe operária), o Estado repressivos e violentos tinha por objetivo aumentar nhecida como Ponte Rio-Niterói, ilustra bem essa trabalhar doente. Naquele dia, sentia que estava
e o empresariado, unidos, conferirão à resistência operária o a produtividade dos trabalhadores urbanos. Dessa gestão militarizada na qual Estado e empresariado morto. Foi muito terrível”34.
estatuto de subversão política e à força bruta patronal a legi- forma, não somente os líderes sindicais ou aque- se irmanavam. Sua construção começou em dezem-
timidade de defesa da segurança e do desenvolvimento nacio- les trabalhadores suspeitos de exercer atividades bro de 1968, logo após o decreto do Ato Institucio- Os tipos de violações de direitos
nal. Portanto, nesse período, as empresas e o Estado ditatorial “subversivas” foram atingidos pela repressão; a di- nal nº 5. O contrato foi assinado primeiramente en- humanos e a clandestinidade dos
se irmanavam, dentro e fora das fábricas, visando impedir tadura teve um efeito sistêmico sobre toda a classe tre o governo e o Consórcio Construtor Rio-Niterói trabalhadores
a organização e luta dos trabalhadores para a conquista e a trabalhadora. S.A., composto pelas empresas Ferraz Cavalcanti,
defesa de seus direitos26.” Companhia Construtora Brasileira de Estradas, Os danos pecuniários causados pela repressão aos
O período entre 1946 e 1964 ficou caracterizado pe- Servix de Engenharia e Empresa de Melhoramen- trabalhadores, que gerou restrição ao acesso aos
Nesse sentido, o relato de Edmilson Martins a res- los níveis mais altos de poder de compra do salário tos e Construção. Dois anos depois, após atrasos meios de subsistência e piora da qualidade de vida,
peito da luta da categoria por aumento salarial em na história brasileira graças às políticas de governo nas obras, o general presidente Emílio Garrastazu eram combinados com outros tipos de violações de
1972 é ilustrativo: e à luta de entidades sindicais, destacando-se o pa- Médici adiou a entrega e passou a responsabilidade direitos humanos, tais como prisões arbitrárias e
pel da CGT. Porém, em julho de 1964 o direito de da construção para o Consórcio Construtor Guana- tortura. Samuel Henrique Maleval, diretor do Sindi-
“ Eu fui particularmente chamado à Delegacia Regional do greve passou a ser regulamentado pela Lei nº 4330, bara Ltda., composto pelas gigantes Construções e cato dos Bancários do Rio de Janeiro eleito em 1963,
Trabalho, o qual o delegado era Luiz Carlos de Brito e ele esta- que proibiu deflagração de greves por funcionários Comércio Camargo Corrêa S.A, Construtora Men- relata que foi cassado e preso pela Polícia Civil logo
va sempre me chamando atenção: “Olha, não pode ser por aí, públicos ou de empresas estatais, bem como aque- des Junior S.A, Construtora Rabello S.A, e Sérgio após a invasão ao sindicato, no dia 1º de abril de
os banqueiros estão reclamando que vocês estão perturbando las de “natureza política, social ou religiosa”28. Um Marques de Souza S.A32. As obras ficaram marca- 196435. Levado ao DOPS/GB – local por onde pas-
muito. E o ministério também, que não pode contrariar a po- ano depois, o então Ministro da Fazenda, Octávio das por diversos acidentes e mortes de trabalhado- savam muitos dos trabalhadores presos – foi solto
lítica econômica do governo27.” Gouveia de Bulhões, estabeleceu novos critérios de res. Em um deles, ocorrido em 24 de março de 1970, no dia seguinte por insuficiência de indícios de “ati-
reajuste salarial que subestimavam a inflação acu- uma plataforma flutuante não resistiu a um teste vidade comunista”. Continuou na militância sin-
O ato de “perturbar muito” poderia ocasionar de- mulada, estabelecendo uma política de arrocho sala- dical e, em 1968, durante a “Marcha dos 100 mil”,
missões, prisões ou até mesmo a tortura. No caso de rial que provocou a redução do poder de compra do 29. MELO, Demian. A ditadura militar e o capitalismo brasileiro. Texto pro-
duzido em colaboração à CEV-Rio, disponível no site da Comissão. foi preso novamente pelo fato de portar um cartaz
Edmilson, ele foi preso junto a outras companhei- salário mínimo e dos salários em geral. Consequen- 30. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da com os escritos “Abaixo a ditadura”. Foi levado en-
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume II, p.70.
ros pela Polícia Civil e levado sem seu conhecimen- temente, em 1974, passado o período de “milagre 31. ARRUDA, Marcos. Quem se beneficiou com o endividamento público tão novamente ao DOPS/GB. “Tinha uns pedaços
durante a ditadura. Texto produzido em colaboração à CEV-Rio, disponível
25. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/ Comissão Nacional da econômico” em que o Produto Interno Bruto (PIB) no site da Comissão. 33. OTÁVIO, Chico; GÓES, Bruno. Travessia. Ponte Rio-Niterói, 40 anos. Dis-
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume II, p.63. 32. FORTES, Milena et al. Histórias Concretadas: os 40 anos da Ponte ponível em: http://infograficos.oglobo.globo.com/pais/ponte-rio-niteroi.html.
26. Idem RioNiterói. Disponível em: http://puc-riodigital.com.puc-rio.br/Texto/Cidade/ 34. Idem.
27. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Edmilson Martins de Oliveira no Teste- 28. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da Historias-concretadas%3A-os-40-anos-da-Ponte-Rio-Niteroi-24038.html#. 35. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Samuel Henrique Maleval no Testemu-
munho da Verdade do SIndicato dos Bancários do Rio, em 19/11/2013. Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume II, p.69. VdFOHbJViko. nho da Verdade do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, em 19/11/2013.

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de madeira, e eles começaram a bater com aquilo cional e Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) são Em alguns casos, por preocupação com seus amigos cato dos Bancários do Rio conquistaram o direito à
em todo mundo, arbitrariamente”, diz ele. Por conta as mais citadas. Aposentadoria compulsória, restri- e familiares, esses trabalhadores escondiam-se em realização de eleições em 1971, mas a chapa eleita
do espancamento, perdeu três dentes e fraturou de- ção ao exercício profissional, monitoramento, invasão regiões distantes, no interior, mantendo-se isolados. foi impedida de tomar posse. Assumiram, portanto,
dos da mão. Em 1975, foi preso novamente por ter ao domicílio, IPM e processo penal militar também O conhecimento de seu paradeiro poderia ser perigo- os suplentes. A gestão, porém, durou pouco: em 1972
seu nome citado por um companheiro e foi levado figuram entre os relatos. Prisão e tortura somam 22% so a seus entes queridos. Em outros casos, a falta de o sindicato foi invadido violentamente, como conta
ao DOI-CODI, na Rua Barão de Mesquita, onde foi das violações. É importante ressaltar que cada anis- perspectiva levava à radicalização da luta contra a Edmilson Martins:
novamente torturado. tiado informou ter sido alvo, em média, de dois tipos ditadura através, por exemplo, da participação nas
de violações de direitos humanos, tendo ocorrido vá- organizações de luta armada. Através de uma aná- “ em 17 de abril de 1972, entrou, mais ou menos 7h ou 7h30
Nesse contexto, casas eram invadidas sem manda- rios tipos em um mesmo relato. Além disso, 42% do lise dos casos de mortes e desaparecimentos do Re- da noite, um batalhão com o Dr. Luiz Carlos de Brito [dele-
do de busca, e até mesmo familiares eram presos total de ocorrências se deu no período de 1964 a 1967, latório da Comissão Nacional da Verdade, podemos gado da DRT] à frente de uns 20 homens armados da Polícia
sem justificativa. Jayme Navas, secretário geral do enquanto o período conhecido como os “anos de chum- identificar que, das 434 pessoas citadas, 114 exer- Federal com metralhadoras. O delegado mandou uma carta
Sindicato dos Operários Navais cassado pela inter- bo”, entre 1968 e 1974, representa 28%. A amostra, ciam algum trabalho urbano40. pra Polícia Federal dizendo que o sindicato era depósito de ar-
venção, foi preso em 11 de junho de 1964 depois de apesar de pequena, reforça o argumento de que os mamento e que estávamos ligados à Guerrilha do Araguaia42.”
ter descoberto que seu pai e seu irmão tinham sido trabalhadores foram violados em seus direitos desde A resistência nos sindicatos
levados: 1964 e não apenas após a decretação do AI-5. A sede foi revirada à procura das armas, embora
Apesar da repressão, que buscava impedir a organi- nenhuma tenha sido encontrada. Diversos diretores
“ Os militares invadiram a minha casa e, como não me en- O desemprego e o medo de serem presos, torturados zação dos trabalhadores urbanos, estes não desisti- do sindicato foram presos. Uma nova intervenção na
contraram, levaram o meu irmão e meu pai como reféns. Eles ou mortos fizeram com que incontáveis trabalha- ram desta tarefa. Nos anos autoritários, teve lugar diretoria foi imposta, e essa durou sete anos.
só seriam soltos se eu me apresentasse no Centro de Armamen- dores urbanos caíssem na clandestinidade. Porém, um verdadeiro esforço para reconquistar os sindica-
to da Marinha. Foi o eu que fiz. Passei 68 dias naquele local tratava-se de uma clandestinidade diferente daque- tos e afastar os interventores41. Após a primeira leva A história de repressão no Sindicato dos Bancários
sem direito a tomar banho e pegar sol36.” la de egressos da classe média (políticos, estudan- de intervenções sindicais no imediato pós-golpe, é análoga à de diversos outros pelo estado do Rio de
tes, profissionais liberais)38. Por não contarem com diversas categorias passaram a lutar por eleições Janeiro e pelo Brasil afora. No momento em que as
Ao recordar dos momentos duros na prisão nas de- as mesmas condições financeiras ou com uma rede democráticas em suas diretorias. O bancário Auri organizações dos trabalhadores acumulava fôlego e
pendências da Marinha, revelou que o carcereiro lhe de proteção política (como amigos e familiares com Gomes, após ser libertado pelo DOPS/GB, conta: força, permitindo aos militantes retomarem os sin-
dissera: “tu pode [sic] até sair vivo dessa, mas intei- prestígio social ou de altas patentes militares), pas- “Voltei com toda força para dentro do sindicato a fim dicatos, a ditadura demonstrou mais uma vez sua
ro não”. Jayme tem até hoje problemas de audição e savam a depender da solidariedade dos companhei- de expulsar os interventores”. A oposição conquistou truculência. O recrudescimento da repressão em
outras sequelas. ros. Mantinham-se isolados. O ferroviário sindica- o sindicato em 1966 sinalizando para a resistência 1968 representou a intensificação das violações de
lista Waldir Tavares conta: à ditadura. Porém, foram impedidos de tomar posse direitos humanos e uma segunda leva – ainda mais
Uma análise qualitativa de uma pequena amostra de pela Delegacia Regional do Trabalho. Negociaram violenta – de invasões e intervenções a sindicatos.
69 processos deferidos de trabalhadores do estado do “ na época do golpe, quando começaram as prisões, eu fugi, uma chapa única que representaria relativa conci-
Rio de Janeiro aponta que, dentre os tipos de viola- ficando escondido em casas de amigos. Havia muita solidarie- liação com os interventores, de modo a viabilizar a O governo ditatorial enfrentou a organização dos
ções relatadas, destaca-se a demissão, com 24%37. As dade e eu tinha mil casas de amigos para escolher, que muitas gestão do sindicato. A tensão política interna foi tor- trabalhadores ao longo dos 21 anos de sua vigência.
empresas Petrobras, Empresa Brasileira de Correios vezes ficavam vigiando o local para eu tomar banho de sol. nando-se mais aguda até que, com o AI-5, a repres- O número de atingidos pela violência e pela arbitra-
e Telégrafos (ECT), Rede Ferroviária Federal (RFF- Dois meses depois eu voltei para casa e fui preso, ficando na são se intensificou: bancários foram presos e alguns riedade daquele período é incomensurável. Porém,
SA), Fábrica Nacional de Motores (FNM), Rádio Na- cadeia durante dois meses39.” torturados. Após muita luta, os militantes do Sindi- não se trata, no caso, somente de histórias de re-
36. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Jayme Navas no Testemunho da Verdade pressão, mas também de luta. Mesmo com as limi-
do Sindicato dos Operários Navais, realizado em parceria entre Comissão da 38. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. 40. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da
Verdade em Niterói e Comissão da Verdade do Rio, em 25/09/2013. Volume II, p.71. Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume III.
37. Acervo CEV-Rio. Relatório Final Consultoria Comissão de Anistia do Mi- 39. FONSECA, Eilton. Estação Bendengó. Uma trilha de luta dos ferroviários 41. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Auri Gomes da Silva no Testemunho da 42. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Edmilson Martins no Testemunho da
nistério da Justiça. macaenses. Rio de Janeiro: Achiamé, 1996, p.73. Verdade do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, em 19/11/2013. Verdade do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, em 19/11/2013.

106 107
tações impostas, os trabalhadores se mantiveram Capítulo 7 - MILITARES PERSEGUIDOS Os insurretos e, entre eles, os comunistas que li- o título de Depoimentos Esclarecedores2. A Comis-
firmes, participando ativamente do processo que deraram o movimento, foram estigmatizados como são Nacional da Verdade, em seu Relatório Final,
resultou na redemocratização brasileira. A esse res- O grupo social combatido com maior rancor e intran- traidores das Forças Armadas e demolidores da hie- registrou que houve, entre 1946 e 1964, segundo
peito, o discurso de João Goulart no dia 13 de março sigência pela elite militar que se apropriou do poder rarquia militar. A partir de então, o anticomunismo testemunhos verbais, aproximadamente, 1.000 mi-
foi emulador para um grande conjunto de brasilei- em 1964 foi o dos militares. Aproximadamente 6,5 e o antiesquerdismo da cúpula militar, em especial, litares perseguidos3.
ros que com ou sem armas nas mãos resistiram: “à mil membros do Exército, da Marinha, da Aeronáu- de seus generais conservadores, passaram a ter um
medida que esta luta apertar, sei que o povo tam- tica e das Forças Policiais foram perseguidos com ícone para ilustrar as acusações que faziam aos seus A ditadura de 1964
bém apertará sua vontade contra aqueles que não extrema violência durante a ditadura1. Este nú- opositores relativamente à violência, ao cinismo e à
reconhecem os direitos populares, contra aqueles mero compreende integrantes das três Armas que desfaçatez: a “Intentona”. O anticomunismo passou, O projeto Brasil: Nunca Mais contabilizou 38 pro-
que exploram o povo e a Nação”43. foram alvos de distintas violações de seus direitos então, a ser política dominante nas Forças Armadas. cessos envolvendo militares. Eles se referem espe-
humanos por várias razões, relatadas ao longo deste cialmente àqueles perseguidos por ingressar na luta
capítulo. Militares de todas as patentes foram atin- Com o fim da 2ª Guerra Mundial e do Estado Novo, armada, sendo quatro deles sobre levantes e pro-
gidos, mas a violência foi maior em relação àqueles mesmo com a redemocratização do país e com a testos ocorridos em 1963, às vésperas do golpe mi-
das patentes mais baixas. promulgação da Constituição democrática de 1946, litar, quando houve atos de amotinação, sabotagem
houve perseguição a oficiais e praças nacionalistas, e prisões de oficiais realizadas por sargentos, cabos
É certo que as diferentes concepções sobre o papel socialistas e comunistas. A posição política destes e soldados de primeira e segunda classes. A maior
das Forças Armadas fora da caserna e a adesão a militares ficara bem caracterizada, ao longo de sua parte dos processos, antecedidos por Inquéritos Po-
contrapostos projetos da classe política remontam trajetória, porque a Constituição permitia que os ofi- liciais Militares, desenvolveu-se no Rio de Janeiro e
à Proclamação da República, em 1889. Após a Re- ciais integrantes das Forças Armadas, a partir da dá conta das rebeliões que envolveram militares da
volução de 1930 haveria, contudo, uma politização patente de cabo, participassem da disputa eleitoral. Aeronáutica, da Marinha (Marinheiros e Fuzileiros
maior das Forças Armadas. Muitos militares não Navais), do Exército e da Força Pública.
aceitaram a modernização conservadora imposta O maior número de candidatos que se tornou perse-
por Getúlio Vargas e sucessivas revoltas ocorreram guido disputou as eleições pelo Partido Comunista Após o golpe de 1964, a resistência e a luta dos mi-
nos quartéis entre 1930 e 1932. Brasileiro (PCB), embora alguns se apresentassem litares contrários à visão conservadora e autoritária
ao eleitorado sob a sigla do Partido Socialista Brasi- da elite que impôs a ditadura provocaram persegui-
Em 1935, um levante que ficou conhecido como “In- leiro (PSB). Ficaram também estigmatizados, como ções, processos e punições. No entanto, somente 3%
tentona Comunista”, liderado por Luís Carlos Pres- adversários da elite militar conservadora, aqueles dos militares perseguidos adotariam a estratégia da
tes, eclodiu nas cidades de Natal, Recife e Rio de militares que participaram das lutas pelas grandes insurreição armada contra os usurpadores do poder.
Janeiro. O movimento adquiriu grandes proporções, causas nacionais, como a campanha “O Petróleo é A grande maioria inseriu-se na luta promovida por
especialmente em Natal, onde foi instalado um go- Nosso”. organizações da sociedade civil visando à redemo-
verno revolucionário provisório. A “Intentona” foi cratização do país. Assim, os alvos desta violência
submetida à continuada desmoralização pelos mi- A perseguição movida contra os militares naciona- foram, principalmente, os que apoiavam o governo
litares legalistas da época, gerando uma clivagem listas e os considerados de esquerda resultou em de João Goulart e a precedente Campanha da Le-
político-ideológica entre estes e os insurretos, não desligamentos, expulsões, prisões, torturas e mor- galidade levada à frente por Leonel Brizola, os mi-
superada até os dias atuais. tes. Os processados e absolvidos foram também litares comunistas e nacionalistas, que em posições
discriminados na retomada da carreira militar. 2. Depoimentos Esclarecedores Sobre Os Processos Dos Militares. v. II. Rio de

43. INSTITUTO JOÃO GOULART. Discurso de João Goulart no comício de 13


Exemplos destas situações são os expostos nas de- Janeiro: Editora da Associação Brasileira de Defesa dos Direitos do Homem,
1953.
de março de 1964, na Central do Brasil, Rio de Janeiro. Disponível em: http:// 1. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da núncias publicadas pelo Congresso Nacional, sob 3. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da
www.institutojoaogoulart.org.br/conteudo.php?id=31. Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume II. p. 13. Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume II. p. 13.

108 109
de mando na hierarquia militar haviam se tornado melho e cinza, com as cores daqueles aviões que passavam Um cenário chocante foi o da perseguição, prisão e laço de forca com calça”9. Robson faz tratamento psi-
legalistas, os praças e os soldados associados à luta sobre a minha casa5.” tortura de militares que apenas tinham visões polí- quiátrico até aos dias atuais. Sobre as insinuações
pela expansão de direitos no período anterior a 1964. ticas e interesses diferentes. Foi o caso de Carlos Al- de caráter preconceituoso, Daílton Soares, que foi
Nesta repressão, apoiada por expressiva parcela do Estes militares não se situavam no campo da es- berto Medeiros, desligado da Força Aérea em 1968, desligado em 1982, também contou para a CEV-Rio
empresariado nacional e pelo governo dos Estados querda, caracterizavam-se como militares naciona- por formar, com colegas da Escola da Aeronáutica que sofria humilhações com piadas racistas e brin-
Unidos, foi violada não só a Constituição vigente, listas, movidos por ideais de amor à pátria e, des- em Campos dos Afonsos, clubes de leitura e cineclu- cadeiras de mau gosto como, por exemplo: “branco
mas a Convenção de Genebra, regras consolidadas de sempre, às suas respectivas armas. Entretanto, bes. Ao retornar ao Campo dos Afonsos após ter pas- correndo é atleta, preto correndo é ladrão”10.
de direito humanitário e normas pactuadas com a foram expulsos sumariamente de suas corporações, sado por um período de recuperação de um acidente,
ONU acerca de direitos humanos. destituídos de seus direitos, muitos deles tendo tra- Medeiros foi informado de que havia sido descoberta A perseguição tornava-se mais explícita quando os
balhado vários anos no regime militar. Foram mo- uma “célula comunista” no local, na qual ele esta- militares mostravam alguma relação, ainda que
A Comissão da Verdade do Rio, em parceria com o nitorados dentro e fora da caserna, antes e depois ria seriamente implicado. Com ele, também foram somente de admiração, com Leonel Brizola e João
Projeto Terapêutico Clínicas do Testemunho/RJ, vin- de serem presos e de sofrerem diferentes punições, expulsos da corporação Sued Castro Lima e Artur Goulart. É o caso de Luís Bezerra da Silva, que foi
culado à Comissão de Anistia do Ministério da Jus- submetidos a condições carcerárias aviltantes, tor- Vieira dos Santos. Medeiros afirmou que “os livros sumariamente “licenciado” da Aeronáutica em 1977.
tiça, coletou o testemunho de dezenas de militares turados e humilhados. Evaldo assim relatou o pesa- não tinham viés político, era um pessoal interessa- Irmão de um cabo que presenciou prisioneiros políti-
das três Armas. Estes depoimentos mostram, dentre delo em que havia se transformado o outrora sonho do em tudo”7. Contudo, em um documento localizado cos no Galeão, Bezerra era constantemente interro-
outras questões, negação de cuidados médicos, uso de de criança – ser militar na FAB: pela CEV-Rio no Arquivo Nacional, a justificativa gado sobre sua preferência política. Por citar o nome
intimidação e silenciamento dos militares persegui- apresentada para o seu desligamento é a “falta de de Brizola, foi considerado subversivo e comunista,
dos, impossibilidade de inserção no mercado de tra- “ Me tiraram as algemas e mandaram pular dentro de um conceito para o oficialato (tentativa de organização sendo alvo de torturas, tais como chutes nos calca-
balho, prisões arbitrárias e torturas4. São militares buraco redondo e profundo, de aproximadamente quatro me- de grupos de estudos, através do empréstimo de li- nhares, socos no peito e “telefone”. Sofreu humilha-
que pertencem a um grupo, fundamentalmente cons- tros de profundidade. Todas as perguntas que fizeram eram vros que produziriam futuros adeptos da ideologia ções diante da tropa ao ser obrigado a se identificar
tituído por suboficiais - cabos, sargentos e soldados acompanhadas de tortura psicológica, dizendo que eu ia comunista e através da técnica da persuasão sobre como “um merda”, pulando e gritando durante 40
- pessoas de origem humilde, que viam nas Forças morrer. Três infelizes começaram a urinar em cima de mim, seus colegas)”8. minutos11. A referência a figuras que representavam
Armadas uma oportunidade de formação e ascensão não adiantava eu me esquivar, pois cercaram o buraco fican- a resistência dentro das Forças Armadas também
social. Eles depositaram na carreira militar a espe- do um em cada lado, só me restou abaixar a cabeça e pedir Não eram somente os livros e os filmes que podiam gerava reações. Victor Roberto da Conceição Olivei-
rança de realização de seus sonhos pessoais e pro- muito a Deus para me salvar daqueles malditos. Fiquei sendo trazer problemas para os militares: Robson Ferrei- ra foi preso, humilhado e posteriormente expulso da
fissionais. A propósito desta idealizada identificação torturado por três noites e três dias. Depois, me jogaram no ra, que serviu na Aeronáutica em 1978, começou a Marinha em 1972, após ser surpreendido elogiando
com sua corporação, Evaldo Figueiredo, que serviu chão da viatura, deram voltas dizendo “vamos jogar ele no ser perseguido quando levou um disco de Chico Bu- o Almirante Aragão e João Cândido12.
na Aeronáutica entre 1974 e 1978, contou: rio, dá um tiro na cabeça desse safado...” Quando eu respondi arque para o quartel. Tornou-se, então, suspeito de
ser “subversivo”, recebendo castigos, sendo acusado Não são raros os casos de militares que foram pu-

que não sabia de nada, levei um tapa de cada lado do rosto
Desde criança fui vidrado na Força Aérea Brasileira. Do e me empurraram sobre a pedra de fogo, onde eu bati com a de furto e submetido à prisão e à torturas na Base nidos por terem trabalhado com algum militar
quintal da minha casa eu observava os aviões da esquadri- boca, quebrando cinco dentes6.” Aérea do Galeão. Segundo o depoimento entregue à legalista. Ivo Rodrigues Lima é um desses exem-
lha da fumaça passando sempre baixinho, vindos de Santa CEV-Rio, foi humilhado também por ser “preto e po- plos. Ele foi acusado de ser comunista por ter sido
Cruz. Pedi ao meu pai que fizesse para mim um avião de ma- Após sofrer estas violências, Evaldo conta que foi bre”. Em dado momento, após alguns dias de prisão, ajudante de ordens do major Brigadeiro Francis-
deira, ele tinha muitas habilidades de marcenaria, apesar acometido de hepatite, com terríveis consequências em que “sofreu todos os tipos de maus tratos e hu-
9. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Robson Ferreira entregue por escrito à
de não ser um marceneiro. Um dia o meu desejo se realizou, para sua saúde, como o desencadeamento de um milhações”, ele “tentou cometer suicídio fazendo um CEV-Rio.
10. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Daílton Lopes Soares para a CEV-Rio em
meu pai me deu um lindo avião de madeira pintado de ver- grave problema glandular. 23/07/2015.
11. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Luis Bezerra da Silva entregue por es-
4. Agradecemos a todos os militares atingidos que prestaram seu testemunho 5. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Evaldo Figueiredo concedido por escrito 7. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Carlos Alberto Medeiros para a CEV-Rio crito à CEV-Rio.
à Comissãoda Verdade do Rio, revelando aspectos importantes da violência para a CEV-Rio. em 09/07/2015. 12. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Victor Roberto da Conceição Oliveira en-
de Estado que se voltou contra esta categoria. 6. Idem. 8. Arquivo Nacional, SNI: AMA_ACE_2671_82. tregue por escrito à CEV-Rio.

110 111
co Teixeira, da 3ª Zona Aérea, entre 1963 e 31 de uma noite inteira na chuva, levando tapas no ros- de políticas discriminatórias e punitivas, que atingi- vas ao regime jurídico do anistiado político militar.
março de 1964. Alcançou o posto por ter tido ex- to, socos na barriga, paulada nas costas, pernas e ram desde aquela época os perseguidos.
celente classificação como soldado de 1ª classe. Ao braços”. Sofreu privação de água e alimentos e, por Já a questão dos Cabos da Aeronáutica diz respei-
ser promovido a cabo foi designado para o Serviço isso, precisou ser levado para o Hospital Central do Manipulando órgãos poderosos de nossa vida repu- to à polêmica em torno da Portaria 1.104, de outu-
de Rotas Aéreas e passou a ser perseguido, o que Exército (HCE), algemado. Quando o médico que o blicana como a Advocacia Geral da União (AGU) e bro de 1964, que previa o fim da estabilidade e o
culminou na sua expulsão da Aeronáutica. Preci- recebeu leu a acusação de que era um subversivo, o Supremo Tribunal Federal (STF), as vozes autori- desligamento de cabos que atingissem o período de
sou recorrer à internação psiquiátrica em razão da enviou-o para uma cela isolada no Pavilhão Neuro tárias do passado, ainda bem vivas na corporação, oito anos sem alcançar outra graduação. Como res-
pressão psicológica de que foi vítima13. Psiquiátrico, onde permaneceu por 15 dias, sendo em especial no Ministério da Defesa, vêm desqua- salta a CNV, seu objetivo seria, em tese, “discipli-
interrogado por um capitão e por um médico psi- lificando as reivindicações políticas e jurídicas por nar administrativamente o quadro de pessoal”, mas
Há também os militares que foram perseguidos, quiatra, que o ameaçava de choque no saco escrotal. reparação, na busca por tornar invisíveis as deman- pretendia-se, na verdade, “abortar futuras mani-
porque presenciaram prisões de opositores do re- Ficou no setor de Psiquiatria do HCE por oito me- das e queixas dos militares perseguidos. Estas vozes festações políticas ou corporativas, particularmen-
gime, desaparecimentos e mortes. A perseguição ses. Como consequência, Antonio sofre de hiperten- manifestam-se, particularmente, em relação a duas te no momento de exceção em que fora editada”16.
sofrida por Sonilson Pereira da Silva, desligado da são arterial e Arterite de Takayasu (doença inflama- questões: a interpretação do regime jurídico do anis- Para a Comissão de Anistia, esta Portaria configu-
Aeronáutica em 1976, começou após ter visto, com tória crônica das artérias que acomete a aorta e seus tiado político e a judicialização da questão dos cabos ra ato de exceção, e os cabos atingidos por ela são
alguma frequência, a entrada de pessoas à paisana, ramos principais)15. da Força Aérea Brasileira (FAB). considerados aptos a receber a anistia. Contudo, o
“barbudos, cabeludos e encapuzados, sendo encami- entendimento do Ministério da Justiça e da AGU é
nhados por militares para serem colocados na prisão Os depoimentos revelam que, além da perseguição No primeiro caso, o Ministério da Defesa vem sus- diferente: para estes órgãos, a portaria foi somente
subterrânea ali da base aérea do Galeão”14. Outro aos oficiais legalistas que se opuseram ao golpe de tentando em suas decisões administrativas e na in- um ato administrativo. Assim, uma série de pare-
testemunho ouvido pela CEV-Rio é ainda mais radi- 64 e àqueles que aderiram a organizações armadas, terlocução que promove com o sistema judicial, que ceres jurídicos foi produzida no sentido de susten-
cal nesse sentido: Airton Joil Araújo, que servia no houve um extenso e continuado monitoramento e o regime jurídico do militar da reserva, isto é, sua tar a interpretação que retirava dos cabos o direito
quartel do 4º Grupo de Canhões 90 mm Antiaério, violência contra os militares de patentes mais bai- aposentadoria, é diferente da concedida ao militar à anistia, e em 2004 o Governo Federal cancelou a
da Artilharia Antiaérea do Exército brasileiro em xas, sobretudo os praças. Centenas foram persegui- anistiado político. Esta posição, que conta com pare- anistia concedida a 495 ex-cabos daquela Força. Da
Niterói, recusou-se a torturar um preso político, e dos e desrespeitados em unidades militares, além cer da AGU e da Consultoria Jurídica do Ministério mesma forma, um grupo de trabalho interministe-
foi, por isso, torturado e posteriormente expulso das daqueles que foram vítimas de desaparecimento da Defesa, exclui direitos previstos no Estatuto dos rial foi criado em 2011 para revisar 2.574 destes pro-
Forças Armadas. Sua história está relatada no capí- forçado. Familiares assustados com esses desapa- Militares aos militares anistiados. Além da denún- cessos17. A polêmica se aprofundou, com a edição de
tulo 12 deste Relatório. recimentos inexplicáveis, privados de informações e cia e da luta ininterrupta dos militares irresigna- novas portarias do Ministério da Justiça revogando
aterrorizados com a brutalidade do governo militar dos, existe um projeto de lei tramitando no Congres- as anistias concedidas.
Após passar por estas situações, os militares fica- não denunciaram estes crimes. so Nacional para reverter esse quadro.
ram desempregados, sofreram privações materiais Deve-se ressaltar que a Lei 10.559 de 2002 afirma
e se ocuparam dos mais grosseiros trabalhos e bis- Os dias de hoje Vale destacar que a posição atual do Ministério da que o órgão do Estado brasileiro responsável por
cates para sobreviver. Além disso, os efeitos psicoló- Defesa, e dos órgãos que o apoiam, é conflituosa em analisar os pedidos de indenização formulados pelas
gicos da tortura os acompanham até hoje. É o caso A cultura das elites das Forças Armadas, dominante relação à ideia de uma anistia ampla, geral e irres- pessoas que foram impedidas de exercer atividades
de Antonio Rodrigues da Costa, que serviu como pa- na corporação, foi revigorada pela ação de herdeiros trita, defendida pelos próprios militares. Enquanto econômicas por motivação exclusivamente política
raquedista do Exército em 1977. Ele contou ter sido de sangue ou morais dos militares golpistas de 1964. do ponto de vista criminal se advoga a tese de que a desde 18 de setembro de 1946 até cinco de outubro
colocado em um lago de águas geladas e “amarrado Muitos destes herdeiros, atualmente em posições de anistia foi ampla, geral e irrestrita, não sendo pos- 16. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume II. p. 35.
relevo nas três Armas, têm gerado a continuidade sível a responsabilização dos agentes torturadores, 17. RODRIGUES, Alex. Ministério da Justiça já anulou 133 anistias políti-
13. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Ivo Rodrigues Lima entregue por escrito
à CEV-Rio. 15. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Antonio Rodrigues da Costa entregue por
não ocorre a aplicação dessa interpretação quando se cas concedidas a ex-cabos da FAB. Portal Agência Brasil. Empresa Brasil
de Comunicação Disponível em http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/
14. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Sonilson Pereira da Silva entregue por escrito à CEV-Rio. O atingido também prestou seu testemunho no Testemu- trata da reparação, resultando em restrições relati- noticia/2012-06-18/ministerio-da-justica-ja-anulou-133-anistias-politicas-
escrito à CEV-Rio. nho da Verdade sobre o HCE, realizado em 30/07/2015. -concedidas-ex-cabos-da-fab.

112 113
de 1988 é a Comissão de Anistia. Não obstante a
criação deste Grupo de Trabalho, a questão está em
progressivo processo de judicialização, dificultando
a consolidação do entendimento de que é necessário
retirar todos os obstáculos jurídicos que impedem
a obtenção de seus direitos por parte dos ex-cabos
atingidos pela Portaria 1.104 de 1964.

Uma semana antes do golpe de Estado, milhares de sargentos, cabos e marujos compareceram à sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de
Janeiro na chamada “Revolta dos Marinheiros”. A comemoração do aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, que não contava
com o reconhecimento da Marinha, transformou-se em um ato político que agravou a crise militar.
Foto: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã
BR_RJANRIO_PH_0_FOT_05610_027

114 115
Capítulo 8 - A DITADURA NAS FAVELAS atingidas por esta política foram levados para locais tra as tentativas de mobilização e organização dessas tência dos moradores, como o fornecimento de infor-
CARIOCAS1 distantes, com pouca ou nenhuma infraestrutura populações, mas também efetivou um intenso controle mações desencontradas, a propagação de ameaças
urbana e sem oferta de emprego. social sobre todos os aspectos da vida destas pessoas. de queima de barracos e de fuzilamentos, a invasão
As favelas marcam o horizonte da cidade do Rio de de casas por funcionários da Companhia de Habita-
Janeiro desde o início do século XX. O intenso cresci- Destaca-se que, além disso, pessoas de uma mesma A política remocionista ção da Guanabara (COHAB/GB), a retirada de fai-
mento desta forma urbana ao longo do tempo resul- comunidade eram levadas para conjuntos habita- xas de protesto e a proibição da venda dos jornais
ta da incapacidade do Estado de promover políticas cionais diferentes, rompendo-se assim antigos laços As remoções de favelas ficaram marcadas no imagi- que estavam denunciando o processo. Apesar destes
públicas que tenham por objetivo efetivar o direito à familiares, identitários e de sociabilidade. O depoi- nário carioca por sua vinculação com uma figura polí- procedimentos, a luta dos moradores surtiu efeito e
moradia e o direito à cidade. mento de Altair Guimarães, liderança comunitária tica específica: Carlos Lacerda, governador do estado a remoção não foi efetuada. Ressalta-se que a favela
da Vila Autódromo, ameaçada hoje de remoção, é da Guanabara entre os anos de 1960 a 1965. Com foi urbanizada entre 1968 e 1971 e hoje integra boa
Marcadas por distintos estigmas desde o início de simbólico nesse sentido: efeito, no ano de 1962, em meio à sua gestão, tem iní- parte do bairro de Brás de Pina, sem distinção com
sua existência, as favelas sempre sofreram com a cio uma política voltada para as remoções de favelas. o restante da malha urbana.
violência de Estado, materializada nas incursões po- “ Não conhecia nada em Jacarepaguá e com 14 anos olhan-
liciais ou nas tentativas de despejo, que acontecem do pela janela do caminhão da COMLURB3 eu ficava me per- Após serem retirados de suas casas e barracos, fre- Ainda em dezembro daquele ano, teve início o pro-
antes, durante e depois da ditadura. No entanto, a guntando para onde eu estaria indo. E aonde eu fui cair? Na quentemente mediante o recurso ao aparato policial cesso de remoção da Favela do Esqueleto, localizada
Comissão da Verdade do Rio entendeu ser impres- Cidade de Deus. Sem nenhuma infraestrutura, pois na época do estado, os moradores eram reassentados em con- no bairro do Maracanã onde atualmente se encontra
cindível investigar os contornos específicos que esta do [governador] Lacerda ainda estava em construção, era juntos habitacionais construídos pelo próprio gover- a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
violência ganha durante o período ditatorial. barro puro, não tinha escola, só tinha uma padaria, não ti- no. Embora a justificativa para a maior parte das Também neste caso, os moradores buscaram enfren-
nha nada. E aí eu os meus amigos fomos separados, alguns fo- remoções de Lacerda passasse pela necessidade de tar o governo. Organizaram um plebiscito na favela
Trata-se, sobretudo, de evitar enxergar a ditadura ram para Cordovil e outros foram para outro lugar. Vivi uma reordenamento do espaço urbano e de realização de para os dias 12 e 13 daquele mês, cujo objetivo era
como mero pano de fundo para o que ocorria nas fa- vida muito ruim na minha adolescência com essa mudança importantes obras públicas, a comparação entre a demonstrar para o poder público que a remoção não
velas, tanto quanto contornar visões do regime que de um lugar para o outro. Eu não desejava que as crianças localização das favelas removidas e aquela dos con- era um desejo das pessoas que ali moravam. Contu-
ignoram o que se passava naqueles espaços. Dessa dessa comunidade [Vila Autódromo] passassem pelas mesmas juntos que recebiam seus moradores já aponta para do, o então presidente da Federação das Associações
forma, a ação ditatorial nas favelas emerge de forma coisas que eu passei, mas, infelizmente, não consegui4.” um processo de periferização forçada de parcela da de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), Ete-
mais clara como o atendimento de interesses de de- classe trabalhadora carioca. valdo Justino de Oliveira, foi preso para averigua-
terminados setores sociais ao custo do aviltamento Fruto de uma política habitacional e urbana elitista ções pelo Departamento de Ordem Política e Social
dos direitos de outros setores. e segregadora, a tentativa de efetivar o projeto de er- Dessa forma, já é evidente o sentido de segregação es- (DOPS) no dia 95. No dia 10, uma “turma de poli-
radicação das favelas do então estado da Guanabara pacial embutido nessa política. No entanto, o golpe de ciais” foi à Favela do Esqueleto e “encontrou a sede
Uma das formas mais recorrentes de violação de di- foi intensificada, como veremos a seguir, pelo golpe de 1964 abre caminho para a afirmação de um conjunto da Associação dos Amigos da Vila São Jorge com
reitos humanos levada a cabo contra os moradores 1964 e pela ditadura que se seguiu. No entanto, não amplo de políticas pautadas nos interesses das clas- suas dependências fechadas, nenhuma movimenta-
das favelas cariocas durante a ditadura foram as foi somente por meio da remoção forçada que o regime ses que levaram a cabo a deposição de João Goulart. ção ocorrendo na favela”6. Somente na noite do dia
remoções forçadas, que atingiram mais de 100.000 se voltou contra as populações moradoras das favelas. Dentre estas medidas, encontra-se o aprofundamen- 10 a família de Etevaldo o localizou. Ainda assim,
pessoas no Rio de Janeiro somente entre 1964 e A militarização do Estado ocorrida durante o período to da política habitacional marcada pelas remoções. ele permaneceu mais cinco dias detido. Dessa forma,
19732. O aspecto violento da remoção se agrava aumentou sobremaneira a presença do aparato re- o plebiscito foi oficialmente cancelado e a remoção
quando percebemos que os moradores das favelas pressivo nas favelas, que se voltou não somente con- A primeira tentativa de remoção de favelas após o da Favela do Esqueleto pode ser efetuada.
1. Este capítulo apresenta as pesquisas realizadas por Marco Pestana e Ju- golpe se deu na Favela de Brás de Pina, em setem-
liana Oakim em colaboração com a CEV-Rio. O texto na íntegra dos pesqui-
sadores se encontra disponível na mídia do Relatório e no site da CEV-Rio.
3. A empresa encarregada da limpeza urbana à época era a DLU – Departa-
mento de Limpeza Urbana do Estado da Guanabara. bro de 1964. Na ocasião, foram registradas diversas 5. APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: Prontuário GB, Notação: 3.902.
6. Memo. 958, DOPS. In: COMISSÃO DE ANISTIA. Requerimento de Anistia
2. VALLADARES, Lícia. Passa-se uma casa: análise do programa de remoção 4. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Altair Guimarães para a CEV-Rio em tentativas, por parte do Estado, de bloquear a resis- 2003.01.31005 – Primeira Câmara. Requerente: Etevaldo Justino de Oliveira,
de favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 05/05/2015. fl.14.

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A partir de então, outras remoções ocorreram em concentrados na Zona Oeste e em parcelas da Zona O primeiro deles é o da Favela da Ilha das Dragas, do transferidos, em seguida, para a 31ª Delegacia
menor quantidade, até que, em 1968, a ditadura Norte distantes do Centro. localizada em uma pequena ilha na Lagoa Rodrigo de Polícia. Além dos três dirigentes, o advogado da
criou a Coordenação de Habitação de Interesse So- de Freitas, em frente ao canal do Jardim de Alah, Federação também foi preso. Posteriormente, Ab-
cial da Área Metropolitana (CHISAM) por meio do cuja remoção teve início em fevereiro de 1969. Os re- dias foi indiciado em um Inquérito Policial Militar
Decreto nº 62.654, de 3 de maio de 1968, que tinha latos jornalísticos da época dão conta de que desde o (IPM) por pertencer à Ação Popular, e chegou a ser
dentre seus objetivos fixados por lei, o de “propor le- início houve violações de direitos vinculadas ao pro- preso e torturado na Ilha das Flores.
gislação específica visando à formulação e execução cesso em curso, uma vez que os moradores estavam
de um programa continuado de desfavelamento a especialmente dispostos a resistir à saída forçada Não obstante as prisões das lideranças, os mora-
curto, médio e longo prazos”7. À CHISAM ficaram de suas casas. No entanto, quatro lideranças locais, dores buscaram manter a resistência. Contudo, no
subordinados os dois órgãos estaduais que eram res- Carlos dos Santos Jesus, Laureano Marins, João Ri- dia 10 de maio daquele ano, um incêndio de grandes
ponsáveis pelas remoções: a Secretaria de Serviço beiro de Almeida e Nicanor Rios, foram sequestra- proporções atingiu a favela. O fogo destruiu cerca de
Social e a COHAB. Assim, a ditadura efetivamente das por homens armados e à paisana. As famílias 800 barracos, deixando mais de 4 mil pessoas desa-
investiu na viabilização das remoções, não só ao vol- buscaram pressionar o governo, tendo sido inclusive brigadas. Destaca-se que a atuação dos bombeiros
tar seu aparato repressivo para o sufocamento das recebidas pelo governador Negrão de Lima. A CEV- foi alvo de críticas por parte de moradores, os quais
ações de resistência, mas também ao tomar as réde- -Rio buscou pistas sobre estes casos, mas não obteve afirmaram que houve uma grande demora em sua
as da política habitacional, garantindo os recursos e sucesso em localizar quaisquer registros das pri- chegada. Até os dias de hoje, não foi comprovado
a força política necessários para buscar a erradica- sões. Os relatos jornalísticos e a literatura especia- como se deu o início do fogo, mas a hipótese de ter
ção das favelas da Guanabara. lizada não dão conta de informar com precisão se as sido um incêndio criminoso foi levantada muitas ve-
lideranças reapareceram. Desta forma, embora não zes. Segundo os jornais da época, o fogo teria deixa-
Sob a égide da CHISAM, entre setembro de 1968 e haja elementos suficientes para inserir os nomes nas do mais de 30 feridos. Fala-se, também, em mortos,
o final de 1971, as remoções se concentraram for- listas oficiais de desaparecidos políticos, trata-se de nunca quantificados ou identificados. Após esse epi-
temente nas favelas dos bairros da Lagoa (Praia um caso marcado por um grau de violência extrema. sódio, a remoção correu sem oposição, encerrando-se
do Pinto, Ilha das Dragas, Piraquê, Catacumba), A estratégia de coerção funcionou e a favela foi com- em 22 de julho de 1969.
Gávea (Parque Proletário da Gávea, Alto Solar) e pletamente removida ainda no mês de fevereiro.
Humaitá (Guarda, Corcovado, Macedo Sobrinho); É importante destacar que dois dias após a tragé-
ainda que tenham atingido outras localidades da O segundo caso emblemático, este mais marcado dia, mal apagadas as chamas, o Governo do Esta-
Zona Sul (Rocinha, Santa Marta), da Zona Norte na memória do Rio de Janeiro, é o da Favela da do anunciava que a área destruída da favela seria
Menino observa a Lagoa Rodrigo de Freitas durante o processo de
(Parque Rubens Vaz, Cachoeirinha, Roque Pinto), remoção da Favela da Catacumba Praia do Pinto, localizada no Leblon, onde hoje é urbanizada e posta à venda – a mesma área consi-
da Zona Oeste (Favela da Restinga) e as proximi- Foto: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã o condomínio de edifícios conhecido como Selva de derada inurbanizável poucas semanas antes9. Como
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dades do centro da cidade (Pau Fincado, Pau Ro- Pedra. O anúncio de que esta favela seria removi- efeito direto dos sequestros, prisões e incêndios
lou, Arará). O ritmo de construção dos conjuntos da foi feito logo após o fim do processo da Ilha das ocorridos na Ilha das Dragas e Praia do Pinto, as
habitacionais acompanhou o das remoções de fa- Esse conjunto de remoções representou um novo pa- Dragas. No dia 12 de março de 1969, três diretores remoções nos anos subsequentes das outras favelas
velas. Apenas entre fevereiro de 1969 e março de tamar da política remocionista, que teve seu ápice, da FAFEG, José Maria Galdeano, Vicente Ferrei- do entorno da Lagoa e de outras áreas ocorreram
1972, foram inaugurados os conjuntos da Cidade não por acaso, no mesmo momento do auge da vio- ra Mariano e Abdias José Santos, foram presos por praticamente sem oposição aberta.
Alta, Santa Luzia, Guaporé, Andaraí, Cascadura, lência de Estado voltada contra as oposições. Dois agentes do DOPS sob a alegação de incentivarem
Suburbana, Engenho da Rainha, Vigário Geral, destes casos são emblemáticos do grau de violência os favelados a reagir contra a ordem de mudança8. Documentos localizados pela CEV-Rio, no Arquivo
Realengo, Castro Alves, Padre Miguel, altamente presente nestes processos. Eles ficaram detidos no DOPS por dez dias, sen- Nacional e no Arquivo Público do Estado do Rio de

7. Decreto nº 62.654, de 3 de maio de 1968. 8. APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: Distritos, Notação: 5, fls.58-67. 9. Correio da Manhã, 13/05/1969.

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Janeiro, comprovam a atuação dos órgãos de infor- no auge da coisa, então não tinha tumulto. Nosso barraco lá resultou uma atuação policial bastante frequente, de mobilização política, a não ser que fossem objeto
mação e segurança da ditadura nos processos de re- era um barraco de madeira, eu me lembro de cada brecha de que esteve longe de se resumir ao assessoramento da “manipulação” de terceiros”.
moção. No entanto, uma análise baseada somente quase um dedo. Saiu o último morador, eles botaram fogo... às operações de remoção. Consolidou-se, assim, uma
nesta documentação, embora evidencie o esforço do lá também eles queimaram. Botou os móveis do pessoal tudo presença não apenas ostensiva e repressiva, como Para além desta vigilância, mecanismos legais tam-
Estado em garantir a efetivação desta política, não em cima do túnel, naquela quadra, inclusive tinha na épo- também voltada para o desenvolvimento de uma bém foram elaborados para garantir o controle sobre
dá a dimensão do grau de violência sob o qual as ca, me lembro que ali tinha um... não sei se ainda existe lá... ampla vigilância e de exaustivas investigações sobre as atividades associativas nas favelas. Desta forma,
remoções ocorriam. Nesse sentido, os testemunhos tinha uma sede de escoteiros e eles tinham um campo, ainda os indivíduos e grupos politicamente atuantes nas os decretos “N” nº 870 de 15/06/1967 e “E” nº 3330
de pessoas que passaram por essas experiências são existe esse campo lá em cima do túnel. E ali o pessoal, cada favelas cariocas durante a ditadura. de 03/11/1969, editados pelo governador Negrão de
imprescindíveis para percebermos que as violações um foi botando sua mudança, separadas umas das outras, Lima, ganham destaque, na medida em que esta-
não se esgotam na participação das polícias políti- e já tinha que descer com tudo. O pessoal da COMLURB, na Dentre os principais alvos desta vigilância, des- beleciam que as associações de moradores deveriam
cas. Altair Guimarães descreve o momento da remo- época nem era COMLURB, que tava auxiliando na remoção taca-se a tentativa de aproximação dos grupos de funcionar prioritariamente como interlocutoras do
ção da seguinte forma: do pessoal. Na época eram aquelas patrulhinhas, joaninhas, esquerda e da oposição armada à ditadura com as
populações moradoras das favelas. Foram localiza-

e muita polícia mesmo12.”
Fomos tirados dessas comunidades [Favela da Praia do dos documentos que comprovam o monitoramento
Pinto, Ilha das Dragas e Ilha dos Caiçaras] como animais. Na A presença militarizada do Estado no de distintas associações de moradores, com o intui-
época, a COMLURB10 tinha caminhões com janelinhas iguais cotidiano das favelas to de buscar conexões entre elementos considerados
as dos trens. O governo, a Polícia Militar e a COMLURB iam perigosos pela ditadura e os moradores das favelas.
botando nossas coisas pra cima dos caminhões de lixo, me- Para além da mobilização específica do aparato re- É fato que distintas organizações buscaram efeti-
tendo pé de cabra e marreta nos barracos, derrubando. Não pressivo da ditadura no âmbito dos processos de re- vamente uma inserção nestes locais. Pelo menos o
respeitavam as crianças, não respeitavam os mais velhos e moção, o dia-a-dia das favelas foi marcado por uma Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Ação Popu-
não é diferente hoje. A mesma coisa que acontecia na época constante presença das forças militares do Estado. lar (AP) e mesmo grupos vinculados à luta armada,
da ditadura, acontece hoje11.” Como já afirmado anteriormente, as incursões de como a Vanguarda Armada Revolucionária Palma-
forças policiais nas favelas não foram uma criação res (VAR-Palmares), buscaram promover uma atua-
Relato semelhante é o de José Fernandes, o Xavante da ditadura. Entretanto, após o golpe de 1964, esta ção nas favelas, de distintas maneiras.
da Rocinha: presença ganhou contornos específicos. Há duas
justificativas principais mobilizadas pelo regime a Em fins dos anos 1970, a Federação de Associações
“ Eu era moleque, eu me lembro do fogo, rapaz, a gente lá fim de dar legitimidade à atuação do Estado nestes de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ), esvaziada
da Igreja Santa Terezinha, porque nosso acesso era ali, e nos- locais da cidade. após as prisões de seus dirigentes em 1969, passou
sa comunidade era atrás. Eu era moleque ainda na época por um processo de rearticulação, que foi intensa-
da remoção do Pasmado, acho que se deu em 67, por aí... eles De um lado, a constante afirmação da propensão mente acompanhado e monitorado pelos órgãos da
removeram o povo e largaram o fogo. Morro do Pasmado era dos moradores de favelas à criminalidade, a qual ditadura. A participação do Movimento Revolucioná-
tudo barraco na época, coisa de doido. A remoção da comu- possuía raízes já na Primeira República. De outro rio 8 de Outubro (MR-8), do PCB e, posteriormente,
nidade Santa Terezinha se deu tranquila, não houve tumulto lado, o medo – propagado principalmente a partir do Partido dos Trabalhadores (PT) no curso da reor-
nem nada não, porque também não tinha como fazer tumul- do pós-II Guerra Mundial – de que os favelados po- ganização da FAFERJ gerou uma grande preocupa-
to, chegou um montão de polícia. Naquela época ali, estava deriam atuar como base para uma revolução de ca- ção para o regime. Destaca-se que na documentação
ráter comunista. Do encontro desses dois elementos, analisada pela CEV-Rio, emerge com muita clareza
Pedido de Busca emitido pelo Iº Exército para a polícia política investigar
10. A empresa encarregada da limpeza urbana à época era a DLU – Departa-
mento de Limpeza Urbana do Estado da Guanabara. um conjunto de afirmações pautadas na ideia de que a “infiltração” em movimentos de favela: para a repressão, os moradores
11. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Altair Guimarães para a CEV-Rio em 12. Acervo CEV-Rio. Testemunho de José Fernandes (Xavante) e Antônio os favelados não poderiam “estabelecer nenhum tipo não teriam capacidade de se organizar autonomamente
05/05/2015. Ferreira (Xaolin) para a CEV-Rio em 20/03/2015. Crédito: APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: Comunismo, Notação:155

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poder público, e delineavam mecanismos de inter- gente ainda não entendeu isto, e insiste em acusar os mora- aquelas blitz dentro do morro, eles entravam com suporte mi- da Guanabara (PMEG) em uma reunião da Comu-
venção da Secretaria de Serviços Sociais no funcio- dores da Rocinha (e de outras favelas) de marginais. Daí esta litar, entrava e desciam com a gente amarrado tipo arrastão nidade de Informações do I Exército, realizada em
namento daquelas associações. blitz monstro que fizeram na Rocinha, na noite do dia 28, 4a de peixe, que você joga aquele espinhal. Todo mundo amarra- 12/08/1971, segundo o qual a PMEG iria “intensifi-
feira. Levaram inúmeros trabalhadores para a 14a D.P., onde do na mesma corda, descendo o morro. (...) E quando dava car as batidas nas favelas, realizando-as da ordem
A Associação dos Moradores do Morro do Juramento passaram a noite amontoados nas celas; dez horas da noite onde você estivesse, você tinha que correr de 3 a 4 vezes por semana”18.
teve sua diretoria destituída no ano de 1973 sob o Nos últimos 3 anos, a UPMMR apresentou diversas queixas e da polícia [para entrar em casa], se você não corresse... depois
argumento de que existiam “elementos esquerdistas denúncias sobre violências e arbitrariedades cometidas por de dez horas da noite os caras te prendiam e dependendo, se Dessa forma, ainda que não se possa dizer que esse
infiltrados”. Empossou-se, assim, uma junta gover- policiais na Rocinha, tais como: cobertura sistemática dada fosse preso na sexta-feira à noite, só saia na segunda-feira16.” vasto repertório de práticas condenáveis foi inven-
nativa provisória. Destaca-se que a intervenção da a grileiros da favela, que procuravam se apossar das terras, tado durante a ditadura – nem tampouco foi aban-
Secretaria de Serviços Sociais foi acompanhada de expulsando famílias que lá viviam; invasão de barracos; ar- Outras favelas eram submetidas a procedimentos donado com seu término –, é inegável que encontrou
perto pelas forças policiais13. A União Pró-Melho- rombamento de residências; espancamentos de moradores e semelhantes, que às vezes ganhavam contornos ain- ampla cobertura por parte daquele regime, na me-
ramentos dos Moradores da Rocinha (UPMMR) foi prisões ilegais; diversos tipos de extorsões cometidas contra da mais graves. Em 04 de julho de 1969, uma opera- dida em que se coadunava com parte importante
outra associação submetida à intervenção governa- trabalhadores ou marginais. Foram abertas algumas sindi- ção composta por cerca de 200 policiais resultou em de seus objetivos e métodos, especialmente no que
mental. Neste caso, foram dez anos sem a realização câncias, que não deram em nada, devido à má vontade das mais de uma centena de prisões e detenções no Mor- se refere ao estabelecimento de um estrito contro-
de eleições para a composição de sua diretoria14. A pessoas que as dirigiam, e às pressões e intimidações feitas ro do Borel. Para efetuá-las, os policiais espancaram le sobre as classes subalternizadas. Sobrepondo-os
prática das intervenções em sindicatos por parte da contra as testemunhas15.” dezenas de moradores e quebraram os alto-falantes dessa maneira, o regime ditatorial atuava de forma
ditadura é amplamente conhecida, no entanto, é im- da associação local17. a perpetuar elementos historicamente relaciona-
portante apontar para a sua efetivação também no Sobre estas mesmas blitzes, Xavante afirma que: dos às desigualdades que atravessam a sociedade
âmbito das favelas. Nota-se que diversas outras formas de violação são brasileira, de forma a torná-los funcionais ao seu
“ Naquela época as blitzes... usava o nome de blitz, aqui na relatadas pelos testemunhos coletados pela CEV- projeto de modernização capitalista. Para tal, como
A ditadura, contudo, não se limitou a vigiar, monito- comunidade, você tava deitado na sua casa, os caras entra- -Rio e identificáveis a partir da documentação es- anteriormente afirmado, era crucial que as classes
rar e pressionar as iniciativas de associativismo dos vam, não tinha esse negócio de mandado, nada não. Eles ba- tudada. Dentre elas, estão a limitação ao direito de dominadas fossem mantidas sob forte vigilância e
moradores de favelas. Na realidade, o cotidiano des- tiam, se não abrisse eles metiam o pé na porta. Entravam, se circulação dos moradores – no interior das favelas e repressão, sendo instituídos pesados controles sobre
tes espaços da cidade foi marcado pela presença das tivesse deitado era: “levanta, malandro”. Amarrava e levava também em outros espaços da cidade, como o caso seu associativismo e produzindo-se uma permanen-
forças de segurança do Estado. A título de exemplo, embora, entendeu? Era dessa forma que eles agiam aí. Des- relatado à Comissão por moradores da Rocinha so- te sensação de insegurança, devendo redundar na
um panfleto da mesma UPMMR denuncia a forma ciam com a gente amarrado lá de cima. Botava no “coração bre a proibição de frequentarem certos espaços da acentuação de seu quietismo político.
de atuação das polícias na Rocinha: de mãe”, que era aquele carro, um ônibus todo cheio de grade Praia de São Conrado – bem como o cerceamento da
expressão de sua identidade individual e coletiva,

que você entrava ali e ia para a delegacia. Aí ficava lá... a
Pensávamos que a polícia já havia compreendido que blitz gente ia para a 15ª e 14ª. (...). Dentro dessa comunidade aqui, presente, por exemplo, no âmbito da perseguição aos
é uma besteira, que não resolve nada, só prejudica os traba- os caras quando entravam aqui entravam com olhar assim bailes black, tema que será detalhado no capítulo 9
lhadores. Pois todo mundo sabe que marginal não é preso em de: ‘todo mundo é bandido’. Eu me lembro que eu fazia uma deste relatório.
blitz, só trabalhador. Além disso, é preciso que todos entendam reforma, trabalhava numa reforma em Botafogo, eu comia
que a Rocinha não é covil de marginais. A Rocinha é um bair- marmita aqui no ponto do ônibus, do 547, ainda existia lá o É importante ressaltar que não falamos aqui de ca-
ro operário, de 200.000 moradores, que compõem a maior par- amarelinho, o 46 e o 47. Aí eu ia pegar o ônibus, simplesmen- sos isolados. As blitzes nas favelas eram de conhe-
te da mão-de-obra da Zona Sul. (…) Mas parece que muita te os caras pararam, olharam na minha cara dentre outras cimento da alta cúpula da ditadura. Prova disto é o
pessoas que estavam ali e me prenderam. E eu fiquei aí no informe dado pelo representante da Polícia Militar
13. APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: Sindicatos, Notação: 21, fls. 301-
302. mínimo, rapaz, uma semana e meia. (...). Aquelas rondas, 16. Acervo CEV-Rio. Testemunho de José Fernandes (Xavante) e Antônio
14. VALLADARES, Lícia. “Favela, política e conjunto residencial”. In: Revista Ferreira (Xaolin) para a CEV-Rio em 20/03/2015.
Dados. No 12, Rio de Janeiro, 1976, p.76. 15. APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: DGIE, Notação: 293. 17. Brasil Nunca Mais, Jornal Unidade Operária, No 2. 18. Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_37868_71.

122 123
Milhares de pessoas vão às ruas na Marcha promovida pelo Movimento


Negro, em maio de 1988, contra a farsa da Abolição Capítulo 9 - COLORINDO MEMÓRIAS:
Foto: Januário Garcia DITADURA MILITAR E RACISMO1 Existe no BRASIL, já há alguns anos, embora com certa
raridade, a intenção velada do movimento subversivo em sus-
Os séculos de escravidão do Brasil deixaram mar- citar o problema da discriminação racial, com o apoio dos
cas profundas, muitas das quais luta-se ainda hoje órgãos de comunicação social. (...) O assunto se presta à ideia-
para superar. Nosso passado colonial-escravista en- -força do movimento subversivo-terrorista, por ser sensível à
gendrou uma sociedade extremamente racista, em nossa população e contrário à formação brasileira. É explo-
que negras e negros são recorrentemente alvos da sivo e aglutinador, capaz de gerar conflitos e antagonismos,
violência do Estado. Durante a ditadura de 1964, colocando em risco a segurança nacional2.”
esta violência foi aprofundada e ganhou contornos
específicos. O objetivo deste capítulo será adotar Pode-se perceber, a partir da análise deste trecho,
uma perspectiva racial como lente de análise do re- que, de acordo com estes órgãos, o próprio questio-
gime ditatorial, para que não se reproduza a narra- namento do racismo seria gerador dos conflitos ra-
tiva incolor que secularmente desempodera, encobre ciais. Este fragmento sintetiza o teor de um extenso
agências e invisibiliza negros e negras dos processos conjunto documental localizado pela CEV-Rio, en-
políticos de resistência no Brasil. viado da Agência Central do Serviço Nacional de In-
formações (SNI) para a chefia do órgão, sob o título
Interpretações sobre o Brasil formuladas no curso de “Racismo Negro”. Trata-se de cerca de 400 pági-
da década de 1930 buscavam apresentá-lo a partir nas que revelam um intenso monitoramento de as-
de uma perspectiva de harmonia entre as raças. Se- sociações vinculadas à cultura negra, do movimento
gundo este mito da democracia racial, o país seria black e de pontos de encontro dos ativistas. A docu-
um modelo a ser seguido, um paraíso racial. No en- mentação contém, ainda, as listagens de organiza-
tanto, na década de 1950 foram difundidas teorias ções de esquerda que supostamente se apropriavam
críticas a esta visão, que questionavam a ideia de do discurso racial, de “infiltrados no movimento ne-
democracia racial demonstrando que as relações ra- gro, com antecedentes subversivos” e de “pessoas de
ciais no Brasil eram marcadas por tensões e confli- maior lastro cultural”3 que estariam sendo respon-
tos, preconceito e discriminação. sáveis pela disseminação de ideias que negavam a
harmonia racial do país.
Destaca-se, contudo, que a ditadura adotou o
mito da democracia racial como um de seus me- A apropriação do mito da democracia racial por par-
canismos ideológicos de controle. Esta visão fica te do regime reforçou a violência de Estado perpe-
evidente na análise de documentos produzidos trada contra os negros, atribuindo-lhe característi-
pelos órgãos de informação e segurança no con- cas próprias, que podem ser evidenciadas a partir de
texto da perseguição e monitoramento das mobi- três eixos: violências estruturais de teor racista, mo-
lizações negras: bilizadas por agentes do Estado e impactadas pelo
incremento geral da violência vivenciado no período;
1. Este capítulo apresenta a pesquisa da Thula Rafaela de Oliveira Pires, em
colaboração com a CEV-Rio. O texto na íntegra da pesquisadora se encontra 2. Arquivo Nacional, AC_ACE_78482_74.
disponível na mídia do Relatório e no site da CEV-Rio. 3. Idem.

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práticas adotadas pelo aparato repressivo da dita- Belford Roxo, Mesquita e Queimados4. No período

entendeu? Ou seja, olha, como é que era a juventude naquela
dura contra as articulações de combate ao racismo que vai de 1963 a 1975, foram 654 casos. Já nos pri- época? A gente saía do baile andando. Não tinha bonde e não Nós morávamos em Duque de Caxias. (…). Eu lembro,
que foram se desenvolvendo no período; graves vio- meiros seis meses de 1975, registram-se 198 casos. tinha lotação. Você curtia, saía da Praça Saens Peña até a Pra- antes de eu entrar para o quartel, o meu pai ser humilhado
lações de direitos humanos sofridas por negros que Um caso exemplar da atuação destes grupos é o da ça Sete a pé. (...) A polícia vinha e dava aquela geral nos jo- várias vezes. Às vezes (...) ele saía e esquecia o documento em
militaram nas organizações políticas de esquerda, Invernada de Olaria, onde Aurora do Nascimento, vens para ver se ele... qual a arruaça que eles fizeram? Era as- casa. E você sabe muito bem que naquela época tinha a lei
de forma a que sejam conhecidos ex-presos, mortos militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) foi sim. Mas isso não era só negro não, era geral. Mas para o preto de vadiagem. Lei de vadiagem, se você fosse encontrado sem
e desaparecidos negros do período e que seja desmis- torturada e morta, o que demonstra inclusive as era... ele já era culpado de cara. Ele já era de cara culpado. documento, ainda que não tivesse assinada sua carteira [de
tificada a ideia de que revolucionário não tem cor. complexas teias que interligam os esquadrões da Então a primeira geral era nele. Já manda encostar. Naquela trabalho], passava batido. Mas se você não tivesse carteira
morte e a repressão política. época era encostar na parede, era assim a abordagem. E era como documento, você era conduzido para a delegacia. Ele
O racismo institucional e a violência constante. Então a partir do momento em que o visual daque- foi várias vezes para a delegacia, a gente ficava desesperado
estrutural As blitzes, por sua vez, foram um elemento central le negro muda, agride a esse policial. Ainda mais os policiais em casa. (...) às vezes meu pai ficava 48 horas sem aparecer
da violência de Estado nas favelas. Embora este tipo negros, os capitães do mato que chegam e acham que tem que em casa e a gente não sabia o porquê. E ele aparecia com as
Durante a ditadura, com a crescente militarização de ação policial tenha sido ainda mais truculento priorizar, tripudiar em cima daquele negro, entendeu? Então duas mãos inchadas: ‘o que aconteceu, pai?’, ‘fui preso’, ‘mas
do Estado, as violências cotidianas empregadas pe- nas favelas e nos subúrbios, os depoimentos colhidos essas abordagens passam por aí5.” por que?’, ‘porque eu tava sem documento, me levaram para
las polícias civil e militar contra a população negra pela CEV-Rio demonstram que as “duras” policiais, a delegacia, eu falei que era trabalhador, mostrei a mão cheia
intensificaram-se. É importante ressaltar que não frequentes em todas as áreas da cidade, explicitam No contexto desse tipo de ação, um expediente usu- de calo’, ‘a ordem aqui é a seguinte: qualquer pessoa que for
há como separar a violência histórica e estrutural o racismo institucional das forças de segurança. O almente mobilizado pelas forças de segurança era a presa sem documento, para não esquecer mais, tem que levar
contra negros da violência própria do regime mili- relato de Asfilófio de Oliveira, o Dom Filó, fundador prisão arbitrária sob a justificativa do crime de vadia- umas porradas com cassetete na mão’. Aí era obrigado a abrir
tar, uma vez que todo o aparato repressivo se encon- da equipe de som Soul Grand Prix, mostra como a gem. O depoimento da liderança da associação de mo- a mão, e meu pai dizia que levava três em cada mão. Era com
trava subordinado ao comando das Forças Armadas. aparência, descrita a partir da cor da pele, do tipo radores da Rocinha, José Fernades, conhecido como toda a raiva que eles davam. Dá vontade de chorar, sabe? Um
de cabelo e dos usos de indumentárias vinculadas à Xavante, descreve como se dava esse tipo de violência: cidadão sair para procurar emprego, esquecer o documento
Blitzes, prisões arbitrárias, invasão a domicílio, expressão da identidade negra, intensificava a vio-

em casa, ser preso... até parecia que na época nosso país es-
expropriação de seus lugares de moradia (através lência policial nas chamadas duras: Eu ganhei uma vadiagem. Vadiagem na gíria era “jaca- tava navegando em emprego. Estava faltando emprego na
de remoções), tortura física e psicológica, além do

ré”. Se você entrasse em cana em um ano cinco vezes, você época da ditadura. Várias vezes meu pai foi preso, humilhado
convívio com a ameaça latente dos grupos de exter- A gente recebia alguns pentes manufaturados, na época os ganhava duas semanas de cadeia. E como novo eu sempre dessa forma, esculachado. Eu me lembro desses detalhes, mi-
mínio marcaram a realidade de homens e mulheres garfos...porque inicialmente tinha que produzir, tirar alguns andei, sempre saía pros bailes aí e a gente sofria com isso. (...) nha mãe chorava, pedia para minha tia ficar com a gente
negros, principalmente dos moradores de favelas, do aros de bicicleta e fazer o pente. E a gente fazia dez por mês e a então quer dizer, a Rocinha, e dentro dessa comunidade aqui, para procurar meu pai7.”
subúrbio e da Baixada Fluminense. Tratava-se da polícia levava os dez, porque para eles aquilo era uma arma. os caras quando entravam aqui entravam com olhar assim
implementação pelo Estado de uma política criminal Então aquilo era complicado, porque meu cabelo era grande, de: ‘todo mundo é bandido”6.” Os trechos dos depoimentos destacados acima de-
enraizada no colonialismo escravocrata brasileiro. então eu precisava de um aro que eles achavam ... o arame monstram a herança escravista do racismo institu-
tinha tipo 30 centímetros, porque quanto maior melhor, só O militar perseguido e expulso da Aeronáutica, Da- cional da Polícia Militar. Ainda mais emblemática
No que diz respeito aos grupos de extermínio ou que para eles aquilo era considerado uma arma. Então você ílton Lopes Soares, ao relembrar sua infância em é a foto publicada na capa do Jornal do Brasil, no
esquadrões da morte, um levantamento da Secre- andava com aquilo dentro do cabelo, eles vinham e tomavam Duque de Caxias, mostra como os moradores da dia 30 de setembro de 1982, em que um policial “es-
taria de Segurança Pública mostra que entre 1956 da gente, levavam aquilo, etc. (…) não era direto, não era en- Baixada Fluminense eram alvos desse tipo de abor- colta” um grupo de homens negros amarrados por
e 1962 ocorreram seis homicídios com característi- comendado. Era repressão policial natural, aquela natural, dagem policial: uma corda pelo pescoço, durante blitz realizada no
cas de execução sumária na região de Nova Iguaçu, 4. ALVES, José Cláudio Souza. Assassinos no poder. Ação de grupos de exter- Morro da Coroa e da Cachoeira Grande, quase um
mínio dá lucro à contravenção e favorece a ascensão de políticos ligados ao 5. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Asfilófio Oliveira Filho para a CEV-Rio em
crime na Baixada Fluminense. In Revista de História da Biblioteca Nacional, 07/07/2015.
Edição n. 25, Outubro de 2007. Disponível em <http://www.revistadehistoria. 6. Acervo CEV-Rio. Testemunho de José Fernandes (Xavante) e Antônio Fer- 7. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Daílton Lopes Soares para a CEV-Rio em
com.br/revista/edicao/25> reira (Xaolin) para a CEV-Rio em 20/03/2015. 23/07/2015.

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século depois da abolição formal da escravidão. In- ências políticas e ideológicas, bem como as formas tura Negra (IPCN). Dentre a vasta documentação Todos os grifos são da versão original da Informação.
titulada “Todos Negros” e vencedora de um impor- de organização e de ação das distintas entidades localizada pela CEV-Rio sobre o IPCN, destaca-se As exclamações indicam com bastante propriedade a
tante prêmio de jornalismo no ano seguinte, a foto- que foram se estruturando neste momento. No en- a chamada “Operação IPCN”, em que é relatado o absorção, pelo agente, do mito da democracia racial
grafia de Luiz Morier ficou célebre por simbolizar tanto, a ditadura dispensou a todas as organizações monitoramento feito por agentes do DOPS a um e da “inadequação” da crítica antirracista no Brasil.
a vigência desta herança ao mostrar a crueldade e o mesmo tratamento e enquadramento, encarando- evento sobre “Partidos Políticos e a Questão Racial”
a violência das forças de segurança contra aqueles -as a partir da ótica da subversão e da ameaça à do Instituto. Ao relatório, o agente policial anexou A produção destes documentos legitimou uma ação
homens negros. segurança nacional. Exemplar, nesse sentido, é uma duas publicações de organizações do movimento ne- mais incisiva das forças de segurança contra o IPCN.
Informação produzida pelo SNI poucos dias depois gro, chamando-as de “jornalecos”9. Em um informe Carlos Alberto Medeiros, um militar expulso da For-
Organização política e territórios negros da criação do MNU, em que é possível ler: do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), o ça Aérea, que posteriormente integrou a organiza-
na mira do regime IPCN é apresentado como o órgão coordenador das ção, relatou à CEV-Rio casos de invasão à sede e rou-
“ Em 1976, os Órgãos de Informações tiveram suas atenções atividades da resistência negra no Rio de Janeiro10. bo de documentos. Segundo ele, “era uma forma de
Se o racismo é uma característica histórica do Es- despertadas para a proliferação, nos Estados do Rio de Janei- Há, ainda, um documento que menciona um suposto dizer: ‘estamos aqui’. Uma forma de advertência”13.
tado brasileiro, a resistência do povo negro a estas ro e São Paulo, de Associações Culturais destinadas à propa- financiamento internacional para a entidade, desta-
violências também sempre esteve presente. Nesse ganda da cultura negra no Brasil. (...). Para as organizações ca a natureza jurídica do IPCN, nomeia seu corpo
sentido, a década de 1970 viu florescer uma ampla subversivo-terroristas o acirramento de antagonismos raciais diretivo e membros fundadores, descreve as ativi-
mobilização político-cultural pautada na crítica ao é um meio útil a seus propósitos. (...). Durante o longo acom- dades realizadas pela associação cultural, assinala
racismo e à discriminação racial, que culminaria na panhamento que os Órgãos de Informações vêm fazendo do algumas entidades que mantém laços de colabora-
criação do Movimento Negro Unificado (MNU) em assunto ‘RACISMO NEGRO NO BRASIL’ foi identificada uma ção com o IPCN (por exemplo, Câmara de Comércio
1978. Dentre as entidades que objetivavam a de- expressiva quantidade de associações, institutos, clubes e socie- Brasil África, Museu de Arte & Folclore do Rio de
núncia e o enfrentamento das desigualdades raciais dades congêneres que se propõem a defender os direitos do ne- Janeiro, Centro de Estudos Afro Asiáticos, Grêmio
e da violenta expropriação do corpo negro e de sua gro brasileiro ‘marginalizado’. Algumas dessas organizações Recreativo de arte negra e samba Quilombo e Afoxé
trajetória histórico-política, podem ser citadas, por tiveram existência efêmera, outras não conseguiram agluti- Filhos de Ghandi) e, em seguida, dispõe: “Ressalte-
exemplo, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) nar um número significativo de adeptos. Observa-se, também, -se aqui o crescente espírito de luta do IPCN em prol
em 1973, a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África nos grupos já organizados, a existência de elementos parti- da valorização (!) social do negro na comunidade
(SINBA) em 1974, o Instituto de Pesquisas da Cul- dários da ação pacífica e partidários da ação violenta. (...). brasileira”11. O desconforto do agente em relação à
tura Negra (IPCN) em 1975, o Grupo de Trabalho Embora não se constitua, no momento, em um ‘movimento atuação do IPCN continua a ser explicitado em tre-
André Rebouças em 1975 e o Centro de Estudos Bra- de massa’, o nível alcançado lhe confere evidente importân- cho posterior:
sil-África (CEBA) em 1975.

cia, com possibilidades de evoluir em proporções prejudiciais
à ordem política e social. A grande bandeira, já identificada, O raciocínio seguido pelo IPCN, conduz a uma desvinculação
Os órgãos de informação acompanharam de perto qual seja, a de que o capitalismo impede a ascensão do negro do que até aqui foi observado em termos de história do negro no
a organização destes grupos, por entendê-los como (política-social e econômica) na sociedade poderá aglutinar Brasil. Assim, tratam eles de desmistificar as datas históricas sig- Posse da diretoria do Instituto de Pesquisas da Cultura Negra em 1983
uma ameaça aos pilares ideológicos do regime, nota- não só as pessoas de cor descontentes como, também, grupos nificativas para a compreensão da Cultura Negra (o 13 de maio, Foto: Januário Garcia
damente ao mito da democracia racial. Destaca-se, esquerdistas atuantes, interessados em obter vantagens políti- por exemplo), da forma como eram (!) apresentados, emergindo,
dessa forma, que a luta antirracista foi – e assim o cas por intermédio do ‘movimento negro’8.” modernamente, o fato da libertação dos escravos como uma obri- Foi vasto o lastro de monitoramento pela ditadura
foi interpretada pelo regime militar – um movimen- gação, e não como um ato de caridade do SISTEMA12.” das chamadas associações culturais, diante do ar-
to de contestação à ditadura. Uma entidade que recebeu atenção especial por gumento de que poderiam desestabilizar as relações
9. Acervo CEV-Rio. Operação IPCN.
parte do regime foi o Instituto de Pesquisas da Cul- 10. Arquivo Nacional, AC_ACE_109622_76 .
É importante ressaltar que eram diversas as influ- 11. APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor DGIE, Notação: 296, p. 624. 13. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Carlos Alberto Medeiros para a CEV-Rio
8. Arquivo Nacional, SNI: AMA_ACE_2671_82 12. Idem. em 09/07/2015.

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sociais no plano interno e prejudicar a imagem do Os jovens teriam como metas: “sequestrar filhos de “privilégio” e sempre teria existido, no país, “har-
Brasil como país da cordialidade entre as raças no industriais brancos; criar um bairro só de negros; monia entre brasileiros, independente de raça e re-
plano externo, ideia fortemente defendida pelo re- criar um ambiente de aversão a brancos, entre os ligião”. Por fim, pergunta o delegado se “a exclusi-
gime e capaz de nos colocar na condição de lugar negros”16. A partir de sua difusão foram solicitadas vidade do tipo de música, a uniformidade no vestir
sui generis na afirmação da igualdade. De acordo sindicâncias “dado a importância do Informe e suas e no calçar, não viriam a se constituir, mais tarde,
com a interpretação de Carlos Alberto Medeiros, as circunstâncias de possíveis explorações”17. Agentes um grupo também político e orientado no sentido
organizações negras e seus membros teriam sido do DOPS/GB passaram a acompanhar de perto bai- de preconceito racial”20.
“poupados” de violências mais drásticas exatamen- les e ações de pessoas ligadas ao movimento black.
te para que não tivessem “provas institucionais” de As idas de agentes aos bailes geraram relatórios Com efeito, após a publicação da matéria, o movi-
violência racial que pudesse ser usada como evento com uma minuciosa descrição dos gestos, das rou- mento black passou a ser ainda mais vigiado pelos
catalisador de rebeliões negras mais amplas14. pas, do tipo de música e das discussões feitas naque- órgãos de informação e segurança da ditadura. Um
les espaços. Em junho de 1975, os líderes da equipe documento de outubro daquele ano, enviado pelo
Também na década de 1970, outro âmbito de articu- de som Black Power, Paulo Santos Filho, Emilson DGIE à Secretaria Geral do Conselho de Segurança
lação negra foi o chamado movimento black. A par- Moreira dos Santos e Adilson Francisco dos Santos Nacional busca fazer uma análise do movimento:
tir de influências da música soul norte-americana, foram levados para prestar depoimentos na sede do
mas também de lideranças políticas da luta por di- DOPS/GB, no prédio da Rua da Relação. “ Aqui no Rio muitos deles, em parte por emulação, em par-
reitos civis naquele país, surgiram diversas equipes te por esnobismo, mas visando sempre à obtenção do lucro,
de som que organizavam eventos para milhares de De acordo com o depoimento de Dom Filó, o recru- se vêm organizando em grupos ou conjuntos musicais a que
jovens nos clubes dos subúrbios do Rio de Janeiro. descimento da perseguição da ditadura aos bailes dão nomes pitorescos ou bombásticos, em consonância com o
Com todo o potencial de aglutinar multidões e de blacks se deu a partir de uma reportagem intitula- exemplo americano. Assim, temos: “Soul Grand Prix”, “Dyna-
formar consciência racial na juventude negra, os da “O orgulho (importado) de ser negro no Brasil”18 mic Soul”, “Boot Power”, “Black Power” e outros. (...) Por mo-
bailes black estiveram na mira da repressão de di- do Jornal do Brasil de 17 de julho de 1976, desqua- tivos óbvios, esses bailes são frequentados por pessoas de cor
versas formas e em vários momentos. lificando o movimento, acusando-o de “imperialis- e em grande número graças à propaganda feita pelo rádio e
ta”, chamando a atenção das forças de repressão pela afixação de cartazes em pontos diversos da cidade. (...)
Em um informe expedido pelo Iº Exército e enca- para a ameaça que se configurava à democracia Apesar de o nosso movimento “Black Power” assumir certo
minhado para o Centro de Informações do Exérci- racial e à segurança nacional. A tese de Filó é con- caráter contestatório e discriminatório, à semelhança do seu
to (CIE), para o Serviço Nacional de Informações firmada por um ofício enviado por um delegado de homônimo americano, tal afluência de brancos, pelo menos
(SNI) e para o DOPS/GB em 1975 foram difundidas polícia ao diretor do Departamento Geral de Inves- até agora, não tem produzido incidentes. (...) Aqui no Rio o
informações sobre a suposta formação de um grupo tigações Especiais (DGIE)19 menos de uma semana “Black Power” abriga algum sentimento contestatório e ra-
no Rio de Janeiro, “liderado por jovens negros de ní- depois da publicação da matéria. Segundo o dele- cista, conforme já dissemos, porém ainda sem grandeza nem
vel intelectual acima da média, com pretensões de gado, a leitura da reportagem lhe causou “impacto, profundidade, não logrando contextura sócio-política21.”
criar no Brasil um clima de luta racial entre brancos pelo sentido de oposição que, futuramente, poderá
e pretos”15. Segundo o documento, haveria indícios ser criado entre pessoas brancas e pretas”. Para o Dentre as falsas acusações formuladas pela re-
de que o grupo seria liderado por um negro norte agente, a miscigenação do povo brasileiro seria um pressão contra os movimentos negros estavam, por
americano e financiado por dinheiro que parecia Informe confidencial do Iº Exército enviado para o DOPS solicitava o exemplo, o envolvimento de capital e membros es-
monitoramento dos bailes black e das equipes de som 16. Idem.
chegar de fora, possivelmente dos Estados Unidos. Crédito: APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: DGIE, Pasta: 232 17. Idem. trangeiros; difusão de discriminação contra brancos
18. FRIAS, Lena. “O orgulho (importado) de ser negro no Brasil”. Jornal do
Brasil, 17/07/1976.
14. Idem. 19. Com a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, o DGIE se 20. APERJ. Fundo Polícias Políticas, Setor DGIE, Notação 252. p.9-10.
15. APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: DGIE, Notação 232, p. 219. tornou a polícia política unificada do novo Estado do Rio de Janeiro. 21. APERJ. Fundo Polícias Políticas, Setor DGIE, Notação 250. p.722-724

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ou guerra racial; drogas ou outros ilícitos nos bai- acabar com o baile e meter o pau em geral”. Eu falei: “capitão, gente saía daqui da Rocinha e ia dançar lá pra aqueles lados. ao meu, usava um garfo, como um pente. (...). e eles ficavam
les; material de crítica direta ao regime militar ou nós temos aqui 6 mil aqui dentro e lá fora deve ter o dobro, (...) E aí, rapaz, eu tinha um cabelo que era isso assim, era preocupados com nosso pente. Mas a gente não brigava entre
de propaganda comunista, entre outros. Na busca olha, por favor o senhor não faça isso. Não acaba esse baile um black grande, e os caras cortaram nosso cabelo, deixaram nós não. Nosso baile a gente ia para curtir, para dançar, curtir
por fatos que incriminassem tais movimentos, ações agora não, deixa ele ir acabando devagarinho”. E ele disse: a gente careca. (...) levaram a gente para dentro do quartel, a coisa do Toni Tornado, do James Brown, dançar um soul25.”
mais incisivas ganharam terreno nos bailes, confor- “tudo bem, mas depois o senhor vai ter que me acompanhar”. deram um banho de água fria na gente (...). E ficamos lá até
me atesta relato de Dom Filó: E eu: “quem vai ter que acompanhar? Eu? Eu não, o senhor a tarde do outro dia. (...) Final da década de 70 (...), a gente A partir dos depoimentos coletados pela CEV-Rio,
o que se constatou é que a vigilância na porta dos

tem que falar com o dono do clube. O clube que me contratou”. pregava na época o fim da ditadura nos bailes, a igualdade. E
Aconteceram vários fatos, mas alguns que balançaram re- Eu tinha o discurso todo já...22” o movimento black era discriminado. Diversas vezes, também, bailes, as revistas policiais, as apreensões dos pen-
almente. Foi quando nós fizemos o lançamento do nosso LP, nesses bailes, você tinha a presença da PE [Polícia do Exér- tes, os cortes dos cabelos Black Power, as prisões ar-
fizemos o lançamento do LP pela Warner. Depois de ter fecha- Neste mesmo ano, na saída do clube Renascença – cito]. Às vezes a PE na porta também, monitorando ali. (...). bitrárias, as torturas físicas e psicológicas, não se
do 10.000 pessoas no Portelão, depois de ter ocupado o Lespan localizado no Andaraí, onde a equipe Soul Grand Sempre nos finais do baile, ou no início (...) a viatura parava restringiram às lideranças das equipes de som ou
na Avenida Brasil, aí resolvemos fazer o lançamento em um Prix se formou –, Dom Filó foi sequestrado pelos lá na porta. (...). Eles não olhavam a gente com bons olhos do movimento black. Bastava frequentar os bailes
clube médio, que dava umas seis mil pessoas. Só que tinham agentes da repressão: porque era um movimento que crescia, que pregava sempre para presenciar ou sofrer diretamente esses tipos de
violações praticadas pelos agentes do Estado.

15. 9 mil fechando a Avenida Brasil. No Guadalupe Country a transformação, alertava, sinalizava ao povo que precisava
Clube. Se vocês forem em Guadalupe, esse clube é na beira na Saindo do baile, quando eu ia entrar no carro, meteram o de mudança. Os bailes, quando ia lá o Toni Tornado, Gerson
Av. Brasil, aí tem uma passarela. Você imagina as pessoas capuz na minha cabeça e eu só vi estrelas. Me levaram dentro King Combo, o negócio fervia, e sempre tinha lá, viaturas que Deve-se esclarecer que a violência do Estado ditato-
dançando em cima daquela passarela, a Av. Brasil fechada, do camburão, dei algumas voltas. Pelo cheiro, pela umidade, chegavam e ficavam ali monitorando para ver se ia haver al- rial contra territórios negros como, por exemplo, os
arrebentaram a porta do clube, a piscina estava vazia e eles mais tarde eu vim saber que era aquele quartel da Polícia do gum excesso, alguma coisa parecida. (...) Uma vez a gente foi quilombos, os terreiros das religiões de matriz afri-
dançaram dentro da piscina. Conclusão: a tropa de choque Exército, na Barão de Mesquita. Chegando lá me botaram em ao Caramujo, lá em Niterói. Saímos de lá a base de porrada. cana, as escolas de samba, dentre outros, não pôde
da Aeronáutica veio para dispersar. Foi um negócio terrível. uma cadeira, tiraram o capuz, tinha muita luz, muita luz. (...) Era perigoso, a gente saía e não sabia se ia voltar, ou se ia ser analisada. Isto porque a CEV-Rio não logrou co-
Aí chegaram acendendo a luz, nós acendemos a luz. Aí o capi- Eles perguntavam onde estava o US$ 1 milhão, se eu era co- entrar em cana, o que ia acontecer. (...). Lá na Penha corta- lher depoimentos nem identificar documentos que
tão veio caminhando com aqueles catarinas, na época eram munista. Aí apagaram toda a luz e falaram: agora você vai ram nosso cabelo, deram banho na gente, era inverno, deram abordassem essas violações específicas, mas enten-
aqueles catarinas, os caras não eram nem do Rio de Janeiro, ver. Aí eu falei: se eu sumir, imagina o que vai ter aí na porta. banho de água fria, água gelada. E você ficar em uma celi- de a urgência de que estes temas sejam explorados
todos amarelos, vermelhos, doidos pra bater. Aí quando ele Se um baile tem quinze mil, multiplica isso aí por 400 bailes nha menor do que isso aqui, tudo escuro e o cara chegava por em futuras pesquisas.
veio na minha direção eu peguei o microfone, era um festi- que acontecem. Aí eles pararam, fizeram uma reflexão, me cima... o cara depois de cortar nosso cabelo, depois de botar
val de equipes, estava na minha hora, uma hora da manhã deixaram lá por um bom tempo. Aí me botaram no carro e me naquela cela nu, ainda por cima jogava água24.” Botando o preto no branco
mais ou menos, e eu falei: olha galera, vocês fiquem tranquilos largaram no Lins23.”
porque a polícia... eu falei polícia, porque pra mim, quando No mesmo sentido, Daílton Lopes, expôs em seu de- O objetivo deste último eixo de análise é colorir as
eu vi, era polícia, mas não era polícia, era Aeronáutica, pior Xavante, em seu depoimento à CEV-Rio, também poimento que presenciou forças policiais monitoran- memórias dos militantes engajados com projetos de
ainda, porque polícia a gente tinha um medo, era na época da relatou as violências que sofreu por frequentar bai- do os bailes que frequentou: esquerda, de forma que as futuras gerações teste-
les soul à época: munhem mais um período da história brasileira de

Invernada de Olaria, um negócio mais barra pesada, a gente
luta pela liberdade, construída com sangue negro.

tinha medo da Invernada, que eram os sete homens de ouro, Todo baile tinha alguém do serviço secreto, porque na ver-
sumia mesmo, negócio barra pesada. Eu tinha mais medo da Teve uma época que eu me lembro muito bem, que a gente dade o que acontece, todo policial, podia ser ele militar, civil, A suposta neutralidade das narrativas oficiais tem
Invernada do que da Aeronáutica. Porque até então a aero- saindo do baile tinha aquela polícia naval que fazia ronda era um agente deles. Então, as informações, eles sabiam de servido para naturalizar c oncepções equivocada-
náutica para mim era outra história... enfim, ele chegou até o ali e a gente saiu e eles foram atrás da gente, entendeu? Cor- tudo. Vira e mexe na entrada do baile era revista. Nossos cabe- mente difundidas acerca de um protagonismo bran-
palco, eu peguei o microfone, fui acalmando, e ele chegou até reram, saíram atrás da gente, pegaram o nosso grupo, que a los...todo mundo usava, pessoal que tinha cabelo assim igual co, apagando da história determinados atores políti-
mim e falou: “olha, muito obrigado, você fez um grande favor, 22. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Asfilófio Oliveira Filho para a CEV-Rio
me ajudou bastante, porque a ordem que eu tinha era para em 07/07/2015. 24. Acervo CEV-Rio. Testemunho de José Fernandes (Xavante) e Antônio fer- 25. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Daílton Lopes para a CEV-Rio em
23. Idem. reira (Xaolin) para a CEV-Rio em 20/03/2015. 23/07/2015.

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cos negros e suas trajetórias de luta, expropriando morto. Joel foi enterrado como indigente nesse mes- critérios que não raras vezes foram sobrepostos. Ou- militância negra teve a oportunidade de partilhar o
de seus descendentes a possibilidade de se verem mo ano no Cemitério de Ricardo de Albuquerque. tras “acusações” que motivaram as violações foram poder em alguns Estados, como Rio de Janeiro e São
positivamente engajados nesses processos. vinculação com entidades de esquerda ou referên- Paulo. Foram criados núcleos negros nos partidos
Algumas das dimensões da violência contra negros, cias abstratas à atividade subversiva, comunismo e políticos mais influentes surgidos após a extinção do
Dentre os nomes listados pela Comissão Especial presos no estado do Rio de Janeiro, podem ser reti- participação em greves. bipartidarismo e os organismos estatais procuraram
sobre Mortos e Desaparecidos políticos (CEMDP) há radas da análise dos dados tabulados pelo projeto absorver algumas das reivindicações da militância.
inúmeros negros26. A Comissão Estadual da Verdade de pesquisa “Testemunho como Janela: O Perfil dos Aparecem, na amostragem, como lugares de violên- Nesse contexto, o movimento negro possuiu papel
de São Paulo, que também dedicou um capítulo de Atingidos e a Estrutura Repressiva do Estado Di- cia mais frequentes os seguintes: DOPS (Niterói, destacado no processo de redemocratização e na As-
seu Relatório Final a esta temática, apontou para tatorial no Rio de Janeiro” a partir de testemunhos Guanabara e Rio de Janeiro), DOI-CODI, Estádio sembleia Constituinte de 1987-1988.
mais de 40 nomes27. Basta retomar alguns exemplos dados à Comissão de Reparação do Estado do Rio de Caio Martins, Centro de Armamento da Marinha,
para evidenciar que os militantes negros estavam Janeiro, realizado pelo PPGHIS/UFRJ. Ginásio Ypiranga Futebol Clube, Presídio de Ilha Em 1988, o movimento negro organizou uma grande
presentes em diversas frentes de atuação, como o Grande, Arsenal da Marinha e Delegacias de Polí- marcha no Rio de Janeiro, com o objetivo de denun-
movimento sindical, a luta armada e a guerrilha O projeto teve por objetivo digitalizar e analisar os cia. Dos casos relatados, em 42 as prisões e torturas ciar a chamada farsa da abolição, conforme atesta
rural: Gerson Theodoro de Oliveira, militante da processos avaliados pela Comissão de Reparação, ocorreram entre 1964 e 1968, o que demonstra ser Januário Garcia, à época presidente do IPCN. Seu
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foi mor- com o intuito de traçar o perfil dos atingidos pelas expressiva a quantidade de violações de direitos hu- relato evidencia que as práticas arbitrárias de re-
to em 1971 nas dependências do DOI-CODI, no Rio ações repressivas e a estrutura do aparato repressi- manos perpetradas pelo regime contra negros nos pressão às mobilizações prosseguiam, ainda no ano
de Janeiro; Geraldo Bernardo da Silva, sindicalis- vo local e regional. Portanto, trata-se de um universo primeiros anos após o golpe, notadamente contra da promulgação da chamada Constituição Cidadã:
ta, se suicidou em decorrência de torturas sofridas documental limitado, com características bastante aqueles que tinham algum engajamento sindical ou
em 1969 na Vila Militar; Osvaldo Orlando da Cos- específicas. Uma análise qualitativa de 63 processos junto ao Partido Comunista. “ Em 88, nós fizemos uma marcha no 13 de maio, a mar-
ta, o “Osvaldão”, foi morto em 1974 na Guerrilha do em que o atingido foi identificado como preto ou par- cha da farsa da abolição, que foi um negócio tão forte que o
Araguaia. Carlos Marighella, militante da Aliança do (pela repressão ou pelo próprio) nos permite tirar O levantamento e o destaque a essas informações são 4º Exército saiu às ruas com os carros urutus para nos re-
Libertadora Nacional (ALN), que chegou a ser con- algumas conclusões sobre a participação de pesso- importantes na medida em reforçam a necessidade primir porque a gente havia levantado uma questão muito
siderado o principal inimigo do regime, era negro e as negras na resistência à ditadura. Destaca-se que da recuperação da memória sobre algumas trajetó- importante naquela época que foi a guerra do Paraguai. A
foi assassinado em 1969 em São Paulo. No final dos esses números não são exaustivos, tendo em vista rias de militantes negros que, envolvidos com entida- gente levantou a questão dos pelotões de negros que foram à
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que outros negros, não identificados enquanto tal, des de esquerda, foram vítimas de graves violações guerra do Paraguai sem armas, descalços, que Caxias botou
ficou conhecido o destino dado à ossada de Joel Vas- podem constar entre os processos. de direitos humanos. Cumpre ressaltar que houve para morrer. E havia em Caxias, o bispo Dom Hipólito, que
concelos dos Santos, um desaparecido político negro. milhares de outros negros que se engajaram nesse levantou a questão de mudar o nome do município de Ca-
Joel era estudante e militava no Partido Comunista Há diversos relatos envolvendo tortura psíquica ou tipo de luta, cujas histórias de vida e de resistência xias porque ele era um sanguinário. Aí o frei David que era
do Brasil (PCdoB), além de desenvolver um trabalho física, somando 43 casos sinalizados no breve in- devem ser também lembradas e referenciadas. o pároco da Igreja de São João de Meriti, falou que nós íamos
de conscientização política no Morro do Borel. Em ventário acima. Ressalta-se que para obter a repa- fazer uma marcha da Candelária até o monumento de Zum-
uma tarde, provavelmente a de 15/03/1971, quando ração, os atingidos não precisavam ter sofrido tor- A despeito do controle por parte da ditadura e das bi. Mas que íamos fazer uma parada em frente ao Panteon
panfletava naquela localidade, foi preso pela Polícia turas, de modo que houve requerentes que optaram tentativas de impossibilitar a atuação do movimento de Caxias e quebrar o pau. Bastou, minha amiga. Foi o Exér-
Militar. Passou por dois batalhões da PM e foi en- por não revisitar este passado doloroso ao entrar negro, as entidades de articulação negra e de comba- cito vir todo para rua. Tinha centenas de pessoas, muita gen-
caminhado para o DOI-CODI, onde foi torturado e com seus processos. te ao racismo se fortaleceram ao longo das décadas te. A gente estava na Candelária e neguinho que chegava,
26. BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Di- de 1970 e 1980. A resistência que ocorreu primeira- chegava no máximo à Uruguaiana porque não dava para
reito à Memória e àVerdade. Secretaria Especial de Direitos Humanos: Bra-
sília, 2007. A maioria das prisões e demais violências ocorreu mente no campo cultural, aumentou sua carga de vir mais. E o Exército colocou gente na Central do Brasil, em
27. SÃO PAULO. Relatório Final da Comissão Estadual da Verdade “Rubens
Paiva”. Perseguição à população e ao movimento negros. Tomo I, Parte II.
em virtude de engajamento do acusado em atividade contestação política e antes mesmo da redemocrati- todos os lugares, qualquer um que estivesse com um papel na
Disponível em: http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/downloads/I_ sindical ou envolvimento com o Partido Comunista, zação do país, com as eleições estaduais de 1982, a mão, com a bandeira na mão, nego tomava mesmo, batia,
Tomo_Parte_2_Perseguicao-a-populacao-e-ao-movimento-negros.pdf.

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tomava. Então, chegou na hora, veio o comandante, não sei dava, uma barreira, tinha carro de combate, tinha tudo, não Capítulo 10 - MULHERES NA LUTA CONTRA lações de direitos humanos. Uma unidade especial
se era um coronel, não me lembro, e ele disse que a gente não dava para seguir28.” A DITADURA: O TERROR DO ESTADO E A dedicada a este tipo de investigação foi criada e es-
podia seguir em direção ao monumento do Zumbi, disse que VIOLÊNCIA SEXUAL1 tendida às demais unidades da Comissão.2
a gente tinha que seguir em direção à Cinelândia. E a gente O depoimento acima é emblemático do que se bus-
falou que não, disse que ia. Ele disse que ia nos impedir, não cou relatar ao longo deste capítulo. Fruto do lega- A violência de Estado tem gênero? No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade (CNV)
sei o quê, não sei o quê. E naquele momento eu entro naque- do colonial-escravista para as forças de segurança, criou um Grupo de Trabalho sobre Violência de Gê-
la discussão, eu era o presidente do IPCN na época e essa as violências perpetradas contra a população negra Somente neste início de século a questão de gêne- nero. O GT pesquisou a violência contra a mulher,
reunião toda foi feita dentro do IPCN, toda a articulação foi não se iniciaram em 1964, mas ganharam contornos ro aparece nos processos da Justiça de Transição e suas consequências e impactos, incluindo a violên-
feita dentro do IPCN e eu respondia politicamente pelo IPCN específicos durante a ditadura. A posterior transi- passa a ser investigada nas Comissões da Verdade, cia sexual, para “dar visibilidade ao sofrimento das
na época, aí eu falei, coronel, é o seguinte, nós vamos mar- ção para um regime democrático não possibilitou a em diversos lugares do mundo. Antes da década de mulheres diretamente envolvidas no conflito, da-
char até aonde o racismo do Exército permitir, mas nós va- superação do racismo institucional, permitindo que noventa, a violência sexual e a experiência de mu- quelas que participaram de movimentos de resis-
mos nessa direção. E fomos, fomos até certo ponto. Quando a até hoje a população negra seja alvo privilegiado da lheres vítimas dos conflitos políticos eram ignoradas tência e daquelas cujos familiares foram mortos ou
gente chegou lá, mas tinha um aparato de policiais, que não violência de Estado. ou sua importância, menosprezada. Nas Comissões seguem desaparecidos”3.
da Verdade da Argentina (1983) e do Chile (1990), a
categoria de gênero não foi considerada na apuração Para a Comissão da Verdade do Rio, a importância
das violações de direitos humanos e seu impacto so- do tema surgiu após reunir uma série de depoimen-
bre as mulheres. tos reveladores de aspectos peculiares da violência
sofrida por mulheres na ditadura militar. Este ca-
O assunto ganhou relevância em anos recentes e Co- pítulo, portanto, não existiria se não fosse pela co-
missões da Verdade de vários países se debruçaram ragem das mulheres que, em depoimentos públicos
sobre ele, passando a adotar abordagens diferencia- e privados, mostraram como a diferença de gênero
das do tema a partir de três enfoques. A Comissão balizou a perseguição e a violência por elas sofrida
Nacional para a Reconciliação do Ghana (CNR), es- naquele período4. O conjunto dos depoimentos evi-
tabelecida em 2002, incorporou o gênero como pris- dencia como a violência de Estado foi estruturada,
ma em todas as suas atividades, desde a seleção até durante o regime militar, a partir das convenções
a capacitação dos seus assessores e pesquisadores. sociais acerca dos papéis atribuídos aos homens e
Já a Comision para la Verdad y La Reconcilicion y às mulheres, os quais diferenciam, hierarquizam e
los Derechos Humanos do Peru (CVR, 2002) escolheu discriminam as pessoas, suas obrigações, oportuni-
estabelecer uma unidade especial para destacar o dades e liberdades.
enfoque de gênero. A Comissão para a Recepção, a
Verdade e a Reconciliação do Timor-Leste (CEVR,
2001) adotou um “terceiro tipo” de abordagem do 2. Nesiah, Vasuki. Comisiones de la Verdad y Género: Principios, Políticas
tema baseado num “enfoque combinado”, numa y Procedimientos. New York: International Center for Transitional Justice
2006.
perspectiva voltada não só para a violência sexual, 3. Documento de apresentação dos planos de trabalho do GT Ditadura e Gê-
nero da CNV. Disponível em http://www.cnv.gov.br/images/pdf/grupos_traba-
mas também para a compreensão das diferentes lho/CNV_REUNIAO_AMPLA_Genero_250313.pdf
A Polícia Militar do Rio mobilizou forte aparato repressivo para impedir a continuidade da Marcha de 1988 4. Agradecemos a todas as mulheres que prestaram seu testemunho à Comis-
Foto: Januário Garcia experiências das mulheres enquanto vítimas de vio- são da Verdade do Rio, revelando aspectos importantes da luta empreendida
contra a ditadura, bem como as violações de direitos humanos às quais foram
1. Este capítulo apresenta a pesquisa da Natacha Nicaise, em colaboração submetidas. Foram utilizados depoimentos colhidos também pelas Comis-
28. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Januário Garcia para a CEV-Rio em com a CEV-Rio. O texto na íntegra da pesquisadora se encontra disponível sões Municipais da Verdade e ainda em atividades realizadas em parceria
02/05/2015. no site da CEV-Rio. com a Comissão Nacional da Verdade.

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Luta feminina: uma transgressão múltipla intensa quando as militantes foram arbitrariamen- que não devia ter feito6.” silenciamentos da memória no corpo torturado.
te detidas e torturadas pelas forças repressivas,
As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por um uma vez que a violência sexual e demais torturas às O tratamento dispensado pelos torturadores às mili- Métodos de tortura e a violência sexual
profundo questionamento em relação ao papel tra- quais foram submetidas evidenciavam as diferenças tantes, visando ao disciplinamento de seus corpos e contra a mulher
dicionalmente destinado à mulher na sociedade. O e hierarquias de gênero embutidas nos padrões de comportamentos, evidencia a assimetria de poderes
avanço das lutas feministas ao redor do mundo le- dominação masculina. entre homens e mulheres. Os estereótipos de gênero Além de insultos e ameaças sexuais, a repressão
vou a mudanças nos costumes e no comportamento atrelados ao feminino e ao masculino e seus respec- usou contra as mulheres métodos de tortura como:
feminino que se fortaleceram com o surgimento da Por ousarem romper com os papéis de gênero da tivos atributos de fraqueza e de força, também eram nudez forçada, choque elétrico na vagina, nos seios,
pílula anticoncepcional, colocando em xeque antigas época, a luta das mulheres contra a ditadura foi explicitados quando, durante as sessões de interro- na língua, nas mãos (acentuados com jorros de
concepções sobre a relação da mulher com a univer- encarada pelos agentes da repressão como mul- gatório e tortura, os agentes destacavam que se as água fria que potencializavam a descarga elétrica),
sidade, com o mercado de trabalho, com o espaço da tiplamente transgressora. Além da acusação de mulheres ousaram desafiar as forças de segurança, golpes no abdômen, telefone sem fio, pau-de-arara,
política e com seu próprio corpo. “terroristas” e “subversivas”, que representavam elas também estariam aptas a suportar o uso da for- isolamento em solitárias, celas geladas, com músi-
uma ameaça à ordem do Estado, elas estavam, ça física masculina contra elas. A concepção de mas- cas e ruídos ensurdecedores, roleta russa, queima-
Paralelamente às denúncias e aos avanços das lu- acima de tudo, transgredindo os papéis que tra- culinidade sustentada pelos agentes da repressão duras de cigarro e de cano de descarga de motoci-
tas feministas em vários países, no Brasil as desi- dicionalmente lhes eram designados – a saber, de envolvia a obrigação de resistir ao sofrimento físico cleta. Em alguns casos, os torturadores pisoteavam
gualdades históricas de gênero foram acirradas pela dona de casa, mãe e esposa – ao ocuparem um lu- e, nesse sentido, nos locais de prisão e tortura, o cor- as costas das presas com coturnos, davam ponta-
ditadura que se utilizou de métodos extremamente gar no espaço público convencionalmente destina- po da mulher desafiava o estatuto cultural de “infe- pés, espancavam com cassetetes, usavam animais
violentos contra as mulheres que ousaram subverter do ao homem: a política. rioridade física” para tornar-se igual ao do homem. durante as sessões de tortura (cães lambendo fe-
os estereótipos femininos de dependência e submis- ridas, baratas dentro da vagina, jacaré passeando
são ao se engajarem nas organizações de esquerda. A partir dos relatos das ex-presas políticas que teste- A violência se organizava por meio da hierarquia de pelo corpo desnudo) abusavam e estupravam os
Neste capítulo será analisada, portanto, a violência munharam perante as Comissões da Verdade, é pos- gênero, com todos os estereótipos embutidos, espe- corpos imobilizados.
de Estado que atingiu militantes jovens (entre 18 e sível traçar alguns padrões de percepção dos papéis cialmente o referido à sexualidade. Nos interroga-
25 anos), trabalhadoras, estudantes secundaristas de gênero por parte dos agentes do Estado, respon- tórios e na tortura, eram recorrentes o uso, pelos O conjunto dos depoimentos coletados atesta que a
e universitárias, nos locais de prisão e tortura do sáveis pelas prisões ilegais e torturas. O depoimen- agentes da repressão, de termos como “puta”, “ga- tortura, longe de ser um ato de violência irracional,
Estado do Rio de Janeiro5. to de Estrela Bohadanna, militante do movimento linha”, “prostituta”, “vagabunda”, com os quais in- foi um instrumento de poder e dominação meticulo-
secundarista, presa em 1970, no Rio de Janeiro, aos sultavam as presas políticas (no âmbito subjetivo samente pensado, estudado e administrado por ho-
Ao ingressarem na política, elas tiveram que enfren- 19 anos, mostra que antes de ser torturada por sua da sua sexualidade) por terem ingressado na luta mens, agentes do Estado.
tar preconceitos nas próprias famílias e nas orga- atuação política, por sua convicção ideológica e/ou política e, consequentemente, se afastado dos papéis
nizações de esquerda onde atuavam. A discrimina- por representar perigo à segurança nacional, o foi convencionais de esposa e mãe. Os corpos femininos, além de violados por meio de
ção, baseada em valores morais acerca do lugar da por ser mulher e atuar politicamente em organiza- técnicas específicas, serviram como cobaias em aulas
mulher na sociedade, manifestou-se de forma mais ções de esquerda: As mulheres que sofreram diretamente violações de de tortura, ministradas a soldados do Exército, com
direitos humanos durante a ditadura, e prestaram o acompanhamento de médicos . Conforme revela o
5. De acordo com a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Pai-
va” durante a ditadura verificou-se ainda campanhas criminosas de controle
de natalidade direcionadas às mulheres de setores pobres, urbanos e rurais,
“ Havia um desprezo por parte deles. Junto com a ideologia, testemunhos às comissões da verdade, centraram depoimento de Dulce Pandolfi, durante o primeiro
em várias regiões do país, com a prática de esterilização forçada incentivada vinha essa humilhação pelo fato de ser mulher, como se a gen- seus relatos em três grandes temas abordados a Testemunho da Verdade realizado pela CEV-Rio:
nas secretarias de saúde dos estados pela Bemfam (Sociedade Civil de Bem
seguir: as técnicas de torturas e a violência sexual,

Estar Familiar), organização norte-americana, criada em 1965. São, tam- te estivesse extrapolando nosso papel de mulher. O tom era de
bém, inúmeros os registros de violações direcionadas às mulheres indígenas
e camponesas, a partir dos planos de desenvolvimentos que visavam a inte- “por que você não está em casa, ao invés de estar aqui? Por que esterilização, aborto e maternidade e os labirintos e No dia 20 de outubro de 1970, dois meses depois da minha
gração econômica e social do país. Expulsões das terras, disseminação de do- você perde tempo com coisas que não lhe dizem respeito?”. Era prisão [no DOI-CODI] e já dividindo a cela com outras presas,
enças, violência sexual, escravização e mortes são alguns dos crimes contra a
mulher em território nacional. Retirado do Relatório da Comissão da Verdade como se você merecesse ser torturada porque estava fazendo o 6. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Estrela Bohadana para a Comissão Muni- servi de cobaia para uma aula de tortura. O professor, diante
do Estado de São Paulo - “Rubens Paiva”.Tomo I. Parte 2. “Verdade e Gênero”. cipal da Verdade de Volta Redonda, em 07/03/2014.

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dos seus alunos fazia demonstrações com o meu corpo. Era meu corpo. (...) Acho isso muito importante porque demonstra O método denominado pelo próprio torturador como provocar sua própria morte foram sensações e sen-
uma espécie de aula prática, com algumas dicas teóricas. En- também que essa equipe de torturadores estudava os métodos “tortura sexual científica”, explicita o caráter sexis- timentos abordados em testemunhos que remetiam
quanto eu levava choques elétricos, pendurada no tal do pau que eles, eufemisticamente, chamavam de ‘técnica de interro- ta da formação policial e afirma a dominação mascu- ao distanciamento em relação ao próprio corpo. O
de arara, ouvi o professor dizer: “essa é a técnica mais eficaz”. gatório’. Não era simplesmente uma explosão de um sádico de lina no ato de produzir humilhação, dor e sofrimento afastamento de si mesma, a perda da individuali-
Acho que o professor tinha razão. Como comecei a passar mal, plantão (...). Foi nesse quadro, na volta, que o próprio Nagib ao corpo feminino imobilizado. Por meio da introdu- dade e a quebra da subjetividade foram resultados
a aula foi interrompida e fui levada para a cela. Alguns mi- [Risacala Corbage] fez o que ele chamava de ‘tortura sexual ção de objetos e animais nos órgãos genitais e repro- dessa ruptura produzida nos corpos torturados e en-
nutos depois, vários oficiais entraram na cela e pediram para científica’. Eu ficava nua, com um capuz na cabeça, uma cor- dutores e da manipulação das partes íntimas, foram carados, muitas vezes, como derrotas políticas10.
o médico medir a minha pressão. As meninas gritavam, im- da enrolada do pescoço passando pelas costas até as mãos, que violadas sexualmente inúmeras mulheres que ousa-
ploravam, tentando, em vão, impedir que a aula continuasse. estavam amarradas atrás da cintura. Enquanto o torturador ram lutar contra a ditadura. Diante do silêncio dos presos políticos que, apesar
A resposta do médico Amilcar Lobo, diante dos torturadores e ficava mexendo nos meus seios, na minha vagina, penetrando de submetidos a interrogatórios, não entregavam o
de todas nós, foi: “ela ainda aguenta”. E, de fato, a aula con- com o dedo na vagina, eu ficava impossibilitada de me defen- O relato de Rosalina Santa Cruz, presa em 3 de de- “ponto”, o “aparelho” ou a organização da qual fa-
tinuou. A segunda parte da aula foi no pátio. O mesmo onde der, pois se eu movimentasse meus braços, para me proteger, zembro de 1971, informa o sentimento de desespe- ziam parte, um método recorrente dos torturadores
os soldados diariamente, faziam juramento à bandeira, can- eu me enforcava e instintivamente voltava atrás. Ou seja, eles ro, de submissão e de dependência em relação aos para fazê-los falar foi exibir a dor e o sofrimento
tavam o hino nacional. Ali fiquei um bom tempo amarrada inventaram um método tão perverso em que, aparentemente homens torturadores que se fizeram “donos da sua do corpo torturado da mulher frente a seus compa-
num poste, com o tal do capuz preto na cabeça. Fizeram um nós não reagíamos, como se fôssemos cúmplices de nossa dor. vida e da sua morte”, durante as sessões de tortura nheiros de militância e/ou namorados. O relato de
pouco de tudo. No final, avisaram que, como eu era irrecupe- Isso durava horas ou noites, não sei bem8.” no DOPS. Em suas palavras: Estrela Bohadanna sobre as torturas sofridas no 1º
Batalhão de Infantaria Blindada de Barra Mansa

rável, eles iam me matar, que eu ia virar “presunto”, um ter-
mo usado pelo esquadrão da morte. Ali simularam o meu fu- Éramos torturadas por homens, porque não tinha mu- evidencia tal prática:


zilamento. Levantaram rapidamente o capuz, me mostraram lher torturadora. Eles nunca acharam que a mulher podia
um revolver, apenas com uma bala, e ficaram brincando de ser digna de tal papel. Porque não tinha mulheres fazendo, Teve uma sessão de tortura, na qual chamaram o padre
roleta russa. Imagino que os alunos se revezavam no manejo no Brasil, pelo menos eu não tenho nenhum relato que tenha Natanael e eu nua, toda amarrada em fio. E eles diziam
do revolver porque a “brincadeira” foi repetida várias vezes7.” tido mulheres que participaram diretamente da tortura. (...) para o padre me olhar. E o Nataneal não queria me olhar
O que eu senti, logo nessa primeira experiência, é que aquele de jeito nenhum... e ele era torturado barbaramente por
Nessa mesma audiência pública, realizada na As- homem, ele era senhor da minha vida, da minha morte. Ele ti- não me olhar. Até que eu disse: padre, pode me olhar, por-
sembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro nha o poder da minha loucura, da minha sanidade, da perda que eu me sinto tão coberta, tão vestida, que eu não tenho
(ALERJ), Lucia Murat, presa pela segunda vez em ou não da minha dignidade. Eu dependia dele. Eu não sabia vergonha. Eu me sinto vestida pelos meus sonhos, pelo meu
31 de março de 1971 e encarcerada ao longo de três do meu limite, porque quando eu entrei, eu não tinha noção ideal, pela crença de que é necessário mudar o Brasil, de
anos e meio, também prestou o seu testemunho, re- (...) achava que podia dominar a situação. Naquele momento que é possível um mundo melhor. Esse sonho me cobria,
latando as torturas sexuais sofridas quando levada eu sabia que tinha que buscar forças ou subterfúgios para ga- eu não precisava realmente de roupa. Como em nenhum
de volta ao DOI-CODI, em 1971: rantir a minha dignidade9.” momento quando os soldados passavam a mão no meu


corpo, eu me sentia humilhada ou indigna. E eu entendia
Puseram baratas passeando pelo meu corpo. Colocaram Frente à dor, ao horror e à brutalidade da tortu- que aquilo era uma forma de tortura sim, que faziam isso
uma barata na minha vagina. Hoje, parece loucura. Mas um ra, os relatos de mulheres torturadas remetem para desestruturar como uma forma machista de agredir
dos torturadores, de nome de guerra Gugu, tinha uma caixa à sensação de perda de controle do próprio corpo. a mulher. E nesse momento eu dizia: não, o meu sonho me
Primeiro Testemunho da Verdade da CEV-Rio contou com os
onde ele guardava as baratas amarradas por barbantes. E depoimentos de Dulce Pandolfi e Lucia Murat no Plenária da ALERJ Tremedeiras, a incapacidade de sentir dor física encobre. E eu não preciso de roupa (...). Então, eu acho que
através do barbante ele conseguia manipular as baratas no Crédito: Gabriel Telles/ALERJ e a impossibilidade e o desespero de não poderem 10. A impossibilidade de expressar o sofrimento total da tortura, o corpo con-
vertido em um repositório do somático e o distanciamento de si mesmo são
temas abordados por Sapriza em Memorias de Mujeres en el relato de la dic-
7. Acervo CEV-Rio. Testemunho prestado por Dulce Pandolfi em audiência 8. Acervo CEV-Rio. Testemunho prestado por Lucia Murat em audiência pú- 9. Testemunho de Rosalina Santa Cruz em Audiência Pública sobre a Vila Mi- tadura (Uruguay, 1973-1985). Violencia, carcel e exílio. In: DEP. Deportate,
pública da Comissão da Verdade do Rio, em 28/05/2013. blica da Comissão da Verdade do Rio, em 28/05/2013. litar realizada pela CNV e pela CEV-Rio. Arquivo CNV. 00092.000570/2014-21 esuli, profughe. Revista telemática di studi sulla memória femminile. 2009.

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isso daí deixa marcas muito importantes na nossa existên- res e/ou estranhos; ausência de intimidade ou privacidade Esterilização, aborto e maternidade murro, pontapé, só na minha barriga. Geraldo algemado, no
cia, de nesse momento a gente de alguma forma é testado, no uso de banheiros; negar às mulheres artigos de higiene, chão, só olhando, até que eu sangrei de descer, assim, e eles
e eu acho que o que a ditadura quer é sempre desestru- especialmente durante o período menstrual e ameaças de Os agentes do Estado usaram a gravidez e a ma- disseram: ‘Ah, está vendo? Comunista não é para ter filho’15.”
turar emocionalmente, psiquicamente, acabar com a mo- violação sexual (...)13.” ternidade como mais uma forma de infringir dor e
ral. Bom, depois dessas sequências todas de tortura e dessa sofrimento às mulheres. Os relatos sobre torturas Estrela Bohadanna também sofreu um aborto no
agressão, digamos assim, não deixa de ser uma agressão No cumprimento do seu mandato, a CNV constatou apontam para violências dirigidas particularmente início da gravidez, depois de sessões de tortura no
sexual, ainda que não tenha havido o estupro, entendeu? que a violência sexual constitui prática disseminada aos órgãos genitais e reprodutores, choques elétri- DOI-CODI, a caminho do Hospital Central do Exér-
Mas você ter um monte de gente passando a mão no teu em quase toda a estrutura repressiva: cos na vagina para torná-las estéreis, mutilação dos cito. Em seu relato, ela destaca que foi graças à so-
seios e golpes no abdômen com o objetivo explícito de lidariedade e coragem da companheira Dilma Rous-

corpo e você amarrada... é no mínimo um ato macabro11.”
A violência sexual, exercida ou permitida por agentes de impedir a reprodução biológica do “inimigo”, o nasci- sef que, com a potência da sua voz e persuasão da
Na própria definição das mulheres torturadas, o es- Estado, constitui tortura. Por transgredir preceitos inerentes à mento de “mais um comunista” no mundo. sua fala, conseguiu que ela fosse levada ao HCE:
tupro constitui uma das formas de violação sexual,

condição humana, ao afrontar a noção de que todas as pesso-
que não se limita à penetração vaginal ou anal pelo as nascem livres e iguais em dignidade e direitos, a normativa Os depoimentos revelam que muitas mulheres Então eu fui pro HCE, cheguei no HCE já paralítica e em
órgão masculino ou ao sexo oral mediante o uso da e a jurisprudência internacionais consideram que a violência estavam grávidas na ocasião da prisão. E, ao sa- coma e com todas as costelas quebradas, não sobrou nada. (...)
força. De acordo com definição sustentada pela CNV, sexual representa grave violação de direitos humanos e inte- berem disso, os agentes da repressão não ameni- Eu acho que algumas do lado direito, que foi completado e
a violência sexual abarca: “penetração de natureza gra a categoria de ‘crimes contra a humanidade’14.” zavam a violência contra elas, ao contrário, a in- quebrou lá no retorno para Barra Mansa [1º BIB].(...)Eu tava
sexual, não consentida, do corpo da vítima por órgão tensificavam. Rosalina Santa Cruz conta que soube no início de uma gravidez, a qual, obviamente, não prosse-
sexual, membro ou objeto utilizado pelo violador, O fato deste enfoque se limitar as torturas sexuais da sua gravidez em meio a uma sessão de tortura. guiu, eu abortei ainda indo pro hospital, pro HCE. Cheguei
com o uso da força ou mediante ameaça de coerção. sofridas pelas mulheres não quer dizer que os ho- Três dias depois de ser detida junto com seu com- lá com muita hemorragia e entrei em coma e aí eu já não
O estupro é, portanto, apenas uma das formas pos- mens, quando presos e torturados, não tiveram tam- panheiro de militância e namorado, Geraldo, am- sei o que houve. Quando eu despertei, eu já estava dentro de
síveis de violação sexual”12. bém seus corpos violados sexualmente. Depoimen- bos da VAR-Palmares, tendo já passado por sessões um quarto. Lá dentro do HCE, eu pude de novo ficar em pé,
tos prestados à CEV-Rio, confirmam que também de tortura no DOPS/GB, os dois foram levados ao consegui ficar de pé, e já tinha, vamos dizer assim, os edemas,
Com efeito, os crimes sexuais não se limitam à vio- homens, civis e militares, foram alvos dessa tortura. DOPS de Niterói, e torturados um diante do outro hematomas do corpo já estavam mais calmos, e eu fui manda-
lência física, de modo que não é necessário haver O fato de que homens e mulheres – heterossexuais por agentes do DOI-CODI. Em meio a uma disputa da de volta para o Batalhão16.”
contato corporal para ser encarado como tal. Consti- e LGBT – foram submetidos a tortura sexual ainda sobre os métodos de tortura a serem empregados,
tuem ainda violência sexual: é tema pouco documentado no Brasil, principalmen- Rosalina narra vestígios de humanidade por parte Outro depoimento colhido pela CEV-Rio foi o da jor-
te devido aos silenciamentos que, do ponto de vista de um agente de Niterói, que se manifestou contrá- nalista Maria Helena Guimarães Pereira, que cre-
“ golpes nos seios; golpes no estômago para provocar da reconstrução de memórias coletivas e da busca rio à truculência exercida contra ela e seu compa- dita à ditadura militar a morte de dois filhos. Presa
aborto ou afetar a capacidade reprodutiva; introdução de pela verdade, limitam as possibilidades de avanços nheiro durante a sessão de tortura: em em 20 de janeiro 1972, em frente ao prédio onde
nas investigações. Resgatar o passado pouco conhe- morava em Copacabana, ela foi levada ao DOPS/GB.

objetos e/ou animais na vagina, pênis e/ou ânus; choque
elétrico nos genitais; sexo oral; atos físicos humilhantes; an- cido, revelar o que foi silenciado sobre as violações Não bate neles aqui desse jeito, levem para lá, aqui não. E Maria Helena militava na Ação Popular (AP) com
dar ou desfilar nu ou seminu diante de homens e/ou mu- sexuais é necessário, principalmente em razão dos uma briga entre eles de quem batia na gente. E nós, no deses- seu companheiro, Wilson de Almeida Mello, de quem
lheres; realizar tarefas nu ou seminu; maus-tratos verbais estigmas que cercam os crimes sexuais praticados pero, porque não sabíamos o que era. Nesse momento, o cara estava grávida de quatro meses. Hoje, aos 70 anos,
e xingamentos de cunho sexual; obrigar as pessoas a per- por agentes públicos, sepultados pela indiferença da de Niterói me chama e me leva para uma sala e diz para mim Maria Helena relatou pela primeira vez as violências
manecer nuas ou seminuas e expô-las a amigos, familia- sociedade e pela impunidade dos violadores. e para o Geraldo: ‘Você está grávida?’, ‘Eu não sei.’ Então, co- sofridas, após silenciadas ao longo de 43 anos:
meçou a vir na minha cabeça: ‘Eu atrasei minha menstrua-
11. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Estrela Bohadana para a Comissão Mu-
nicipal da Verdade de Volta Redonda, em 07/03/2014. ção, eu estou grávida.’ (...)Aí o cara resistia, [mas] o pessoal 15. Arquivo CNV. 00092.000570/2014-21
12. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da 13. Idem, p. 419, § 33. do DOI-CODI chegou me pendurou numa parede e me dava 16. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Estrela Bohadana para a Comissão Mu-
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume I. p.418, § 32. 14. Idem, p.400, § 1. nicipal da Verdade de Volta Redonda, em 07/03/2014.

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de ser mãe a fez engravidar novamente: “(...) para Mesmo com os danos físicos e psicológicos decorren- desse deixar o Chile. Escalados no primeiro grupo
“ Foi um filho muito desejado por mim, muito esperado, um mim a coisa funciona assim, me tiram um eu faço tes das torturas e com a dimensão irreparável das a sair do país, Maria Ignez e a família não puderam
filho, vocês vão achar curioso, mas um filho que foi discutido outro, me tiram um eu faço outro.” No sétimo mês perdas sofridas, Maria Helena relata que encontrou embarcar no voo programado, pois haveria uma es-
inclusive com a organização, no sentido de ‘Será que vou en- de uma gestação normal, até então sem complica- formas de exercer a maternidade e de formar uma cala no Rio de Janeiro e o governo brasileiro não ga-
fraquecer porque estou grávida?’. A gente fez várias reuniões e ções médicas, surgiram problemas. Seu médico não família. Em suas palavras: rantiu inviolabilidade da aeronave sob custódia da
entendia as razões de agravamento de seu quadro ONU, sendo a viagem cancelada.

a conclusão foi de ‘Pelo contrário, os filhos fortalecem a gente’.
(...) Wilson, naquele momento [da detenção], foi uma coisa clínico. Foi com a ajuda do advogado Modesto da Eu trabalho com criança pequena, sou voluntária no
instintiva dele, ele pediu: ‘Por favor, cuidado com ela, porque Silveira, que Maria Helena pôde revelar ao obste- hospital. Trabalho com recém-nascidos inclusive, no CTI. Tra- A família enfrentou ainda outros obstáculos. Em 14
ela está grávida’. Isso eu acho que foi motivo para eles me ba- tra que lhe atendia as torturas sexuais sofridas na balho no Fernandes Figueiras como voluntária. Há 15 anos de novembro, finalmente embarcaram em direção a
terem mais, porque eu estava grávida (...). Fui levada para o prisão, as quais a levaram a abortar sem ter recebi- que trabalho naquele hospital, tenho loucura por crianças. As Paris. O voo fez três escalas: uma na Argentina, a
Dops [em 1972] e lá - um sujeito que eu não sei se o nome era do nenhum tipo de assistência médica ao longo do pessoas falam “por que você não tem uma creche?”, mas eu segunda em Dakar, no continente africano, e a últi-
verdadeiro ou falso, mas ele era o mais violento, era o Capitão tempo que esteve detida no DOPS. Após receber alta me resolvi bem, eu fui adotando. Primeiro eu adotei uma sem- ma em Nice (França). Na viagem de Nice para Pa-
Jair... Eu acho que era falso o nome. Comecei logo a apanhar, com a indicação médica de repouso absoluto, que foi -terra, que me chama de mãe, que eu ajudei a ter filhos, já tem ris, Maria Ignez já estava sentindo as contrações.
imediatamente, ele começou a me dar chute na barriga, me cumprida, uma vez mais foi Modesto da Silveira que dois filhos que me chamam de vó, então comecei a construir Na madrugada seguinte, já na capital francesa, sua
bateu muito de palmatória, me espancou e logo eu comecei a a levou de volta à maternidade. Com o parto normal minha família. Depois adotei um menino que foi meu estagi- bolsa d’água se rompeu. Em suas palavras:
já em curso, Maria Helena deu à luz um bebê que

perder sangue, e abortei ali mesmo. E dava muito soco, telefo- ário, que é um fotógrafo e tal, que também me chama de mãe.
nes, mas principalmente (...) ele batia muito na barriga (...). nasceu morto. Diante do trauma, ela decidiu não E depois adotei uma afilhada, que é juíza e me chama de mãe. Na maternidade nem deu tempo de fazer todos os exames
E eu dizia: ‘Por que você me bate tanto na barriga?’, e ele falou: mais correr o risco de voltar a engravidar. Em suas Então eu fui resolvendo meu problema, ainda mais de forma indispensáveis, fui levada para sala de parto, onde Ivaldeck
‘Porque é menos um comunista.’ E continuava a bater, bater, palavras: “Eu tive que ter um parto normal porque o cômoda, porque eu peguei todo mundo já prontinho, eu fui sempre me acompanhou, e às 5h o nosso bebê nasceu. Embora
bater e bater. E eu comecei a sangrar muito, eu nem falava bebê já estava grande e o bebê nasceu morto. Depois só pegando para mim. Todos me chamam de mãe então eu a dificuldade de compreender o idioma, o generoso gesto da
nada, na verdade. Na hora eu estava assim muito abestada. disso eu resolvi tirar as trompas para nunca mais resolvi meu problema desta maneira18.” médica de colocar o meu filho nos meus braços antes mesmo
Eles me levaram para a solitária. (...) Eu fiquei talvez uma ter filhos. Eu tirei, eu não liguei, eu tirei as trompas, de cortar o cordão umbilical, fez renascer em mim a esperan-
semana, dez dias, eu não lembro, sem uma assistência, sem eu tinha 32 anos.” A perseguição política levou muitas mulheres a ça. Todavia fisicamente eu estava muito fragilizada, e se não
nada, todo dia subindo. Apanhava mais um pouco e descia... partirem para o exílio e viverem a gravidez e a ma- fossem os cuidados médicos eu teria sucumbido. Parecia que
Mesmo na cela comum, vire e mexe eu era chamada para ternidade na clandestinidade. Maria Ignez Breder eu havia perdido todas as minhas forças19.”
depor, apanhava um pouco mais, os caras ameaçavam com relatou à Comissão da Verdade de Nova Friburgo
coisa de estupro, passavam a mão em mim, tiravam a roupa, que, em dezembro de 1971, contou com o apoio de Para Maria Ignez, muitos detalhes desta experiência
essas coisas. Eu acho até que nada aconteceu não foi nem por uma rede de militância católica para deixar o Brasil não serão mais lembrados. Outras marcas, porém, ela
que eles eram descentes, eu acho que era um certo nojo. Nojo e ir para o Chile com o marido e a filha Débora, de carregou e carrega na memória encarnada no corpo:
um ano e meio. Em 11 de setembro de 1973, quan-

por que, aquela sangueira toda realmente, como eu não tive
tratamento, não tive médico, não tive nada, aquela coisa ficou do foi dado o golpe militar que derrubou e matou Ao sair da maternidade eu pesava apenas 42 quilos e no
saindo aos pedaços, então eu acho que até foi um pouco de o presidente Salvador Allende, Maria Ignez estava início do quarto mês de amamentação o meu leite havia seca-
nojo. Nesse ponto eu diria que eu tive sorte até17.” grávida de seis meses e teve de cair novamente na do. Passei meses com insônia. Fui submetida a vários exames
clandestinidade. No oitavo mês de gestação, depois médicos. Débora não podia ver ninguém fardado, quando
Maria Helena expressou em depoimento que, depois de dois meses em um refúgio sob custódia da Cruz acontecia ela, assustada, falava “o milico”, e repetia20.”
de seis meses de prisão e tortura no DOPS, o desejo Vermelha e das Nações Unidas, iniciou o processo
Maria Helena e o então presidente da CEV-Rio, Wadih Damous, em
diligência de reconhecimento no DOPS/GB, onde foi barbaramente para obter a documentação necessária para que pu- 19. Testemunho concedido por escrito à Comissão Municipal da Verdade de
17. Acervo CEV-Rio. Testemunho prestado por Maria Helena Guimarães Pe- torturada em 1972 Nova Friburgo por Maria Ignez Breder Barreto.
reira à Comissão da Verdade do Rio, em 19/06/2015. Foto: Bruno Marins 18. Idem. 20. Idem.

144 145
Durante sua estadia na França, de novembro de cionamentos e a capacidade de reprodução biológi- As mulheres que decidiram prestar seus depoimen- subscrito por mais de 12.000 mulheres antes de ser
1973 a abril de 1979, o objetivo da atuação política ca das mulheres atingidas pela violência de Estado. tos às Comissões da Verdade não o fizeram apenas entregue, em agosto daquele ano, às autoridades da
de Maria Ignez e do seu marido foi denunciar os hor- A tortura sofrida, portanto, ainda é um tema difí- para fornecer um registro factual das violências cúpula militar e política da ditadura.
rores das ditaduras no Cone Sul. Nesse período, par- cil de ser abordado. Voltar sobre eventos passados, sofridas no passado. Os esforços em revisitar as
ticipou do movimento dos brasileiros exilados pela no presente, implica defrontar-se novamente com lembranças coabitam com uma vontade de trazer o “ Nós, mulheres brasileiras, assumimos nossas responsabi-
volta da democracia e, junto a sua família, foi uma medos, pesadelos, dores, tristezas, humilhações e máximo de informações sobre os locais de prisão e lidades de cidadãs no quadro político nacional. Através da
das primeiras a retornar ao Brasil após a Anistia. perdas. Depor sobre este passado significa reviver tortura percorridos, os nomes dos torturadores, as história provamos o espírito solidário da mulher, fortalecendo
momentos dolorosos, com consequências ainda vi- técnicas utilizadas durante a tortura, as violações aspirações de amor e justiça. Eis porque nós nos antepomos
Os labirintos e silenciamentos da vas no presente, conforme atesta o depoimento de sofridas, as seqüelas físicas e psicológicas, o res- aos destinos da nação que só cumprirá sua finalidade de paz
memória nos corpos torturados Estrela Bohadanna: gate dos nomes e histórias de vida de companhei- se for concedida anistia ampla e geral a todos aqueles que fo-
ros, homens e mulheres, mortos e desaparecidos.

ram atingidos pelos atos de exceção23.”
Nos testemunhos das mulheres, na profusão de in- Antes de começar, queria dizer, estou profundamente emo- Mas nos depoimentos das militantes, ex-presas
formações, no tom de voz, nas atitudes corporais, cionada de vir aqui. Fiquei muito mobilizada com essa vinda políticas, nas memórias da ditadura que também
nas pausas, nas lágrimas e nos silêncios, transpa- (...). Dor de estômago, insônias, tudo aconteceu desde que me buscam desvelar, evidenciam-se temas de funda-
rece o fato de que, trinta anos após a redemocrati- propus a vir aqui. Mas então, vocês poderiam me perguntar: mental importância que devem ser debatidos e
zação, a violência de gênero e sexual sofrida conti- por que vir aqui? 42 anos atrás, saindo da prisão, eu prometi a aprofundados, como por exemplo, a solidariedade
nua sendo um tema difícil de ser abordado. A saída mim mesma que jamais iria fazer um pacto de silêncio, que eu entre mulheres na prisão e no exílio, as formas de
do cárcere e o fim das torturas não representaram ia sempre estar disposta, disponível, para denunciar tudo que viver a maternidade, os arranjos familiares frente
para as sobreviventes o cessar da dor gerada pela vi das torturas, tudo que eu vivi e tudo que outros companhei- ao terror do Estado e seus engajamentos políticos
violações sofridas. E se, originalmente, a tortura foi ros viveram (...) Afinal, somos de alguma forma essa história contra a ditadura dentro e fora do país.
pensada e adotada pelos agentes da repressão como que está aí, que foi ocultada durante tantos anos, pela repres-
um método para fazer o “inimigo” falar, ela acabou são, pela ditadura, e depois pelo próprio medo que tínhamos Seja na militância política no Brasil ou ainda no exí-
por silenciar aquelas que não conseguem e/ou não de falar (...) Eu cheguei a dizer que não havia ex-torturado, lio, as mulheres desempenharam papel fundamen-
querem acionar a memória dos traumas vividos. De que torturado é pra sempre torturado, porque a tortura pára, tal nas campanhas de denúncia, frente aos organis-
acordo com os depoimentos coletados as lembranças mas existe todo um processo interno no qual, muitas vezes, mos de direitos humanos, das violações sofridas por
das torturas sofridas se confundem nos labirintos você próprio se tortura. É como se o torturador ficasse dentro elas, seus companheiros, familiares e amigos. Elas
da memória, aparecem em forma de “flashes”, como de você (...). Nós estamos agora querendo apurar responsabi- atuaram de forma decisiva na luta pela anistia, du-
“borrões” ou simplesmente se apagam. lidade, mas aqueles que tombaram emocionalmente, ideologi- rante a ditadura, e nas lutas por memória, verda-
camente, é uma morte social também da pessoa que não quer de e justiça posteriores. O ano de 1975, declarado
As consequências para as mulheres que sobrevive- ouvir falar mais da esquerda, da pessoa que não quer mais “Ano Internacional da Mulher” pela Organização
ram às violações apontam para danos físicos, psi- denunciar o que houve. Mas isso é compreensível, porque real- das Nações Unidas (ONU) também ficou marcado
cológicos, morais e de interrupção de seus projetos mente gera um pânico depois. Eu acho que aí entra a impor- pelo surgimento do Movimento Feminino pela Anis-
de vida21. As cicatrizes pelos corpos, as mutilações tância dos movimentos sociais, do apoio dos companheiros, do tia (MFA). Criado em São Paulo por Therezinha
nos seios, os úteros queimados pelos choques, as apoio dos familiares, e nesse sentido eu acho que a comissão Zerbine, o MFA logo se espalhou para outros esta-
costelas quebradas, as limitações motoras, dentre da verdade, ela está tendo um papel fundamental de acordar dos, sendo o Núcleo do Rio de Janeiro o primeiro a Cartaz do Movimento Feminino pela Anistia
outras sequelas físicas afetaram, por vezes, os rela- múltiplas vozes que estavam silenciosas22.” ser formado. Ainda em março de 1975, foi lançado o Crédito: Armazém Memória
Manifesto da Mulher Brasileira em favor da Anis-
21. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da 22. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Estrela Bohadana para a Comissão Mu- tia, que, transformado em um abaixo-assinado, foi 23. ZERBINE, Therezinha Godoy. Anistia: semente da liberdade. São Paulo:
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume I. p.422, § 40. nicipal da Verdade de Volta Redonda, em 07/03/2014. Editora Salesianos, 1979.

146 147
Três anos depois, as articulações do Movimento Fe- Capítulo 11 - HOMOSSEXUALIDADES, rências à sodomia3. Entretanto, leis dos séculos XIX
minino pela Anistia deram origem ao Comitê Brasi- REPRESSÃO E RESISTÊNCIA DURANTE A e XX restringiram o comportamento homossexual.
leiro de Anistia (CBA), que agregou diversos setores DITADURA1 Adultos engajados em atos sexuais com outros adul-
da sociedade civil na luta pela anistia ampla, geral tos num local público poderiam ser indiciados por
e irrestrita. Além de liderar a luta contra a ditadura, Antecedentes da perseguição a pessoas “ofender os bons costumes, com exibições impudicas,
as mulheres também se organizaram, ao longo das LGBT atos ou gestos obscenos, atentatórios do pudor, pra-
décadas de setenta e oitenta, para lutar por deman- ticados em lugar publico ou frequentado pelo publi-
das específicas. Debates sobre temas como sexuali- Como enfatizou o capítulo “Ditadura e Homosse- co, e que, sem ofensa à honestidade individual de
dade e saúde das mulheres, discrepância salarial , xualidades” do Relatório Final da Comissão Nacio- pessoa, ultrajam e escandalizam a sociedade4.” Essa
o alto custo de vida, a violência doméstica e sexual nal da Verdade, “a discriminação contra pessoas previsão, revisada de um código penal anterior, criou
foram levantados em congressos e marchas de mu- LGBT não surgiu durante a ditadura; suas origens bases legais para controlar qualquer manifestação
lheres, associações e movimentos sociais feministas remontam a períodos muito anteriores da história pública de comportamento homoerótico ou homosso-
e pela imprensa alternativa. brasileira”2. Neste sentido, qualquer análise sobre cial. Com critérios abrangentes, a polícia e os juízes
como os gays, as lésbicas e as travestis enfrenta- podiam punir ações “inapropriadas” ou “indecentes”
Na Assembleia Constituinte (1987-1988), as mulhe- ram a homofobia e a transfobia no Estado do Rio de que não se conformassem com construções hetero-
res se mobilizaram e levaram suas reivindicações, Janeiro durante o regime militar e como o estado cêntricas. Outra medida para regular manifestações
tendo êxito em questões importantes, como o reco- de exceção afetava as suas vidas deve começar com públicas de homossexualidade era a de acusar pes-
nhecimento inédito, no artigo 5º da Constituição, da a compreensão de dois elementos principais: as for- soas de vadiagem. A polícia podia prender qualquer
igualdade entre homens e mulheres. Questões como mas de sociabilidade LGBT que tensionavam com pessoa que não tivesse como provar sua subsistên-
o enfrentamento da violência contra a mulher e a as normas hegemônicas de comportamentos sexu- cia ou domicílio certo, ou “prover a subsistência por
representatividade feminina no parlamento foram ais antes e durante a ditadura e os mecanismos meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamen-
debatidos e tiveram avanços, embora até hoje a desi- ideológicos e físicos do Estado, da igreja e da mídia, te ofensiva da moral e dos bons costumes5.”
gualdade de gênero, o machismo e a misoginia ainda que promoveram a repressão das sexualidades e
sejam uma triste realidade. Sua superação só virá das manifestações de gênero que não corresponde- Essas duas medidas legais deram à polícia o poder
com o avanço da cidadania e da democracia. Cabe ram às noções heteronormativas. de encarcerar arbitrariamente os homossexuais
a Justiça de Transição adotar uma perspectiva que masculinos que expressassem publicamente sua
privilegie essa lente de análise, necessária para fa- A repressão à homossexualidade tem uma longa feminilidade, usassem roupas ou maquiagem femi-
zer da memória, da verdade e da justiça substanti- história no Rio de Janeiro. Embora as leis coloniais nina, ganhassem a vida através de prostituição, ou
vos verdadeiramente femininos, que engrandeçam brasileiras considerassem sodomia um pecado, que que usassem um cantinho escuro de uma praça pú-
a lembrança daquelas que morreram na luta, como podia ser punido pelas chamas da fogueira, o Códi- blica para um encontro sexual noturno.
Inês Etienne Romeu, Maria Auxiliadora Lara Bar- go Penal Imperial de 1830 eliminou todas as refe-
cellos e Zuleika Angel Jones (Zuzu Angel). As mulheres que se vestiam com roupa masculina
1. Este texto foi escrito por James N. Green e Renan Quinalha, em colabo-
ração com a CEV-Rio. A opção pelo uso da palavra “homossexualidades” no
ou que tiveram um comportamento mais viril no pú-
plural e não pela sigla mais contemporânea LGBT (lésbicas, gays, bissexu- blico também sofreram controle social dos agentes
ais, travestis e transexuais) justifica-se porque, à época retratada, o termo
“homossexualidades” era o mais utilizado para referir-se tanto a orientações do Estado. Códigos criminais com noções de moral
sexuais quanto identidades de gênero dissidentes. Por essa razão, considera-
mos que seria anacrônico, ainda que mais correto do ponto de vista acadêmi-
co e político, utilizar uma sigla não aplicável àquela época. 3. PIERANGELLI, José Henrique. (Ed.) Códigos penais do Brasil: evolução
2. GREEN, James N. Green e QUINALHA, Renan. “Ditadura e homossexu- histórica. Barru, Jalovi, 1980, p. 26.
alidades”.In: Relatório/Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. 4. Idem p. 301.
Volume II.p. 300-3011. 5. Idem, p. 316.

148 149
e decência pública vagamente definidas, e provisões homens e mulheres de brincar com as apresentações uma vida mais feliz na capital federal9. gio, Irajá, São Cristóvão, Praça Mauá, Praça Onze).
que controlavam estritamente a vadiagem, fornece- distintas de gênero e sexualidade dentro das mul-
ram uma rede jurídica pronta para capturar aqueles tidões nas ruas no centro da cidade, aproveitando O Rio de Janeiro continuava sendo uma cidade im- Com efeito, nesse período, pequenos grupos de jo-
que transgredissem as normas sexuais construídas a permissividade da festa para fazer qualquer “lou- portante política e culturalmente, mesmo depois vens gays se juntaram em redes sociais de amigos
socialmente. Embora a homossexualidade em si não cura” não permitida durante o resto do ano. Já nos da inauguração de Brasília em 1960, mantendo- para organizar festas nos seus apartamentos em Co-
fosse tecnicamente ilegal, a polícia brasileira e os anos 50, os bailes das “bonecas” e dos “enxutos” tor- -se como um polo de atração para quem buscava as pacabana (um bairro com uma concentração signifi-
tribunais dispunham de múltiplos mecanismos para naram-se espaços privilegiados para pular Carnaval oportunidades oferecidas por uma metrópole dinâ- cativa de gays e lésbicas), para frequentar a “Bolsa
conter e controlar este comportamento. com pessoas que mantiveram relações sexuais com mica e diversa. Para um jovem que sentia desejo por de Valores” com outros “entendidos”12 na praia em
outros do mesmo sexo. Estes bailes também serviam outra pessoa do mesmo sexo ou que não se adapta- frente ao Copacabana Palace Hotel ou para assistir
Sociabilidade LGBT no Rio de Janeiro como palcos protegidos para homens que se traves- va aos padrões de gênero associados ao seu corpo, a a um show de travestis na Praça Tiradentes. A vida
tiam de mulheres e romperam as divisões rígidas “Cidade Maravilhosa” servia como um refúgio. Era pública para as mulheres sempre foi muito mais
O Rio de Janeiro, a capital federal e a maior cidade entre o masculino e feminino que arregimentavam a uma destinação para pessoas expulsas das suas ca- constrangida, mas mesmo assim, grupos de amigas
do país até os anos 50 do século passado, possuía sociedade brasileira8. sas quando os pais descobriram a sua orientação se- conseguiram forjar formas de sociabilidades e iden-
espaços urbanos que favoreciam certa sociabilidade xual ou não concordaram com a sua apresentação de tidades lésbicas, que resistiram às marginalizações,
para comportamentos não normativos. Por exemplo, É importante notar que as reportagens sobre Carna- gênero. A metrópole do anonimato oferecia um abri- às pressões de casamento e à insistência de uma
logo depois da inauguração da estátua de Dom Pe- val nas revistas nacionais, como O Cruzeiro e Man- go para quem sofria com as fofocas dos vizinhos, as vida “normal”. A proliferação de espaços de sociabi-
dro I no centro da cidade em 1862 o parque que acer- chete, mencionavam as personagens efeminadas que piadas dos seus colegas ou o afastamento dos seus lidade entre gays ou lésbicas nos anos 60 coincidiu
cava o monumento equestre funcionava como lugar gozavam as liberdades de comportamento durante parentes por serem “diferentes”. Em 1960, o Rio de com a polarização política no país e o golpe de 1964.
de encontros entre “frescos”. O cronista carioca Luiz as folias no Rio de Janeiro, descrevendo as figuras Janeiro representava um espaço longe do controle
Edmundo lembra uma cena típica de 1901: “Depois fantasiadas com tons moralizantes e pejorativos. familiar, onde era possível viver relativamente livre Uma ditadura em defesa da “moral e dos
de oito horas da noite, moços de ares feminis, que Ironicamente, estes artigos com fotos supostamen- da desaprovação social entre desconhecidos numa bons costumes”
falam em falsete, mordem lencinhos de cambraia, e te chocantes serviam como meios de transmissões cidade com 4 milhões de habitantes10.
põem olhos acarneirados na figura varonil e guapa alternativos em todo o país com resultados não co- Os alvos principais dos generais que tomaram o po-
do Senhor D. Pedro I, em estátua”6. Francisco José gitados pelos jornalistas e editores que produziram Diversos eram os pontos que marcavam uma to- der em 1964, em aliança com empresários e políticos
Viveiros de Castro, professor de criminologia na Fa- estes materiais. Para alguns jovens que leram estas pografia na cidade de territórios de sociabilidade reacionários, setores das classes médias e a igreja
culdade de Direito do Rio de Janeiro e desembarga- revistas com atenção, o retrato deste mundo “estra- LGBT em diferentes momentos e que se tornaram católica conservadora, foram, no primeiro momen-
dor da Corte de Apelação do Distrito Federal, escre- nho” lhes oferecia as possibilidades de encontrar também, após o golpe de Estado, palco de persegui- to, o Partido Comunista, setores rebeldes nas bases
veu sobre os “frescos” do Rio de Janeiro, referindo-se uma vida mais livre na capital federal. Para quem ções: a Rua do Passeio, a Avenida Nossa Senhora de das forças armadas, sindicalistas e nacionalistas. Se
aos homens que, em 1880, nos últimos anos do Im- sofria preconceitos, seja nas cidades do interior ou Copacabana, o Edifício Avenida Central, a Praia do gays ou lésbicas foram presos e maltratados no Rio
pério, invadiram o baile de máscaras do carnaval no nas capitais dos outros estados, o sonho era de con- Flamengo e a Praia de Copacabana – Bolsa de Valo- de Janeiro em 1964, não foi por serem homossexu-
Teatro São Pedro, no Largo do Rossio, hoje em dia a seguir meios para fugir para o Rio de Janeiro. A in- res11. Além disso, diversos núcleos homossexuais fo- ais, senão por suas afiliações ou atuações políticas.
Praça Tiradentes7. tenção destes artigos foi de chocar as sensibilidades ram formados nos anos 50 e 60, com interação entre A preocupação dos generais e os seus aliados civis,
das classes médias católicas e conservadoras, mas si, na zona sul (Clube Sírio-Libanês, Clube Interna- neste momento inicial da ditadura, foi de apresen-
Na virada para o século XX, a expansão das folias de as reportagens também serviam como uma grande cional) e nas regiões do centro e do subúrbio (Colé- tar o golpe como uma medida para restaurar a de-
Carnaval oferecia cada vez mais possibilidades para propaganda, aliciando-os para as possibilidades de 9. FERNANDES, Hélio, Roteiro noturno (de Copacabana) para turistas des- mocracia. Estavam particularmente interessados
prevenidos. Manchete, n.24, 4 out. 1952, p.30.
6. EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo.Rio de Janeiro: Imprensa 10. GREEN, James N. “Novas palavras, novos espaços, novas identidades, em sustentar a sua legitimidade entre as classes
Nacional, 1938), v.1, p.151-2. 1945-1968.In Além do Carnaval: a homossexualidade no Brasil do século
7. VIVEIROS DE CASTRO, Francisco José, Attentados ao pudor: estudos so- 8. GREEN, James N. A apropriação homossexual de Carnaval. In: Além do XX.São Paulo: Editora da UNESP, 2000.
bre as aberrações do instincto sexual, 3a. edição.Rio de Janeiro: Libraria Edi- Carnaval: a homossexualidade no Brasil do século XX.São Paulo: Editora da 11. “Bolsa de Valores” era a expressão que os gays usavam para referir-se ao 12. A palavra “entendido” é uma expressão usada desde os anos 40 entre gays
tora Feitas Bastos, 1934. p.222. UNESP, 2000. pedaço da praia em frente ao hotel Copacabana Palace. e lésbicas.

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médias e o governo norte-americano, que apoiou o forma feminil sofriam agressões e prisões arbitrá- do contra o controle social do regime militar. Sendo sistência ao regime. Receoso, Agildo decidiu suspen-
golpe de 1964. Por isso, implementaram uma polí- rias15. Ainda não existe um estudo que documente um polo cultural importante, artistas e intelectuais der a publicação20.
tica de repressão dirigida aos setores mais visíveis com precisão o número de pessoas que foram detidas do Rio de Janeiro canalizavam estas novas ideias,
da oposição à ditadura militar. Porém, os discursos arbitrariamente, extorquidos para serem liberados que floresceram, especialmente nos anos setenta, De qualquer forma houve uma ligação entre esta
católicos e anti-comunistas, que justificavam o novo ou passaram vários dias na prisão sofrendo maus em vários experimentos literários alternativos (além sociabilidade homossexual e os movimentos contra
regime autoritário, se baseavam em ideias sobre a tratos e marginalização, mas vários presos políticos do jornal Pasquim, com as suas contradições sobre o a ditadura militar. Agildo Guimarães, por exemplo,
convergência entre marxismo, imoralidade e homos- relataram que estes homens efeminados foram obri- tratamento de homossexualidade)18 e no trabalho dos participou na Passeata de 100.000 em 1968. O jor-
sexualidade, embora o Partido Comunista e outros gados a limpar os prédios e servir comida nos espa- Dzi Croquettes, que revolucionaram o que foi permi- nalzinho publicou um artigo de sua autoria, intitula-
grupos da esquerda mantivessem, naquela época, ços prisionais, tarefas tradicionalmente associadas tido no palco e criaram novas maneiras de entender do “Protesto”, no seu último número, sobre uma cena
conceitos conservadores sobre a homossexualidade ao feminino, segundo o patriarcalismo vigente16. A o relacionamento entre o masculino e o feminino com imaginária: um grupo de gays e travestis resolvem
como um “comportamento burguês” e defendessem o documentação existente e as histórias orais de pes- suas ambiguidades sobre gênero e as suas afirmações protestar contra a repressão policial. A criação deste
argumento de que uma revolução socialista acabaria soas que viviam este período relatam um tratamen- da homossexualidade e da travestilidade19. evento fictício sinalizava a existência de ideias em-
com este “desvio sexual”. Para a direita, a homosse- to muito agressivo contra homens efeminados e mu- brionárias sobre a possibilidade de uma organização
xualidade ameaçava a segurança, a família católica lheres com comportamento masculino que visitavam No período da efervescência cultural, antes do Ato política de gays, lésbicas e travestis. Infelizmente,
e a moralidade13. Para as esquerdas, as pessoas que o centro da cidade e eram arrastados pela polícia em Institucional n. 5 (AI-5), surgiram manifestações de esses sentimentos foram abortados com a onda de re-
mantinham relações sexuais e afetivas com outras campanhas para “limpar” o espaço urbano. certa politização entre alguns gays e lésbicas que pressão após o dia 13 de dezembro de 196821.
pessoas do mesmo sexo ou que tinham comporta- apontavam a possibilidade da formação de um movi-
mentos de gênero que não correspondiam com os Mesmo com as ideias conservadoras que circulavam mento político. Um exemplo é o O Snob, um boletim O receio não era infundado. Como lembra Rita Colaço,
padrões sociais associadas com o seu sexo biológico entre a sociedade brasileira, e que foram catalisadas informal de amigos que publicava fofoca e notícias esse clima de medo termina por também levar à inter-
representavam a decadência do capitalismo14. e amplificadas pela ditadura, a crescente concentra- sobre uma rede de homossexuais, a maioria vindos rupção das atividades da Associação Brasileira da Im-
ção de gays, lésbicas e travestis no Rio de Janeiro, do Nordeste ou do interior do Rio de Janeiro, que prensa Gay (Abig), criada em 1969 no Rio de Janeiro,
As mesmas forças policiais e militares que a ditadu- com suas formas de sociabilidade, a expansão eco- chegaram na “cidade dourada” nos anos 60. O grupo por iniciativa de Anuar Farah junto com integrantes
ra militar empregou no Rio de Janeiro para repri- nômica a partir de 1967 e as várias transformações publicou 100 números do Snob, entre 1963 e 1969, de outros jornais, cujo objetivo era unir todos os veícu-
mir os seus opositores continuavam, após o golpe de culturais criaram novas maneiras de entender sexu- e o distribuia na Cinelândia e em Copacabana, os los de comunicação e as turmas respectivas22.
1964, a patrulhar da cidade do Rio de Janeiro para alidade, comportamento e gênero, especialmente en- lugares de maior circulação de gays e lésbicas no Rio
conservar a “moral e os bons costumes” nas praças tre os jovens. As influências do movimento Tropicália, de Janeiro. Logo depois do AI-5, pararam de editar As mudanças culturais no Rio de Janeiro nos anos
públicas e nas ruas no centro da cidade. As pessoas que rompia padrões tradicionais de comportamento o jornalzinho por causa de um incidente com a polí- 70, que acompanhavam o “milagre econômico”, jun-
que frequentavam a Cinelândia, que desde os anos masculino e feminino, e as referências de movimen- cia na Cinelândia e da preocupação em ser confun- to com as manifestações da contracultura no Brasil,
30 era um importante espaço de sociabilidade de tos internacionais da juventude introduziram novas dido com publicações “subversivas”. Segundo Agildo se deram paralelamente à expansão do número de
gays e lésbicas, enfrentavam um policiamento cons- maneiras de pensar o corpo e a sexualidade17. Este Guimarães, o editor d’O Snob, o acirramento da vio- boates, bares e discotecas no Rio de Janeiro, dirigi-
tante. Homens que usavam um pouco de maquia- processo correu paralelamente às contestações con- lência estatal também os atingira: passaram a ser dos principalmente para um público de gays e lés-
gem, calças apertadas, roupa masculina com cortes tra a ditadura em 1967 e 1968: os protestos contra interpelados (“agarrados”, segundo Agildo) quando bicas das classes médias e para os turistas estran-
femininos ou cabelo comprido e penteado de uma a censura, as críticas crescentes sobre a falta de li- distribuíam seus jornais e boletins, pois os agentes
berdades democráticas e um sentimento generaliza- da repressão julgavam que fossem panfletos da re- 20. COLAÇO, Rita. De Denner a Chrysóstomo, a repressão invisibilizada: as
13. Benjamin Cowan, Homossexualidade ideologia e “subversão” no regime homossexualidades na ditadura (1972 a 1983). In James N. Green e Renan
militar. In James N. Green e Renan Quinalha (orgs.),Ditadura e Homossexu- 18. James N. Green, “Madame Satan, the Black ‘Queen’ of Brazilian Bohe- Quinalha (orgs.), Ditadura e homossexualidades; repressão rsistência e a
alidades - Repressão, Resistência e A Busca da Verdade. São Carlos: Editora 15. Ver, por exemplo, “Ontem, no distrito da Gávea: quatorze presos mia.” In The Human Tradition in Modern Brazil, ed. Peter M. Beattie, 267-86. busca da verdade,.São Carlos; Editora da UFSCar, 2014, p. 207.
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14. GREEN, James N. Quem é o macho que quer me matar?”: Homossexuali- 16. GABEIRA, Fernando. O Crepúsculo do Macho. 3 a edição. Rio de Janeiro: 19. Rosemary Lobert, A palavra mágica: a vida cotidiana do Dzi Croquettes 22. COLAÇO, Rita. De Denner a Chrysóstomo, a repressão invisibilizada: as
dade masculina, masculinidade revolucionária e luta armada brasileira dos CODECRI, 1980. (Campinas: Editora da UNICAMP, 2010). Para outra importante referência homossexualidades na ditadura (1972 a 1983)”, em James N. Green e Renan
anos 1960 e 1970. In Revista Anistia Política e Justica de Transição no. 8 17. DUNN, Christopher. Brutality Garden: Tropicália and the Emergence of ver o documentário Dzi Croquettes. Direção de Tatiana Issa e Rafael Alvarez. Quinalha (orgs.), Ditadura e homossexualidades; repressão rsistência e a
(July/December 2012). Brasília: Ministério da Justica, p.58-93. a Brazilian Counterculture.Chapel Hill: University of North Carolina, 2001. 2009. busca da verdade. São Carlos; Editora da UFSCar, 2014., p. 207.

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geiros. Os bailes de Carnaval e as folias nas ruas do A proibição do desfile de fantasias masculinas no atitudes negativas promovidas ao longo dos anos
Rio continuavam como momentos privilegiados de Baile do Teatro Municipal está estritamente liga- pelos discursos médico-legais, a igreja católica e in-
expressão dos comportamentos socialmente repri- da à mesma política que afastou os homossexuais telectuais conservadores.
midos durante o resto do ano. Enquanto a Banda de da televisão. É uma medida de pressão que vem de
Ipanema servia como um grito de liberdade para a altas esferas governamentais. Esse é um fato facil-
juventude que simpatizava com as esquerdas, esta mente apurável, com que todos concordam, mas que
coletividade pública, permitida pelo regime mili- nenhuma autoridade tem a coragem de assumir.
tar, também funcionava como um espaço libertário Ninguém, evidentemente, diz que cedeu à pressão25.
para gays e lésbicas. Da mesma forma, um pedaço
da praia em Ipanema passou a ser um importante Supostamente, ao filmar os concorrentes que eram
espaço de homossociabilidade, substituindo a “Bol- tidos como enxutos, a cobertura de TV do evento es-
sa de Valores” em Copacabana. Os lugares semi- taria promovendo a homossexualidade. Muitos me-
-públicos, como bares, bailes, boates e discotecas, e ses depois, o governo voltou atrás em sua decisão
as localidades públicas onde “entendidos” congrega- de proibir os bailes de travestis, mas não em sua
vam, aumentaram a visibilidade de gays e lésbicas. resolução de cancelar o concurso de fantasias patro-
Também ajudaram a forjar uma afirmação de uma cinado pelo governo no Teatro Municipal26. O dire-
identidade e uma sexualidade não normativas. Desfile da Banda de Ipanema no Carnaval de 1972 tor da Divisão de Censura e Entretenimento deixou
Crédito: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã
claro que o recuo da posição do governo em relação
BR_RJANRIO_PH_0_FOT_01357_005
Porém, correntes expressivas dentro das Forças Ar- aos bailes de travestis era para impedi-los de se
madas insistiram na preservação da moralidade Edgar Façanha, diretor da Divisão de Censura e En- espalharem pelos demais clubes carnavalescos da
católica e os “bons costumes”. Em 26 de janeiro de tretenimento Público, deixou clara a posição do go- cidade, dificultando seu controle por parte das au-
1970, o governo militar publicou um Decreto-Lei es- verno: “Os homossexuais não podem ser proibidos de toridades27. Tais proibições contribuíram para a ida
tabelecendo a censura prévia da imprensa. O artigo entrar nos bailes públicos, desde que se comportem de travestis ao exterior, pois tinham dificuldade em
primeiro do decreto estabelecia claramente as novas convenientemente”. Ele admitia que as novas restri- ganhar a vida no Brasil com a proibição de estarem
diretrizes: “Não serão toleradas as publicações e ex- ções sobre as festividades carnavalescas eram na ver- em espaços de espetáculos, segundo depoimento da
teriorizações contrárias à moral e aos bons costumes dade destinadas a acabar com os bailes de travestis: atriz e travesti Claudia Celeste28.
quaisquer que sejam os meios de comunicação”23. “O propósito policial é apenas o de não permitir os
Além da censura de peças, letras de músicas e ou- bailes exclusivos para travestis, seja qual for o nome Notícias sobre o movimento internacional de gays
tras expressões culturais que afirmaram a homosse- desses bailes ou o local para a sua realização24”. e lésbicas foram censuradas. O Globo e o Jornal do
xualidade, representantes do governo militar toma- Brasil pouco divulgaram sobre as novas formas po-
ram medidas para tentar eliminar a visibilidade da Também foram cancelados os luxuosos concursos de litizadas de pensar o sexo, o gênero e o corpo. As
Informação Confidencial do Ministério da Justiça afirma que o turismo
homossexualidade mesmo dentro do Carnaval. Em fantasias masculinas que tinham lugar no Teatro reportagens que saíram na grande imprensa repro- gay no Rio de Janeiro é obra do “Movimento Comunista Internacional”
1971, como resultado da política do novo governo que Municipal. Essa proibição estava diretamente liga- duziam, em geral, estereótipos que reforçavam as Crédito: Arquivo Nacional, SNI:
BR_AN_RIO_TT_0_MCP_PRO_1135
proibia explicitamente a participação de travestis da à restrição de outras manifestações públicas “im-
nos eventos carnavalescos, os organizadores das fes- próprias” de homossexualidade. Uma jornalista en- 25. Telex de Maria Helena, à revista Veja, 17 ago. 1972. Arquivos da Editora
Abril.
tas barravam muitos deles nas portas dos bailes. Ao viou um telex à revista Veja explicando a situação: 26. BAPTISTA, Tarlis e SEQUERRA, Thea. Carnaval: os cassados da passarela. Um informe compartilhado entre a DCDP, o Minis-
Manchete, n.1.089, 3 mar. 1973, p. 24-6.
explicar o banimento de travestis e de seus bailes, 27. “Façanha quer volta dos ‘Enxutos’”. Jornal do Brasil, 23 out. 1972, p. 13. tério da Justiça e a Polícia Federal acusava um cor-
24. “Travesti bem comportado poderá entrar nos bailes”. Comércio Mercantil, 28. CELESTE, Claudia. “Diva que incomoda”. In Revista Geni. Disponível em respondente da Associated Press no Brasil, chamado
23. Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970. 27/10/1971, p.3. http://revistageni.org/06/diva-que-incomoda-claudia-celeste/

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Stan Lehman, de promover o turismo gay no Rio de xualidade à pedofilia, empenhando-se pessoalmente Homossexual Brasileiro. Por melhores oportunidades e igual- sa foi ampla e extremamente simpática. A visita
Janeiro, supostamente a mando do Movimento Co- na condenação. Conseguiu a prisão preventiva de dade de condições. Viva 4 de julho! Alegria. Amor. Respeito32.” de Leyland catalisou o grupo de intelectuais que se
munista Internacional (MCI). Este jornalista havia Chrysóstomo por 180 dias, até que este foi conde- encontrou com ele. Eles decidiram formar uma coo-
afirmado que o Rio era uma “capital gay em forma- nado. Em segunda instância, após dois anos preso, O convite usava uma linguagem que lembrava o perativa editorial e publicar um jornal para que se-
ção”, o que causou um aumento da curiosidade e do acabou absolvido por ausência de provas, mas sua movimento estudantil, mas os slogans traziam um ria um veículo para a discussão sobre sexualidade,
“fluxo turístico gay rumo aos insuspeitados prazeres vida já estava destruída após tamanho constrangi- teor menor de confrontação. O tom do folheto veicu- discriminação racial, artes, ecologia e machismo. O
tropicais”. De acordo com a perspectiva do regime, mento, falecendo poucos meses depois31. lava tanto uma precaução como um desejo de criar editorial do primeiro número do Lampião da Esqui-
“não bastasse a campanha de difamação que o Bra- um movimento com base na igualdade e no respeito na, intitulado “Saindo do gueto”, dizia:
sil sofre no Exterior por ação do MCI (…) dentro do O nascente movimento homossexual na mútuo. No dia 4 de julho, enquanto os repórteres co-
próprio país, um estrangeiro, diretor de Agência de luta pela redemocratização briam o evento, oito camburões e setenta homens do “ Brasil, março de 1978. Ventos favoráveis sopram no rumo
Notícias estrangeiras, faz declarações desairosas ao Departamento Geral de Investigação Especial cer- de uma certa liberalização do quadro nacional em ano eleito-
valor moral do país e ainda prevê reportagens di- A abertura política prometida pelo Presidente Ge- caram o museu33. O encontro não ocorreu e o esfor- ral, a imprensa noticia promessa de Executivo menos rígido,
famatórias sobre o assunto sem qualquer ônus de neral Ernesto Geisel incentivou algumas pessoas a ço de mobilizar os homossexuais do Rio de Janeiro fala-se na criação de novos partidos, de anistia, uma inves-
responsabilidade”29. Incomodava, portanto, a publi- arriscar a tentativa de formar organizações políticas fracassou. A reação oficial à tentativa de organizar tigação das alternativas propostas faz até com que se fareje
cidade que poderia atrair mais homossexuais ao Rio de gays e lésbicas. Indivíduos recebiam informação um grupo ativista gay indicava que o governo ainda uma ‘abertura’ de discurso brasileiro. Mas um jornal homos-
de Janeiro e ao país. sobre o mundo afora e interessaram as ideias do via qualquer evento público, político ou semipolítico, sexual, para quê?34”
incipiente movimento LGBT na Europa, nos Esta- como potencialmente subversivo. Embora os homos-
Além da vigilância da censura, vale também desta- dos Unidos e na Argentina, ainda antes do golpe de sexuais pudessem se reunir, ainda que sob o olhar Os editores, em seguida, defenderiam a necessida-
car a intensificação da violência policial com batidas 1976. Um primeiro esforço foi exatamente em 1976, da vigilância, em discotecas nos sábados à noite, o de de romper com o isolamento do gueto no qual os
constantes em pontos de sociabilidade LGBT como, quando um ativista distribuiu convites, em alguns agrupamento num espaço público para reivindicar homossexuais brasileiros circulavam, bem como de
por exemplo, sob comando do delegado Deraldo Pa- pontos de encontro de homossexuais e para a im- igualdade, dignidade e respeito, constituía um de- derrubar os estereótipos sociais associados à homos-
dilha, figura bem retratada em um artigo publicado prensa, do encontro social da União do Homossexual safio ao regime. Nos primeiros dias da liberalização sexualidade. Aguinaldo Silva, o principal líder des-
no jornal Lampião da Esquina30. Brasileiro, que iria ocorrer em 4 de julho nos jardins política, atividades democráticas desse tipo ainda sa empreitada, explicava o plano para o novo jornal
do Museu de Arte Moderna, claramente relacionado eram solapadas antes mesmo que tivessem qual- como uma reação aos difíceis problemas enfrentados
Outro aspecto importante da repressão a pessoas ao calendário internacional da parada LGBT, reali- quer chance de sucesso. pelos homossexuais:
LGBT é a colaboração estreita do Ministério Público zado no final de junho, em New York. Parte do folhe-
e do sistema de justiça com os aparatos de controle. to dizia: Um ano mais tarde, a atmosfera política havia me- “ Mas há, ao mesmo tempo, uma maioria de homossexuais
Caso exemplar é o de Antônio Chrysóstomo, jornalis- lhorado significativamente. No fim de 1977, Wins-

que procura, navegando através da repressão, levar uma vida
ta que integrava o conselho editorial do Lampião e Dia do Homossexual. Na ocasião, além de nos confraterni- ton Leyland, editor da Gay Sunshine Press, de São não ‘anormal’, que não se pode levar uma vida normal numa
que conseguiu, em 1979, a guarda provisória de uma zarmos, teremos oportunidade de conhecer o perfil da luta em Francisco, veio ao Brasil para coletar material a fim sociedade semiapodrecida como a nossa. Mas, pelo menos,
menor de idade que vivia na rua junto de sua mãe que nos empenhamos pelos direitos do homossexual brasileiro de publicar uma antologia de literatura gay latino- tentando viver exatamente, como as outras pessoas — quer
perto da redação do jornal. Diante de uma denúncia, e por uma vida digna e respeitada. Vá e leve o seu caso. Se -americana. João Antônio Mascarenhas, seu anfi- dizer, ‘batalhando’ pura e simplesmente pelo dia a dia35.”
posteriormente retirada, de prática de maus tratos for poeta, leve a sua poesia. Se for músico (compositor) leve trião no Rio, aproveitou a visita de Leyland para
e abuso sexual feita por uma vizinha, o promotor de os seus trabalhos. Se for simpatizante, leve o seu sorriso e o organizar uma série de entrevistas com a imprensa, A publicação de Lampião da Esquina marca a conso-
justiça, ex-agente do DOPS, manifestou uma visão seu abraço para um amigo desacompanhado. Viva a União do nas quais ele falaria sobre o movimento interna- lidação de um movimento político no Brasil. Inspira-
claramente preconceituosa que associava homosse- 31. Uma análise detalhada deste caso pode ser encontrada em COLAÇO, Rita. cional pelos direitos gays. A cobertura da impren- dos nos outros setores que se mobilizaram contra a
De Denner a Chrysóstomo, a repressão invisibilizada: as homossexualidades
29. Arquivo Nacional, SNI: BR_AN_RIO_TT_0_MCP_PRO_1135. na ditadura (1972 a 1983). In: James N. Green e Renan Quinalha (orgs.), Di-
30. MOREIRA, Antônio Carlos. Deraldo Padilha: Perfil de um Delegado Exibi- tadura e homossexualidades; repressão rsistência e a busca da verdade,São 32. A jaula da bicha está aberta.Bagaço, 1976. 34. Saindo do Gueto. Lampião da Esquina, n.0, abr. 1978, p.2.
cionista. Lampião da Esquina, n. 26 julho de 1980, p. 19. Carlos; Editora da UFSCar, 2014, pp. 231 – 239. 33. Polícia acaba com Dia do Homossexual.. Última Hora, 5 jul. 1976, p. 6. 35. Idem, p. 2.

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ditadura - os estudantes, os operários, as mulheres um jornal cuja temática principal era a defesa da inovadora e abrangente que apontava a necessidade
e os negros - o jornal mensal serviu como catalisa- homossexualidade com um público-alvo de pessoas de relacionar a luta contra a opressão, exploração e
dor para a formação de grupos politizados que co- LGBT. Apesar de arquivada pelo juiz da Vara Fe- discriminação de homossexuais, mulheres e negros
meçaram um processo lento de articulação de várias deral da Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro com uma consciência ecológica e o apoio ao desen-
reivindicações contra a marginalização e discrimi- posteriormente, esta denúncia é sintomática como volvimento sustentável, temas que a esquerda bra-
nação das pessoas LGBT no Brasil. A formação em ameaça de silenciamento dirigida contra o principal sileira raramente sabia integrar nos seus discursos
maio de 1978 do grupo Núcleo de Ação pelos Direitos veículo de circulação mais ampla do movimento ho- políticos. A partir de 1987, quando começou a tra-
dos Homossexuais, que depois adotaria o nome “So- mossexual brasileiro da época. balhar com a Associação Brasileira Interdisciplinar
mos: Grupo de Afirmação Homossexual”, inspiraria de AIDS, e, depois, como fundador da organização
a fundação do Grupo Somos, no Rio de Janeiro, e, Do ponto de vista da ditadura, ficou evidente que PelaVida em 1989, ele promovia a ideia de que a so-
logo depois, o grupo Auê, duas agrupações pionei- as homossexualidades se encaixavam na noção das lidariedade era a melhor cura para a AIDS. Na épo-
ras no esforço de articular uma visão política para práticas “subversivas”, além de atentarem contra a ca, para alguns, parecia algo abstrato quando ain-
combater ideias e práticas discriminatórias contra moral que orientava as políticas públicas e afron- da não existiam tratamentos eficazes. Entretanto,
as pessoas LGBT. As primeiras atividades das novas tarem as motivações ideológicas do oficialato que esta concepção capturava a essência das campanhas
organizações combinavam um processo interno de estava no comado. Felizmente, os movimentos so- para defender as pessoas vivendo com HIV/AIDS e a
afirmação da homossexualidade e campanhas con- ciais, especialmente o movimento sindical, acumu- luta contra a discriminação37.
tra imagens negativas na imprensa36. laram forças para expandir e avançar o processo de
distensão, dificultando a implementação de várias O fim da ditadura nos anos 80 trouxe outros desafios
Para quem argumenta que não houve uma política medidas autoritárias e arbitrárias dos militares em para as pessoas que se mobilizaram pela democra-
de Estado contra a homossexualidade durante a di- silenciar setores em movimento. cia, mas fica evidente que a repressão política e po-
tadura, basta examinar as tentativas do regime mi- licial, que reinava nos piores anos do regime militar,
litar em fechar o jornal Lampião da Esquina, que, É necessário lembrar uma pessoa importante nas ocorreram justamente no período em que surgiu um
logo após o primeiro número, atingiu uma circula- campanhas para os plenos direitos das pessoas movimento internacional a favor das pessoas LGBT.
ção nacional de 10.000 exemplares e foi vendido nas LGBT nos anos 80 e durante os primeiros momen- A repressão do Estado ditatorial atrasou o floresci-
principais capitais do país. No meio do processo da tos na consolidação da democracia. Herbert Eustá- mento de um movimento organizado no Brasil, que
abertura, o governo iniciou uma tentativa de fechar quio de Carvalho, conhecido como Herbert Daniel, só poderia consolidar-se amplamente nos anos 90
os jornais “alternativos”, que canalizavam diferen- militava na esquerda clandestina durante os anos quando a democracia criava as condições para uma
tes dimensões da oposição à ditadura. Os editores 60, admitindo que o preço para poder entrar na es- expansão nacional do movimento LGBT e o seu en-
enfrentaram censura prévia, a proibição de núme- querda foi reprimir a sua homossexualidade. Líder gajamento em diversos processos para expandir a
ros específicos, cortes em acesso ao papel para ro- nacional da Vanguarda Popular Revolucionária, que cidadania no país.
dar a publicação, e, no caso de Lampião da Esqui- sequestrou os embaixadores alemão e suíço para
na, tentativa de enquadrar os jornalistas na lei da exigir a libertação de 110 presos políticos, ele ela-
imprensa por “atentados aos bons costumes”. Utili- borou uma crítica da homofobia das esquerdas no
zando este item da lei para intimidar os jornalistas, exílio e voltou ao Brasil em 1981 com um projeto
eles foram chamados para depor, fichados e amea- político audaz e avançado, que incluía a luta pela
çados com vários anos de prisão por ter publicado igualdade de gays, lésbicas, travestis e transexu-
ais. Candidato a deputado estadual pelo PT/PV em 37. GREEN, James N., Herbert Daniel: Política, homossexualidades e mas-
culinidades no Brasil nas últimas décadas do século XX. In.Masculinidades:
36. GREEN, James N. Mais Amor e Mais Tesão: A Construção de um Movimen- 1986, sua campanha eleitoral produzia propaganda teoria, crítica e artes,eds. José Gatti and Fernando Penteado, 131-149. São
to Brasileiro de Gays, Lésbicas e Travestis, Cadernos Pagu 15.2000,p.271-96. Paulo: Estação das Letras e Cores, 2011.

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Capítulo 12 - VOZES DESPERTADAS tre os motivos que a tornavam elementar e absolu- litar. O caso se deu no quartel do 4º Grupo de Canhões Armadas. Mesmo apelando da decisão, o processo
tamente necessária, este desafio de estabelecer uma 90 mm Antiaério, da Artilharia Antiaérea do Exército teve seguimento e seu desligamento concluiu-se
Neste capítulo, a Comissão da Verdade do Rio (CEV- ponte com os outros(…)”1. O trabalho da CEV-Rio brasileiro, em Barretos, Niterói (RJ). Em um gesto de em novembro de 1972, restando a Airton apenas
-Rio) apresenta as histórias de mulheres e homens consistiu, precisamente, em fortalecer essa ponte, e, compaixão, o ex-soldado recusou-se a obedecer ordens uma menção honrosa e uma carta de recomenda-
que a procuraram espontaneamente para narrar por meio da escuta oficial do Estado, despertar vozes superiores que o mandavam torturar uma pessoa de- ção para a Polícia Militar do estado do Rio de Ja-
a violência a que foram submetidos durante a di- silenciadas por tanto tempo. tida, o que não ficaria impune segundo a lógica autori- neiro. Ao candidatar-se a um emprego na Polícia
tadura de 1964. Inseridas no doloroso processo de tária de então: foi, contudo, recusado por ser semianalfabeto e pelo
constução da verdade, as narrativas dão voz àque- Airton Joil Araújo2 problema que havia adquirido na perna devido à
les que foram perseguidos, impedidos de exercer “ Dali a meia hora vieram um subtenente e um sargento e tortura sofrida no quartel. As violências sofridas e
suas profissões, presos e torturados, bem como aos Em 21 de maio de 2014, Airton Joil Araújo, militar falaram que eu era subversivo - o segundo sargento Oliveiros a expulsão das Forças Armadas geraram profundas
que foram privados de conviver com seus familiares aposentado de 62 anos de idade e residente de Nova e o subtenente Laudecir (…). Como é que eu poderia ser um sequelas psicológicas em Airton.
mortos ou desaparecidos pela repressão. Os relatos Friburgo (RJ), procurou a CEV-Rio sem marcar pre-

subversivo se eu vinha do interior, vinha da roça, não sabia
apresentam uma pequena fração do enorme grupo viamente. Foi recebido por assessores da Comissão nem escrever quase. Eu não tinha contato com essa gente. Só Eu fiquei com síndrome do pânico, não podia ver uma
de pessoas afetadas pelo terror de Estado e que per- e, sereno, iniciou seu depoimento de maneira objeti- que também eu não aceitava, eu não estava de acordo em tor- farda, não podia ver uma arma, então eu fui internado em
maneciam “anônimas” em nossa história oficial. Os va, apesar de estar relatando algo que manteve em turar ninguém para confessar as coisas que às vezes nem teria uma clínica psiquiátrica em Nova Friburgo [Sanatório Naval
depoentes transmitiram a necessidade de contar aos segredo nos últimos quarenta anos. sido cometida. Eles me botaram o capuz, me levaram em um de Friburgo]. (...) Tomava remédio muito forte, até hoje eu
outros o que havia acontecido em suas vidas, atri-

lugar chamado portão dos fundos, onde tem a linha do trem, tomo onze remédios, só que eu tinha que me virar, tinha que
buindo um valor pedagógico, político e reparatório Eu vinha do interior, de Nova Friburgo, e a minha inten- mas aí já não foi o subtenente e o sargento, foram duas pes- dar meu jeito de ganhar a minha vida. Com medo de ficar no
ao ato de testemunhar. ção era seguir no Exército o resto da minha vida. Porque a soas encapuzadas e fardadas. Me bateram bastante. Me deu estado do Rio, eu fui para São Paulo.”
vida na lavoura tinha muita dificuldade, meu pai tinha 13 uma hemorragia aqui no peito [direito], isso aqui cresceu e
As narrativas apresentadas evidenciam que, ape- filhos, e eu queria ficar no Exército. Até que no mês de maio ficou desse tamanho, cresceu uns dez centímetros, essa perna Airton foi novamente recusado na Polícia Militar,
sar de transcorridas décadas do fim da ditadura ou junho [de 1972] eu estava de serviço e um Sargento de Dia, aqui [esquerda] ficou com defeito e na cabeça até hoje sai o desta vez em São Paulo, em razão das sequelas da
militar, o silêncio, o incômodo e o medo dos atingi- chamado Sargento Oliveira, me mandou interrogar um preso ponto-de-linha que eles deram aqui [lado esquerdo com a pele tortura. Abandonando de vez o sonho de ser solda-
dos de contarem suas histórias de vida são marcas que estava lá encapuzado, só que o interrogatório do preso avermelhada]. Eles me bateram muito e viram que eu estava do do Exército, buscou emprego como motorista e,
ainda presentes no processo de transição brasilei- era feito através de tortura. Eu me recusei a fazer a tortura e a já para morrer, aí me trouxeram para a Policlínica Central apesar dos muitos obstáculos, seguiu nesta carrei-
ro. Na medida em que se abre uma porta para o interrogar a pessoa. “Eu não vou fazer isso porque eu sou ca- do Exército, porque deu uma hemorragia por dentro do peito, ra até se aposentar.
testemunho, percebe-se que a multiplicidade da

tólico e não vou fazer esse tipo de coisa”. “Você não vai fazer?”. o sangue queria sair e não podia. Me jogaram deitado, eu bati
violência foi tão variada quanto a quantidade dos “Não, eu prefiro que não, botem uma pessoa que tenha uma com isso na linha do trem, que foi a pancada mais forte, e me Fiquei em São Paulo durante um ano. Fui trabalhar de
sujeitos atingidos, assim como são múltiplas as es- estrutura melhor para fazer, uma estrutura psicológica até”. deram outro pontapé em cima, de coturno.” motorista de ônibus, teve uma empresa que eu trabalhei só
tratégias de superação da dor. E eles falaram: “então está bem, sai daí!” um dia, sabe... até hoje eu tenho síndrome do pânico. Quan-
Após ser levado para a Policlínica, Airton ainda do eu estou no meio de tumulto, de muitas pessoas, eu fico
O ato de narrar o trauma, de colocar em palavras Em seu trabalho, a Comissão reconheceu o sofrimento passou pelo Hospital Universitário Antônio Pedro apavorado. Aí eu trabalhei um dia e fui mandado embora
as experiências vividas no contexto de violações tão vivenciado por inúmeros militares duramente atingi- e pelo Hospital Central do Exército (HCE). No pe- da empresa de ônibus. Entrei em uma empresa de transpor-
profundas, busca superar a dificuldade de se trans- dos pelo golpe de 1964, ouvindo seus testemunhos. O ríodo em que esteve hospitalizado, ficou em coma e te. Fiquei três meses, eles descobriram que eu tinha problema
mir histórias até então inseridas no âmbito da vida depoimento de Airton Araújo revelou uma situação ex- passou por algumas cirurgias, até que foi enviado e também me demitiram. Até que com o tempo eu fui fazendo
privada dos indivíduos e situadas, muitas vezes, no trema e corajosa de resistência no interior do meio mi- de volta para o seu batalhão, onde passou mais al- tratamento (...) e fui recuperando. Voltei a trabalhar bem,
campo do indizível, do inenarrável, tamanha dor e 1. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma - A questão dos testemunhos guns dias na enfermaria. Ao retornar, Airton Araú- fui até motorista padrão de empresas grandes, só que de vez
violência sofridas: “A narrativa teria, portanto, den- de catástrofes históricas. In: Psi.Cli., Rio de Janeiro, 2008. Vol.20, N.1. p. 65-82. jo foi informado de que seria desligado das Forças em quando, se eu ficava muito nervoso, até com passageiro,
2. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Airton Joil Araújo para a CEV-Rio.

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Nacional dos Estudantes (UNE) de 1968, na cidade gem, soube que a ação havia terminado com prisões

eu ficava com vontade de jogar a carreta, o ônibus, tudo em
algum lugar onde... se parava num engarrafamento eu já de Ibiúna. Com apernas 19 anos, Camacho foi preso e mortes. Quando o cara levava choque ele dava um tipo de grito.
ficava muito nervoso. Ultimamente piorou muito, estou apo- junto com centenas de estudantes. De São Paulo, foi Quando levava porrada, o grito era outro A gente sabia. (...)
sentado por invalidez.” transferido para a Secretaria de Segurança de Nite- Depois de mais de seis meses na cidade, Camacho Eu tenho muitos companheiros que tem pânico [de falar das
rói e posteriomente encaminhado ao Hospital Antô- casou-se e montou uma granja para sobreviver. Uma torturas]. A tortura é tão violenta que não são só essas marcas
As mudanças não foram apenas de empregos, de nio Pedro, por estar fisicamente debilitado em razão semana depois do casamento foi acordado de madru- no corpo que ficam, é o trauma emocional, psicológico, que
funções e de sonhos. Ora pelas sequelas físicas, ora dos maus tratos e da falta de comida. gada com os militares à sua procura. Conseguiu fu- são as cicatrizes que carregamos. É nas vísceras mesmo! (...)
pelas psíquicas, Airton viu-se obrigado a mudar de gir pela janela e pegar um táxi para o município de Tortura é um inferno. Não acaba nunca.”
cidade muitas vezes. No município onde nasceu, Após ter alta no hospital, foi levado pela Marinha Muriaé (MG). Na volta, o carro foi cercado por agen-
Nova Friburgo, as empresas de ônibus já o tinham para a Fortaleza de Santa Cruz, onde ficou de 15 tes policiais. Preso e levado para uma prisão comum Um dos piores momentos que passou, segundo Ca-
como louco e não o contratavam. “Tudo o que eu pas- a 20 dias. Lá, conheceu o antropólogo Darcy Ribei- em Manhuaçu (MG), Camacho foi violentado por ou- macho, foi o dia em que “um tal de capitão Bandeira”
sei, a humilhação que eu passei, ser chamado de ma- ro, que o ajudou inclusive compartilhando comida. tros presos com o incentivo dos policiais presentes. o levou para a sala de tortura, onde se deparou com
luco, apanhar sem poder me defender do Exército Solto dias depois, foi preso novamente e obrigado a um companheiro nu e amarrado no pau-de-arara. O
porque na época da ditadura se eu fizesse alguma assinar um documento de renúncia ao DCE da UFF. No dia seguinte, transferido para Juiz de Fora (MG), capitão Bandeira propôs “Você vai acionar a mani-
reação eles me mandavam para o DOPS lá em São e em seguida levado para o Palácio Duque de Ca- vela para dar choque nesse filho da puta”. Camacho
Paulo, DOI-CODI na época do Newton Cruz”. Entre o final de 1968 e o começo de 1969, cansado xias, no Rio de Janeiro: “Me botaram um capuz, me cuspiu no rosto do militar. “Em reação, os agentes
das prisões e com medo do que poderia acontecer com jogaram dentro de um Opala e um oficial do Exér- despejaram óleo de uma garrafa, abriram minhas
Airton registrou seu depoimento para obter alguma ele e sua família, entrou na clandestinidade e se jun- cito falou para mim: ‘Você está indo para uma casa pernas e começaram a me rasgar aqui embaixo,
forma de reparação, principalmente a readmissão tou ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário respeitada, o DOI-CODI. Você não era estudante de como se fossem me castrar.” Encaminhado para o
no Exército. O ex-soldado ainda buscava o seu pron- (PCBR): “Cheguei à conclusão que não tinha mais sa- veterinária? Nós sabemos cuidar de cachorro, é a HCE, foi atendido por um enfermeiro que havia sido
tuário médico no Hospital Central do Exército, a fim ída: ou eu pegava em armas ou eu pegava em armas.” nossa especialidade’. Logo que chegou, levou socos e seu colega na UFF, que informou sua familia sobre o
de comprovar com documentos as informações apre- Atuou no grupo armado da organização e participou pontapés de soldados, do cabo Gil e do tenente Hu- local onde ele se encontrava. Depois da visita dos ad-
sentadas. A CEV-Rio registrou seu depoimento como de ações de expropriação de carros e de bancos: “Mas ghes. Foi sistematicamente torturado nos dias que vogados Modesto da Silveira e Augusto Süssekind,
um exemplo de resistência à ditadura e de coragem nesse tempo, de 1968 em diante, a porrada era muito se seguiram: foi enviado para a Vila Militar. Condenado à prisão
na defesa dos direitos humanos. violenta.Eles pegavam o cara e torturavam, tortura- perpétua, mais tarde absolvido, permaneceu preso
vam, torturavam até ele abrir o ponto de encontro “ Num determinado momento de terror, depois de muitas durante seis anos
Carlos Otávio Camacho França 3
com companheiros da organização”. porradas, já todo mijado e com fezes, senti que a nossa percep-
ção da dor parece ficar dormente, anestesiada. Passo a passo César Augusto Chaves Fernandes4
No dia 28 de outubro de 2013, Carlos Otávio Cama- No final de 1969, depois de muitas prisões, Cama- vamos entrando num transe em câmera lenta, abandonando
cho França chegou à sede da Comissão da Verdade cho foi levado a Salvador para participar da ação de os sentidos do corpo. Chega o cheiro ácido da morte.” César Augusto chegou à sede da CEV-Rio em ja-
do Rio para dar o seu testemunho. Criado em Nite- expropriação de um banco. Após fazer o reconheci- neiro de 2014, acompanhado de seu filho. Embora
rói, começou sua militância política através do mo- mento da agência bancária, avaliou que a ação não Um dia, testemunhou a morte de um companheiro já tivesse procurado informações a seu respeito no
vimento estudantil na Faculdade de Veterinária da tinha qualquer chance de êxito. Decidiu abandonar de cela, um gaúcho militante do VAR-Palmares, cujo Arquivo Nacional e no Arquivo Público do Estado
Universidade Federal Fluminense (UFF). A partir o grupo durante a madrugada, por divergências nome não ficou sabendo. “Quando ele foi levado pe- do Rio de Janeiro (APERJ), essa foi a primeira vez
de seu envolvimento com o Diretório Central dos Es- estratégicas. Sem dinheiro, vendeu um relógio, he- los soldados da PE, conseguiu dizer que ia morrer: que falou sobre o assunto desde que saiu da pri-
tudantes (DCE), participou do Congresso da União rança de família, para comprar uma passagem de ‘Eles vão me matar, Carlos!’. Em decorrência das são. No início do testemunho, César afirmou que
ônibus para Caratinga, em Minas Gerais, pois sabia torturas que sofreu, Camacho perdeu parte da au-
3. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Carlos Otávio Camacho França para a que sua namorada tinha família lá. Durante a via- dição e ficou com cicatrizes no corpo: 4. Acervo CEV-Rio. Testemunho de César Augusto Chaves Fernandes para a
CEV-Rio CEV-Rio.

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nunca se arrependeu da escolha, feita no passado, sabiam de sua militância: “Quando eu subi em casa Após três dias no DOI-CODI, foi informado que se- agendar o seu depoimento à CEV-Rio, que ocorreu no
de resistir às imposições e violências da ditadu- pra pegar minha roupa os caras entraram junto”. ria transferido, sem saber para onde: dia 04 de abril de 2014. Muito emocionada, Thereza
ra. Durante uma hora, com a voz calma relatou iniciou seu relato fazendo um apelo: “Nós queremos
como ele e sua companheira foram submetidos a Ali mesmo recebeu chutes e socos no rosto. Sua “ Nesse caminho eles fizeram a simulação de fuzilamento co- que o caso de João Fortunato Vidigal seja reconside-
torturas e impedidos de estudar, de pensar, de se mulher, que o havia seguido, foi presa ao entrar no migo. Eu tava num carro com caçamba, aquelas viaturas que rado e colocado em pauta para que as circunstâncias
manifestar e de trabalhar. apartamento: tinham antigamente, tipo Veraneio. Só que não era da polícia. de sua morte sejam definitivamente esclarecidas”.


E eles me pararam e me encostaram num barranco e “agora
César iniciou sua vida política em 1967, com de- Saímos com duas pessoas apontando armas pra gente, uma você vai morrer filho da puta comunista” e atiraram, deram João Fortunato Vidigal nasceu em Mariana em 1943
zoito anos. A princípio não ingressou em nenhu- metralhadora e um revólver, e a vizinha do lado uma senhora tiro, mas era bala de festim.” e passou a maior parte de sua vida em Belo Horizon-
ma organização política, mas participou de greves disse: ‘São comunistas porque eles passam a noite inteira escre- te. Era filho do ferroviário Anibal de Castro Vidigal e
no Colégio Pedro II da Tijuca, mantendo contato vendo! Aí tem uma gráfica!’. Na verdade eu era tradutor e eu Terminada a cruel simulação, seguiram viagem. De de Mariana Elias Martins. Em 1963, iniciou o curso
com integrantes da Juventude Estudantil Católica passava a noite na máquina de escrever, mas trabalhando.” lá, César acredita ter sido levado para a Vila Militar, de Psicologia na Universidade Federal de Minas Ge-
(JEC): “A igreja que tinha na Tijuca, no final da onde ficou cerca de dois dias sem comida. Ainda na rais (UFMG). Dois anos depois casou-se com Thereza.
São Francisco Xavier, cedia o espaço para a JEC, César e Maria da Conceição seguiram em carros di- Vila Militar, foi para o Regimento de Cavalaria Me-
pros estudantes. Eu não era da Igreja, mas fazia ferentes. Ele no chão do banco de trás de uma Kombi canizada (RC MEC), onde esteve por cerca de vinte Em abril de 1966, após Thereza ser presa por agen-
essas organizações, planejava greves, esse movi- com uma arma encostada na cabeça durante todo o dias, acompanhado de outros militantes. Durante tes do DOPS e do CENIMAR em Minas Gerais e li-
mento todo, participação em passeata”. trajeto até o DOI-CODI. Maria da Conceição pas- todo o tempo em que esteve preso, César ainda era bertada por meio de habeas corpus impetrado pelo
sou pela Policia do Exército e depois foi levada para considerado desaparecido, pois não havia nenhuma advogado Sobral Pinto, ela e João vieram para o Rio
Posteriormente, se aproximou da União Metropolita- Penitenciária Talavera Bruce. César soube que sua informação oficial de sua prisão. No total, ele acre- de Janeiro, onde passaram a trabalhar no Banco da
na dos Estudantes Secundários (UMES), do Partido mulher passara por torturas sexuais, embora não ti- dita ter ficado um mês desaparecido. No início de Providência. Thereza foi contratada como professo-
Comunista Brasileiro (PCB) e da Aliança Libertado- vesse mais detalhes sobre o fato, pois o casal nunca 1974, foi a julgamento na 2ª Auditoria do Exército. ra nos cursos de Serviço Social da Pontifícia Univer-
ra Nacional (ALN). Em 1973, quando estudava na conseguiu conversar profundamente sobre o assunto. Sua defesa foi feita pelo advogado Oswaldo Mendon- sidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da
UFF, participou de um grupo de estudos com um pro- ça. Todos os integrantes da RAN foram absolvidos. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e
fessor da instituição que o convidou para ingressar Na mesma noite, ele passou pelo primeiro interro- Ele continuou sob vigilancia dos órgãos de repressão João continuou seus estudos de psicologia na UFRJ
na Resistência Armada Nacionalista (RAN). Aceitou gatório, nu, a cabeça encapuzada depois de ter o ca- até 1983. Até hoje César não obteve nenhum docu- e, posteriormente, no curso de Pedagogia da Univer-
o convite e ingressou na organização junto com sua belo raspado. Não se recorda quanto tempo durou mento oficial sobre sua prisão, apesar de ter passado sidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
companheira Maria da Conceição, já falecida. o interrogatório. Num momento, após novos socos e por três locais de tortura.
chutes, trouxeram uma militante, a quem César re- Em maio de 1968, a prisão de um amigo da Ação Popu-
“ Quando o professor foi preso a gente já tinha conheci- conheceu, mas negou saber seu nome. Foi arrastado Thereza Álvares Vidigal 5
lar (AP), que o casal hospedou durante uma semana,
mento que os pontos estavam caindo, que a coisa estava des- para a cela conhecida como “geladeira”: ocasionou a detenção de João e Thereza. Ela conta:
Em novembro de 2013, a CEV-Rio recebeu uma cor-
“ “
moronando. Eu fiz então uma procuração, minha mulher
também, e deixamos com um amigo. Nós tínhamos que ligar Você perde a noção do que é dia e do que é noite. (...) Eu respondência não identificada, vinda de Belo Hori- Fomos levados para o Segundo Batalhão de Infantaria
pra ele todo dia senão ele entraria com um habeas corpus fui pra geladeira. Devo ter passado ali uma noite completa. zonte (MG). Como não constava o contato do reme- Blindada no bairro de São Cristóvão e duramente inquiridos
com um advogado.” Eu fiquei nu escutando gravações de pessoas sendo torturadas tente, iniciou-se uma busca para tentar encontrar a pelo comandante, coronel Roberto Moura. Fui dispensada em
(...) era uma coisa, como com todos que passaram por isso, família que a escrevera. Foi possível localizar The- razão de uma hemorragia, mais tarde confirmada como um
Em meados de setembro de 1973, após semanas na horrível. Você fica lá naquela situação, não enxerga um pal- reza Álvares Vidigal, viúva de João Fortunato Vi- aborto. João permaneceu detido por mais dois meses. Depois
clandestinidade, passou em sua casa em Botafogo mo na frente do nariz, com muito frio e escutando gritos de digal. Um primeiro contato telefônico foi feito para de sua saída, passou a ter que se apresentar semanalmente no
para buscar roupas, junto com dois amigos que não pessoas torturadas.” mesmo batalhão, durante seis meses.”
5. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Thereza Álvares Vidigal para a CEV-Rio.

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Theresa relata que João foi preso preventivamente dia 29 de dezembro e a madrugada do dia 30 de dezembro de Nacional, Valéria pôde conhecer o nome verdadeiro: elemento ligado a grupos subversivos, já tendo estado
antes da promulgação do AI-5, em 13 de dezembro 1972? Qual foi a verdadeira causa mortis de João Fortunato Waldemar Valério, já que o nome que constava em no Chile entre os dias 1º e 5 de outubro de 1967”13 e
de 1968, e novamente preso, em janeiro de 1969, Vidigal? Nossa família tem o direito de saber o que aconteceu sua certidão de nascimento era o de seu avô, José outro Pedido de Busca do DOPS/GB que compila in-
sendo levado para o DOI-CODI, onde permaneceu com o João em seus últimos dias de vida.” Durval Valério. Foi a primeira vez que Valéria viu formações suas, datado de junho de 197214.
incomunicável até sair, muito ferido em decorrência uma foto do pai.
da tortura. Em dezembro de 1972, o casal e seus dois Após o depoimento de Thereza Álvares Vidigal, a CEV- Enquanto a CEV desenvolvia a pesquisa sobre o
filhos foram passar o natal em Belo Horizonte. João -Rio iniciou uma investigação e descobriu que Elias O material pesquisado discorria sobre a militância caso, Valéria tentou conseguir mais informações
precisou voltar ao Rio na noite de 26 de dezembro Freitas, já falecido, também assinou a necropsia de ou- política de Valério. Em abril 1967, o DOPS/GB re- junto à mãe e organizar um arquivo do que já tinha
para uma entrevista de emprego que aconteceria no tros militantes na época. Médicos legistas consultados lata uma “invasão” ao prédio da Casa do Estudante obtido. Marlene faleceu em fevereiro de 2015, convi-
dia 28. A família achou estranho não ter maiores pela Comissão afirmaram que as informações da cer- por 32 estudantes “chefiados por Valerius Valério, vendo com a angústia e o medo gerados por aquele
detalhes sobre a viagem. tidão de óbito não colaboravam para uma análise mais ex-universitário expulso da Faculdade de Filosofia”8 período.
profunda sobre o real motivo do falecimento. que tinha 28 anos. Por ter colocado este nome na
No dia 30, João foi encontrado morto pela domés- carteira da Casa de Estudante, em maio de 1967, o “ Naquela época, trinta anos atrás, era medo, medo mesmo
tica Manoelita Pontes, no apartamento onde mora- A equipe da CEV-Rio procurou militantes da Ação DOPS/GB solicitou a abertura de uma sindicância e acabou. E minha mãe deixava isso bem claro. A família ten-
va no Catumbi, Rio de Janeiro. A certidão de óbito, Popular (AP), mas nenhum conheceu João Fortuna- para apurar o uso do documento falso9. Em setem- tava ajudar, falava “Marlene você precisa de um psicólogo”,
assinada pelo médico legista Elias Freitas, apontou to Vidigal ou esteve no antigo prédio onde a família bro do mesmo ano foi detido por “pichamento com le- porque ela ficava trancada, literalmente dentro de casa comi-
como causa mortis pancreatite hemorrágica aguda. morava. Moradores não se lembravam do caso, que tras vermelhas com frases ofensivas ao Fundo Inter- go. Nós não saíamos pra lugar nenhum, eu não me lembro de
Algum tempo depois Thereza foi abordada por uma continua aberto a novas investigações. nacional Monetário10”. Valério ficou detido no DOPS/ passear com a minha mãe. (…) Ela tinha uma necessidade
vizinha, que relatou a visita de dois homens, depois GB e recebeu a visita de sua companheira grávida de controle total sobre a minha vida, mas ao mesmo tempo ela
do Natal, procurando pelo casal e dizendo que eram Valéria Matos Valério e Waldemar em outubro11. queria ser independente de qualquer ajuda. Qualquer pessoa
“subversivos”. Recentemente, a família descobriu Valério7 que viesse ajudar, ela se negava porque achava que ia entrar
que um mandado de prisão preventiva contra João No tocante à militância de Valério ligada ao Cala- muito na vida dela e ia descobrir esses medos e essas coisas.”
havia sido expedido em julho de 1972. Valéria Matos Valério esteve pela última vez com o bouço e à Casa do Estudante, foi possível conhecer
pai por volta de 1972, quando tinha três anos. Sabia o nome de algumas pessoas com quem ele teria se Em 1972, Marlene e a filha mudaram-se para sua
O caso de João Fortunato Vidigal foi indeferido pela dele apenas o pouco que a mãe, Marlene Matos, tinha relacionado. Uma delas foi Elinor Brito, com quem terra natal, Fortaleza (CE):
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos lhe contado: a habilidade musical no piano, as seis ou a CEV-Rio fez contato. Brito afirmou tê-lo conhecido
Políticos (CEMDP), sob a justificativa de que o mes- sete línguas que falava, o trabalho como tradutor, o no Calabouço, e o definiu como uma pessoa valente “ Nessa época minha mãe foi fugida, pegou um avião e foi
mo “faleceu em casa, em 1972, no Rio de Janeiro, temperamento difícil e o envolvimento com a política. e comprometida com as causa sociais. embora pro Ceará. E aí nunca mais minha mãe viu o meu
de pancreatite aguda hemorrágica”6. Diante disso, Marlene não gostava de falar sobre o assunto. Sofreu pai. Eu com uns três anos. Lá que ela sofre com a tortura que
Thereza desabafou: muito nesse período e carregou muitos traumas. Con- Em novembro de 1969, Valério prestou depoimento à sofreu no DOPS do Ceará. (…) Ela falou que uma vez ela ficou
tudo, as poucas informações apresentadas foram fun- Polícia Federal12 a respeito de uma viagem realizada

sentada numa cadeira com um cara falando com ela a mesma
É possível encontrar o Dr. Elias Freitas, médico legista do damentais para reconstituir o que ocorreu. em 1967 para Argentina e Chile. As últimas informa- coisa, repetindo as mesmas perguntas, até ver se ela ia falar. E
IML do Rio? João nunca manifestou sintoma de pancreatite ções encontradas são dois documentos do CISA. Um foram muitas vezes. Aí ela falou que pegaram uma outra mu-
aguda. Essa doença poderia, em poucos dias, se manifestar Valéria procurou a CEV-Rio no início de 2014 para Informativo de abril de 1971 que afirma que ele “é lher com uma criança e queimaram com um cigarro a perna
e levar um paciente à morte, sem que ele tivesse tempo para tentar descobrir mais informações sobre seu pai, do da criança e disseram que iam fazer a mesma coisa comigo.
8. APERJ, Fundo Polícias Políticas, Setor DOPS, Pasta 65, Dossiê 3, fl. 56 e 57.
pedir socorro? O que aconteceu com João entre a manhã do qual sequer sabia o nome verdadeiro. A partir de 9. APERJ, Fundo Polícias Políticas, Setor Estudantil, Pasta 10, fl. 2. Ela ia contando isso aos pouquinhos. Quando fizeram isso, na
10. APERJ, Fundo Polícias Políticas, Setor Secreto, Pasta 14, fl. 252.
6. BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direi-
documentos encontrados pela Comissão no Arquivo 11. APERJ, Fundo Polícias Políticas, Setor Estudantil, Pasta 17, fl. 52 e 54.
to à Memória e à Verdade. Secretaria Especial de Direitos Humanos: Brasília, 12. Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_Z4_DPN_PES_DEP_0002, p. 41 – 13. Arquivo Nacional, SNI: BR_AN_BSB_VAZ_037_0224, p. 1.
2007, p. 455.. 7. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Valéria Matos Valério para a CEV-Rio. 43. 14. APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: Secreto, Pasta: 105, fl. 275.

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Não escaparam da perseguição líderes políticos, mi-

última noite, de mostrar a criança, ela se desesperou. Porque Capítulo 13 - INVENTÁRIO DE CICATRIZES
eles queriam que ela escrevesse uma carta dizendo para o meu litantes experientes do PCB, dirigentes sindicais e Em 1943, na rua Lauriston, o quartel-general da Gestapo
pai que ele precisava dar guarida pra um primo dela. Que era Fala-se à boca miúda/ nos corredores do Cisa, muitos outros que se opuseram ao regime. em Paris, os franceses gritavam de agonia e dor e toda a Fran-
um agente, na verdade. Ela fez essa carta, próprio punho. E Cenimar e Doi/ que a Vanguarda Popoular ça podia ouvi-los... Apenas uma coisa parecia impossível em
eles enviaram pro meu pai. Depois disso minha mãe nunca Celestial/ como eles denominam o local que os Neste capítulo, a CEV- Rio apresenta doze casos quaisquer circunstâncias: que algum dia homens agindo em
mais viu meu pai. Como ela tinha rompantes, a gente não guerrilheiros vão depois de mortos/ está sediada marcantes de vítimas do terrorismo do Estado: Má- nosso nome fizessem outros gritar daquela forma2.”
sabe se ela realmente enviou ou se foi viagem da cabeça dela, em algum ponto da Restinga de Marambaia/ É rio Alves, José Roberto Spiegner, Jorge Leal Gon-
ela fugia comigo dos lugares dizendo que meu pai tava no lá que os corpos dos militantes presos são jogados çalves, Rubens Paiva, Marilena Villas Boas e Mário No Brasil, passado meio século de crimes da dita-
local. “Olha seu pai tá ali, vambora” e a gente entrava na casa à noite de helicóptero:/ descrevem uma parábola Prata, Stuart e sua mãe Zuzu Angel; Raul Amaro dura, ainda não se ouviu este brado de indignação.
das pessoas... Eu me lembro claramente da mamãe batendo no ar/ abrem uma fenda branca na espuma/se Nin Ferreira, Honestino Guimarães, Fernando San- As investigações realizadas pela CEV-Rio trouxe-
na casa das pessoas do prédio. A gente entrava e ficava lá... aprofundam e adormecem/sem vingança possível.1 ta Cruz e Eduardo Collier. ram fatos novos que ajudam a esclarecer as circuns-
Então, a minha mãe realmente sofreu tortura e depois ficou (Cemitério de Desaparecidos, Alex Polari de tâncias e autoria desses crimes. Em alguns casos,
com sequelas.” Alvarenga) Parte de uma geração, que sonhava com um país com valendo-se de informações contidas no Relatório
liberdade e menos desigualdade social, foi esmagada. Final da Comissão Nacional da Verdade, na publi-
O objetivo dos agentes ao fazê-la assinar a carta era Iniciada com o golpe de 1964, a ditadura civil-mili- cação Direito à Verdade e à Memória da Comissão
criar um encontro com Valério para prendê-lo. Após tar deu início a um dos períodos mais violentos na Nove dos que integram essa relação encontram-se Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e
esse episódio, elas voltaram para o Rio. O terror história brasileira. Camuflada ou ostensiva, a vio- desaparecidos até hoje, agravante que revela um nos relatórios produzidos por familiares de mortos e
vivido e o medo de ter sido responsável pela morte lência sempre esteve presente na história do Bra- grau de torpeza da repressão. A ditadura prendeu, desaparecidos; em outros avançando em relação ao
do ex-companheiro afetaram para sempre a vida de sil, sobretudo dos mais fortes e poderosos contra os sequestrou, torturou, matou e fez desaparecer os que ali está descrito. A história, contudo, não termi-
Marlene e, por consequência, a de Valéria. Em me- pobres e oprimidos. Mas a ditadura de 64 instaurou corpos destes cidadãos. Imóveis de propriedade do na aqui. O pleno conhecimento da verdade exige que
nos de dez anos elas moraram em dezenove bairros um período de terror, ferindo princípios básicos da Estado foram utilizados para a prática criminosa, a apuração continue até que o Estado preste contas
diferentes e Valéria frequentou quinze escolas. O civilização. Em seu rastro, deixou crimes contra a muitos deles situados em centros urbanos, como é o dos crimes que cometeu, e a verdade histórica seja
sentimento de estar sendo perseguida e a necessi- humanidade, considerados imprescritíveis pela le- caso do quartel da Polícia do Exército, na rua Barão completamente revelada.
dade de fugir de algo acompanharam as duas por gislação internacional de Direitos Humanos. Cida- de Mesquita, na Tijuca, Rio de Janeiro, que sediou
décadas, mesmo quando Valéria se tornou adulta. dãos brasileiros que se opuseram ao seu arbítrio o DOI-CODI.
Embora não tenha sido possível precisar exatamen- foram classificados de subversivos, terroristas e
te o que aconteceu com Waldemar Valério, foi possí- inimigos da pátria, num processo autodeclarado de Num ensaio escrito em meio ao espanto e à indigna-
vel descobrir um pouco mais de seu passado, propor- guerra psicólogica adversa. ção provocados pela revelação dos porões da guerra
cionando algum alívio para Valéria. da Argélia, o filósofo Jean Paul Sartre advertiu que
A ditadura usou de seu poder incontrastável para le- “a tortura não é civil nem militar, nem tampouco es-
gitimar seus atos, praticados em nome da “ordem e pecificamente francesa, mas uma praga que infec-
da paz social”. Leis e decretos foram criados para dar ta toda nossa era”. Naquele momento, entre l957 e
aparato legal aos assassinatos e chacinas de oposito- 1958, os franceses tomaram conhecimento de que o
res. Centenas de jovens estudantes, que integravam Exército francês e as forças policiais da colônia em-
as organizações de luta armada, foram eliminados. pregaram sistematicamente a tortura no enfrenta-
1. Estes versos foram tirados do livro Inventário de Cicatrizes, de Alex Polari mento aos rebeldes argelinos. No ensaio, Sartre ex-
de Alverga, ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária, preso e tortu-
rado em 1971. Escrito quando ele ainda se encontrava preso, foi lançado em
teriorizou o seu horror:
1978, numa parceria da Editora Global com o Comitê Brasileiro de Anistia e 2. SARTRE, Jean-Paul. “Prefáce”. In: ALLEG, Henri. La Question. Paris: Édi-
é a inspiração para o título deste capítulo. tions de Minuit, 1958.

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MÁRIO ALVES Em 1957 foi eleito para o Comitê Central, e em 1968 da na noite do dia 16, logo soube tratar-se da prisão
rompeu com o Partido e optou pela luta armada. Ao de uma figura importante7. Durante toda a noite, ou-
Sequestrado por agentes militares do Estado ditatorial no dia 16 de lado de Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender e ou- viu o desenrolar do interrogatório, marcado por gri-
janeiro de 1970, o jornalista Mário Alves de Sousa Vieira foi levado tros membros dissidentes, fundou o Partido Comu- tos e muita pancadaria. Naquele momento, o prédio
para o Quartel do 1º Batalhão da PE, na Rua Barão de Mesquita, nista Brasileiro Revolucionário. do Pelotão de Investigações Criminais (PIC) estava
na Tijuca, onde funcionava o DOI-CODI. Tinha 46 anos. No início em obras para a montagem do DOI-CODI, a câmara
da noite deste dia, despediu-se de sua mulher Dilma e saiu de casa, Mário Alves foi o segundo preso político assassina- de tortura ainda não era à prova de som e as pare-
no bairro de Abolição, subúrbio do Rio, para ir a um ponto de encon- do no DOI-CODI, que acabara de ser instalado5. As des das celas não iam até o teto. Na cela contígua, os
tro com um companheiro de sua organização, o Partido Comunista ilegalidades que cercaram o sequestro, a prisão e o presos acompanharam a prolongada sessão de tor-
Brasileiro Revolucionário (PCBR). Não voltaria mais. Morreu na assassinato do jornalista começaram a ser levadas tura de Mário Alves8. Antônio Carlos reproduziu em
madrugada do dia seguinte após oito horas consecutivas de tortura. ao conhecimento das autoridades judiciárias do re- seu depoimento um diálogo do interrogatório:
Um cassetete de aço provocou a perfuração de seu intestino, cau- gime militar já em junho de 1970. Em depoimento à
sando hemorragia interna e morte1. 2ª Auditoria do Exército, no Rio de Janeiro, Salatiel “ Então, você é o Mário Alves de Souza Vieira?
Teixeira Rolins, membro da direção do PCBR, preso Disse o Mário: vocês já sabem.
Decorrido quase meio século de seu desaparecimento, provas coleta- dias antes de seu desaparecimento, afirmou ter pre- Você é o secretário geral do PCBR?
das por meio de relatos de testemunhas e investigações realizadas senciado sua morte em decorrência do brutal espan- Responde o Mário: vocês já sabem.
pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF), atestam camento que recebeu6. Disse um dos torturadores: vai querer dar uma de herói?
que ele foi retirado agonizante do DOI-CODI2. Testemunhas ouvi- A resposta do Mário foi um silêncio desafiador.”
das pelo MPF afirmaram terem reconhecido Mário Alves deitado, Outro preso que testemunhou a prisão e a tortura
em posição fetal, com equimoses em todo o corpo, numa cela do se- de Mário Alves foi o ex-vereador Antônio Carlos de Ainda segundo Antônio Carlos, na madrugada do
gundo andar do Pelotão de Investigações Criminais (PIC). Em sua Carvalho, o Tonico. Preso no dia 02 de janeiro, foi dia 17 de janeiro, ele foi chamado pelo cabo Gil para
última imagem vista por outros presos, Mário Alves estava sem o testemunha, ao lado de outros três ex-presos já fa- realizar uma faxina na cela ao lado, junto a Augusto
capuz e com esforço conseguiu pedir água. A cela onde foi torturado lecidos, Raimundo José de Barros Teixeira Mendes, Henrique Olivier e Manuel João da Silva, ligados ao
tinha fezes e sangue espalhados pelo chão. Retirado da cena do cri- José Carlos Brandão, ambos advogados, e Manoel PCBR. De lá, os três viram Mário deitado no chão,
me pelos próprios torturadores e carcereiros, todos identificados na João da Silva, dos últimos momentos de vida do ensanguentado e agonizante. Mais tarde, aparente-
denúncia, nunca mais foi visto3. jornalista. Graças aos depoimentos que prestaram mente ainda vivo, ele foi carregado por quatro ho-
à Comissão de Direitos Humanos e à Justiça Fede- mens e depois nunca mais foi visto.
Documentos localizados pela CEV-Rio no Arquivo Público do Estado ral, em 1982, foi possível reconstituir em detalhes o
do Rio de Janeiro (APERJ) demonstram que o jornalista nascido massacre do líder político que se negou a falar. Raimundo Teixeira Mendes, outro militante do
na Bahia e militante desde os 16 anos, sofria um constante moni- PCBR e que estava na mesma cela que Antônio Car-
toramento por parte dos órgãos de repressão, tornando-se um dos Disse Antônio Carlos que pela movimentação ocorri- los, no segundo andar do prédio do PIC, contou que
dirigentes políticos mais procurados pela ditadura4. Em 1945 in- subiu no beliche para observar o interrogatório por
gressou no Partido Comunista Brasileiro (PCB), na Bahia, e, nos 5. Antes dele, no final de 1969, morreu em consequência de torturas o mili-
tante Roberto Cietto, de 32 anos, do Movimento Armado Revolucionário. A
uma fresta de cerca de dez centímetros existente en-
anos seguintes, atuou no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. versão oficial, depois desmentida por laudos técnicos, falava em suicídio por tre a parede e o teto. Pôde ver Mário Alves dependu-
enforcamento. Ver SCHIMIDT, Criméia et. al. (org). Dossiê Ditadura: mortos
e desaparecidos políticos no Brasil (1964/1985)/Comissão de Familiares de rado no pau-de-arara, recebendo choques elétricos e
1. Denúncia Ministério Público Federal. Caso Mário Alves de Souza Vieira. Disponível em: http:// Mortos e Desaparecidos Políticos, IEVE – Instituto de Estudos sobre a violên-
www.prrj.mpf.mp.br/sala-de-imprensa/publicacoes/custos-legis/denuncia-2013-ditadura-mili- cia do Estado. 2ª ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 149-150 7. Denúncia Ministério Público Federal. Caso Mário Alves de Souza Vieira.
tar-2013-caso-mario-alves-antonio-cabral-e-luiz-lessa 6. SCHIMIDT, Criméia et. al. (org). Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos Disponível em: http://www.prrj.mpf.mp.br/sala-de-imprensa/publicacoes/
2. Idem políticos no Brasil (1964/1985)/Comissão de Familiares de Mortos e Desapa- custos-legis/denuncia-2013-ditadura-militar-2013-caso-mario-alves-anto-
3. Idem recidos Políticos, IEVE – Instituto de Estudos sobre a violência do Estado. 2ª nio-cabral-e-luiz-lessa
4. APERJ. Fundo Polícias Políticas do Estado do Rio de Janeiro. Setor Informações. Notação 102. ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 173-177 8. Idem

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submetido a afogamento. Como ele estava sem ca- em que entrou na cela de Mário Alves, por ele reconhecido, lá Além dos depoimentos, há como prova material de Conforme consta dos autos do procedimento de in-
puz e a sala iluminada, reconheceu-o de imediato. se encontravam o Tenente Magalhães, o Tenente Correia Lima sua prisão um documento do Centro de Informa- vestigação criminal, ficou apurado que os cinco de-
Diante de seu silêncio, os agentes gritavam que po- e Timotheo, além de um policial chamado Jair; que não teve ções de Segurança da Aeronáutica (CISA), de 19 de nunciados praticaram o crime de sequestro e tortura
deriam sumir com ele, pois não havia testemunhas oportunidade de falar com Mário Alves, que estava como se janeiro de 1971, localizado no Arquivo Nacional12. de Mário Alves, com a participação ativa dos já fale-
de sua prisão9. estivesse dormindo ou morto11.” A rubrica “militantes, aliados e simpatizantes das cidos coronel José Ney Fernandes Antunes, inspetor
organizações subversivas” dá uma pista do que se José Paulo Boneschi, capitão João Câmara Gomes
Pouco depois do café da manhã, entre 7h e 7:30h, Rai- Como resultado da ação, a União foi responsabiliza- trata: uma lista com os nomes de militantes, seus Carneiro, major Francisco Demiurgo Santos Car-
mundo presenciou, da porta de sua cela, Mário Alves da, em 21 de outubro de 1981, pelo sequestro, tortu- codinomes e suas organizações. Na página 143, doso e major Francisco Moacyr Meyer Fontenelle.
sendo retirado por três ou quatro agentes da câma- ra, morte e ocultação de cadáver do jornalista Mário aparece, na primeira coluna, o codinome pelo qual Entre outros, foram ouvidos, mas não denunciados,
ra de tortura. Destes, citou o tenente Correia Lima Alves de Souza Vieira. Esse foi o primeiro caso de Mário Alves, logo depois, seu nome completo e na o tenente Armando Avólio Filho e o capitão José Ri-
(Luiz Mário Correia Lima), o inspetor Luiz Timotheo reconhecimento da Justiça de prisão e morte de um coluna do meio, no campo “situação atual”, está a bamar Zamith, notórios torturadores do DOI-CODI.
de Lima e o tenente paraquedista Magalhães (José desaparecido político. indicação “morto”. A listagem serviu como fonte de
Magalhães Sousa). O mesmo cabo Gil disse depois informação para o Serviço Nacional de Informações Pelos depoimentos transcritos junto a documentos
que o preso havia sido levado para a enfermaria e (SNI), o Centro de Informações do Exército (CIE) e o que acompanharam a denúncia, Mário Alves foi
dali para o Hospital Central do Exército10. Centro de Informações da Marinha (Cenimar). torturado durante toda a noite em que foi detido
ilegalmente. As provas mostram que o eminente
O terceiro depoimento que confirma a prisão e a tor- No mesmo sentido, em outro documento produzido militante sofreu vários tipos de tortura, entre elas
tura de Mário Alves no quartel da Barão de Mes- pelo SNI e também encontrado no Arquivo Nacio- choques elétricos, pau de arara, afogamento, cadei-
quita foi do advogado José Carlos Brandão, que o nal13, consta uma listagem nominal de integrantes ra do dragão, com aplicação de socos e pontapés.
conhecia desde o tempo em que militaram juntos no do PCB. Datado de 11 de setembro de 1975, indica As sevícias ainda incluíram surras com mangueira
PCB, no ano de 1962. Em seu relato, assim como os as datas possíveis de morte de militantes, e, ao lado e cassetete de borracha. Ao final, ele foi empalado,
de Raimundo Mendes e o de Antônio Carlos, tam- do nome de Mário Alves, é apresentada a data de 15 com a introdução em seu ânus de um cassetete com
bém prestado perante a Juíza Tânia de Melo Bastos de janeiro de 1970 seguida da sigla “GB”, referente pregos na ponta.
Heine no início de 1981, nos autos da ação de res- ao então estado da Guanabara.
ponsabilidade civil movida pela esposa e pela filha Apesar de o MPF ter reunido provas testemunhais,
de Mário Alves, Brandão afirmou Frente às evidências levantadas, o Ministério Públi- com a coleta de depoimentos, prestados na Procu-
co Federal do Rio de Janeiro realizou investigação radoria da República no Rio de Janeiro, de Paulo
“ que na manhã do dia 17 de janeiro de 1970 foi retirado em 13 de maio de 2013, com substancial e compro- Sérgio Paranhos, Álvaro Machado Caldas, Colombo
de sua cela por um cabo e dois soldados e levado à cela onde vada denúncia contra o tenente Luiz Mário Valle Vieira de Sousa Jr., Fernando Palha Freire, René
estava Mário Alves, caído no chão ensanguentado, no 2º an- Correia Lima, inspetor Luiz Timótheo de Lima (já Louis de Carvalho, Sylvio Renan de Medeiros, Ma-
dar; que acredita que, por engano, soldados foram severa- falecido), capitão Roberto Augusto de Mattos Duque ria Dalva Leite de Castro de Bonet, José Carlos Tór-
mente repreendidos pelo tenente Magalhães na presença do Estrada, tenente Dulene Aleixo Garcez dos Reis e tima e Newton Leão Duarte, junto ao levantamento
depoente; que o depoente foi levado a uma outra sala onde major Valter da Costa Jacarandá14. de provas documentais, que possibilitaram a iden-
o Tenente Magalhães e o Tenente Correia Lima e um civil de tificação precisa dos sequestradores e torturadores,
Documento acerca de militantes políticos produzido pelo CISA e
nome Timotheo fizeram simulacro de interrogatório e, no fim, localizado pela CEV-Rio. O nome de Mário Alves aparece na terceira em 05 de junho de 2013, a ação foi rejeitada pelo
12. Arquivo Nacional. SNI: DI_ACE_25912_71_002
o admoestaram para que dissesse que nada vira; que na hora coluna, ao lado da inscrição “morto”
13. Idem. juiz federal Alexandre Libonati de Abreu, da 2ª Vara
Crédito: Arquivo Nacional, SNI: DI_ACE_25912_71_002
14. Denúncia Ministério Público Federal. Caso Mário Alves de Souza Viei-
ra. Disponível em: http://www.prrj.mpf.mp.br/sala-de-imprensa/publicacoes/
Criminal do Rio de Janeiro.
9. Idem custos-legis/denuncia-2013-ditadura-militar-2013-caso-mario-alves-anto-
10. Idem 11. Idem nio-cabral-e-luiz-lessa

172 173
A denúncia apresentada pelo MPF subsidiou a ati- Augusto de Mattos Duque Estrada e Dulene Aleixo todos do PCBR, junto a José Luis Sabóia e Newton O advogado José Carlos Tórtima, preso em 24 de
vidade da CEV-Rio, “Testemunho da Verdade – Caso Garcez dos Reis, convocados mediante intimação da Leão Duarte, apresentaram novas provas contra os fevereiro de 1970, declarou que “a morte de Mário
Mário Alves”, realizada no dia 14 de agosto de 2013, Polícia Federal, não se apresentaram pessoalmente, acusados. Em particular, deram detalhes de como a foi particularmente dolorosa para mim. Um mês
em conjunto com a Comissão Nacional da Verdade. fazendo-se representar pelo advogado Rodrigo Roca. passagem de Mário Alves pela Barão de Mesquita antes, tive uma longa conversa com ele em minha
Na ocasião, Lúcia Vieira Caldas, filha de Mário Al- marcou a tortura e a rotina carcerária de cada um. casa”. Ao descer da tribuna, depois de confirmar
ves, esteve frente a frente com um dos torturado- No evento, foram ouvidos sete ex-presos políticos os nomes dos agentes, Tórtima encarou o coronel
res de seu pai, o então major e atualmente coronel que estiveram no DOI-CODI no início dos anos 1970. Maria Dalva e Sylvio Renan lembraram que o suplí- aposentado Valter Jacarandá e lhe fez um apelo,
aposentado do Corpo de Bombeiros, Valter da Cos- Relataram as sessões de tortura que sofreram com cio de Mário Alves foi utilizado pelos algozes como que ficou sem resposta: Major Jacarandá, nunca é
ta Jacarandá, único dos quatro militares vivos de- a identificação dos agentes, entre os quais, todos os um instrumento de intimidação e terror durante tarde para o senhor se reconciliar com a sociedade
nunciados pelo MPF que atendeu a convocação. Os denunciados. José Carlos Tórtima, Maria Dalva Lei- seus interrogatórios, em que eram ameaçados de so- e rejeitar o seu passado. Faço-lhe um pedido: diga
três oficiais do Exército que chefiavam as equipes te de Castro de Bonet, Sylvio Renan de Medeiros, frerem as mesmas sevícias e terem o mesmo fim se onde estão os restos mortais do Mário Alves. A filha
de interrogatório, Luiz Mário Correia Lima, Roberto Álvaro Machado Caldas e Paulo Sérgio Paranhos, não falassem. Maria Dalva declarou: dele, (apontando para Lúcia Alves), tem o direito
de saber”. Mais uma vez, o silêncio.
“ Junto com outros oficiais militares, eles assumiram o cri-
me praticado ao me intimidarem a falar. No pau de arara, Os três oficiais militares faltosos foram novamente
toda ligada com fios de dar choque, uma voz cavernosa ao convocados pela CEV-Rio, sob pena de serem con-
fundo, que me pareceu uma gravação, mas poderia ser al- duzidos à força pela Polícia Federal. No dia 2 de
guém falando ao microfone, ameaçava fazer comigo o que já outubro de 2013, apresentaram-se no auditório da
haviam feito com o Mário Alves. E gritavam: ‘Adriana [seu OAB-RJ os tenentes coronéis Dulene Aleixo Garcez
codinome], não adianta tentar resistir, sua organização já e Luiz Mário Correia Lima, acompanhados pelo ad-
foi desmontada, o Apolônio [de Carvalho] está aqui, o Mário vogado Rodrigo Roca, portador de um atestado mé-
[Alves] tentou aguentar (...). Quer o mesmo tratamento, sua dico que justificava a ausência, pela segunda vez, do
puta?’. Estou reproduzindo o que falavam. Quarenta e três coronel reformado Roberto Augusto Duque Estrada.
anos da minha vida aguentando esse pesadelo15.”
Os depoimentos foram tomados separadamente, e,
O jornalista Álvaro Caldas, preso em fevereiro de frente às indagações acerca da tortura e morte de Má-
1970 reconheceu todos os denunciados como parti- rio Alves, todos repetiram como resposta um “nada a
cipantes de sua tortura. Disse que as mesmas equi- declarar”. O jornalista Álvaro Caldas, um dos inte-
pes chefiadas por oficiais do Exército se revezavam grantes da mesa, deu detalhes de sua prisão no DOI-
nas salas do PIC, lembrando-se do tenente Garcez e -CODI. Frente a Garcez, desafiou-o ao afirmar que se
do então major Valter Jacarandá, “que usava uma lembrava exatamente de suas feições, do momento em
reluzente bota preta de cano longo. Num dado mo- que entrou na sala roxa e ouviu dele a ordem para ti-
mento da sessão de tortura ele se afastou do grupo e rar a roupa e ficar nu, de sua ação descontrolada ao
passou a rodar a manivela do telefone de campanha lado dos tenentes Correia Lima, Da Silva, Armando
que disparava os choques elétricos”. Avólio Filho e do capitão José Ribamar Zamith. O mi-
litar abaixou a cabeça, agitou as mãos nervosamente,
Dos quatro militares convocados para prestarem depoimento na audiência sobre o caso Mário Alves, apenas o ex-major do Corpo de Bombeiros
Valter Jacarandá esteve presente; os ex-tenentes do Exército Luiz Mário Correia Lima, Roberto Duque Estrada e Dulene Garcez não compareceram e tornou a repetir “nada a declarar”.
ao ato na ALERJ 15. Acervo da CEV-Rio. Testemunho de Maria Dalva Bonet para a CEV-Rio.
Foto: Bruno Marins Testemunho da Verdade “Caso Mario Alves” realizado em 14/08/2013.

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Para comprovar a presença do tenente Garcez no JOSÉ ROBERTO SPIEGNER
quartel da Barão de Mesquita, Álvaro apresentou
um documento que guardou, datado de 29 de abril O estudante José Roberto Spiegner tinha 21 anos quando foi mor-
de 197016. Na condição de comandante do 1º Bata- to por agentes do DOPS, em mais um caso de execução apresenta-
lhão de Polícia do Exército, o tenente Dulene Alei- do pela repressão como morte decorrente de troca de tiros. Nascido
xo Garcez dos Reis deixou sua assinatura no auto em 30 de dezembro de 1948, Spiegner participou do Movimento
de busca e apreensão de um veículo de propriedade Estudantil ainda no ginásio, no Colégio Pedro II. Ao ingressar no
de Álvaro, que estava batido no pátio do quartel. O curso de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro
documento foi entregue a Garcez e a CEV-Rio inda- (UFRJ), José Roberto entrou para o Diretório Acadêmico. Tão logo
gou se a assinatura era dele. Diante do silêncio, foi foi decretado o AI-5, aderiu à Dissidência do Partido Comunista
solicitada sua carteira de identidade, que foi entre- Brasileiro (PCB) da Guanabara, mais tarde Movimento Revolucio-
gue pelo advogado. As assinaturas conferiam. Nem nário 8 de Outubro (MR-8). A partir deste momento passou a atuar
assim o tenente-coronel, homem ativo e violento na na clandestinidade.
sessão de tortura, teve a coragem de assumir. Com
um tom de voz trêmulo e incomodado, limitou-se a Em 17 de fevereiro de 1970, dia de seu assassinato, participou de
repetir seu mantra: “nada a declarar”. uma reunião da direção geral do MR-8, na Rua Montevidéu, na Pe-
nha, subúrbio do Rio de Janeiro, na casa em que morava com sua
Mesmo diante de todas as evidências, de provas do- companheira, Vera Sílvia Magalhães. Estavam presentes Cid Quei-
cumentais e testemunhais existentes, o Estado bra- roz Benjamin, Daniel Aarão Reis Filho e o próprio Spiegner. Uma
sileiro jamais reconheceu a prisão de Mário Alves. vizinha avisou à Vera Sílvia que caminhonetes do DOPS passaram
Sua mulher, Dilma Borges Vieira, já falecida, esteve pelo local na tarde daquele dia, em atitude de observação do aparta-
em todos os lugares onde pudesse buscar notícias e mento. Cientes dos riscos, os presentes decidiram suspender a reu-
denunciar o desaparecimento do marido – na Mari- nião. Deixaram o local aos poucos. Spiegner e Vera foram os últimos
nha, Aeronáutica, no Instituto Médico Legal (IML) e a sair. Na rua, os agentes da repressão chegaram a encontrá-los,
cemitérios. No DOI-CODI, o coronel Ney Fernandes travando um tiroteio, do qual José Roberto saiu ferido. Em relato
Antunes, então comandante do CODI/RJ, chegou a para a CEV-Rio, Cid Benjamin, ex-militante do MR-8, conta que
lhe dizer cinicamente que também ele buscava Má- Spiegner conseguiu fugir de forma impressionante:
rio Alves17. Marcados pelo drama vivido pela famí-
lia, sua filha Lúcia Vieira Caldas e o neto Léo Viei- “ Cada um conseguiu entrar num táxi, não se sabe como. Spiegner foi para a
ra Caldas, que se tornou um militante da luta pela Rua Taylor, na Lapa, para a casa de outro companheiro, José Ruivo. No entanto,
Memória, Verdade e Justiça e prestou depoimento depois de deixá-lo no local, o taxista o denunciou à polícia. O apartamento foi
Auto de apreensão do veículo de Álvaro Caldas, fusca vinho apelidado
na audiência pública da CEV-Rio sobre os Efeitos de “Gigante da Colina”, comprovando a presença do tenente Garcez no cercado, mas Zé Roberto escapou de novo. Por fim, foi encurralado em outro
Transgeracionais da Violência de Estado18, continu- quartel da Barão de Mesquita prédio, na Rua Joaquim Silva1.”
Crédito: Acervo pessoal
am até hoje à procura de seus restos mortais.
O cerco ao apartamento de Ruivo na Rua Taylor e a fuga de Spiegner
16. Acervo CEV-Rio. Auto de Apreensão do veiculo de Álvaro Caldas.
17. SCHIMIDT, Criméia et. al. (org). Dossiê Ditadura: mortos e desapare- para a Rua Joaquim Silva também foram relatados no registro de
cidos políticos no Brasil (1964/1985)/Comissão de Familiares de Mortos e
Desaparecidos Políticos, IEVE – Instituto de Estudos sobre a violência do
Estado. 2ª ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 173-177. 1. Acervo CEV-Rio. Relato escrito de Cid Benjamin sobre o caso de José Roberto Spiegner para a
18. Evento realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro em 05/12/2014. CEV-Rio.

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ocorrência do DOPS, localizado pela CEV-Rio no Ar- Roberto foi algemado”4. A partir do auto de exame família no Cemitério Comunal Israelita de Vila Ro- um fusca com dois homens – seja na porta do supermercado,
quivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). cadavérico anexado ao processo da CEMDP5, a Co- sali. Seu caso é emblemático da dinâmica de atua- cabeleireiro ou andando na rua. Afastei-me de amigos para
No documento consta a versão de que, encurralado missão Nacional da Verdade (CNV), também cons- ção dos órgãos de repressão da ditadura, que simu- não envolvê-los e, temerosa, nada falava sobre o assunto, pois
pelos agentes no número 57, entrada 5, quarto 8 da tatou que “os dedos de José Roberto estavam sujos lavam tiroteios para justificar a morte de militantes não sabia quem eram as pessoas que estavam ao meu lado.
Rua Joaquim Silva, José Roberto teria se escondido de tinta usada para tomar impressão digital, o que que, na verdade, eram sumariamente executados. O O dia temido chegou – 17 de fevereiro de 1970. A família ficou
debaixo da cama e, em seguida, atirado contra os po- indica que possivelmente foi preso e identificado procedimento ainda hoje é amplamente utilizado pe- sem chão, desesperada e revoltada. Não há consolo, até hoje
liciais. Em tom fantasioso, o registro relata que por horas antes da sua execução”6. las forças de segurança do Estado. é uma ferida que tenta cicatrizar e sangra vez por outra. Re-
pouco Spiegner não obteve “êxito na sua sanha as- volta, raiva e impotência eram os sentimentos que nos envol-
sassina”. Segundo essa versão, “os policiais respon- A partir do registro de ocorrências do DOPS, foi A irmã de José Roberto, Marilene Spiegner conta viam. Passamos a vida vasculhando o passado em busca de
deram com igual dose, até que conseguiram acertar possível identificar os agentes que participaram que após a morte do irmão foi ameaçada por agentes explicações e dos momentos em que poderíamos ter evitado a
mortalmente o elemento subversivo, cessando, as- das ações que levaram à execução de José Roberto do Exército caso se manifestasse sobre o caso. Em tragédia e, por algum motivo, falhamos.
sim, a busca da prisão”2. Spiegner. O estouro do aparelho da Rua Montevi- depoimento à CEV-Rio, relatou a dor da perda de Agradeço aos esforços da Comissão da Verdade de trazer à
deo foi levado a cabo por uma turma chefiada pelo um ente querido: tona o que realmente ocorreu nos porões sórdidos da ditadura
Spiegner teve seu caso analisado e deferido pela Co- detetive Antero Alves de Lima da Seção de Buscas

militar e que nos foi escondido. Agradeço o esforço de todos
missão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Po- Ostensivas (SBO) do DOPS, composta pelos agentes Hoje, através de fotos, provas periciais e testemunhais, aqueles que, mesmo após tanto tempo, tentam resgatar a me-
líticos (CEMDP), que estranhou a “demora de sete Smith Basilio dos Santos, Theobaldo Lisboa, Mano- constato que vivemos, durante 44 anos, as mentiras que nos mória, os fatos e o nome de nossos entes queridos10.”
horas entre o horário da morte e a entrada no IML”. el Ribeiro de Almeida, Marcílio Pereira Passos, Hé- foram relatadas na época. As versões foram díspares: morreu
Segundo a Comissão, lio Moreira de Castro Lima, Alberto Rodrigues Lucio como herói, como uns diziam, ou como bandido em tiroteio
e pelos policiais Celio, Daniel e Alencar da Delegacia

com os agentes da ditadura. Nesta versão feriu um policial
A verdade dos fatos foi obtida do próprio laudo do IML, que de Vigilância da Zona Norte7. e, ao fugir, subiu no telhado de uma casa, jogando-se dentro
detalha os ferimentos no corpo. José Roberto recebeu vários dela e se escondendo debaixo da cama. Desde então, o consolo
tiros, sendo que dois deles contestam a versão oficial. Exami- Na ação da Rua Taylor, participaram os agentes do da família é que ele não havia sido torturado como muitos de
nando as fotos de perícia de local, verifica-se que o corpo fora DOPS Jorge José de Oliveira, Manoel Pereira Rosa, seus companheiros, e sim, recebeu tiros na cabeça e morreu
encontrado em uma sala com o piso acarpetado, onde não Sebastião José Felipe, José de Melo Tavares e Wal- na hora. A realidade cruel só chegou a nós agora.
havia espaço para que pudesse ter sido atingido, de longe, na dir da Silva8. Na Joaquim Silva, Spiegner foi en- Beto era um menino bonito, inteligente e sempre se distinguiu
coxa. O outro ferimento é sintomático de execução3.” curralado pelos agentes da SBO, Jair Gonçalves da dentre seus companheiros pela boa convivência e bom humor.
Mota, Nildo Fernandes de Oliveira, Hélio Moreira Sensível, com inteligência aguçada, desde novo interessou-se
É possível, portanto, que Spiegner tenha sido pre- da Costa Lima, Manoel Lima Lima e Francisco Ma- por história, filosofia, cinema, literatura... Nunca se confor-
so, torturado e posteriormente executado. Esta hi- chado Avila Filho, com ajuda do Guarda Civil Jorge mou com injustiça social e desigualdades. Como todo jovem,
pótese é reforçada pelo relator do caso na CEMDP, Rodrigues Janine9. acreditava sua geração era diferente e capaz de fazer mudan-
Nilmário Miranda, ao afirmar que “as escoriações ças sociais.
se localizam em regiões do corpo humano que con- O corpo de José Roberto Spiegner foi enterrado pela Ele tinha apenas 19 anos quando saiu de casa e caiu na clan-
figuram tortura em pau-de-arara. Há ainda esco- 4. Idem. destinidade. (...) O quarteirão do meu edifício em Botafogo
riações na região do punho, denotando que José 5. Arquivo Nacional, CEMDP: BR_DFANBSB_ AT0_0053_0003, pp. 18-20. sempre estava cercado. Meu telefone custava a dar linha e
6. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade.Relatório / Comissão Nacional da
Verdade.Brasília: CNV, 2014. Volume III. p. 398. eu escutava gracejos, conversas de homens. Na escola em que
7. APERJ, Fundo: Departamento de Ordem Política e Social do Estado da
2. APERJ, Fundo: Departamento de Ordem Política e Social do Estado da Guanabara, Série: Livro de Ocorrências, Registro 123, p 144, verso. trabalhava como professora, Colégio Estadual Pedro I (atual-
Guanabara, Série: Livro de Ocorrências, Registro: 123, p 150, verso. 8. APERJ, Fundo: Departamento de Ordem Política e Social do Estado da
3. BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direi- Guanabara, Série: Livro de Ocorrências, Registro 123, p 148. mente João Batista de Matos), havia sempre um “estagiário”
to à Memória e à Verdade. Secretaria Especial de Direitos Humanos: Brasília, 9. APERJ, Fundo: Departamento de Ordem Política e Social do Estado da para assistir minhas aulas. Sentia a constante presença de 10. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Marilene Spiegner para a CEV-Rio. Plená-
2007, p. 117. Guanabara, Série: Livro de Ocorrências, Registro 123, p 149 verso e 150. ria de Recomendações sobre Autos de Resistência, realizada em 31/10/2014.

178 179
JORGE LEAL GONÇALVES PEREIRA um ponto de encontro com “Hugo”, condinome de Margarida Portella Sollero e Cecília Coimbra, que
Jorge Leal, no dia 20 de outubro. Segundo seu rela- também se encontravam presas no PIC do quartel
O engenheiro Jorge Leal Gonçalves Pereira foi um dos principais diri- to, ele trazia no bolso da calça uma “cola” (inscrição da PE, em outubro de 1970, deram à CEV-Rio infor-
gentes da Ação Popular (AP). Preso aos 32 anos, no dia 20 de outubro em papel do horário e local do encontro), e não teve mações esclarecedoras sobre os dias subsequentes à
de 1970, no Rio de Janeiro, foi submetido a interrogatórios e tortura- tempo de desfazer-se desta anotação no momento prisão de Jorge Leal.
do enquanto esteve nas dependências do DOI-CODI do 1º Exército, de sua prisão por agentes do DOI-CODI. Em se-
na rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Não há uma indicação precisa guida, Jorge Leal foi cercado e aprisionado pelos Margarida foi presa e levada ao DOI-CODI no dia
do dia de sua morte, e não foram localizados registros oficiais sobre agentes militares5. 19 de outubro. Ficou no corredor das celas no andar
sua prisão e o destino dado ao seu corpo após seu assassinato. Somen- térreo durante os primeiros dias, sempre encapu-
te a partir de depoimentos de testemunhas que viram Jorge Leal nos Em depoimento prestado à Justiça Militar, Marco zada. No segundo dia, ela se lembra de ter reconhe-
corredores do DOI-CODI, com marcas de tortura no corpo, é que se Melo declarou ter sido submetido a acareação com cido a voz de Jorge dentro da sala roxa, equipada
tornou possível confirmar seu sequestro e morte. o militante que conhecia como Hugo6. Para a CEV- para tortura9. Ela não se recorda mais do dia em
-Rio, ele esclareceu que no interior do prédio do Pe- que foi levada para a cela coletiva das mulheres,
Baiano, Jorge Leal era pai de quatro filhos quando foi sequestrado. lotão de Investigações Criminais (PIC), foi levado ao no segundo andar. Acredita que tenha sido no dia
Sua primeira prisão foi em Salvador, logo depois do golpe de 1964, Aquário, uma sala que tinha uma parede de vidro 26 de outubro, quando Jorge ainda estaria vivo. No
que ocasionou também sua demissão da Refinaria de Mataripe, espelhado, para identificar um preso que apresenta- dia 29, Margarida também foi transferida para a
da Petrobrás1. Foi preso novamente em 1970, quando avançavam va marcas de tortura. Confirmou que a pessoa que Ilha das Flores.
os debates para a fusão da AP com o Partido Comunista do Brasil estava lá dentro era Hugo, que ele conhecia pelo
(PCdoB) 2. Jorge foi um dos responsáveis pela aproximação entre as nome de guerra. Depois deste encontro, que ocorreu No banco de dados do projeto Brasil Nunca Mais a
duas organizações, iniciada em 1968, segundo relatou Haroldo de provavelmente no dia 21 de outubro, nunca mais viu CEV-Rio localizou documentos em que Margarida
Lima, ex-dirigente do PCdoB na época, à CEV-Rio3. Jorge Leal. Marco Melo foi transferido no dia 4 de afirmou que Jorge Leal fora submetido a 17 horas de
novembro de 1970 para o presídio de Ilha das Flores. interrogatório, e, mesmo sob torturas, o engenheiro
Em outubro de 1970, órgãos de repressão do Rio de Janeiro realiza- que iniciou sua militância ainda como secundarista,
ram operações que visavam à prisão de militantes da AP. Um dos As denúncias do militante sobre o sequestro de Jorge recusou-se a falar10.
dirigentes da organização no estado, Jorge Leal Gonçalves estava Leal foram também notícia no jornal Libertação, pro-
entre os principais procurados. No dia 20 de outubro, ele foi seques- duzido pela AP, no qual se afirmou que “Marco está Em seu depoimento, Cecília Coimbra recordou-se de
trado na Rua Conde de Bonfim, na Tijuca e levado para o DOI-CO- com o rosto deformado pelas torturas. Com ele foi preso que em uma de suas sessões de tortura “dois ou três
DI4. A partir deste dia Jorge nunca mais foi visto em liberdade. também Jorge Leal Gonçalves Pereira, hospitalizado dias antes da Margarida subir para a cela coletiva”11,
em virtude de torturas. Sua prisão não foi comunicada ela viu Jorge Leal Gonçalves no corredor, saindo da
Com base nos testemunhos de três ex-militantes da época, a CEV- à Justiça como a dos outros”7. Frente às afirmações de sala roxa. Segundo Cecília, o militante da AP estava
-Rio reuniu elementos para a comprovação de sua prisão, tortura Marco Melo à Justiça Militar, a Auditoria da Aeronáu- muito machucado, parcialmente despido, com diver-
e morte. Marco Antonio Machado de Melo, conhecido como Marco tica do 1º CJM questionou o comandante do 1º Exército sos hematomas pelo corpo. Cecília reconheceu que a
Melo, da AP, lembrou-se em seu depoimento de que havia marcado acerca da prisão do engenheiro8. Jorge Leal acabou ab- equipe que torturava Jorge naquele dia era a mesma
solvido do processo já depois de seu desaparecimento. que a torturou e foi por ela denunciada: o major da
1. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV,
2014 Volume 3. p. 477. 5. Acervo CEV-Rio. Relatório de entrevista com Marco Antonio Machado Melo 9. Acervo CEV-Rio. Relatório de entrevista com Margarida Portella Sollero
2. PROJETO BRASIL NUNCA MAIS. Código BNM_634 p.169/3804. Jornal Libertação. para a CEV-Rio. para a CEV-Rio.
3. Acervo CEV-Rio. Relatório de entrevista com Haroldo de Lima para a CEV-Rio. 6. PROJETO BRASIL NUNCA MAIS. Relatório do Projeto. TOMO V – Vol. 2 – 10. PROJETO BRASIL NUNCA MAIS. Código BNM_634 p.169/3804. Jornal
4. SCHIMIDT, Criméia et. al. (org). Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil As Torturas. p. 413/899. Libertação.
(1964/1985)/Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, IEVE – Instituto de Estu- 7. PROJETO BRASIL NUNCA MAIS. Código BNM_663 p.1011/2841. 11. Acervo CEV-Rio. Relatório de entrevista com Cecília Coimbra para a CEV-
dos sobre a violência do Estado. 2ª ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 204-205 8. PROJETO BRASIL NUNCA MAIS. Código BNM_205 p.2453/3090. -Rio.

180 181
Polícia Militar Riscala Corbage, o capitão de cavalaria do Exército RUBENS PAIVA
João Câmara Gomes Carneiro, o inspetor Luiz Timótheo de Lima e
um soldado “negro e baixo”, cujo nome ela não conseguiu identificar. O assassinato de Rubens Paiva tornou-se uma marca indestrutível
da violência inconfessável das Forças Armadas durante a ditadura
Cecilia, Margarida e Marco Melo foram testemunhas das torturas de 1964. Muitas vezes militares que participaram ou justificaram
sofridas pelo engenheiro Jorge Leal Gonçalves, dirigente da Ação a brutalidade do período afirmaram: “Estávamos em guerra”. “Tí-
Popular, entre os dias 21 e 24 de outubro de 1970, no DOI-CO- nhamos que destruir os que nos apontavam armas”. “Éramos nós
DI. Segundo seus companheiros de organização, seu assassinato ou eles”. Rubens Paiva não apontou ou defendeu o uso de armas.
se deu entre os dias 25 e 28 daquele mês. No dia 29 começou a Como João Goulart, seu presidente e líder político, ele renunciou
transferência dos demais militantes da AP para a Ilha das Flo- à resistência armada por não querer uma guerra entre brasileiros.
res. Lá, eles se deram conta de que Jorge havia ficado na Barão
de Mesquita, de onde os agentes do Estado, responsáveis por sua Rubens Paiva era um empresário generoso, interessado pelas pesso-
vida, desapareceram com o seu corpo, sem deixar nenhum registro as que o cercavam. Abdicou de construir uma vida burguesa, prós-
oficial, convencidos da impunidade até hoje garantida pelo silêncio pera e “endinheirada”, para dedicar-se à criação de um mundo mais
do Exército brasileiro. civilizado e solidário com a gente humilde de seu país. Tornou-se,
então, deputado federal por São Paulo, onde nasceu e começou sua
vida profissional. Vaidoso da escolha que fizera, dividiu seus recur-
sos e seu tempo, inclusive o familiar, com a vida pública. Inscreveu
em cinco filhos seu amor por Eunice, sua mulher. Eunice também
habitou muitos mundos - foi advogada, participou de várias campa-
nhas políticas, defendeu povos indígenas, mas jamais abandonou a
luta por esclarecer o que aconteceu com Rubens Paiva.

Rubens Paiva, torturado e morto dentro do


quartel da PE, foi lembrado durante diligência Foi um parlamentar combativo. Como vice-líder do Partido Traba-
da CEV-Rio ao DOI-CODI em 2013 lhista Brasileiro (PTB), teve um papel de destaque enquanto vice-
Crédito: Acervo CEV-Rio
-presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, instalada em
1963 para investigar a ação ilegal e golpista do Instituto Brasilei-
ro de Ação Democrática (IBAD) financiada por empresários e pelo
governo-norte americano.

Com a cassação de seu mandato em 9 de abril de 1964, Paiva resis-


tiu inicialmente ao exílio. Refugiou-se, por fim, na Embaixada da
Iugoslávia e de lá seguiu para o exterior, onde viveu alguns meses
na França e na Inglaterra. No final de 1964 retornou, imprudente
e inesperadamente, para São Paulo. Numa escala no Galeão de
um voo que vinha de Paris para o Uruguai, desembarcou no Rio de
Janeiro. Deveria ter embarcado, outra vez. Seguiu para sua casa,
em São Paulo, dizendo para si, e depois para a família e amigos:

182 183
“daqui ninguém me tira!”. Logo começaria o seu os sargentos e irmãos Jaci e Jurandyr Ochsendorf e sargentos2 dirigia o carro, até porque se tivesse a oportuni- fato4. Em depoimento à Polícia Federal, confirmou ter
monitoramento. Souza, quando o carro foi abordado por dois outros dade de vê-los hoje não os reconheceria; que aquela foi a pri- atendido, durante a madrugada, em uma das celas do
veículos e, apesar da intensa troca de tiros, o preso meira e única vez que atuou com os referidos sargentos; que Pelotão de Investigação Criminal (PIC) do 1º Batalhão
Em janeiro de 1966 mudou-se para o Rio de Janei- fugiu com os militantes. os três foram até o Alto da Boa Vista e em determinado local da Polícia Exército (BPE)5, um preso, que se identifi-
ro, onde atuou como engenheiro e empresário. Foi disse que ali estava bom, em seguida voltaram, pararam o cou duas vezes como sendo Rubens Paiva.
responsável pela construção de um bairro popular A falsa versão foi arquitetada para esconder os mo- carro abriram o tanque de gasolina e metralharam o carro,
na Pavuna e trabalhou implantando fundações de tivos do desaparecimento de Paiva: sua morte sob jogaram tiros para lá e para cá; que os tiros foram dados com A prisão de Paiva decorreu da prisão de Cecília de
edifícios na Barra da Tijuca e no Recreio. Esteve tortura, dentro do quartel da Polícia do Exército, na pistola, não havia metralhadora; que deram tiros em outros Barros Correia Viveiro de Castro, no dia 19 de janei-
sempre próximo e solidário aos amigos e aos com- Rua Barão de Mesquita. Para desconstituí-la defini- alvos diferentes do carro, na parede, que era de pedra; que de- ro, ao lado de Marilena Corona Franco, no aeroporto
panheiros de diversas tendências que resistiram tivamente, a CEV-Rio conversou durante dez meses ram tiros no tanque, mas o carro não pegou fogo; que custou do Galeão, ao descerem de um voo do Chile, com car-
à ditadura. O desenrolar de sua história trágica é com o oficial envolvido na farsa, o coronel reformado a pegar fogo e foi preciso riscar um fósforo e jogarem dentro tas de exilados políticos. Uma destinava-se a Rubens
conhecido: em janeiro de 1971 foi sequestrado em Raymundo Ronaldo Campos, até convencê-lo a con- do tanque; que chegou um transeunte que passava de carro, Paiva. Cecília, levada com ele ao DOI-CODI, na tar-
casa por militares do Centro de Informações da Ae- tar como os fatos ocorreram naquela madrugada. Em parou e perguntou ‘o que houve?’. Que o depoente disse que de de 20 de janeiro de 1971, testemunhou em juízo,
ronáuticaa (CISA), levado para o 3º Comando Aé- seguida, o coronel prestou depoimento ao Ministério houve um ataque aqui, os terroristas sequestraram um pas- que na madrugada de 21 de janeiro “ouviu o ex-depu-
reo e, posteriormente, para o DOI-CODI, da Rua Público Federal do Rio de Janeiro. sageiro meu3.” tado pedir aos carcereiros água e a presença de um
Barão de Mesquita, locais onde foi desrespeitado, médico”6. Quem o atendeu naquela madrugada foi o
humilhado e torturado até a morte. Morreu com o No depoimento dado à CEV-Rio em 18 de novembro A revelação do coronel Raymundo Ronaldo à CEV- tenente médico Amílcar Lobo.
fígado estraçalhado e hemorragia interna. de 2013, o cel. Raymundo Ronaldo Campos confes- -Rio tornou-se importante por enterrar a falsa ver-
sou, pela primeira vez, que na passagem da noite do são, endossada por dois comandantes do I Exército, O mesmo fato é narrado pelo médico Edson Medei-
Por que tanto ódio contra Rubens Paiva? É certo dia 21 para o dia 22 de janeiro de 1971, em hora que os generais Sizeno Sarmento e Sylvio Couto Coe- ros, que estava preso no quartel do 1º BPE e, prova-
que militares autoritários e aliados à ideologia hie- não recorda exatamente, o major Francisco Demiur- lho da Frota, em documentos oficiais enviados em velmente, foi o último civil a ver Rubens Paiva vivo.
rárquica das elites, não podiam admitir a “traição go Santos Cardoso, então chefe do setor de operações resposta a solicitações feitas ao Superior Tribunal Em diversas conversas telefônicas e numa entrevis-
de classe deste burguês” com visão social. Também de plantão, chamou-o e lhe disse: “olha, você vai pe- Militar (STM). Também foi repetida pelos governos ta concedida à CEV-Rio, Medeiros relatou:
não admitiam a “arrogância aristocrática” de Ru- gar o carro, levar em um ponto bem distante daqui, militares sucessivos, que jamais admitiram a mor-
bens Paiva, que não se curvara à ferocidade do re- vai tocar fogo no carro para dizer que [o carro] foi te do preso entregue à custódia do Exército. Alfredo “ Eu vi o Rubens Paiva passando defronte a minha cela,
gime. Na prisão, as imprecações, os xingamentos e interceptado por terroristas e vem para cá”1. O cel. Buzaid, Ministro da Justiça, à época, impediu que o arrastado, mas ainda estava vivo porque ele estava mexendo
as injúrias enunciados por seus algozes comprovam Raymundo Ronaldo Campos perguntou ao superior Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana com a cabeça. E o vi voltando, depois de três ou quatro horas,
o ressentimento contra esta “arrogância”. Terminou o porquê da operação e ouviu como resposta que era (CDDPH) investigasse o desaparecimento de Ru- arrastado e inerte. Claro, sou médico, mas não posso cometer
trucidado ao som de Jesus Cristo eu estou aqui, de “para justificar o desaparecimento de um prisionei- bens Paiva. a leviandade de afirmar com absoluta certeza de que ele esta-
Roberto Carlos, fundo musical que excitava os tortu- ro”. No momento, o major Demiurgo não informou va morto, mas estava inerte e arrastado pelo corredor7.”
radores e abafava seus gritos de dor. seu nome. Só depois, ao retornar ao quartel e preen- O coronel Raymundo Ronaldo tornou-se o segundo ofi-
4. Acervo CEV-Rio. Amílcar Lobo, além de diversas entrevistas à imprensa,
cher o Mapa de Missão, ficou sabendo tratar-se de cial do Exército a confirmar a morte de Rubens Paiva prestou depoimento à Polícia Federal no Inquérito 91/86-DOPS SR-RJ/DPF,
Durante 43 anos, o Exército sustentou a versão de Rubens Paiva. Recorda-se o coronel: na instituição militar. Anteriormente, o falecido tenen- em 08 de setembro de 1986 e na 1ª Auditoria do Exército da 1ª CJM, perante
o juiz auditor, Oswaldo Lima Rodrigues Junior e o procurador militar Paulo
que Rubens Paiva, preso no dia 20 de janeiro, fora te-médico Amílcar Lobo Moreira da Silva admitira o

César de Siqueira Castro, em 20 de outubro de 1986;
5. Acervo CEV-Rio. Inquérito 91/86-DOPS SR-RJ/DPF, em 08 de setembro de
sequestrado por militantes de esquerda, na ma- que diante de tais ordens, saiu do quartel e fez o cenário 1986 e na 1ª Auditoria do Exército da 1ª CJM, perante o juiz auditor Oswaldo
Lima Rodrigues Junior e o procurador militar Paulo César de Siqueira Cas-
drugada do dia 22. Nesta versão, ele estava em um que lhe foi determinado; (...) que não lembra quais dos dois tro, em 20 de outubro de 1986.
Volkswagen do DOI, participando de uma diligência, 2. Os sargentos Jacy e Jurandyr Ochsendorf e Souza estão vivos, mas se recu-
saram a falar com a CEV-Rio;
6. Acervo CEV-Rio. Depoimento na 1ª Auditoria da 1ªCJM, em 13/05/1987 ao
juiz-auditor Oswaldo Lima Rodrigues Jr.
com o então capitão Raymundo Ronaldo Campos e 1. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Raymundo Ronaldo dos Campos em 3. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Raymundo Ronaldo dos Campos em 7. Acervo CEV-Rio. Entrevista concedida para a CEV-Rio pelo médico Edson
18/11/2013. 18/11/2013. Medeiros em 25/03/2015.

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Medeiros foi uma das vítimas da ditadura que não oficial que o acompanhava a internação imediata num hospi- nas algumas horas de vida; que as chances de sobre- Em investigações recentes sobre o caso, o coronel
possuía qualquer envolvimento com a militância po- tal do referido preso e chegou a mencionar que suspeitava de viver seriam de apenas vinte por cento”11. Armando Avólio Filho insistiu na afirmação de que
lítica. Formado em Medicina, anestesista, foi preso uma ruptura hepática; o que não foi atendido, no momento; não participou do assassinato de Paiva. Negou ter
na véspera do Natal de 1970, em Canoas (RS), por que no dia seguinte o depoente veio a saber que o mencionado A partir da análise de documentos e depoimentos, a sido o militar que na manhã do dia 21 de janeiro
agentes do DOPS gaúcho. Desde o dia 7 daquele Rubens Paiva havia falecido8.” CEV-Rio pôde demonstrar como foi o crime. Os depoi- de 1971 alertou o médico Amílcar Lobo sobre a mor-
mês o embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher era mentos de Cecília e Marilena confirmam que Paiva te do paciente que ele atendera de madrugada. “É
mantido em cativeiro por militantes da Vanguarda A data foi confirmada por Amilcar Lobo em entre- foi preso em casa por agentes do CISA, que condu- mentira dele, é mentira... O Lobo era um... oh, meu
Popular Revolucionária (VPR). O médico foi condu- vista à jornalista Marta Baptista, da revista Veja9, ziram os três, em dois carros, do 3º Comando Aéreo, Deus está me faltando o termo... era um desafeto
zido em um voo especial para o Rio, na companhia em que explicou como soube da morte do preso por junto ao Aeroporto Santos Dumont, onde inicialmen- meu. Eu não tive nenhum contato com ele depois de
do então capitão Paulo Malhães, o “Dr. Pablo”. Foi um oficial, que admitiu ser o tenente Armando Avó- te estiveram detidos, para o quartel da Rua Barão um incidente que houve entre nós. Se ele esteve lá,
torturado no quartel da PE. Coincidentemente saiu lio Filho: “No dia seguinte, ou melhor, no mesmo de Mesquita. Duas cadernetas de anotações de Paiva como declarou depois, é mentira dele em relação a
daquele local no dia 21 de janeiro de 1971, motivo dia, quando cheguei ao quartel um oficial me falou: ficaram em poder do então major, hoje general refor- mim”, contestou em entrevista à CEV-Rio14.
pelo qual guardou bem as datas dos fatos ocorridos Olha, aquele cara morreu”10. mado, José Antônio Nogueira Belham, como consta
com Rubens Paiva e afirma que o viu quase morto dos papéis apreendidos na casa do cel. Júlio Miguel O depoimento do cel. Avólio Filho tem muitas contra-
na noite anterior. Considerando-se que Paiva chegou ao quartel da PE Molina Dias, ex-diretor do DOI-CODI, assassinado dições. Ele pode não ter participado diretamente da
no final da tarde de 20 de janeiro; que segundo os em Porto Alegre, em 2013. Aparentemente, até aque- tortura de Rubens Paiva, mas foi reconhecido como
Por outra parte, nos depoimentos que prestou na depoimentos do médico Medeiros ali sofreu violen- le momento, o Centro de Informações Exército (CIE) torturador no DOI-CODI por diversos ex-presos po-
Justiça e na polícia em 1987, após ser identificado tas torturas e, no mesmo dia 20, passou diante de si não estava envolvido com a prisão, pois se estivesse líticos, como Maria Dalva Leite de Castro de Bonet,
por Inês Etienne Romeu como o médico que a aten- inerte; que em juízo, Cecília, levada para o Batalhão manteria em seu poder as cadernetas para desenvol- Paulo Sérgio Paranhos, Sylvio Renan de Medeiros, Ál-
deu na Casa da Morte, em Petrópolis, e por outros da Rua Barão de Mesquita, junto com Paiva, decla- ver novas “investigações/prisões”. varo Machado Caldas, René Louis de Carvalho, José
ex-presos políticos que o encontraram no quartel rou ter ouvido, na madrugada do dia 21 de janeiro, o Carlos Tórtima e Cid Benjamin. Em 1995, quando
da Rua Barão de Mesquita, Amílcar Lobo garantiu ex-deputado pedir aos carcereiros água e a presença Recorde-se que o então Capitão Leão, chefe da 2ª Avólio Filho ocupava o posto de adido militar na em-
ter estado nas dependências do DOI-CODI durante de um médico; e que a farsa montada para encobrir Seção do 1º BPE, anos depois do “desaparecimen- baixada do Brasil em Londres, Benjamin o denunciou
uma madrugada para atender Paiva. Não foi preciso a sua morte ocorreu, como admitiu o cel. Raymundo to” de Paiva, tentou negociar com os jornalistas em artigo publicado em O Globo: “Avólio se destacou
na data, mas no depoimento prestado na Auditoria Ronaldo, e consta dos documentos oficiais, da noite Fritz Utzeri e Heraldo Dias12, do Jornal do Bra- pelo ódio que me dedicava. Um de seus passatempos
Militar reconheceu que teria sido na madrugada do do dia 21 para a madrugada de 22 de janeiro, con- sil, informações sobre a localização do corpo do ex- prediletos era amarrar fios em meu corpo e ligar suas
dia 21 de janeiro de 1971. Diante do juiz auditor, clui-se que Paiva morreu, na madrugada do dia 21, -deputado, conforme atestam parentes de Utzeri e extremidades na tomada. Me punha nu e amarrado
Oswaldo Lima Rodrigues Júnior, da 1ª Auditoria do dentro daquela unidade militar. relata Jason Tércio no livro “Rubens Paiva”, que no pau-de-arara, enquanto fazia galhofas: - Deve es-
Exército da 1ª CJM, deixou claro que o preso corria o jornalista redigiu em 2013 para a coleção Perfis tar faltando energia, porque ele não acende”15.
risco de vida: Mais ainda: no depoimento prestado em 1986 por Parlamentares, da Câmara dos Deputados13: Leão
Amílcar Lobo, transcrito no Informe no 1.334/1986 pediu uma quantia significativa para apresentar Outra contradição diz respeito à sua participação
“ esse preso apresentava inúmeras equimoses, escoriações do Departamento de Polícia Federal, ele deixou cla- provas que Rubens Paiva havia sido morto no DOI- como comandante do Pelotão de Investigações Cri-
e o que mais me chamou a atenção na ocasião, o abdômen ro que pela “sua experiência profissional pode afir- -CODI, onde servia na oportunidade. De tortura- minais (PIC), do 1º BPE, na perícia realizada na
em tábua, endurecido, o que me levou a fazer um diagnóstico mar que face ao estado clínico apresentado naquela dor, tornou-se um achacador. manhã de 22 de janeiro de 1971 no carro do DOI
de uma hemorragia abdominal, provavelmente hepática; que oportunidade por Rubens Paiva, teria o mesmo ape- 11. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Amílcar Lobo no Inquérito Policial nº incendiado e metralhado para forjar o sequestro de
91/86 – DOPS/SR/DPF/RJ encaminhado aos órgãos de Informações das For-
esta pessoa disse chamar-se Rubens Paiva; que no momento ças Armadas e ao SNI através do Informe nº 831/86/SI/?SR/DPF/RJ.
8. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Amílcar Lobo na 1ª Auditoria da 1ªCJM, 12. UTZERI, Fritz e Dias, Heraldo. “Quem matou Rubens Paiva?”. Jornal do 14. Acervo CEV-Rio. Entrevista com Armando Avólio Filho, por telefone, em
em que terminava esse atendimento o paciente voltou a re- em 20/10/1986 ao juiz-auditor Oswaldo Lima Rodrigues Jr. Brasil. 22/10/1978. 19/05/2014.
petir seu nome – Rubens Paiva; que o depoente aconselhou o 9. Revista Veja, edição 939, de 03/09/1986, p. 44. 13. TERSOON, Janson. “Rubens Paiva”. Série Perfis Parlamentares nº 67, Bra- 15. BENJAMIN, Cid. “Um dos mais cruéis torturadores”. Artigo publicado no
10. Idem. sília, Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2013, página 232. Jornal O Globo em 26/05/1995.

186 187
Paiva. Ele nega, mas pela função que exercia era A busca foi realizada por Avólio, como é possível A denúncia foi aceita pelo juiz Caio Márcio Gutter-
sua responsabilidade participar da perícia, decisi- comprovar no auto de apreensão, em companhia do res Taranto, em maio de 2014, com fundamento em
va para confirmar o sequestro de um preso em po- tenente do exército Antônio Fernando Hughes de que crimes de lesa humanidade, como o homicídio
der de militares. Carvalho, o mesmo que ele denunciou ao Ministério e a ocultação denunciados, são imprescritíveis e
Público Federal (MPF) ter visto torturando Rubens não passíveis de anistia. O Tribunal Regional Fe-
Na conversa com a CEV-Rio16 Avólio Filho não assu- deral da 2ª Região acatou por unanimidade a tese
miu ter ido ao local examinar o carro. Mas no IPM de que a Lei da Anistia não se aplica a crimes per-
48/86-S, instaurado em 1986 para investigar o de- manentes. No mesmo mês de setembro de 2014, no
saparecimento do ex-deputado 15 anos antes, que entanto, uma liminar concedida pelo ministro Teori
tramitou pela 1ª Auditoria do Exército da 1ª C.J.M., Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu
Avólio disse que esteve no local: o processo, atendendo Reclamação da defesa dos mi-
litares de violação da Lei da Anistia.
“ Perguntado quando e como tomou conhecimento do referi-
do sequestro, respondeu que, em meados para o fim do mês de Quatro meses após a confissão do cel. Raymundo Ro-
janeiro de 1971, em dia que não pode absolutamente precisar, Crédito: Projeto Brasil Nunca Mais, Tomo II pasta 186 páginas 43 a 45 naldo, a CEV-Rio obteve novas informações sobre a
recebeu ordens do comandante do seu batalhão para proceder ocultação do corpo de Rubens Paiva. Em 11 de março
uma perícia num carro do DOI-CODI, sinistrado no Alto da Paiva. Mesmo diante da evidência do documento de 2014, o coronel reformado do exército Paulo Ma-
Boa Vista; que, em lá chegando, em companhia de um sargen- com sua assinatura, Avólio negou ter participado da lhães, torturador e assassino confesso, admitiu ter
to perito, de cujo nome não se lembra, encontrou uma viatura operação com Hughes. ajudado a ocultar os restos mortais do parlamentar.
do tipo Volkswagen completamente incendiada e com várias Segundo seu relato, num primeiro momento o cor-
perfurações à bala17.” As contradições de Avólio mostram que ele mentiu po foi enterrado no Alto da Boa Vista, iniciativa dos
em vários momentos com o objetivo de se excluir militares do DOI, com a participação do policial civil
A presença de Avólio Filho atuando no DOI-CODI da tortura, morte e ocultação do corpo de Rubens Fernando Próspero Gargaglione de Pinho, lotado no
é confirmada também por documentos judiciais do Paiva. Ele confirmou que o general reformado José chamado Setor de Diligências Reservadas da polícia
STM, localizados na base de dados do projeto Brasil: Antônio Nogueira Belham, na época comandante do Civil do Estado da Guanabara, que funcionava em
Nunca Mais. Mandado de Busca e Apreensão assi- DOI, estava no dia 20 de janeiro no quartel e iden- um prédio situado no Alto da Boa Vista. Devido à
nado pelo comissário de polícia Leonan Siqueira da tificou o falecido Hughes como o último agente que sua integração com os militares do DOI e do CIE e
Silva, à disposição do Centro de Operações da De- torturou Paiva até a morte. A Procuradoria da Re- do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR),
fesa Interna (CODI), em abril de 1970, determina pública denunciou à Justiça Federal cinco militares a delegacia serviu à repressão política.
ao “2º Tenente Armando Avólio Filho, de serviço no reformados pelo homicídio e pela ocultação do cadá-
CODI, que em cumprimento ao presente, se dirija ver de Paiva, imputando-lhes, ainda, os crimes de Pouco tempo depois, militares do DOI perceberam
a Rua Constante Ramos, 29, apto. 502, residência fraude processual e formação de quadrilha. O cel. que uma obra de calçamento da estrada poderia le-
e aparelho subversivo de Antônio Carlos Martins Avólio Filho foi excluído19. var à descoberta do cadáver e providenciaram seu
Menezes”18. Militante do Var-Palmares, Menezes foi traslado para um terreno na Barra da Tijuca. Ma-
preso naqueles dias. lhães admitiu ter participado de um segundo de-
19. Foram denunciados junto à 4ª Vara Criminal Federal do Rio o general José
16. Acervo CEV-Rio. Entrevista com Armando Avólio Filho, por telefone, em Antônio Nogueira Belham, o coronel Rubens Paim Sampaio, o coronel Ray- senterro, no terreno da Barra. O corpo, em estado
19/05/2014.
17. Depoimento de Armando Avólio Filho, prestado ao general de brigada Crédito: Projeto Brasil Nunca Mais, Tomo II pasta 186 páginas 43 a 45 mundo Ronaldo Campos, e os irmãos sargentos Jurandyr e Jacy Ochsendorf e
Souza. Ver http://www.prrj.mpf.mp.br/frontpage/noticias/mpf-justica-recebe-
de putrefação, foi transportado por sua equipe em
Adriano Áulio Pinheiro da Silva, no dia 28/01/1987, no IPM 48/86-S p. 230/5. -denuncia-contra-cinco-militares-por-crimes-contra-a-humanidade-no-caso- um saco impermeável e jogado em um rio, prova-
18. Arquivo Brasil: Nunca Mais, Tomo II Pasta 186 p 43 a 45. -rubens-paiva.

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velmente o Piabanha, em Itaipava, região serrana do Rio de Ja- MARILENA VILLAS BOAS PINTO E MÁRIO DE
neiro. O Piabanha deságua no Rio Paraíba que corre em direção SOUZA PRATA
ao oceano Atlântico.
A carioca Marilena Villas Boas Pinto era estudante de Psicologia
Para manter viva a memória do ocorrido com Rubens Paiva no DOI- na Universidade Santa Úrsula quando passou a viver clandesti-
-CODI, em 12 de setembro de 2014 o Sindicato dos Engenheiros no namente em 1969. Em abril de 1971, durante um cerco policial
Estado do Rio de Janeiro (SENGE-RJ) e a Federação Interestadu- no bairro de Campo Grande, Marilena foi capturada e morta por
al de Sindicatos de Engenheiros (FISENGE), com a participação agentes de segurança junto a seu companheiro, o também estu-
da CEV-Rio, inauguraram seu busto na Praça Lamartine Babo, em dante Mário de Souza Prata, natural de Cantagalo (RJ). Marilena
frente ao quartel do 1ºBPE. O busto, esculpido em bronze, foi coloca- e Mário Prata integravam o Movimento Revolucionário Oito de
do de costas para o quartel em que ele foi torturado e morto. Numa Outubro (MR-8), que foi praticamente desmantelado pela repres-
segunda homenagem, outro busto de Rubens Paiva foi inaugurado são durante o ano de 1971.
no dia 12 de dezembro na estação do metrô que passou a ter seu
nome, na Pavuna, subúrbio do Rio. Dois atos que buscam manter Mário era estudante de engenharia da Universidade Federal do Rio
presente na memória da cidade o registro da estúpida violência so- de Janeiro (UFRJ) e iniciou sua militância política no movimento
frida pelo engenheiro e parlamentar, insuficientes para expressar estudantil, ao ser eleito presidente do Diretório Central dos Estu-
todo o ódio emanado pela ditadura de 1964 contra seus opositores. dantes (DCE). Passou a atuar na clandestinidade depois de ter sua
prisão preventiva decretada pela Justiça Militar, em 1969. Mário
tinha 25 anos quando foi assassinado.

Ficha Nominal do DOPS-GB


Crédito: APERJ, Fundo Polícias Políticas, Ficha de Identificação Policial

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Marilena Villas Boas Pinto passou a viver na clan- Boas) quando solteira”4. ficou presa ilegalmente, informam que durante toda
destinidade em decorrência de sua participação a noite foram ouvidos os gritos da jovem no interior
no movimento estudantil. Abandonou os estudos A partir da análise do comunicado da 35ª DP foi pos- da casa, silenciados apenas no final da madrugada 6.
quando cursava o segundo ano e, em 1969, iniciou sível localizar o taxista Zélcio Dufrayer Ortiz, hoje
sua militância política na Ação Libertadora Nacio- com 80 anos, e que, segundo o documento, trans- Corroborando a permanência de Marilena no apare-
nal (ALN), indo depois para as fileiras do MR-8. portara Marilena e Mário Prata de Cascadura até lho, o documento da 35ª DP, assinado pelo detetive
Morreu aos 22 anos, segundo o atestado de óbito, Campo Grande. Confrontando a versão oficial, em José Vianna, afirmava que:
por “ferimento penetrante do tórax, com lesões do seu testemunho à CEV-Rio, o taxista afirmou que
pulmão direito e hemorragia interna”1. Esses da- ao chegar ao nº 23 da rua Niquelândia, enquanto “ No local compareceu o comunicante, e a turma de ronda
dos, porém, jamais puderam ser comprovados, pos- tentava saltar do táxi, o casal foi rendido e preso desta D.P. constituída dos policiais Walter, Waldir e Ribeiro,
to que os familiares não conseguiram obter o seu sem nenhum ferimento. Segundo seu depoimento, onde já encontraram o subtenente Alceu Pencal da Segunda
laudo cadavérico. ele percebeu que um grupo de cinco a seis homens, Seção da Brigada Aero Terrestre que realizava buscas no nú-
aparentemente desarmados, encontrava-se na rua mero vinte e três da rua Niquelândia, em cujo interior encon-
As circunstâncias da operação que resultou na mor- sem saída. Relembrou que um deles abriu a porta trava-se a acompanhante do agressor dos oficiais, sob escolta”
te dos dois militantes ficaram desconhecidas por do táxi dizendo: “Hoje vocês estão pegos. Hoje vocês
mais de 40 anos. Investigações realizadas pela CEV- não fogem. Vocês estão presos”5. Vianna ainda afirma no documento, que ao retornar
-Rio no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro à delegacia, recebeu a visita do major Lacerda, da
(APERJ) trouxeram à tona um comunicado da 35ª O taxista afirmou que, nesse momento, Marilena PE, do major Viana, do tenente coronel Verrastro,
Delegacia de Polícia2, que permitiu confrontar e des- sacou uma pistola que trazia na bolsa e disparou, da 1ªDI e do tenente coronel Pimentel, da brigada
mentir a versão oficial. atingindo o major Martinez. Em seguida, Mário Aeroterrestre. Segundo ele:
abriu a porta do carro pelo lado esquerdo, tentando
Segundo essa versão, na tentativa de fugir ao cerco fugir, mas tropeçou e caiu. Em seguida, Zélcio narra “ O coronel Pimentel solicitou ao declarante que fizesse
montado, os militantes trocaram tiros com as forças que os outros homens seguraram o casal, que foi ar- remover para o IML o corpo do agressor dos oficiais [Mário
de segurança e foram abatidos “por uma equipe da rastado para dentro da casa que servia de aparelho, Prata], em virtude de haver falecido quando era removido do
Brigada Aero Terrestre, que se encontrava em Cam- enquanto o taxista era intimado a socorrer o major Hospital da Vila Militar para o Hospital [não especificado],
po Grande/GB, empenhada no processamento de um ainda vivo. Zélcio ainda confirma só ter escutado o encontrando-se o mesmo no Primeiro Batalhão da Polícia do
informe que dava como suspeito um casal residente tiro desferido por Marilena e ter visto apenas um fe- Exército, sendo expedida a guia de número setenta, sem dados
Comunicado da 35ª Delegacia de Polícia comunicando a ocorrência na
à Rua Niquelândia, nº 23”3. Rua Niquelândia que culminou no assassinato dos militantes Marilena rido, o major, negando, portanto, a versão de tiroteio qualificativos do subversivo por não terem sido fornecidos pe-
Villas Boas e Mário Prata sustentada pela repressão e que foi apresentada no las autoridades militares.”
Crédito: Acervo CEV-RIO
O documento originalmente produzido pelo Cen- comunicado da 35ª DP.
tro de Informações do Exército (CIE), e dissemi- “seus ocupantes [do táxi], percebendo a manobra, É curioso observar que o major Toja Martinez tenha
nado pelo DOPS, em 23 de abril de 1971, afirmava atiraram contra a equipe atingindo mortalmente o O comunicado da Delegacia afirma que Mário Pra- sido levado ao hospital civil Rocha Faria, apesar de
que Marilena e Mário Prata chegaram em um táxi major José Júlio Toja Martinez e ferindo o capitão ta, ferido, fora levado ao Hospital da Vila Militar, a providência se justificar dada a proximidade do so-
à rua Niquelândia, na Zona Oeste do Rio, surpre- Oscar de Souza Parreira”. O documento afirma que enquanto Marilena teria sido detida, permanecendo corro, enquanto o militante Mário Prata tenha sido
endendo “a equipe levando-a a mudar o dispositi- “no tiroteio foi morto o terrorista foragido Mário de no local. Relatos colhidos pela CEV-Rio, de vizinhos encaminhado para o Hospital da Vila Militar, onde
vo para a abordagem da viatura”. Nesse momento, Souza Prata (Dissidência do PCB da GB) e ferida do imóvel que servia como aparelho onde Marilena veio a falecer.
1. Acervo CEV-Rio. Atestado de óbito de Marilena Villas Boas Pinto. gravemente, vindo a falecer posteriormente, Marile- 4. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da
2. Acervo CEV-Rio. Documento Comunicado da 35ª DP de 02/04/1971 na Pinto Carneiro Mendonça (Marilena Pinto Villas Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume 3. p.568-575. 6. Acervo CEV-Rio. Relatório de visita da CEV-Rio à Rua Niquelândia em
3. APERJ. Fundo Polícias Políticas. Setor Terrorismo. Notação 11. 5. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Zélcio Dufrayer Ortiz para a CEV-Rio. 08/10/2014.

192 193
Mário Prata, a despeito de ter sido identificado pela Emilio Garrastazu Médici questionasse o ministro STUART EDGARD ANGEL JONES
repressão7 e pelo instituto de identificação civil Fé- do Exército, Orlando Geisel, que defendia a prisão
lix Pacheco8, foi sepultado como indigente no Cemi- de militantes para obter deles informações. Na oca- Desaparecido em 14 de maio de 1971, aos 26 anos, Stuart Edgard
tério de Ricardo de Albuquerque. Seu corpo somente sião, ao lembrar-se do caso, Médici perguntou “Mas Angel Jones, foi uma das lideranças do Movimento Revolucionário
foi localizado graças ao trabalho do Grupo Tortura só os nossos morrem?”, para em seguida transmitir Oito de Outubro (MR-8). O Estado brasileiro jamais assumiu a res-
Nunca Mais, em 1996. O corpo de Marilena, por sua uma ordem “Quando invadirem um aparelho, vocês ponsabilidade por sua prisão, mantendo um constrangedor e inacei-
vez, foi retirado por sua família do Hospital Central têm que invadir metralhando. Nós estamos numa tável silêncio contra todas as evidências de sua tortura, morte e de-
do Exército, que chegou a tempo de impedir que a guerra e não podemos sacrificar os nossos”9. De fato, saparecimento. Investigações realizadas pelas Comissões Nacional
jovem fosse enterrada sem que fossem avisados. Um após o assassinato de Marilena e Mário Prata, so- e Estadual da Verdade chegaram a suposições distintas. Seu corpo
enterro com caixão lacrado já estava pago pelo Exér- mente no ano de 1971, foram contabilizadas pelo teria sido enterrado num mangue próximo à Base Aérea de Santa
cito, no Cemitério do Irajá, para ser realizado no dia menos 14 mortes executadas pelos agentes da re- Cruz, ou, na segunda hipótese, depois de torturado na Base Aérea
8 de abril de 1971. O “destinatário da mercadoria”, pressão no estado do Rio de Janeiro. do Galeão, jogado no mar pelas Forças Armadas. Embora o governo
conforme consta na nota fiscal, era o Ministério do brasileiro negue, sua prisão fica evidente, no documento abaixo, que
Exército e o endereço de onde a pegariam, o Hospital ele foi detido um dia antes da sua morte pela repressão.
Central do Exército.

Os elementos levantados permitiram a elucidação


do caso, desmentindo a versão apresentada pela
repressão acerca da morte dos militantes Marilena
Villas Boas e Mário de Souza Prata. A partir dos tes-
temunhos colhidos foi possível demonstrar que, ao
contrário do que se afirmava, o casal foi preso com
vida e sem ferimentos. Marilena foi interrogada du-
rante toda a noite e Mário Prata foi levado a uma
instituição militar. Ambos foram mortos enquanto
estavam sob poder do Estado, que tentou ocultar
suas mortes ao dificultar o acesso das famílias aos
seus restos mortais.

A operação que resultou no assassinato de Marilena


e Mário Prata ocasionou uma mudança de postura
da repressão. Documentos localizados pela CEV-Rio
Recibo de pagamento do enterro de Marilena Villas Boas pelo
no Acervo Médici, depositado no Instituto Histórico Ministério do Exército
Geográfico Brasileiro (IHGB), revelam que a morte Crédito: Acervo CEV-Rio
do major Martinez fez com que o então presidente 9. SCARTEZINI.A.C. Segredos de Medici. Primeira edição: Editora Marco
Zero, 1985, p.35-36 (A Comissão da Verdade do Rio localizou no acervo do
7. APERJ. Fundo Polícias Políticas do Estado do Rio de Janeiro. Setor Admi- General Médici, que pertence hoje ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio
nistração. Notação 99 (IHGB), cópias de uma entrevista dada pelo ditador ao jornalista Antonio Mandado de prisão expedido em 14 de maio de 1971, um dia antes do sequestro de Stuart
8. Reportagem de Juliana dal Piva, de 13/05/2015. Portal do Jornal O Dia. Carlos Scartezini, durante o tempo em que Médici comandou o país. À época, Angel
Disponível em http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2015-05-13/guerrilheiros- o oficial não permitiu a publicação da entrevista. Em 1985, o conteúdo foi
-teriam-sido-mortos-sob-tortura-apos-matar-major.html. editado em forma de livro sob o título Segredos de Médici.) Crédito: APERJ

194 195
Stuart nasceu em Salvador (BA) em 11 de janeiro de Em 27 de março de 2014, a CEV-Rio ouviu o teste- formações da Aeronáutica (CISA), na base aérea do ossada”. As fotos foram enviadas ao perito-médico
1945, filho da estilista Zuleika Angel Jones, conhe- munho de Maria Cristina. Remexendo seus arqui- Galeão. No mesmo dia, Zaqueu José Bento e Manoel Levi Inimá, que considerou os restos mortais como
cida como Zuzu Angel, e de Norman Angel Jones. vos pessoais, ela encontrou uma espécie de “desa- Henrique Ferreira, integrantes do Grupo Político- compatíveis com um corpo em decomposição na água
Desde cedo praticou esportes: tênis, natação, capoei- bafo”, como se fosse o trecho de um diário escrito na -Militar do MR-8, também foram detidos4. Alex Po- por cinco meses.
ra, halterofilismo, e depois se dedicou ao remo, pelo época, logo depois de sua passagem pela prisão na lari de Alverga foi preso na mesma semana5.
Clube de Regatas do Flamengo. Foi criado no Rio de Base Aérea do Galeão em maio de 1971:
Janeiro, onde fez seus estudos e entrou na Facul- Tanto Polari quanto Maria Cristina de Oliveira Fer-
dade de Economia na Universidade Federal do Rio “ Eu tinha mania de escrever. Sempre que estava sofrendo reira relataram que Stuart foi torturado até a morte
de Janeiro. Em 18 de agosto de 1968, casou-se com eu escrevia. Naquela época essas coisas doíam demais. Era pelos agentes do CISA, na Base Aérea do Galeão,
Sônia Maria Lopes de Moraes. Iniciou sua militân- uma forma que eu encontrava de aliviar o sofrimento. Nesta para que revelasse o paradeiro de Carlos Lamarca.
cia política na Dissidência Estudantil do Partido Co- noite ouvi gemidos na cela ao lado, no cubículo dois. Ele dizia Ele resistiu. Em seus depoimentos, os dois afirma-
munista Brasileiro dna Guanabara, (que mais tarde que ia morrer. Que tinha frio e que queria um remédio para ram que apenas ouviram a voz de Stuart - no caso
passou a se chamar MR-8). Em 1969, tornou-se diri- a dor. Bati na parede e perguntei quem estava ali. Não obtive de Alex Polari - na sala de tortura, e segundo Maria
gente da organização, estando à frente de operações resposta. Ouvi vozes e o Muniz [coronel Ferdinando Muniz] Cristina, agonizando e pedindo água.
armadas do grupo. falando com o homem que gemia: ‘Toma este melhoral, Pau-
lo. Você vai melhorar. Pegue este cobertor’. Bati na porta, cha- Sempre apoiada na documentação pesquisada e nas
A partir de 1970, a ação violenta dos órgãos de re- mando a pessoa que estava lá, falando com o doente. ‘Quero indicações da família, a CEV-Rio ouviu cerca de 30
pressão da ditadura cresceu de intensidade. De vê-lo’, eu disse. ‘Ele está morrendo. Não sei quem é, mas me pessoas sobre o caso, incluindo o coronel Paulo Ma-
janeiro a julho de 1971, praticamente todos os in- deixe cuidar dele. Preciso cuidar dele’. O coronel Muniz era lhães. Malhães afirmou à Comissão que Stuart po-
tegrantes do MR-8 foram presos, torturados ou mor- um dos torturadores. O nome dele aparece na matéria do Chi- deria ter sido jogado na Baía de Guanabara.
Cabeceira da pista do Aeroporto Santos Dumont, local onde foi
tos. A agonia e a morte de Stuart sempre foram re- co Otávio.2 Ele era o chefe de setor e participava das torturas. encontrada a ossada em 18 de outubro de 1971
lacionadas a circunstâncias brutais, conforme carta O coronel Muniz vacilou. Foi lá para dentro e voltou dizendo Nos arquivos do Instituto de Criminalística Car- Crédito: Instituto de Criminalística Carlos Éboli
enviada a Zuzu pelo ex-integrante da Vanguarda que eu não poderia tratar do companheiro. Perguntei quem los Éboli (ICCE), a CEV-Rio localizou um envelope
Popular Revolucionária (VPR), Alex Polari de Alver- era e a resposta foi a porta da vigia fechando na minha cara3.” contendo uma sequência de quatro negativos, fruto Na carta que Alex Polari enviou a Zuzu Angel, o
ga, preso dois dias antes de sua prisão, em 12 de de uma perícia de local, datada de 18 de outubro de nome do coronel reformado da Aeronáutica, Lúcio
maio de 19711. O cerco da repressão aumentou com a cobertura 1971. A perícia foi feita, portanto, cinco meses depois Valle Barroso, hoje com 81 anos, é citado como en-
dada pelo MR-8 ao capitão Carlos Lamarca, coman- da morte de Stuart Angel. Revelados, os negativos volvido na morte de Stuart. Seu nome também apa-
Na carta, Polari descreve que Stuart foi amarrado a dante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). exibiam uma ossada encontrada nas pedras da cabe- rece nos documentos de recebimento de carros apre-
um jipe no pátio interno da Base Aérea do Galeão e Lamarca, então o dirigente de organização armada ceira da pista do Aeroporto Santos Dumont, próximo endidos com Zaqueu José Bento, do MR-8, preso
arrastado enquanto aspirava gás do cano de descar- mais procurado pelo regime, acabou se integrando às instalações da 3ª Zona Aérea, hoje III Comar. pelo CISA dias antes de Stuart. A documentação foi
ga do veículo. Agonizante, foi levado para a última ao MR-8 em abril de 1971. Novas prisões se sucede- entregue ao comandante da Base, João Paulo Bour-
das celas destinadas aos presos políticos que lá se ram, até que José Roberto Gonçalves de Rezende, O laudo da ossada é assinado pelo perito Jaques nier, apontado por Alex Polari como o mandante da
encontravam. Seus gemidos e pedidos de água pro- da VPR, foi preso na noite de 7 de maio de 1971, Wygoda. Procurado pela Comissão, ele afirmou que morte de Stuart.
longaram-se pela madrugada e foram ouvidos por na livraria Entre Rios, em Copacabana, e levado do o laudo que emitiu foi inconcluso. Alegou não ter
Maria Cristina de Oliveira, que se encontrava na DOPS/GB para as dependências do Centro de In- tido condições de definir nada, por se tratar de “uma Barroso também foi procurado pela CEV-Rio para
cela ao lado. Amanhecendo, ela ouviu a movimenta- depor sobre o desaparecimento de Stuart. Barroso
ção para a retirada do corpo de Stuart. 2. OTAVIO, Chico. PIVA, Juliana dal. “Stuart Angel: verdadeiro nome do prin-
cipal torturador é descoberto”. Jornal O Globo, Edição de 22/09/2014
4. APERJ, Fundo: Departamento de Ordem Política e Social do Estado da
Guanabara, Série: Livro de Ocorrências, Notação: 16 ímpar, p 176. admitiu, pela primeira vez, o envolvimento do CISA
3. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Maria Cristina Oliveira Ferreira para a 5. APERJ, Fundo: Departamento de Ordem Política e Social do Estado da na prisão. Segundo ele, o sargento Abílio Corrêa de
1. APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: Prontuário GB, Notação: 5013. CEV-Rio em 27/03/2014. Guanabara, Série: Livro de Ocorrências, Notação: 19 par.

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Sousa, codinome “Pascoal”, teria sido o responsável efetuadas em suas pistas de pouso que pudessem
pelas prisões de Rubens Paiva e de Stuart. Revelou indicar práticas de ocultação de cadáveres.
que ele costumava levar presos políticos para tomar
banho de mar na cabeceira da pista, compartilhada Pesquisa junto ao acervo fotográfico da Polícia Ci-
entre o 3º Comando Aéreo Regional e a operação co- vil do Rio de Janeiro localizou em um dos canteiros
mercial do Santos Dumont6. de obra da construtora Cetenco, responsável pelas
reformas na Base de Santa Cruz, a foto de um crâ-
A MORTE ANUNCIADA DE ZUZU
Outros nomes envolvidos no crime são dos oficiais e nio. O material fotográfico foi enviado para análise
ANGEL
integrantes do CISA Carlos Afonso Dellamora, Fer- comparativa craniofacial no Centro de Ciências Fo-
dinando Muniz de Farias e o suboficial Abílio Cor- renses da Universidade de Northumbria, em New- Em razão da incansável luta de Zuleika Angel, o
rea de Souza, “Abílio Alcântara”, ou “Dr. Pascoal”, castle, Inglaterra. Sem uma conclusão definitiva, a desaparecimento de Stuart é um dos mais conheci-
já falecido. Testemunhas da prisão de Alex Polari análise pericial indicou clara correspondência mor- dos episódios da violência praticada pela ditadura
citam os agentes Theobaldo Lisboa; Nilton Vieira de fológica craniofacial entre as imagens ante mortem militar, com grande repercussão no exterior. Zuzu
Mello; Milton Rezende Almeida; Eduardo Teixeira de Stuart Angel e post mortem da ossada cuja foto- entregou um dossiê ao secretário de Estado Henry
Sobrinho e Jair Gonçalves da Mota. grafia foi localizada pela CNV. Kissinger, e promoveu um desfile de modas em Nova
Iorque, cujo tema foi o desaparecimento do filho. As-
Apesar de até os dias de hoje negar a responsabili- A linha de pesquisa seguida pela CEV-Rio tomou sim, sua morte na tortura chegou a ser denunciada
dade sobre o caso, bem como a existência de arqui- como base que Stuart Angel Jones foi torturado e no Congresso dos EUA pelo senador Edward Ken-
vos sobre Stuart, ficou comprovado durante as in- assassinado na Base Aérea do Galeão, sendo seu nedy. A forte pressão internacional resultou, em 15
vestigações, que o Estado brasileiro sabia da morte corpo jogado na Baía de Guanabara. O movimen- de março de 1972, no afastamento do coronel João
de Stuart Edgard Angel Jones, como pode ser cons- to das águas teria levado os restos mortais para Paulo Burnier, dos coronéis-aviadores Roberto Hi-
tatado em documento da Agência do Rio de Janeiro a praia. A ossada encontrada na ponta de pedras, pólito da Costa, Carlos Affonso Dellamora e Márcio
do SNI, em 14 de setembro de 1971. Em um Infor- próxima à III Zona Aérea pela 3ª Delegacia Poli- César Leal Coqueiro, além de outros três oficiais, e
me Confidencial enviado para a Agência do Rio de cial, foi posteriormente enterrada no cemitério do a demissão do ministro da Aeronáutica, Márcio de
Janeiro do SNI, é possível ler no campo “Assunto”: Cacuia, na Ilha do Governador (RJ). Segundo in- Souza e Mello.
“Stuart Edgard Angel Gomes (sic) – Falecido”7. formação do cemitério, ela foi classificada como “os-
Informe Confidencial do SNI de 14 de setembro de 1971 dá Stuart como sada humana”, e não como “ossada de um homem” A busca de Zuzu por informações sobre o paradeiro
“falecido”
Em seu relatório final, a CNV relata ter obtido infor- Crédito: Arquivo Nacional, SNI: ARJ_ACE_6517_82 ou de “uma mulher” ou de “uma criança”, como se- de Stuart Angel e a luta para denunciar seus assas-
mações de um ex-militar da Aeronáutica (cuja iden- ria o correto. O registro do enterro consta do livro sinos só cessaram com sua morte, no dia 14 de abril
tidade foi preservada) de que a Base Aérea de Santa próximo aos mangues existentes na Base. Segundo de entrada de cadáveres da 3ªDP. Em 21 de agosto de 1976, em um suposto acidente de carro no Rio de
Cruz foi utilizada no início da década de 1970 para seu relato, era comum também ouvir comentários de 2014, a CEV-Rio enviou Ofício nº 133/2014 ao Janeiro. A atuação de Zuzu foi essencial para gerar
a prisão, tortura e ocultação de cadáveres de presos sobre o lançamento em alto-mar de cadáveres trans- Ministério Público, pedindo exumação dos restos um desgaste à imagem da ditadura brasileira. Por
políticos. Em seu depoimento, o militar identificou portados por aviões P-16. mortais – a partir de fotos feitas por peritos do Ins- isso, ela vinha sendo intensamente monitorada pe-
uma fotografia de Stuart Edgar Angel Jones como tituto de Criminalística Carlos Éboli8. Dificuldades los órgãos de repressão. Prevendo que poderia ser
sendo o preso que ele protegeu de um espancamen- Em decorrência destas informações, a CNV traçou técnicas impediram a exumação. ela o próximo alvo da ditadura, entregou a amigos
to. Os mortos seriam enterrados num mandiocal uma nova linha de investigação visando à busca de um bilhete contendo a seguinte mensagem: “Se algo
6. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Lúcio Valle Barroso à CEV-Rio, por telefo- indícios sobre práticas de ocultação de cadáveres na acontecer comigo, se eu aparecer morta, por aciden-
ne, nos dias 7 e 8 de junho de 2014. Base de Santa Cruz, com pesquisas sobre alterações te, assalto ou outro qualquer meio, terá sido obra
7. Arquivo Nacional, SNI: ARJ_ACE_6517_82. 8. Acervo CEV-Rio. Ofício CEV-RIO/SEASDH nº 133/2014.

198 199
100 - entre jornalistas mais combativos e políticos do então
dos mesmos assassinos do meu amado filho”.
chamado MDB autêntico. Por uma prudência que hoje pode
RAUL AMARO NIN FERREIRA
parecer excessiva, Paulo Pontes e eu subimos a serra de Petró-
Cerca de um ano depois, na madrugada do dia 13 O engenheiro Raul Amaro Nin Ferreira, 27 anos, morreu no dia 11
polis, jogamos minha Olivetti num despenhadeiro, e fomos ti-
para o dia 14 de abril, saindo do Túnel Dois Irmãos, de agosto de 1971, onze dias depois ser preso, na enfermaria do Hos-
rar cópias xerox do bilhete e da carta numa papelaria que eu
que liga a Gávea a São Conrado, o carro que Zuzu pital Central do Exército (HCE), em Benfica, Rio de Janeiro. Preso
conhecia em Itaipava, na época um vilarejo. De volta ao Rio,
dirigia colidiu com a proteção do viaduto e capotou numa operação policial de rua, no dia 1 de agosto, foi conduzido in-
convocamos o Zuenir e repartimos entre os três os envelopes
diversas vezes barranco abaixo. À época, a versão cialmente para o DOPS/GB. No dia seguinte foi levado para o DOI-
a serem postados no correio. Foi isso. Tínhamos a esperança
oficial para sua morte foi apresentada como um aci- -CODI, no quartel do 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca.
de alguma repercussão na imprensa ou no congresso, mas só
dente. Contudo, a partir de laudos técnicos, do de- Depois de inquirido e de ser submetido a um intenso processo de
o jornalista Alberto Dines publicou uma pequena nota a res-
poimento de testemunhas oculares do acidente e da tortura, foi transferido para o HCE, no dia 4 de agosto, onde voltou
peito9.”
fala de agentes da repressão, a Comissão Especial a ser interrogado. Seu corpo foi entregue à família com a informação
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), de que a morte teria ocorrido por enfarte. Como em outros casos de
ainda em 1998, e a Comissão Nacional da Verdade assassinatos de presos políticos durante a ditadura, foi montada
(CNV), em seu Relatório Final, apontaram que o Es- uma farsa para encobrir as causas de sua morte.
tado brasileiro foi responsável pela morte de Zuleika
Angel. No dia 05 de dezembro de 2013, em evento público realizado em
sua sede, a Comissão da Verdade do Rio recebeu oficialmente o Re-
Para trazer fatos novos à história de Zuzu, a CEV-Rio latório Raul Amaro Nin Ferreira1, produzido por dois sobrinhos de
entrou em contato com Chico Buarque de Hollanda. Raul, Felipe Carvalho Nin Ferreira e Raul Carvalho Nin Ferreira, e
Foi ele quem denunciou à imprensa a característica por Marcelo Zelic, integrante do Grupo Tortura Nunca Mais de São
criminosa do “acidente” que matou Zuzu. Ao receber Paulo e do Armazém Memória. Junto com o Relatório foi entregue
a notícia, tal qual Zuzu escrevera no bilhete entre- à CEV-Rio um conjunto de mais de 400 documentos recolhidos em
gue a ele, Chico ficou impactado. Na mesma hora arquivos públicos e acervos pessoais, a partir dos quais os autores
ligou sua morte aos alertas e tratou de tomar provi- fizeram uma reconstrução minuciosa dos onze dias em que Raul
dências para que a imprensa não ignorasse o caso. permaneceu sob a custódia do Estado brasileiro.
Por e-mail, ele relatou à CEV-Rio os passos que se
seguiram: A certeza de que a pesquisa tinha que ser feita veio em 17 de julho
de 2012, quando o jornal O Globo publicou uma foto de Raul Ama-
“ Vou contar como a história se passou. Numa de suas visi- ro em uma matéria2 que trazia trechos de documentos do Serviço
tas à minha casa, Zuzu deixou comigo aquele bilhete que você Nacional de Informações (SNI), desconhecidos pela família. Com a
conhece. O bilhete estava guardado havia um tempo, quando convicção de que era possível avançar nas investigações, seus sobri-
ocorreu o falso acidente com ela. Na época eu estava em con- nhos entraram em contato com Marcelo Zelic para buscar, em arqui-
tato quase diário com o Paulo Pontes, com quem tinha escrito Em bilhete endereçado aos amigos Chico Buarque e Marieta Severo,
Zuzu Angel encaminha cópia do discurso do senador Ted Kennedy, em
Gota d’água e planejava escrever uma nova peça. Mostrei-lhe que ele denunciava que o golpe teve apoio americano e as torturas no 1. FERREIRA, Felipe Carvalho Nin; FERREIRA, Raul Carvalho Nin; ZELIC, Marcelo. Relatório Raul
Amaro Nin. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2014. Disponível em: <http://www.editora.vrc.puc-rio.
o bilhete imediatamente e lhe perguntei se tinha alguma ideia Brasil br/media/ebook_raul_amaro.pdf>.
Crédito: Acervo pessoal Chico Buarque 2. A matéria assinada por Evandro Éboli, com a manchete “Foto localizada pelo GLOBO revela: preso
de como divulgá-lo. Ele então propôs chamarmos lá em casa chegou ao Dops vivo”, reproduzia a foto da entrada de Raul Amaro no DOPS/GB, em 01/08/1971.
o Zuenir Ventura, que redigiu uma carta de introdução ao Afirmava que a referida foto tinha sido recentemente encontrada no Fundo do SNI, no Arquivo
Nacional, quando, na realidade, a imagem já havia sido veiculada pelo próprio jornal em matéria de
bilhete da Zuzu e fez uma relação de destinatários - cerca de 28/08/1971, intitulada “Explicação da morte do engenheiro”, que reproduzia a falsa versão sobre a
9. Acervo CEV-Rio. Relato de Chico Buarque sobre o caso de Zuleika Angel. prisão e morte de Raul, apresentada pelos militares.

200 201
vos públicos e acervos privados, novos documentos Militância, prisão e morte Raul morava em um apartamento alugado na Rua apartamento, na madrugada dia 2 de agosto, tendo
sobre a prisão e o assassinato de Raul. Santa Cristina4, no bairro de Santa Teresa. No dia sido a sua entrada registrada pelo delegado Walter
Raul Amaro nasceu no Rio de Janeiro em 02 de ju- 31 de julho 1971, saiu com um colega do ministé- Dantas7.
A luta por verdade e por justiça da mãe, Mariana nho de 1944. Estudou no Colégio São Bento, onde rio, Saididin Denne, sua esposa, Yone Denne e duas
Lanari Ferreira participou da Juventude Estudantil Católica e da amigas do casal. Nessa noite, Eduardo Lessa dormi- Enquanto esteve no DOPS/GB no dia 2, Raul foi
Academia Literária. Em 1963, entrou para a Pon- ria em seu apartamento. Na volta do restaurante, visto por outros dois presos políticos: Alex Polari e
A primeira etapa da pesquisa buscou resgatar a tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro na madrugada do dia 1º de agosto, o carro foi parado Aquiles Ferrari. O depoimento de Alex para a ação
luta travada por Mariana Lanari Ferreira, mãe (PUC-Rio). Durante a faculdade de Engenharia, in- na Rua Ipiranga, no bairro de Laranjeiras. Os agen- declaratória movida pela família de Raul aponta
de Raul Amaro, para esclarecer o ocorrido com tegrou o Diretório Central dos Estudantes (DCE) e tes prenderam Raul e o casal Yone e Saididin Denne, para a hipótese de que a sua tortura se iniciou ain-
seu filho e manter viva sua memória. Logo após a foi próximo do Movimento Solidarista Universitário e confiscaram alguns mapas que estavam no carro. da no DOPS:
prisão de Raul por agentes da repressão, Maria- (MSU). Graduou-se em Engenharia de Produção em
na tentou, em vão, localizar o filho no DOI-CODI, 1967 e foi contratado pela EMAQ (Engenharia de Raul foi levado para o DOPS/GB onde ficou preso “ estava preso no DOPS, quando da prisão de Raul Amaro;
onde foi informada de que o mesmo não estaria Máquinas S.A.). até a tarde do dia 1º de agosto, quando foi condu- que viu quando chegou, conduzido por policiais da Secretaria
lá – embora estivesse. Dias depois, no HCE, rece- zido por uma equipe liderada pelo delegado Mario de Segurança; que era um fim de semana e que Raul chegou
beu a notícia da morte de Raul. Sem acreditar na Em 1968, Raul Amaro participou de uma série de Borges à casa de seus pais, no bairro da Gávea. bastante espancado e amendrontado, mas que andava e fa-
versão oficial do enfarte, começou uma jornada em manifestações no Rio de Janeiro, como as passea- Raul havia dito que morava com eles como uma for- lava; que no dia seguinte ao da prisão, Raul foi retirado do
busca da verdade. tas dos 100 mil e dos 50 mil. Em meados de 1970, ma de ganhar tempo e permitir que Eduardo Lessa xadrez do DOPS, e levado por policiais da PE8.”
começou a integrar a rede de apoio ao Movimen- saísse de seu apartamento. Em seguida foram para
Ainda durante a ditadura, Mariana enviou cartas a to Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), articu- o apartamento da Rua Santa Cristina, com os pais Corrobora essa hipótese o depoimento do ex-coman-
generais e se reuniu com outros familiares de pre- lada por Eduardo Lessa, seu amigo. Em 1971, foi de Raul seguindo o carro de polícia. A revista durou dante do CODI do I Exército, Adyr Fiúza de Castro,
sos e desaparecidos políticos para cobrar das au- trabalhar no Ministério da Indústria e Comércio a tarde inteira e quando a equipe deixou o local ao afirmar que Raul “havia sido chicoteado com fios
toridades informações sobre Raul e outras vítimas e ganhou uma bolsa de estudos para um curso de levando Raul algemado, Mário Borges limitou-se a no DOPS”9.
do terror de Estado. Propôs a Ação Declaratória nº especialização na Holanda, que teria início em no- informar que o caso era “assunto de competência do
241.0087/99, junto à 9ª Vara da Justiça Federal do vembro de 1971. Exército Nacional”5. No próprio dia 2 de agosto, Raul foi levado para o
Rio de Janeiro, a fim de obter o reconhecimento, por DOI-CODI, onde foi torturado até ser transferido
parte do Estado brasileiro, da tortura e do assassi- De acordo com o relato de sua companheira na Entre as oito horas da noite do dia 1º de agosto e para o HCE em 4 de agosto. As informações sobre
nato do filho. A ação obteve sentença favorável em época, Vera Marina, Raul vivia um momento de uma e meia da madrugada do dia 2, Raul esteve em a tortura a que foi submetido devem-se em grande
1982, mas a decisão condenatória definitiva só veio intenso questionamento, dividido entre a expecta- local incerto. É desse período a primeira “Declara- parte aos depoimentos do ex-soldado Marco Aurélio
em novembro de 1994. Nesse processo, reuniu de- tiva de uma vida formal e a vontade de atuar mais ção do Interrogado” realizada aos agentes do Des- Magalhães, tanto no contexto da ação movida pela
poimentos importantes de pessoas que estiveram ativamente na luta política. Sabedor dos riscos tacamento de Operações de Informações – Centro família quanto em entrevista ao jornal Folha de S.
presas com Raul e de um soldado lotado no DOI-CO- que estava correndo, decidiu integrar uma rede de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do 1º Paulo de 19 de setembro de 1986. Sobre a tortura
DI à época, que o viu ser barbaramente torturado. A de apoio organizada por Lessa sem entrar para a Exército 6. Raul retornou formalmente ao DOPS so- de Raul, Marco Aurélio Magalhães relatou à Folha:
dedicação de Mariana na luta por verdade e justiça clandestinidade3. mente quatro horas depois do fim da revista de seu
tornou possível os posteriores avanços alcançados
4. Em 2013, o coletivo “Nexa” fixou uma placa em memória de Raul, em frente
“ Folha - Você recorda de outros presos?
por Raul e Felipe. à residência em que vivia na época em que foi preso, localizada na Rua Santa Magalhães - De Raul Amaro. Eu assisti desde a sua condução
Cristina, no bairro de Santa Teresa.
5. FERREIRA, Felipe Carvalho Nin; FERREIRA, Raul Carvalho Nin; ZELIC, 7. APERJ, Fundo Polícias Políticas, Setor Administração, Notação 78, p. 446.
3. FERREIRA, Felipe Carvalho Nin; FERREIRA, Raul Carvalho Nin; ZELIC, Marcelo. Relatório Raul Amaro Nin. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2014. 8. Ação Declaratória nº 241.0087/99, 9ª Vara da Justiça Federal do Rio de
Marcelo. Relatório Raul Amaro Nin. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2014. Disponível em: <http://www.editora.vrc.puc-rio.br/media/ebook_raul_ama- Janeiro, p. 214.
Disponível em: <http://www.editora.vrc.puc-rio.br/media/ebook_raul_ama- ro.pdf>. 9. D’ARAUJO, Maria Celina et. al. (Orgs.) Os anos de chumbo: a memória
ro.pdf>. 6. Arquivo Nacional, SNI, ACE_41431_71. militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 70.

202 203
para a cela até a sua agonia, de madrugada, e a sua remoção As mentiras forjadas pela ditadura militar Tal versão é a mesma apresentada pelo jornal O de fardas de militares. A crítica documental consta-
de ambulância para o HCE. Globo, no dia 28 de agosto de 1971: “Vítima de ede- tou que a assinatura de Raul contida nos documentos
Folha - Como você sabia que era o Raul? Em 29 de setembro de 1971, o Centro de Infor- ma pulmonar, após 8 dias hospitalizados, faleceu, produzidos pelos órgãos de informações é bastante di-
Magalhães - Porque no livro lá embaixo tinha o nome dele e a mações do Exército (CIE) produziu a Informação em 12 de agosto de 1971, o subversivo Raul Amaro ferente de sua grafia original, conforme demonstrado
fotografia e porque me impressionou muito o estado dele. Ele n. 2298/7111, que trata da prisão e morte de Raul Nin Ferreira, codinome ‘Eulálio’, que fora preso a 1 no Relatório Raul Amaro15.
começou a ser interrogado por volta das duas horas da tarde e Amaro Nin Ferreira. Segundo a versão oficial, Raul de agosto, quando conduzia, no interior de seu auto-
eles tinham pressa de arrancar informações dele. Ele apanhou Amaro havia sido preso em uma operação “de gran- móvel, documentos terroristas originários do MR-8” HCE: tortura, morte e silêncio
muito. Normalmente os oficiais, mesmo nas celas de interroga- de vulto” para o levantamento de dados que “indi- 13
. A notícia fazia parte da estratégia utilizada pelos
tório, ficavam de coturno (bota militar), com a botina, com a cavam o recrudescimento de ações terroristas sob militares para acobertar os fatos relacionados à pri- O depoimento de Marco Aurélio Magalhães e os fe-
calça de instrução, verde-oliva e a camiseta branca onde nor- a direção das organizações do MR-8 e da Aliança são, tortura e morte de Raul. rimentos descritos no registro de entrada de Raul
malmente colocavam uma fita gomada ou esparadrapo em Libertadora Nacional (ALN)”. O relatório narra no HCE, excluída a mentira sobre a resistência à
cima do nome. O Raul apanhou basicamente de coturno. Levou que foram encontrados em seu veículo croquis de Não é verdade que os croquis, ou “mapas”, encon- prisão, revelam o tratamento brutal sofrido no DOI-
muito chute, muita pancada. O Interrogatório dele começou às áreas do Rio de Janeiro e de São Paulo, identifica- trados no veículo de Raul Amaro indicassem locais -CODI e no DOPS. Pesquisas mais recentes compro-
2h (14h), no meu serviço, eu saí às 4h e ele já tinha apanhado dos como mapas pertencentes ao MR-8 que apon- de residências de militares. Os relatos oficiais são varam a hipótese mais sinistra: a violência sofrida
bastante. Depois eu retornei de 8h às 10h da noite e ele já estava tavam residências de alguns generais e almiran- contraditórios. A primeira versão sobre a prisão, por Raul no interior do Hospital Central do Exército
num estado lastimável, ainda dentro da cela, de capuz. Eu saí tes. Posteriormente, Raul teria sido levado à sua produzida em 6 de agosto de 1971, pelo agente do foi a causa de sua morte.
do serviço às 10h e voltei de 2h às 4h. Quando eu voltei ele já es- residência, supostamente um “aparelho” do MR-8, DOPS Mario Borges, é diferente da versão apre-
tava jogado num canto da sala de interrogatório; já não tinha para que a equipe do DOPS pudesse revistar o lo- sentada pelo Relatório do CIE, datado de 29 de se- O primeiro documento apresentado pelo Relatório
mais condições de andar e estava enrolado numa manta. Che- cal. Os agentes afirmaram, em reunião da Comuni- tembro de 1971. O registro de alterações na narra- Raul Amaro que levanta essa possibilidade é uma
gou um oficial médico que eu já tentei desesperadamente puxar dade de Informações do I Exército realizada no dia tiva oficial pode ser entendido como uma estratégia Declaração do Interrogado produzida pelo DOI16,
pela minha memória para me lembrar se foi o Lobo (Amílcar) 5 de agosto, ter sido encontrado em seu apartamen- das forças de segurança para confundir e associar a com data provável entre os dias 3 e 11 de agosto, pe-
ou o Fayad, mas não me recordo, e disse que ele tinha de ser to um documento intitulado “Ação da Infraestru- imagem de Raul aos grupos organizados que com- ríodo em que Raul encontrava-se internado no HCE.
levado para o HCE porque estava nas últimas, estava morren- tura – Fardamento”, sobre um plano de roubo de batiam a ditadura. Seu objetivo era estabelecer a identidade de Edu-
do. E aquilo me marcou muito porque foi a primeira vez que vi fardamentos de oficiais almirantes e generais. Na ardo Lessa e levantar informações sobre sua rede
uma pessoa agonizando10.” ocasião, Raul teria tentado fugir, tendo sido contido A versão da tentativa de fuga é desmentida pela aná- de apoio. Raul havia dado informações falsas sobre
após “cerrada luta corporal”12. lise documental relativa ao momento da prisão de esses assuntos17.
No HCE, Raul Amaro apresentava um quadro de Raul Amaro. Somente em 18 de agosto, após a mor-
melhora em sua saúde até morrer repentinamen- De acordo com a mesma versão, Raul se mostrara te de Raul, o diretor do DOPS escreveu dois bilhetes A seguir, a comprovação do último interrogatório de
te, provavelmente em 11 de agosto de 1971. A busca “inapetente e abatido” na prisão, apresentando si- orientando a Seção de Buscas Ostensivas a incluir Raul é feita pelo ofício nº360/DOPS-197118, do Minis-
pela verdade iniciada por Mariana Lanari e continu- nais de fraqueza e sintomas de convergência da pres- no relatório que houve resistência à prisão, inclusi- tério do Exército. Datado de 11 de agosto, é dirigido
ada pelo Relatório desconstruiu as diversas versões são arterial, o que teria motivado sua ida ao HCE. ve com violenta luta corporal14. As investigações de- ao diretor do HCE, Rubens do Nascimento Paiva,
montadas pelo regime militar envolvendo a prisão e No hospital, depois de receber cuidados médicos por monstram também ter sido forjada a apreensão, no por ordem do comandante do I Exército, general Syl-
morte de Raul Amaro. Com a ajuda da CEV-Rio e do uma semana, teria morrido repentinamente, vítima apartamento de Raul, do documento “Ação de Infra-
perito Nelson Massini, foi possível comprovar que de edema pulmonar, ocasionado por um infarto, em estrutura – Fardamento”, sobre um plano de roubo 15. FERREIRA, Felipe Carvalho Nin; FERREIRA, Raul Carvalho Nin; ZELIC,
Marcelo. Relatório Raul Amaro Nin. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2014,
Raul Amaro foi torturado enquanto esteve no HCE, 12 de agosto de 1971. p. 91-92. Disponível em http://www.editora.vrc.puc-rio.br/docs/ebook_raul_
13. Explicação da morte do engenheiro. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, Edi- amaro.pdf
como será detalhado mais adiante. ção de 28/08/1971. 16. Arquivo Nacional. SNI, ACE_4022_71.
14. FERREIRA, Felipe Carvalho Nin; FERREIRA, Raul Carvalho Nin; ZELIC, 17. Raul inventou o nome Renato Marcondes Pedrosa para se referir a Edu-
Marcelo. Relatório Raul Amaro Nin. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2014, ardo Lessa. Mesmo após fazer a relação entre os dois nomes, Raul omitiu o
10. ALBUQUERQUE, Severino. Ex-soldado decide falar sobre torturas a pre- 11. Arquivo Nacional, DSI-MJ: BR_AN_RIO_TT_0_MCP_PRO_0207. p. 84-85. Disponível em http://www.editora.vrc.puc-rio.br/docs/ebook_raul_ último encontro entre os dois.
sos políticos. Folha de S. Paulo. Edição de 19/09/1986. p.6. 12. Arquivo Nacional, SNI: ACE_37263_71 amaro.pdf 18. APERJ, Fundo Polícias Políticas. Setor Secreto, Pasta 89, p. 423.

204 205
vio Frota. Seu objetivo: garantir a entrada no HCE
de dois agentes, o comissário Eduardo Rodrigues e
o escrivão Jeovah Silva, “a fim de interrogarem o
preso Raul Amaro Nin Ferreira”19.

No mesmo dia, a agência do SNI/RJ distribuiu o Re-


latório Sumário da Seção de Análise do DOI / I Ex,
que termina da seguinte forma:

“ O marginado se declara “aliado” do MR-8; em nosso enten-


der pelo material encontrado em seu poder e pelos laços que
mantém com Eduardo Lessa Peixoto de Azevedo, Raul Amaro
é militante da Organização com vida legal. Não houve tempo
para inquiri-lo sobre todo o material encontrado em seu po-
der20.”

Considerando esta última frase, pode-se deduzir que


a morte de Raul ocorreu ainda no dia 11 de agosto
e não no dia 12, como consta em seu Atestado de
Óbito21.

Evolução das equimoses no corpo de Raul Amaro desde o momento de sua prisão até a morte no HCE. Os gráficos comprovam que ele foi alvo de
Os documentos levantados, o relato sobre a saúde de torturas no período em que esteve internado no hospital
Raul e uma primeira constatação de que havia mais Crédito: Acervo CEV-Rio

ferimentos em seu corpo no momento de sua morte


do que quando de sua entrada no HCE, motivaram a encontradas no corpo de Raul foram ocasionadas em ta forma, confirma que “parte das lesões foi produzi-
Comissão da Verdade do Rio a solicitar, em parceria três momentos diferentes: antes de sua entrada no da em datas relacionadas ao período de internação
com familiares de Raul Amaro, um parecer médico HCE (entre os dias 2 e 4 de agosto), durante sua no Hospital Central do Exército” 24 e que as mesmas
legal sobre o caso. internação (entre os dias 6 e 8 de agosto) e, ainda no “são classificadas como oriundas de um processo de
hospital, logo antes de sua morte (entre os dias 10 e sofrimento físico (TORTURA)25.”.
O parecer foi apresentado durante audiência públi- 11 de agosto)22. O laudo conclui que “existe uma dife-
ca realizada na sede da CEV-Rio em 11 de agosto de rença de quantidade e tipos de lesões descritas entre No dia 23 de setembro de 2014, diligências orga-
2014, dia em que se completavam 43 anos da morte o exame feito na admissão no HCE e as descritas no nizadas pela CNV e pela CEV-Rio entraram nos
de Raul Amaro. O médico-legista Nelson Massini fez exame cadavérico que são em maior número”23. Des- dois proncipais locais do suplício de Raul Amaro.
a apresentação do laudo que confirmou que as lesões Pela manhã, uma comitiva formada pelas duas
22. Acervo CEV-Rio. Parecer Médico Legal sobre a tortura e morte de Raul
Ofício enviado do Comando do Iº Exército ao HCE autorizando a 19. APERJ, Fundo Polícias Políticas. Setor Secreto, Notação 89, p. 423 20. Amaro Nin Ferreira nos anos de chumbo, de 08/2014, p. 24. Disponível em: comissões, peritos e ex-presos políticos, incluindo
Arquivo Nacional. SNI, ACE_41431_71. http://www.cev-rio.org.br/wp-content/uploads/2014/08/parecer_massinipdf.
entrada dos agentes do DOPS Eduardo Rodrigues e Jeovah Silva para 20. Arquivo Nacional. SNI, ACE 41431/71. pdf familiares de Raul Amaro, entrou no quartel onde
interrogarem Raul Amaro 21. FERREIRA, Felipe Carvalho Nin; FERREIRA, Raul Carvalho Nin; ZELIC, 23. Acervo CEV-Rio. Parecer Médico Legal sobre a tortura e morte de Raul
Crédito: APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: Secreto, Notação: 89 Marcelo. Relatório Raul Amaro Nin. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2014, p. Amaro Nin Ferreira nos anos de chumbo, de 08/2014, p. 25. Disponível em:
77. Disponível em http://www.editora.vrc.puc-rio.br/docs/ebook_raul_amaro. http://www.cev-rio.org.br/wp-content/uploads/2014/08/parecer_massinipdf. 24. Idem.
pdf pdf 25. Idem.

206 207
funcionou o DOI-CODI. Ali foi possível identificar mas também qualquer iniciativa dos procuradores HONESTINO MONTEIRO GUIMARÃES
e fotografar a sala onde foi testemunhada a tortu- em relação à investigação do caso Raul Amaro. O
ra de Raul. Na parte da tarde o grupo entrou no MPF entrou com recurso. A concessão de um habe- O goiano Honestino Monteiro Guimarães militou na organização
Hospital Central do Exército. Além de confirmar as corpus a um general que chefiou o DOI-CODI, política Ação Popular (AP) desde os 17 anos. Foi presidente do Dire-
alterações na estrutura do local, a diligência teve e que não é citado nas investigações, paralisou o tório Acadêmico de Geologia da Universidade de Brasília (UnB), da
como objetivo procurar documentos e tornar públi- empenho do MPF em reestabelecer a verdade. Com Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília - FEUB, e
ca a solicitação já antiga de diversos ex-presos por a cobertura do Judiciário, o Exército permanece vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), na chapa
seus prontuários médicos. O prontuário de Raul foi atento e zela pela impunidade dos crimes pratica- de Jean Marc Van der Weid, a quem posteriormente sucedeu. A par-
solicitado mais uma vez, já que o Grupo de Traba- dos por seus agentes. tir de sua entrada na UnB, destacou-se como líder estudantil e foi
lho Justiça de Transição do Ministério Público Fe- preso diversas vezes, entre 1966 e 19681. A última prisão, ocorrida
deral (MPF), que abriu investigação criminal sobre durante a invasão da Universidade por tropas do Exército, está re-
o caso na Justiça, já havia solicitado ao HCE e ao gistrada no filme Barra 68 de Wladimir Carvalho. Com a edição do
Comando do Exército essa informação. A resposta Ato Institucional n°5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, Honestino
foi sempre a mesma: o silêncio. deixou Brasília e passou a atuar na clandestinidade. Continuou sua
atividade política de resistência à ditadura na organização Ação Po-
No âmbito de sua investigação, o MPF recebeu de- pular Marxista Leninista (APML), até desaparecer, em 10 de outu-
núncia de que pastas de documentos haviam sido re- bro de 1973, com 26 anos2.
tiradas dos arquivos e colocadas próximo à garagem
e em local fora do perímetro do hospital. Em conse- Depois de condenado à revelia pela 11ª Circunscrição Judiciária Mili-
quência, cumpriu mandado de busca e apreensão no tar de Brasília em 31 de agosto de 1972 por sua condição de dirigen-
interior do hospital a fim de localizar prontuários e te da UNE3, posta na ilegalidade, e de uma organização política de
outros documentos do período da ditadura militar. oposição à ditadura, passou a ser intensamente procurado em todo o
Em 14 de novembro, os procuradores Sergio Suiama país. Neste período de vida clandestina, que durou mais de dois anos,
e Antonio Cabral, acompanhados de agentes da Po- há registros de sua passagem pelo Rio, São Paulo e Brasília4.
lícia Federal estiveram no HCE e confirmaram que
houve uma movimentação de pastas, dando origem Documentos localizados pela CEV-Rio no Arquivo Público do Es-
ao pedido de instauração de inquérito policial pelo tado do Rio de Janeiro (APERJ) revelaram que até 1972 os ór-
crime de ocultação de documentos. gãos de repressão não tinham um conhecimento certo de sua lo-
calização. As referências a seu nome em documentos oficiais eram
No desdobramento dessas investigações, o general sempre vagas, indicando apenas sua atuação no eixo Rio-São
reformado do Exército, José Antonio Nogueira Be- Paulo-Brasília5. Entretanto, esse quadro muda com a realização
lham impetrou um habeas corpus contra o ato do do Congresso da UNE, em Niterói, entre outubro e novembro de
juiz que conferiu a busca e apreensão. Ex-coman- 1. SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa / Comissão da Verdade do Estado de São Paulo
dante do DOI-CODI do Rio de Janeiro em 1970 e “Rubens Paiva”. Dossiê Honestino Monteiro Guimarães. Disponível em http://verdadeaberta.org/
upload/003-dossie-honestino.pdf.
1971, réu nao ação do inquérito Rubens Paiva, Be- 2. SCHIMIDT, Criméia et. al. (org). Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil
(1964/1985)/Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, IEVE – Instituto de Estu-
lham não estava sendo investigado no caso Raul dos sobre a violência do Estado. 2ª ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 467-469
3. APERJ. Fundo Polícias Políticas do Rio de Janeiro. Setor Alvarás. Notação 3.
Amaro. Foi concedida medida liminar suspendendo 4. APERJ. Fundo Polícias Políticas do Rio de Janeiro. Setor Prontuário RJ. Notação 32.460 - Hones-
não só o andamento da busca e apreensão no HCE, tino Monteiro Guimarães.
5. Idem.

208 209
1971. Um dos documentos analisados, de origem foi internado no Rio de Janeiro”8. Começou nesse Os esforços combinados das Comissões da Verdade sobre os Mortos e Desaparecidos da Câmara Federal, tornou-se
do Centro de Informações do Exército, acerca da momento a busca incessante da família para en- (Nacional, estaduais do Rio de Janeiro e de Per- público o seu papel. Declarou naquela comissão: ‘No período,
realização do XXXI Congresso da Ex-UNE, infor- contrá-lo. Dona Maria Rosa faleceu em 2012 sem nambuco, Universitária da UnB e dos estudantes quem era da AP e entrou em contato direta ou indiretamente
mava que “subversivos pertencentes à APML do B saber o paradeiro do filho. Deixou um livro, Hones- da UNE) levantaram pistas que ajudam a escla- com José Carlos, Gildo, Madalena e comigo, dançou’. E mais:
(Ação Marxista Leninista do Brasil), ultimamente tino - O bom da amizade é a não cobrança, onde recer as circunstâncias de sua prisão. Entre se- ‘Tenho certeza absoluta de que se alguém pode dar conta de
presos em Goiânia/GO”, declararam que Honestino relata episódios de sua busca pelos órgãos milita- tembro e outubro de 1973, ocorreram as quedas de onde estão os corpos é o pessoal do CIEx’. De algum modo, as
presidira o Congresso6. O cerco estava se fechando. res. À época, acompanhada do outro filho, Norton, cinco militantes da organização APML, cujos diri- mortes e desaparecimentos de Paulo Stuart Wright, Eduardo
Antes de ser sequestrado, Honestino havia escrito dirigiu-se ao Centro de Informações da Marinha gentes estavam sendo acompanhados pelos órgãos Collier Filho, Humberto Camara Neto, Fernando Santa Cruz,
um texto-denúncia, sobre sua luta pela democracia (CENIMAR), no Rio de Janeiro. Impedida de en- de informação do Exército: Paulo Stuart Wright, Honestino Guimarães, Gildo Macedo Lacerda, José Carlos da
e as perseguições que sofria, intitulado “Mandado trar, ouviu de um agente que Honestino teria sido que desapareceu em 05 de setembro; Umberto de Mata Machado decorreram do ‘trabalho’ de Gilberto Prata So-
de Segurança Popular”7, que deveria ser divulga- jogado no mar9. Outra história narrada no livro e Albuquerque Câmara Neto, desaparecido em 08 de ares como guia da repressão14.”
do caso fosse preso. O texto tornou-se público após marcada pela crueldade dos agentes militares ocor- outubro; Honestino Monteiro Guimarães, no dia
o dia 9 de outubro de 1973, quando saiu para um reu no final de 1973. O comandante do Pelotão de 10; José Carlos Novaes da Mata Machado, preso Na mesma ocasião, Gilberto declarou à Comissão
“ponto de encontro” com um companheiro e nunca Investigações Criminais (PIC) de Brasília prome- no dia 19, e Gildo Macedo Lacerda, preso no dia 22. Externa que um oficial, identificado como Dr. César,
mais voltou. teu à dona Maria Rosa que ela poderia ver o filho Estes dois últimos foram assassinados no dia 28 de fez o convite em fevereiro de 1973, quando se en-
no dia de Natal. Entretanto, ao chegar ao PIC, os outubro de 197311. As pesquisas indicam que todas contrava em Brasília, para que colaborasse com a
No dia 13 do mesmo mês, sua mãe, Maria Rosa Lei- militares disseram-lhe que Honestino não se en- as prisões estão relacionadas. repressão após 45 dias sendo interrogado. O codino-
te Monteiro, recebeu uma mensagem: “Honestino contrava preso no local10. me “Dr. César” era utilizado pelo coronel José Brant
Documentos localizados no Arquivo Nacional12 rela- Teixeira, do CIE, confirmando a participação deste
tam a operação do Exército que culminou no assas- órgão nas operações que levaram ao desaparecimen-
sinato dos militantes José Carlos da Mata Machado to de Honestino Guimarães.
e Gildo Macedo Lacerda. Denominada de “Operação
Cacau”, as ações militares tiveram início em junho Outra possibilidade investigada pela CEV-Rio para
de 1973 na área da 6ª RM, em Salvador, e visavam o desaparecimento de Honestino está associada à
“assinalar e destruir a célula da APML estruturada sua atividade no movimento estudantil da Univer-
na Bahia”13. No livro de Nilmário Miranda e Carlos sidade Federal Fluminense (UFF). Na época de seu
Tibúrcio, Dos filhos deste solo, o ex-militante Gilber- sequestro, ele mantinha contatos com estudantes
to Prata Soares é apresentado como o elo que levou das áreas da Engenharia e da Geologia, cumprin-
às quedas da Ação Popular em 1973, quando passou do tarefas de reorganização da APML na região. Em
a colaborar com o CIEx: depoimento à CEV-Rio15, o então dirigente do Centro
Acadêmico de Engenharia da UFF, Fernando Pere-
“ Durante oito anos Gilberto recebeu ‘ajuda de custo’ do grino, relatou ter tido vários encontros com Hones-
Mandado de Segurança Popular escrito por Honestino Guimarães 8. SCHIMIDT, Criméia et. al. (org). Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos
CIEx. Em 1981, mudou-se para João Pessoa. Em agosto de 1984 tino naquele período. Pellegrino acredita que estava
Crédito: site http://honestinoguimaraes.com.br/ políticos no Brasil (1964/1985)/Comissão de Familiares de Mortos e Desapa- procurou Madalena [Prata Soares, sua irmã e companheira sendo monitorado por agentes do DOPS. O militan-
recidos Políticos, IEVE – Instituto de Estudos sobre a violência do Estado. 2ª
ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 467-469. de José Carlos Mata Machado] e confessou-lhe tudo. Mas só em te tinha um encontro marcado com Honestino para
9. MONTEIRO, Maria Rosa Leite. Honestino – o bom da amizade é a não co-
brança. Brasília: Da Anta Casa Editora, 1998. 1993, quando prestou depoimento perante a Comissão Externa
6. APERJ. Fundo Polícias Políticas do Rio de Janeiro. Setor Comunismo. No- 10. SCHIMIDT, Criméia et. al. (org). Dossiê Ditadura: mortos e desapare- 14. MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Editora
tação 102. cidos políticos no Brasil (1964/1985)/Comissão de Familiares de Mortos e 11. Idem. Fundação Perseu Abramo, 1999. p. 498
7. Portal Honestino Monteiro Guimarães. Disponível em http://honestinogui- Desaparecidos Políticos, IEVE – Instituto de Estudos sobre a violência do 12. Arquivo Nacional, SNI, ASV_ACE_4760_82. 15. Acervo CEV-Rio. Relatório de Entrevista com Fernando Peregrino para
maraes.com.br/mandado-de-seguranca-popular/3/ Estado. 2ª ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 467-469 13. Idem. a CEV-Rio.

210 211
“dois dias antes ou depois” do dia 10 de outubro, no pico de desaparecimento produzido pelos órgãos de FERNANDO SANTA CRUZ E EDUARDO COLLIER
centro do Rio, na Avenida Presidente Antonio Car- repressão da ditadura de 1964. Não há registros e
los. Honestino não apareceu. testemunhas de sua prisão, do local para onde foi Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira nasceu em Recife (PE), em
levado, torturado e morto, nem informações sobre o 20 de fevereiro de 1948. Iniciou cedo a militância, participando do
As pesquisas realizadas pela CEV-Rio demonstram paradeiro de seu corpo. Pistas trabalhosamente per- movimento estudantil secundarista em Pernambuco, entre 1966 e
que Honestino encontrava-se no Rio nos dias que corridas por seus familiares durante anos e investi- 1968. Em 1966 foi preso em manifestação de rua, na capital per-
antecederam sua prisão, que estaria relacionada à gações feitas pelas Comissões da Verdade ainda não nambucana, ficando detido no Juizado de Menores. Já em 1968 veio
operação comandada pelo Centro de Informações conseguiram esclarecer as circunstâncias do crime, para o Rio, ingressando quatro anos depois no curso de direito da
do Exército (CIE), que resultou na queda da dire- que se inscreve entre aqueles imprescritíveis pela Universidade Federal Fluminense (UFF). No ano seguinte, abando-
ção da APML. Em seguida, teria sido entregue ao legislação internacional de Direitos Humanos. nou a UFF e foi para São Paulo.
CENIMAR16, agência que centralizava as buscas
para sua localização. Sua morte, portanto, teria Em 1974, Fernando Santa Cruz militava pela Ação Popular Marxis-
ocorrido no Rio de Janeiro, numa ação combinada ta Leninista (APML). No dia 23 de fevereiro deste ano, uma tarde
do CIE e do CENIMAR. de sábado de carnaval, estava no Rio de Janeiro visitando a casa do
irmão. Por volta das 15h30, saiu dizendo que iria a Copacabana se
Duas outras hipóteses foram investigadas pela CEV- encontrar com o amigo de infância e companheiro de organização,
-Rio, mas não confirmadas. A primeira seria a de Eduardo Collier Filho. À família, avisou que se até as 18h não re-
que, preso no Rio, Honestino teria sido levado para tornasse, era porque teria sido preso. Fernando e Eduardo nunca
o Recife. A suspeita se deve ao fato de que, dos cinco mais foram vistos.
dirigentes da APML desaparecidos entre setembro
e outubro de 1973, há certeza de que Gildo Macedo Eduardo Collier também nasceu em Recife, em 5 de dezembro do
Lacerda e José Carlos da Mata Machado foram mor- mesmo ano que Fernando. Cursou direito na Universidade Federal
tos no DOI-CODI da região e há a suspeita de que da Bahia (UFBA), onde militou no movimento estudantil. Em 1968,
outros dois militantes tenham sido mortos no mes- com a queda do 30º Congresso Nacional dos Estudantes (UNE), que
mo local. Outra linha indica que, depois de preso no aconteceu em Ibiúna (SP), foi preso. Transferido para Salvador, foi
Rio, Honestino teria sido levado para Brasília. Em um dos últimos detidos a ser libertado. Sua prisão desdobrou-se em
seu livro, Maria Rosa, mãe de Honestino, conta que um inquérito que o levou a ser expulso em 1969 da UFBA, pelo De-
um agente do PIC de Brasília17, conhecido de uma creto-Lei 477/69. Foi militante da Ação Popular (AP) e, a partir de
amiga, disse que o viu preso naquele período. Em 1972, assim como Fernando Santa Cruz, alinhou-se à Ação Popular
conversa com a CEV-Rio, contudo, o agente, que soli- Marxista Leninista (APML).
citou sigilo de sua identidade, negou a informação18.
Fernando e Eduardo tinham 26 anos quando foram capturados jun-
O sequestro de Honestino Guimarães é um caso tí- tos e mortos pela ditadura. Na tarde do desaparecimento, os órgãos
de segurança invadiram o apartamento de Eduardo. Eles reviraram
16. SCHIMIDT, Criméia et. al. (org). Dossiê Ditadura: mortos e desapare-
cidos políticos no Brasil (1964/1985)/Comissão de Familiares de Mortos e tudo, levando alguns livros. A partir de então, os familiares de Edu-
Desaparecidos Políticos, IEVE – Instituto de Estudos sobre a violência do
Estado. 2ª ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2009. p. 467-469 ardo Collier e Fernando Santa Cruz empreenderam uma histórica
17. MONTEIRO, Maria Rosa Leite. Honestino – o bom da amizade é a não
cobrança. Brasília: Da Anta Casa Editora, 1998. busca por pistas e consolidaram uma exaustiva reunião de indícios
18. Acervo CEV-Rio. Relatório de entrevista com agente do PIC de Brasília à sobre o paradeiro dos dois jovens militantes.
CEV-Rio.

212 213
As famílias se apressaram em buscar ajuda e notícias sa dos direitos humanos. Encaminharam denúncias São Paulo relatou em seu depoimento à Comissão uma foto de um jovem morto, com características fí-
em todos os organismos nacionais e internacionais. à Anistia Internacional, à Comissão Interamericana Nacional da Verdade (CNV) que, no âmbito de uma sicas muito semelhantes às de Fernando. Na foto,
Na Cruz Vermelha, no Rio, foram recebidos pelo di- de Direitos Humanos (CIDH) e levaram casos ao Tri- operação comandada pelo Centro de Informações do segundo a descrição da guia de encaminhamento do
retor Gastão Jacinto Gomes, que confirmou a prisão bunal Bertrand Russel. A CIDH chegou a interpelar Exército (CIE), Fernando e Eduardo poderiam ter corpo ao IML, um jovem teria sido atropelado no dia
de Fernando e Eduardo, informação obtida, segundo o Brasil acerca dos casos, no ano de 1979, mas o Bra- sido levados ao DOI-CODI do Rio de Janeiro e, de 25 de junho de 1974, na Avenida Suburbana, altura
revelou à família, de um coronel do Exército. No iní- sil negou que os militantes tivessem morrido sob sua lá, conduzidos para a Casa da Morte, em Petrópolis2. do subúrbio de Piedade, dando entrada no Hospital
cio, Gastão se mostrou receptivo e chegou a dizer que custódia, sustentando a versão de que Fernando es- Esta possibilidade também é aventada por outro Salgado Filho, às 20h55. Às 23h20, o jovem ferido foi
ambos haviam sido presos, e estariam no DOI-CODI tava na “clandestinidade” e de que Eduardo estava agente da ditadura: Claudio Guerra, ex-delegado da transferido para o Hospital Souza Aguiar, onde veio
do II Exército, em São Paulo, para averiguações. Até “foragido”. Polícia Civil e do DOPS/ES, em depoimentos pres- a falecer. Seu corpo deu entrada como “indigente”
que um dia, pediu: “não tenho mais notícias para dar tados à CEV-Rio3 e à CNV4, narrou a forma como às 12h05 no IML, portanto, já 26 de junho. O laudo
a vocês, e não voltem mais aqui”1. Uma segunda hipótese foi levantada sobre o caso transportava corpos de vítimas da casa de Petrópo- cadavérico, produzido sob a supervisão do diretor
de Eduardo e Fernando. O ex-sargento do Exército, lis para serem incinerados na Usina de Cambahy- Hyran Barbieri Costa, foi assinado pelos médicos
No II Exército, as famílias conseguiram a confir- Marival Chaves Dias, que serviu no DOI-CODI de ba, em Campos dos Goytacases, norte do Estado do legistas Grachho Guimarães Silveira e Jorge Nunes
mação, por parte de um funcionário de nome “Ma- Rio de Janeiro. Guerra afirma que, dentre os cor- Amorin. O corpo foi levado para o cemitério do Ca-
rechal”, de que os rapazes se encontravam lá. A sus- pos transportados por ele, estavam os de Eduardo cuia, Ilha do Governador.
peita foi reforçada pela reação do mesmo funcionário Collier e Fernando Santa Cruz:
que, ao tomar conhecimento dos nomes dos dois mi- Seguindo esta hipótese, havia outro jovem suposta-
litantes procurados, acrescentou o sobrenome “Oli- “ Quando estava perto, chegando, parava num bar ou lan- mente morto por atropelamento, no dia 07 de julho
veira” ao nome de Fernando, sem que a família o chonete e avisava o coronel, que sempre estava lá quando eu de 1974, que poderia ser Eduardo Collier. Desta vez,
tivesse mencionado. No entanto, ao voltarem no do- ia buscar os corpos. Eu entrava nas dependências por uma es- o acidente teria ocorrido na Av. Presidente Kenne-
mingo, o dia de visitas, outro funcionário, que disse pécie de garagem e pegava os corpos que já estavam prepara- dy, Gramacho, Duque de Caxias. O atropelamento
se chamar Homero, desmentiu a presença dos dois. dos. Fiz ainda outras viagens entre a Casa da Morte e a usina teria se dado às 05h30 deste dia, e o óbito às 14h30.
Este fato configurou a primeira hipótese para o des- de Campos para levar corpos, que eu identifiquei, pelo livro No Laudo cadavérico, onde consta o nome do dire-
tino de Fernando e Eduardo: após interrogatórios no 5
, serem de Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, Eduardo tor Hyran Barbieri Costa, estão também os médicos
DOI-CODI de São Paulo, é possível que os seus cor- Collier Filho, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho6.” responsáveis: Nelson Caparelli e o auxiliar Darcy
pos tenham sido sepultados no Cemitério Dom Bos- Fischer. A descrição do cadáver é bastante seme-
co, em Perus, como indigentes. Esta foi uma prática Havia ainda uma terceira hipótese, levantada a lhante à do “atropelado” anterior. No dia 17 de julho,
corrente da ditadura. partir de investigações iniciadas pelo Grupo Tortura o corpo foi encaminhado ao cemitério do Cacuia, na
Nunca Mais (GTNM), que juntamente com Márcia, Ilha do Governador.
Foi ainda em 1974, mais precisamente no dia 17 de irmã de Fernando Santa Cruz, localizou no acervo
julho, que as famílias de Fernando e de Eduardo re- do Instituto Médico Legal (IML) do Rio de Janeiro, Diante deste quadro, a CEV-Rio juntou as digitais
ceberam o indeferimento de habeas corpus impetra- de Eduardo e Fernando à documentação dos dois
2. Depoimentos de Marival Chaves Dias do Canto à Comissão Nacional da
dos por solicitação das famílias. Ainda assim, conti- Verdade. Arquivo CNV, 00092.000929/2012-07; 00092.000686/2013-80 e jovens supostamente atropelados, enterrados como
nuaram a luta por informações sobre o paradeiro de 00092.000283/2014-11. indigentes, encaminhando-as ao Instituto Félix Pa-
3. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Cláudio Guerra à Comissão da Verdade
seus filhos, as circunstâncias das mortes e o destino Ofício enviado pelo chefe da ASI do MEC para o Reitor da UFF, do Rio. checo (IFP) para ser realizada a confrontação das
4. Depoimento de Cláudio Guerra à Comissão Nacional da Verdade. Arquivo
dos corpos. Acionaram políticos e instituições de defe- solicitando informações sobre Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier
CNV, 00092.001686/2014-88. digitais. A resposta dada pelo IFP foi negativa para
Crédito: Acervo do projeto “Memórias da Ditadura na UFF” da
Associação dos Docentes da Universidade Federal Fluminense
5. O livro a que Guerra se refere é o Relatório da Comissão Especial sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos. ambos os casos7.
1. ASSIS, Chico de (et. al.). Onde Está Meu Filho?. Recife: Cepe, 2011. p. (ADUFF-SSind)/Seção de Arquivo Permanente da Universidade Federal 6. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Cláudio Guerra à Comissão da Verdade
141-143. Fluminense. Acervo ASI-UFF. Caixa 5 do Rio. 7. Acervo CEV-Rio. Ofício CEV-Rio 039/2015, Ofício PCRJ 220/1200/2015.

214 215
Capítulo 14 - CHACINAS jaú, foram mortos cinco homens e uma mulher, e em Nacional” foram recebidos “à bala” ao penetrar no que quando já estava escuro, entre 20h e 22h, foram
Jacarepaguá três homens e uma mulher. Em sua “aparelho subversivo”. Em legítima defesa, teriam surpreendidos com batidas nas portas e ordens se-
Segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, maioria eram jovens. Para todas elas, a mesma ver- revidado. Assim, ao adentrar o ambiente, teriam en- veras para que não saíssem. Então, rajadas de me-
o termo “chacina” é definido como: “assassínio em são cínica e falsa divulgada pelos jornais na época: contrado nos fundos da casa os corpos de duas mu- tralhadoras partiram da rua na direção da casa de
massa, em geral com crueldade; matança; morticí- resistência dos militantes seguida de tiroteio, como lheres e um homem3. número 8.985. Em seguida, um silêncio pesado bai-
nio, praticado por policiais ou jagunços”1. Na defini- ocorre ainda hoje com os forjados autos de resistên- xou sobre a vila e só foi quebrado 42 anos depois. No
ção da Comissão Nacional da Verdade (CNV): “Exe- cia da Polícia Militar na invasão de comunidades em relato do vizinho Orlando de Brito:
cuções sumárias praticadas por agentes estatais que favelas.
compreendem o assassinato de três ou mais pessoas “ Foi tudo bem caladinho. Mas eles [os agentes] chegaram
no mesmo local, aqui tratadas sempre como chaci- Chacina de Quintino aqui na janela mandando a gente se proteger e ficar debaixo
nas, ainda que sua designação histórica tenha, por da cama. (...). Entre dez e onze horas da noite. Na hora em que
vezes, sido cristalizada com a expressão massacre”2. foram fazer a execução, eles pediram que nós ficássemos em
casa, porque eles (as vítimas) podiam ter munição também e
Chacinas são, portanto, homicídios violentos e si- atirar, mas era muita gente, eles não podiam4.”
multâneos, em que as vítimas não têm chance de
defesa ou estão evidentemente em condições de rea- Outra vizinha, Heloísa Helena de Almeida, de 69
ção inferiores às dos executores. Entre os casos exa- anos, também afirmou que os tiros não partiram de
minados pela Comissão Estadual da Verdade do Rio dentro da casa:
(CEV-Rio), estão a Chacina de Quintino e as duas de
militantes do Partido Comunista Brasileiro Revolu- “ O tiroteio comeu. A polícia é que atirava. Quando eles [as
cionário (PCBR). vítimas] viram que o negócio estava assim, tentaram entrar
A Chacina de Quintino ocorreu em 29 de março de na casa 70 lá por trás, que tinha caminho, e eles queriam fugir
Estas três chacinas resultaram no assassinato de 1972. A ação foi comandada pelo Destacamento de por trás, por essa rua [aponta a direção da linha férrea]. E a
13 militantes políticos de organizações da luta ar- Operações de Informações do Centro de Operações polícia metralhou5.”
mada. Na Chacina de Quintino, Zona Norte do Rio de Defesa Interna (DOI-CODI) com o apoio do De-
de Janeiro, num episódio até então pouco conhecido, partamento de Ordem Política e Social da Guanaba- Em 26 de outubro de 2013, a CEV-Rio realizou um
foram mortos, em março de 1972, três militantes da ra (DOPS) e da Polícia Militar e culminou na morte Testemunho da Verdade sobre a Chacina de Quinti-
Vanguarda Armada Revolucionária (VAR-Palma- de três dos quatro integrantes da Vanguarda Arma- Comunicado do DOPS foi a base para a elucidação da Chacina de no. Na ocasião, foram ouvidos Fátima Setúbal (irmã
Quintino pela CEV-Rio
res). Já as duas do PCBR, a primeira em dezembro da Revolucionária Palmares que estavam no apare- de Antônio Marcos Pinto de Oliveira), Iara Lobo Lei-
Crédito: APERJ
de 1972, no Grajaú, e a segunda em outubro de 1973, lho localizado na casa 72 da vila de número 8.985, te (filha de Maria Regina), Francisco Nóbrega (ir-
em Jacarepaguá, totalizaram dez vítimas. da Avenida Suburbana, no bairro de Quintino, Zona A CEV-Rio realizou uma diligência ao local da Cha- mão de Lígia Maria Salgado), Lília Ferreira Lobo
Norte do Rio. Os mortos na chacina foram Antônio cina e coletou o depoimento de quatro vizinhos que (amiga de Maria Regina), e Adauto Dourado de Car-
O modo de ação dos agentes estatais foi praticamen- Marcos Pinto de Oliveira, estudante, 22 anos, Lígia presenciaram a ação. Segundo eles, as forças de se- valho, militante da VAR-Palmares que reconheceu o
te o mesmo. Em Quintino, duas mulheres e um ho- Maria Salgado Nóbrega, pedagoga, 24 anos e Maria gurança chegaram à vila ainda durante a tarde do corpo de Antônio Marcos no IML.
mem foram assassinados dentro de casa. No Gra- Regina Lobo Leite de Figueiredo, pedagoga, 33 anos. dia 29 e ficaram escondidos em frente à casa, no que
antes era um terreno baldio, e hoje é um prédio. Em-
1. Editora Objetiva, 2001, p. 685
2. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
A versão oficial, relatada no Livro de Ocorrências do bora não seja possível precisar a hora, eles afirmam 4. Acervo CEV-Rio. depoimento de Orlando de Brito para a CEV-Rio em dili-
gência a Quintino realizada em 01/10/2013.
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume I. p. 480, § 151. DOPS, afirma que “agentes da área de Segurança 5. Acervo CEV-Rio. depoimento de Heloisa Helena de Almeida para a CEV-Rio
3. APERJ, Fundo: Polícias Políticas, Setor: Administração, Notação: 86. em diligência a Quintino realizada em 01/10/2013.

216 217
médicos6. Procurado pela CEV-Rio, Tagliari confir- próximo a Quintino. Assim, a guia de número 4 era Para aprofundar o conhecimento sobre Wilton Fer-
mou que o laudo cadavérico que elaborou à época referente a ele8. Destaca-se que no Livro de Diligên- reira, a CEV-Rio localizou uma importante teste-
dos fatos, descrevendo possíveis sinais de tortura no cias do DOPS as ocorrências são escritas pelo mes- munha: Hélio da Silva, também integrante da VAR-
corpo de Antônio Marcos, foi adulterado. mo agente, com a mesma linguagem, tendo a mesma -Palmares, foi preso na manhã do mesmo dia em que
equipe participado de ambas ações9. ocorreu a Chacina e foi levado para o DOI-CODI. Já
O nome de um quarto morto era também usualmen- amanhecendo, foi retirado da Barão de Mesquita e
te vinculado ao cenário de Quintino: Wilton Ferrei- levado para reconhecer os corpos. Calou-se sobre a
ra. Ele não era militante e estabelecera um acordo identidade de Antônio Marcos, o que reforçou a tese
com James Allen para tomar conta da garagem onde de que ele seria James Allen. Temendo voltar para
funcionava a oficina da organização. A Comissão a tortura, ele abriu o endereço da oficina. Em suas
comprovou que na verdade ele foi morto perto dali, palavras: “Eu não sabia que o Wilton estava moran-
na mesma noite. Segundo apuração do GTNM, com do lá. Quando a Polícia chegou, com o barulho, Wil-
base em jornais da época, ele teria sido abatido em ton veio abrir e recebeu logo uma disparada de tiros,
um aparelho próximo. Para a Comissão Especial caindo morto”10.
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP),
Wilton Ferreira aparece como vítima da chacina Houve ainda um segundo impasse em relação aos
João Ricardo Dornelles, membro da CEV-Rio, exibe a foto da casa onde
foram massacrados os militantes da VAR-Palmares, durante audiência de Quintino7. Seu caso aparece no Relatório da CE- corpos enviados ao IML. Num primeiro momento,
que expôs a elucidação da Chacina de Quintino MDP, mas não foi julgado por aquela Comissão. De chegou-se a pensar que o corpo de Antônio Marcos
Foto: Bruno Marins
acordo com as pesquisas da CEV-Rio, seu corpo foi fosse o de James Allen11. Fator fundamental para a
A Comissão apresentou ainda o conjunto de docu- transferido para o IML pelos órgãos de repressão elucidação do equívoco foi o reconhecimento do cor-
mentos utilizados na investigação. A partir dessa juntamente com os das vítimas de Quintino, fazendo po de Antônio Marcos, no IML, pelo seu companhei-
documentação, comprovou-se que não foram encon- crer que se tratasse de mais um morto no massacre. ro de organização, Adauto Dourado de Carvalho. Ele
trados vestígios de pólvora nas mãos das vítimas. foi retirado do DOPS, onde se encontrava, para reco-
Assim, o núcleo de perícia da Comissão Nacional da A CEV-Rio apurou que no dia seguinte à chacina, nhecer o cadáver. Ao comparar as digitais de Antônio
Verdade pôde constatar a impossibilidade de ter ha- 30 de março, o delegado do DOPS, Arthur Eduardo Marcos com as de James Allen, o diretor do Instituto
vido troca de tiros e afirmar que se tratou de uma de Brito Pereira, enviou agentes ao Instituto Médico Félix Pacheco dirimiu a dúvida, comunicando, pelo
execução dos militantes. Legal (IML) para a coleta de impressões digitais dos ofício nº 2078, do dia 10 de abril de 1972, que o rapaz
cadáveres de duas moças e dois homens, recolhidos morto na casa era Antônio Marcos Pinto de Oliveira.
Em 1995, o Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM) ao IML com as guias de número 1, 2, 3 e 4. Na casa
moveu um processo ético-profissional no Conselho da vila, porém, não havia quatro cadáveres. James No dia 06 de abril de 1972, semana seguinte à Chaci-
Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro Allen Luz, que também estava presente na casa an- na, em uma reunião realizada na sede do I Exército, o
(CREMERJ) contra os peritos médicos Valdecir Ta- tes da ação, escapara do cerco policial. No entanto, coronel Adyr Fiúza de Castro cumprimentou a equipe
Registros das ocorrências 357 e 358 do Livro de Ocorrência do DOPS,
gliari e Eduardo Bruno, responsáveis pela realiza- o delegado Brito Pereira juntou às mortes ocorridas que relatam, respectivamente, a Chacina de Quintino e a morte de que participou da operação e comemorou com os pre-
ção dos laudos de exame cadavérico das vítimas da na casa da vila o corpo de Wilton Ferreira, morto Wilton Ferreira sentes, integrantes da Comunidade de Informações,
Crédito: APERJ
chacina. O parecer médico-legal elaborado pelo Dr. na rua Silva Vale, nº 55, em Cavalcante, um bairro “os êxitos alcançados na semana em curso”. Tratava-
Antenor Plácido Carvalho Chicarino, pelo Dr. Morris -se da morte dos militantes na casa de Quintino12.
e Tridball Binz aponta possíveis omissões por parte 6. CREMERJ, Processo ético-profissional nº 705/95, fls. 242-263.
7. BRASIL. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direi- 8. APERJ. Fundo: Polícias Políticas, Ficha de Identificação Policial n° 13.111 10. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Hélio da Silva para a CEV-Rio
de Valdecir Tagliari, mas conclui pela inocência dos to à Memória e à Verdade. Secretaria Especial de Direitos Humanos: Brasília, 9. APERJ, Fundo: Polícias Políticas. Setor: Administração, Notação: 86. Regis- 11. APERJ, Fundo: Polícias Políticas. Setor: Secreto, Notação: 102.
2007, pp. 292-294. tros de Ocorrência de número 357/72 e 358/72. 12. Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_44930_72.

218 219
Rio de Janeiro duas chacinas resultando na morte Há indícios que apontam para a possibilidade de
de dez militantes do Partido Comunista Brasileiro que Lourdes também já estivesse sob custódia do
Revolucionário (PCBR). Para encobrir as execuções, Estado na ocasião. Teresa Cristina Wanderley Cor-
foram divulgados comunicados para a imprensa com rêa de Araújo, prima-irmã de Lourdes, afirmou para
versões falsas de tiroteio e resistência à prisão. a CEMDP que havia recebido a informação, em de-
zembro de 1972, de que Lourdes estava presa e em
A fantasiosa montagem com cenas de execução em estado físico precário16.
locais públicos foi descontruída e desmentida por in-
vestigações feitas inicialmente pelo Grupo Tortura Deve-se destacar que o endereço do aparelho de
Nunca Mais do Rio de Janeiro e pelos familiares. Bento Ribeiro era Rua Sargento Valder Xavier de
Posteriormente, a Comissão Especial sobre Mortos Lima, nome de um militar morto por militantes do
e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a CNV apro- PCBR. A rua foi rebatizada com o nome do sargen-
fundaram as investigações. to, como se os militares pretendessem vingar a sua
morte com a homenagem. Essa informação, além
Nas duas chacinas foi montado um roteiro seme- A primeira ação relatada pela nota era um cerco a de reforçar a versão oficial, demonstra a macabra
lhante, como se a farsa da história se repetisse com uma casa na Rua Sargento Valder Xavier de Lima, no conotação vingativa da ação.
pequenas variações. Os militares agiram como se bairro de Bento Ribeiro, que teria deixado dois mor-
seus crimes jamais pudessem ser desmascarados. tos: Lourdes Maria Wanderley Pontes, 29 anos, estu- Por fim, a análise das fotos feita pela perícia técnica
As seis mortes de 1972, bem como as quatro no ano dante e desenhista, e Valdir Salles Saboia, 22 anos, da CNV “demonstra que não há marcas de tiros na
de 1973, ocorreram também no mesmo dia da sema- policial millitar. Segundo a nota, o grupo que estava parede, e o corpo de Lourdes Maria aparece em um
na, viabilizando assim que os corpos fossem encami- no aparelho “procurou romper o cerco, empregando canto da sala, atrás de uma árvore de natal, que per-
nhados para o Instituto Médico Legal e autopsiados suas armas, inclusive granadas de mão”. Na troca de manece com as bolas de vidrilho intactas”, afastando
pelos mesmos médicos-legistas: Roberto Blanco dos tiros, Lourdes e Valdir teriam morrido. as hipóteses de tiroteio e de explosão de granadas17.
Santos e Hélder Machado Paupério. Ambos foram
denunciados em 1995 pelo GTNM perante o Con- Contudo, Valdir Salles Saboia havia sido detido pe- A segunda ação que a versão oficial apresentava
selho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, por los órgãos de segurança antes de “morrer” na chaci- era um confronto no Grajaú, em que após um “in-
apresentação de laudos fraudulentos. na. Dois documentos do Centro de Informações da tenso tiroteio” teriam morrido Fernando Augusto
Aeronáutica (CISA) confirmam esta informação. O da Fonseca, o “Sandália”, 26 anos, bancário, es-
Ata da Reunião da Comunidade de Informações do I Exército em que o Chacina do Grajaú primeiro trata das atividades do PCBR e registra tudante de Economia da Universidade Federal do
coronel Adyr Fiúza elogia os agentes pelas mortes na Chacina de Quintino
declarações dadas por Valdir14. O segundo apresen- Rio de Janeiro; Getúlio de Oliveira Cabral, 30 anos,
Crédito: Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_44930_72
Em 17 de janeiro de 1973, o I Exército emitiu uma ta um extrato das declarações do militante, relacio- operário; José Bartolomeu Rodrigues de Souza, 23
nota oficial para a imprensa13, afirmando que duas nando as ações do PCBR supostamente mapeadas a anos, estudante secundarista, e José Silton Pinhei-
Chacinas do Partido Comunista Brasileiro semanas antes, em 29 de dezembro de 1972, seis “ter- partir de seu interrogatório15. Dessa forma, é possí- ro, 23 anos, estudante18.
Revolucionário roristas” do PCBR haviam morrido durante duas ope- vel concluir que Valdir Saboia, ao contrário do que
rações ocorridas simultaneamente no Rio de Janeiro. afirma a nota oficial do I Exército, não morreu du- A nota oficial afirma que Fernando Sandália fora
Com um intervalo de apenas dez meses, entre de- rante o tiroteio em Bento Ribeiro. 16. Arquivo Nacional, CEMDP: BR_DFANBSB_ ATO_0056_0001, p. 83.
zembro de 1972 e outubro de 1973, os órgãos de re- 17. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional
da Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume III, p. 1113.
pressão da ditadura planejaram e executaram no 13. “Seis subversivos morrem em tiroteios com autoridades”. Jornal do Bra- 14. Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_56200_86_001. 18. “Seis subversivos morrem em tiroteios com autoridades”. Jornal do Bra-
sil, 17 de janeiro de 1973. 15. Arquivo Nacional, CISA: BR_AN_BSB_VAZ_137_0057. sil, 17 de janeiro de 1973.

220 221
preso anteriormente e trazido ao Rio, “a fim de con- o motor e o tanque de combustível estavam intactos. Segundo Entre os militantes mortos foram identificados Após a prisão dos três militantes, foram recolhidas
cretizar os encontros planejados e possibilitar a a avaliação dos peritos, o fogo foi colocado no interior do ve- apenas Ranúsia Alves Rodrigues e Almir Custódio informações que apontavam a fragilidade do PCBR
prisão dos terroristas participantes”19. Segundo a ículo, tendo se propagado de dentro para fora. É possível ob- de Lima. Os nomes de Vitorino Alves Moitinho e que, “na Guanabara, estaria reduzido praticamen-
versão fantasiosa, ao se aproximar do carro em que servar pelas fotos feitas no local que o Fusca não apresentava Ramires Maranhão do Valle não foram informados te aos três acima mencionados e mais Vitorino Al-
estavam os militantes de sua organização, teria sido perfurações de disparos em sua carroçaria22.” na matéria, o que significa que a morte dos dois ves Moutinho”25.
baleado por seus próprios companheiros. Na sequ- não foi oficialmente reconhecida à época. Por deci-
ência, o tiroteio teria causado um incêndio no carro, Pesquisas realizadas pelo GTNM nos arquivos do são dos algozes, entrariam para o grupo dos desa- Em maio de 1991, o Grupo Tortura Nunca Mais ini-
ocasionando a morte dos militantes, cujos corpos te- DOPS localizaram fotos e documentos que desmon- parecidos. Contudo, documento do CISA comprova ciou pesquisas no IML, no Instituto de Criminalís-
riam sido carbonizados dentro do veículo. tam a farsa do encaminhamento dos corpos para o que o Estado tinha conhecimento da identidade de tica Carlos Éboli e na Santa Casa de Misericórdia.
necrotério. De acordo com a versão dos órgãos de todos os militantes24. Documentos encontrados mostraram a existência de
Contudo, assim como Valdir Sabóia, Fernando foi segurança, os dois confrontos teriam ocorrido em três cemitérios no Rio de Janeiro que, no final dos
preso no Recife, em 19 de dezembro de 1972 e leva- horários distintos e em diferentes pontos da cidade: A armação fica logo evidente, pois as versões para anos 1960 e durante toda a década de 1970, recebe-
do para o DOI-CODI local, no Quartel General da 4ª duas vítimas em Bento Ribeiro e as outras quatro as mortes nos carros são absolutamente idênticas. ram corpos que foram enterrados como indigentes
Região Militar, segundo o testemunho de Jose Adeil- no Grajaú, bairros que ficam a aproximadamente 15 Trata-se da mesma história, com os nomes troca- em diferentes épocas: Ricardo Albuquerque, Cacuia
do Ramos, seu companheiro do PCBR, que lá se en- quilômetros de distância um do outro. Seria espera- dos. O mesmo desprezo pela verdade dos fatos. Um e Santa Cruz.
contrava. Em julho de 1996, José Adeildo declarou do, portanto, que os corpos chegassem ao necrotério dirigente da organização (Fernando Sandália em
à Justiça Federal do Rio de Janeiro, em Ação Cível em momentos distintos. Não obstante, os documen- 1972 e Ranúsia Alves em 1973) teria sido preso e Pelo menos 14 militantes políticos, entre os quais
movida pela viúva de Fernando, que o viu “prati- tos oficiais atestam que, ao contrário, todos os cor- aberto um ponto com outros três companheiros. Ao oito das chacinas do PCBR, foram enterrados como
camente agonizante, disforme e urinando sangue, pos deram entrada no IML às 2h30 da madrugada chegar ao local, os militantes dentro do carro abri- indigentes, numa vala clandestina, em Ricardo de Al-
no dia 26/12/72”, três dias antes de sua morte ofi- do dia 30 de dezembro, em guias sequenciais, o que ram fogo. O militante do lado de fora morre na tro- buquerque. Em 2008, o Grupo Tortura Nunca Mais
cial. José Adeildo acredita que Fernando tenha sido indica que foram recolhidos juntos. ca de tiros, e os outros três morrem carbonizados encaminhou à Prefeitura do Rio de Janeiro proposta
levado já morto para o DOI-CODI do Rio, “para a dentro do veículo. de construção de um Memorial com a identificação
montagem do teatrinho do Grajaú”20. O ex-preso po- Chacina da Praça Sentinela, Jacarepaguá dos militantes ali localizados: Ramires Maranhão do
lítico Rubens Manoel Lemos também afirmou para a Investigações da Comissão Estadual da Memória e Valle e Vitorino Alves Moitinho (desaparecidos políti-
CEMDP que José Silton, Fernando Sandália e Getú- Data oficial: 27 de outubro de 1973. Os jornais do da Verdade Dom Helder Câmara, de Pernambuco, cos), José Bartolomeu Rodrigues de Souza, José Sil-
lio de Oliveira Cabral, “foram colocados, já mortos, dia 29 de outubro noticiaram inicialmente a morte comprovam que dos quatro mortos no local, três fo- ton Pinheiro, Ranúsia Alves Rodrigues, Almir Custó-
dentro de um carro da marca Volkswagen, que foi de dois casais que teriam sido metralhados em Jaca- ram presos anteriormente: Ramires, Ranúsia e Al- dio de Lima, Getúlio de Oliveira Cabral, José Gomes
incendiado (explodido) no Rio de Janeiro”21. A hipó- repaguá, mas sem identificar os mortos. Vinte dias mir, no Rio. A Comissão localizou um documento do Teixeira, José Raimundo da Costa, Lourdes Maria
tese mais plausivel é a de colocação de uma bomba. depois, em 17 de novembro de 1973, o Ministério do Centro de Informações do Exército (CIE), de 1974, Wanderley Pontes, Wilton Ferreira, Mário de Souza
Exército divulgou uma nota informando que “em sobre a situação operacional dos grupos que aderi- Prata, Merival Araújo e Luiz Guilhardini (mortos re-
A análise dos registros fotográficos do local das mor- encontro com forças de segurança, vieram a falecer, ram à luta armada no Brasil. No trecho dedicado conhecidos oficialmente).
tes no Grajaú, produzida pela equipe pericial da Co- após travarem cerrado tiroteio, quatro terroristas”23. ao PCBR consta que, no final de outubro de 1973, o
missão Nacional da Verdade, concluiu que Assim como no caso da Chacina do Grajaú, a versão DOI-CODI do 1º Exército vigiou permanentemen-
oficial é de que o tiroteio teria causado um incêndio te as atividades de Almir Custódio de Lima, o que
“ O carro foi carbonizado de dentro para fora, uma vez que no carro e que os quatro ocupantes do veículo teriam possibilitou a identificação também de Ramires do
sido carbonizados. Valle e Ranúsia Alves. O relatório informa que os
19. Idem.
20. Ação Ordinária nº 92.131433-7, 1/6/1990. Disponível em: Arquivo Nacio- 22. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da três foram presos e submetidos a interrogatórios.
nal, CEMDP: BR_DFANBSB_ AT0_0033_0003. Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume III. pp. 1095-1100. 25. Arquivo Público Estadual de Pernambuco João Emerenciano (Apeje),
21. Arquivo Nacional, CEMDP: BR_DFANBSB_ AT0_0037_0004, p. 44. 23. “Terroristas são mortos em tiroteio”. Jornal do Brasil, 17/11/1973, p. 22. 24. Arquivo Nacional, CISA: BR_ AN_BSB_VAZ_107_0007. DOPS/PE, DOC IV EX 1974 PARTIDOS-IGREJA, pp. 50-51.

222 223
Capítulo 15 - ATENTADOS À BOMBA tares ligados à “linha dura”2 do regime. Geisel tinha
que lidar não somente com a crise econômica gesta-
A verdade está devidamente contada e a história da nos anos anteriores, mas também com uma crise
restabelecida. Tirei o maior peso que jamais interna que ameaçava seu projeto político.
imaginei que conseguisse carregar. Vi meus filhos
mais velhos estudarem o atentado da OAB no Essa proposta também era resultante das pressões
ensino médio, porém, não havia desfecho nos livros que a ditadura brasileira vinha sofrendo no exte-
escolares. Agora, os pequenos terão a história rior, frente à divulgação internacional das denún-
completa, com todos os elementos devidamente cias acerca das graves violações aos direitos hu-
registrados1. (Luiz Felipe Monteiro, filho de D. Lyda manos cometidas pelo país. A visita realizada por
Monteiro, em coletiva de imprensa realizada pela Rosalynn Carter, em 06 de junho de 1977, expressa
CEV-Rio acerca da identificação da autoria do o constrangimento que a política adotada pelos mi-
atentado à bomba que vitimou sua mãe) litares passava naquele momento. A primeira-da-
ma norte-americana informara o presidente Geisel
acerca do “compromisso decidido de seu marido
O Contexto Político da Distensão com a causa dos direitos humanos”3 e ainda solici-
tou que o general levasse “à Justiça elementos da
O processo de abertura política vivenciado no fi- Polícia e funcionários do governo”4 que violassem
nal dos anos de 1970 e início da década de 1980 foi direitos humanos no país.
marcado por uma série de atentados que visavam
frear as políticas de distensão que se encontravam Frente a esse quadro, a política iniciada por Gei-
em curso. Setores militares associados a civis insa- sel previa a reorganização dos Destacamentos de
tisfeitos com os rumos que o regime militar estava Operação de Informações (DOIs), com o “retorno
tomando se mobilizaram com o objetivo de criar um aos quartéis” dos militares, havendo uma gradati-
clima de instabilidade política e de gerar inseguran- va redução da capacidade operacional da estrutura
ça na população. repressiva. Os agentes engajados na luta, que ti-
nham o comunismo como um inimigo a ser com-
O projeto de distensão com uma abertura “lenta, batido internamente, vivenciavam nesse momento
gradual e segura” proposto pelo presidente Ernesto uma perda de autonomia nas ações de aniquilação
Geisel (1974-1979) e iniciado em seu mandato, ficou dos opositores da ditadura, e mostraram-se resis-
marcado no cenário político pelas demissões de mili- tentes às mudanças.

2. A adoção da expressão “linha dura” prende-se à interpretação realizada por


Maud Chirio: “A expressão “linha dura” não tem inicialmente o sentido de um
grupo ou de uma facção para os oficiais que a reivindicam, mas de uma linha
política de contornos incertos, de um “estado de espírito” e de uma determi-
Lyda Monteiro, secretária do Conselho nada interpretação da “Revolução” de 31 de março de 1964.”. Ver CHIRIO,
Federal da OAB, foi vítima de um Maud. A “primeira linha dura” do regime militar: trajetórias de oficiais do
Exército nos anos 60 e 70. MILITARES E POLÍTICA MILITARES E POLÍTICA,
atentado à bomba, em 1980; a carta p. 34. Disponível em: http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_
era endereçada ao então presidente docman&task=doc_view&gid=984&Itemid=353
da Ordem, Eduardo Seabra Fagundes 1. VIEIRA, Isabela. Secretária da OAB morta em 1980 foi vítima de agentes do 3. GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. Editora Intrinseca, 2014. p.381
Crédito: Álbum de Família Exército, diz comissão. Agência Brasil, 11/09/2015. 4. Idem, p.383

224 225
A insatisfação não atingia somente os quartéis. tares chegaram a produzir um documento denomi- É nesse contexto que ocorreu um expressivo aumen- de 1968, foram contabilizados 16 atos terroristas
Dentro do próprio governo, Geisel encontrou resis- nado “Novela da Traição”5, em que expressavam seu to de ações terroristas7, culminando nos atentados à praticados no Rio de Janeiro por uma articulação
tências e sinais de descompasso com a política que descontentamento com o governo. Ordem dos Advogados do Brasil e no Riocentro, em envolvendo o Centro de Informações do Exército
tentava implementar. Os assassinatos de Vladimir 1980 e 1981, refletindo o ápice da disputa interna (CIE), o militar Alberto Fortunato, o “professor”
Herzog, em 25 de outubro de 1975, e de Manoel Fiel Apesar da proposta de abertura, o governo Geisel entre os militares ligados aos “bolsões sinceros, mas em relação às bombas Pierre Pellegri10 – também
Filho, em 17 de janeiro de 1976, dentro das instala- não deixou de lado a truculência e as violações aos radicais” do regime e a política implementada pelos conhecido como “Francês”, e o marceneiro Hilário
ções militares do DOI-CODI, em São Paulo, acirra- direitos humanos característicos dos governos mi- generais Geisel, João Figueiredo e seus aliados. Corrales, responsável pela confecção dos artefatos11.
ram as diferenças. Mesmo sem questionar a versão litares. Durante seu mandato ocorreram, somente Essas ações se deram também em outros estados.
sustentada oficialmente de que os presos teriam se no Rio de Janeiro, 21 mortes e desaparecimentos Os setores avessos ao retorno à democracia estive- Em matéria publicada, no final de 1978, no mensá-
suicidado, Geisel decidiu pela demissão do general forçados decorrentes da ação de agentes do Estado. ram presentes desde a preparação do golpe de 1964 rio Repórter denuncia-se que um grupo militar, sob
Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, Em 1975 ocorreu a chamada “crise dos desapareci- e atuaram ativamente nas ações repressoras do re- orientação do Estado Maior do II Exército, efetuara
responsável pela unidade militar onde ocorreram dos”, quando, após mobilização dos familiares dos gime. Ainda durante o governo de João Goulart foi o atentado ao jornal Estado de S. Paulo, em abril
as mortes, e também retirou da chefia do Centro de desaparecidos durante o regime, o ministro da Jus- noticiada a descoberta de uma milícia formada por 1968, visando “criar um clima de instabilidade polí-
Informações do Exército (CIE) o general Confúcio tiça Armando Falcão, forneceu, em cadeia nacional, militares da ativa e por civis radicais ligados ao Insti- tica no país, atribuindo operações de guerrilha urba-
Danton de Paula Avelino. informações sobre os casos, sem, no entanto, escla- tuto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e ao Mo- na aos comunistas, para justificar depois o endureci-
recer o que havia ocorrido com aqueles militantes. vimento Anticomunista (MAC), que vinha realizando mento do regime político e o Ato Institucional nº 5”12.
Outra demissão emblemática do período, que auxi- Essas violações são evidência de que o aparato re- treinamento de guerrilha em um sítio localizado em
lia a compreensão dos motivos que levaram à rear- pressor não se encontrava totalmente desarticulado Jacarepaguá8. Ao longo do regime militar, outros gru- O movimento repete-se em 1976 durante o gover-
ticulação dos militares alinhados à extrema direita, e demonstram que a tentativa de conciliar e balan- pos também associados ao MAC mostraram-se arti- no Geisel quando ocorreram outros atentados. Em
ocorreu em 1977, quando o general Sylvio Frota foi cear as oposições muitas vezes resultou no acoberta- culados e atentos ao cenário político nacional, sendo 19 de agosto o atentado à Associação Brasileira de
afastado de suas funções como ministro do Exército. mento de agentes envolvidos em casos de tortura e possível perceber o envolvimento de agentes do Esta- Imprensa (ABI) foi amplamente divulgado pela im-
A decisão tomada por Geisel, auxiliado por Golbery morte durante o governo Geisel. do nas ações levadas a cabo por essas organizações. prensa. Nesse mesmo dia foi encontrado um artefato
do Couto e Silva, mostrou-se estratégica naquele na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)13.
momento, tendo em vista a força e o prestígio que Com a ascensão de João Baptista Figueiredo (1979- É notável o fato de que, nos momentos em que a Em 22 de setembro daquele ano ocorreu o sequestro
Sylvio Frota possuía entre os militares da “linha 1985) e a continuidade do projeto de transição para oposição ao regime parecia fortalecer-se havia em de dom Adriano Hipólito e o atentado à residência de
dura”. O cenário político enfrentado por Geisel era a democracia, inclusive com a edição da Lei de Anis- contrapartida um aumento de atos terroristas. Em
10. Através de investigações realizadas pela CNV tornou-se possível inferir
marcado por pressões. De um lado, o presidente ti- tia (Lei nº 6.683/79), acirraram-se as diferenças den- 1968, com as crescentes mobilizações populares de que “Francês” é na realidade Pierre Jean François Pellegri, nascido em agos-
to de 1932 e natural da Corsega. Essa inferência se dá a partir de documento
nha que manejar a oposição popular associada à di- tro da estrutura repressiva, principalmente entre contestação ocorreram diversos atentados à bomba, da Embaixada da França no Brasil, datado de 29 de outubro de 1968, em que
retriz do partido de oposição Movimento Democrá- aqueles vinculados às operações da polícia política6. principalmente em teatros e jornais associados à es- é afirmado que Pellegri fora obrigado a deixar a Europa, sendo procurado
pela Sureté Française, e refugiou-se no Brasil tendo em face os aconteci-
tico Brasileiro (MDB), que optara em 1974 pela via querda. Segundo levantamento realizado no livro A mentos na Argélia. No livro “Dos quartéis à espionagem – caminhos e desvios
do poder militar”, o coronel reformado Luiz Helvécio fez referências à Liga
eleitoral como forma de se posicionar e estabelecer o Direita Explosiva no Brasil9, entre julho e dezembro das Nações Cativas, revelando seu papel na aproximação com o “Pierre”, ou
“Francês”, por ele caracterizado como um “monstro em termos de compe-
caminho para a transição, a despeito das restrições tência” e que ensinou muito os membros do “Grupo Secreto”. São reveladas
ainda associações com o Centro Informações do Exército. In. ARGOLO, José;
políticas do momento. De outro, tinha que articu- 7. A utilização do conceito de terrorismo é aqui adotada visando enquadrar
as ações efetuadas por agentes do Estado. Prendendo-se à conceituação re- FORTUNATO, Luiz Alberto Machado. Dos quartéis à espionagem: caminhos e
lar as diferentes posturas e alinhamentos dentro do alizada por Schittino, os atos aqui descritos buscavam intervir no processo desvios do poder militar. Mauad Editora Ltda, 2004.p.206-210
5. RESENDE, Pâmela de Almeida. Da Abertura Lenta, Gradual e Segura à histórico através da violência, pautando-se também na lógica do espetáculo. 11. ARGOLO, José; RIBEIRO, Kátia; FORTUNATO, Luiz Alberto Machado. A
corpo militar, algumas pautadas na crença de que Anistia Ampla, Geral e Irrestrita: A Lógica do Dissenso na Transição Para a (Schittino, Renata Torres. Terrorismo: a violência política como espetácu- direita explosiva no Brasil. Mauad Editora Ltda, 1996.
Democracia. Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 2, n. 2, p. 36-46, lo. – Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de 12. Boletim Mensal UCBC. Ano VIII n.11 (86) dezembro de 1978. Disponível
Geisel havia traído os ideais do movimento de 1964 2015. História, 2004). em: http://www.cpvsp.org.br/upload/periodicos/pdf/PUCBCRJ121978086.pdf.
ao adotar a política de distensão e ao optar pela de- 6. O general Adyr Fiúza de Castro comentando o final do regime militar che-
gou a afirmar: Figueiredo pode ter sido o coveiro do regime, mas quem o
8. Armas apreendidas eram do MAC. Jornal Última Hora. Rio de Janeiro: 20
set. 1963, p.02.
Ver também Jornal do Brasil, edição de 1/12/1978, p.8.
13. Conferências de 74 e 76: abertura, atentados e fusão da Guanabara. Dis-
missão dos generais Ednardo e Frota. Alguns mili- matou foi Geisel. Ver D’ARAUJO, Maria Celina; CASTRO, Celso. A volta aos 9. ARGOLO, José; RIBEIRO, Kátia; FORTUNATO, Luiz Alberto Machado. A ponível em: http://www.oabrj.org.br/materia-tribuna-do-advogado/18045-
quartéis: a memória militar sobre a abertura. Relume Dumará, 1995.p. 189. direita explosiva no Brasil. Mauad Editora Ltda, 1996. -Conferencias-de-74-e-76-abertura-atentados-e-fusao-da-Guanabara.

226 227
Roberto Marinho14. Após essas mobilizações, em abril jornal “Hora do Povo”, em 30/05/1980; uma explosão atentado frustrado ao Riocentro15. Antônio Carlos de Carvalho, e outra na redação do
de 1977, foi editado o chamado “Pacote de Abril”, que no carro do Deputado Marcelo Cerqueira, em Santa jornal Tribuna da Luta Operária, um periódico liga-
visava garantir a maioria governista no Congresso, Teresa, em 10/07/1980; uma bomba foi desativada Os casos OAB e Riocentro do ao Partido Comunista do Brasil (PDdoB).
apresentando-se então como uma resposta do gover- por peritos na Rua Almirante Alexandrino, em San-
no numa tentativa de conciliar interesses. ta Teresa, em 10/08/1980; uma bomba foi encontra- A Comissão da Verdade do Rio, com a colabora- No mesmo dia, pela manhã, uma carta endereçada
da em Santa Teresa, em 11/08/1980; três explosões ção do projeto de pesquisa “Justiça Autoritária? O à Rádio Jornal do Brasil e assinada pelo grupo de
Finalmente, após a edição da Lei de Anistia houve ocorreram, na sede do Jornal Tribuna Operária, na Judiciário do Rio de Janeiro e a Ditadura Militar extrema direita Vanguarda de Caça aos Comunistas
um aumento considerável do número de atentados no Ordem dos Advogados do Brasil e no Gabinete do 1964-1988”, da Faculdade Nacional de Direito da (VCC), responsabilizava-se “pelos atentados contra
país. Somente no Rio de Janeiro ocorreram em 1979 a Vereador Antônio Carlos, da Câmara Municipal, em Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizou os traidores da pátria Eduardo Seabra Fagundes e
explosão na varanda da Escola Pedro Lessa (26/9/79), 27/08/1980; uma carta-bomba foi desativada na De- investigações sobre os atentados à bomba à Ordem ‘Vereador’ Antônio Carlos Carvalho, do Movimen-
a explosão de bomba no carro do jornalista Hélio Fer- legacia Regional da SUNAB em 28/08/1980; ocorreu dos Advogados do Brasil, em 1980, e sobre a tentati- to Revolucionário 8 de outubro”16. O grupo ainda
nandes (04/10/79), e a Explosão na Igreja de Santo a explosão junto à fachada da Receita Federal, na va frustrada no Riocentro em 1981, visando à iden- conclamava outras organizações como o Comando
Antônio de Jacutinga, em Nova Iguaçu (20/12/79). Rua 15 de Novembro, em Niterói, em 14/09/1980; tificação dos autores e à elucidação da cadeia de co- de Caça aos Comunistas (CCC) e a Falange Pátria
além de explosões que ocorreram no Supermercado mando destes atos terroristas. Nova a apoiar o movimento para a “mudança radi-
Nos anos 1980 e 1981, segundo levantamento rea- Boulevard, em Vila Isabel, e no Hipermercado das cal do estado de coisas”17.
lizado pelo Ministério Público Federal, ocorreram Casas da Banha, na Av. Brasil em 14/11/1980. O atentado à OAB
mais de 40 atentados à bomba pelo país. Dentre elas, A despeito de o grupo em questão assumir a auto-
em 1980, uma bomba foi desativada no 19° andar do Já em 1981, o MPF indicou a ocorrência de uma Em 27 de agosto de 1980, uma carta-bomba endere- ria, o inquérito instaurado à época levou ao nome de
Hotel Everest, onde estava hospedado Leonel Brizo- explosão junto ao Supermercado Peg-Pag da Av. çada a Eduardo Seabra Fagundes, então presiden- Ronald James Watters, que já havia sido apontado
la, em 18/01/1980; uma explosão na Escola de Samba Bartolomeu Mitre, no Leblon, em 05/01/1981; uma te da Ordem dos Advogados do Brasil, na avenida como autor do atentado à bomba à exposição Sovié-
Acadêmicos do Salgueiro, durante comício do PMDB, explosão sob um ônibus fretado para conduzir fun- Marechal Câmara, 210, no Centro do Rio vitimou a tica, realizada no Campo de São Cristóvão, em 19 de
em 27/01/1980; uma bomba foi desativada no escri- cionários da Petrobrás, em 07/01/1981; uma ex- secretária da presidência da entidade, Lyda Montei- maio 1962. Na oportunidade, Watters fora acusado
tório do advogado Sobral Pinto, em 13/03/1980; uma plosão sob um relógio digital à Rua Humaitá, em ro da Silva. No mesmo dia, ocorreu a explosão de ou- de estar vinculado à CIA e ao Movimento Antico-
bomba interrompeu palestra de Gregório Bezerra, Botafogo, em 16/01/1981; uma explosão no prédio tras duas bombas, uma na Câmara dos Vereadores, munista18. A acusação baseou-se principalmente em
em 22/03/1980; duas bombas explodiram no jornal do jornal Tribuna da Imprensa, em 26/03/1981; que feriu gravemente José Ribamar de Freitas, as- uma denúncia anônima e na análise da carta bomba
Hora do Povo, em 30/03/1980; ocorreu uma explosão uma explosão em um posto do INPS, em Niterói, sessor do ex-preso político e então vereador do MDB enviada à SUNAB, que não explodiu, no dia seguin-
na Prefeitura de Resende, em 13/04/1980; uma bom- em 31/03/1981; uma explosão na varanda da casa 15. Além dessas, a denúncia do MPF indicou a ocorrência de uma bomba te ao dos atentados à OAB e à Câmara dos Vereado-
ba explodiu em uma loja do Rio que vendia ingressos do Deputado Marcelo Cerqueira, em Santa Teresa, no aeroporto de Guararapes, no Recife em 27/3/1980; uma bomba destruiu a
redação do jornal “Em Tempo”, em Belo Horizonte em 23/5/1980; uma bomba
res. A suposição era a de que a máquina de escrever
para o show de 1° de maio, em 26/04/1980; uma ex- em 02/04/1981; uma explosão no portão de uma ofi- danificou a sede da Casa do Jornalista, em Belo Horizonte, em 27/06/1980; utilizada na redação da carta pertencia a Watters.
uma bomba foi localizada no Tuca, em São Paulo, horas antes da realização
plosão ocorreu na Caderneta de Poupança Letra, em cina mecânica em Olaria, também em 02/04/1981; de um ato público (11/8/80); uma bomba explodiu, ferindo a estudante Ro-
sane Mendes e mais dez estudantes na cantina do Colégio Social da Bahia,
Madureira, em 26/04/9180; atentados a bancas de uma explosão na Gráfica Americana, na Saúde, em em Salvador, em 12/08/1980; ocorreu uma explosão no Diretório Acadêmico O Inquérito da Polícia Federal 034/80, instaura-
da Faculdade de Filosofia no interior de Minas Gerais, em 28/08/1980; uma
jornal em Brasília, Rio, Porto Alegre, Curitiba, Belo 03/04/1981. No final do mês de abril ocorreu ainda o explosão ocorreu em um terreno baldio em Barbacena, em 28/08/1980; uma do em 29 de agosto de 1980 e concluído em 14 de
Horizonte, Belém e São Paulo, em uma ação que du- explosão na sede da Junta de Alistamento Militar, em Antônio Carlos, tam- novembro daquele ano, presidido pelo delegado da
bém em 28/08/1980; uma bomba foi desativada junto ao chafariz do Largo da
rou até setembro de 1980; uma explosão ocorreu na Lapa, em 04/09/1980; ocorreu uma explosão na garagem do prédio do Banco Polícia Federal Dr. José Armando da Costa, respon-
do Estado do Rio Grande do Sul, em Viamão, em 08/09/1980; ocorreu a explo-
sede do movimento “Convergência Socialista”, em são de duas bombas em São Paulo, uma ferindo duas pessoas em um bar em sável pela parte processual, e pelo delegado Dr. Pe-
Pinheiros e outra danificando automóveis no pátio da 2ª Cia. De Policiamento
29/05/1980; duas explosões ocorreram na sede do de Trânsito, no Tucuruvi, em 12/09/1980; uma bomba explodiu e danificou a
Livraria Jinkings, em Belém, em 18/11/1980; uma bomba foi encontrada no 16. Polícia Federal acha que o atentado à OAB foi da VCC. Jornal do Brasil.
Aeroporto de Brasília, em 02/02/1981 e em 28/04/1981, o grupo de direita au- Rio de Janeiro: 19/09/1980, p.14.
14. ARGOLO, José; RIBEIRO, Kátia; FORTUNATO, Luiz Alberto Machado. A todenominado Falange Pátria Nova destruiu, com bombas, bancas de jornais 17. Idem.
direita explosiva no Brasil. Mauad Editora Ltda, 1996, p.279. em Belém. 18. Jornal Última Hora, Rio de Janeiro: 30/05/1962.

228 229
dro Bervanja, responsável pela parte operacional da a um policial que suprimiu do mesmo diversas in- vou a bomba à OAB, e mais três agentes vinculados Para executar a ação, Guarany subiu pelo elevador
investigação19, foi construído de modo a obstruir os formações dadas pela testemunha. A ação do policial à estrutura repressiva da ditadura. até o 4º andar do prédio da OAB, na av. Marechal
rumos investigativos que apurariam a verdadeira resultou numa figura pouco elucidativa quanto às Câmara, 210, no Centro do Rio, endereço em que a
autoria dos atentados. Numa narrativa composta de características do suspeito. A partir dos depoimentos coletados foi possível afir- CEV-Rio se instalou. Segundo a testemunha ocu-
elementos que vão da divagação à fantasia, o inqué- mar que o sargento Magno Cantarino Motta, para- lar, que dialogou com o militar momentos antes de
rito se presta aos propósitos de não revelar a verda- Segundo o livro A Direita Explosiva no Brasil, os quedista do Exército, foi quem entregou pessoal- ele entregar o envelope pardo contendo a bomba de
de dos fatos, o que resultou na absolvição de Watters peritos responsáveis pela análise das cartas bom- mente a carta com o artefato que vitimou D. Lyda fabricação artesanal, o sargento vestia calça e cami-
por falta de provas. bas revelaram que elas apresentavam composição Monteiro. Na condição de agente da repressão vin- sa social “como os muitos rapazes que trabalhavam
de alto poder de destruição. Eram semelhantes às culado ao CIE, Magno adotou o codinome “Guarany”. pelos escritórios da região”23. A testemunha relatou
A farsa montada em torno das investigações para utilizadas pelos grupos do Exército Republicano Ir- também que ele tinha cabelos encaracolados, abaixo
apurar a autoria dos ataques chegou a ser denun- landês e da Organização para a Libertação da Pa- das orelhas, e aparentava pouco mais de trinta anos.
ciada em matéria do programa Fantástico, da Rede lestina21, não se assemelhando, portanto, às bombas De estatura média, falava pausado e agiu com cordia-
Globo. Em 08 de maio de 1994, foi divulgada a ver- fabricadas por grupos amadores. Para o coronel Al- lidade com as pessoas que encontrou em seu trajeto.
são dos agentes federais Vigmar Ribeiro e Darcy berto Fortunato, o CIE possuiria o know-how para
De Carlo, que denunciaram a mudança no rumo da fabricar esse tipo de bomba22. Segundo as testemunhas ouvidas pela CEV-SRio, a
apuração dos fatos. De Carlo, que chegou a renun- ação foi comandada pelo coronel Freddie Perdigão
ciar a seu cargo na Polícia Federal, afirmou: No decorrer dos anos, diferentes tentativas de rea- Pereira, do CIE, e a confecção da bomba esteve a car-
brir o caso foram rejeitadas e recorrentes arquiva- go do sargento Guilherme Pereira do Rosário, morto
“ Em circunstância nenhuma, como investigador, eu posso mentos ordenados. Essas ações configuram um to- no atentado do Riocentro, no ano seguinte, em conse-
admitir que a investigação parta já com a autoria definida. tal acobertamento dos fatos por parte do Estado, no quência da explosão da bomba que trazia no colo.
O momento político é... forçava as investigações num determi- sentido de impedir a identificação de suas circuns-
nado sentido, né? Então, o Ronald era o autor ideal. Só que o tâncias e seus autores. Somente em 2000, o retrato- O paraquedista da turma de 1964, Valdemar Mar-
Ronald não tinha absolutamente nada a ver com isso20.” -falado dado à época pela testemunha foi completa- tins, ao examinar o retrato falado do suspeito e uma
do, viabilizando, finalmente, a apuração dos fatos. fotografia do Riocentro, em que um homem aparece
A conduta do regime, no sentido de não identificar olhando para dentro do carro onde estava o corpo do
e, consequentemente, não punir os responsáveis Depois de dois anos de busca de pistas que levassem sargento Rosário, afirmou, sem qualquer dúvida, que
pelo atentado que vitimou D. Lyda e pelo que feriu à identificação dos autores, em coletiva de imprensa a imagem apresentada era de Magno Cantarino Mot-
gravemente José Ribamar de Freitas, refletiu-se na realizada em 11 de setembro de 2015, a Comissão da ta, sargento que serviu na mesma unidade em que
montagem do retrato falado do homem suspeito de Verdade do Rio apresentou um dossiê, reunindo do- ele e Guilherme Pereira do Rosário serviram, no Rio
entregar a carta bomba à OAB. A única testemunha cumentos comprobatórios de que o atentado à OAB de Janeiro. Valdemar ainda confirmou que Guarany
ocular apontada no momento, e que dizia se lembrar foi obra de um grupo de oficiais ligados ao Centro fora o autor da entrega da carta bomba à OAB24.
das feições do homem que carregava um pacote que de Informação do Exército (CIE). A investigação da
fora entregue à D. Lyda, Dilza Fulgêncio realizou, CEV-Rio indicou quatro testemunhas que caracteri- No mesmo sentido, o ex-delegado do DOPS/ES,
no dia seguinte ao atentado, um retrato-falado junto zaram a autoria do fato: uma ocular, que se denomi- Claudio Guerra, afirmou à Comissão em três opor-
nou testemunha “X”, atendendo ao pedido de sigilo Retrato Falado do portador da carta-bomba informado por Dilza
tunidades que a ordem para o atentado partira do
19. Documento (CD/CDH/DETAQ 1494/99). In.: Projeto de Pesquisa: “Justiça
Autoritária? O Judiciário do Rio de Janeiro e a Ditadura Militar 1964-1988”, de sua identidade e que reconheceu a pessoa que le- Fulgêncio em 2000 coronel Freddie Perdigão Pereira, da sede do Servi-
Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Crédito: Relatório Parcial da Pesquisa “Justiça Autoritária? O Judiciário
20. Pesquisa “Justiça Autoritária? O Judiciário do Rio de Janeiro e a Ditadura 21. ARGOLO, José; RIBEIRO, Kátia; FORTUNATO, Luiz Alberto Machado. A do Rio de Janeiro e a Ditadura Militar 1964-1988”. Faculdade Nacional
Militar 1964-1988”. Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal direita explosiva no Brasil. Mauad Editora Ltda, 1996, p.207. de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro 23. Acervo CEV-Rio. Depoimento da testemunha “X” para a CEV-Rio
do Rio de Janeiro. Relatório Parcial – Bombas, p.11. 22. Idem. 24. Acervo Cev-Rio. Depoimento de Valdemar Martins para a CEV-Rio

230 231
ço Nacional de Informações (SNI), no Rio de Janeiro, O levantamento realizado pela CEV-Rio identifi- agente Guarany em ambos os momentos. Esta arti- o sargento Rosário. Ainda, segundo testemunhos e
sendo Guarany o responsável pela entrega da bom- cou a seguinte cadeia de comando envolvida no culação demonstra que os mesmos grupos estavam notícias veiculadas na imprensa27, o automóvel con-
ba na OAB e o sargento Guilherme do Rosário o en- atentado na OAB: por trás dos trágicos episódios e confirma o envol- tinha outras duas bombas, uma pistola e uma gra-
carregado de sua fabricação. A propósito, declarou: vimento de agentes do Estado nos atos terroristas. nada de mão.
Presidente da República: João Figueiredo (1918-
“ Posso ainda afirmar, que, na mesma ocasião, o mesmo 1999): General de Exército. Presidente da Repú- O atentado no Riocentro A segunda bomba chegou a explodir dentro do cen-
grupo (Equipe secreta de militares do cel. Perdigão composta, blica de 15 de março de 1979 a 15 de março de tro de convenções. O artefato foi lançado por cima do
pelo Sgt Rosário, Guarani e outros), foi responsável pelo arte- 1985. Em 30 de abril de 1981, durante o show de comemo- muro na Casa de Força do Riocentro, visando atingir
fato que foi colocado no gabinete de um vereador, não lembro ração do Dia do Trabalhador realizado no centro de uma miniestação elétrica para interromper o forne-
o nome, e outra na Tribuna da Imprensa. A motivação, o com- Ministro do Exército: Walter Pires de Albuquer- convenções Riocentro, na Barra da Tijuca, ocorreu a cimento de energia, gerando a paralisação do show e
bate intensivo que a OAB fazia para que fossem apontados os que (1915-1990): General de Exército. Ministro explosão premeditada de duas bombas de fabricação criando pânico na audiência. Porém, como a explosão
responsáveis pelos desaparecimentos e torturas25.” do Exército de março de 1979 a março de 1985. artesanal. O evento reuniu cerca de 20 mil jovens e se deu no pátio e não atingiu a estação, o objetivo dos
foi organizado pelo Centro Brasil Democrático (Ce- militares não foi alcançado novamente28.
Naquele período, a OAB teve um papel importante Chefe do CIE: Geraldo Araújo de Ferreira Bra- brade), entidade ligada ao Partido Comunista Bra-
na defesa dos direitos humanos e restauração das ga (1922-): General de Divisão. Chefe do CIE de sileiro (PCB), que naquele momento ainda atuava Também foram realizadas pichações nas imediações
liberdades democráticas. Para intimidar a entidade, março de 1979 a novembro de 1981. Chefiou a na clandestinidade. do centro de convenções com a inscrição VPR, sigla
o grupo, que agia sob o comando do Centro de Infor- agência central do SNI entre agosto de 1983 e no- da Vanguarda Popular Revolucionária, uma organi-
mações do Exército, iniciou uma série de atentados, vembro de 1985. O show em homenagem a Luiz Gonzaga, sob a co- zação de esquerda que se encontrava totalmente des-
cujos alvos eram parlamentares de oposição, bancas ordenação do cantor e compositor Chico Buarque, mantelada naquele momento, numa tentativa de im-
de jornal, sedes de jornais e entidades da sociedade Chefe do SNI: Octávio Aguiar de Medeiros (1922- reuniu apresentações de importantes nomes da mú- putar à esquerda a responsabilidade pelo atentado.
civil e visava responsabilizar as organizações de es- 2005): General de Brigada. Chefe do SNI de ju- sica popular brasileira, como Alceu Valença, Gonza-
querda armada, que, na oportunidade já se encon- nho de 1978 a março de 1985. guinha, Gal Costa, Clara Nunes, Djavan, Ivan Lins, No dia seguinte, o então secretário de Segurança
travam desmobilizadas. João Bosco, Fagner, Ney Matogrosso, Paulinho da Pública do Estado do Rio de Janeiro, general Wal-
Comandante do DOI do I Exército: Júlio Miguel Viola, Simone e Beth Carvalho. dir Muniz relatou à imprensa um diálogo que teria
A OAB e o vereador Antônio Carlos, naquele mo- Molinas Dias (1934 – 2012): Tenente-coronel. As- acontecido com os dois militares atingidos pela bom-
mento, estavam envolvidos nas investigações acerca sassinado em 2012. O Ministério Público Federal Por volta das 21:00h do dia 30 de abril a primei- ba. De maneira precipitada, o general afirmou que
do desaparecimento do militante Mário Alves, após encontrou em sua casa provas sobre a autoria do ra bomba explodiu dentro de um automóvel Puma, o capitão Wilson Machado teria engatado a marcha
sua prisão no DOI-CODI do 1º Exército em janeiro atentado no Riocentro. 1977, marrom, placa OT-0279, no estacionamento ré de seu carro, e o sargento Guilherme do Rosá-
de 1970. Da mesma forma, Seabra Fagundes havia do Riocentro. No carro estavam o capitão Wilson rio teria gritado surpreso “Tem uma bomba aqui!”, e
se mobilizado publicamente para obter a apuração Comandante do I Exército: Gentil Marcondes Fi- Luiz Chaves Machado, proprietário do veículo, que em seguida o artefato teria explodido. O objetivo da
e a identificação dos autores do atentado sofrido lho (1916-1983): General de Exército. Chefe do adotava o codinome “Dr. Marcos” e o sargento Gui- afirmação era corroborar a tese de que os militares
por Dalmo Dallari, em São Paulo, em 02 de julho Estado-Maior do II Exército, em São Paulo, em lherme Pereira do Rosário, de codinome “agente teriam sido vítimas e não autores do ato terrorista.
de 198026. As bombas seriam, então, um aviso para 1974. Comandante do I Exército de 1979 a 1981. Wagner”, ambos do DOI do I Exército. Segundo tes-
que as atividades investigativas fossem suspensas. temunhos colhidos em 1981 e 1999 – e presentes nos O enterro do sargento Rosário foi realizado com hon-
As apurações da CEV-Rio resultaram também na inquéritos abertos nesses anos, o artefato seria ins- ras militares no dia seguinte ao episódio, e contou
confirmação da ligação entre os atentados do dia 27 talado no pavilhão onde ocorriam os shows. Mas a
25. Acervo Cev-Rio. Depoimento de Claudio Guerra para a CEV-Rio.
26. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Seabra Fagundes recebe ho-
de agosto de 1980 e o caso Riocentro, em 1981, a bomba explodiu uma hora antes do planejado, ferin- 27. Bombas, versões e o silêncio. Revista Istoé. 12/05/1981.
28. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. 6° Relatório Preliminar de
menagem na OAB/Barra da Tijuca. Disponível em http://www.oabrj.org.br/ partir da confirmação da presença e da atuação do do o capitão Machado e matando instantaneamente Pesquisa: O caso Riocentro / Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV,
noticia/73778-seabra-fagundes-recebe-homenagem-na-oabbarra-da-tijuca. 29/04/2014, p. 4.

232 233
com a presença de eminentes oficiais do regime, como A conclusão do IPM em 30 de junho de 1980 levava auxiliar as investigações, encontravam-se “congela- cito enquanto Auxiliar de Informações38. Rosário
o coronel Job Lorena de Santana, e dos generais Gen- a crer que a bomba teria explodido no lado direito do das” pelo IPM. A matéria também revelou que inte- também recebeu em 1975 a Medalha do Pacificador
til Marcondes, então comandante do I Exército, e Ar- sargento Rosário, contradizendo o laudo cadavérico grantes da equipe do Hospital Miguel Couto, onde com Palma39, condecoração que foi concedida a di-
mando Patrício. Os três também estiveram em posi- que, pelas lesões descritas, registrava que o artefato o capitão Machado foi atendido, afirmaram que ele versos militares diretamente envolvidos nas opera-
ção de destaque na missa de sétimo dia do sargento. explodiu no colo do agente32. teria murmurado, sob o efeito da anestesia: “deu ções da repressão40. Apesar das mudanças ocorridas
tudo errado...”. A revista ainda criticou a mudança nos Destacamentos de Operações de Informações,
No dia 1° de maio, o Exército abriu um Inquérito A imprensa, não estando mais sob censura, noticiou de postura ocorrida nos meios de comunicação que com a reorganização e diminuição das funções vol-
Policial Militar (IPM) para apurar o caso, encarre- amplamente o caso. Dias após o atentado, em 13 de alteraram as versões apresentadas logo após o aten- tadas para informação e para o setor de operações,
gando o coronel Luiz Antônio do Prado Ribeiro de maio, uma organização autodenominada “Coman- tado. Evidenciava-se, assim, o esforço empreendi- Rosário permaneceu no órgão e mobilizado no com-
presidir e comandar as investigações. Rapidamen- do Delta”33, numa alusão ao nome dado ao braço ar- do pelos militares visando pressionar a imprensa e bate à esquerda41.
te o coronel obteve informações que puderam es- mado da OAS (Organisation de l’Armée Secrète)34, impedir que dados que comprovassem a culpa dos
clarecer que a polícia não havia comparecido ao lo- reivindicou a autoria do ato, porém, o grupo recuou agentes Rosário e Machado no ato viessem à tona. Evidenciando o quadro de descontentamento dentro
cal e que a equipe de segurança havia sido trocada dias após a divulgação35. Nesse momento, a im- Quanto a essa mudança de postura, afirmou: da estrutura da repressão, principalmente entre os
momentos antes do show29. Apesar da solicitação prensa desempenhou importante papel, apontado membros dos DOI e agentes envolvidos em opera-
de policiamento efetuada, não foram mobilizados as incongruências das investigações e atuando de “ Nesse começo de semana, a TV Globo, que havia mostrado ções, e relacionando-o com o caso Riocentro, o de-
policiais para o centro de convenções30. O coronel maneira paralela no sentido de avançar nas apura- na sexta-feira, dia 1º, à sua audiência nacional dois cilindros poimento do general Newton Cruz, chefe da agência
ainda buscou realizar oitiva com o capitão Wilson ções e contestar a versão oficial. A imprensa chegou alongados, pintados de vermelho, dizendo que eram bombas central do SNI, ressalta:
Machado para que este prestasse os devidos escla- a divulgar que o atentando ao Riocentro já vinha

achadas no Puma explodido, recuou espetacularmente. Em
recimentos sobre o fato, porém sua linha investiga- sendo planejado desde 1980. Em matéria publicada repetidas ocasiões, mostrou de novo os cilindros, para dizer Os integrantes do DOI-CODI do I Exército estavam incon-
tiva foi suspensa. em 20 de maio de 1981, os jornalistas Antônio Car- que eram meras granadas de gás lacrimogêneo, à cintura de formados com o abandono que sofriam, a se dedicaram quase
los Fon e Aroldo Machado revelaram que, segundo policiais em volta do Puma. Quarta-feira, dia 6, o jornal O exclusivamente às práticas desportivas e exercícios físicos den-
O coronel Prado Ribeiro foi substituído apenas 15 as revelações do tenente César Walchulck, então Globo insistiu em manchete, porém, com a versão contrária: tro do aquartelamento. Parecia não valer mais o que antes
dias após iniciar os trabalhos. Nas investigações responsável pela segurança do centro de conven- ‘Laudo confirma que havia duas bombas no Puma’. Nesse mes- lhes haviam ensinado como o correto modo de agir e ninguém
posteriores, já sob o regime democrático, o coronel ções, a bomba deveria ter explodido no show de 1° mo dia, às 12 horas, o diretor de O Globo foi visto entrando se preocupara em esclarecer as razões da mudança. Entregues
afirmou ter sofrido pressão para conduzir as in- de maio do ano anterior36. no QG do I Exército, de onde saiu 25 minutos mais tarde. No aos seus próprios pensamentos e a troca de ideias que faziam
vestigações de forma a não identificar a autoria do dia seguinte, nova e oposta manchete: ‘Fontes do I Exército: no entre si, estavam inclinados a agir por conta própria. Aquele
atentado31. Sob o comando de Job Lorena Santana, A revista Istoé, em 12 de maio de 1981, publicou a Puma só havia a bomba que explodiu’. As duas bombas desati- show comemorativo do Primeiro de Maio, com os esquerdistas
o IPM foi encerrado, concluindo pela inocência dos matéria “Bombas, versões e o silêncio” em que rea- vadas continuaram a pipocar na imprensa37.” 38. SANTOS, Vitor Garcia Rodrigues. Caso Riocentro-Terror e violência no
militares envolvidos na operação. Além disso, não lizou diversos questionamentos acerca do atentado processo de abertura política brasileiro. Revista Contemporânea – dossiê
1964-2014: 50 anos depois, a cultura autoritária em questão. Ano 4, n° 5 vol.1
indicou os responsáveis pelo ato terrorista, nem so- e denunciou que as pessoas ligadas aos eventos que Esses não eram os únicos silêncios. É interessante . 2014. Disponível em http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/10_
Caso_Rio_Centro_Terror_e_violencia_no_processo_de_abertura_politi-
lucionou os questionamentos levantados à época dos ocorreram no Riocentro, e que, portanto, poderiam notar que o sargento Rosário, também implicado no ca_brasileiro.pdf.
39. CASADO, José. Um jantar interrompido: duas bombas e um sargento mor-
fatos e que apontavam para a existência de diversas 32. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. 6° Relatório Preliminar de atentado à bomba na OAB, fora anteriormente elo- to - No amanhecer de 1º de maio, a cena do crime no Riocentro estava “lim-
Pesquisa: O caso Riocentro / Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV,
lacunas na investigação. 29/04/2014, p.6 giado pela 2ª Seção do Exército (S/2), responsável pa”. Disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/um-jantar-interrompido-
-duas-bombas-um-sargento-morto-12033413 .
33. Idem. pelo setor de informações dentro da estrutura mili- 40. JOFFILY, Mariana; CHIRIO, Maud. A repressão condecorada: a atribuição
29. Idem. 34. A OAS era uma organização paramilitar de extrema direita que atuou na da Medalha do Pacificador a agentes do aparato de segurança (1964-1985).
30. A bomba do Riocentro explodiu um ano depois: no “show” do 1 de maio Argélia se opondo à independência do país. tar, pelo êxito de suas operações no DOI do 1° Exér- História Unisinos, v. 18, n. 3, p. 440-451, 2014.
do ano passado houve uma ameaça de atentado. ë a revelação do tenente 35. Comando Delta nega o atentado do Riocentro. Tribuna da Imprensa. Rio 41. SANTOS, Vitor Garcia Rodrigues. Caso Riocentro-Terror e violência no
Walchulçk. Outra: a segunda bomba estava lá. Revista IstoÉ. 2S0/05/1981. de Janeiro: 25/05/1981. processo de abertura política brasileiro. Revista Contemporânea – dossiê
Disponível em: http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/R01342.pdf. 36. A bomba do Riocentro explodiu um ano depois: no “show” do 1 de maio 1964-2014: 50 anos depois, a cultura autoritária em questão. Ano 4, n° 5 vol.1
31. Bomba oculta – coronel foi chantageado no caso Riocentro. Revista IstoÉ. do ano passado houve uma ameaça de atentado. e a revelação do tenente . 2014. Disponível em http://www.historia.uff.br/nec/sites/default/files/10_
16/10/1985. Disponível em: http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/ Walchulçk. Outra: a segunda bomba estava lá. Revista IstoÉ. 20/05/1981. Dis- Caso_Rio_Centro_Terror_e_violencia_no_processo_de_abertura_politi-
R05569.pdf. ponível em: http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/R01342.pdf. 37. Bombas, versões e o silêncio. Revista Istoé. 12/05/1981. ca_brasileiro.pdf.

234 235
e contestadores nele envolvidos, seria uma boa oportunidade O então procurador-geral da República Geraldo ligação entre diversos setores ligados à repressão, Apesar de a caderneta telefônica ter sido recolhida
de marcar presença, demonstrar que não estavam mortos 42.” Brindeiro encaminhou o pedido de investigação ao além do apoio recebido por civis, a agenda telefôni- à época, somente em 2000 o objeto foi periciado, re-
Ministério Público Militar. No ano seguinte, foi so- ca do sargento Rosário, analisada pelos jornalistas velando que os encarregados do primeiro inquérito
O General Octávio Medeiros, chefe do SNI à época licitada a abertura de um novo Inquérito Policial Chico Otávio e Alessandra Duarte, revelou parte da atuaram no sentido de não permitir que essas liga-
do atentado, confirmando o envolvimento dos mi- Militar tendo em vista as novas provas levantadas, rede por trás dos atentados47. Segundo os jornalis- ções viessem à tona.
litares, afirmou em declarações prestadas no livro dentre elas, as declarações do general Newton Cruz tas, o caderno possuía contatos de quatro integran-
1964: 31 de março o movimento revolucionário e a prestadas à Comissão de Direitos Humanos da Câ- tes do chamado Grupo Secreto, ao qual o coronel No relatório publicado pela CNV48 fica evidente a
sua história43, que: mara dos Deputados. Em 10 de junho de 1999, foi Alberto Fortunato e o marceneiro Hilário Corrales articulação realizada no intuito de encobrir a apu-
instaurado IPM, tendo como encarregado o general pertenciam, entre eles, o aviador Leuzinger Mar- ração do caso e revela o envolvimento de diversos
“ Entretanto, mesmo com as recomendações, o Capitão de divisão Sérgio Ernesto Alves Conforto. Esse se- ques Lima, o general-médico Camilo Borges de Cas- setores da estrutura militar, confirmando que o alto
resolveu fazer a besteira. O Sargento apanhou a bomba que gundo IPM foi de extrema relevância ao apontar o tro e o coronel Freddie Perdigão Pereira. Além deles, comando militar tinha conhecimento do atentado e
o carpinteiro havia preparado, colocou no carro e o grupo envolvimento dos dois agentes do DOI, do coronel comprovando uma ampla articulação, havia nomes comprovando o acobertamento das circunstâncias e
dirigiu-se ao Riocentro. Deixaram o carro no estacionamento Freddie Perdigão Pereira e do civil Hilário Corrales. ligados à Secretaria de Segurança, à Polícia Militar dos autores do caso. Segundo o relatório, a cadeia de
principal, depois saíram, foram explorar o local onde iriam Em maio de 1999, o caso, entretanto, foi arquivado e à Polícia Civil, como o delegado Sérgio Farjalla. comando militar à época dos fatos era:
colocar a bomba, mas resolveram voltar para casa44 .” pelo Superior Tribunal Militar, que enquadrou, de
modo surpreendente e controvertido, um fato ocorri-
O carpinteiro mencionado no depoimento de Otávio do em 1981 na Lei da Anistia, de 1979.
Medeiros também figura nas declarações prestadas
pelo coronel Alberto Fortunato45. Segundo Fortuna- O IPM instaurado em 1999 trouxe à tona a afirma-
to, Hilário José Corrales fora o artífice da bomba ção de Newton Cruz, de que ele ficara sabendo an-
que explodiu naquele dia. Corrales é apresentado tes do ataque terrorista ao Riocentro por meio de
como membro ativo do denominado Grupo Secreto, uma ligação efetuada para o coronel Ari Pereira de
possuindo contatos e prestígio no meio militar, in- Carvalho, chefe da seção de operações da Agência
clusive junto ao Almirante Silvio Heck46. Central do SNI, pelo coronel Freddie Perdigão Pe-
reira, chefe da Seção de Operações do SNI, no Rio
Ao longo dos anos, diversas tentativas de reabertura de Janeiro. Confirma-se assim, a vinculação da ação
do caso se sucederam. Membros da Comissão de Di- não somente ao DOI, mas também ao Serviço Nacio-
reitos Humanos da Câmara dos Deputados, à época nal de Informações, configurando uma trama muito
presidida pelo deputado Hélio Bicudo, colheram de- complexa e que evidencia o envolvimento dos altos
poimentos de testemunhas e de pessoas envolvidas no escalões da hierarquia militar e de setores civis em
episódio. Essa iniciativa levou à solicitação da reaber- atos de terrorismo.
tura do caso, que foi recebida pela subprocuradora Gil-
da Pereira de Carvalho Berger, em 1996. Em 2012, a CNV obteve acesso a documentos que
42. Idem.
estavam em poder do ex-comandante do DOI, coro-
43. MOTTA, Aricildes de Moraes (Coordenação Geral). 1964 – 31 de março: nel Júlio Miguel Molinas Dias e que apresentaram
o movimento revolucionário e a sua história. Biblioteca do Exército Editora,
2003. novas provas sobre o caso Riocentro, tornando pos- Cadeia de Comando dos envolvidos no atentado frustrado do Riocentro
44. Idem. Crédito: Acervo Comissão Nacional da Verdade
45. ARGOLO, José; RIBEIRO, Kátia; FORTUNATO, Luiz Alberto Machado. A sível desvendar a articulação existente entre o DOI-
direita explosiva no Brasil. Mauad Editora Ltda, 1996, p.264. -CODI, o SNI, policiais e civis. Confirmando essa 47. ARGOLO, José; RIBEIRO, Kátia; FORTUNATO, Luiz Alberto Machado. A 48. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. 6° Relatório Preliminar de Pes-
46. Idem. direita explosiva no Brasil. Mauad Editora Ltda, 1996, p. 217. quisa: O caso Riocentro. 29/04/2014, p. 14.

236 237
A postura de omissão e cumplicidade do Estado frente de Nova Iguaçu, D. Adriano Hypólito, a explosão Civil, general Golbery do Couto Silva, escreveu ao indignada porque o marido passava algumas noites da sema-
aos atentados de um carro em 22 de setembro de 1976, comanda- presidente João Figueiredo, comentando os atenta- na fora de casa, ameaçou denunciar o que sabia à polícia. De
do a explosão de uma bomba no jornal Opinião em dos que vinham ocorrendo no período: todo modo nós tomávamos cuidados para evitar que as des-
A postura omissiva e cúmplice do Estado brasileiro 14 de novembro de 1976 e efetuado atentado à Edi-

confianças fossem comprovadas.52”
não se restringiu às investigações dos casos da OAB tora Civilização Brasileira, em 05 de dezembro de O lamentável caso do Riocentro, em sequencia a outros
e do Riocentro. A polícia política possuía um mape- 1976. Também consta da lista a chamada Brigadas episódios de menor relevância (bancas de jornais, Tribuna da A partir das investigações realizadas pela CEV-Rio,
amento dos grupos de extrema direita atuantes no Anticomunistas Tenente Mendes (BAC-TM), a Van- Imprensa, atentado contra o deputado Genival Tourinho, em com a colaboração do projeto de pesquisa “Justiça
Rio de Janeiro. No entanto, não há notícias de ope- guarda de Caça aos Comunistas (VCC), indicada Brasília, etc.) ou gravidade muito maior (OAB), tem evolu- Autoritária? O Judiciário do Rio de Janeiro e a
rações que visassem o seu desmantelamento. Docu- como responsável pelos atentados ao altar da Igreja ído de maneira até mesmo mais favorável e discreta do que Ditadura Militar (1964-1988)” é possível perceber
mentos localizados no Arquivo Público do Estado do da Matriz de Santo Antônio de Jacutinga, em Nova se poderia esperar ao começo. Tudo indica que o IPM, não que, apesar da multiplicidade de denominações
Rio de Janeiro revelam que o DOPS encontrava-se Iguaçu, pelos atentados à OAB e à Câmara dos Vere- divulgado ainda, mas do qual a nota dada à imprensa pelo das organizações de extrema-direita, elas todas se
atento aos atos terroristas que vinham sendo prati- adores, no dia 27 de agosto de 1980, e pela colocação, encarregado – bem lançada, aliás – parece dar ideia satisfató- apresentam unidas por um eixo ideológico. Os cír-
cados desde a edição da Lei de Anistia. Nesse senti- no dia seguinte, de uma carta-bomba na SUNAB. ria, substanciará as conclusões finais de ter havido crime na culos em que atuavam militares e civis com a co-
do, elaborou um relatório datado de 08 de setembro área de competência da Justiça Militar, mas de não existirem nivência do Estado, podiam ou não se tangenciar,
de 1980, acerca dos “atentados terroristas perpetra- Na relação ainda aparecem a Falange Pátria Nova, elementos suficientes à indicação dos culpados51.” mas a presença desses grupos se fez notória ao lon-
dos, na área metropolitana do Estado do Rio de Ja- indicada como autora dos ataques a bancas de jor- go de toda a ditadura.
neiro, por grupos clandestinos”49. nais a partir de março de 1980, das bombas na Edi- Os grupos de extrema direita, que visavam gerar
tora Convergência Ltda., em 29 de março de 1980; instabilidade política e forçar os rumos do regime no Cabe ressaltar que o coronel Paulo Malhães do CIE
Entre os grupos identificados, inclusive com nomes da bomba na redação do jornal A Hora do Povo, no sentido do acirramento da repressão, mantinham a confessou ter participado do Movimento Antico-
de participantes, encontravam-se: Clube da Lan- dia seguinte; e do atentado ao Tribuna Operária, no preocupação de evitar que a autoria fosse comple- munista53. Assim, a presença desses grupos não se
terna, representado por Fidelis dos Santos Amaral dia 27 de agosto de 1980, mesma data dos atentados tamente identificada. Isso se justifica pela presença restringia somente à realização de atentados. A ide-
Netto; Movimento Anticomunista (MAC), que no à OAB e à Câmara dos Vereadores. A conclusão do de eminentes nomes do governo envolvidos nos atos ologia anticomunista, que ligava as diversas organi-
documento aparecia relacionado ao coronel Gustavo relatório propõe a coleta de informações como o meio terroristas e também ajuda a entender o porquê de zações, encontrava-se disseminada por todo o apa-
Borges e “ao pessoal da Aeronáutica que fez a rebe- mais eficaz para combater este tipo de terrorismo. as investigações, quando iniciadas, quase nunca re- rato repressor e se transformou em ações brutais,
lião de Jacareacanga” e como tendo se dissolvido e sultarem em respostas objetivas. O coronel Alberto como as que se sucederam na Casa de Petrópolis.
reaparecido ligado à Frente Universitária Renova- O documento que segue o relatório50, acerca das Fortunato, explicita essa preocupação ao comentar
dora (FUR), com membros desconhecidos; Coman- investigações sobre a bomba que feriu gravemente a onda de atentados ocorridos em 1968. Em resposta Confirmando essa articulação em ações de natureza
do de Caça aos Comunistas (CCC) atuante em São José Ribamar, assessor do vereador Antônio Carlos, a um oficial do CIE, que questionou o envolvimento variada, uma notícia veiculada na imprensa em 03
Paulo e Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, em 27 de agosto de 1980, insinua que o vereador po- do chamado “Grupo Secreto” em uma operação na- de julho de 1985 revelou, de acordo com o que sus-
Família e Propriedade (TFP). deria ser o culpado pela explosão da bomba. Nesse quele ano, afirmou: tentava os depoimentos do coronel Dickson Graell 54,
sentido, é levantada a hipótese de que o assessor que os casos Riocentro e do assassinato do escritor
Continuando o levantamento, a Aliança Anticomu- José Ribamar pudesse estar, na verdade, montando “ Respondi afirmativamente e a história foi esquecida. Isso e jornalista Alexandre Baumgartem, em outubro de
nista Brasileira (AAB), segundo o documento, teria o artefato que explodiu. A culpa, nesse caso, seria da comprova que, mesmo para os agentes do CIE que integravam
efetuado o atentado à bomba à ABI, teria colocado própria vítima. o nosso Grupo, não havia qualquer interesse em divulgar a 52. ARGOLO, José; RIBEIRO, Kátia; FORTUNATO, Luiz Alberto Machado. A
direita explosiva no Brasil. Mauad Editora Ltda, 1996, p.251-252.
uma bomba na Sala de Juramentos da OAB em 19 autoria dos “trabalhos”. O sigilo era nossa principal vantagem 53. Idem.
54. O Coronel Dickson Graell participou do movimento de Aragarças, junto a
de agosto de 1975, realizado o sequestro do Bispo O acobertamento havido nestes casos torna-se evi- e, enquanto operamos, houve apenas um instante de apreen- João Paulo Moreira Burnier e a Alberto Fortunato(CHIRIO, Op. Cit. p.7). À
dente quando, após o atentado, o chefe do Gabinete são: foi quando a mulher de um capitão (nome não revelado), época do atentado do Riocentro, o coronel foi demitido do cargo de Chefe de
Segurança do Riocentro dias antes das explosões acontecerem. Em meados
49. APERJ. Fundo Polícias Políticas do Rio de Janeiro. Setor Terrorismo. da década de 1980, Graell lançou o livro “Aventura, Corrupção, Terrorismo – À
Notação 19-A. 50. Idem. 51. O Bruxo fez sua última arte. Revista Veja. 23/09/1987, p.20-21. Sombra da Impunidade” em que acusa o DOI-CODI pela explosão dos artefatos.

238 239
1982, estavam relacionados. Na notícia, que mencio- também passaram pelo sítio56.” lher, o barqueiro e a embarcação jamais foram en- de esconderem a identificação de Baumgarten. O
na a vinculação dos eventos e sua articulação com a contrados. O general Newton Cruz foi absolvido caso Baumgarten jamais foi completamente solu-
estrutura repressiva, aparece inclusive o nome do O caso do jornalista Alexandre Von Baumgarten em Júri Popular por falta de provas. cionado. A partir dos levantamentos documentais
coronel Paulo Malhães, como se vê a seguir: também representou a impunidade existente até e depoimentos colhidos pela CEV-Rio, é possível
nos crimes contra os aliados, com a chamada queima No depoimento que prestou à CEV-Rio, o coronel Pau- inferir que os grupos responsáveis pelos atentados
“ Malhães era chefe de operações do DOI-CODI no Rio de Ja- de arquivo. Ligado à comunidade de informações, lo Malhães, responsabilizou diretamente o seu colega à bomba, neste capítulo indicados, estiveram tam-
neiro durante o final dos anos 60 e início da década de 70, ele foi “escolhido” pelos militares para ressuscitar de CIE, coronel Freddie Perdigão, àquela altura no bém envolvidos no assassinato do jornalista Ale-
época em que angariou a fama de frio torturador, conhecido a revista Cruzeiro, que, após atingir tiragem de até SNI, pelo assassinato, que teria sido feito a mando do xandre Von Baumgarten.
como Doutor Pablo. Espécie de ‘livre atirador’, agia com bas- 850 mil exemplares, afundou-se em dívidas. A ideia coronel Newton Cruz, o Nini:
era usá-la na defesa do governo militar. Para tal, se A omissão ou conivência do Estado brasileiro fica

tante desenvoltura dentro dos quadros policiais, usando in-
clusive recursos da polícia civil para as ‘operações militares’ dispuseram a parcelar as dívidas junto a órgãos ofi- Nini mandou ele fazer bem feito. E eu disse que ele resolveu evidente quando se observa que os inquéritos aber-
de sequestro e tortura de estudantes e lideranças políticas. Seu ciais, como o INSS, além de rolar as existentes junto fazer à moda dos piratas, né? Com embarcação, ataca a outra, tos para investigar os grupos de extrema direita não
episódio mais conhecido, porém, foi o sequestro de D. Adriano a bancos, fornecedores e empregados. Paralelamen- dá tiros na outra. Sacaneei ele para burro...58.” levaram à identificação ou punição dos envolvidos,
Hipólito, o Bispo de Nova Iguaçu, efetuado com a participação te, haveria aporte do BNDES e pressão da comuni- demonstrando um verdadeiro acobertamento por
de outra sinistra personalidade da repressão policial, o coro- dade de segurança junto às agências de publicidade, Perdigão o atacou em pleno mar com outra lancha, parte dos militares no poder. O Estado permitiu que
nel [José Ribamar] Zamith55.” em busca de anúncios para manter a publicação57. o que Malhães classificou de ataque pirata. O cor- esses grupos atuassem com a garantia de impunida-
po caiu n’água e não conseguiram recuperá-lo. A de e aceitou a sua existência durante todo o regime
Essa articulação também foi evidenciada no jornal O acerto, em 1979, não gerou o efeito desejado, mas morte não foi por afogamento. No necrotério, tenta- militar, favorecendo suas múltiplas articulações e
Tribuna da Imprensa, em que é denunciada a exis- Baumgarten continuou pressionando por ajuda. ram mudar a identificação, trocando a etiqueta que ações terroristas.
tência de sítios de treinamento utilizados pela ex- Passou a ser um aliado perigoso na medida em que amarram aos dedos. Daí a confusão narrada, à épo-
trema-direita em Jacarepaguá, revelando uma con- ameaçava divulgar o que sabia. O jornalista, entre- ca, pelo jornalista Xico Vargas de Veja:
tinuidade das estratégias utilizadas no pré-golpe. tanto, tinha conhecimento que corria riscos de vida.
Segundo a matéria: Em janeiro de 1981, distribuiu a 10 conhecidos dos- “ a consulta do IML ao Instituto Félix Pacheco, sobre a iden-
siês nos quais narrava os acordos com o SNI e res-

tificação datiloscópica do cadáver, teve como resposta que as
Foi num sítio, em Jacarepaguá, que a equipe “Falcão”, ponsabilizava os generais Newton de Oliveira Cruz, impressões colhidas de seus dedos correspondiam às do cea-
comandada pelo Dr. Charles (codinome do capitão Wilson chefe da Agência Central do SNI, e Octávio Medei- rense Tarcísio Ferreira de Moura, 46 anos e extensa folha
Machado) treinou a “Operação Clave de Sol”, planejada para ros, ministro chefe do SNI por qualquer coisa que de antecedentes criminais. Na tarde de sexta-feira (28/01), o
fazer explodir bombas no Riocentro, na noite de 30 de abril de viesse a lhe acontecer. diretor do IML, Ivan Nogueira Bastos, esclareceu o equívoco.
1981 (...) No sítio de Manoel Português, foram planejadas e Ambos haviam sido recolhidos pelo mesmo rabecão e levados
treinadas as principais aventuras da extrema direita clandes- No dia 13 de outubro de 1982, Baumgarten, sua para o IML, onde foram colhidos nos dedos do cadáver de Tar-
tina, como as cartas-bombas que em agosto de 1980, mataram mulher Jeanette Yvone Hansen e o barqueiro císio, os sinais digitais para a ficha do jornalista, que já tivera
a secretária da Ordem dos Advogados do Brasil, Lyda Montei- Manoel Augusto Valente Pires, dono da traineira as extremidades destruídas pelos peixes59.”
ro da Silva, e feriram o funcionário da Câmara Municipal, Mirimi, foram para as Ilhas Cagarras. Ele só re-
José Ribamar Sampaio de Freitas. (...) Segundo suspeitas do apareceu, morto com dois tiros na cabeça e o cor- Nas explicações de Malhães, porém, a troca não foi
coronel Dickson Graell, principal municiador das investiga- po deformado pelos peixes, no dia 25, na praia da casual, mas proposital, na tentativa dos militares
ções sobre o ‘Caso Baumgarten’, os assassinos do jornalista Macumba, no extremo oeste do litoral. Sua mu-
58. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Paulo Malhães para a CEV-Rio em feve-
55. Dickson Grael liga o caso Baumgarten ao do Riocentro. Jornal do País. reiro e março de 2014.
30/07/1985. Disponível em: http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/ 56. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro: 14/10/1985, p.1-2. 59. VARGAS, Xico. O corpo do cemitério São Paulo. Revista Veja. Edição nº
R05212.pdf 57. GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. Editora Intrinseca, 2014. p.113- 116. 752, p.22-23.

240 241
Capítulo 16 - MORTOS E DESAPARECIDOS A lista abaixo apresenta cento e sessenta e três no- novos casos de vítimas fatais da ditadura. Com fun- de; organização política, quando pertinente; a qua-
mes de mortos e desaparecidos políticos, naturais do damento na pesquisa “O 1º Batalhão de Infantaria lificação de morto, desaparecido ou morto vítima de
Neste relatório, a Comissão da Verdade do Rio trata estado do Rio de Janeiro, ou cujas mortes e desa- Blindada do Exército e a repressão no Sul Flumi- desaparecimento (quando o corpo foi posteriormen-
extensiva e detalhadamente dos crimes praticados parecimentos ocorreram no território do estado en- nense”, realizada pela UFF/Volta Redonda, e nas in- te localizado); a data da morte ou desaparecimento;
pela ditadura militar ao longo de seus 21 anos de vi- tre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. vestigações levadas a cabo pela Comissão da Verda- o município, o Estado e o local específico em que a
gência. Violências contra os mais elementares direi- Três fontes foram fundamentais para a sua elabora- de de Volta Redonda, foram incluídos os nomes dos pessoa foi morta ou vista pela última vez antes de
tos dos cidadãos brasileiros nos mais diversos níveis. ção: Direito à memória e à verdade, livro-relatório quatro soldados – Geomar Ribeiro da Silva, Wander- desaparecer. Os casos são apresentados na ordem
Entre todos os crimes praticados, a ditadura deixou da CEMDP; Dossiê ditadura: mortos e desapareci- lei de Oliveira, Juarez Monção Virote e Roberto Vi- cronológica da morte ou desaparecimento.
uma herança sinistra de mortos e desaparecidos. São dos políticos no Brasil (1964-1985), elaborado pela cente da Silva – torturados e mortos no interior do 1º
homens e mulheres que tiveram suas vidas destruí- Comissão de Familiares; e Relatório da Comissão BIB, em 1972. Ainda, com base na pesquisa “Confli- O rol de vítimas aqui exposto não é definitivo. Trata-
das na luta política, movidos por seus ideais de trans- Nacional da Verdade. A CEV-Rio contemplou todos tos e repressão no campo no estado do Rio de Janei- -se de uma lista aberta e em permanente construção.
formação social do país. Combateram o bom combate. os casos deferidos pela CEMDP, inclusive aqueles ro (1946-1988)”, desenvolvida pelo CPDA/UFRRJ, As investigações das graves violações de direitos hu-
A leitura de seus nomes evoca lembranças, incomoda. constantes no anexo da Lei 9.140/1996, bem como foram acrescentados 15 casos de camponeses mortos manos perpetradas entre 1946 e 1988 merecem ter
Até hoje seus familiares esperam e exigem uma repa- os apresentados pela CNV no volume III de seu Re- ou desaparecidos1, por ação ou omissão do Estado, continuidade. A produção de um quadro mais conso-
ração e o reconhecimento do Estado brasileiro. Mui- latório, sempre que ocorridos no Rio de Janeiro ou no período de 1946 a 1988. Informações detalhadas lidado de informações sobre a repressão no período
tos deles se tornaram desaparecidos, esta trágica fi- perpetrados contra pessoas nascidas no estado. Dois sobre esses casos podem ser consultadas, respecti- ditatorial abrirá caminho para a identificação de um
gura jurídica criada pelo regime de desaparecimento dos casos relacionados no Dossiê ditadura (Ântônio vamente, no capítulo 19 (Locais de prisão e tortura), número ainda maior de mortos e desaparecidos po-
forçado. Ao matar e fazer desaparecer corpos, a dita- Carlos Silveira Alves, Luiz Affonso Miranda da Cos- no texto sobre o 1º BIB, e no capítulo 5 (Violência e líticos, especialmente no que se referem às violações
dura cometeu crimes que jamais prescreverão. Para ta Rodrigues) não constam nesta lista por não ter repressão no campo) perpetradas contra camponeses e indígenas, vítimas
a sociedade, para as cortes internacionais e para seus sido possível caracterizar a responsabilidade do Es- da ditadura ainda “desconhecidas” pela história.
familiares. São crimes que passam de uma geração tado em suas mortes. A lista identifica o nome da vítima; sua naturalida-
para outra, como estão a nos exigir agora seus filhos
e netos, que se organizaram em grupos e associações A partir das investigações realizadas ao longo de 1. São eles: Amâncio Bonifácio da Cruz; Vitório da Cruz; Augusto Rodrigues
de Souza; Benício Gomes de Oliveira; Cecílio Alves Sttelet; Concelsa dos San-
para não deixar que prescrevam ou sejam esquecidos. seus trabalhos, a CEV-Rio acrescentou às listagens, tos Silva; Ivo Alves; José Ferreira Nunes Filho; José Teodoro (José Matias);
Jotaci Teixeira da Silva; Manoel Mangueira; Mário Vaz; Nilson Diogo; Sebas-
anteriormente produzidas por outros órgãos oficiais, tião Lan e Daniel Nunes.

1. José Teodoro 2. Labibe Elias Abduch 3. Ari de Oliveira Mendes Cunha 4. Antolgido Pascoal Viana 5. João Barcellos Martins 6. Edu Barreto Leite
Naturalidade: desconhecido Naturalidade: Síria Naturalidade: desconhecido Naturalidade: Itacoatiara (MA) Naturalidade: Campos Naturalidade: Dom Pedrito (RS)
Organização ou atividade política: N/A* Organização ou atividade política: N/A Organização ou atividade política: N/A Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: N/A
Data da morte: 1953 Data da morte: 01/04/1964 Data da morte: 01/04/1964 Federação Nacional dos Estivadores Partido Socialista Brasileiro Data da morte: 13/04/1964
Município e Estado da morte: Nova Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado da morte: Rio de Data da morte: 08/04/1964 Data da morte: 11/04/1964 Município e Estado da morte: Rio de
Iguaçu (RJ) Janeiro (RJ) Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado da morte: Niterói Janeiro (RJ)
Local específico da morte: Nova Aurora Local específico da morte: Hospital Souza Local específico da morte: Hospital Souza Janeiro (RJ) (RJ) Local específico da morte: Hospital
Aguiar Aguiar Local específico da morte: Hospital do Local específico da morte: desconhecido Souza Aguiar
Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Trabalahdores de Cargas (IAPETC)
*N/A = não se aplica

242 243
7. José de Souza 11. Israel Tavares Roque 15. José Sabino 19. Maria Ângela Ribeiro 23. Catarina Helena Abi-Eçab Janeiro (RJ)
Naturalidade: Desconhecida Naturalidade: Nazaré das Farinhas (BA) Naturalidade: Desconhecida Naturalidade: Desconhecida Naturalidade: São Paulo (SP) Local específico da morte: Edifício nº 82,
Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: N/A Organização ou atividade política: N/A Organização ou atividade política: Ação Avenida Presidente Vargas, Praça Onze
Sindicato dos Ferroviários do Rio de Partido Comunista Brasileiro (PCB) Data da morte: 19/05/1966 Data da morte: 21/06/1968 Libertadora Nacional (ALN)
Janeiro Data do desaparecimento: 15/11/1964 Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado da morte: Rio de Data da morte: 08/11/1968 27. Marcos Antônio Bráz de Carvalho
Data da morte: 17/04/1964 Município e Estado do desaparecimento: Janeiro (RJ) Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Vassouras Naturalidade: Angra dos Reis (RJ)
Município e Estado da morte: Rio de Rio de Janeiro (RJ) Local específico da morte: lugar público Local específico da morte: Rua México (RJ) Organização ou atividade política: Ação
Janeiro (RJ) Local específico do desaparecimento: ou Quartel General da Polícia Militar ou Local específico da morte: via pública, Libertadora Nacional (ALN)
Local específico da morte: DOPS/GB Estação Ferroviária Central do Brasil 16. Edson Luiz Lima Souto Hospital Pandiá Calógenas Rodovia BR 116, km 69, próximo à Data da morte: 28/01/1969
Naturalidade: Belém (PA) Vassouras Município e Estado da morte: São Paulo
8. Manoel Alves de Oliveira 12. Divo Fernandes D’Oliveira Organização ou atividade política: 20. Fernando da Silva Lembo (SP)
Naturalidade: Aquidabã (SE) Naturalidade: Tubarão (SC) movimento estudantil Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) 24. João Antônio Santos Abi-Eçab Local específico da morte: Rua
Organização ou atividade política: N/A Organização ou atividade política: Data da morte: 28/03/1968 Organização ou atividade política: N/A Naturalidade: São Paulo (SP) Fortunato, nº 291, São Paulo (SP)
Data da morte: 08/05/1964 Partido Comunista Brasileiro (PCB) Município e Estado da morte: Rio de Data da morte: 01/07/1968 Organização ou atividade política: Ação
Município e Estado da morte: Rio de Data do desaparecimento: 1964-1965 Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Rio de Libertadora Nacional (ALN) 28. Paulo Torres Gonçalves
Janeiro (RJ) Município e Estado do desaparecimento: Local específico da morte: proximidade Janeiro (RJ) Data da morte: 08/11/1968 Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Local específico da morte: Hospital Rio de Janeiro (RJ) do restaurante Calabouço, no Centro Local específico da morte: Hospital Município e Estado da morte: Vassouras Organização ou atividade política: N/A
Central do Exército Local específico do desaparecimento: Souza Aguiar (RJ) Data do desaparecimento: 26/03/1969
Penitenciária Professor Lemos Brito 17. David de Souza Meira Local específico da morte: via pública, Município e Estado do desaparecimento:
9. Dilermano Mello do Nascimento Naturalidade: Nanuque (MG) 21. Manoel Rodrigues Ferreira Rodovia BR 116, km 69, próximo à cidade Rio de Janeiro (RJ)
Naturalidade: Desconhecida 13. Severino Elias de Mello Organização ou atividade política: N/A Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) de Vassouras Local específico do desaparecimento:
Organização ou atividade política: N/A Naturalidade: Espírito Santo (PB) Data da morte: 01/04/1968 Organização ou atividade política: N/A desconhecido
Data da morte: 15/08/1964 Organização ou atividade política: N/A Município e Estado da morte: Rio de Data da morte: 05/08/1968 25. Luiz Paulo da Cruz Nunes
Município e Estado da morte: Rio de Data da morte: 30/07/1965 Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Rio de Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) 29. Severino Viana Colou
Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Rio de Local específico da morte: Avenida Nilo Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: Naturalidade: Caruaru (PE)
Local específico da morte: 4º andar do Janeiro (RJ) Peçanha, Centro Local específico da morte: Hospital movimento estudantil Organização ou atividade política:
Ministério da Justiça Local específico da morte: Base Aérea do Samaritano Data da morte: 22/11/1968 Comando de Libertação Nacional
Galeão 18. Jorge Aprígio de Paula Município e Estado da morte: Rio de (COLINA)
10. Newton Eduardo de Oliveira Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) 22. Cloves Dias de Amorim Janeiro (RJ) Data da morte: 24/05/1969
Naturalidade: Recife (PE) 14. Mário Vaz Organização ou atividade política: Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Local específico da morte: Hospital Município e Estado da morte: Rio de
Organização ou atividade política: Naturalidade: Desconhecida movimento estudantil Organização ou atividade política: Universitário Pedro Ernesto Janeiro (RJ)
Federação Nacional dos Trabalhadores Organização ou atividade política: N/A Data da morte: 01/04/1968 movimento estudantil Local específico da morte: Quartel da 1ª
na Indústria Gráfica e Partido Comunista Data da morte: novembro de 1965 Município e Estado da morte: Rio de Data da morte: 23/10/1968 26. Luiz Carlos Augusto Cia de Polícia de Exército da Vila Militar
Brasileiro (PCB) Município e Estado da morte: Rio de Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Rio de Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Data da morte: 01/09/1964 Janeiro (RJ) Local específico da morte: Rua General Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: 30. Sebastião Gomes dos Santos
Município e Estado da morte: Rio de Local específico da morte: Fazenda Mato Alto Canabarro, Maracanã Local específico da morte: via pública, movimento estudantil Naturalidade: Desconhecida
Janeiro (RJ) centro do Rio de Janeiro Data da morte: 23/10/1968 Organização ou atividade política: Comando
Local específico da morte: residência Município e Estado da morte: Rio de de Libertação Nacional (COLINA)

244 245
Data da morte: 30/05/1969 de Polícia do Exército, na Rua Barão de Revolucionário (PCBR) 41. Eiraldo de Palha Freire 45. Rubens Beirodt Paiva 49. Carlos Alberto Soares de Freitas
Município e Estado da morte: Cachoeiras Mesquita Data do desaparecimento: 17/01/1970 Naturalidade: Belém (PA) Naturalidade: Santos (SP) Naturalidade: Belo Horizonte (MG)
de Macacu (RJ) Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política: Ação Organização ou atividade política: Organização ou atividade política:
Local específico da morte: bairro de 34. Eremias Delizoicov Rio de Janeiro (RJ) Libertadora Nacional (ALN) Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) Vanguarda Armada Revolucionária -
Sapucaia Naturalidade: São Paulo (SP) Local específico do desaparecimento: Data da morte: 04/07/1970 Data do desaparecimento: 20/01/1971 Palmares (VAR - Palmares)
Organização ou atividade política: DOI-CODI/RJ Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado do desaparecimento: Data do desaparecimento: 15/02/1971
31. Reinaldo Silveira Pimenta Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Janeiro (RJ) Rio de Janeiro (RJ) Município e Estado do desaparecimento:
Naturalidade: Niterói (RJ) Data do desaparecimento: 16/10/1969 38. José Roberto Spiegner Local específico da morte: Hospital da Local específico do desaparecimento: Rio de Janeiro (RJ)
Organização ou atividade política: Município e Estado do desaparecimento: Naturalidade: Barra do Piraí (RJ) Aeronáutica do Galeão DOI-CODI/RJ Local específico do desaparecimento:
Movimento Revolucionário 8 de outubro Rio de Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: Casa da Morte de Petrópolis
(MR-8) Local específico do desaparecimento: Movimento Revolucionário 8 de outubro 42. Jorge Leal Gonçalves Pereira 46. Aderval Alves Coqueiro
Data da morte: 27/06/1969 Rua Toropi, nº 59, Vila Cosmos (MR-8) Naturalidade: Salvador (BA) Naturalidade: Aracatu (BA) 50. Joel Vasconcelos Santos
Município e Estado da morte: Rio de Data da morte: 17/02/1970 Organização ou atividade política: Ação Organização ou atividade política: Naturalidade: Nazaré das Farinhas (BA)
Janeiro (RJ) 35. Chael Charles Schreier Município e Estado da morte: Rio de Popular (AP) Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) Organização ou atividade política:
Local específico da morte: Hospital Naturalidade: São Paulo (SP) Janeiro (RJ) Data do desaparecimento: 20/10/1970 Data da morte: 06/02/1971 Partido Comunista do Brasil (PCdoB)
Miguel Couto Organização ou atividade política: Local específico da morte: desconhecido Município e Estado do desaparecimento: Município e Estado da morte: Rio de Data do desaparecimento: 15/03/1971
Vanguarda Armada Revolucionária- Rio de Janeiro (RJ) Janeiro (RJ) Município e Estado do desaparecimento:
32. Geraldo Bernardo da Silva Palmares (VAR-Palmares) 39. Juares Guimarães de Brito Local específico do desaparecimento: Local específico da morte: residência Rio de Janeiro (RJ)
Naturalidade: desconhecida Data da morte: 22/11/1969 Naturalidade: Belo Horizonte (MG) DOI-CODI/RJ Local específico do desaparecimento:
Organização ou atividade política: Município e Estado da morte: Rio de Organização ou atividade política: 47. José Dalmo Guimarães Lins DOI-CODI/RJ
Comitê Sindical dos Ferroviários da Janeiro (RJ) Vanguarda Popular Revolucionária 43. Celso Gilberto de Oliveira Naturalidade: Maceió (AL)
Estrada de Ferro Central do Brasil Local específico da morte: Quartel da 1ª (VPR) Naturalidade: Porto Alegra (RS) Organização ou atividade política: 51. Gerson Theodoro de Oliveira
Data da morte: 17/07/1969 Cia da Polícia do Exército da Vila Militar Data da morte: 19/04/1970 Organização ou atividade política: Partido Comunista Brasileiro (PCB) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado da morte: Rio de Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Data da morte: 11/02/1971 Organização ou atividade política:
Janeiro (RJ) 36. Marcos Antônio da Silva Lima Janeiro (RJ) Data do desaparecimento: 30/12/1970 Município e Estado da morte: Rio de Vanguarda Popular Revolucionária
Local específico da morte: Edifício da Naturalidade: João Pessoa (PB) Local específico da morte: Hospital Município e Estado do desaparecimento: Janeiro (RJ) (VPR) Data da morte: 22/03/1971
Central do Brasil, Centro Organização ou atividade política: Souza Aguiar Rio de Janeiro (RJ) Local específico da morte: residência Município e Estado da morte: Rio de
Partido Comunista Brasileiro Local específico do desaparecimento: Janeiro (RJ)
33. Roberto Cietto Revolucionário (PCBR) 40. Joelson Crispim desconhecido 48. Antônio Joaquim de Souza Machado Local específico da morte: DOI-CODI/RJ
Naturalidade: Pederneiras (SP) Data da morte: 14/01/1970 Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Naturalidade: Papagaios (MG)
Organização ou atividade política: Município e Estado da morte: Rio de Organização ou atividade política: 44. Aldo de Sá Brito Souza Neto Organização ou atividade política: 52. Mauricio Guilherme da Silveira
Movimento de Ação Revolucionária Janeiro (RJ) Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Vanguarda Armada Revolucionária - Naturalidade: Itaipava (RJ)
(MAR) Local específico da morte: DOI-CODI/RJ Data do desaparecimento: 22/04/1970 Organização ou atividade política: Ação Palmares (VAR - Palmares) Organização ou atividade política:
Data da morte (vítima de Município e Estado do desaparecimento: Libertadora Nacional (ALN) Data do desaparecimento: 15/02/1971 Vanguarda Popular Revolucionária
desaparecimento forçado): 04/09/1969 37. Mário Alves de Souza Vieira São Paulo (SP) Data da morte: 07/01/1971 Município e Estado do desaparecimento: (VPR) Data da morte: 22/03/1971
Município e Estado da morte: Rio de Naturalidade: Sento Sé (BA) Local específico do desaparecimento: Município e Estado da morte: Belo Rio de Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Rio de
Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: Casa de Saúde Dom Pedro II Horizonte (MG) Local específico do desaparecimento: Janeiro (RJ)
Local específico da morte: 1º Batalhão Partido Comunista Brasileiro Local específico da morte: Hospital Militar Casa da Morte de Petrópolis Local específico da morte: DOI-CODI/RJ

246 247
53. Mário de Souza Prata Data do desaparecimento: 15/05/1971 60. Paulo de Tarso Celestino da Silva 64. José Raimundo da Costa 68. Felix Escobar Sobrinho Local específico da morte: I Batalhão de
Naturalidade: Cantagalo (RJ) Município e Estado do desaparecimento: Naturalidade: Morrinhos (GO) Naturalidade: Recife (PE) Naturalidade: Miracema ou Cachoeira de Infantaria Blindada
Organização ou atividade política: Rio de Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: Ação Organização ou atividade política: Itepemirim (RJ ou ES)
Movimento Revolucionário 8 de outubro Local específico do desaparecimento: Libertadora Nacional (ALN) Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Organização ou atividade política: 72. Juarez Monção Virotte
(MR-8) desconhecido Data do desaparecimento: 12/07/1971 Data do desaparecimento: 05/08/1971 Movimento Revolucionário 8 de outubro Naturalidade: Espírito Santo
Data do desaparecimento: 02/04/1971 Município e Estado do desaparecimento: Município e Estado do desaparecimento: (MR-8) Organização ou atividade política: N/A
Município e Estado do desaparecimento: 57. Mariano Joaquim da Silva Rio de Janeiro (RJ) Rio de Janeiro (RJ) Data do desaparecimento: 03/10/1971 Data da morte: 12/01/1972
Rio de Janeiro (RJ) Naturalidade: Timbaúba (PE) Local específico do desaparecimento: Local específico do desaparecimento: Município e Estado do desaparecimento: Município e Estado da morte: Barra
Local específico do desaparecimento: Organização ou atividade política: Casa da Morte Petrópolis lugar público Rio de Janeiro (RJ) Mansa (RJ)
Rua Niquelândia, no bairro de Campo Vanguarda Armada Revolucionária - Local específico do desaparecimento: Local específico da morte: I Batalhão de
Grande Palmares (VAR - Palmares) 61. Walter Ribeiro Novaes 65. Raul Amaro Nin Ferreira desconhecido Infantaria Blindada
Data do desaparecimento: 31/05/1971 Naturalidade: desconhecida Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
54. Marilena Villas Boas Pinto Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: N/A 69. Flavio Carvalho Molina 73. Roberto Vicente da Silva
Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Rio de Janeiro (RJ) Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Data da morte: 12/08/1971 Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Naturalidade: Volta Redonda (RJ)
Organização ou atividade política: Local específico do desaparecimento: Data do desaparecimento: 12/07/1971 Município e Estado da morte: Rio de Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: N/A
Movimento Revolucionário 8 de outubro Casa da Morte de Petrópolis Município e Estado do desaparecimento: Janeiro (RJ) Movimento de Libertação Popular Data da morte: 12/01/1972
(MR-8) Rio de Janeiro (RJ) Local específico da morte: Hospital (MOLIPO) Município e Estado da morte: Barra
Data da morte: 03/04/1971 58. José Gomes Teixeira Local específico do desaparecimento: Central do Exército Data da morte (vítima de desaparecimento Mansa (RJ)
Município e Estado da morte: Rio de Naturalidade: Maceió (AL) desconhecido forçado): 07/11/1971 Local específico da morte: I Batalhão de
Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: 66. Carlos Lamarca Município e Estado da morte: São Paulo (SP) Infantaria Blindada
Local específico da morte: Hospital Movimento Revolucionário 8 de outubro 62. Daniel Nunes Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Local específico da morte: DOI-CODI/SP
Central do Exército (MR-8) Naturalidade: Itaperuna (RJ) Organização ou atividade política: 74. Wanderlei de Oliveira
Data do desaparecimento: 23/06/1971 Organização ou atividade política: N/A Movimento Revolucionário 8 de outubro 70. Carlos Eduardo Pires Fleury Naturalidade: Barra Mansa (RJ)
55. Stuart Edgar Angel Jones Município e Estado do desaparecimento: Data do desaparecimento: agosto de 1971 (MR-8) Naturalidade: São Paulo (SP) Organização ou atividade política: N/A
Naturalidade: Salvador (BA) Rio de Janeiro (RJ) Município e Estado do desaparecimento: Data da morte: 17/09/1971 Organização ou atividade política: Data da morte: 12/01/1972
Organização ou atividade política: Local específico do desaparecimento: desconhecido Município e Estado da morte: Brotas de Movimento de Libertação Popular Município e Estado da morte: Barra
Movimento Revolucionário 8 de outubro Base aérea do Galeão Local específico do desaparecimento: Macaúbas (BA) (MOLIPO) Mansa (RJ)
(MR-8) desconhecido Local específico da morte: lugar público Data da morte: 10/12/1971 Local específico da morte: I Batalhão de
Data do desaparecimento: 14/05/1971 59. Heleny Ferreira Telles Guariba Município e Estado da morte: Rio de Infantaria Blindada
Município e Estado do desaparecimento: Naturalidade: Bebedouro (SP) 63. Francisco das Chagas Pereira 67. Antônio Sérgio de Mattos Janeiro (RJ)
Rio de Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: Naturalidade: Sumé (PB) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Local específico da morte: bairro do Cachambi 75. Alex de Paula Xavier Pereira
Local específico do desaparecimento: Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: Ação Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Base Aérea do Galeão / Ação Libertadora Nacional (ALN) Partido Comunista Brasileiro (PCB) Libertadora Nacional (ALN) 71. Geomar Ribeiro da Silva Organização ou atividade política: Ação
Data do desaparecimento: 12/07/1971 Data do desaparecimento: 05/08/1971 Data da morte (vítima de desaparecimento Naturalidade: Barra do Piraí (RJ) Libertadora Nacional (ALN)
56. Ivan Mota Dias Município e Estado do desaparecimento: Município e Estado do desaparecimento: forçado): 23/09/1971 Organização ou atividade política: N/A Data da morte (vítima de desaparecimento
Naturalidade: Passa Quatro (MG) Rio de Janeiro (RJ) Rio de Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: São Paulo (SP) Data da morte: 12/01/1972 forçado): 20/01/1972
Organização ou atividade política: Local específico do desaparecimento: Local específico do desaparecimento: Local específico da morte: desconhecido Município e Estado da morte: Barra Município e Estado da morte: São Paulo (SP)
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) Casa da Morte Petrópolis desconhecido Mansa (RJ) Local específico da morte: desconhecido

248 249
76. Isis Dias de Oliveira 80. Antônio Marcos Pinto de Oliveira 83. Wilton Ferreira 87. Iuri Xavier Pereira 91. Sergio Landulfo Furtado 95. Fernando Augusto da Fonseca
Naturalidade: São Paulo (SP) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Naturalidade: desconhecida Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Naturalidade: Serrinha (BA) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Organização ou atividade política: Ação Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: Ação Organização ou atividade política: Organização ou atividade política:
Libertadora Nacional (ALN) Vanguarda Armada Revolucionária - Vanguarda Armada Revolucionária - Libertadora Nacional (ALN) Movimento Revolucionário 8 de outubro Partido Comunista Brasileiro
Data do desaparecimento: 30/01/1972 Palmares (VAR - Palmares) Palmares (VAR - Palmares) Data da morte (vítima de (MR-8) Revolucionário (PCBR)
Município e Estado do desaparecimento: Data da morte: 29/03/1972 Data da morte: 30/03/1972 desaparecimento forçado): 14/06/1972 Data do desaparecimento: 11/07/1972 Data da morte: 29/12/1972
Rio de Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado da morte: São Paulo (SP) Município e Estado do desaparecimento: Município e Estado da morte:
Local específico do desaparecimento: Janeiro (RJ) Janeiro (RJ) Local específico da morte: DOI-CODI/SP Rio de Janeiro (RJ) desconhecido
desconhecido Local específico da morte: antiga Local específico da morte: Rua Silva Vale Local específico do desaparecimento: Local específico da morte: desconhecido
Avenida Suburbana nº 8985, no bairro de nº 55, no bairro de Cavalcanti 88. Marcos Nonato da Fonseca desconhecido
77. Paulo César Botelho Massa Quintino Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) 96. Getulio de Oliveira Cabral
Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) 84. Antônio Carlos Nogueira Cabral Organização ou atividade política: Ação 92. Célio Augusto Guedes Naturalidade: Espera Feliz (MG)
Organização ou atividade política: Ação 81. Lígia Maria Salgado Nóbrega Naturalidade: São Paulo (SP) Libertadora Nacional (ALN) Naturalidade: Mucugê (BA) Organização ou atividade política:
Libertadora Nacional (ALN) Naturalidade: Natal (RN) Organização ou atividade política: Ação Data da morte: 14/06/1972 Organização ou atividade política: Partido Comunista Brasileiro
Data do desaparecimento: 30/01/1972 Organização ou atividade política: Libertadora Nacional (ALN) Município e Estado da morte: São Paulo (SP) Partido Comunista Brasileiro (PCB) Revolucionário (PCBR)
Município e Estado do desaparecimento: Vanguarda Armada Revolucionária - Data da morte: 12/04/1972 Local específico da morte: DOI-CODI/SP Data da morte: 15/08/1972 Data do desaparecimento: 29/12/1972
Rio de Janeiro (RJ) Palmares (VAR - Palmares) Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado do desaparecimento:
Local específico do desaparecimento: Data da morte: 29/03/1972 Janeiro (RJ) 89. Kleber Lemos da Silva Janeiro (RJ) Rio de Janeiro (RJ)
desconhecido Município e Estado da morte: Rio de Local específico da morte: bairro do Lins Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Local específico da morte: 1º Distrito Naval Local específico do desaparecimento:
Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: desconhecido
78. Iris Amaral Local específico da morte: antiga 85. Paulo Guerra Tavares Partido Comunista do Brasil (PCdoB) 93. Aurora Maria Nascimento
Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Avenida Suburbana nº 8985, no bairro de Naturalidade: Sapucaia (RJ) Data do desaparecimento: 29/06/1972 Furtado 97. José Bartolomeu Rodrigues de
Organização ou atividade política: N/A Quintino Organização ou atividade política: Município e Estado do desaparecimento: Naturalidade: São Paulo (SP) Souza
Data da morte: 01/02/1972 Vanguarda Popular Revolucionária desconhecido Organização ou atividade política: Ação Naturalidade: Canhotinho (PE)
Município e Estado da morte: Rio de 82. Maria Regina Lobo Leite de (VPR) Local específico do desaparecimento: Libertadora Nacional (ALN) Organização ou atividade política:
Janeiro (RJ) Figueiredo Data da morte: 29/05/1972 Abóbara (PA) Data da morte: 10/11/1972 Partido Comunista Brasileiro
Local específico da morte: lugar público Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: São Paulo Município e Estado da morte: Rio de Revolucionário (PCBR)
Organização ou atividade política: (SP) 90. Paulo Costa Ribeiro Bastos Janeiro (RJ) Data do desaparecimento: 29/12/1972
79. Hamilton Pereira Damasceno Vanguarda Armada Revolucionária - Local específico da morte: bairro de Perdizes Naturalidade: Juiz de Fora (MG) Local específico da morte: 26ª Delegacia Município e Estado do desaparecimento:
Naturalidade: Miracema (RJ) Palmares (VAR - Palmares) Organização ou atividade política: de Polícia Rio de Janeiro (RJ)
Organização ou atividade política: Ação Data da morte: 29/03/1972 86. Ana Maria Nacinovic Movimento Revolucionário 8 de outubro Local específico do desaparecimento:
Libertadora Nacional (ALN) Município e Estado da morte: Rio de Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) (MR-8) 94. Lincoln Cordeiro Oest desconhecido
Data do desaparecimento: fevereiro de Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: Ação Data do desaparecimento: 11/07/1972 Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
1972 Local específico da morte: antiga Libertadora Nacional (ALN) Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política: Partido 98. José Silton Pinheiro
Município e Estado do desaparecimento: Avenida Suburbana nº 8985, no bairro de Data da morte: 14/06/1972 Rio de Janeiro (RJ) Comunista do Brasil (PCdoB) Naturalidade: São José de Mipibu (RN)
Rio de Janeiro (RJ) Quintino Município e Estado da morte: São Paulo (SP) Local específico do desaparecimento: Data da morte: 21/12/1972 Organização ou atividade política:
Local específico do desaparecimento: Local específico da morte: DOI-CODI/SP DOI-CODI/RJ Município e Estado da morte: Rio de Janeiro (RJ) Partido Comunista Brasileiro
desconhecido Local específico da morte: DOI-CODI/RJ Revolucionário (PCBR)

250 251
Data do desaparecimento: 29/12/1972 102. Luiz Ghilardini 106. Umberto de Albuquerque Câmara Neto Local específico do desaparecimento: 113. José Carlos Novaes da Mata Machado 117. Guilherme Gomes Lund
Município e Estado do desaparecimento: Naturalidade: Santos (SP) Naturalidade: Campina Grande (PB) Praça Sentinela (Jacarepaguá) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Rio de Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: Ação Organização ou atividade política: Ação Organização ou atividade política:
Local específico do desaparecimento: Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Popular Marxista-Leninista (APML) 110. Ramires Maranhão do Valle Popular Marxista-Leninista (APML) Partido Comunista do Brasil (PCdoB)
desconhecido Data do desaparecimento: 04/01/1973 Data do desaparecimento: 08/10/1973 Naturalidade: Recife (PE) Data da morte (vítima de Data do desaparecimento: 25/12/1973
Município e Estado do desaparecimento: Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política: desaparecimento forçado): 28/10/1973 Município e Estado do desaparecimento:
99. Lourdes Maria Wanderley Pontes Rio de Janeiro Rio de Janeiro Partido Comunista Brasileiro Município e Estado da morte: Recife (PE) próximo à Palestina (PA)
Naturalidade: Olinda (PE) Local específico do desaparecimento: Local específico do desaparecimento: Revolucionário (PCBR) Local específico da morte: DOI-CODI/PE Local específico do desaparecimento:
Organização ou atividade política: lugar público desconhecido Data do desaparecimento: 27/10/1973 desconhecido
Partido Comunista Brasileiro Município e Estado do desaparecimento: 114. Caiupy Alves de Castro
Revolucionário (PCBR) 103. José Mendes de Sá Roriz 107. Honestino Monteiro Guimarães Rio de Janeiro (RJ) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) 118. André Grabois
Data do desaparecimento: 29/12/1972 Naturalidade: Crato (CE) Naturalidade: Itaberaí (GO) Local específico do desaparecimento: Organização ou atividade política: N/A Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: Ação Praça Sentinela (Jacarepaguá) Data do desaparecimento: 21/11/1973 Organização ou atividade política:
Rio de Janeiro (RJ) Resistência Armada Nacional (RAN) Popular Marxista-Leninista (APML) Município e Estado do desaparecimento: Partido Comunista do Brasil (PCdoB)
Local específico do desaparecimento: Data da morte: 17/02/1973 Data do desaparecimento: 10/10/1973 111. Ranúsia Alves Rodrigues Rio de Janeiro (RJ) Data do desaparecimento: entre
desconhecido Município e Estado da morte: Rio de Janeiro Município e Estado do desaparecimento: Naturalidade: Garanhuns (PE) Local específico do desaparecimento: 13/10/1973 e 14/10/1973
Local específico da morte: DOI-CODI/RJ Rio de Janeiro Organização ou atividade política: desconhecido Município e Estado do desaparecimento:
100. Valdir Salles Saboia Local específico do desaparecimento: Partido Comunista Brasileiro São Domingos do Araguaia (PA)
Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) 104. Lincoln Bicalho Roque desconhecido Revolucionário (PCBR) 115. Antonio Luciano Pregoni Local específico do desaparecimento:
Organização ou atividade política: Naturalidade: São José do Calçado (ES) Data do desaparecimento: 27/10/1973 Naturalidade: Córdoba, Argentina desconhecido
Partido Comunista Brasileiro Organização ou atividade política: 108. Lúcia Maria de Souza Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política:
Revolucionário (PCBR) Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Naturalidade: São Gonçalo (RJ) Rio de Janeiro (RJ) Tupamaros (Uruguai) 119. Tobias Pereira Júnior
Data da morte: 29/12/1972 Data da morte: 13/03/1973 Organização ou atividade política: Local específico do desaparecimento: Data do desaparecimento: 21/11/1973 Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado da morte: Rio de Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Praça Sentinela (Jacarepaguá) Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política:
Janeiro (RJ) Janeiro Data do desaparecimento: 24/10/1973 Rio de Janeiro (RJ) Partido Comunista do Brasil (PCdoB)
Local específico da morte: desconhecido Local específico da morte: DOI-CODI/RJ Município e Estado do desaparecimento: 112. Vitorino Alves Moitinho Local específico do desaparecimento: Data do desaparecimento: entre
Entre Marabá (PA) e Xambioá (TO) Naturalidade: Poções (BA) desconhecido 17/12/1973 e 15/02/1974
101. Carlos Nicolau Danielli 105. Merival Araújo Local específico do desaparecimento: Organização ou atividade política: Município e Estado do desaparecimento: São
Naturalidade: Niterói (RJ) Naturalidade: Alto Paraguai (MT) Grota da Borracheira Partido Comunista Brasileiro 116. Jean Henri Raya Ribard Raimundo (PA) ou Base do Xambioá (TO)
Organização ou atividade política: Partido Organização ou atividade política: Ação Revolucionário (PCBR) Naturalidade: Gourgeon, Hautesaône, França Local específico do desaparecimento:
Comunista do Brasil (PCdoB) Libertadora Nacional (ALN) 109. Almir Custódio de Lima Data do desaparecimento: 27/10/1973 Organização ou atividade política: desconhecido
Data da morte (vítima de Data do desaparecimento: 14/04/1973 Naturalidade: Recife (PE) Município e Estado do desaparecimento: Trabalhava no Frigorífico Pedro, em
desaparecimento forçado): 30/12/1972 Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política: Rio de Janeiro (RJ) Buenos Aires 120. Luiz René Silveira e Silva
Município e Estado da morte: São Paulo (SP) Rio de Janeiro Partido Comunista Brasileiro Local específico do desaparecimento: Data do desaparecimento: 21/11/1973 Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Local específico da morte: 36º Distrito Local específico do desaparecimento: Revolucionário (PCBR) Praça Sentinela (Jacarepaguá) Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política:
Policial DOI-CODI/RJ Data do desaparecimento: 27/10/1973 Rio de Janeiro (RJ) Partido Comunista do Brasil (PCdoB)
Município e Estado do desaparecimento: Local específico do desaparecimento: Data do desaparecimento: desconhecido
Rio de Janeiro (RJ) desconhecido Município e Estado do desaparecimento:

252 253
Brejo Grande do Araguaia (PA) ou Chega de Libertação Nacional (FLN) 128. Ieda Santos Delgado Local específico do desaparecimento: 136. Itair José Veloso 140. Neide Alves dos Santos
com Jeito (PA) Data do desaparecimento: 13/01/1974 Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) desconhecido Naturalidade: Faria Lemos (MG) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Local específico do desaparecimento: Cidade e País do desaparecimento: Organização ou atividade política: Ação Organização ou atividade política: Organização ou atividade política:
desconhecido Buenos Aires, Argentina Libertadora Nacional (ALN) 132. Afonso Henrique Martins Partido Comunista Brasileiro (PCB) Partido Comunista Brasileiro (PCB)
Local específico do desaparecimento: Data do desaparecimento: 11/04/1974 Saldanha Data do desaparecimento: 22/05/1975 Data da morte: 07/01/1976
121. Elmo Corrêa desconhecido Município e Estado do desaparecimento: Naturalidade: Olinda (PE) Município e Estado do desaparecimento: Município e Estado da morte: São Paulo (SP)
Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) São Paulo (SP) Organização ou atividade política: Rio de Janeiro (RJ) Local específico da morte: hospital
Organização ou atividade política: 125. Hélio Luiz Navarro de Local específico do desaparecimento: Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Local específico do desaparecimento:
Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Magalhães desconhecido Data da morte: 08/12/1974 desconhecido 141. Ivo Alves
Data do desaparecimento: 01/01/1974 Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Rio de Naturalidade: Silva Jardim (RJ)
Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política: 129. Thomaz Antônio da Silva Janeiro (RJ) 137. Alberto Aleixo Organização ou atividade política: N/A
desconhecido Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Meirelles Netto Local específico da morte: desconhecido Naturalidade: Belo Horizonte (MG) Data da morte: 08/01/1976
Local específico do desaparecimento: Data do desaparecimento: 14/01/1974 Naturalidade: Parintins (AM) Organização ou atividade política: Município e Estado da morte: Silva
Próximo à Palestina (PA) Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política: Ação 133. Amâncio Bonifácio da Cruz Partido Comunista Brasileiro (PCB) Jardim (RJ)
desconhecido Libertadora Nacional (ALN) Naturalidade: desconhecido Data da morte: 07/08/1975 Local específico da morte: Fazenda
122. Maria Célia Corrêa Local específico do desaparecimento: Data do desaparecimento: 07/05/1974 Organização ou atividade política: N/A Município e Estado da morte: Rio de Conceição
Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) desconhecido Município e Estado do desaparecimento: Data da morte: desconhecido Janeiro (RJ)
Organização ou atividade política: Rio de Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Paraty (RJ) Local específico da morte: hospital 142. Francisco Tenório Cerqueira Júnior
Partido Comunista do Brasil (PCdoB) 126. Eduardo Collier Filho Local específico do desaparecimento: Local específico da morte: São Gonçalo, Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Data do desaparecimento: 02/01/1974 Naturalidade: Recife (PE) desconhecido localidade de Paraty 138. Armando Teixeira Fructuoso Organização ou atividade política: N/A
Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política: Ação Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Data do desaparecimento: 18/03/1976
São Domingos do Araguaia (PA) Popular Marxista-Leninista (APML) 130. Daniel Ribeiro Callado 134. Vitório da Cruz Organização ou atividade política: Partido Cidade e País do desaparecimento:
Local específico do desaparecimento: Data do desaparecimento: 23/02/1974 Naturalidade: São Gonçalo (RJ) Naturalidade: desconhecido Comunista Brasileiro (PCB) Buenos Aires, Argentina
Base Militar de Bacaba Município e Estado do desaparecimento: Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: N/A Data do desaparecimento: setembro de 1975 Local específico do desaparecimento:
Rio de Janeiro (RJ) Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Data da morte: desconhecido Município e Estado do desaparecimento: desconhecido
123. João Batista Rita Local específico do desaparecimento: Data do desaparecimento: 28/06/1974 Município e Estado da morte: Paraty Rio de Janeiro (RJ)
Naturalidade: Braço do Norte (SC) desconhecido Município e Estado do desaparecimento: (RJ) Local específico da morte: São Local específico do desaparecimento: 143. Sérgio Fernando Tula Silberberg
Organização ou atividade política: Marx, Xambioá (TO) Gonçalo, localidade de Paraty DOI-CODI/RJ Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ)
Mao, Marighella e Guevara (M3G) 127. Fernando Augusto de Santa Local específico do desaparecimento: Organização ou atividade política: N/A
Data do desaparecimento: 13/01/1974 Cruz Oliveira delegacia 135. Jayme Amorim de Miranda 139. Orlando da Silva Rosa Bomfim Junior Data do desaparecimento: 08/04/1976
Cidade e País do desaparecimento: Naturalidade: Recife (PE) Naturalidade: Maceió (AL) Naturalidade: Santa Tereza (ES) Cidade e País do desaparecimento:
Buenos Aires, Argentina Organização ou atividade política: Ação 131. Telma Regina Cordeiro Corrêa Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: Buenos Aires, Argentina
Local específico do desaparecimento: Popular Marxista-Leninista (APML) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Partido Comunista Brasileiro (PCB) Partido Comunista Brasileiro (PCB) Local específico do desaparecimento:
desconhecido Data do desaparecimento: 23/02/1974 Organização ou atividade política: Data do desaparecimento: 04/02/1975 Data do desaparecimento: 08/10/1975 residência
Município e Estado do desaparecimento: Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Município e Estado do desaparecimento: Município e Estado do desaparecimento:
124. Joaquim Pires Cerveira Rio de Janeiro (RJ) Data do desaparecimento: setembro de 1974 Rio de Janeiro (RJ) Rio de Janeiro (RJ) 144. Zuleika Angel Jones
Naturalidade: Pelotas (RS) Local específico do desaparecimento: Município e Estado do desaparecimento: Local específico do desaparecimento: Local específico do desaparecimento: Naturalidade: Curvelo (MG)
Organização ou atividade política: Frente desconhecido Xambioá (TO) desconhecido DOI-CODI/RJ Organização ou atividade política: N/A

254 255
Data da morte: 14/04/1976 Local específico da morte: Fazenda 153. Horacio Domingo Campiglia 157. Solange Lourenço Gomes 161. Concelsa dos Santos Silva
Município e Estado da morte: Rio de Campos Novos Naturalidade: Buenos Aires, Argentina Naturalidade: Campinas (SP) Naturalidade: desconhecido
Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: N/A
Local específico da morte: lugar público 149. Norberto Armando Habegger Montoneros Movimento Revolucionário 8 de outubro Data da morte: 29/08/1986
Naturalidade: Buenos Aires, Argentina Data do desaparecimento: 12/03/1980 (MR-8) Município e Estado da morte: São Pedro
145. Manoel Mangueira Organização ou atividade política: Município e Estado do desaparecimento: Data da morte: 01/08/1982 da Aldeia (RJ)
Naturalidade: desconhecido Montoneros Rio de Janeiro (RJ) Município e Estado da morte: Rio de Local específico da morte: residência
Organização ou atividade política: N/A Data do desaparecimento: Entre Local específico do desaparecimento: Janeiro (RJ)
Data da morte: 30/05/1977 31/07/1978 e agosto de 1978 lugar público Local específico da morte: hospital 162. Cecílio Alves Sttelet
Município e Estado da morte: Cabo Frio (RJ) Município e Estado do desaparecimento: Naturalidade: desconhecido
Local específico da morte: Fazenda Rio de Janeiro (RJ) 154. Monica Suzana Pinus Binstock 158. Jotaci Teixeira da Silva Organização ou atividade política: N/A
Campos Novos Local específico do desaparecimento: Naturalidade: Buenos Aires, Argentina Naturalidade: desconhecido Data da morte: 29/06/1987
desconhecido Organização ou atividade política: Organização ou atividade política: N/A Município e Estado da morte: Santa
146. Lourenço Camelo de Mesquita Montoneros Data da morte: 31/03/1983 Maria Madalena (RJ)
Naturalidade: desconhecido 150. José Pinheiro Jobim Data do desaparecimento: 12/03/1980 Município e Estado da morte: São João Local específico da morte: região de
Organização ou atividade política: Naturalidade: Ibitinga (SP) Município e Estado do desaparecimento: da Barra (RJ) Moumbeca
Partido Comunista Brasileiro (PCB) Organização ou atividade política: N/A Rio de Janeiro (RJ) Local específico da morte: Fazenda Tipiti
Data da morte: 30/07/1977 Data da morte: 24/03/1979 Local específico do desaparecimento: 163. Sebastião Lan
Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado da morte: Rio de lugar público 159. Gustavo Buarque Schiller Naturalidade: Espírito Santo
Janeiro (RJ) Janeiro (RJ) Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: N/A
Local específico da morte: Quartel da 1ª Local específico da morte: desconhecido 155. Lyda Monteiro da Silva Organização ou atividade política: Data da morte: 10/06/1988
Cia da Polícia do Exército da Vila Militar Naturalidade: Niterói (RJ) Vanguarda Armada Revolucionária - Município e Estado da morte: Cabo Frio
151. Adauto Freire da Cruz Organização ou atividade política: N/A Palmares (VAR - Palmares) (RJ)
147. Roberto Rascado Rodriguez Naturalidade: Bananeiras (PB) Data da morte: 27/08/1980 Data da morte: 22/09/1985 Local específico da morte: Fazenda
Naturalidade: Rio de Janeiro (RJ) Organização ou atividade política: Ligas Município e Estado da morte: Rio de Município e Estado da morte: Rio de Campos Novos
Organização ou atividade política: Camponesas Janeiro (RJ) Janeiro (RJ)
movimento estudantil Data da morte: 13/05/1979 Local específico da morte: hospital Local específico da morte: residência
Data do desaparecimento: 17/12/1977 Município e Estado da morte: Rio de
Cidade e País do desaparecimento: Janeiro (RJ) 156. Augusto Rodrigues de Souza 160. Nilson Diogo
Buenos Aires, Argentina Local específico da morte: lugar público Naturalidade: desconhecido Naturalidade: desconhecido
Local específico do desaparecimento: Organização ou atividade política: N/A Organização ou atividade política: N/A
lugar público 152. José Ferreira Nunes Filho Data da morte: 19/02/1982 Data da morte: 17/07/1986
Naturalidade: desconhecido Município e Estado da morte: Cachoeiras Município e Estado da morte: Vassouras (RJ)
148. Benício Gomes de Oliveira Organização ou atividade política: N/A do Macacu (RJ) Local específico da morte: Sítio das
Naturalidade: desconhecido Data da morte: 09/11/1979 Local específico da morte: Fazenda Palmeiras
Organização ou atividade política: N/A Município e Estado da morte: Rio de Soarinho
Data da morte: 20/02/1978 Janeiro (RJ)
Município e Estado da morte: Cabo Frio (RJ) Local específico da morte: Fazenda Bacaxá

256 257
PARTE IV
A ESTRUTURA
DO ESTADO
DITATORIAL

Foto: Bruno Marins

258 259
Capítulo 17 – A CONSTRUÇÃO DA do da Guanabara, que também possuiu uma polícia
ESTRUTURA DE INFORMAÇÕES política própria. Em 1975, o estado da Guanabara e
o estado do Rio de Janeiro se fundiram. As polícias
O golpe militar de 1964 inaugurou um período his- políticas se unificaram e foi criado o Departamento
tórico marcado pelo terror de Estado. A violência foi Geral de Investigações Especiais (DGIE).
a tônica da ditadura desde seus primeiros dias, mas
ganhou contornos mais intensos ao longo dos anos. A preocupação, por parte do Estado brasileiro, em
Para defender seu projeto de desenvolvimento e afir- criar mecanismos de controle, vigilância e repres-
mar sua ideologia, o regime montou uma estrutura são contra quaisquer grupos que fossem encarados
repressiva cuja marca maior foi a implementação da como perigosos foi corrente durante todo o século
tortura enquanto política de Estado. XX. Ao longo do período, houve uma forte motiva-
ção anticomunista nesta preocupação, reforçada
A análise detalhada da estrutura e funcionamento após 1945, no contexto da chamada Guerra Fria,
dos órgãos de informação e segurança permite com- quando o Partido Comunista passou a ser o princi-
provar a existência de uma cadeia de comando, no pal alvo de investigação da polícia política, mesmo
topo da qual estavam os presidentes-generais. Des- nos breves dois anos em que ele esteve na legalida-
tes, partiram as ordens, instruções e diretrizes que de. Entretanto, a lógica de suspeição e controle res-
autorizavam a prática das graves violações de direi- pondia a outros critérios que não só os de natureza
tos humanos por parte dos agentes do Estado. política. Emblemática, nesse sentido, é a repressão
historicamente voltada contra as chamadas classes
A evolução da polícia política no Rio de perigosas: pobres, descendentes de escravos, “va-
Janeiro dios”, mendigos, etc.

A cidade do Rio de Janeiro possuiu, durante todo Na ditadura do Estado Novo foi criada a Divisão
o século XX, grande relevância política, tendo sido de Polícia Política e Social (DPS), que tinha como
palco de importantes eventos da história do país, finalidade “a prevenção e repressão dos crimes e
como revoltas populares e greves. Não é à toa, por- atividades contra a personalidade internacional,
tanto, que a preocupação em estabelecer órgãos res- a estatura e a segurança do Estado e contra a or-
ponsáveis por desempenhar o papel de polícia políti- dem social”2. Mesmo com o fim deste regime e com
ca remonta ao início do século XX1. a promulgação da Constituição de 1946, a polícia
política continuou existindo, inclusive tendo suas
Até a construção de Brasília em 1960, a cidade do funções ampliadas. A instituição manteve-se res-
Rio de Janeiro foi a capital da República. Aqui se de- ponsável por monitorar atividades consideradas
senvolveram, ao mesmo tempo, a polícia política em potencialmente perigosas e por formar um amplo
âmbito federal e estadual. Ao deixar de ser o Distrito conjunto documental que compilava informações
Federal, a cidade do Rio de Janeiro se tornou esta- sobre a vida de milhares de cidadãos.
Reunião do Conselho de Segurança Nacional em março de 1969, mesmo ano da criação dos
DOI-CODI como forma de centralizar a repressão
1. APERJ. DOPS: A Lógica da Desconfiança. Rio de Janeiro. Secretaria de Crédito: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã
Estado de Justiça/ APERJ, 1993, p. 33. 2. Decreto nº 17.905, de 27 de fevereiro de 1945. BR_RJANRIO_PH_0_FOT_01995_006

260 261
A criação do Departamento de Ordem sobre as principais lideranças e s instituições que Caio Martins, a Ilha das Cobras, a Ilha das Flores, estado da Guanabara desempenhou suas funções7.
Política e Social da Guanabara os articuladores civis e militares do golpe tinham o DOI-CODI e a Base Aérea do Galeão. De lá, ocor-
por objetivo atacar. riam, também, transferências para presídios como Apesar da amplitude representada pelo SNI, o pri-
Em 1960, com a transferência da capital para Bra- o Talavera Bruce e o Complexo Frei Caneca. Se- meiro órgão nacional de informações com funções de
sília, o Departamento Federal de Segurança Pú- Do ponto de vista da coleta de informações, desde gundo o relatório do projeto Brasil Nunca Mais, os serviço secreto foi o Serviço Federal de Informações
blica, órgão que abrigava a DPS, passou a se cha- 1964, com a criação do Serviço Nacional de Infor- Inquéritos Policiais Militares (IPMs) eram forma- e Contrainformações (SFICI)8, criado pelo presi-
mar Departamento Estadual de Segurança Pública mações (SNI), o papel desempenhado pelos DOPS lizados pelo DOPS ou pela Polícia Federal, com o dente Eurico Gaspar Dutra em 1946.No que tange
(DESP)3. A “DPS, seus servidores, equipamentos e estaduais foi se tornando secundário. No que diz objetivo de conferir uma “tramitação legal” ao con- à continuidade entre o SFICI e o SNI, a Comissão
arquivo passaram, provisoriamente, para a custódia respeito à repressão mais direta, os departamentos teúdo de “interrogatórios preliminares” realizados Nacional da Verdade (CNV) apontou que:
do governo do estado da Guanabara recém-criado. estaduais cumpriram função essencial até fins da no DOI-CODI5.
As funções da DPS permaneceram e o estado da década de 60, quando se iniciou a estruturação do “ O general Golbery do Couto e Silva foi o chefe do SFICI
Guanabara continua centralizando as informações DOI-CODI. Os órgãos de informação: a rede de durante o governo Jânio Quadros, cabendo a Subseção de
de ordem política e social”4. Dois anos depois, uma monitoramento e espionagem Operações (SSOP) do órgão ao então coronel João Baptista
lei estadual criou a Secretaria de Segurança Pública Ainda assim, durante toda a ditadura, os DOPS es- de Oliveira Figueiredo, que viria a ser o último presidente do
(SSP) e o Departamento de Ordem Política e Social taduais em geral e o DOPS/GB em particular, depois O Serviço Nacional de Informações período ditatorial. Golbery também foi peça-chave do Conse-
da Guanabara (DOPS/GB). Continuaram coexistin- transformado em DGIE, continuaram integrando a lho de Segurança Nacional, além de criador do Instituto de
do o DOPS/GB, com sede no prédio da Rua da Rela- estrutura da repressão. Mais que isso: no período, A partir do golpe de Estado de 1964, a ditadura Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), centro a partir do qual
ção, nº 40 e o DOPS/RJ, sediado em Niterói. o DOPS/GB teve suas estruturas administrativa e criou um conjunto de órgãos que formaram uma foi dado apoio civil às conspirações que resultariam no golpe
de pessoal expandidas. Seus agentes integraram complexa rede de mecanismos de produção e difu- de1964, e fundador do Instituto Brasileiro de Ação Democráti-
Regulamentado em 1963, o DOPS/GB foi herdeiro operações conjuntas com as Forças Armadas e fo- são de informações, a fim de alimentar a repressão ca (IBAD), maior grupo de mobilização das camadas médias
desse conjunto de órgãos e estruturas responsáveis ram responsáveis pelo cumprimento de milhares de política e garantir o controle social. O principal ór- da sociedade contra o governo do presidente João Goulart.
por exercer a função de polícia política no âmbito “pedidos de busca”, para monitorar, prender, inter- gão estabelecido foi o Serviço Nacional de Informa- Golbery articulou a Campanha da Mulher pela Democracia
federal ao longo do século XX. Os agentes do DOPS/ rogar sob tortura, assim como eliminar os opositores ções (SNI). Criado pela Lei no 4.341, de 13 de junho (CAMDE), grupo de mobilização anticomunista contra o go-
GB continuaram acompanhando de perto a ativi- políticos, muitas vezes forjando versões oficiais fal- de1964, o SNI deveria “assessorar o Presidente da verno democrático. Golbery também criou o Serviço Nacional
dade política de setores identificados como subver- sas sobre as mortes ocorridas. O DOPS/GB também República na orientação e coordenação das ativida- de Informações (SNI), órgão central de inteligência da repres-
sivos. Dessa forma, em março de 1964, quando se foi o órgão responsável pela emissão dos chamados des de informação e contrainformação”6 e seu chefe são, com rede capilar de agentes espiões9.”
iniciou a movimentação das tropas golpistas com atestados de antecedentes, necessários para que as possuiria as prerrogativas de ministro de Estado.
o objetivo de depor o presidente João Goulart, as pessoas conseguissem emprego, em geral em órgãos O Serviço Nacional de Informações foi concebido O SNI incorporou não somente o antigo órgão de in-
informações reunidas em centenas de milhares de públicos. Nesse sentido, a atividade de infiltração e para atuar com agências regionais que alimenta- formações existente, mas herdou, também, o arqui-
fichas, dossiês e prontuários auxiliaram na identi- monitoramento já realizada nas décadas anteriores riam uma agência central, localizada em Brasília. vo do IPES10. Além de ter sido idealizado por Golbery
ficação de possíveis focos de resistência e em sua perdurou e se aprofundou. Destaca-se que no processo de estruturação do SNI, do Couto e Silva, teve como chefes Emílio Garras-
neutralização. A violência dos primeiros meses da o Rio de Janeiro cumpriu um importante papel. tazu Médici e João Batista de Oliveira Figueiredo,
ditadura foi em larga medida possibilitada devido Durante seu funcionamento, a sede do DOPS/GB Enquanto a agência central de Brasília não era efe- que vieram a ser nomeados ditadores-presidentes.
à existência prévia de um levantamento de dados serviu como centro de prisão, tortura e morte, além tivamente estruturada, aquela localizada no então
de uma espécie de centro de triagem de presos que, 7. Decreto nº 55.194, de 10 de dezembro de 1964. Acesso em: http://legis.sena-
3. A ditadura reorganizaria o Departamento Federal de Segurança Pública do.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=187003.
por meio da Lei nº 4.483, de 16 de novembro de 1964, mantendo um serviço de em seguida, eram encaminhados para outros cen- 8. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
Verdade. Brasília: CNV, 2014., Volume 1, Capítulo 4, p. 114, § 13.
informações. Ressalta-se que foi no âmbito da DFSP que funcionou o serviço
de censura da ditadura. tros oficiais ou clandestinos para serem interroga- 5. Arquivo Brasil: Nunca Mais Digital. Relatório do projeto Brasil: Nunca
Mais. Tomo I: “O Regime Militar”, p. 74. 9. Idem, p. 115, § 16.
4. APERJ. Os Arquivos das Polícias Políticas: reflexos de nossa história con- dos sob tortura e, inclusive, mortos, como o Estádio 6. Lei no 4.341, de 13 de junho de 1964. Acesso em: http://www.planalto.gov. 10. GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. 2. Ed. Rio de Janeiro: Intrín-
temporânea. Rio de Janeiro: FAPERJ, 1994.p. 15. br/ccivil_03/leis/L4341.htm. seca, 2014, p. 157.

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Dessa forma, evidencia-se o poder que os agentes existência jamais foi admitida pela ditadura, mas tadura. O Decreto n° 55.791, de 23 de fevereiro de
ligados à estrutura de informações da ditadura pas- foi categoricamente comprovada pela CNV. “ A partir daí foi estimulada a criação de subdivisões das- 1965, instituiu, no âmbito da Escola Superior de
saram a concentrar. DSI, a serem estabelecidas em instituições subordinadas ao Guerra (ESG), um Curso de Informações, que pos-
As Divisões de Segurança e Informação controle dos Ministérios, normalmente empresas públicas, suía o apoio do SNI e tinha por finalidade “coope-
O artigo 32º do Decreto-Lei nº 200 de 1967 reco- autarquias ou fundações. Essas agências foram denominadas rar no estudo e desenvolvimento de uma doutrina
nhecia o SNI como órgão de assessoramento ime- Desde 1946 existiam, no âmbito dos Ministérios Ci- Assessorias de Segurança e Informações (ASI),ou Assessorias de Segurança Nacional e preparar civis e militares
diato do Presidente da República. Sua finalidade vis, as Seções de Segurança Nacional (SSN). Direta- Especiais de Segurança e Informações (AESI)15.” para funções relacionadas com as Informações”17.
era “superintender e coordenar, em todo o territó- mente vinculadas ao ministro da pasta, estas seções No entanto, o estabelecimento deste curso não pa-
rio nacional, as atividades de informação e contra- foram “criadas para atuar preponderantemente em As AESI tiveram atuação destacada dentro das rece ter sido suficiente. Assim, em 1971 surgiu a
-informação, em particular as que interessem à atividades relacionadas à segurança nacional, em Universidades, uma vez que o Movimento Estu- Escola Nacional de Informações (Esni), que, como
segurança nacional”11. Segundo a CNV, o Serviço estreita cooperação com a secretaria-geral do Conse- dantil era visto como uma grande ameaça. Subor- destaca a CNV, foi criada a partir de uma coopera-
Nacional de Informações foi o “grande repositório lho de Segurança Nacional”13. No ano de 1965, o Ga- dinadas à DSI do Ministério da Educação e Cultura ção com os Estados Unidos. Os alunos da escola fo-
das informações obtidas pelos demais instrumen- binete Civil da Presidência da República determi- (MEC), estas assessorias estabeleciam um controle ram enviados também para países como Alemanha,
tos da repressão”12. nou que as SSN estreitassem seus laços com o SNI. rígido não somente sobre a vida estudantil, mas Israel, França e Inglaterra.
também sobre outros aspectos do funcionamento
As atividades do SNI representam uma das princi- Para garantir esta aproximação, no ano de 1967, das Universidades, como a contratação de novos Os serviços de informação das Forças Armadas
pais marcas da ditadura no Brasil. Para alimentar as SSN foram transformadas em Divisões de Se- técnicos e professores.
o SNI, uma série de outros órgãos foi sendo criada gurança e Informação (DSI) dos Ministérios Civis. Durante a ditadura foram criados e/ou reformu-
ao longo da ditadura, conformando o que veio a se A partir de 1970, estas divisões começaram a de- Uma das atribuições das ASI e AESI era formular lados os serviços de informações das três forças,
chamar, a partir de 1970, de Sistema Nacional de sempenhar um papel cada vez mais preponderante os chamados Levantamentos de Dados Biográficos cuja atuação, não só no âmbito da produção de in-
Informações (Sisni). Muitos destes órgãos não se li- na estrutura de espionagem e monitoramento da (LDB) sobre quaisquer indivíduos cuja vida deveria formações, mas da repressão direta, foi extrema-
mitaram às atividades de informação, mas se dedi- ditadura. Isto porque passaram a compor as cha- ser conhecida por algum motivo. Estes consistiam mente significativa.
caram efetivamente à repressão política. madas Comunidades Setoriais de Informação dos em fichas individuais que apresentavam desde sua
Ministérios Civis. Os decretos 66.622 e 67.325 for- atuação profissional até a sua “posição frente à re- O Centro de Informações da Marinha (Cenimar)
Abaixo, serão analisadas a criação e atuação das Di- neceram as diretrizes e o desenho oficial destas Co- volução de 1964”16. Foram feitos milhares de LDBs existia desde 1957. Segundo a CNV, nos primeiros
visões de Segurança e Informação (DSI), os centros munidades, aproximando as DSI do Serviço Nacio- por todos os órgãos integrantes das Comunidades anos da ditadura o órgão atuou principalmente em
de informação do Exército, Marinha e Aeronáutica, nal de Informação, e enquadrando as Divisões nos Setoriais de Informação, e a partir destas pequenas questões relativas à própria Marinha. Com a sua
e a as seções de informação da Polícia Militar. No “princípios norteadores da implantação do Sistema fichas, que eram suficientes para impedir que uma reformulação em 1971, a Ilha das Flores, base na-
entanto, distintos mecanismos foram estabeleci- Nacional de Informações (Sisni) e do Sistema de pessoa tomasse posse como funcionário público ou val localizada em São Gonçalo, foi transformada em
dos para realizar este trabalho em outros âmbitos, Segurança Interna (Sissegin)”14, ambos implemen- fosse admitida em uma universidade, projetos fo- centro de prisão e tortura do Cenimar.
como as Comissões Gerais de Investigação (CGI), tados neste mesmo ano. ram interrompidos, vidas foram desestruturadas e
que investigou e puniu sumariamente milhares de sonhos foram dilacerados. O Centro de Informações do Exército (CIE) foi cria-
funcionários públicos e o Centro de Informações do A formulação do Sisni previa, portanto, a estrutu- do em 1967, com o objetivo de “orientar, coordenar
Exterior (CIEx), vinculada ao Ministério das Re- ração de novos eixos de atuação das DSI a partir de A formação dos agentes vinculados à atividade de e supervisionar todas as atividades de segurança
lações Exteriores, que enviava, desde os países es- um Plano Nacional de Informações. Como afirma o informação foi, também, uma preocupação da di- interna e contrainformações, concorrendo com a 2ª
trangeiros, informações ao governo brasileiro, cuja historiador Rodrigo Patto, 15. MOTTA, Rodrigo. Os olhos do regime militar brasileiro nos campi. As as- Seção do Estado-Maior, também encarregada dessas
sessorias de segurança e informações das universidades. Topoi, v. 9, n. 16,
11. Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967. 13. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da jan.-jun. 2008, p. 30-67.
12. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014,Volume 1, Capítulo 4, p. 120, §37. 16. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
Verdade. Brasília: CNV, 2014, Volume 1, Capítulo 4, p. 117, § 22. 14. Idem, p. 124, § 50. Verdade. Brasília: CNV, 2014,Volume 2, p. 288. 17. Decreto n° 55.791, de 23 de fevereiro de 1965.

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atividades” 18. Segundo o criador e primeiro diretor ter importantes informações para o esclarecimento A evolução da estrutura da repressão e a Polícias Militares (IGPM)25. Esta inspetoria deve-
do CIE, o então coronel Adyr Fiúza de Castro, “o CIE de violações de direitos humanos. A Comissão Na- criação dos DOI-CODI ria “centralizar e coordenar todos os assuntos da
só tem uma agência” e nem todas as informações cional da Verdade também atestou que: alçada do Ministério da Guerra relativos às Polí-
produzidas pelo centro eram enviadas para o SNI19. Nos momentos imediatamente posteriores ao golpe cias Militares; inspecionar as Polícias Militares” e
Do ponto de vista da participação em graves viola- “ Paralelamente, havia também as 2ªs Seções das Polícias de 1964, tiveram início as graves violações de di- “proceder ao controle de organização, dos efetivos,
ções de direitos humanos, o CIE possui uma grande Militares (P2), que funcionavam como serviços de informa- reitos humanos como torturas, prisões arbitrárias do armamento e do material bélico das Polícias
responsabilidade. A Casa da Morte de Petrópolis, ções e tiveram grande participação na repressão militar. Mes- e assassinatos políticos. Nesse momento, os órgãos Militares”26. O documento levado por São Paulo
centro clandestino de tortura e desaparecimento, foi mo no período democrático, as P2 de muitos estados ainda policiais já existentes eram suficientes para efetuar para o referido seminário apresenta o significado
criado, comandado e operado pelo órgão20. continuavam a enviar relatórios ao Exército22.” a repressão. A partir de fins da década de sessenta, da criação da IGPM: “Como a estas Polícias cabe a
porém, a ditadura passou a se empenhar no apro- prevenção e repressão de distúrbios nos respecti-
O Centro de Informações da Aeronáutica (CISA) foi A existência de uma seção reservada em cada bata- fundamento da estrutura repressiva. vos estados, conclui-se que a normatividade atribu-
criado em 1970, com sede no então estado da Gua- lhão da Polícia Militar é extremamente significativa ída a IGPM, atinge o campo da segurança interna,
nabara, tendo se transferido para Brasília no ano do ponto de vista da capilaridade que os órgãos de Em fevereiro de 1969, foi realizado o I Seminário no âmbito restrito da sua competência policial-
seguinte. Assim como os do Cenimar e do CIE, os informação possuíam. de Segurança Interna, em Brasília, reunindo os se- -militar”27. Indo mais além na apresentação do pa-
agentes do CISA também estão vinculados a casos cretários de Segurança Pública, os comandantes das pel que as polícias estaduais cumpriam, tanto do
de graves violações de direitos humanos, como o de Em síntese, percebe-se que os três ministérios mili- Polícias Militares e os superintendentes regionais ponto de vista das informações, quanto da repres-
Stuart Angel Jones21. tares e todos os ministérios civis possuíam comple- da Polícia Federal, sob a orientação do ministro da são mais direta, o documento afirma que:
xas estruturas de produção, difusão e circulação de Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, e do general
O serviço de informações da Polícia Militar informações. Além destes, havia o serviço secreto Carlos de Meira Matos, chefe da Inspetoria Geral “ Os serviços secretos das policias civis (SS) e militares (S-2),
de todas as unidades militares que se reportavam das Polícias Militares23. Na ocasião, foram debati- dos Estados, ao lado das informações gerais de interesse da
A Comissão da Verdade do Rio localizou no Arquivo aos Centros de Informação das respectivas forças. dos os desafios colocados para o Estado ditatorial ordem pública e das investigações criminais, coletam dados
Público do Estado do Rio de Janeiro diversos docu- Somavam-se a estas estruturas: os DOPS estaduais, em assegurar a chamada segurança interna. Neste sobre a situação política e social locais, especialmente no que
mentos produzidos pelo serviço de informações (P- o serviço secreto da Polícia Federal, a P-2 de todos seminário, Hely Lopes Meirelles, então secretário concerne às atividades que afetem ou possam afetar a segu-
2) de distintos Batalhões de Polícia Militar (BPM) os batalhões da Polícia Militar e o Centro de Infor- de Segurança Pública de São Paulo, apresentou um rança interna.(...) A Polícia Estadual, por sua vez, suprindo
sendo difundidos para outros órgãos de informação. mações do Exterior (CIEx). Contava-se, ainda, com estudo em que é possível ler: as deficiências da Polícia Federal, procura realizar a preven-
informantes pagos ou cidadãos que voluntariamente

ção e a repressão aos atentados à segurança interna através
Sabe-se que a PM participou ativamente da repres- forneciam informações a estes órgãos. A conforma- A segurança interna, como parte da segurança nacional, de seu Departamento ou Delegacia de Ordem Política e Social
são política, sendo seus agentes diretamente res- ção deste complexo sistema sempre teve por objeti- visa a repelir as ameaças ou pressões antagônicas de qualquer (DOPS) e da Polícia Militar existente com denominações dife-
ponsáveis em diversos casos de execução sumária e vo garantir maior efetividade na repressão àqueles origem, forma ou natureza, que se manifestem ou produzam rentes, mas com organização assemelhada, em todas as uni-
desaparecimento forçado. No entanto, sua atuação considerados inimigos pela ditadura. Sendo assim, efeitos no âmbito interno do País, comprometendo as institui- dades da federação28.”
no âmbito das atividades de informação é relativa- esses dados serviram para alimentar os órgãos de ções pátrias e a ordem Jurídica estabelecida24 .”
mente desconhecida e deve ser objeto de maiores in- segurança responsáveis pela perpetração de graves No que diz respeito à atuação destes policiais mi-
vestigações. Os arquivos da P-2 devem ser abertos violações de direitos humanos. O regime já havia centralizado a coordenação das litares e civis na estrutura do Estado ditatorial no
assim como os das Forças Armadas, pois podem con- Polícias Militares, criando um órgão responsável Rio de Janeiro, a CEV-Rio buscou identificar quais
por exercer este controle, a Inspetoria Geral das agentes das corporações foram cedidos para os ór-
18. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
Verdade. Brasília: CNV, 2014, Volume 1, Capítulo 4, p. 157, § 170.
19. D’ARAUJO, Maria Celina et. al. (Orgs.) Os anos de chumbo: a memória 23. JOFFILY, Mariana. Destacamento de Operações e Informações – Centro 25. A IGPM foi regulamentada pelo decreto nº 60.596-a, de 15 de abril de 1967.
militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 44. de Operações e Defesa Interna (DOI-CODI). In: FUNDAÇÃO GETÚLIO VAR- 26. Decreto-Lei nº 317, de 13 de março de 1967.
20. Ver capítulo 19 deste Relatório. 22. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da GAS, Atlas Histórico do Brasil. Acesso em: http://atlas.fgv.br/verbete/10989. 27. Arquivo Nacional: BR_AN_BSB_VAZ_019_0021.
21. Ver capítulo 13 deste Relatório. Verdade. Brasília: CNV, 2014., Volume 1, Capítulo 4, p. 113, § 7. 24. Arquivo Nacional: BR_AN_BSB_VAZ_019_0021. 28. Idem..

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gãos federais da repressão. Para tanto, enviou o Ofí- de inauguração em 1º de julho de 1969. Do evento, o aperfeiçoamento das técnicas de tortura enquanto
cio CEV-Rio nº 020/2013, em 20 de agosto de 2013, participaram o governador de São Paulo e seu se- “ Aperfeiçoamento do dispositivo responsável pela garan- meio de obtenção de informação. Sobre os DOI-CO-
para a Secretaria de Segurança Pública do Estado cretário de Segurança Pública, o prefeito da cidade, tia dessa segurança. Para isso foi constituído um Sistema de DI, a CNV explica:
do Rio de Janeiro, requisitando que fosse o comandante do II Exército e importantes nomes

Segurança Interna, abrangendo todos os meios disponíveis,
da elite paulista, como Antonio Delfim Netto e Hen-

destinado e capacidade á (sic) coordenação geral das ações Instalados em todo o território nacional, tinham particu-
fornecida a relação nominal, com RG e matrícula dos ning Albert Boilesen31. A Oban efetivava os esforços e a exercer a centralização dessas ações quando isso se fizesse laridades, mas seguiam a regra geral de centralizar todas as
agentes de segurança pública – policiais civis e militares, in- de integração preconizados no documento anterior- necessário33. informações relativas ao combate das ações de resistência à
clusive oficiais – deste estado que, eventualmente, tenham sido mente citado. ditadura. Nos estados, após seleção, policiais civis e militares
cedidos a órgãos da União Federal, em especial aos três minis- Com base na Diretriz Presidencial de Segurança ficavam à disposição do comando do Exército na área, que
térios militares, no período de 1969 a 1985.(...) [E que] sejam Um relatório do CIE de outubro de 1969 e localizado Interna, no contexto da tentativa de estabelecer os encaminhava ao DOI, que também recebiam militares da
informados todas as demais alterações registradas nas fichas pela CEV-Rio demonstra como os outros órgãos en- uma ação coordenada dos órgãos de segurança, fo- Marinha e da Força Aérea, além de agentes da Polícia Federal.
funcionais dos referidos agentes públicos.29.” xergavam a criação da Oban: ram criados os Centros de Operações de Defesa In- Com esse corpo integrado por policiais e militares era possível
terna (CODI) e os Destacamentos de Operações de

conjugar a experiência das polícias no combate ao crime e em
A Comissão nunca obteve uma resposta a este pedi- A partir de 1º de Julho do corrente, iniciou suas atividades Informação (DOI). Consagrados simplesmente como técnicas de investigação e interrogatório, com a disciplina e o
do. Mesmo a atuação dos DOPS estaduais e das po- a “OPERAÇÃO BANDEIRANTE”, que vem alcançando êxito im- DOI-CODI, estes órgãos possuíam funções distintas. planejamento característico das Forças Armadas34.”
lícias militares não parecia suficiente para a ditadu- pressionante no cumprimento de sua missão, desbaratando Os CODI deveriam planejar e coordenar as medidas
ra. Após apontar quais eram os órgãos responsáveis sucessivamente diversas organizações subversivas, conseguin- de defesa interna, e os DOI, eram órgãos operacio- Naquele contexto, prevalecia entre os agentes da
pela segurança interna, o estudo já citado passa a do recuperar grande quantidade de armamento e material nais, destinados a realizar o “trabalho sujo”. Juntos, repressão a visão de que a ação de múltiplas or-
traçar um diagnóstico sobre o relacionamento entre que fora por elas expropriado e prendendo numerosos de seus conformaram o eixo central do Sissegin e de toda a ganizações de esquerda demandava uma política
eles, para afirmar: integrantes.Graças a abnegação, destemor, bravura, decisão estrutura da repressão. de coleta de informações mais integrada e técnicas
mais “sofisticadas” de neutralização dos opositores

e espírito de luta de seus integrantes, a OPERAÇÃO BANDEI-
Daí a necessidade de integração de todos os órgãos inte- RANTE reduziu substancialmente as atividades subversivas Fica claro, nos trechos dos documentos supracitados, políticos, que incluíam novas formas de tortura e
ressados na segurança interna, para a perfeita elaboração do na área da “GRANDE SÃO PAULO32.” que a experiência da Oban era vista com bons olhos de aniquilamento.
planejamento e sua eficiente execução, em escala nacional, pela cúpula da ditadura. Ressalta-se que essa experi-
regional e local. Inadiável é, pois, a edição de normas e ins- O ano de 1969 marca, portanto, o início da estrutu- ência é marcada por uma violência extrema contra os O DOI-CODI possuía uma estrutura mista, sendo
truções superiores para o bom desempenho de suas missões es- ração do Sistema de Segurança Interna (Sissegin). presos durante os interrogatórios. Assim, ela serviu formados por integrantes da Polícia Civil, da Po-
pecificas, isoladamente ou em conjunto com os demais órgãos Em julho deste ano, a Presidência da República de inspiração para a criação dos DOI-CODI. lícia Militar, da Polícia Federal e das três Forças
empenhados na operação, diligência eu inquérito policial30.” baixou, de forma sigilosa, a Diretriz para a Política Armadas, sob o comando do Exército. Riscala Cor-
de Segurança Interna, revista no ano seguinte por Em 1970, foi criado o DOI-CODI do Iº Exército, na baje, conhecido como Dr. Nagib, major da Polícia
Ou seja, para concretizar a eliminação das oposições, meio da Diretriz Presidencial de Segurança Interna, área do então estado da Guanabara. Além deste, Militar (PM) que integrou o DOI-CODI/Iº Ex., em
era essencial centralizar ainda mais os organismos que aprovava o Planejamento de Segurança Interna foram estabelecidos DOI-CODI em São Paulo, Per- seu depoimento para o Grupo de Trabalho Tran-
da repressão. Como resposta a essa necessidade, foi e criava definitivamente o Sissegin. O então major nambuco e Brasília. Um ano depois, no Paraná, em sição do Ministério Público Federal, atentou para
fundada, alguns meses depois, exatamente no esta- Freddie Perdigão, em um estudo elaborado para a Minas Gerais, na Bahia, no Pará e no Ceará. Em importantes pontos de contato entre a PM e a es-
do de São Paulo, a chamada Operação Bandeirantes Escola do Comando do Estado-Maior do Exército, 1974, foi a vez do Rio Grande do Sul. Com a prolife- trutura da repressão. O agente relatou ter sido
(Oban). Financiada por grandes empresários na- afirmou que, para garantir o objetivo de neutralizar ração dos DOI-CODI, consolidou-se uma nova fase chamado pelo chefe do Estado Maior da Polícia Mi-
cionais e estrangeiros, a Oban teve uma cerimônia quaisquer forças oponentes, a ditadura buscou o repressiva da ditadura militar, cuja marca central litar em 1969 para compor um grupo que “passaria
31. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da foi a intensificação do monitoramento e vigilância e
29. Acervo CEV-Rio. Ofício nº 20/2013. Verdade. Brasília: CNV, 2014, Volume 1, Capítulo 4, p. 127, § 62. 34. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
30. Arquivo Nacional: BR_AN_BSB_VAZ_019_0021. 32. Arquivo Nacional: BR_DFANBSB_AAJ_IPM_0933_d. 33. Arquivo CNV, 00092.001525/2013-11, p. 6. Verdade. Brasília: CNV, 2014., Volume I, Capítulo 4, p. 139, § 104.

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à disposição do Iº Exército”, ou seja, conformaria, tre 1966 e 1970 a arquitetura institucional da segurança pú- tes de todo Sistema de Informações com sede na cou combinado que, ao ser solta, será presa pelo
futuramente, o DOI-CODI, junto a cerca de outros blica foi reformulada e recebeu os contornos que foram apenas área do Iº Exército”37. Por ser a primeira reunião, CENIMAR”40. O trecho chama atenção pela arbitra-
dez oficiais da PM. parcialmente redefinidos na Constituição Federal de 198836.” este seria o único relatório escrito na íntegra. A par- riedade da decisão dos agentes, que agiam ao arre-
tir dele, deveriam ser destacadas as informações de pio da lei – mesmo aquela da própria ditadura.
Segundo o major, estes agentes foram chamados As reuniões da comunidade de maior interesse. Dessa forma, o documento de 27 de
para “efeitos de interrogatório”, enquanto que para informações do I Exército maio é apresentado “exatamente como se desenvol- Outro trecho que confirma a hipótese acima e que
“captura” eram chamadas principalmente as uni- veu a reunião, para caracterizar o volume e o teor expressa, da mesma forma, o grau de violência e
dades paraquedistas. Corbaje vincula sua convoca- Os órgãos de informação e segurança nunca atua- dessa troca de informações”38. É ele, portanto, que arbítrio da ditadura, é o que encerra este primei-
ção ao fato dele próprio ter sido anteriormente da ram de forma separada. Alimentavam-se reciproca- exprime de forma mais clara o funcionamento da ro documento: “Está em curso uma operação que
segunda seção do 7º Batalhão, ou seja, já ter expe- mente, na medida em que uma informação levan- comunidade e mostra o esforço de coordenação das possivelmente chegará ao advogado EVARISTO DE
riência em atividades de informação. Além disso, tada gerava a necessidade de uma diligência, que atividades da repressão. MORAIS (Advogado de subversivos). Caso fique po-
afirma: “Passei muito tempo interrogando presos por sua vez produzia outras informações a partir dos sitivada a necessidade de prendê-lo, o DOPS agirá
de favelas, para conseguir descobrir onde havia de- interrogatórios feitos à base de tortura. Deste ciclo Segundo o Coronel Adyr Fiuza, estaria havendo no com toda a cautela e habilidade. Fatalmente haverá
pósito de armas, então a gente vai pegando prática. de violência e violação de direitos fizeram parte to- CODI e no DOI/I Ex, uma “mudança geral de estru- repercussões na área da Justiça (OAB)”41.
Eu tinha experiência”35. dos os órgãos da chamada estrutura da repressão, tura”, pois “pretende-se coordenar todas as opera-
com o consentimento e autorização dos generais- ções de informações na área do I-Ex (GB – RJ – MG Mais do que difundir as informações de casos re-
A experiência relatada por Corbaje revela o grau de -presidentes. – ES)”39. Para consolidar este desejo, seriam criados, centes, estas reuniões serviam para reforçar os la-
violência que marcaria a atuação daquele órgão. Nas além do CODI/Iº Exército, na Guanabara, os seguin- ços entre os diferentes órgãos da repressão. É o que
salas de interrogatório do DOI-CODI do Iº Exército Enquanto as salas de tortura eram preenchidas tes órgãos: CODI/RJ (Niterói), DOI/Vila Militar, mostra o relatório do dia 02 de setembro de 1971, no
passaram centenas de presos políticos, muitos dos pelos gritos de dor, as salas do Palácio Duque de CODI/Juiz de Fora e, possivelmente, DOI/Juiz de qual o representante da Agência Rio de Janeiro do
quais nunca mais foram vistos. Mostra ainda a bru- Caxias, sede do Iº Exército, recebiam, toda quinta- Fora, CODI/Vitória e o DOI/Guanabara. SNI lembrou
talidade da ação policial a que historicamente são -feira, uma reunião que congregava a cúpula dos
submetidas certas parcelas da população, antes, du- órgãos de informação e segurança. Era a chamada Embora não haja uma lista dos órgãos representa- “ aos membros da Comunidade que continuam à disposição
rante e depois da ditadura. comunidade de informações. A Comissão da Verdade dos na reunião e nem dos agentes presentes, são os arquivos sobre brasileiros e estrangeiros que se utilizam dos
do Rio localizou, no Arquivo Nacional, atas destas registradas as falas do coronel Gastão, represen- aeroportos internacionais do Rio e S. Paulo, para entrarem
É importante destacar que o conjunto de mudanças reuniões, produzidos entre maio de 1971 e agosto de tando a Secretaria de Segurança Pública da Gua- ou saírem do País. Estranhou o fato de não estar havendo in-
efetuadas pela ditadura a fim de centralizar os es- 1972, além de alguns exemplares de 1976. Embo- nabara e do coronel Muniz, em nome da Segunda teresse por parte da Comunidade no que concerne à consulta
forços de repressão correspondem a uma federaliza- ra os encontros tenham ocorrido semanalmente, a Seção do Iº Exército. Além destes, aparecem, sem desses fichários que são completos e de grande valor42”
ção da segurança pública, que, segundo a pesquisa- CEV-Rio só logrou localizar exemplares esparsos. A nomes dos agentes, falas do Cenimar, do CISA, do
dora Maria Pia Guerra, partir da análise desses documentos é possível ex- Departamento de Polícia Federal e da 4ª Região Não era somente o representante do SNI que se
trair algumas conclusões sobre estas reuniões – e, Militar (Minas Gerais). mostrava insatisfeito com a ausência dos colegas.
“ revela a intencionalidade da ditadura na reestruturação portanto, sobre o funcionamento da comunidade de O agente que fala em nome do DOI/Iº Ex afirma
da segurança pública. As suas principais intervenções na informações como um todo. Nas conclusões deste relatório, é possível ler: “HE- que “o DOI está se ressentindo da falta de ofi-
área, com consequências sentidas até os dias de hoje, fizeram LENO FRAGOSO (...) levou pessoalmente o alvará ciais interrogadores (capitães) a fim de aprovei-
parte de um processo planejado de reformulação do setor. En- Segundo o primeiro destes documentos, de 27 de de DULCE CHAVES PANDOLFI (ALN), presa na tar o êxito do grande número de prisões efetua-
maio de 1971, da reunião “participam representan- Penitenciária de BANGU (3ª Aud. Exército). Fi-
35. Depoimento de Riscala Corbage ao Ministério Público Federal. Acesso
em: http://www.prrj.mpf.mp.br/institucional/crimes-da-ditadura/atuacao-1/ 36. GUERRA, Maria Pia. Legados da ditadura na arquitetura institucional da 37. Arquivo Nacional, AC_ACE_36759_71. 40. Idem.
caso-rubens-paiva-integra-dos-audios-dos-depoimentos/depoimento-de-ris- Segurança Pública. Consultoria para a Comissão de Anistia do Ministério da 38. Idem. 41. Idem.
cala-corbage-1-3/view Justiça, 20 de julho de 2015. 39. Idem. 42. Arquivo Nacional, AC_ACE_38685_71.

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das recentemente”43. Este trecho ilustra a fala de meramente uma estratégia dos advogados. Assim, comunidade de informações. A leitura destes docu-
Riscala Corbaje anteriormente analisada sobre continua o relatório, “foi feito um apelo ao SNI para mentos permite refutar de forma cabal, mais uma
um perfil específico de agentes responsáveis pelos que alertasse às autoridades governamentais para vez, a tese de que estas violações eram resultado da
interrogatórios. os perigos, a que a Justiça Militar, está expondo a ação isolada de alguns agentes nos porões. A alta
Revolução, no combate à subversão”46. cúpula da ditadura se reunia nas salas do Palácio
Em relatório que data de 30 de setembro de 1971, Duque de Caxias para relatar e comemorar viola-
é feita uma observação de que “continua baixo o ní- Não eram somente os casos do Rio de Janeiro que ções já cometidas e para planejar futuras violências.
vel dos assuntos tratados”. Avalia o relatório que “as eram objeto das reuniões. O relatório de 27 de abril
agências mais importantes (CIE – CISA – Cenimar) de 1972 traz a intervenção do representante do CIE
vêm mantendo uma sistemática abstenção”. O do- na reunião, que compartilhou com o restante dos
cumento permite ilustrar diversos relatos de que presentes, “sem entrar em detalhes”, informações
havia conflitos internos na própria comunidade de sobre “a queda de vários elementos implicados em
informações, com os distintos órgãos concorrendo atividades subversivas, em diversas regiões do país,
entre si. Entretanto, conclui o relatório que “há uma tais como: Pernambuco, Bahia, Porto Alegre, São
expectativa em toda a Comunidade, quanto às di- Paulo e Pará”. A partir dos nomes apontados não
retrizes e orientação que o novo Cmt do I Exército restam dúvidas de que se trata da operação para
dará ao assunto Informações de Segurança Interna desbaratar a Guerrilha do Araguaia.
e consequentemente, ao CODI e atividades repressi-
vas contra as organizações subversivas”44. Este não é o único relatório que trata da Guerrilha
do Araguaia. Na reunião seguinte, realizada em 04
Se os órgãos da estrutura da repressão possuíam de maio de 1972, novamente o representante do CIE
divergências entre si, é certo também que faziam afirmou “sem entrar em maiores detalhes” que “os
críticas a outras instâncias de poder da ditadura. resultados da operação MARABÁ foram excelentes”.
Um dos alvos desses ataques era o Poder Judici- Desta vez, porém, o agente do CISA endossou a fala
ário, como mostra o relatório de 13 de janeiro de e disse “ter retornado ontem, dia 03, de MARABÁ,
1972, em que é feito um relato sobre o militante e informou que já tinham sido citados 70 nomes de
Cesar Benjamin. Segundo o documento, ele teria elementos envolvidos, acrescentando que o fato é
confessado as ações de que participara, mas deve- muito mais grave do que se supõe” 47. Destaca-se que
ria “negar tudo nos depoimentos que serão pres- o exército sempre negou publicamente a existência
tados na auditoria. Tal procedimento foi orienta- desta guerrilha, bem como de operações voltadas
do pelos advogados SOBRAL PINTO e AUGUSTO para eliminar seus integrantes.
SUSSEKIN DE MORAES REGO, com objetivo de
provar que os primeiros foram prestados sob tor- Os trechos destas atas aqui destacados dão uma di-
tura, segundo declarações do próprio “Minininho” mensão de como as violações de direitos humanos
[César]”45. Para os agentes da comunidade de in- perpetradas pelos agentes da ditadura eram ampla-
formações, portanto, as denúncias de tortura eram mente difundidas entre os órgãos que compunham a
43. Idem.
44. Arquivo Nacional, AC_ACE_39021_71. 46. Idem.
45. Arquivo Nacional, AC_ACE_43201_72. 47. Arquivo Nacional, AC_ACE_45962_72.

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Capítulo 18 - A ESTRUTURA JURÍDICA DA apresentado nove dias depois do golpe. O autointitu-
REPRESSÃO1 lado Comando Supremo da Revolução, integrado pelo
general Arthur da Costa e Silva, o vice-almirante Au-
Para legitimar o rompimento da ordem constitucio- gusto Rademaker e o tenente brigadeiro Francisco de
nal e garantir a repressão aos movimentos políticos Assis Correia de Melo, editou, no dia 9 de abril, o Ato
e sociais contrários à ditadura, o regime montou Institucional nº 1 (AI-1), em cujo preâmbulo havia a
um arremedo de estrutura jurídica que pretendeu justificativa para a deposição do presidente João Gou-
viabilizar seus atos do ponto de vista legal. Não ha- lart - legitimamente eleito e empossado: “os processos
veria mais garantias individuais. O habeas corpus2 constitucionais não funcionaram para destituir o go-
foi suspenso, a prisão perpétua e a pena de morte verno, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar
foram instituídas. Juízes, desembargadores e mi- o País”. O artigo 7º, §1º do AI-1 permitiu aposentar ou
nistros dos Tribunais Superiores foram cassados demitir, por decreto presidencial, servidores públicos
e perseguidos. Ministros biônicos foram nomeados e membros do Poder Judiciário, e o artigo 8º autorizou
para compor uma maioria no Supremo Tribunal Fe- a instauração de Inquérito Policial Militar (IPM) ou
deral e se criou uma terceira turma de julgadores processo para averiguar a prática de crimes contra o
no STF, com o fim de garantir decisões favoráveis à Estado, a ordem política e social e atos de guerra revo-
ditadura. Desta forma, garantiu-se a obediência do lucionária. Como se o país estivesse em guerra, todos
Sistema de Justiça. Todas estas medidas autoritá- os opositores foram caracterizados como inimigos in-
rias foram realizadas mediante atos institucionais, ternos, sujeitos a perseguição, prisão, tortura e morte.
complementares e decretos do executivo, a começar De 1964 a 1969 foram decretados 17 atos institucio-
pela alteração da Constituição3. As mudanças per- nais, regulamentados por 105 atos complementares
mitiram a elaboração de leis ordinárias, promulga- que foram editados até o dia 9 de junho de 1978.
das durante o período para a consolidação do regime
autoritário. A principal destas, a reforma da Lei de A opção por Tribunais Militares
Segurança Nacional, teve como objetivo a proteção
do regime contra a oposição das forças internas. Diferentemente de outros países da região, nos
quais a repressão atuava essencialmente fora dos
O abandono da Constituição marcos legais, o Brasil usou estrategicamente os tri-
bunais militares para processar opositores políticos
O primeiro item do arsenal jurídico da ditadura foi e construiu um arcabouço legislativo e constitucio-
nal adaptado às necessidades do regime, no sentido
1. Este capítulo foi escrito a partir da colaboração de duas pesquisas finan-
ciadas pela FAPERJ: “Justiça Autoritária? O Judiciário do Rio de Janeiro e a de reprimir dissidentes e ao mesmo tempo manter
Ditadura Militar” (FND/UFRJ), coordenada por Vanessa Berner, e “A estru-
tura de atuação do Poder Judiciário no Estado do Rio de Janeiro durante o
as aparências. Apesar de a ditadura ter tido sempre
governo militar e recomendações de políticas públicas de não repetição neste a preocupação de parecer funcionar sob o signo da
âmbito” (IBMEC), coordenada por Daniela Barcellos.
2. Habeas corpus é a medida judicial que visa evitar ou fazer cessar detenção “normalidade democrática”, inclusive em relação à
ou prisão ilegal, ou ainda preservar integridade física de quem sofre coação
ou constrangimento ilegal. atuação da Justiça Militar, a leitura dos processos
3. Para uma análise mais detalhada, ver BARCELLOS, Daniela Silva Fontoura
e SGANZERLA, Rogério Barros. “Direitos restritos e pena de morte: os pro-
que ali tramitaram deixa claro uma outra realidade
cessos de crimes políticos no Superior Tribunal Militar entre 1964 a 1975”. sobre o papel que de fato exerceu.
Revista do Conpedi , 2015.

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A fundamentação das sentenças das Auditorias Mi- Em entrevista à imprensa, o delegado informou a nacional: organizar, como cabeças, um movimento provar que o presidente João Goulart era comunista
litares do Rio de Janeiro revela que os magistrados apreensão de uma “máquina de espionagem mon- armado, que se destinava a destruir a ordem polí- e, por isso, providenciaram a sua deposição:
posicionavam-se como “soldados da revolução”, ou tada com a cumplicidade do Governo deposto”5. Se- tica e social existente no Brasil; tentar mudar a or-
seja, cumpriam ordens para combater os “comunis- gundo as declarações prestadas por Gustavo Borges, dem política ou social estabelecida na Constituição “ O que se pretendeu alcançar, e de fato foi alcançado com
tas que queriam transformar o Brasil em uma dita- além de vultosa quantia em moedas estrangeiras e promover ou manter no território nacional um ser- tais mentiras, foi persuadir, tanto os membros das forças ar-
dura”. Isso ocorria com mais intensidade na primeira (totalizando importância superior a 120 milhões de viço secreto de espionagem7. madas quanto a opinião pública do país, senão a opinião pú-
instância, na qual atuavam oficiais de menor paten- cruzeiros), foram reunidos manuscritos (cuja tradu- blica mundial, que o presidente João Goulart mandara bus-
te. Havia também um alto grau de adesão e coni- ção revelou tratarem-se de versão da Constituição Em 22 de dezembro de 1964, os nove chineses foram car na China comunista especialistas e técnicos em revolução
vência com o regime ditatorial no Superior Tribunal brasileira para a língua chinesa), farto material de condenados a dez anos de prisão pela 2ª Auditoria do que, em conluio com políticos brasileiros, se incumbiriam de
Militar (STM), formado por oficiais da mais alta pa- propaganda subversiva, explosivos e fotografias ex- Exército. Somente o auditor civil votou contra a conde- implantar no Brasil o regime comunista do tipo que vigora
tente e civis graduados em Direito, todos nomeados plicativas de sua utilização em guerrilhas, listas de nação. A sentença segue a linha ideológica do golpe: em Cuba e na China Continental9.”
pelo Presidente da República. Além disso, conforme nomes e fichários de várias figuras públicas e agen-
comprovam documentos e informações da época, os das escritas em chinês. Estas agendas, denominadas “ A prova dos autos é maciça e tranquila para demonstrar A Comissão Nacional da Verdade, em seu relatório
juízes estavam sujeitos a pressões, monitoramento e impropriamente de “Diários”, receberam tradução as atividades subversivas dos réus (...). A subversão então era final, reconheceu a inocência dos chineses e consi-
punições caso apresentassem decisões desfavoráveis forjada por Theodore Wu, um chinês de Formosa6, e total e o governo preparava escancaradamente a cubaniza- derou que eles foram vítimas de perseguição políti-
aos interesses do regime, tais como negar um pedido ofereceram a oportunidade para o delegado afirmar ção do país. As mais espúrias e desprezíveis organizações es- ca. O Governo brasileiro revogou, em dezembro de
de prisão preventiva de um “subversivo”, absolver haver prova documental a respeito das atividades tavam mobilizadas para realizar a sinistra tentativa de sub- 2014, a pedido da CEV-Rio, o decreto de expulsão.
um opositor político ou mesmo mencionar tortura e subversivas e da espionagem imputadas àqueles versão da nossa democracia cristã e liberal e substitui-la pelo Faltam a reparação judicial e o pedido de desculpas.
violência ocorridas nas prisões. Nesse sentido, o pa- nove cidadãos chineses. comunismo materialista e totalitário. (...) Estava desencade-
pel exercido pelo Ministério Público Militar também ada a “guerra revolucionária” que na América Latina é um
é digno de menção, tendo este órgão atuado de for- Com exceção do dinheiro apreendido e depositado no fenômeno amplo e profundo que atinge todos os campos da
ma articulada com o Poder Executivo e o Serviço de Banco do Brasil, nenhuma destas supostas provas foi vida nacional. Num ambiente assim, com o governo e os polí-
Informações, para quantificar e monitorar o número exibida em juízo. Os 120 milhões de cruzeiros nunca ticos comunistas agitando, e só agitando, disfarçados muitas
de condenações nas auditorias, conforme documento foram devolvidos ao governo da República Popular vezes, de “nacionalistas”, e “progressistas” e até em cristãos,
localizado nos arquivos da Justiça Militar. da China. Dois meses após a prisão, o encarregado frequentadores ostensivos de templos religiosos, o Brasil vivia
do Inquérito, em nova busca, falou à imprensa com de amargura e apreensão. (...) A coparticipação do próprio
Os nove chineses4 estardalhaço sobre a apreensão de uma pistola com governo de então é decisiva e flagrante nas atividades dos
silenciador, oxidada, e de uma pequena lanterna, em acusados, pois a todo momento se vai encontrar a tranquila
Um caso exemplar aconteceu logo nos primeiros dias do cujo interior havia duas folhas de papel manuscritas e criminosa presença dos mais íntimos do então presidente
golpe. No dia 3 de abril de 1964, o DOPS da Guanaba- em chinês. Consolidava-se, assim, frente à opinião com os acusados chineses. Em nenhum momento se consegue
ra prendeu nove integrantes de uma missão comercial pública, a versão fabricada pelos golpistas, milita- dissociar a atuação do governo João Goulart 8.”
oficial do governo Chinês. Dois eram jornalistas, quatro res e civis, de que João Goulart queria implantar no
tinham vindo montar uma feira de produtos chineses país uma república comunista “sino-soviética”. O marechal Humberto de Alencar Castelo Branco
e os demais vieram comprar algodão. No DOPS, foram expulsou-os em janeiro de 1965. Sobral Pinto, defen-
Ju Qingdong, um dos nove chineses presos em 1964, durante audiência
fichados e torturados. Ali o delegado Gustavo Borges Os nove chineses foram denunciados à Justiça Mi- sor dos nove chineses, desnudou a farsa, afirman- realizada pela CEV-Rio
os interrogou, em português, sem a presença de um in- litar pela prática de três crimes contra a segurança do que os militares tentaram, com aquele processo, Foto: Lula Aparício

térprete e sem que entendessem as perguntas feitas. 5. Jornal do Brasil, edição de 04/04/1964, p.12.
6. Arquivo Brasil: Nunca Mais Digital: Pasta BNM_006, p.742. 7. Idem. p. 1701-1757 9. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/ Comissão Nacional da
4. Arquivo Brasil: Nunca Mais Digital: Pasta BNM__006, p.1-1887. 8. Idem. p.1658-1660 Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volumes I, p. 99.

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A estratégia autoritária No dia 11 de fevereiro de 1965 o juiz da 6ª Vara Cível tendo Celso da Rocha Miranda sido tesoureiro da aéreos de qualquer natureza durante ou depois do
recebeu a visita do ministro de Estado da Aeronáu- campanha de Juscelino. Em 1965 haveria eleições encerramento dos processos de sua liquidação, fa-
A estrutura da repressão não abriu mão da palavra fi- tica brigadeiro Eduardo Gomes e no dia 15 decretou gerais para a Presidência da República e aqueles lência ou concordata”.
nal da magistratura para legitimar as arbitrariedades a falência da Panair do Brasil. empresários ligados aos governos Jango e Juscelino
e os correspondentes crimes cometidos. Fato é que o tinham que ser silenciados. O caminho escolhido foi O enquadramento da Justiça
próprio Poder Judiciário atuou na estrutura da repres- a quebra de suas empresas.
são, tendo sido um aparato a mais na construção de Já em 1964, como parte de um ambicioso plano de
um projeto militar autoritário. Ainda que existam dife- Fica óbvia, também, a atuação dos juízes em coor- eliminação dos opositores ao novo regime que se ins-
rentes graus de responsabilidade na movimentação da denar os tempos do processo para aplicar legislação talara, garantias constitucionais, como vitaliciedade
máquina judiciária da repressão, que incluiu a presen- de exceção – decretos ad hoc lesivos aos interesses e estabilidade, foram suspensas por seis meses pelo
ça de juízes independentes, muitos deles perseguidos, da empresa – sem o pudor da observância do consa- Ato Institucional nº 1. Funcionários ou os simples
os fatos revelam que a atuação da justiça foi, em geral, grado princípio da anterioridade da lei. Houve uma titulares de cargos públicos, acusados de qualquer
cúmplice das ações do regime ditatorial. decisão do Supremo Tribunal Federal em que, por irregularidade, seriam, por decreto, demitidos, sus-
unanimidade, foi indeferido mandado de segurança pensos, aposentados ou transferidos para a reserva
O caso Panair do Brasil10 demonstra que parte do impetrado pela Panair. Posteriormente foram acata- após inquérito sumário. Além disso, entre outras
judiciário cível do Rio de Janeiro, por meio de alguns das as razões sobejamente arbitrárias do laudo peri- prerrogativas, outorgava-se ao “Comando Supre-
de seus servidores, atuou de modo orgânico e cola- cial que o próprio Judiciário considerou falso. Estes mo da Revolução” e, mais tarde, ao presidente da
borativo com os interesses da ditadura. É evidente, fatos demonstram que a Suprema Corte, naquele República, a capacidade legal de suspender direitos
desde os primeiros atos do processo, a cascata de ir- momento, não agiu com autonomia e independên- políticos (por até dez anos) e anular mandatos legis-
regularidades processuais, atípicas no processo re- cia. O juiz Rui Octávio Dominguez, que se posicio- lativos sem revisão judicial11. No âmbito funcional
gular de falência, criando expedientes para denegar nou contra os abusos perpetrados contra a Panair da magistratura, a escolha dos juízes militares ou
direitos da companhia aérea que estava na linha de do Brasil, chegou a sofrer processo correcional e foi togados era remetida à lei específica, fora do contro-
fogo dos interesses empresariais e militares. afastado, sequer recorrendo da decisão em razão das le do Congresso Nacional da época.
pressões naquela conjuntura.
No dia 10 de fevereiro de 1965, chegou à diretoria O AI-2 (1965) é considerado uma das mais fortes in-
da Panair do Brasil, sem nenhuma advertência, um A empresa Panair do Brasil nunca deixou de se de- tervenções políticas até então perpetradas sobre o
telegrama informando que a partir daquela data as fender, desde os primeiros processos a que foi obri- Judiciário. Retirava, por exemplo, da justiça comum
linhas aéreas concedidas àquela companhia esta- gada a responder durante a ditadura civil-militar. a competência para processar e julgar os crimes po-
Ocupação Militar dos Escritórios da Panair, após publicação do
vam suspensas. Um fato inexplicável. A alegação do Configura-se a perseguição continuada entre 1965 líticos ou aqueles praticados contra a segurança na-
despacho presidencial de suspensão de suas linhas aéreas
Ministério da Aeronáutica de que a empresa estava Crédito: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã e 1995, momento em que se levantou a falência da cional. Tribunais superiores tiveram atribuições e
em uma delicada situação econômica e que preju- BR_RJANRIO_PH_601_4277 estruturas modificadas para atender aos interesses
empresa, com o pagamento de uma dívida indevi-
dicaria a segurança dos voos é desmentida por ato da. Pode-se dizer ainda, de certa forma, que até os militares. O presidente da República poderia demi-
da própria Aeronáutica, que havia concedido a reva- O controle acionário adquirido da antiga controla- dias atuais a empresa, já reabilitada, sofre restri- tir, remover, aposentar ou por em disponibilidade
lidação do certificado de aeronavegabilidade. Fatos dora, a Pan American em 1961 pertencia aos em- ções em decorrência da legalidade autoritária que “quaisquer titulares das garantias referidas [...]”12.
mais graves ocorreriam em seguida. presários Mário Wallace Simonsen, de São Paulo, e subsiste. A propósito, o disposto no artigo 4º do ain- Associado ao AI-5 (1968), criar-se-ia uma grande su-
Celso da Rocha Miranda, do Rio de Janeiro. Tanto da em vigor Decreto nº 496 de 11 de março de 1969, 11. SANTOS, Ana M.; GONÇALVES, Williams S.; MACHADO, Humberto F. &
10. Ver MEDEIROS, Jo Dutra. A História da Panair do Brasil - 50 Anos. Eta
Editora Técnica de Aviação, 1979 e SASAKI, Daniel Leb. Pouso forçado: a his-
Mário quanto Celso não estavam alinhados à dita- dispõe: “As empresas de transporte aéreo ficam im- NEVES, Guilherme P. História do Brasil: de terra ignota ao Brasil atual. Rio
de Janeiro: Log On Multimídia, 2002. p. 369.
tória por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar. Editora dura, mas eram vinculados a Juscelino Kubistchek, pedidas de operar aeronaves ou explorar serviços 12. CASTRO, Flávia L. História do direito: geral e do Brasil. Rio de Janeiro:
Record, 2005. Lúmen Júris, 2003. p. 554.

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bordinação do Judiciário brasileiro ao poder ditato- e Ary Schiavo, cujos direitos políticos foram suspensos rios informavam ao ministro o raciocínio externa- raes Costa e Paulo Henrique de Oliveira Rocha
rial, exercido em especial pelo Executivo. em 1964 e 1969, respectivamente, bem como José Car- do pelas autoridades: Lins, acusados de terem assaltado a agencia Catete
los Maciel da Silva, aposentado em 1969 e Oswaldo do Banco Novo Mundo, em 27 de agosto de 1969. O
No que tange ao Judiciário, o AI-5 suspendia as Monteiro James, demitido em 1972. Os juízes traba- “ Existe a Lei para proteger o cidadão, porém deixa de ser inquérito foi instruído com fotocópias das declara-
prerrogativas de “vitaliciedade, inamovibilidade e lhistas Rubens de Andrade Filho e César Pires Chaves amparado por Lei aquele que atenta contra a segurança na- ções, ou “confissões” que eles teriam prestado no
estabilidade, bem como a de exercício em funções por foram aposentados em 1969, e Jorge Gomes, juiz do cional, pois esse não merece ser considerado cidadão, não deve DOI-CODI, através da Delegacia de Roubos e Fur-
prazo certo”, e serviu de base para o afastamento de Tribunal Marítimo teve a aposentadoria cassada em ser considerado pela sociedade e não é portador de direitos17.” tos, conforme narrou a sentença, proferida na 2ª
três ministros do STF: Victor Nunes Leal (1914-85), 1973, como Áureo de Souza e Almeida, da 2ª entrância Auditoria do Exército. Todas as “confissões” eram
vice-presidente da Corte, Hermes Lima (1902-78) e da Justiça Militar15. Em todas as esferas do Judiciário foram feitas de- rigorosamente idênticas. Nos autos do inquérito,
Evandro Lins e Silva (1912-2002). O primeiro fora núncias de graves violações de Direitos Humanos. transformado em processo judicial, variavam ape-
nomeado por Juscelino Kubitschek, enquanto os ou- Omissão diante de denúncias: o judiciário Mesmo havendo registros e evidências dessas de- nas as datas, os locais do fato, o nome dos bancos e
tros por João Goulart. Na época, Antônio Gonçalves e a tortura núncias nenhuma medida foi tomada para apurá- os nomes dos escrivães18.
de Oliveira (1910-92), que ocupava o cargo de pre- -las e para fazê-las cessar. Por essa razão pode-se
sidente do Tribunal havia um mês, renunciou e pe- Desde as primeiras prisões, em 1964, a imprensa também considerar o Judiciário como sendo o braço Interrogados em juízo, os presos informaram ao con-
diu sua aposentadoria. Antônio Carlos de Andrada noticiou a ocorrência de graves violações dos direi- legal do regime militar. selho terem sido torturados e, por isso, assinaram di-
(1900-74), seu sucessor, fez o mesmo. Até um minis- tos humanos durante as prisões para investigação versas folhas em branco. Com relação a Nelson Lott,
tro do Superior Tribunal Militar (STM), o general de nos Inquéritos Policiais Militares, IPMs, instau- A Justiça Militar, em especial, omitia-se de forma as folhas em branco por ele assinadas deram origem
exército Peri Constant Bevilacqua foi aposentado, rados logo depois do golpe militar. O presidente vergonhosa diante das denúncias de torturas contra a onze processos diferentes em todas as Auditorias.
acusado de “dar habeas corpus demais”13. Castelo Branco enviou seu chefe de gabinete - gal. presos políticos feitas em juízo. No limite, mencionou Na apelação nº 39.287, não restou outra saída para o
Ernesto Geisel - a diversos estados para apurar algumas vezes a expressão “maus tratos” para iden- Conselho senão absolver os nove denunciados.
Foram também cassados pelo AI-5 o ministro José de as denúncias. Em seu parecer, Geisel afirmou que tificar tortura. Além disso, muitas das decisões con-
Aguiar Dias, do Tribunal Federal de Recursos, e o Juiz as acusações “não tinham confirmação concreta denatórias foram baseadas em depoimentos colhidos A inversão da prova
Auditor de São Paulo, José Tinoco. O Congresso foi fe- nos fatos reais”. A tortura a Gregório Bezerra, fora do contraditório, mediante coação física ou mes-
chado. As garantias do habeas corpus seriam suspen- dirigente do PCB arrastado pelas ruas de Recife mo tortura e violência, estando o réu incomunicável Outro exemplo revelador de grave distorção dos
sas apesar de os advogados continuarem utilizando-o no dia do golpe, tinha sido “episódica”, causada e inacessível, mesmo ao seu advogado, sendo aceitas princípios do Direito constitui o processo que trami-
para saber onde estava preso o seu cliente, estabelecer “pelos excessos naturais de qualquer movimento como legítimas e verdadeiras declarações e confissões tou na 2ª Auditoria da Aeronáutica do Rio de Janei-
a data da sua prisão e quebrar-lhe a incomunicabilida- armado”16. Mais tarde, em fins de 1969, o minis- prestadas em delegacia e não reproduzidas em juízo, ro, no qual oito pessoas foram acusadas de terem as-
de. No Estado do Rio de Janeiro, outros magistrados e tro da Justiça Alfredo Buzaid declarou-se publica- o que violava princípios constitucionais, como o do saltado uma Kombi da empresa Moinho da Luz, em
até mesmo funcionários do Poder Judiciário sofreram mente contrário a tortura, em favor dos direitos contraditório e o da ampla defesa, além de regra ex- dezembro de 1970. Em 21 de junho de 1971 o Centro
as mais diversas sanções, como o desembargador Osni humanos. A Ordem dos Advogados enviou-lhe en- pressa no art. 9o do Código de Processo Penal Militar. de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA),
Duarte Pereira, que teve seus direitos políticos suspen- tão a cópia de uma representação na qual havia comunicou ao chefe da Seção de Buscas Ostensivas
sos em abril de 1964, os juízes Carlos Haroldo Porto relatos de 93 casos de tortura a presos políticos, Um caso típico é o que envolveu os réus Aton Fon do DOPS que ali se encontravam presos dois “ele-
Carreiro de Miranda, João Luiz Duboc Pinaud, Jorge solicitando que fossem investigadas e tomadas Filho, Carlos Roberto Nolasco Ferreira, Carlos mentos” que já haviam “confessado”. O inquérito só
Peixoto Pache de Faria, aposentados em 1969 e Sócra- providências. Naquela representação, os signatá- Eduardo Fayal de Lira, Domingos Fernandes, Fre- foi instaurado em 20 de outubro de 1971, sendo a
tes Vieira, aposentado em 1971. Entre os funcionários 15. OLIVEIRA, Paulo A. Martins. Atos institucionais: sanções políticas. Bra- derico Eduardo Mayr, Flávio de Carvalho Molina, seguir enviado para a mencionada Auditoria19.
sília: Câmara dos Deputados. Coordenação de Publicações, 2000, passim.
perseguidos podem ser citados Lincoln Cordeiro Oest14 16. Portal Arquivos da Ditadura – Documentos reunidos por Elio Gaspari. Jorge Raymundo Júnior, Nelson Luiz Lott de Mo-
“Explicação pessoal do general Ernesto Geisel sobre a missão para averigua-
13. Portal Folha de São Paulo. O que foi o AI-5. Disponível em http://www1. ção de denúncias de tortura (transcrição)”. Disponível em http://arquivos- 17. SILVA, Angela Moreira Domingues da. Ditadura e Justiça Militar no Bra-
folha.uol.com.br/folha/treinamento/ hotsites/ai5/ai5/. daditadura.com.br/documento/galeria/explicacao-pessoal-general-ernesto- sil: A Atuação do Superior Tribunal Militar (1964-1980). Tese de Doutorado 18. Arquivo Brasil: Nunca Mais Digital: Pasta BNM_022. p.1-1773.
14. Morto sob tortura no DOI-CODI em 1972. -geise-0 apresentada na Fundação Getúlio Vargas, em outubro de 2011. 19. Idem. BNM_036. p.1-607

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No dia do interrogatório, os presos se recusaram a motor provar que a acusação de crime praticado perante às denúncias de tortura. Revela-se, dessa vestigativa do Inquérito Policial para acolher a in-
responder às perguntas do auditor sem a presença pelo réu é verdadeira. Cabe ao tribunal, à luz da forma, uma estrutura que envolvia diversos setores tervenção explícita dos militares que aparelharam
de advogado. Julgados, eles foram condenados a lei, deliberar se a prova é válida ou não. do Estado, mostrando a cumplicidade do Judiciário, o curso investigativo dos atentados e determinaram
quinze anos de reclusão e a dez anos de suspensão que tornava possível a impunidade dos agentes en- o resultado das investigações ou, ainda, quando as
de direitos políticos. Os outros seis denunciados fo- “De pé sobre latas de cera” volvidos na prática de graves violações de direitos evidências contidas no próprio processo foram negli-
ram absolvidos. Contra essa absolvição, o promotor humanos. genciadas e a busca à verdade dos fatos foi recober-
recorreu ao STM (apelação 40.163). Unanimemente Para compreender a extensão do uso da tortura como ta de sombra, de modo a permanecer desconhecida
entendeu o Tribunal que o fato de os réus se nega- prática recorrente e sistemática dentro das instala- O acobertamento como rotina e esquecida. Só a partir das investigações conduzi-
rem a depor sem a presença de advogado, era “um ções das Forças Armadas, bem como a postura omis- das pela CEV-Rio foi possível identificar os princi-
pretexto inaceitável” e em razão do seu silêncio “de- siva da Justiça durante a ditadura, é elucidativa A cortina de silêncio estabelecida pela ditadura con- pais responsáveis pelo assassinato da secretária da
terminaram que se mantivesse, em todos os seus a leitura de trechos de acórdão do STM datado de tra qualquer denúncia das graves violações de di- OAB, Lyda Monteiro da Silva. Todos trabalhavam
termos, a acusação”. Em consequência, dizia o Tri- 20 de julho de 1970. Sete civis condenados pela 1ª reitos humanos continuou na série de atentados a no Centro de Informações do Exército22.
bunal, “reuniram-se elementos que apontam os acu- Auditoria da Aeronáutica a quatro meses de prisão bomba contra entidades que lutavam pelo retorno
sados e bem assim Nelson Rodrigues, absolvido na recorreram ao Tribunal, “sustentando que a prova ao Estado de Direito e até contra bancas de jornais No caso do Riocentro, estratégia semelhante se deu:
Auditoria, como participante do assalto à Kombi”. dos autos é confusa e não autoriza a condenação dos que vendiam publicações contra o regime. Com base na instauração do IPM ocorreu a substituição de seu
Os “elementos que apontam os acusados” eram o mesmos, inclusive porque a confissão que fizeram nos casos da OAB e do Riocentro pode-se afirmar titular, cel. Luís Antônio do Prado Ribeiro, pelo cel.
tenente-coronel Wilson Loppi e o major Lício Frei- no inquérito foi obtida por meios intimidativos e por que o aparato judiciário compactuou com o regime Job Lorena de Santana, o qual prestou honras mili-
tas Pereira, afirmando ao conselho que as confissões maus tratos”. O STM negou provimento à apelação de exceção que se implantou no país pós-64 e, desta tares ao sargento Guilherme do Rosário e assumiu o
feitas na fase do inquérito eram verdadeiras. Na de- e confirmou a sentença, afirmando que: forma, legitimou de diversos modos a ditadura mili- comando do inquérito para, deliberadamente, nada
cisão condenatória o STM dispôs: tar, seja por sua inércia, ou pelo medo, ou ainda pela apurar. O cel. Job, que posteriormente chegou ao
‘‘ adesão ideológica ao regime. No material analisado posto de general, fez do IPM do Riocentro uma farsa:

As confissões são sólidas porque as retratações não cor-
cumpria aos acusados contestarem essa prova e oferece- respondem as demais peças do processo. Nenhum deles con- pela CEV-Rio sobressaem as duas últimas formas de contra as evidências fotográficas e periciais de que
rem também provas de que o que declararam na polícia não fessou senão aquilo que realmente fez, muito embora fosse legitimação mencionadas, devendo-se sublinhar que a bomba explodiu no colo do sargento, construiu-se
era verdadeiro. (...). Impunha-se-lhes destruir esses elementos necessário coloca-los com algum incômodo físico, isto é, de esses casos foram acompanhados, em sua tramita- uma versão de que a bomba teria sido colocada por
que os acusavam e não quedar-se na recusa inexplicável de pé sobre uma lata de cera. Provavelmente desejavam que o ção judicial, pelo Serviço Nacional de Informações terceiros entre o banco e a porta do Puma.
esclarecer à Justiça seu comportamento20.” encarregado do inquérito lhes trouxesse café na cama ao le- (cópia do processo foi encontrada nos arquivos do
vantar, ou talvez lhes desse camisas de seda paraguaia para SNI disponíveis no AN), o que revela uma situação O caráter dos inquéritos, em ambos os casos, foi va-
O tribunal não podia, entretanto, ignorar princípio posar para a posteridade, alimentando-se de doces e gêneros de monitoramento permanente da atuação dos ato- lidado pelo Poder Judiciário, que integrou-se à far-
básico do Direito, segundo o qual cabe a quem acu- outros, que destinavam aos flagelados do nordeste, e que eles res judiciais naquele período. sa, exceção feita ao almirante Júlio Bierrenbach,
sa apresentar as provas da acusação. Os acusados furtaram. falecido em 2015, que se opôs com firmeza à fraude
não tinham como provar que a declaração na po- Não há nos autos qualquer prova séria de que tivessem os acu- No caso da OAB fica evidente o atrelamento ideoló- montada pelo IPM e posteriormente reforçada pelo
lícia lhes fora extorquida, pois em 21 de junho o sados sido seviciados. Há prova de que foram realmente, pre- gico por parte das autoridades: quando estas fizeram STM. Essa cumplicidade do Judiciário com a dita-
CISA informou ao DOPS que “os assaltantes” esta- sos, como convinha até que se esclarecessem toda a extensão do seu primeiro ato um mandado de busca e apreen- dura militar sem dúvida afetou a transição política
vam presos e somente em 27 de outubro, passados do furto que praticaram21.” são à residência e local de trabalho da pessoa que no Brasil, pois não permitiu um tratamento jurídico
três meses e seis dias, foi oficialmente instaurado teria sido vítima da carta-bomba enviada no mesmo das graves violações de direitos humanos ocorridas
o inquérito. Assim, qualquer vestígio de sevícia, O acórdão demonstra a postura conivente da Justiça dia à Câmara dos Vereadores, o vereador Antônio naquele período. A atuação do Judiciário nos casos
àquela altura, tinha desaparecido. É dever do pro- Carlos Nunes de Carvalho; quando estas mesmas mencionados contribuiu (e ainda contribui) para
21. Arquivo Brasil: Nunca Mais Digital: Pasta BNM_698_STM_37768, p. 1134- autoridades mudaram bruscamente a trajetória in-
20. Idem. BNM_036.p.17-18 1136. 22. Ver capítulo 15 deste Relatório Final.

282 283
uma ideia de transição política pacífica e negociada, Capítulo 19 - LOCAIS DE PRISÃO E TORTURA1 A CEV-Rio mapeou, com o auxílio do projeto “Polí- torturar militantes, seja para esconder seus corpos,
quando os próprios processos revelam-se campo de ticas Públicas de Memória para o Estado do Rio de evitando deixar vestígios sobre os crimes praticados
batalha pela memória e verdade: sucessivas tentati- Um dos objetivos legais da CEV-Rio é identificar e Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não repeti- no estado. Alguns deles são conhecidos, como a Ilha
vas de abertura dos casos, desde a década de 1980, tornar públicas as estruturas, os locais, as institui- ção”, desenvolvido pelo Núcleo de Direitos Humanos das Cobras (Rio de Janeiro), a Fortaleza de São João
foram reiteradamente rejeitadas. ções e as circunstâncias relacionadas à prática de da PUC-Rio, vinte e um locais no total. No muni- (Niterói), a Delegacia o Alto da Boa Vista - 4º Subse-
violações de direitos humanos durante o período cípio do Rio de Janeiro, foram destacados o DOI- ção de Vigilância (Rio de Janeiro), a Delegacia de Pi-
O argumento mais frequente é de que a anistia teria investigado. Neste capítulo, será traçada uma car- -CODI, o DOPS/GB, a 1ª Companhia de Polícia do lares (Rio de Janeiro), a Base Aérea de Santa Cruz,
alcançado os fatos ocorridos em 1980/81 e de que não tografia dos principais locais de prisão e tortura uti- Exército da Vila Militar, a Base Aérea do Galeão, o a Delegacia policial antigamente situada à Rua Te-
haveria “fato novo” a justificar a reabertura dos pro- lizados pelo regime militar no Rio de Janeiro, com- Hospital Central do Exército, a Invernada de Ola- resa, em Petrópolis, o 32º Batalhão de Infantaria
cessos. O que o exame detalhado dos autos demons- posta por um mapa do estado, textos, fotos, plantas ria, o Complexo Frei Caneca e o Presídio Talavera de Petrópolis. Outros ainda permanecem ocultos
trou que ocorreu, contudo, foi que os eventos levados e mapas de localização de cada um dos lugares iden- Bruce. Em Niterói, constam o Centro de Armamen- em razão da política de silêncio adotada, até hoje,
ao conhecimento dos encarregados dos inquéritos ja- tificados. As histórias desses espaços – contadas a to da Marinha, o DOPS/RJ e a Fortaleza de Santa pelas Forças Armadas. A rede de lugares utilizada
mais foram apurados e, posteriormente, analisados partir dos testemunhos e das fontes documentais Cruz. Integram ainda a relação a antiga Delegacia pela ditadura no Rio de Janeiro foi bastante ampla,
pelo Judiciário. As circunstâncias que deliberada- existentes – revelam a multiplicidade das estraté- de Polícia Civil de Macaé; o 1º Batalhão de Infan- estendendo-se por todas as regiões do estado.
mente não foram apuradas constituem certamente gias repressivas, bem como o complexo funciona- taria Blindada de Barra Mansa; a Ilha das Flores,
“fatos novos” que ensejam, finalmente, num contexto mento da estrutura do Estado ditatorial. em São Gonçalo; o Presídio da Ilha Grande (Instituo
de verdadeira transição política, serem avaliados ju- Penal Cândido Mendes), em Angra dos Reis e os Na-
dicialmente. A persistência na obstrução da verdade Delegacias, presídios, quartéis e instalações milita- vios-prisão, ancorados na Baía de Guanabara. En-
revela um Poder Judiciário de matiz autoritária, con- res e policiais das mais variadas naturezas foram tre os centros clandestinos de sequestro, tortura ou
servador e que ainda respira, mesmo que de forma utilizados como locais de prisão ilegal, tortura, execu- desaparecimento, foram mapeados a Casa da Morte
não generalizada, os ares da ditadura. ção e desaparecimento forçado de opositores políticos. de Petrópolis; o Estádio Caio Martins, em Niterói;
Mantinha-se, à época, uma atuação coordenada dos o Clube Ypiranga Futebol Clube, em Macaé e dois
órgãos locais para garantir o intercâmbio de presos locais, cuja localização geográfica ainda não foi pos-
políticos entre unidades militares, e entre estas e sível concluir em decorrência da escassez de infor-
órgãos policiais. Além de guarnições militares e pré- mações: a Casa de São Conrado e o Sítio de São João
dios públicos, centros clandestinos também foram de Meriti. A CEV-Rio, com base em depoimentos, le-
mantidos com verbas oficiais. O termo clandestino é vanta ainda a possibilidade de um segundo centro
empregado para indicar um local, em regra, escondi- clandestino ter sido montado na cidade de Petrópo-
do e afastado dos grandes centros, que funcionava em lis, mas trata-se de uma informação que precisa ser
imóveis disponibilizados por particulares. Embora melhor investigada.
fossem considerados não oficiais, por estarem situa-
dos fora da estrutura dos órgãos militares e policiais, A seleção dos locais apresentados teve como prin-
tais locais, os verdadeiros porões, foram mantidos e cipal critério a constatação da ocorrência, em suas
operados por agentes estatais e eram de conhecimen- dependências, de graves violações de direitos huma-
to de toda a cadeia de comando militar. nos de forma generalizada, contínua e sistemática.
1. Os textos, mapas e imagens utilizados neste capítulo foram produzidos É certo, no entanto, que essa listagem não é exaus-
com a colaboração da pesquisa “Políticas Públicas de Memória para o Estado
do Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não repetição”, desenvolvi-
tiva. Outros locais, situados no Rio de Janeiro, fo-
da pelo Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da PUC-Rio ram utilizados pela repressão, seja para prender e
e coordenada pelo professor José Maria Gomez.

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Crédito: Felipe Nin/Projeto Políticas Públicas de Memória para
o Estado do Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não-
repetição. PUC-Rio

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1. DESTACAMENTO DE OPERAÇÕES é referenciado como DOI-CODI, PIC ou Polícia do ção de novas celas; e a adaptação das salas do PIC
DE INFORMAÇÕES - CENTRO DE Exército (PE) da Barão de Mesquita. para a realização de interrogatórios pelos agentes “ Fui preso por duas vezes em 1973, no DOI-CODI, mas já
OPERAÇÕES DE DEFESA INTERNA do órgão. Segundo Dulce Pandolfi, presa em agosto era outra fase: o prédio tinha sido mudado, com salas de in-
(DOI-CODI) A criação dos DOI-CODIs foi resultado de uma polí- de 1970 nas dependências do DOI-CODI: terrogatório acústicas, com vidro face a face, para acareações
tica adotada pela ditadura militar no final da década

sem que um pudesse ver o outro; tinha um púlpito para que o
de 1960 e início dos anos 1970, que buscava destruir O prédio tinha dois andares. Diferentemente do que mui- interrogador fizesse anotações sem que o torturado visse; que
as organizações de esquerda por meio do desenvolvi- tos dizem, aquele lugar não era um “porão da ditadura”, antes o pau-de-arara era improvisado entre arquivos, mas de-
mento de uma estrutura repressiva mais “eficiente”. um local clandestino. (…) eu estava numa dependência pois era tudo preparado, parecia um consultório médico ou
Para tanto, os diversos órgãos militares e policiais, oficial do Exército brasileiro. Uma instituição que funcio- dentista; que havia salas chamadas geladeiras, para resfriar,
federais e estaduais, passaram a atuar de forma con- nava a todo vapor, com todos os seus rituais, seus símbolos, tinham luzes fortes para não deixar o torturado dormir, havia
junta e coordenada no combate à chamada subver- seus hinos, sua rotina. (…) No andar térreo, tinha a sala aparelhos para fazer barulho forte; que o torturado era tortu-
são. Foram criados DOI-CODIs em diversos estados1. de tortura, com as paredes pintadas de roxo e devidamente rado de capuz, e isso era bem pior porque não se sabia quando
equipadas, outras salas de interrogatório com material de iria levar um soco ou choque; que os presos raramente fica-
Com a instalação do DOI-CODI no Rio de Janeiro, escritório, essas às vezes usadas, também, para torturar, e vam sem capuz, e então era mais difícil reconhecer alguém;
na Rua Barão de Mesquita, a estrutura original do algumas celas mínimas, chamadas solitárias, imundas , que nesta época não consegui reconhecer ninguém3.”
PIC (que, por sua vez, foi transferido para outra

Localização: Rua Barão de Mesquita, nº 425, Rio de Janeiro, RJ onde não havia nem colchão. Nos intervalos das sessões de
unidade do pátio do 1º BPE) passou por uma série tortura, os presos eram jogados ali. No segundo andar do Estava já há cerca de dois meses na Vila Militar quando
Principal centro de prisão ilegal, tortura, morte e de- de reformas. Sabe-se que entre 1969 e 1972 foram prédio havia algumas celas pequenas e duas bem maiores, em final de agosto fui levada de novo para o DOI-CODI. Essa
saparecimento forçado instalado no estado do Rio de realizadas obras no prédio buscando atender às ne- essas com banheiro e diversas camas beliches. Foi numa des- possibilidade não passava pela minha cabeça. Tinha me con-
Janeiro, o Destacamento de Operações de Informa- cessidades específicas do DOI-CODI, sem que isso sas celas que passei a maior parte do tempo2.” vencido de que tudo aquilo acabara. (…). Estava tão deses-
ções-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI- impedisse o concomitante funcionamento do novo perada que me deram uma injeção e fui levada quase des-
-CODI) funcionou entre os anos de 1970 e 1979 no órgão em seu interior. Paredes foram derrubadas De acordo com relatos de ex-presos políticos, as prin- maiada para a Barão de Mesquita. Lá estava tudo mudado.
interior do 1º Batalhão de Polícia do Exército (BPE), e novas celas construídas para receber o crescente cipais mudanças foram implementadas a partir de As celas tinham cama e lençol e os aparelhos de tortura foram
na rua Barão de Mesquita, Tijuca. Situado nos fun- número de prisioneiros. Ao mesmo tempo, as salas 1972, quando o DOI-CODI passou a importar técni- substituídos por celas com controle de som e de temperatura,
dos do pátio do quartel, o prédio de dois andares do utilizadas para a prática de tortura sofreram adap- cas de tortura de outros países. Além de celas solitá- as chamadas geladeiras. Os presos eram colocados sem poder
Pelotão de Investigações Criminais (PIC) serviu de tações para receber novos aparelhos e instrumentos rias, foram construídas no edifício salas especiais de dormir, sem comer e em temperaturas baixíssimas. (…) Hoje,
base para as suas operações. O órgão era subordi- mais avançados de tortura, que não deixassem mar- tortura, como a “geladeira” (que permitia a alteração me parece que o DOI-CODI da Barão de Mesquita, a partir des-
nado ao I Exército e responsável por centralizar e cas nos corpos dos prisioneiros. brusca de temperatura), uma cela totalmente branca se momento, foi reservado para presos que passariam por esse
coordenar a execução de ações repressivas, como a e outra totalmente pintada de preto (que produziam “interrogatório científico”. Ao mesmo tempo, os militantes das
captura, o sequestro, a tortura, o assassinato e o de- Dentre as principais mudanças, destacam-se a cons- um perverso e sutil dano psíquico nas pessoas em organizações armadas considerados chaves foram sumaria-
saparecimento de militantes de oposição à ditadu- trução de uma porta exclusiva, que permitia a en- razão da percepção monocromática que lhes era im- mente condenados à morte. Não iam para o DOI-CODI. Iam
ra militar. Vale ressaltar que o PIC já era utilizado trada e saída do prédio pelos fundos (Av. Maracanã), posta), bem como uma sala sonorizada (destinada a ser torturados e assassinados em outros lugares, como a Casa
como local de prisão e tortura antes mesmo da deno- evitando que os presos levados para o DOI-CODI produzir barulhos ensurdecedores). Cada cela passou da Morte em Petrópolis4.”
minação DOI-CODI ser definida em 1970. Ademais, passassem pelo interior do batalhão; a ampliação ainda a ser monitorada por meio de um sistema de
3. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE
a partir desta data, o 1º BPE abrigou o DOI-CODI dos refeitórios dos oficiais e dos sargentos, em res- escuta. A consequência da importação destas técnicas DO RIO DE JANEIRO. Testemunho de Newton Leão Duarte ao Ministério
Público Federal. Documento enviado ao Instituto do Patrimônio Histórico
ao mesmo tempo em que manteve seu funcionamen- posta ao expressivo aumento do efetivo; a constru- é descrita por Newton Leão Duarte e Lucia Murat: e Artístico Nacional (IPHAN) requerendo o tombamento do prédio do DOI-
to enquanto batalhão de polícia. Por isso, muitas ve- 2. ACERVO CEV-Rio. Testemunho de Dulce Pandolfi concedido em Audiência
-CODI. Rio de Janeiro: agosto, 2013. p.9.
4. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Lucia Murat concedido em Audiência Pú-
zes, nos testemunhos de ex-presos políticos, o local 1. Para mais informações sobre a criação dos DOI-CODIs, ver o capítulo 17 Pública realizada no dia 28 de maio de 2013. Disponível em: https://www. blica realizada no dia 28/05/2013. Disponível em: https://www.youtube.com/
deste Relatório (A construção da estrutura de informações). youtube.com/watch?v=ZwyKtFdZrKk watch?v=ZwyKtFdZrKk

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O ex-soldado Marco Aurélio Magalhães, que à épo- ra, muitas das vezes, começavam já nesse primeiro Testemunhos de ex-presos políticos dão conta da di- que o interrogando não resistiria por muito tempo6.”
ca serviu no DOI-CODI, esclareceu, em entrevista momento. Posteriormente, os presos costumavam versidade de métodos de tortura que eram aplicados
concedida em 1986 ao jornal Folha de S. Paulo, as ser levados às salas individuais, também situadas durante os interrogatórios, como choques elétricos Maria Dalva Bonet, ao contar sua passagem pela
mudanças estruturais ocorridas no espaço: no primeiro andar, onde eram torturados. O objetivo (aplicados por meio de diferentes aparelhos), “pau- Barão de Mesquita, também descreve os tipos de
era evitar o contato inicial com outras pessoas e ob- -de-arara” (barra de ferro que atravessa entre os pu- tortura a que foi submetida:
“ ter rapidamente informações sobre eventuais encon- nhos amarrados do indivíduo e a dobra de seu joelho,

A partir de agosto de 71 as torturas ficaram mais sofisti-
cadas. Quando eu cheguei, as torturas, os métodos de obterem tros, esconderijos ou a localização de outros militantes, de modo que seu corpo fica pendurado na barra si- Fomos levadas pra PE. Já cheguei lá em sessão de tortura.
confissão, eram basicamente a força física. Muito pescoção, visando a captura e prisão de opositores à ditadura. tuada acima do chão), “cadeira-de-dragão” (cadeira (…) Eles me botaram em pé um tempão pra poder parar a
muito tapa, muito soco, muito chute, vez ou outra choque Uma das técnicas da tortura consistia em manter os na qual o preso permanecia amarrado com correias circulação. (…) Comecei a levar porrada, fui jogada no chão
elétrico nos dedos e órgãos genitais. Às vezes introduziam ob- presos sempre nus e com capuz para evitar que os tor- e placas de espuma; seus dedos dos pés e das mãos (…). Fiquei cheinha de hematoma no corpo todo, no seio,
jetos na vagina ou no ânus. Estes eram os métodos iniciais. turadores fossem identificados. Após interrogatório, os eram amarrados com fios elétricos que produziam tudo. Choque elétrico, cadeira do dragão, choque elétrico nas
Eu entrei em maio, tive um mês de preleção, comecei a dar presos eram removidos para celas solitárias situadas choques), “empalamento” (introdução no ânus do mãos e nos pés. Os meus dedos todos descascaram, os pés tam-
guarda em junho e mais ou menos em agosto começaram as no mesmo corredor, ou coletivas (feminina ou masculi- preso de um cassetete com pregos), afogamento, uso bém ficaram em carne viva. Choque elétrico no ânus. 72 horas
obras na parte térrea do prédio do Pelotão de Investigação na) – espaços conhecidos como “Maracanã” – situadas de animais (como baratas, ratos, jacarés e cobras) nessa brincadeira. Ai chegou um momento que o Magalhães
Criminal (PIC) para construção de celas mais sofisticadas. no segundo andar do edifício, onde, em regra, a tor- e a utilização das celas mencionadas anteriormen- começou “não dá mais choque nessa puta não, porque choque
Eles construíram lá embaixo quatro celas. Construíram uma tura diminuía. A mudança era possível pois, por um te, capazes de causar enorme desconforto sensorial ela tira de letra”. Ai eu pensei “ai meu deus, vou me livrar do
cela-geladeira, onde realmente se chegava a baixíssimas tem- lado, o preso já não tinha mais tanta “utilidade” para (frio, barulho e luminosidade). Gildásio Westin Co- choque”. Eu já estava desesperada com os choques. Que ilusão.
peraturas, uma câmara toda forrada de isopor e amianto. o sistema naquele momento, posto que já havia sofrido senza, preso no DOI-CODI em 1975, relata as tortu- Me botaram no pau-de-arara, com os choques. E no pau-de-
Construíram também uma cela com vários botões do lado de todo tipo de sevícia a fim de “entregar” as informações ras que sofreu: -arara começaram a me rodar que nem galeto. E colocaram
desejadas, e, por outro lado, permitia que novos presos

fora com os quais você controlava e emitia ruídos e sons altís- uma gravação. Eu não sei se era microfone porque não dava
simos para o preso ter sensações de desequilíbrio. Tinha uma fossem encaminhados às celas individuais para serem Foi torturado, no DOI-CODI do I Exército(...), recebeu gol- pra ver porque a cabeça fica assim né. Que dizia “Adriana
cel a totalmente negra, onde a pessoa não enxergava nada e interrogados sob tortura. pes de cassetete, murros, choques elétricos, aplicados por um (que era meu nome de guerra), não adianta tentar resistir. A
não conseguia nunca acostumar a visão àquele grau de es- magneto; que, ao cair, devido aos choques, era pisoteado; que, sua organização já caiu toda. O Apolônio está aqui. O Mario
curidão. Em compensação, tinha uma cela toda pintada de naquele local, sofreu empalamento com um cassetete elétrico e Alves tentou resistir e nós enfiamos um cassetete no ânus e ele
branco onde os presos perdiam a noção de hora, de tempo. Os com um cabo de vassoura; que a sua boca era constantemente não resistiu, ele morreu”. Tudo pra me intimidar7.”
presos lá em cima, do segundo andar, onde estavam as celas cheia com sal e tornou-se difícil dizer quantos dias passou sem
comuns, se guiavam pelos toques do corneteiro, para saber se tomar água; que inúmeras foram as vezes em que foi jogado a O testemunho acima chama atenção para um aspec-
estava amanhecendo, se o coronel estava saindo ou chegando, um cubículo que denominavam de “geladeira”, que tinha as to que merece destaque: o tratamento conferido às
se era hora de almoço. Os presos ficavam nas celas totalmente seguintes características: sua porta era do tipo frigorífico, me- mulheres presas no DOI-CODI, sistematicamente
isoladas perdiam a noção de tempo e de espaço5.” dindo cerca de dois metros por um metro e meio; suas paredes humilhadas, violentadas e discriminadas por ques-
eram todas pintadas de preto, possuindo uma abertura gra- tões de gênero. As torturas perpetradas contra as
O caminho percorrido pelos presos ao chegarem ao deada ligada a um sistema de ar frio; que no teto dessa sala presas – nudez forçada, violências sexuais (como,
DOI-CODI normalmente iniciava-se na “sala de tria- existia uma lâmpada fortíssima; que ao ser fechada a porta por exemplo, o estupro)8, uso de animais (como bara-
gem” ou sala de “espera”, localizada no primeiro andar ligavam produtores de ruídos cujo som variava do barulho de tas, ratos, cobras e jacarés) em contato direto com o
do prédio, para onde eram levados a fim de deixarem uma turbina de avião a uma estridente sirene de fábrica; que
6. Arquivo CNV, 00092.000113/2014-43: Processo da Comissão de Anistia nº
seus pertences pessoais. O interrogatório e a tortu- por diversas vezes foi medicado por um elemento que dizia 2005.01.52188, p. 126.
7. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Maria Dalva Bonet para a CEV-Rio em
5. Folha de São Paulo, Edição de 19/09/1986. “Ex-soldado decide falar sobre 17/11/2014.
torturas a presos políticos”. Brasil Nunca Mais Digital: Acervo Raul Amaro Planta do 2º andar do PIC - janeiro/fevereiro de 1970 8. Vale ressaltar que a violência sexual foi praticada também contra homens.
Nin Ferreira. Pasta Documentos, p. 459-460. Crédito: Newton Leão Ver: capítulo 10 do Relatório Final da CNV.

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corpo feminino, entre outras – visavam atingir pre- sionar a tortura para determinar se o preso poderia falou: ‘quem tem um colega desses, não precisa ter inimigo’10.” parecidas11. Abalado pelas crescentes denúncias de
cisamente a sua condição de mulher e, consequente- seguir sendo seviciado ou se seria preciso diminuir tortura, desaparecimento forçado e assassinatos,
mente, anular a sua dignidade e aniquilar qualquer o grau de violência a fim de evitar a sua morte (o De acordo com dados fornecidos pela Comissão Na- que ganharam ainda maior repercussão com a mor-
traço de humanidade. Com efeito, durante as agres- que implicaria na impossibilidade de se obter as cional da Verdade, do total de presos políticos que te de Vladmir Herzog (1975) e de Manoel Fiel Filho
sões, as mulheres eram frequentemente rotuladas informações desejadas), bem como de reanimar as passaram pelas dependências do DOI-CODI, ao (1975), ambos no DOI-CODI do II Exército, em São
pelos torturadores como prostitutas, adúlteras e vítimas e ministrar-lhes medicamentos, quando ne- menos 49 foram mortos, dentre os quais 33 perma- Paulo, o governo militar se viu obrigado a reduzir as
esposas ou mães desvirtuadas, cujo papel social de- cessário. Quando a tortura era tanta que o preso não necem desaparecidos até a presente data. Roberto atividades dos DOI-CODI, levando à sua posterior
veria permanecer restrito às funções do lar e longe respondia aos cuidados médicos prestados nas de- Cietto (1969), Mario Alves de Souza Vieira (1970), extinção no início da década de 1980.
da esfera política, tradicionalmente compreendida pendências do próprio DOI-CODI, eles eram então Jorge Leal Gonçalves Pereira (1970), Celso Gilberto
como um lugar a ser ocupado somente pelos homens. enviados ao Hospital Central do Exército (HCE). O de Oliveira (1970), Carlos Alberto Soares de Freitas Em agosto de 2013, o Ministério Público Federal
depoimento de Luiz Roberto Tenório dá conta da co- (1971), Rubens Beirodt Paiva (1971), Aderval Alves (MPF) e a CEV-Rio apresentaram ao Instituto do
A maternidade foi outro elemento utilizado pelos laboração dos médicos com a ditadura militar: Coqueiro (1971), Antônio Joaquim de Souza Macha- Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
torturadores para desestabilizar as presas políti- do (1971), Joel Vasconcelos Santos (1971), Gerson um pedido de tombamento do prédio onde historica-
cas, sendo comuns ameaças que envolvessem seus “ Sou médico (...) me formei em 1968, na antiga UEG, hoje Theodoro de Oliveira (1971), Mauricio Guilherme mente funcionou o DOI-CODI, localizado nos fundos
filhos ou que afirmassem que as mesmas se torna- UERJ. (...) a minha atividade política era um pouco como da Silveira (1971), Mário de Souza Prata (1971), do 1ºBPE. De acordo com o MPF, tal medida bus-
riam estéreis. As torturas e as péssimas condições a médico prestando assistência a pessoas procuradas pela dita- Marilena Villas Boas Pinto (1971), Aluízio Palha- ca combater o “negacionismo” e “silenciamento”,
que estavam submetidas no DOI-CODI foram res- dura militar. Pessoas não só que passavam mal, iam ao meu no Pedreira Ferreira (1971), Paulo Costa Ribei- fomentar uma consciência política de não repeti-
ponsáveis por causar abortos, bem como infecções e consultório, como pessoas também que se feriam em ações de ro Bastos (1972), Sérgio Landulfo Furtado (1972), ção das violações de direitos humanos no presente
outras doenças graves às mulheres ali detidas. Ca- combate contra a ditadura. Fruto disso, um grupo de médicos José Mendes de Sá Roriz (1973) e Armando Teixeira e reparar simbolicamente a sociedade, os ex-presos
sos emblemáticos de violência de gênero foram os de foi preso em 1972. Eu fui um deles. (...). Fui levado para o Fructuoso (1975) são alguns dos mortos e desapa- políticos e os familiares de militantes mortos e de-
Dulce Pandolfi e Lucia Murat, presas e levadas para DOI-CODI, na Barão de Mesquita. (...). Depois de algum tem- recidos políticos vinculados à ação do DOI-CODI e saparecidos no interior do DOI-CODI. Mais recen-
o DOI-CODI em agosto de 1970 e março de 1971, po, eu vim de uma sessão de tortura, muito mal, muito de- reconhecidos pelo Estado brasileiro. temente, em setembro de 2014, foi inaugurado na
respectivamente. Submetidas a prolongadas tortu- bilitado, inclusive com uma perfuração no tímpano. Tive o praça Lamartine Babo, localizada em frente ao 1º
ras físicas e psicológicas, passaram por uma expe- meu tímpano direito perfurado, e a partir daí eu comecei a ter Em meados da década de 1970, com a destruição BPE, um busto do ex-deputado Rubens Paiva, preso,
riência brutal e humanamente indizível nas mãos uma piora do meu estado de saúde. (…) Foi trazido um mé- das principais organizações armadas e com o fim torturado, assassinado no interior do DOI-CODI em
dos agentes militares que atuavam no PIC. Sofre- dico para me atender. Esse médico era o Ricardo Fayad, que da Guerrilha do Araguaia, os DOI-CODI passaram 1971, e cujo corpo permanece até hoje desaparecido.
ram sevícias sexuais e agressões de todos os tipos, foi meu colega de turma. Durante seis anos, nós convivemos a buscar novos “inimigos internos” que justificas-
inclusive com o uso de animais em seus corpos nus. na mesma turma na Faculdade de Ciências Médicas da UERJ. sem a sua existência. O Partido Comunista Brasi-
Mas sobreviveram ao terror. Em depoimento na pri- E durante esses seis anos a gente tinha divergências políticas leiro (PCB), cuja opção contrária à luta armada era
meira audiência pública da CEV-Rio, na Assembleia do movimento estudantil, eu pela esquerda e ele como pessoa explícita, bem como sua relação com o Movimento
Legislativa, em 28 de maio de 2013, relataram em de direita. E quando eu vi o Ricardo Fayad fiquei com algum Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição
detalhes o que foi o terrorismo do Estado ditatorial.9 tipo de esperança de que ele pudesse pelo menos avisar a mi- consentida pelo governo ditatorial, foi então escolhi-
nha família onde eu estava (...). Ele simplesmente chamou o do como a mais nova ameaça a ser combatida. Foi
Era comum ainda a participação de médicos em in- torturador e falou pro torturador que eu ainda poderia dar nesse contexto que foi realizada a Operação Pajuça-
terrogatórios realizados no interior do DOI-CODI, informações e que não era um caso grave, que podia continu- ra (1973-1976), responsável por matar 19 lideranças
onde cumpriam as funções de auxiliar e de supervi- ar no interrogatório. O próprio torturador chegou para mim e do PCB, das quais 11 permanecem até hoje desa-
9. Seus relatos, com uma análise aprofundada da violência de gênero du- 10. Arquivo da Comissão Nacional da Verdade, 00092.002439/2014-07. Depoi-
rante a ditadura, podem ser encontrados no capítulo 10 deste Relatório (Mu- mento de Luiz Roberto Tenório à Comissão Nacional da Verdade em 28 de 11. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade.Relatório / Comissão Nacional da
lheres na luta contra a Ditadura - O terror do Estado e a violência sexual). outubro de 2014. Verdade.Brasília: CNV, 2014. Volume I. p. 642.

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Ex-preso volta ao cenário da tortura neiro, e em outras três em missão oficial, como membro
da Comissão da Verdade do Rio, para fazer um reconhe-
cimento de suas instalações. Em minha primeira prisão,
em fevereiro de 1970, cheguei algemado, no banco de trás
de um carro Aero Willis. Na segunda, três anos depois,
entrei de capuz, estendido no piso traseiro de um Corcel,
depois de sequestrado em casa. Em ambas, fui conduzido
por meus captores por um portão lateral, entrada exclusi-
va para as dependências do DOI-CODI.

Decorridos 43 anos, voltei em agosto e setembro de 2013,


cumprindo diligências da CEV-Rio. Nestas duas vezes, en-
trei pelo portão principal, na rua Barão de Mesquita, em
companhia de uma comitiva formada por membros da co-
missão, parlamentares e ex-presos políticos. Do lado de fora,
na praça Lamartine Babo, ficaram jornalistas, dirigentes de
entidades de direitos humanos, ex-presos e grupos de ma-
Álvaro Caldas com rosto marcado pela tortura/abril de 1973 nifestantes. Na primeira inspeção, dia 21 de agosto, fomos
Foto: Aylton Baffa recebidos em seu gabinete pelo comandante do Batalhão, Momento da entrada da comitiva que realizou a diligência de setembro de 2013 de, salas de paredes brancas. Lembro que deixei com o
Foto: Lula Aparicio
tenente-coronel Luciano Simões, e um grupo de oficiais. Ale- cabo Gil meu relógio, a carteira e o cinto. Recordo a nudez
Com o fim da ditadura civil-militar, o quartel da Po- gando que cumpria ordens superiores, do Comando Militar no período da ditadura, suprimindo uma década da His- e as formas de tortura, em meio ao espanto e curiosidade
lícia do Exército adquiriu com o tempo uma conota- do Leste, comunicou que não poderíamos percorrer as de- tória. A deputada Luiza Erundina cobrou a omissão e a dos presentes. Os oficiais ouvem em silêncio. Um soldado
ção sombria, símbolo que foi da prática sistemáti- pendências internas. Antes de sair, observei uma foto am- CEV-Rio reafirmou que o seu objetivo ao fazer a diligência registra tudo com sua câmera.
ca de tortura pelo Estado ditatorial brasileiro, nos pliada do pátio do quartel emoldurando o gabinete. Disse ao era justamente reconstituir os fatos que lá se passaram.
anos setenta do século passado. Mantido fechado a tenente-coronel que ali, no prédio do PIC, fui torturado, e que São quatro salas de cada lado, todas com uma placa indi-
qualquer inspeção da sociedade civil, mesmo após o o jornalista Mário Alves e o deputado Rubens Paiva foram Descemos para o pátio interno. Na condição de única tes- cando sua destinação atual, com militares em sua rotina
fim da ditadura, somente em 2013 teve seus portões mortos. Cecília Coimbra confirmou as torturas e ouviu sua temunha presente, assumi o papel de guia à frente do gru- de trabalho. Antes, pessoas feridas, amedrontadas, gritos
abertos. Após longas negociações com o ministério lacônica resposta. “Eu lamento profundamente.” po, seguido pelos comissários, parlamentares e oficiais do de pavor vindos de dentro, retrato de uma condição hu-
da Defesa e o Comando do Exército, três diligências Exército. Ao avistar o sobrado de dois andares do PIC, digo mana miserável. No final do corredor, estava a cela que
foram realizadas no local pelas Comissões Estadual Na segunda, realizada no dia 23 de setembro de 2013, a com convicção que lá funcionou o DOI-CODI. O prédio por era equipada com pau de arara e outros instrumentos de
e Nacional da Verdade. barreira foi quebrada. Autorizada pelo ministro da Defe- fora não mudara. Pintado de verde, com a inscrição Pelo- tortura, a sala roxa. Constato que as cinco celinhas in-
sa e pelo comandante do Exército, os membros da Comis- tão de Investigações Criminais. Um oficial apontou outro dividuais, as solitárias, que fechavam o corredor, foram
Em diferentes momentos de sua vida, o jornalista são da Verdade, senadores e deputados federais puderam prédio ao lado. Na verdade, foram os dois, um para inter- derrubadas, transformadas em espaços de serviço interno.
Álvaro Caldas esteve em cinco ocasiões na central finalmente entrar no centro de torturas da Barão de Mes- rogatórios e o outro como Central de Inteligência.
de torturas da Barão de Mesquita, Tijuca. Neste re- quita. A comissão foi recebida no auditório por oficiais Apolônio de Carvalho esteve numa daquelas solitárias. A
lato, ele dá o seu testemunho: do Comando Militar do Leste e do comando do 1º BPE. Constato que no interior do PIC a estrutura é a mesma. comitiva retorna para o pequeno hall de entrada e sobe
O tenente-coronel Luciano Simões fez uma exposição his- As duas salas de comando na entrada e o longo corredor a escada que leva ao segundo andar. O celão, chamado
Nas duas primeiras vezes entrei na condição de prisio- tórica sobre o Batalhão, deixando de fora suas atividades onde se situam as celas. Chão de cerâmica pintado de ver- “Maracanã”, para onde os presos eram levados depois de

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sessões de tortura no térreo, não está mais lá. Foi dividi- da, Newton Leão Duarte, Paulo César Ribeiro, Francisco 2. DEPARTAMENTO DE ORDEM então capital da República2:
POLÍTICA E SOCIAL (DOPS/GB)

do. Uma parte virou um amplo alojamento, com camas e Celso Calmon e Gildásio Cosenza, além de Felipe Nin e
beliches forrados com lençóis brancos. Em passos lentos, Joana Nin, sobrinhos de Raul Amaro Nin Fereira, preso A cidade do Rio de Janeiro será o centro propulsor de to-
conduzo o grupo ao final do corredor. De um lado, o aloja- e torturado quase até a morte no local. Durante mais de das as transformações ocorridas no interior das instituições
mento para soldados com camas e de outro as celas meno- duas horas, eles vistoriaram as instalações do antigo cen- policiais. É um centro cosmopolita, abriga atividades indus-
res. Detenho-me diante da antiga cela em que o jornalista tro de torturas e comprovaram, com o apoio dos peritos, triais além de ter uma função portuária relevante. Concentra
Mário Alves, dirigente do PCBR, foi torturado, empalado que o prédio passou por adaptações internas, mas sua es- uma parcela considerável de ex-escravos deslocados das gran-
e morto. Dali, sumiram com seu corpo. É o momento de trutura permanece inalterada. des propriedades rurais e de imigrantes europeus. É a capital
descida ao fundo do inferno. Com a boca seca e falta de do país e, portanto, manter a ordem nessa cidade extrapolava
ar, peço um copo d’água. Os senadores querem mais deta- Os presos reconheceram a sala roxa, depois equipada como as dimensões locais. O que se fazia no Rio de Janeiro, no que
lhes. Os oficiais permaneceram em silêncio. Antes de sair, geladeira, à prova de som, e o celão conhecido como Ma- diz respeito às leis, às reformas político-administrativas, era
torno a percorrer sozinho o corredor térreo. Paro diante da racanã, no segundo andar. Descreveram as sessões de tor- uma referência para o resto do país3.
antiga sala roxa. Sinto repugnância. tura e nomearam seus autores. A memória continua viva.
No segundo andar do prédio, Vera Vital Brasil apontou a Segundo a professora Anita Prestes, em palestra
Uma terceira diligência foi realizada um ano depois, sala onde funcionou o pavilhão feminino enquanto esteve Localização: Rua da Relação, nº 40, Centro, Rio de Janeiro, RJ durante o Seminário DOPS – Um Espaço em Cons-
no dia 23 de setembro de 2014, com a participação de presa lá, em dezembro de 1969. Para os ex-presos políticos trução4, realizado pela Comissão da Verdade do Rio
membros da CNV e da CEV-Rio, acompanhados de ex- que participaram da diligência, entrar no edifício onde O prédio que serviu de sede para o Departamento (CEV-Rio), as torturas no local começaram já nos
-presos políticos torturados no local, além de dois peritos funcionou o DOI-CODI foi um ato reparatório de alto va- de Ordem Política e Social (DOPS/GB)1, situado na anos vinte contra as classes mais pobres e seguiram
criminais. Desta vez, a inspeção foi filmada pela CNV. lor simbólico. esquina da Rua da Relação com a Rua dos Inválidos, depois com o golpe de 1937, quando o Brasil entrou
A diligência marcou um momento histórico, com a volta tornou-se um dos endereços mais emblemáticos da no regime ditatorial de Getúlio Vargas, o Estado
ao DOI-CODI, mais de quarenta anos depois, de seis ex- Álvaro Caldas longa história de repressão política no estado do Rio Novo. Portanto, já durante as primeiras décadas do
-presos políticos: Vera Vital Brasil, Ana Bursztyn Miran- de Janeiro. Inaugurado em 1910, durante quase um século XX, a atuação da Polícia Central do Distrito
século foi palco permanente de ações que resultaram Federal era dirigida ao controle da emergente po-
em violações de direitos humanos, levando à prisão pulação urbana, em relação à organização política,
ilegal, tortura e morte de perseguidos políticos. Por aos movimentos de trabalhadores, aos imigrantes
suas celas e salas de interrogatório passaram políti- europeus difusores do ideário anarquista no Rio de
cos, dirigentes sindicais e cidadãos dos mais diver- Janeiro, e principalmente à população pobre e ne-
sos grupos sociais. gra – por meio da repressão à “vadiagem” dos “sem
trabalho”, das “casas de batuques”, da capoeira, da
A longa trajetória do prédio começa em 1908. Com prática de “magia” e “curandeirismo”.
a justificativa da necessidade de modernização da
Segurança Pública, foi editado o Decreto nº 1970, 2. APERJ. DOPS: A Lógica da Desconfiança. Rio de Janeiro. Secretaria de
determinando a construção de um edifício apropria- Estado de Justiça/ APERJ, 1993. Disponível em http://www.aperj.rj.gov.br/
livros/dops_a_logica_da_desconfianca.pdf.
do para sediar a Repartição Central de Polícia, na 3. Idem.
4. O Grupo de Trabalho DOPS, coordenado pela CEV-Rio, organizou o “Semi-
1. Diversos orgãos com função de polícia política funcionaram no local, com nário DOPS: Ocupar a Memória - Um Espaço em Construção” em novembro
destaque para a Polícia Central do Distrito Federal (1910 - 1933), a Delega- de 2013. O seminário contemplou fatos relacionados ao prédio da Rua da Re-
cia Especial de Segurança Política (1933-1938), a Delegacia de Ordem Públi- lação desde sua inauguração (1912) até o fim da ditadura militar (1988) e,
ca e Social (1938 – 1944), o Departamento de Ordem Política e Social (1962 num segundo momento, deu voz às experiências de gestores na criação e ma-
Ex-presos políticos e parte da comitiva que realizou a diligência de setembro de 2013, em frente ao 1º Batalhão de Polícia do Exército – 1975) e o Departamento Geral de Investigações Especiais (1975 – 1983). nutenção de Espaços de Memória. A programação do seminário contou ainda
Foto: Acervo CEV-Rio Contudo, devido à forte identificação com a repressão durante a ditadura com o testemunho público de quatro sobreviventes do DOPS/GB: Newton
militar, o local é conhecido popularmente como Prédio do DOPS. Leão Duarte, Ana Bursztyn Miranda, Geraldo Cândido e Romeu Bianchi Jr.

296 297
Uma evidência da atuação policial, que naquele pe- grupos politicamente organizados foi imediatamen-
ríodo criminalizava hábitos característicos da cul- te implementada em massa pelos órgãos da repres- “ Nos levaram para o DOPS na Polícia Central e a gente pas-
tura negra, é o acervo etnográfico mantido até hoje são, sendo tão intensa que superlotou as carceragens sou pelo corredor polonês. (...) As pessoas que estavam lá eram
pela Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro. Inter- então disponíveis, passando a contar com quartéis, os operários do Arsenal de marinha com os macacões sujos de
pretando a prática da umbanda, do candomblé e de ginásios e navios ancorados na Baía de Guanabara óleo, esses que oficiais da marinha deduraram como comunis-
outras expressões religiosas e culturais como atos de para dar conta do contingente de detidos. O DOPS/ tas(...) Quando subi, encontrei os nove chineses que vieram ne-
“espiritismo, magia negra e seus sortilégios”5, tipifi- GB já demonstrava as funções que exerceria duran- gociar com o Brasil (...) inclusive entre eles tinha um rapaz de
cados como crime pela lei penal da época, a polícia te a ditadura, servindo como uma espécie de centro 22 anos, advogado, falando português melhor do que qualquer
perseguiu a população afro-brasileira, efetuou pri- de triagem de presos e também como um local de um de nós. A televisão inglesa entrou no DOPS. (...) Tinha um
sões e acumulou uma série de objetos, aos quais mais prisão, tortura e morte. (chinês) mais velho, ajoelhado com os pés cruzados, porque eles
tarde foi reconhecido valor etnográfico. As peças de tem mania de ficar assim, brincando com as mãos, com isso
acervo se acumularam até 1938, quando foi feito o A CEV-Rio coletou informações e depoimentos que aqui tudo roxo, em carne viva, de tortura que fizeram. Olha,
primeiro tombamento etnográfico do país (inscrição demonstram a situação a qual foram submetidos os esse músculo aqui, tanto de um lado quanto do outro, em carne
n.º 001 do processo n.º 0035-T-38) pelo Instituto do presos no DOPS/GB já em abril de 1964. Dezesseis viva. No olho, a mancha preta da porrada que deram nele10.”
Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)6. dias depois do golpe, o ferroviário José de Souza foi
morto e seu corpo jogado no pátio do prédio, ocorrên- Como se observou nos testemunhos acima, a dita-
Estas práticas institucionais atravessaram a Pri- cia divulgada com a versão de suicídio. Em depoi- dura militar logrou, já nos seus primeiros anos, si-
meira República e continuaram no Estado Novo, mento à OAB do Rio, José Ferreira, preso por volta lenciar o movimento popular, que se desmobilizou
período marcado por violenta perseguição a comu- do dia 8 de abril, relatou o ocorrido, narrando que foi ou entrou para a clandestinidade. Depois do AI-5,
nistas e dissidentes políticos, que sofreram monito- mantido em uma sala do DOPS/GB com cerca de 100 em 1968, a repressão adquiriu novas formas para
ramento, censura, prisões, torturas e assassinatos. presos, inclusive José de Souza. Disse ainda que ao combater as organizações que aderiram à luta ar-
Passaram pelo cárcere da Delegacia de Ordem Pú- Estudantes presos no DOPS em agosto de 1968 longo do período em que estiveram detidos percebe- mada. O DOPS/GB continuaria exercendo um papel
Crédito: Arquivo Nacional, Correio da Manhã
blica e Social (1938 – 1944) personalidades da polí- ram que “quando os presos iam prestar depoimento, central nesse novo momento.
BR_RJANRIO_PH_FOT_00229.177
tica nacional como Nise da Silveira, Olga Benário, voltavam normalmente desmaiados”8. Afirmou que
Carlos Marighella, Apolônio de Carvalho, Gracilia- ditadura militar, e com a transferência do distrito José de Souza encontrava-se muito nervoso e que Ex-integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN),
no Ramos, Luiz Carlos Prestes e Carlos Lacerda. federal para Brasília, o Departamento de Ordem Po- no dia 17 de abril foram acordados por agentes da o engenheiro Newton Leão Duarte relatou à CEV-
Agentes da repressão e torturadores ganharam no- lítica e Social (DOPS/GB) é criado em 1962. Desde repressão avisando que o corpo do ferroviário havia -Rio que na segunda metade da década de 1960
toriedade, casos do então diretor Cecil Borer e do os primeiros momentos do golpe de 64, a estrutura sido encontrado no pátio da delegacia9. agentes do DOPS/GB atuavam ostensivamente em
Chefe de Polícia, Filinto Müller. do Departamento foi incorporada à ação violenta da passeatas e dentro das universidades. Em 1969,
ditadura, comandada pelas Forças Armadas. Para Vice-presidente da Associação de Moradores de Pa- Newton foi preso pelo delegado Mariel Mariscot, tor-
Após um processo de desenvolvimento e complexida- a imediata identificação dos integrantes dos grupos rada de Lucas, Amintas Maurício de Oliveira atuava turado no DOPS/GB e depois levado para a Polícia
de da polícia política, estabelecendo os alicerces dos “subversivos”, a repressão militar contou com a va- localmente oferecendo serviços de comunicação via do Exército (PE), onde estava sendo estruturado o
mecanismos de repressão que seriam utilizados pela liosa ajuda dos arquivos mantidos pelo DOPS/GB, alto-falantes e estruturando a rede de água potável DOI-CODI. Os dois órgãos agiam em estreita cola-
que também colocou à disposição seus recursos hu- e de luz elétrica na região onde morava. Acusado de boração, seja na troca de presos ou nos métodos de
5. Artigo 157 do Código Penal de 1890: “Praticar o espiritismo, a magia e seus
sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de manos e materiais já estruturados no momento do comunista, foi preso no dia 6 de abril de 1964. investigação e interrogatório:
ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e ou incuráveis, enfim para
fascinar e subjugar a credulidade pública”. golpe7. As prisões de militantes dos mais variados
6. CASTRIOTA, Leonardo Barci; REZENDE, Michela Perigolo. Três Museus,
Três Posturas – Diferentes Visões Acerca da Cultura Afrobrasileira. In: Actas 8. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
do I Seminário de Investigação em Museologia dos Países de Língua Portu- 7. APERJ. DOPS: A Lógica da Desconfiança. Rio de Janeiro: Secretaria de Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume III, p.143-144. 10. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Amintas Maurício de Oliveira para a
guesa e Espanhola, Volume 1, pp. 198-¬211. Estado de Justiça, 1993. p. 45. 9. Idem. CEV-Rio em 20/02/2014.

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tortura utilizados pela ditadura12, voltou ao DOPS/ São muitos os relatos que demonstram que o DOPS/ Cachoeiras de Macacu, mas que cumpria um im-
“ Fomos torturados barbaramente com espancamentos e GB, desta vez no setor feminino da carceragem, o GB seguiu atuante e violando direitos humanos ainda portante papel na estrutura da VAR-Palmares, ela
choques elétricos, da mesma maneira que os presos políticos denominado Depósito de Presos São Judas Tadeu, durante os anos 1970, especialmente através das pri- e Geraldo foram levados para o DOPS/RJ, conheci-
em todo o Brasil, como no DOI-CODI foram torturados. O que onde ficou nove meses. sões ilegais e da tortura. Neste sentido, cabe destacar os do como DOPS-Niterói. Neste local, Rosalina ainda
casos de Maria Helena Pereira e Rosalina Santa Cruz, sofreu mais tortura e um aborto, tendo sido leva-

significa que a polícia civil, à época, utilizava esses mesmos
meios. Aqui foi a nossa primeira sessão de sevícias11.” Havia cerca de 70 presas comuns, por vários delitos, a presas no DOPS/GB em 1971 e 1972, respectivamente. da também para dias de torturas no DOI-CODI. Ao
maioria ainda não condenada. Nossa cela abrigava as de ‘alta todo, ficou 52 dias presa.
Newton foi preso como ladrão de automóvel, mas periculosidade’: presas da Lei de Segurança Nacional (assal- Militante da Vanguarda Armada Revolucionária A jornalista Maria Helena Pereira trabalhava no
logo em seguida identificou-se que aquele automó- tantes de banco), estrangeiras presas por porte de droga (uma Palmares (VAR-Palmares), Rosalina Santa Cruz jornal Correio da Manhã e era simpatizante da Ação
vel, na verdade, era um meio para a sua militância argentina, uma uruguaia, duas americanas), presas políti- tinha atuação junto aos grupos de camponeses do Popular (AP). Estava grávida quando foi presa, na
política. Diante disso, foi levado para a Polícia do cas e uma mãe-de-santo de quem as presas tinham medo. [...] município de Cachoeiras de Macacu e da Baixada porta de seu prédio, em Copacabana com seu marido
Exército (PE), onde no segundo semestre de 1969 A quantidade de ratos e baratas era indescritível13.” Fluminense. Foi presa em casa com seu marido e Wilson, em 20 de janeiro de 1972.
estava se estruturando o DOI-CODI, na Rua Barão levada para a Rua da Relação. Em seu depoimento
de Mesquita. à CNV relatou: “ Fui levada para o DOPS e lá, um sujeito que eu não sei se o


nome era verdadeiro ou falso, mas ele era o mais violento, era
Ana Bursztyn Miranda também testemunhou como O cara chegou e disse assim em uma sala: “Tira a roupa”. o Capitão Jair. Eu acho que era falso o nome. Comecei logo a
o DOPS/GB conviveu de maneira articulada com ou- Eu disse: “Não tiro!”. (…) Eles me rasgaram a roupa, me bo- apanhar, imediatamente ele começou a me dar chute, me dar
tros órgãos de repressão política do Exército, da Ma- taram numa cadeira, abriram minhas pernas, começaram a chute na barriga, me bateu muito de palmatória, me espan-
rinha e da Aeronáutica. Foi presa pela primeira vez botar choque dentro da minha vagina, no meu pé, na minha cou e logo eu comecei a perder sangue, e abortei ali mesmo.
no DOPS/GB em 1968, após o episódio da prisão em orelha, e meu companheiro na outra cela. Montaram o pau- (...) E eu dizia “por que você me bate tanto na barriga?” e ele
massa dos estudantes que estavam no campus da -de-arara ali (…). O choque é uma coisa terrível, só quem pas- falou “porque é menos um comunista.” E continuava a bater,
Praia Vermelha, da Universidade Federal do Estado sou por uma experiência dessa sabe. A pessoa fica dilacerada bater, bater e bater15.”
do Rio de Janeiro (UFRJ). Na saída desse encontro, (…) E, nesse momento, eu pulo em cima do torturador que
viaturas do DOPS/GB e o aparato militar cercaram está em frente a mim e me agarro a ele de tal forma que o cho- Após um longo período de suplícios, foi colocada em
os portões. Já rendida e com os braços levantados, foi que não me permitia soltá-lo. Me lembro dos outros em volta uma cela coletiva, no Depósito de Presos São Judas
agredida com cassetete por um policial, ocasionando morrendo de rir. (…) Depois me levaram para a sala ao lado Tadeu, onde ficou por aproximadamente seis meses.
uma lesão que mais tarde faria com que perdesse onde meu companheiro estava. (…) Eu vi Geraldo num pau- Com a participação de ex-presos e familiares, a CEV-
o rim esquerdo. Levados para o DOPS/GB, naquela -de-arara montado por eles e tinha cocô no chão. Isso era uma -Rio realizou oito diligências no prédio do DOPS,
madrugada todos os estudantes foram liberados. coisa desmoralizante porque eles falavam para mim assim: com o objetivo de identificar e tornar públicos os lo-
‘Está vendo, o seu companheiro já cagou, eu quero ver você cais de violações de direitos humanos. Numa delas,
Ana se engajou cada vez mais na resistência à di- agora!’. E ao mesmo tempo me batendo, me dando choque e doze ex-presos políticos percorreram os três andares
Ana Miranda Batista durante a diligência ao depósito de presos São
tadura, ingressou na Aliança Libertadora Nacional Judas Tadeu, em novembro de 2014
dizendo para ele ‘Está vendo, é a sua mulher! Vou fazer isso do prédio histórico, que se encontra em estado de
(ALN) em 1969 e foi novamente presa em São Paulo Foto: Bruno Marins com ela. Vou bater!’14.” completo abandono, com fichários de documentos
em 1970. Após passar por diversos locais de prisão e amontoados no chão, sem nenhum tratamento de
12. Ana esteve presa no Presídio do Ahú, em Curitiba; no 1º Distrito, OBAN/
DOI-CODI, DEOPS, Hospital Geral Militar, Presídio Tiradentes, Presídio de Quando a polícia política descobriu que a atuação preservação. Os presos reconheceram as salas de in-
Mulheres do Carandiru e Polícia Federal, todos em São Paulo; além de DOPS/
GB, DOI-CODI, Hospital Central do Exército e Polícia Federal, estes no Rio de Rosalina não era somente com os camponeses de terrogatório e entraram nas celas em que estiveram
11. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Newton Leão Duarte prestado à CEV-Rio de Janeiro.
durante o Seminário “DOPS - Um lugar em Construção”, em 4 de novembro 13. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Ana Miranda Batista prestado à CEV-Rio 14. Arquivo CNV, 00092.000570/2014-21. Testemunho de Rosalina Santa
de 2013. durante o Seminário DOPS - Um lugar em Construção, em 4 de novembro de Cruz para a CNV e a CEV-Rio, prestado em audiência pública realizada em 15. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Maria Helena Pereira para a CEV-Rio
2013. 24/01/2014. em 19/06/2015.

300 301
detidos. Puderam rever, mais de quarenta anos de- Durante suas atividades, a CEV-Rio, através do 3. CASA DA MORTE DE PETRÓPOLIS do uma falsa versão para a morte. À medida que as
pois, o celão coletivo, apelidado de “Maracanã”, e as Grupo de Trabalho DOPS16, participou de inciativas denúncias de tortura no Brasil ganharam repercus-
solitárias, entre elas a que era usada como castigo, visando à transformação do prédio histórico em um são internacional e alguns casos tiveram visibilida-
o temível “Ratão”. Espaço de Memória que promovesse o debate so- de – tais como a morte do militante da Vanguarda
bre os direitos humanos, a história da resistência Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares),
e busca pela não-repetição de violações de direitos Chael Charles Schreier, em novembro de 1969, no
humanos no presente. Em parceria com a Comissão interior do 1º Batalhão da Polícia do Exército da Vila
de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Militar –, a ditadura passou a investir na estrutu-
Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), foi realizada ração de centros clandestinos e na adoção da prática
uma audiência pública em 19 de agosto 2014, com de desaparecimento forçado como política de Esta-
o objetivo de propor ao Estado a revitalização do es- ] do, a fim de evitar o desgaste da imagem do governo
paço. Entre outras medidas, foi aprovada a sugestão perante a opinião pública internacional.
de passar o prédio para a estrutura da Secretaria
Estadual de Cultura, que executaria uma política Na versão de um dos seus idealizadores, o coronel do
baseada em quatro pontos: Memória e Conhecimen- Localização: Rua Arthur Barbosa, n. 50 [antigo 668] Caxambu, Petrópolis, RJ Exército Paulo Malhães, codinome “Dr. Pablo”, per-
to, Gestão Participativa, Direitos Humanos e Inte- tencente ao Movimento Anticomunista (MAC), ex-
gração Comunitária. Apesar da intensa mobilização, Dos centros clandestinos1 de prisão e tortura que -agente do CIE e torturador confesso, a criação des-
essa reinvindicação ainda não foi atendida. a repressão montou no Estado do Rio de Janeiro o tes centros tinha o objetivo de aterrorizar os presos,
mais famoso tornou-se a Casa da Morte, idealizado, levando-os a fazer delações a respeito de suas orga-
criado e mantido de 1971 até provavelmente mea- nizações. Outro objetivo era “virá-los”, isto é, torná-
dos de 1973 por militares do Centro de Informação -los colaboradores do regime, e devolvê-los ao conví-
do Exército (CIE) em uma residência localizada no vio de seus companheiros para darem informações
bairro de Caxambu, na cidade de Petrópolis, região sobre suas atividades2. Nas palavras de Malhães,
serrana do estado.
“ Quando o cara entra no quartel ele sabe que está seguro,
Na interpretação da Comissão Nacional da Verda- que ninguém vai matá-lo dentro do quartel. Quando você o
de (CNV), a Casa da Morte foi resultado de uma leva para uma casa, ‘por que me trouxeram para cá e não
mudança na estratégia repressiva da ditadura. De me levaram para o quartel? E a gente ameaçava com isto,
1964 a 1970, as torturas e execuções de opositores né? ‘Você já viu que você está preso, mas não está preso no
políticos eram encobertas por falsas versões de sui- quartel. Você está preso em uma casa. Daqui você pode ir para
cídio, atropelamento ou tiroteio e o corpo da vítima qualquer lugar. Aqui você não está inscrito em nada. Que tal,
era geralmente entregue aos familiares em caixões vamos conversar? entrar em um acordo? ’ A casa é para isso.3”
lacrados, acompanhado de certidão de óbito atestan-
16. O GT DOPS contou com a participação de ex-presos políticos, militantes e
grupos interessados na pauta, como: Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça, 1. Clandestino no sentido de escondido, não oficial, uma vez que, na verdade,
Instituto de Estudos da Religião – Iser, Campanha Ocupa DOPS, Comissão da estes centros de tortura fora de guarnições militares e prédios públicos eram 2. Os antigos militantes dos movimentos de oposição à ditadura fazem uma
Verdade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Museu Nacio- sim do conhecimento de toda a cadeia de comando e, inclusive, mantidos diferenciação entre “infiltrados” e “virados”. Infiltrado são aqueles agentes
Ex-presos políticos em diligência de reconhecimento no DOPS em nal, Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento de História da Pontifí- com verbas oficiais, como prova, entre outros detalhes, a roupa de cama en- duplos que ingressaram em uma organização de oposição já a serviço da re-
novembro de 2014 cia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Superintendência de contrada por Inês Etienne Romeu na Casa de Petrópolis. O próprio presiden- pressão; já os virados são militantes que, presos e torturados, se viram obriga-
Estado de Defesa e Promoção de Direitos Humanos, Secretaria de Estado de te Ernesto Geisel, em depoimento a Maria Celina d’Araújo e Celso Castro dos a colaborarem com os órgãos de repressão na tentativa de sobreviverem.
Foto: Bruno Marins Cultura, dentre outros. Chegaram a participar permanentemente ou pontu- para o livro Ernesto Geisel, chamou essa casa de Petrópolis de “dependência 3. Acervo CEV-Rio. Depoimentos de Paulo Malhães para a CEV-Rio em feve-
almente das atividades do GT DOPS mais de 30 entidades. do CIE”. reiro e março de 2014.

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Teoricamente, era dada aos presos a opção de co- Acometido de um surto esquizofrênico, Papandreu do município ou mesmo no quintal do imóvel – ras- de tortura montados pelos militares na região serra-
laborarem com o regime e sairem vivo. Os que re- tornou-se um problema para seus torturadores. treamento geológico chegou a ser feito, sem sucesso na fluminense. “Nós não tínhamos só um em Petró-
cusavam “seguiam destino”, ou seja, eram mortos. Diante deste diagnóstico, emitido pelo tenente-médi- – até a incineração nos fornos da Usina de Açúcar polis. Tínhamos outros, mais desviados”10. Um deles
Mas nem sempre ocorreu assim. A História mostra co Amílcar Lobo, chamado de “Dr. Carneiro”, o então Cambahyba, em Campos dos Goitacazes (a 300 qui- seria uma casa em Itaipava: “É uma casa até bonita,
dois exemplos distintos. Inês Etienne Romeu (1942- major Paim Sampaio, o “Dr. Teixeira”, executou-o com lômetros de distância, no norte do Estado), como sus- na beira do rio (...) Não funcionou muito tempo não,
2015), ex-líder estudantil, ex-bancária e militante um tiro na cabeça, na sala da Casa em Petrópolis6. À tenta o ex-delegado do DOPS/ES, Claudio Guerra. Já o melhor é apagar isso do mapa”11.
da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), VAR- CEV-Rio, Paim Sampaio negou o fato, creditando a o ex-sargento Marival Chaves afirmou à CNV que era
-Palmares e da Organização Revolucionária Marxis- denúncia a desentendimentos entre ele e o tenente7. comum o esquartejamento como mecanismo para di- Única sobrevivente da Casa de Petrópolis, Inês
ta Política Operária (Polop), depois de três meses ficultar a identificação dos cadáveres. Etienne Romeu ali permaneceu entre 8 de maio e
em cativeiro incomunicável, fingiu aceitar o jogo. A denúncia de execução foi confirmada, em 2013, 11 de agosto de 1971. Foi torturada e seviciada por
Levada para sua casa, em Belo Horizonte, imedia- pelo ex-soldado do Exército Valdemar Martins de Estas hipóteses foram refutadas por Malhães. Nos de- militares do Exército, comandados pelo então coro-
tamente procurou um juiz e oficializou a sua prisão, Oliveira, na Comissão Rubens Paiva: “Quando o poimentos à CEV-Rio, ele insistiu que os militares do nel Cyro Guedes Etchegoyen, do CIE, codinome “Dr.
até então clandestina. general Oswaldo Pereira Gomes, que estava me ou- CIE tinham seus próprios métodos. Preferiam quebrar Bruno”, que exercia a função de “tutor” da presa.
vindo, pegou esse documento e viu o nome, disse: os dentes e cortar as pontas dos dedos das vítimas, im- Durante o tempo em que esteve incomunicável em
Já Vitor Luiz Papandreu, o Greguinho ou Russo – “Esse Rubens Paim Sampaio foi quem matou o Vitor possibilitando o reconhecimento futuro do cadáver pe- Petrópolis, ela memorizou o número do telefone da
um ex-soldado do Exército que em 1968 participou Papandreu em Petrópolis”8. las digitais ou pela arcada dentária. Depois, os corpos Casa, repetido por alguém que atendeu a uma cha-
da invasão de um quartel em Curitiba (PR) para li- eram colocados em sacos com peso dentro e jogados mada. Através dele, conseguiu localizá-la, anos mais
bertar o então coronel Jefferson Cardin de Alencar Em sua biografia, Amílcar Lobo narra o que ouviu nos rios para que desaguassem no mar. tarde, quando ainda se encontrava presa, com a aju-
Osório tornando-se, por isso, desertor e, posterior- do major Paim Sampaio, logo após a execução de da do jornalista Antônio Henrique Lago, então na
mente, exilado no México e em Cuba – também foi Papandreu: Malhães também admitiu que houve outros centros sucursal da Folha de S. Paulo.
preso na Casa da Morte4, após retornar do exílio.
Submetido a intensa tortura no interior da Casa “ Lobo, não é a primeira vez que mato alguém aqui em Pe-
aceitou colaborar com seu torturador, o major Ru- trópolis, você bem sabe disto. Já foram mais de dez que segui-
bens Paim Sampaio, mas não escapou de ser exe- ram este destino. Ninguém sai com vida daqui. Disse isso a
cutado. Sua delação provocou a prisão e morte de você na primeira vez que esteve aqui, já esqueceu?9”
Aderval Alves Coqueiro (fevereiro de 1971) – o pri-
meiro banido a retornar ao Brasil –, como disse à Não se sabe o número de presos que passaram pela
Comissão da Verdade Rubens Paiva, do Estado de Casa de Petrópolis nem o destino dado aos corpos dos
São Paulo, sua filha, Célia Silva Coqueiro5. que foram assassinados. Agentes da repressão deram
versões diferentes sobre os métodos utilizados para o
desaparecimento. Do suposto enterro em cemitérios
4. “Família de soldado desaparecido quer depoimento de Amílcar Lobo”, Fo-
lha de São Paulo, 22 de janeiro de 1990; Segundo o BNM Digit@l Volume 1
pasta 069, pág. 256, Papandreu foi condenado, em 15 de dezembro de 1969, a 6. LOBO, Amílcar. A hora do lobo, a hora do carneiro. 1ª edição. Rio de Janei-
oito anos de reclusão por incitar à desobediência, à indisciplina ou à prática ro: Editora Vozes, 1989; p.37.
de crime militar e constranger alguém, mediante violência ou grave amea- 7. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Rubens Paim Sampaio para a CEV-Rio em
ça, a presenciar, a praticar ou permitir que com ele pratique ato libidinoso março de 2014.
diverso da conjunção carnal, conforme Ata da Sessão nº 130 do Conselho de 8. Acervo da Comissão da Verdade, do Estado de São Paulo, Rubens Paiva, Ata
Justiça Permanente do Exército, em Curitiba (PR), da 42ª audiência pública, em 16 de maio de 2013, na Assembleia Legislativa
5. Acervo da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva. Ata de São Paulo, plenário Tiradentes, disponível em: http://verdadeaberta.org/
da 45ª audiência pública, em 23 de maio de 2013, na Assembleia Legislativa relatorio/tomo-iii/downloads/III_Tomo_2013-Audiencias-Comissao-daVerda-
de São Paulo, auditório Teotônio Vilela, disponível em: http://verdadeaber- de-SP.pdf Em primeiro plano, o desenho de Inês e a imagem da planta original da 10. Acervo CEV-Rio. Depoimentos de Paulo Malhães para a CEV-Rio em feve-
ta.org/relatorio/tomo-iii/downloads/III_Tomo_2013-Audiencias-Comissao- 9. LOBO, Amílcar. A hora do lobo, a hora do carneiro. 1ª edição. Rio de Janei- casa em 3D reiro e março de 2014.
-daVerdade-SP.pdf ro: Editora Vozes, 1989; p.37. Crédito: Acervo Comissão Nacional da Verdade 11. Idem.

304 305
Em 1979, já em liberdade, após sete anos na Pe- O período de funcionamento da Casa do. O Centro teria sido desativado no final de 1973, vendida a Renato Firmento Noronha, que ainda
nitenciária Talavera Bruce, em Bangu, no Rio de com a saída do general Sylvio Frota do comando do vive no imóvel.
Janeiro, ela denunciou a existência do centro de Em 1971, a casa foi cedida ao Exército pelo empre- Iº Exército, no Rio.
tortura e morte de Petrópolis em depoimento a sário Mário Lodders, descendente de alemães e sim- As vítimas que passaram pela Casa
Eduardo Seabra Fagundes, então presidente da patizante da ditadura. A transação foi intermediada Documentos encontrados pela procuradora da Re-
Ordens dos Advogados do Brasil (OAB). Em carta pelo ex-comandante da Panair e ex-interventor de pública em Petrópolis, Vanessa Seguezzi, sobre a Esta revelação, ao delimitar o período em que a casa
escrita em papel timbrado da Ordem12, ela descre- Petrópolis (1967), Fernando Ayres da Motta, amigo propriedade e a utilização do imóvel de nº 668-A, da funcionou como centro do CIE, permite uma revisão
veu as atrocidades: do coronel José Luiz Coelho Neto, então chefe de ga- Rua Arthur Barbosa, no bairro de Caxambu, reve- nas listas que ao longo dos últimos 36 anos (desde
binete do comandante do CIE, general Milton Ta- lam que já no segundo semestre de 1973 ele teve 1979) surgiram com nomes de militantes da esquer-
vares de Souza. Quando entrou na Casa, Inês logo destinação diferente. Silvana Principe Ayres da da que teriam passado por ali e que até hoje são da-
percebeu estar numa dependência do Exército: Motta, antiga moradora, disse que foi morar na casa dos como desaparecidos.
no final de agosto ou início de setembro de 1973 e
“ chegando ao local, uma casa de fino acabamento, fui colo- que três dos seus filhos nasceram naquele imóvel, No primeiro depoimento prestado à OAB, Inês listou
cada numa cama de campanha, cuja roupa estava marcada sendo o primeiro em 1974, o segundo em 1975 e o os nomes de dez militantes sobre os quais teve notí-
com as iniciais do C.I.E. (Centro de Informação do Exército)13.” terceiro em 1977”.14 cias durante sua permanência na Casa. Repetiu-os
na Audiência Pública promovida pela CNV, no Ar-
Sete oficiais do CIE atuaram em Petrópolis: coronel Mais do que o depoimento da antiga moradora, já quivo Nacional em 2015. Dos nomes indicados por
Etchegoyen, “Dr. Bruno”; o tenente-coronel Orlando que o contrato de locação foi verbal, a prova maior Inês, a CNV revelou que cinco morreram na casa:
de Souza Rangel, “Dr. Pepe”; o major Paim Sampaio, do uso do imóvel como residência familiar são fo- Carlos Alberto Soares de Freitas, o Breno, integran-
“Dr. Teixeira”; os capitães Malhães, “Dr. Pablo”; Fre- tos apresentadas pelo ex-casal. Em uma delas, te da VAR Palmares; Mariano Joaquim da Silva,
ddie Perdigão Pereira, “Dr. Nagib” ou “Dr. Roberto”; reproduzida abaixo, aparece Silvana Principe na também da VAR, preso em Recife, em 1º de maio de
José Brant Teixeira, “Dr. César”; e um outro não escada da residência. Na lateral da foto, a data da 1971; Walter Ribeiro Novaes, da VPR, preso em 12
identificado, conhecido como “Dr. Guilherme”. revelação: novembro de 1973. Em 1979, a casa foi de julho de 1971; Heleny Ferreira Telles Guariba, da
Também prestaram serviços na Casa, segundo o de- VPR, presa em 12 de julho de 1971; Paulo de Tarso
poimento de Malhães à CEV-Rio, o soldado Antônio Celestino da Silva, da ALN, preso no mesmo dia de
Waneir Pinheiro de Lima, o “Camarão”, caseiro que Heleny, e torturado por 48 horas: “Eu o ouvi supli-
participava das torturas; os sargentos Ubirajara cando por um pouco d’água”, lembrou Inês.
Ribeiro de Souza, “Zé Gomes” ou “Zezão”; Rubens
Marins de Souza, “Leacato” ou “Larcato”; Jacy Och- Com relação a Aluízio Palhano Pedreira Ferreira,
sendorf, paraquedista; Jairo de Canaã Cony, o “Mar- líder sindical dos bancários, preso em maio de 1971,
celo”; o policial militar Jarbas Fontes, o “Pardal”; o segundo Inês, ele teria sido visto na Casa em “es-
policial civil Luiz Carlos Azeredo Viana, o “Laurin- tado deplorável”. Informações recolhidas pela CNV
do”; Antônio Freitas da Silva, o “Baiano”. mostram que o militante da VPR passou por Petró-
Trecho do depoimento dado por Inês Etienne à OAB em 5 de setembro
polis, mas foi assassinado no DOI-CODI/SP.
de 1979 Carlos Alberto Soares de Freitas, o Breno, ex-mili-
Casa, em novembro de 1973, com a moradora, Silvana Príncipe Ayres da
12. Ordem dos Advogados do Brasil. Depoimento de Inês Etienne Romeu tante da VAR Palmares, preso em fevereiro de 1971, Motta Sobre a militante Marilena Villas Boas Pinto, que
em 1979. Disponível em: http://www.prrj.mpf.mp.br/institucional/crimes-da-
-ditadura/atuacao-1/caso-rubens-paiva-documentos-digitalizados-da-denu-
é apontado como o primeiro militante lá assassina- Crédito: Acerco CEV-Rio/Foto Família Ayres da Motta segundo Inês teria sido a única vitima de Petrópo-
nicia/relatorio-de-ines-etienne-romeu-entregue-ao-conselho-federal-da-oab- 14. Acervo CEV-Rio. Depoimento extraído do Inquérito Civil Público lis cujo corpo foi resgatado do Hospital Central do
-em-18.09.1986/view.. 13. Idem. 1.30.007.000166/2012-13 Anexo IX –MPF/PRM – Petrópolis-RJ.

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Exercito (HCE) e enterrado por seus familiares, em te. Na Auditoria Militar de Juiz de Fora, denunciou na casa em torno de quatro dias, e que foi torturada no local Em dezembro de 2012 foi realizado um ato em Pe-
8 de abril de 1971, no Cemitério São Francisco Xa- ter sofrido torturas, como presa política, em uma tanto física quanto psicologicamente16.” trópolis pela desapropriação da Casa, com a parti-
vier, no Rio. Levantamentos da CEV-Rio demons- “casa que ao que pensa está localizada no caminho cipação de diversos movimentos sociais e ex-presos
tram, porém, que ela não esteve na Casa. de Petrópolis, ficando ali por quatro dias”15. As fotos apresentadas e, a princípio, não reconheci- políticos. Entretanto, até o fechamento deste relató-
das eram da casa da Rua Arthur Barbosa, 50 (antigo rio a desapropriação não havia sido efetivada, com a
Na documentação da CNV consta também, como Jussara, militante da Ação Popular (AP) à época, re- 668), a já mencionada Casa da Morte. alegação dos governos federal, estadual e municipal
assassinado em Petrópolis, o nome de Antônio Joa- lembrou seu cativeiro ao prestar declarações no In- de falta de recursos públicos.
quim Machado, o Quinho, da direção da Var-Palma- quérito Civil Público no qual a procuradora Vanessa O depoimento do ex-delegado do DOPS/ES, Cláudio
res, preso no Rio, em fevereiro de 1971, na operação Seguezzi investiga os possíveis centros clandestinos Guerra, também alimenta a hipótese da existência
que matou Coqueiro, pela delação de Papandreu. de tortura em Petrópolis: de outro centro de prisão e tortura em Petrópolis.
Guerra afirma que a Casa da Morte teria funciona-
Em seu relatório final, a CNV apresenta uma lista “ que, primeiramente, foi presa em Contagem (MG), no do até 1974, apesar dos documentos que mostram
com treze nomes de militantes que teriam passado dia 8 ou 9 de dezembro de 1972, e que, depois de torturada a residência ocupada por Silvana Principe Ayres
pela Casa da Morte. Entre eles dirigentes do Partido por alguns dias, não sabendo precisar quantos, DOPS de Belo da Motta e sua família a partir do final do mês de
Comunista Brasileiro, presos a partir de fevereiro Horizonte, foi levada, de helicóptero, a um quartel no Rio de agosto ou início do mês de setembro de 1973. Uma
de 1974 - David Capistrano da Costa, José Roman Janeiro; daí foi conduzida por uma viatura até uma casa de explicação plausível para estas diferenças de datas
e Walter de Sousa Ribeiro e os militantes da ALN, dois andares, branca, localizada em uma estrada que levava seria a existência de um segundo centro de tortura
Ana Rosa Kucinski Silva e seu marido Wilson Silva, à Petrópolis; durante o trajeto, apesar de estar com os olhos na cidade imperial, muito embora o delegado capi-
presos em 22 de abril de 1974, em São Paulo; Tho- vendados, a depoente pode retirar o capuz de forma sutil e se xaba insista em dizer que foi na casa da Rua Arthur
maz Antônio da Silva Meirelles Neto, preso em 7 de localizar, quando pode perceber que a estavam levando em di- Barbosa que recolheu corpos de militantes. Trata-
maio de 1974; e Issami Nakamura Okano, desapare- reção à Petrópolis e, posteriormente, que estava entrando em -se de mais um mistério com relação aos “aparelhos
cido em maio de 1974. Àquela altura, porém, como um sobrado branco; que, ao adentrar na residência, foi diri- clandestinos” usados pelos militares durante a dita-
vimos acima, a Casa estava desativada, o que afasta gida a um sótão; que durante o período que ficou na casa não dura militar. Ato em dezembro de 2012 pela desapropriação da Casa da Morte
Crédito: Comitê Petrópolis em Luta
a hipótese destes militantes terem passado por ela. ficou de olhos vendados; que quanto as responsáveis por sua
prisão, não sabe precisar, só sabe informar que eram perten- Desapropriação da Casa da Morte e
A hipótese de um segundo centro de centes a órgãos oficiais das forças armadas; que, no entanto, Criação de um Memorial Em 23 de julho de 2014, foi aprovada a Lei muni-
tortura em Petrópolis pode afirmar que durante a sua prisão havia, entre os tortu- cipal n° 7.207, que instituía a Comissão Municipal
radores, agentes do Cenimar e também quadros extra-exército Após a pressão dos movimentos sociais, em agosto da Verdade de Petrópolis. Como desdobramento da
A CEV-Rio, com base em depoimentos, levanta ain- (...) que não sabe indicar o local ou endereço desta casa; que de 2012, a Prefeitura da cidade de Petrópolis editou criação da lei e diante da sua não regulamentação,
da a possibilidade de um segundo centro clandestino sabe informar que ficou presa nessa casa em um cubículo um decreto17 declarando, como de utilidade pública, foi criado, em 18 de abril de 2015, o grupo “Pró-Co-
ter sido montado na cidade de Petrópolis, em ende- escuro (sem janelas) o qual eles denominava de “geladeira”, o imóvel conhecido como a Casa da Morte. Neste missão Municipal da Verdade de Petrópolis”, com o
reço desconhecido. Em 13 de junho de 1972, portan- onde ouvia sons graves e agudos semelhantes, àqueles que ato, determinou que a Casa fosse desapropriada. objetivo de, além de regulamentar a Comissão Mu-
to, sete anos antes de Inês Etienne Romeu revelar posteriormente ouviu quando fez exame de audiometria, pois Em 2013, o decreto foi reeditado e incluiu também o nicipal conforme os critérios legais, fomentar o de-
na OAB a existência de um aparelho clandestino do durante os interrogatórios teve os tímpanos perfurados: (...) imóvel vizinho, pois na época ambos pertenciam ao bate sobre a ditadura na cidade.
Centro de Inteligência do Exército (CIE), a então que não pode afirmar que a casa da foto seja a que esteve pre- mesmo lote em que funcionou o centro clandestino.
cabeleireira (hoje professora universitária), Jussara sa, mas também não exclui a hipótese que permaneceu presa 16. Acervo CEV-Rio. ICP nº 1.30.007.000166/2012-13, Procuradoria da Repú-
Lins Martins (atualmente, Jussara Martins Alber- 15. Depoimento na Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar, Juiz de
blica de Petrópolis, gabinete Dra. Vanessa Seguezzi, termo de declarações de
Jussara Martins Albernaz, em 15/05/2014, à procuradora da República em
naz), aos 25 anos, fez em juízo revelação semelhan- Fora (MG), no dia 13/07/1972, disponível no BNM Digit@al Volume I Tomo I Vitória (ES) Elisandra de Oliveira Olímpio.
pasta 054 pp. 435/438. 17. Decreto Municipal nº 966 de 23 de agosto de 2012.

308 309
4. 1º BATALHÃO DE INFANTARIA nicáveis por longos períodos e submetidos a vários de Infantaria Motorizada (BIMtz), na tentativa de e registrar as instalações e seus entornos.
BLINDADA DO EXÉRCITO (BIB)1 tipos de constrangimentos, quando não a torturas apagar a memória das violências praticadas.
físicas. Quase 300 pessoas, em dois inquéritos poli- Desde a década de 1950, os militares atuaram na re-
ciais militares (IPMs), foram investigadas e denun- pressão e no controle de segurança em Volta Redon-
ciadas. Por falta de provas concretas, praticamente- da e nos municípios vizinhos. A relação orgânica da
todos foram absolvidos. CSN com o Exército teve duas diretrizes: nomeação
de militares de altas patentes (coronéis e generais)
Em 1966, já ministro do Superior Tribunal Militar para diretoria e chefia da empresa e incorporação
(STM), o general Olympio Mourão Filho2 – o pri- dos sargentos e oficiais do BIB ao quadro de inquili-
meiro a movimentar as tropas em abril de 64 – de- nos de casas da CSN, em Volta Redonda, cobrando-
sabafou ao conceder habeas corpus a favor de três -se aluguéis subsidiados, como consta do Relatório
operários da CSN demitidos, presos e processados Final da Pesquisa no Centro de Documentação da
como subversivos: “Não arrisquei meu pescoço na CSN Arquivo Central - CEDOC6.
revolução para que injustiças que acabei de relatar
fossem cometidas”3. Como denunciou Mario Soares Mendonça, defensor
Localização: Rua Prefeito João Chiesse Filho, Centro, Barra Mansa, RJ ad hoc da 3ª Auditoria Militar, dois nomes da dire-
Decisões do STM, libertando aos poucos os presos toria da empresa se destacaram na repressão aos
Erguido em 1950 para garantir a segurança no Vale encarcerados no quartel, não mudaram as arbitra- operários da CSN, quando o 1º BIB instaurou um
do Paraíba, no Sul Fluminense, área estratégica riedades praticadas pelo comando do 1º BIB. Os IPM para investigar grevistas:
com a criação, em Volta Redonda, da Companhia Si- desmandos continuaram e culminaram, em dezem-
derúrgica Nacional (CSN), o 1° Batalhão de Infanta- bro de 1971 e janeiro de 1972, com o assassinato
Antigo Batalhão de Infantaria Blindada do Exército, em Barra Mansa,
serviu como centro de tortura e detenções de 1964 a 1973 e onde se “ Os indiciados no IPM da Companhia Siderúrgica Nacio-
ria Blindada do Exército (1° BIB), na vizinha Barra por torturas de quatro de seus soldados, acusados estruturou a repressão militar para a região Sul Fluminense nal estão sendo vítimas das injustiças e arbitrariedades do
Foto: Alejandra Estevez
Mansa, implantou na região um clima de persegui- de fumarem maconha: Geomar Ribeiro da Silva, atual diretor industrial, engenheiro Mauro Mariano da Silva,
ção, prisões e tortura após o golpe militar de 1964. Wanderlei de Oliveira, Juarez Monção Virote e que, juntamente com o coronel Ene Garcez dos Reis, chefe de
Seu comando associou-se a diretores da CSN na Roberto Vicente da Silva. Há suspeitas de que as O papel repressor do Batalhão fica claro na pesquisa segurança da CSN, eram pessoas de confiança do ex-presiden-
derrubada do governo de João Goulart e perseguiu mortes teriam sido, na verdade, “queima de arqui- “O 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército te João Goulart e ligados ao sindicato7.”
não só empregados da estatal mas também cidadãos vo”. De acordo com Geralsélia Ribeiro da Silva, seu e a repressão militar no Sul Fluminense”, desenvol-
comuns, militantes políticos, líderes sindicais, lei- irmão, Geomar, sabia de corpos “desaparecidos” pe- vido pelo Instituto de Ciências Humanas e Sociais Reforçando a denúncia, apresentou cópia da mensa-
gos e religiosos engajados nos movimentos sociais los militares naquela região4. (ICHS) da Universidade Federal Fluminense, assim gem do cel. Ene, em 13 de março de 1964, liberan-
da Igreja Católica, a partir da posse do bispo dom como no trabalho da Comissão Municipal da Verda- do o ponto aos que fossem ao Comício da Central
Waldyr Calheiros, em dezembro de 1966. Este foi o único caso nos vinte e um de ditadura em de Dom Waldyr Calheiros, de Volta Redonda (CMV- do Brasil. Havia trens gratuitos para o transporte.
que o Exército admitiu – e puniu – as violações co- -VR). Uma diligência ao antigo quartel5 foi organiza- Para o advogado, foi uma incitação aos trabalhado-
Mais de uma centena de empregados da CSN foi metidas em um quartel. Como consequência, em da pela CEV-Rio em outubro de 2014. A visita teve res a participarem do comício, que serviu de pretex-
demitida. Junto com outros presos ficaram incomu- 1972, mudaram o nome do 1º BIB para 22º Batalhão como objetivo identificar os locais onde os presos fo- to para o golpe:
1. Texto em colaboração com o Instituto de Ciências Humanas e Sociais 2. Olympio Mourão Filho foi o primeiro comandante de batalhão a movimen- ram torturados durante o funcionamento do 1º BIB
(ICHS) da Universidade Federal Fluminense (UFF), campus de Volta Re- tar tropas de Juiz de Fora para a Guanabara, dando início ao golpe militar
donda e com o Núcleo de Direitos Humanos do Departamento de Direito da de abril de 1964. 5. A diligência ocorreu em 07/10/2014 e contou com a participação de repre-
PUC-Rio autor da pesquisa “Políticas Públicas de Memória para o Estado do 3. “Empregados da CSN demitidos pelo AI-1 serão indenizados”, Folha da Ci- sentantes da Comissão Nacional da Verdade, da Comissão Municipal da Ver- 6. Resultado do Projeto de Pesquisa da Comissão da Verdade Dom Waldyr
Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não-repetição”, também do dade, de Volta Redonda, 17/06/1987; dade Dom Waldyr Calheiros (CMV-VR), de Volta Redonda, de pesquisadores Calheiros, de Volta Redonda nos Arquivos da CSN.
Projeto Faperj/CEV-Rio e com a Comissão Municipal da Verdade Dom Waldyr 4. Comissão Municipal da Verdade D. Waldir Calheiros. Relatório Parcial. Vol- da Universidade Federal Fluminense (UFF), e dos ex-presos políticos Edir 7. Correio da Manhã, edição de 12 de junho de 1965, pág. 7 – “STM nega estar
Calheiros, de Volta Redonda (CMV-VR). ta Redonda: 16 de maio de 2014. p. 6. Alves de Souza, Antônio Liberato Geremias e Lincoln Botelho. com expediente de Peri”.

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Paralelamente, como se constata por Boletins de sor, sindicalistas, rodoviários. Foram 61 acusados,

cia dele era acabar com tudo e com todos. Tinha ódio de comu-
Após a revolução, estes mesmos dirigentes mudaram de nista. Demitimos muita gente. Todos eles entraram naquele Serviço da CSN15, o novo presidente da estatal, ge- incluindo Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do
lado e começaram a apontar funcionários e operários em do- inquérito, IPM. E todo mundo ligado ao sindicato foi preso11.” neral Pinto da Veiga, instalou uma Comissão de In- PCB, Leonel Brizola, ex-deputado, Maurício Gra-
cumentos reservados, secretos e lacrados, encaminhados ao quérito, presidida pelo diretor comercial, cel. Arnal- bois e Lincoln Cordeiro Oest. Nove empregados da
encarregado do IPM general Luciano Salgado Campos, que A História registra nos primeiros meses após o gol- do Claro São Thiago Filho, com a participação do cel. siderúrgica foram indiciados nos dois inquéritos.
chegou a arrolar mais de 200 indiciados, dos quais 77 foram pe a prisão de 58 empregados da CSN. O primeiro, Sebastião Augusto de Carvalho e do advogado Luiz
denunciados pelo Ministério Público8.” às 10h de 1º de abril, foi o presidente do sindicato Rodrigues de Andrade. Perseguição aos católicos
dos metalúrgicos, João Alves dos Santos Lima Neto,
Ao mesmo tempo, Mariano e o coronel Ene traça- dentro da usina. As detenções se sucederam até 11 O IPM-CSN nada provou contra os cerca de 200 in- A ida de dom Waldyr Calheiros para Volta Redonda,
vam, com o comando do 1º BIB9, um plano emergen- de maio, quando José Machado Feitosa foi rendido. diciados, nem mesmo aqueles 58 que ficaram pre- em dezembro de 1966, alterou as relações da Igre-
cial de funcionamento da estatal para a deposição do Pelos registros contabilizados, 77 empregados foram sos, muitos deles incomunicáveis por longo tempo. ja com os militares. Ao contrário de seu antecessor,
governo, que já se articulava.10 Faziam o jogo duplo, sumariamente demitidos. Com a abertura, a partir O Projeto Brasil Nunca Mais relaciona nove presos dom Altivo Pacheco Ribeiro (1963/65), dom Waldyr,
à revelia do presidente, Almirante Lúcio Meira. Em de abril de 2015, dos arquivos da CSN12, a CMV-VR que, em juízo, denunciaram de maus tratos a desres- simbolicamente ordenado bispo em 1º de maio de
1º de abril, tropas do 1º BIB e da Academia Militar identificou o documento “Relação dos demitidos pela peitos a outros direitos constitucionais dos cidadãos 1964, chegou à diocese influenciado pelas renova-
das Agulhas Negras (AMAN), reprimiram três focos Cia. Siderúrgica Nacional – CSN em consequência no 1º BIB e na AMAN: Alcides Rodrigues Sabença; ções na Igreja, provocadas pelo Concílio Vaticano II,
de resistência na CSN: na Rádio Siderúrgica Nacio- do Ato Institucional nº 1/64 (AI-1)”, que relaciona Brasil Lul Diogo; Dorvano Fabiano; Elias Bondaro- no ano anterior.
nal, que transmitia discursos a favor da legalidade 113 funcionários. Com 11 aposentados pelo AI-1, vsky; Idelfonso Jorge de Aquino e Silva; João Alves
e da greve; no sindicato dos metalúrgicos de Volta sobe para 124 o total de servidores afastados. dos Santos Lima Neto; Joaquim Lourenço de Almei- O primeiro atrito com o comando do 1º BIB foi em
Redonda, onde os filiados armaram trincheiras nas da; Juracy Vieira de Souza, e Oswaldo Carminatti16. março de 1967 quando recusou-se a celebrar a mis-
calçadas; e na usina, onde os trabalhadores deram Os Inquéritos Policiais Militares sa pelo 3º aniversário da “Revolução de 1964”, ex-
início a uma paralisação. O IPM-CSN e o IPM do Major Mito, que investi- pressão de uso militar. O confronto maior surgiu
Logo após 1964, o “Comando Supremo da Revolu- gou a abertura de diretórios municipais do Partido na madrugada de 6 de novembro, com a prisão de
Com o golpe, a direção da CSN e as forças militares ção”, como se autointitulavam os ministros mili- Comunista Brasileiro (PCB), tramitaram paralela- quatro militantes da Juventude Diocesana Católica
lideradas pelo comando do 1º BIB, desencadearam tares autores do golpe, determinou a abertura de mente. O IPM-CSN começou com 58 prisões, che- (Judica)17 pela Polícia do Exército18.
um processo de prisão em massa. Anos depois, o en- Inquéritos Policiais Militares (IPM) em todo o país gou a contabilizar 200 investigados, mas no final
tão diretor industrial, referindo-se ao coronel Nilo para a investigação de atividades consideradas foram 77 denunciados. Entre os acusados, quatro Natanael José da Silva (presidente) e Jorge Gonza-
de Queiróz, comandante do Batalhão, explicou: subversivas. Em 29 de abril, o major Mito Martins engenheiros, um dentista e um advogado, todos ga (diretor esportivo), juntos com o diácono Guy Mi-
Ribeiro foi encarregado de investigar os envolvidos empregados da siderúrgica. chel Camille Thibault, de origem francesa, e o semi-
“ O chefe do BIB era um anticomunista ferrenho, uma coisa nas guarnições de Barra Mansa e Volta Redonda13. narista Carlos Rosa utilizaram a Kombi da diocese
louca. Da linha dura do Exército. Nós até tivemos que segurá- O IPM foi aberto em 1º de maio de 196414. O IPM da “subversão”, presidido pelo Major Mito, para distribuír panfletos em Barra Mansa. A partir
-lo um pouco para não fazer muitas barbaridades. A tendên- atingiu profissionais de várias categorias: comer- do rastro dos papéis, a viatura da PE interceptou-os.
11. PIMENTA, Solange Maria.” A Estratégia de Gestão: fabricando aço e cons- ciantes, industriário, ferroviário, alfaiate, profes-
8. Idem. truindo homens. O caso da Companhia Siderúrgica Nacional”. Dissertação de
9. O comando do Batalhão no período pré-golpe e nos anos da ditadura foi Mestrado, UFMG - 1989. pg. 267.
dividido pelos oficiais: cel. Nilo de Queiroz (06/06/1963 a 25/02/1966); cel. 12. O acesso aos arquivos da CSN foi autorizado após longa negociação, em 15. Boletim de Serviço n° 84/64, da Companhia Siderúrgica Nacional, de 17. A Judica, criada por dom Waldyr, agregava os movimentos de jovens cató-
Danilo Darcy de Sáda Cunha e Mello (25/02/1966 a 31/08/1967); cel. Armênio um acordo assinado pelo ex-presidente da CEV-Rio, Waldih Damous; o presi- 16/04/1964. Acervo pessoal de Genival Luís da Silva. O material encontra- licos existentes na região desde os anos 1950: Juventude Operária Católica
Pereira Gonçalves (31/08/1967 a 18/01/1970); ten. Cel. Ariosvaldo Tavares dente da Comissão Dom Waldyr Calheiros, Alex Martins, e o diretor institu- -se sob os cuidados de pesquisadores da Comissão Municipal da Verdade, (JOC), Associação Católica Juvenil (ACAJ), Comunidade Jovens Cristãos
Gomes da Silva (18/01/1970 a 03/02/1972); ten. cel. João Cássio Martins de cional da empresa, Luiz Paulo Barreto, em 12/02/2015, junto ao procurador da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Fundação Getúlio Vargas (CJC), Juventude Agrária Católica (JAC), Grupo Jovem Cristão (GJC), entre
Souza Santos (03/02/1972 a 20/09/1972); Em 20/09/1972, o 1°BIB transfor- da República em Volta Redonda, Júlio José de Araújo Jr. que intermediou a (FGV), que estão trabalhando na construção do Centro de Memória de Volta outros. Padre Barreto foi designado mentor espiritual do movimento.
mou-se em 22°BIMtz, comandado pelo ten. cel. João Cássio Martins de Souza negociação. O grupo de pesquisadores voluntários foi coordenado por Edgard Redonda. 18. Da patrulha da PE que interceptou os jovens participavam o Segundo
Santos. Domingos Aparecida Tonolli Bedê, da CMV-VR. 16. No Projeto Brasil Nunca Mais BNM digit@l Rel. Brasil - Tomo V, Volume Sargento José de Oliveira Sampaio (comandante), e os solados Argeu Alves
10. Acervo CEV-Rio. Boletim de Serviço n° 71, da Companhia Siderúrgica 13. Projeto Brasil Nunca Mais digital , volume 2 Pasta 116, pág. 43. I p.: 47, 216, 516, 759, 828, Tomo V, Volume II p.: 203, 321, 371, 714; Tomo V, da Costa e Alécio Ribeiro Neves (motorista). Esses militares foram as teste-
Nacional, de 16/04/1964. 14. Projeto Brasil Nunca Mais digital , volume 2 Pasta 116, pág. 41. Volume III, p. 402. munhas do IPM (Relatório Parcial da CMVWC-VR, de maio 2014).

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diocese. No dia 14 de janeiro, dom Waldyr solicitou Durante a noite era retirado da solitária “para ser
O panfleto, considerado “incitação à população con- aflito com questões relacionadas à vida dos traba- audiência ao Coronel Armênio. Na presença de dois torturado em um pavilhão isolado dos demais”22.
tra as autoridades constituídas e contra as Forças lhadores – reajuste salarial, as desigualdades sa- padres, declarou-se preso em solidariedade aos pa- Dom Waldyr, ao saber das torturas ao operário, re-
Armadas”19, criticava o atrelamento do governo au- lariais dentro da estatal, os problemas psíquicos roquianos. Surpreendeu o coronel que convocou au- digiu uma carta-denúncia assinada também por 16
toritário ao imperialismo norte-americano e a situ- que operários estavam tendo, entre outros – en- toridades do município e a imprensa. Dom Waldyr padres. Foi aberto o chamado “IPM das Torturas”.
ação em que viviam os trabalhadores “massacrados, quanto o comandante do 1º BIB, coronel Armênio só deixou o quartel às 21h30. Santini foi solto na Os depoimentos foram públicos, na Câmara dos Ve-
sem salários, sem direitos, forçados a leis desuma- Pereira, preocupava-se em caçar subversivos. mesma noite, mas Bedê ficou preso por envolvimen- readores de Barra Mansa. Em correspondência aos
nas e ao alto custo de vida”. Denunciava ainda a to com “atividades sindicais e políticas”. demais bispos23, dom Waldyr apontou uma tendên-
repressão aos estudantes, à Igreja e a entrega da Lida nas missas e distribuídas aos fiéis, a carta foi cia à manipulação das provas e testemunhas, cujos
educação nacional e das terras no interior do país usada como prova da subversão do bispo nos três Com o AI-5 (13/12/1968) novas prisões ocorreram. depoimentos caminharam, na maioria das vezes, no
aos interesses estadunidenses, o que foi considerado IPMs abertos para investigá-lo. Em novembro de No dia 14 de dezembro, o Exército prendeu o sin- sentido de comprovar o bom tratamento no cárcere e
pelos militares “incitação à população”. Segundo o 1968, em um primeiro julgamento, houve a con- dicalista Genival Luís da Silva, membro do PCBR. de minimizar as denúncias.
relato de Jorge Gonzaga: denação de Guy Thibault – que foi transformada
em extradição para a França – e a de Carlos Rosa,
“ Colocaram a gente no camburão. (...) Eu comecei a falar a oito meses de reclusão. Embora absolvidos em
de futebol com o Natanael e o cara me deu uma coronhada no 1968, Natanael e Jorge Gonzaga foram surpreen-
peito assim ‘você tá achando que isso aqui é brincadeira? Isso didos com nova prisão em maio de 1969. Levados à
é sério!’ (...) Eles queriam incriminar a Igreja, principalmen- Base Aérea do Galeão e depois para o depósito da
te D. Waldyr. Tanto é que me perguntaram quais são os padres Aeronáutica, ficaram presos por nove e dez meses,
e bispos progressistas20.” respectivamente. Sem que soubessem, o Ministério
Público recorreu da sentença e os dois foram conde-
A prisão dos militantes da Judica levou os milita- nados na 2ª Instância.
res a invadirem a casa de dom Waldyr para reali-
zar busca e apreensão no quarto dos presos. Estes Na Semana Santa de 1968, na Igreja de Santa Ce-
episódios mexeram com a própria hierarquia da cília, os padres, com o apoio do bispo, promoveram
Igreja Católica, que viveu um dilema: ao mesmo uma encenação em que representavam um diálogo
tempo que defendia a autonomia da instituição e o entre o Verbo e a Morte, no qual esta questionava
respeito ao bispo, alguns setores evitavam atritos Cristo quanto à importância de seu sacrifício dian-
com os militares. te da persistência de todos os problemas sociais. Em
dezembro, na comemoração do 20º aniversário da
No dia 14 de novembro, dom Waldyr publicou uma Declaração Universal dos Direitos Humanos houve a
carta no Jornal do Brasil, que ficou conhecida como encenação da peça “Zé do Forno”, com fortes críticas
“Os sete pecados capitais”21, na qual mostrava-se às condições de trabalho na CSN e ao regime militar.
19. Conforme relatório do coronel Moacyr Pereira, encarregado do IPM – Pro-
No fundo musical, a canção censurada de Geraldo
jeto Brasil Nunca Mais, Tomo 7 pasta 645, p. 607. Vandré, “Pra não dizer que não falei de flores”.
20. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Jorge Gonzaga à CMV-VR, em 24/03/2014. Último depoimento público dado por dom Waldyr Calheiros antes
Relatório de Pesquisa: O 1º Batalhão de Infantaria Blindada do Exército e de sua morte para as equipes das comissões Nacional, Estadual e 22. Comissão Municipal da Verdade D. Waldir Calheiros. Relatório Parcial.
a repressão militar no Sul Fluminense. Universidade Federal Fluminense Volta Redonda: 16 de maio de 2014. p. 15.
(UFF). Rio de Janeiro, 2015. p. 36 e 37. Tais atos levaram o Exército a prender, em janeiro Municipal da Verdade. Da esquerda para direita: Waldyr Calheiros,
23. Acervo CEV-Rio. Carta de dom Waldyr Calheiros aos bispos, de 17/08/1969.
Nadine Borges, membro da Comissão da Verdade do Rio, e Alex Martins,
21. Acervo CEV-Rio. Declaração de dom Waldyr Calheiros à Imprensa: Os sete
pecados capitais. Relatório de Pesquisa: O 1º Batalhão de Infantaria Blindada
de 1969, os diocesanos Antônio Carlos Santini e Wal- presidente da Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda
Relatório de Pesquisa: O 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército e
a repressão militar no Sul Fluminense. Universidade Federal Fluminense
do Exército e a repressão militar no Sul Fluminense. Universidade Federal dyr Amaral Bedê por participação nas atividades da Crédito: Acervo Comissão Nacional da Verdade/Thiago Vilela (UFF). Rio de Janeiro, 2015. p.54.
Fluminense (UFF). Rio de Janeiro, 2015. p. 38.

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Em 1970 persistiram as perseguições e os alvos fo- que com a máquina elétrica nos dava choques enquanto um timada a recolher seu cadáver. Sinais de violência de Justiça da 2ª Auditoria do Exército, em sessão
ram líderes da Ação Popular (AP) e da Aliança Liber- cabo (Alberto) cantava a música “J. Cristo eu estou aqui25.” eram visíveis: “unhas perfuradas, pulsos com os os- secreta, condenou os envolvidos direta e indireta-
tadora Nacional (ALN). Um ofício do SNI ao 1º BIB sos aparecendo, dedos queimados com a pele caindo, mente: o tenente-coronel Gladstone Pernassetti Tei-
vinculava os jovens da Juventude Operária Católi- A CMV-VR identificou 36 vítimas de torturas entre hematomas nos rins (...), a face com marca de vio- xeira, subcomandante, que respondia pelo quartel;
ca (JOC) à ALN24. Em 2 de novembro, ao distribuir os testemunhos que ouviu. Relacionou a prática de lência, os braços descarnados”26. Um relato de dom o capitão Dálgio Miranda Niebus, que comandava a
panfletos ao lado de Hélio Botelho e João Cândido, 12 tipos de torturas. Os choques foram os mais uti- Waldyr sobre o caso foi levado por dom Ivo Lorschei- equipe; e ainda, o 2°-tenente R/2 Paulo Reinaud Mi-
padre Natanael de Moraes Campos, assistente reli- lizados, atingindo 29 das 36 vítimas. Alguns presos der, secretário-geral da CNBB, ao General Muricy, randa da Silva; os 3°- sargentos Ivã Etel de Oliveira,
gioso da JOC, teve seu carro perseguido pela polícia, relataram queimaduras, palmatória, pau de arara, chefe de Estado-Maior do III Exército. Rubens Martins de Sousa e Sidnei Guedes; os cabos
sofreu um acidente e fraturou a clavícula. Quatro afogamento e simulação de fuzilamento como outras Celso Gomes de Freitas Filho e José Augusto Cruz; e
dias depois, engessado, foi levado preso para o 1º técnicas de torturas. A pocilga, local de criação dos Geralsélia, na CMV-VR, declarou suspeitar que a os policiais civis Nélson Ribeiro de Moura e Iranides
BIB. Também foi preso, em Volta Redonda, o padre porcos, também foi usada. O preso era obrigado a morte do irmão foi queima de arquivo. Como moto- Ferreira. As penas totalizaram 473 anos de prisão,
Arnaldo Alberti Werlang. Foi mais um IPM (65/70) permanecer junto aos porcos. rista, ele mostrava-se decepcionado com o Exército além da expulsão do Exército.
em que indiciaram dom Waldyr. Do 1º BIB, em carta e chegou a falar em “desova” de cadáveres vindos de
manuscrita ao bispo, Padre Natanael narrou: Exército reconhece tortura e assassinatos outros estados. Sua morte, no dia 13, foi a primeira A maior punição foi imposta ao capitão Dálgio Rei-
revelada. Foi enterrado em 14 de janeiro. naud Miranda da Silva, condenado a 84 anos; o
“ em 18 de dezembro, após retirar o gesso (...) fui imedia- Em dezembro de 1971, a violência atingiu 15 recru- tenente-coronel Gladstone Pernassetti pegou sete
tamente transferido para um quarto sem janela, nem água tas do próprio batalhão, acusados do consumo e trá- Em 12 de janeiro, Wanderlei de Oliveira e Juarez anos. No julgamento, foram incriminados o coman-
potável para lavar-me, permanecendo neste ambiente abafa- fico de maconha no quartel. As prisões começaram Monção Virote não resistiram às torturas. Roberto dante, coronel Ariosvaldo Tavares Gomes da Sil-
do e de muito calor, até 7/1/1971. Na noite de 3 para 4 de ja- com o traficante Expedito Botelho Luiz, detido pela Vicente da Silva, bastante ferido, foi para o HCE, va e o 1° tenente médico Eurico Augusto Lopes. O
neiro de 1971 fui levado sem camisa para um recinto fechado, Polícia Civil e levado para o 1° BIB. Seu irmão, o sol- na Guanabara. Faleceu em 25 de janeiro. Os restos capitão Niebus recorreu ao STM e viu os 84 anos
depósito de armas do Quartel, onde encontrei um conhecido dado Botelho, foi preso em 26 de dezembro. Enquan- mortais de Wanderlei e Monção apareceram dias de condenação reduzidos para 26 anos, dos quais
meu (Edir) que estava nu, com ferimentos em várias partes do to Expedito empreendia uma suspeita fuga, seu ir- depois. O primeiro, decapitado e com as mãos am- cumpriu 11. O tenente-coronel Gladstone também
corpo, recebendo choques elétricos e pancadas. Imediatamen- mão, sob tortura, identificou os supostos usuários da putadas, próximo à represa São João Marcos. Sua se beneficiou da redução da pena e cumpriu apenas
te ligaram-me a ele por fios elétricos em um dedo de cada uma droga e, dois dias depois, os soldados Senhorinho, cabeça e mãos estavam dez quilômetros à frente. 10 meses de prisão.
de minhas mãos, acionando uma maquininha que dava se- Getúlio e Ferreira também foram presos. Nos dias Monção foi inicialmente largado às margens da
guidos choques em mim e no outro, simultaneamente. Os cho- 30 e 31 de dezembro ocorreram as prisões dos re- estrada que liga Rio Claro a Angra dos Reis. De-
ques, conforme a intensidade, nos jogava ao chão, recebendo crutas Alves, Peri, Amorim, Gonzaga e Geomar. Já pois, levaram o cadáver para a estrada de Bananal,
logo outro para nos levantarmos (...) um (sargento Isaaque) Wanderlei, Monção, Vicente e Soares foram detidos embeberam-no em gasolina e atearam fogo. Os que
controlava a maquina elétrica, outros dois (cabo Alberto e sar- nos dias 11 e 12 de janeiro. sobreviveram, também sofreram lesões nas tortu-
gento Pires) nos davam socos no estômago e ouvidos, enquan- ras. Desta vez, o Exército não teve como desmentir
to outro (capitão Tenório) exigia que aprovasse ser eu socialis- Geomar Ribeiro da Silva, preso em 31 de dezembro, a denúncia de dom Waldyr.
ta marxista. Sendo um sacerdote, organizaram a seguir uma foi torturado como os demais. Visitado pela irmã Ge-
“procissão” onde o meu companheiro que estava nu e eu sem ralsélia Ribeiro da Silva, em 02 de janeiro, garantiu Foi a única vez durante a ditadura que os militares
camisa, saímos pelo pátio do quartel, ligados um ao outro por que não fazia uso da droga, o que é confirmado pelos reconheceram a prática de torturas em um quartel.
algemas e fios elétricos acompanhávamos um sargento (Pires) recrutas sobreviventes. Dias depois, a família foi in- No dia 17 de março de 1973, o Conselho Especial

24. Acervo CEV-Rio. Ofício n° 160 – E2 do Ministério do Exército, I Exér- 25. Acervo CEV-Rio. Carta do padre Natanael Campos. Relatório de Pesquisa: 26. Acervo CEV-Rio. Carta de dom Waldyr a Dom Ivo Lorscheider, de
cito, Divisão Blindada. Relatório de Pesquisa: O 1º Batalhão de Infantaria O 1° Batalhão de Infantaria Blindada do Exército e a repressão militar no 24/01/1972. Relatório de Pesquisa: O 1º Batalhão de Infantaria Blindada do
Blindada do Exército e a repressão militar no Sul Fluminense. Universidade Sul Fluminense. Universidade Federal Fluminense (UFF). Rio de Janeiro, Exército e a repressão militar no Sul Fluminense. Universidade Federal Flu-
Federal Fluminense (UFF). Rio de Janeiro, 2015. p. 62. 2015. p.65. minense (UFF). Rio de Janeiro, 2015. p.65.

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5. 1ª COMPANHIA DE POLÍCIA DO Jorge2 (hoje conhecido como capitão Guimarães, ban- abertos, equilibrando-se numa perna só3.” da prisão da jovem. O juiz deferiu o pedido, determi-
EXÉRCITO DA VILA MILITAR queiro do jogo do bicho), da seção de informações, a nando que “continue a dita menor à disposição das
aula foi destinada a uma plateia formada por cerca Outro acontecimento que merece destaque foi a pri- autoridades militares, onde se encontra, até que se
de 100 militares, entre oficiais do Exército, da Ma- são, em novembro de 1969, de três militantes ligados ultime o aludido inquérito”6. Em testemunho escri-
rinha e da Aeronáutica. Dez presos políticos foram à organização VAR-Palmares – Francisco Celso Cal- to, entregue à CNV, Maria Luiza conta que:
utilizados como cobaias das diferentes modalidades mon, Maria Luiza Melo Marinho de Albuquerque e
de tortura ensinadas, entre as quais: pau-de-arara, Aretuza Rabelo Garibaldi – efetuada pelo agente do “ Nós três fomos conduzidos juntos para o DOI-CODI no
choques elétricos, palmatória, latas abertas (onde o CIE, Paulo Malhães. Os três foram levados para a Batalhão do Exército na Rua Barão de Mesquita na Tijuca
preso era obrigado a se apoiar descalço) e pedaços PE da Vila Militar, onde foram torturados e man- onde ficamos por alguns dias até sermos levados para a Vila
de ferro roliço (utilizados para esmagar os dedos dos tidos ilegalmente presos. Em testemunho público Militar onde fiquei em torno de 40 dias.(…) apesar da fra-
presos). Em documento coletivo, elaborado em de- prestado à CEV-Rio e à CNV, Calmon relatou: gilidade que aparentava como qualquer adolescente de 16
zembro daquele ano e posteriormente apresentado

anos não fui poupada da brutalidade de uma tortura insana
à Justiça Militar, alguns dos presos denunciaram as Levei choques nas mãos e nos pés, levei muitos chutes nos física e emocional, como se aqueles seres animalescos e doen-
torturas sofridas durante o episódio: rins, nos dois lados, foram buscar o pau de arara e, para mi- tios, muito distante de serem humanos e racionais estivessem


nha felicidade, um outro companheiro que estava lá no pau diante de alguém altamente perigosa e que pudesse apesar da
Localização: Av. Duque de Caxias, Bairro de Deodoro, Zona Oeste, Rio de Janeiro A hora da instrução, cerca de 16 horas, os presos Mau- de arara, parece que tinha quebrado o pau de arara e eu me pouca idade fornecer informações fundamentais para suas
rício de Paiva, Ângelo Pezzuti, Murilo Pinto, Pedro Paulo safei do pau de arara. Havia muita ameaça de estuprar a “investigações”7.”
Localizada entre os bairros de Deodoro e Realengo, Bretas, Afonso Celso Lana, Nilo Sérgio, Júlio Antônio, Irany minha companheira [Maria Luiza], a minha namorada, na
a Vila Militar foi construída no começo do século XX Campos, um ex-PM da GB e um outro preso conhecido como minha frente. Isso nos dois batalhões, no batalhão e na com- Esse fato evidencia que a repressão não poupou se-
para abrigar uma ampla estrutura de treinamento Zezinho foram levados para as proximidades das salas onde panhia. Havia ameaça, também, de colocar a minha mãe nua quer adolescentes, tendo contado com a colaboração
do Exército. Maior concentração militar da América estava se realizando a reunião. Em seguida, fizeram-nos en- na minha frente. Passavam várias vezes medindo a minha do Poder Judiciário para praticar violações de direi-
Latina, ela abrange quartéis, residências, museus, trar na sala, tirar as roupas e, enquanto o tenente Haylton altura e dando a entender que estavam cavando uma cova, tos humanos.
escolas de formação, batalhões policiais, hospital e projetava “slides” explicando a forma de tortura, suas ca- era um tipo de intimidação4.”
estabelecimentos comerciais. Em seu interior, locali- racterísticas e efeitos, os sargentos Andrade Oliveira, Rossoni Além das sistemáticas prisões e torturas, sabe-se
zava-se a 1ª Companhia de Polícia do Exército (PE)1, e Rangel, juntamente com os cabos Mendonça Pouoreli e o Chama ainda mais atenção nesse caso a prisão de que ao menos três militantes políticos foram as-
onde, durante a ditadura de 1964, militantes políti- soldado Marcolino torturavam os presos frente aos cem mi- Maria Luiza, à época com 16 anos. Mesmo sendo sassinados no interior da 1ª Companhia da PE da
cos foram presos, torturados e mortos. litares, numa demonstração ao vivo de vários métodos de adolescente, Maria Luiza permaneceu detida por Vila Militar. Severino Viana Colou, um dos funda-
tortura empregados. Maurício recebeu choques, Bretas teve o cerca de 40 dias no Campo de Instrução de Gerici- dores do Comando de Libertação Nacional (Colina),
Enquanto parte da estrutura repressiva montada dedo comprimido pelos ferrinhos, Murilo teve que subir nas nó5, de onde era encaminhada à Vila Militar para foi morto após ter sido torturado, no dia 24 de maio
pelo Estado ditatorial, em 8 de outubro de 1969, a latinhas de bordas cortantes, Zezinho foi pendurado no pau- interrogatório. A prisão ilegal foi judicialmente cor- de 1969, na cela nº 3 do pavilhão-presídio da Com-
1ª Companhia de PE transformou-se em palco para -de-arara, o ex-PM foi espancado com a palmatória enquan- roborada. O Capitão Celso Lauria, encarregado do panhia. A versão oficial, divulgada pelos órgãos de
uma aula expositiva sobre técnicas de interrogatório to Nilo Sérgio deveria ficar segurando pesos com os braços IPM que investigava a atuação dos militantes, ha- informação, sustentava que o militante havia co-
e tortura. Ministrada pelo capitão Ailton Guimarães via requisitado ao juiz de menores (denominação metido suicídio no interior da cela. A falsa versão
2. Ailton Guimarães Jorge foi identificado pelos ex-presos como o “instrutor”
da aula de tortura. Em entrevista ao Jornal do Brasil, intitulada “Capitão Gui- utilizada à época), Alyrio Cavalliere, a prorrogação foi desconstruída pelo núcleo pericial da CNV que
marães foi professor de tortura”, Sérgio Menezes de Macedo afirmou que o
militar foi o responsável pela aula (Fonte: Projeto Brasil Nunca Mais Digital. identificou inconsistência no laudo de perícia do lo-
Acervo Conselho Mundial de Igreja. Pasta 4290701_9_1 p 600 a 699. p.77). 3. Arquivo Brasil: Nunca Mais Digital: Pasta BNM_042. p.153, 154.
O mesmo foi dito por Nilo Sérgio Macedo, em entrevista ao Jornal do Brasil 4. Arquivo CNV, 00092.000570/2014-21. Testemunho de Francisco Celso Cal-
1. Em novembro de 2012, a 1ª Companhia de Polícia do Exército da Vila Mi- de 23/11/1985 (Fonte: Projeto Brasil Nunca Mais Digital. Acervo Conselho mon para a CNV e a CEV-Rio, prestado em audiência pública realizada em 6. Arquivo Brasil Nunca Mais Digital. Pasta BNM_030. p.111.
litar foi transformada em 11º Batalhão de Polícia do Exército (11o BPE), Mundial de Igreja. 4290701_9_1 p 103 a 201. p.11) e por Maurício Paiva em 24/01/2014. 7. Arquivo CNV, 00092.003150/2014-05: Testemunho de Maria Luiza Melo
subordinado à 1ª Divisão de Exército. (Ver: Portaria do Comandante do Exér- entrevista ao Jornal do Brasil, intitulada “Mineiro acusa bicheiro de profes- 5. Outras mulheres, perseguidas políticas, também ficaram presas nesse lo- Marinho de Albuquerque, de 4 de novembro de 2014, entregue à CNV por
cito nº 874, de 11 de outubro de 2012) sor de tortura”, de 4/11/1986. cal. Francisco Celso Calmon, através de e-mail datado de 5/11/2014.

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cal, produzido à época, e concluiu que a morte de Se- cardíaco. Maria Auxiliadora e Espinosa, no entanto,
verino ocorreu “por homicídio por estrangulamento, desmentiram tal versão em depoimentos prestados “ Como eram duas as salas de tortura, e nós éramos três, “ Os senhores me perdoem, eu era criança e idealista. Hoje
ou por outra causa porventura omitida pela análise à Auditoria Militar, denunciando as torturas sofri- eles colocavam um em cada sala para tomar sessões de cho- sou adulta e materialista, mas continuo sonhando. Dentro da
médico-legal”8. Outro caso ali ocorrido foi o de Lou- das pelos três e a consequente morte de Chael du- que, uma das salas tinha um pau de arara, para pendurar minha represa. E não tem lei nesse mundo que vai impedir o
renço Camelo de Mesquita, filiado ao Partido Comu- rante o interrogatório. Apontaram, em juízo, o nome no pau de arara, e o outro ficava sentado, era bem do lado. boi de voar.
nista Brasileiro (PCB), morto no dia 30 de julho de dos torturadores e responsáveis pela sua morte: Quem sentasse nessa cadeira ouvia os que estavam sendo tor- Sou um boi marcado, uma velha <<terrorista>>. Fui apren-
1977 no interior da cela nº 1 do pavilhão-presídio. capitão João Luís, tenente Celso Lauria e capitão turados. Era uma maneira que eles utilizavam para aquele diz de feiticeiro, não sabia usar a varinha, deu merda. E feia.
A versão oficial da época, que atribuía a causa da Ailton Guimarães10. que estivesse esperando se autotorturasse, ficasse imaginan- Pisei no calcanhar monstro, e ele virou sua pata sobre mim,
morte ao suposto suicídio da vítima, também foi des- do, ficasse configurando na sua cabeça o que aconteceria cego e incontrolável. Fui uma das vítimas inumeráveis do ma-
construída pela CNV, cuja equipe de perícia concluiu Durante audiência pública sobre a Vila Militar, rea- com ele. No momento em que eu fui colocado nesse banco, chão crioulo, monstro verde-amarelo de pés imensos de barro.
que “1. não houve enforcamento e, por consequência, lizada pela CNV em parceria com a CEV-Rio e com a sempre algemado para trás, eu falei: “Bom, como é que eu Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram,
não houve suicídio; 2. Lourenço Camelo de Mesquita Comissão Estadual Memória e Verdade Dom Helder posso me livrar dessa situação? Como é que eu posso ameni- me despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus
foi vítima de homicídio provavelmente no interior de Câmara, em janeiro de 2014, Espinosa esclareceu a zar isso?” Decidi, só tem uma forma de fazer isso, dormir. En- cantos mais íntimos.
instalação militar(…)9. atuação da PE da Vila Militar no momento da prisão tão, eu encostei nessa coluna e disse: “Bom, é sua obrigação Foi um tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos
dos militantes: revolucionária, sua obrigação moral, dormir.” E eu dormi. sufocados, um grito no escuro13.”
O caso que alcançou maior repercussão foi, contudo,

(…) Nós éramos três, eles estavam em 10 a 11, os torturado-
o de Chael Charles Schreier, estudante de medici- Nesse momento, aqui no Rio, eles estavam fazendo uma res, estavam ali dentro. O tenente Aílton, que era tenente Aíl- Em diligência realizada no dia 23 de janeiro de 2014,
na assassinado em 22 de novembro de 1969, após especialização por organizações, deve ter durado um, dois ton Joaquim alguma coisa a mais; o capitão Guimarães, que a CEV-Rio, em conjunto com a CNV, percorreu as
ter sido torturado no interior da 1ª Companhia de meses nessa experiência. E (…) a PE da Vila Militar era um já fazia a conexão entre a ditadura, entre a tirania vigente instalações da 1ª Companhia da PE da Vila Militar,
PE. Integrante da VAR-Palmares, Chael foi preso lugar para onde eram levados os militantes da VAR-Palmares no Brasil e o crime organizado, o jogo do bicho e, depois, acompanhada de quatro ex-presos políticos: Antonio
no dia 21 de novembro junto com outros dois mili- presos. Então, o DOPS prendeu, mas na mesma madrugada, também, o tráfico de drogas, capitão Guimarães. O capitão Roberto Espinosa, Amílcar Baiardi, Silvio Da-Rin e
tantes da mesma organização, Maria Auxiliadora nós fomos levados para a PE. A PE também prendia. Eu falo Celso Lauria, que era o comandante da companhia e que Francisco Celso Calmon Ferreira Silva. Apesar das
Lara Barcellos e Antônio Roberto Espinosa. Os três isso por ouvir dizer, porque eu passaria lá 29 dias. De todos coordenava esses eventos. Estavam na sala dois sargentos, o transformações ocorridas no espaço, eles consegui-
foram levados para a PE da Vila Militar, onde fo- que passaram por lá, provavelmente, eu era o que menos sargento Rossoni, sargento Andrade e mais um cabo, que eu ram identificar as celas (solitárias e coletivas) e o
ram submetidos a intensas sessões de tortura, que conheceu, conheceu menos bem, porque só foram 29 dias da não sei o nome, um soldado velho, um soldado engajado, que refeitório em que recebiam visitas de familiares e
levaram à morte de Chael no dia seguinte. Jornais solitária para a sala de tortura, da tortura para a solitária. eu também não sei o nome, e esse cabo Mendonça12.” advogados. Da-Rin, detido em novembro de 1969,
internacionais, como o New York Times, Le Monde e Até hoje o tilintar de chaves no fundo de um corredor me in- descreveu o pavilhão onde ocorriam as torturas:
The Times, noticiaram o ocorrido, gerando constran- A passagem pela Vila Militar também marcou tra-

comoda, porque isso significa o que vem depois, está certo?11”
gimento internacional à ditaura. gicamente o destino de Maria Auxiliadora. Após ser Nós entrávamos na unidade, o carro passava pelo portão
Espinosa ainda narrou as torturas ali sofridas, in- banida do país em 1971, a militante partiu para o e imediatamente à direita ficava um pavilhão. Esse pavilhão
A versão oficial para a morte de Chael, registrada dicando o nome dos agentes estatais responsáveis exílio, primeiro no Chile e depois na Alemanha. Em era dividido em três partes. Uma parte mais administrativa,
pelo II Exército, dizia que os três militantes teriam (capitão Aílton Joaquim, capitão Ailton Guimarães, razão dos traumas decorrentes da tortura, Maria com salas onde eram praticadas torturas, e um corredor em
sido feridos em confronto e que Chael, em estado capitão Celso Lauria e os sargentos Rossoni e An- Auxiliadora cometeu suicídio em 1976, atirando-se frente a essas salas que terminava com um banheiro à direita.
grave, teria sido encaminhado ao HCE, vindo a fa- drade): nos trilhos da estação de metrô Charlottenburg, em E nesse corredor haviam quatro celas. Uma primeira à direi-
lecer posteriormente em decorrência de um ataque 10. BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial Berlim. Em um texto escrito antes de morrer, a jo- ta, chamada X1 (xadrez um) e à esquerda dois, três e quatro,
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Co-
missão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria vem descreve o período em que o país vivia, ao qual que eram bem mais amplas e coletivas. Fora desse pavilhão,
8. Arquivo CNV. 00092.002224/2014- 88. Laudo Pericial Indireto produzido em
decorrência da morte de Severino Viana Colou.
Especial dos Direitos Humanos, 2007. p. 110.
11. Arquivo CNV, 00092.000570/2014-21. Testemunho de Antônio Roberto Es-
denominou de “um tempo sem sorrisos”:
9. Arquivo CNV. Análise Pericial dos elementos materiais produzidos em de- pinosa para a CNV e a CEV-Rio, prestado em audiência pública realizada em 13. CAVALCANTI, Pedro Celso Uchôa; RAMOS, Jovelino (org.). Memórias do
corrência da morte de Lourenço Camelo de Mesquita. 24/01/2014. 12. Idem. exílio, Brasil 1964-19??. 1ª Ed. Editora Arcadia, 1976, p. 315.

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imediatamente colado nesse pavilhão, dentro desse conjunto 6. HOSPITAL CENTRAL DO EXÉRCITO cias específicas do hospital, como a enfermaria psi-
de casas, haviam quatro celas individuais solitárias, aquelas quiátrica e a 13ª enfermaria prisional, descrita no
que no final tem um orifício, o “boi” para dejetos, para neces- croqui em destaque, elaborado por um grupo de ex-
sidades. Esse era o conjunto. Essa parte que eu disse adminis- -presos políticos atendidos pelo Projeto Clínicas do
trativa, entre aspas, podia entrar por um lado ou pelo outro. Testemunho do Rio de Janeiro.
E ai você tinha duas grandes salas. Uma que era de uso mais
dos militares, com mesa e tal para tomada de depoimento e a
outra sala era uma sala vazia, onde havia instrumentos de
tortura: cavaletes, barras de ferro que era o famigerado pau-
-de-arara, máquinas de gerar correntes elétricas para choques
elétricos, palmatórias e outros instrumentos de suplício14.”

A diligência ajudou a comprovar que a 1ª Compa-


nhia de PE da Vila Militar, originalmente criado
CNV e CEV-Rio fazem diligência de reconhecimento na Vila Militar com
para apurar crimes praticados por militares, teve a presença de ex-presos políticos Localização: Rua Francisco Manoel, nº 126, Benfica, Rio de Janeiro, RJ

suas funções inteiramente desviadas nos anos da Foto: Acervo Comissão Nacional da Verdade/Thiago Vilela

ditadura, servindo de local para a prisão ilegal, tor- O Hospital Central do Exército (HCE) foi uma im-
tura e assassinato de opositores do regime. Como Durante a ditadura, outros espaços da Vila Militar portante peça na estrutura repressiva montada
conclui Sílvio Da-Rin, foram utilizados para a prisão de militantes políti- pela ditadura militar no estado do Rio de Janeiro.
cos que ali permaneceram enquanto aguardavam À época, o espaço cumpriu duas funções principais:
“ Uma Companhia de Polícia do Exército certamente foi julgamento, como, por exemplo, o 1º Regimento de recuperar os presos políticos que haviam sido tor-
criada para apurar, investigar crimes, delitos, infrações pra- Infantaria Motorizado (1º BIMtz-Es) - Regimento turados em outros órgãos oficiais ou clandestinos, Croqui da 13ª Enfermaria no HCE
Crédito: Mapa feito pelo grupo de ex-presos políticos atendido pelo projeto
ticadas por militares. Algumas delas que viriam a ser julga- Sampaio, a sede da Brigada de Infantaria Paraque- para que pudessem ser novamente submetidos a Clínicas do Testemunho do Rio de Janeiro (Comissão de Anistia/MJ)
das na Justiça Militar. Todo esse conjunto policial e judicial dista do Exército, o Regimento de Cavalaria Meca- interrogatório; e forjar laudos periciais de vítimas
especializado foi inteiramente desviado das suas funções, na nizada, o Regimento Floriano Peixoto, o Regimento mortas por agentes do Estado. O local encontra-se
medida em que, unidades como a Polícia do Exército, várias de Obuses, o Regimento de Infantaria e a Compa- ainda associado à morte e ao desaparecimento for- A decisão dos agentes da repressão de internar os
outras unidades, não só no Exército, mas, também na Mari- nhia de Material Bélico. çado de militantes que faziam oposição à ditadura, presos políticos visava, em regra, garantir a recupe-
nha e na Aeronáutica, foram desviadas de suas funções precí- dentre os quais destacam-se: Manoel Alves de Oli- ração física das vítimas para que, posteriormente,
puas e orientadas a combater atividades de grupos políticos. veira, que faleceu em 1964 no interior do HCE, após pudessem retornar para a tortura, bem como possi-
Usando, então, dependências da União, dependências públi- ser preso e torturado na Vila Militar; Raul Amaro bilitar a continuidade das torturas psicológicas. Tal
cas. As armas, as fardas, tudo aquilo que era patrimônio da Nin Ferreira, morto em 1971 após ser interrogado constatação se evidencia em uma série de testemu-
União, símbolos da República pra prender, reprimir, torturar, e torturado nas dependências do hospital; e Marile- nhos. O caso de Estrella Bohadana é um dos mais
em alguns casos, matar brasileiros que estavam exercendo o na Villas Boas, que faleceu em 1971 no interior do emblemáticos. Detida e torturada no 1º Batalhão de
direito, como disse o Espinosa aqui, legítimo de se rebelar, se hospital após ter sido sequestrada e torturada por Infantaria Blindada de Barra Mansa, e posterior-
insurgir contra uma tirania15.” agentes da repressão. mente levada ao DOI-CODI, onde foi submetida a
violentas torturas que lhe causaram um aborto, Es-
14. Arquivo CNV. Vídeo Diligência Técnica Vila Militar realizada em
23/01/2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aviyKDP7Si4 Durante a ditadura militar, os militantes encami- trella foi encaminhada ao HCE, aonde já chegou em
15. Arquivo CNV, 00092.000570/2014-21. Testemunho de Silvio Da-Rin para nhados para o HCE ficavam detidos em dependên- estado de coma. Nas palavras da militante:
a CNV e a CEV-Rio, prestado em audiência pública realizada em 24/01/2014.

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dias de terror, até o dia 25 de dezembro, dia de natal, sen-
O estado em que se voltava da tortura era, em geral, um do que a noite inteira do natal eu passei ouvindo gritos de
estado muito, muito lamentável. Realmente se não fosse essa torturados e esperando a minha vez de ser levado. Talvez
ida pro hospital (…) Eu cheguei lá, entrei em coma e perdi eu tenha sido poupado porque eu tive uma convulsão. Eles
a noção de tudo. Quando voltei, eu já estava dentro de uma pararam de me dar remédio durante três dias e aí me leva-
cela, dentro do hospital. E aí foi um período longo, sem poder ram de volta para o HCE. (…) O diretor do HCE na época
andar, com muitas fragilidades físicas. Mas mesmo assim, os era o general Galeno, o vice-diretor era o tenente-coronel Dr.
depoimentos continuam, lá dentro mesmo do Hospital, claro Aquino e ainda havia os Drs. Oscar, Elias e Mota. O chefe da
que sem tortura física, mas visivelmente com a tortura psico- segurança foi o major Sadi, depois substituído pelo capitão
lógica, emocional, quer dizer, com muitas ameaças. Você está Morais, que nos tratava excepcionalmente como seres huma-
presa no hospital e ser ameaçada “assim que sair do hospital, nos. O responsável pelo tratamento de presos e presas era o
vamos te quebrar, vamos acontecer, vamos te sumir”. Então, major Boia que preparava a gente pra voltar pra tortura
era um negócio muito violento, do ponto de vista emocional. quando tivesse melhorado2.”
Lá mesmo no HCE, tive contato com outros companheiros.
Marcos Arruda, que estava na ala masculina, que também Mas há evidências de que, além de espaço para a re-
tinha sido barbaramente torturado. Ali, ninguém tinha sido cuperação de presos políticos, o HCE era ele próprio
menos que barbaramente torturado. E porque não suportou palco de interrogatórios e tortura física. Foi o que
fisicamente, foi parar no hospital. O hospital não era garantia recentemente se comprovou no caso de Raul Ama-
de nada. Eu, por exemplo, quando saí do hospital, voltei a ser ro Nin Ferreira, membro da rede de apoio ao MR-8,
torturada. Voltei para Barra Mansa e lá voltei a ser torturada, preso em 1º de agosto de 1971, levado para o DOPS
tudo de novo. Quer dizer, quando eu achava que a coisa já e, posteriormente, para o DOI-CODI, onde foi inter-
tinha parado. Porque realmente, o que podem querer de um rogado sob tortura. Devido à violência sofrida, em 4
preso depois de três meses de tortura? Não tem mais nada de de agosto daquele ano, Raul foi levado ao HCE, onde
informação pra dar. Existe o lado sádico, maquiavélico (…) faleceu cerca de uma semana depois. Investigação para ocultar as verdadeiras causas da morte de Fachada do Hospital Central do Exército
Foto: Acervo Comissão Nacional da Verdade/Fabrício Faria
De fato, era uma situação de absoluta desigualdade1.” empreendida pelos familiares de Raul Amaro e pela militantes, assassinados por agentes do Estado; e
CEV-Rio constatou que Raul passou por interrogató- para ocultar a sistemática prática de tortura con- Vale ressaltar, nesse sentido, o caso de Severino
Marcos Arruda, em testemunho cedido à CEV-Rio, rio nas dependências do hospital no dia 11 de agosto, tra opositores à ditadura. Para tanto, os médicos, Viana Colou, morto em 1969, nas dependências da
relatou ter sido transferido do HCE diretamente sofrendo novas sessões de tortura3. na maioria dos casos, concediam declarações ates- 1ª Companhia de Polícia do Exército, na Vila Mili-
para o DOI-CODI, destacando que o hospital servia tando a morte do indivíduo no interior do hospital, tar de Deodoro, no Rio de Janeiro. O auto de autóp-
para “preparar” os militantes para novos interroga- Além da assistência e cooperação com a prática quando, na realidade, o mesmo já havia chegado sia, lavrado pelo serviço médico do HCE, reiterava
tórios: de prisão ilegal e tortura, o HCE desempenhou morto em suas dependências; atribuíam falsas a versão oficial de que Severino havia se suicidado
outra função central na estrutura da repressão: versões ao óbito das vítimas, alegando ter ocorrido no interior de sua cela. A equipe pericial da CNV
“ No DOI-CODI do Rio de Janeiro, a única pessoa que eu re- forjar laudos periciais de vítimas da repressão. “suicídio”, “atropelamento” ou “morte em tiroteio”, conseguiu desconstruir dita versão e identificar as
tenho o nome é o capitão Gomes Carneiro, que liderou o meu Tal ação se dava, principalmente, por duas razões: quando, de fato, as mesmas haviam sido assassi- inconsistências do laudo, tendo concluído que Seve-
transporte do Hospital Central do Exército para o DOI-CODI, nadas por agentes estatais; bem como omitiam, rino fora assassinado por agentes da repressão. De
2. Acervo CEV-Rio Testemunho de Marcos Arruda no Testemunho da Ver-
no dia 22 de dezembro de 1970. Eu passei no DOI-CODI três dade sobre o Papel das Igrejas durante a Ditadura, concedido à CEV-Rio em seus laudos, dados sobre as lesões corporais acordo com a CNV, sua morte ocorreu “por homicídio
1. Testemunho de Estrella Bohadana. Projeto “Torre das Donzelas”. Dispo-
e à CNV em setembro de 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=AfyfGMQ2TWM que indicavam a ocorrência de tortura. por estrangulamento, ou por outra causa porventu-
nível em: http://www.torredasdonzelas.com.br/vozes-da-memoria-videos/ 3. O caso de Raul Amaro Nin Ferreira é abordado, de maneira aprofundada, ra omitida pela análise médico-legal”. Outro caso re-
estrella-dalva-bohadana/. no capítulo 13 deste Relatório.

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levante é o de José Mendes de Sá Roriz, membro do Em 23 de setembro de 2014, a CNV e a CEV-Rio re- César Ribeiro – conseguiram reconhecer o prédio, nicas do Testemunho do Rio de Janeiro (Comissão
Partido Comunista Brasileiro, que, segundo a CNV, alizaram diligência no HCE a fim de buscar os pron- onde provavelmente ficava situada a carceragem/ de Anistia/MJ), o Testemunho da Verdade sobre o
foi morto sob tortura em 1973 no interior do DOI- tuários médicos relativos ao período da ditadura mi- enfermaria à época de suas prisões. HCE, em 30 de julho de 2015. Na ocasião, foram
-CODI. Sua certidão de óbito declarava, contudo, litar e de identificar os locais para os quais os presos ouvidos testemunhos de ex-presos políticos – Ana
que José Mendes havia morrido dentro do HCE e políticos eram levados no interior do hospital. Os Posteriormente, em 14 de novembro de 2014, o Bursztyn Miranda, Antonio Rodrigues da Costa, Fá-
não definia a causa de sua morte, afirmando que a prontuários não foram encontrados, tendo o Exér- Ministério Público Federal (MPF), com o apoio tima Setúbal, Marcos Arruda e Paulo César Azevedo
determinação desta dependeria “dos exames labora- cito negado a sua existência. Apesar das alterações da Polícia Federal, cumpriu mandado de busca e Ribeiro – que compartilharam suas experiências de
toriais solicitados”. ocorridas no interior do espaço, principalmente em apreensão no interior do HCE. Uma denúncia anô- quando estiveram internados no local, relatando o
razão de obras realizadas a partir do final da década nima, feita ao MPF, revelara que prontuários de constrangimento sofrido, a medicalização intensiva
A história do HCE traz à tona uma importante dis- de oitenta, ex-presos políticos que acompanharam a presos políticos foram deliberadamente escondidos utilizada e a negativa do hospital em entregar os
cussão sobre a atuação de profissionais médicos du- diligência – Marcos Arruda, Ana Miranda e Paulo nas vésperas da diligência feita pelas comissões em prontuários médicos. Antônio Rodrigues da Costa,
rante a ditadura militar. Em vez de salvar vidas e setembro daquele ano, e estariam escondidos em ex-paraquedista do Exército, internado nove meses
atentar para a saúde dos enfermos, alguns destes um prédio anexo ao hospital. Durante a operação, no setor psiquiátrico do HCE, contou que:
profissionais foram cúmplices da prática de graves foram encontrados, em uma sala trancada de um
violações de direitos humanos. A participação de prédio adjacente, prontuários de 1940 a 1969 e de “ Ameaçavam me dar choques nos testículos se eu não to-
médicos em ato de tortura incluía a sua presença 1975 a 1983, além de sacos plásticos com fichas de masse os medicamentos que eles mandavam. No início eu ten-
em interrogatórios a fim de supervisionar as ações pacientes atendidos durante a ditadura militar, tei burlar os médicos, porque eu ficava muito dopado e, às
e reanimar o indivíduo, ministrando-lhe tratamento ficando comprovado que o Exército havia, de fato, vezes, dormia dois dias seguidos5.”
antes, durante ou depois de ser torturado. O médi- ocultado documentos relevantes. Foram ainda lo-
co determinava se o preso poderia continuar sendo calizados, na mesma ocasião, dossiês com nome, Convidado pela CEV-Rio, o procurador Sérgio Suia-
seviciado ou se era preciso diminuir o grau de vio- foto e informações de membros e assessores das co- ma relatou aos presentes que, devido a uma limi-
lência a fim de que o torturado não perdesse a cons- missões que participaram da diligência. nar concedida pelo Tribunal Regional Federal ao
ciência. A participação dos médicos abarcava, ainda, general reformado José Antonio Nogueira Belham,
a omissão de provas e a falsificação de relatórios, No dia 09 de dezembro de 2014, a CEV-Rio realizou ex-comandante do DOI-CODI do Rio de Janeiro en-
autópsias e certidões de óbito. Era frequente, nesse uma audiência pública para entregar os prontuários tre 1970 e 1971, o andamento da busca e apreensão
sentido, o acobertamento de sinais evidentes de seví- médicos de três militantes que ficaram internados no HCE foi suspenso. Embora o MPF tenha entrado
cias e a ocultação da real causa mortis daqueles que no HCE no período de 1970 e 1971: Maria Dalva com recurso, até hoje, familiares de mortos e desa-
foram assassinados. Havia, por fim, a ocultação de Bonet, Abigail Paranhos e Vera Silvia Magalhães. parecidos, bem como ex-presos políticos, lutam para
corpos. Os médicos legistas, comumente vinculados A documentação foi encontrada pela Comissão nos ter acesso aos seus prontuários médicos.
à Secretaria de Segurança Pública, contribuíram, arquivos do ditador Médici, no Instituto Histórico e
em alguns casos, para o desaparecimento forçado Geográfico Brasileiro. Essa foi mais uma evidência
de militantes. No Rio de Janeiro, pode-se identificar de que os presidentes militares sempre estiveram
nomes de médicos que serviram aos propósitos do cientes das torturas praticadas pelos agentes da
regime militar. São eles: Rubens Pedro Macuco Ja- repressão e de que os prontuários existem e estão
nini, Amílcar Lobo, Ricardo Agnese Fayad, Olympio sendo ocultados pelas Forças Armadas, em pleno
Pereira da Silva4. período democrático.

Prontuários Ocultados da Diligência de 23 de setembro de 2014


4. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da Foto: MPF A CEV-Rio promoveu em parceria com o projeto Clí- 5. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Antonio Rodrigues da Costa no Testemu-
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume I, pp. 877, 918, 923, 926. nho da Verdade sobre o HCE em 30/07/2015.

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7. BASE AÉREA DO GALEÃO Verdade registraram casos de militantes mortos ou militares que, contrários ao golpe de Estado de 1964 rizada pelo Exército brasileiro e levados do Galeão
desaparecidos nas dependências da Base Aérea do ou considerados insubordinados, foram presos e tor- para a prisão clandestina “El campito”, no Campo
Galeão, entre os quais: turados no seu interior. Segundo o Relatório Final de Mayo, na Argentina, e desde então permanecem
da CNV3, Adir Figueira, cabo da Aeronáutica que desaparecidos. Este caso é representativo do esque-
• Severino Elias de Mello, morto na Base Aérea trabalhava na Estação de Comunicação da Base Aé- ma de cooperação repressiva internacional que se
em 30 de julho de 1965, após ter sido preso rea do Galeão, em 1978, relatou ter sido preso em estabeleceu entre os países do Cone-Sul ao longo da
para suposta averiguação no âmbito de um In- uma cela solitária e torturado com golpes de cassete- segunda metade do século XX e que se intensificou
quérito Policial Militar instaurado no Núcleo te durante duas semanas por ter esbarrado no então e se sistematizou durante as ditaduras militares da
do Parque de Material Bélico da Aeronáutica; Ministro da Aeronáutica, Joelmir Campos de Arari- região, através da Operação Condor.
pe Macedo, ao entrar com urgência na sala de tráfe-
• Eiraldo de Palha Freire, preso e torturado no go militar. Adir ainda afirmou ter sido preso outras No período inicial da abertura política, o Galeão foi
interior da Base Aérea após participar de uma cinco vezes, acusado de colaborar com organizações também palco de manifestações pela anistia e pela
tentativa de sequestro de um avião, com o ob- de esquerda4. Já José Bezerra da Silva, cabo da Ae- liberdade dos presos políticos e dos militantes exi-
jetivo de trocar os passageiros por presos polí- ronáutica durante o regime militar, serviu na Base lados. Nos meses que se seguiram à aprovação da
Localização: Estrada do Galeão, s/nº, Ilha do Governador, Rio de Janeiro, RJ ticos. Faleceu no interior do Hospital da Aero- entre 1971 e 1979, relatou ter sido preso e torturado Lei da Anistia (Lei 6.683), em 28 de agosto 1979, o
náutica do Galeão; após opinar sobre as sessões de torturas contra pre- aeroporto do Galeão foi um dos principais locais por
A Base Aérea do Galeão abrigou, a partir de 1970, sos políticos. Belmiro Demétrio, ex-militar cassado, onde passaram os exilados políticos que retornaram
a sede do Centro de Informações de Segurança da • J
osé Gomes Teixeira, preso por agentes do afirmou, por sua vez, ter sido preso e torturado na ao Brasil. Familiares e amigos somaram-se às cen-
Aeronáutica (CISA), órgão de informação instalado CISA em 11 de junho de 1971 e levado para a Base Aérea por ter dito para seu comandante, du- tenas de integrantes do movimento pró-anistia que
no âmbito do Ministério da Aeronáutica e que jun- Base Aérea do Galeão, onde foi torturado, com rante uma partida de futebol, que nada tinha contra encheram os saguões do aeroporto para a recepção
tamente com o Centro de Informações do Exército a finalidade de informar a localização de Car- o presidente João Goulart. daqueles que regressavam. Fernando Gabeira, Leo-
(CIE) e o Centro de Informações da Marinha (Ceni- los Lamarca, e posteriormente assassinado no nel Brizola, Miguel Arraes, Francisco Julião, Mar-
mar) constituiu as três mais temidas siglas do perí- dia 23 de junho do mesmo ano; Em razão da proximidade com o Aeroporto Interna- cio Moreira Alves, Dulce Maia, Helena Salém e Luís
odo. Em 1971, o CISA foi transferido para Brasília, cional, a Base Aérea do Galeão cumpriu ainda papel Carlos Prestes, esse último recebido por milhares de
mas manteve o Escalão Recuado do CISA (ReCisa) • Ivan Mota Dias, preso por agentes do CISA em estratégico para a prisão de militantes exilados e de pessoas, foram algumas das figuras públicas que pu-
na cidade do Rio de Janeiro, uma vez que o foco da Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 15 de maio estrangeiros que tentavam retornar para o seu país deram retornar do exílio no final da década de 1970.
repressão estava voltado para o eixo Rio-São Paulo1. de 1971, e levado para a Base Aérea do Ga- de origem ou entrar no Brasil. Em 1980, durante pe-
O complexo da Base Aérea foi utilizado, principal- leão, permanecendo desaparecido até os dias ríodo de abertura política no Brasil, Horácio Domin- No dia 30 de maio de 2014, a CEV-Rio acompanhou
mente entre os anos de 1970 e 1979, como centro de de hoje; go Campiglia e Mônica Susana Pinus de Binstock, a diligência na Base Aérea do Galeão, realizada pela
tortura, desaparecimento forçado e morte de oposi- ambos argentinos integrantes da organização polí- CNV. Cinco testemunhas, Jefferson Lopetegui de
tores da ditadura2. • Stuart Edgar Angel Jones, sequestrado por tico-militar argentina Montoneros, foram presos no Alencar, Osório Cardim, Adir Figueira, Jório Gon-
agentes da repressão em 14 maio de 1971 e dia 12 de março, após desembarcarem no Aeroporto çalves Dantas e José Bezerra da Silva, identifica-
A Comissão Especial sobre Mortos e Desapareci- levado para a Base Aérea do Galeão, onde foi do Galeão, durante uma escala de um vôo vindo do ram os locais onde eram efetuadas as prisões, os in-
dos Políticos, a Comissão de Familiares de Mortos torturado e morto, permanecendo até hoje des- México. O casal foi sequestrado por oficiais argenti- terrogatórios e as sessões de tortura.
e Desaparecidos Políticos e a Comissão Nacional da conhecido o paradeiro de seu corpo. nos do Batalhão 601, durante uma operação auto-
De acordo com os relatos das testemunhas, os mi-
1. ISHAQ, Viven. FRANCO, Pablo E.; SOUSA, Teresa E. A escrita da repressão
e da subversão, 1964-1985. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012, p. 86. Também fazem parte da memória do local casos de 3. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume I. p. 754. litantes políticos eram levados para salas ou celas
2. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da violações de direitos humanos perpetradas contra 4. Arquivo CNV, 00092.002084/2013-67. Testemunho de Adir Figueira para a oficiais situadas no interior de três prédios do com-
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume I. p. 753. CNV em 16/04/2013.

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plexo da Base Aérea do Galeão: o prédio de custó- Adir Figueira – A presos políticos, tanto militar como civis5.” 8. INSTITUTO PENAL CÂNDIDO paço com os prisioneiros comuns. O térreo e o primei-
dia da Base Aérea, o prédio do antigo Pelotão de MENDES (PRESÍDIO ILHA GRANDE) ro andar do edifício central eram destinados a esses
Investigação Criminal da Polícia da Aeronáutica e De acordo com Adir Figueira e José Bezerra da Sil- presos, enquanto uma galeria no segundo andar era
o prédio do comando da Base Aérea, onde funcio- va, o conjunto de celas foi parcialmente soterrado ocupada pelos presos políticos, em um regime mais
nava o Setor de Investigação e Justiça. Segundo os com 30 toneladas de concreto na década de 1980 e o fechado. A convivência entre os dois grupos gerou
testemunhos, havia também um conjunto de celas que restou do local foi transformado em uma área de um processo de politização dos presos comuns, que
clandestinas subterrâneas destinadas aos presos lazer chamada “Clube do Mickey”6. passaram a ter contato com hábitos de organização,
políticos, onde era proibida a entrada de oficiais como a constituição de um fundo coletivo (uma des-
que não fossem autorizados pelo CISA e pela Com- “ Diziam que enquanto estavam torturando os presos aqui pensa comum onde os alimentos trazidos aos presos
panhia de Polícia da Aeronáutica (PA). O acesso dentro, a banda de música que ficava naquele prédio aqui do pelos familiares eram guardados e depois partilha-
ao “presídio subterrâneo” do CISA era restringido lado ficava tocando aqui. Quando a banda de música estava dos entre todos) e de um colegiado (um pequeno gru-
por uma cancela, localizada no pátio anterior, onde tocando, nós sabíamos que estava havendo sessão de tortura7.” po escolhido pelos presos para representá-los frente
ficava um guarda à paisana limitando a circula- à administração do presídio)2. O início desse contato
ção dos oficiais. Os presos que por ali transitavam Apesar de comprovadas as graves violações de direi- com presos políticos na Ilha Grande foi relatado por
eram mantidos encapuzados para dificultar o reco- tos humanos perpetradas no interior da Base Aérea William da Silva Lima no livro 400 Contra Um: uma
nhecimento do espaço. Em testemunho prestado a do Galeão, a Aeronáutica insiste até hoje em negá- Localização: Dois Rios, Ilha Grande, Angra dos Reis, RJ História do Comando Vermelho, em que narra:
CNV, Adir Figueira esclarece: -las, adotando um posicionamento comum às três
Forças Armadas que se recusam a pedir perdão à Instalado na Ilha Grande (situada na baía da Ilha “

Logo depois [da fuga da penitenciária Lemos de Brito
Adir Figueira – Tinha uma prisão subterrânea para outro sociedade brasileira pelos crimes do passado. Grande, costa oeste do Estado do Rio de Janeiro), em 26 de maio de 1969], os presos políticos que estavam no
tipo de preso. o Instituto Penal Cândido Mendes (IPCM) recebeu continente foram transferidos para uma galeria da Ilha
CNV - Essa prisão subterrânea também ficava na base aérea grande número de presos comuns e políticos durante Grande, isolados dos demais. Foi, para todos, um choque. Eu
do Galeão? a ditadura militar. Ao longo de seu funcionamento, convivia diretamente com cerca de cinquenta deles, a maio-
Adir Figueira – Também na base aérea do Galeão. (…) o presídio tornou-se conhecido pelas torturas físicas ria marinheiros, muito integrados à coletividade, hábeis no
CNV - E essa prisão subterrânea ficava onde? e psicológicas e pelo tratamento degradante impos- artesanato, nos esportes e nas artes. A transferência desses
Adir Figueira – É uma pergunta até complexa, porque infor- to aos internos por parte de agentes de segurança. companheiros para a Ilha Grande modificou nossa rotina.
mar exatamente o ponto dela lógico que eu sei, conheço muito Como forma de protesto, os presos divulgaram abai- Pouco podíamos fazer, mas fizemos, pelo menos simbolica-
bem, entendeu, eu acho que eu preferia levar uma comissão lá xo-assinados de denúncias publicados pela impren- mente: reorganizamos e levamos à vitória o 25 de Março,
e mostrar: “É aqui, escava que é aqui”. sa e fizeram diversas manifestações internas, entre time de futebol que lembrava a data do levante que trouxera
CNV – Mas está soterrada? elas duas grandes greves de fome, realizadas, res- os marinheiros à prisão3.”
Adir Figueira – Ela está soterrada. pectivamente, em 1971, durante 17 dias, e em 1975,
CNV – Mas construíram alguma coisa em cima? (…) ao longo de 18 dias1. Ainda que, para aqueles considerados pela repres-
Adir Figueira – Não, até a data de 2010 nada foi construída são como uma ameaça ao regime, a condição de
em cima dela. Com o golpe de 1964, e sobretudo após 1969, com preso político gerasse um caráter de oficialidade ao
CNV - Mas você viu essa prisão ou você ouviu falar? a edição da Lei de Segurança Nacional, muitos dos encarceramento, diminuindo assim os riscos de se-
Adir Figueira – Eu vi a prisão (…) Já estive na prisão. Ela 5. Arquivo CNV, 00092.002084/2013-67. Testemunho de Adir Figueira para a presos políticos acusados de oposição ao regime mi- rem assassinados ou de se tornarem desaparecidos,
CNV em 16/04/2013.
fica sete metros de fundura com muitas celas dentro. 6. Arquivo CNV. Vídeo da diligência da CNV à Base Aérea do Galeão. Disponí- litar foram enviados para o instituto, dividindo o es-
vel em: https://www.youtube.com/watch?v=6Hr9-0uGCpk 2. MALAVOTA, Leandro Miranda. O início da falange vermelha. In: XXIII Sim-
CNV - E ela era destinada a quem? 7. Arquivo CNV. Testemunho de José Bezerra da Silva concedido à CNV du- 1. VIANA, Gilney; CIPRIANO, Perly. Fome de liberdade:a luta dos presos po- pósio Nacional de História. Anpuh-Londrina, 2005, p. 3.
rante a diligência à Base Aérea do Galeão. Disponível em https://www.youtu- líticos pela anistia. 2ª Ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. pp. 3. LIMA, William da Silva. Quatrocentos contra um: uma história do Comando
be.com/watch?v=6Hr9-0uGCpk 41-45. Vermelho. 2ª Ed. São Paulo: Labortexto Editorial, 2001. p.38-39.

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as péssimas condições do presídio. Entre os presos geis para atravessar a baía, correndo risco de ficar à deri-
que assinaram o documento e participaram da gre- va. Com essa greve de fome eu quase morri, parecia aquelas
ve, encontravam-se Zaqueu José Bento, Paulo Ro- pessoas do holocausto. Minha boca e garganta encheram de
berto Jabour, Alex Polari de Alverga, Manoel Henri- afta, eu não conseguia nem tomar o soro. Mas estou aqui
que Ferreira, Carlos Alberto Sales, Fernando Palha para contar essa história8.”
Freire, Paulo Sergio Paranhos, Jorge Raimundo Jr.
e Romulo Noronha de Albuquerque6. No manifesto, No início dos anos 1980, com a abertura política, os
os presos afirmavam sobre a prisão: jornais passaram a publicar matérias corroborando
as denúncias de uso da tortura de maneira sistemá-
“ o aspecto mais grave deste isolamento liga-se ao fato de tica no instituto. É o caso do Jornal do Brasil que,
favorecer enormemente a prática de violências e arbitrarie- em 17 de dezembro de 1981, trouxe à tona a decla-
dades contra presos políticos e comuns. Ainda no início do ração do então diretor do Departamento do Siste-
mês passado, os jornais divulgaram a notícia do assassinato ma Penitenciário (Desipe), Antonio Vicente, confir-
de dois internos deste presídio, vítimas dos espancamentos mando a existência de tortura no Presídio Cândido
que sofreram nas mãos de guardas e policiais militares. A Mendes. Destacava a manchete: “Desipe admite que
este relato poderíamos acrescentar incontáveis outros. Esta presos da Ilha foram torturados”9.
realidade particular, entendida dentro de uma situação
Presídio de Ilha Grande Colônia Dois Rios
a permanência no IPCM trazia condições de vida Crédito: Acervo Museu do Cárcere mais ampla, isto é, das constantes violações dos direitos hu- Uma das formas de tortura denunciadas era aplica-
degradantes. Os testemunhos relatam as precárias manos dos presos políticos brasileiros, levou-nos a concluir da aos presos que tentavam fugir e ficou conhecida
condições da prisão, com edifícios em ruínas, falta Direitos da Pessoa Humana, vinculada ao Ministé- que nossa permanência aqui significa a perspectiva de um como “pinguim”. A denúncia partiu da promotora
de higiene nos cômodos e banheiros, falta d’água, rio da Justiça. Recebida a autorização, Albagli cons- aniquilamento lento, ou então, uma saída mais rápida, con- Nilda Maria Baptista, da Comarca de Angra dos
além de celas superlotadas e úmidas. Os detentos tatou a situação altamente precária dos detentos e, figurada em nosso massacre (…)7” Reis, tendo sido publicada pelo jornal O Globo em
doentes não contavam com qualquer atenção médica a partir de então, passou a também ser monitorado- abril de 1982. Descrevia o tratamento dado a três
e ficavam em meio aos demais4. pela repressão5. A greve de fome estendeu-se até 22 de maio de 1975 e presos que tentaram fugir do Instituto Penal e que,
foi vitoriosa, resultando na transferência dos presos ao serem encontrados por policiais da instituição,
Destaca-se ainda a existência da cela conhecida A situação precária levou os presos a protestarem políticos para o Complexo Penitenciário da Frei Ca- foram amarrados em árvores, já exaustos da fuga, e
como “surda”, nome atribuído a uma espécie de so- diversas vezes através da realização de greves de neca, concluída no ano seguinte. Em audiência pú- colocados na “posição vertical, amarrados a pedaços
litária, onde os presos acusados de mau comporta- fome. A primeira grande greve foi realizada em 1971 blica promovida pela CEV-Rio e pela CNV, em 2013, de madeiras fincados ao chão”. Outro pedaço de ma-
mento eram trancados e ficavam impossibilitados e visava a obtenção de alojamentos específicos para o marinheiro Joaquim Aurélio de Oliveira, preso em deira atravessava as costas dos detentos “de modo
de frequentar os banhos de sol. Outras denúncias os presos políticos separados dos demais detentos, 1974 por participar de uma reunião no Sindicato dos que seus pés não tocassem o solo, ficando, em conse-
foram feitas pelo preso político Demístocles Batista bem como melhores condições carcerárias. A segun- Marinheiros e levado para o presídio em Ilha Gran- quência, todo o peso do corpo sustentado pelos bra-
ao médico Benjamin Albagli que, em 1970, solicitou da, por sua vez, teve início em 5 de maio de 1975, de, lembrou-se do episódio: ços”. A promotora ainda acrescentou que o tenente
uma visita ao estabelecimento penal de Ilha Grande quando 33 presos políticos entraram em greve de responsável pela tortura acionava a manivela de um
a fim de verificar a real condição dos presos. Fez-se a fome, exigindo que fossem transferidos para outro “ Participei de uma greve de fome de 16 dias. Nossa luta aparelho que dava choque elétrico nos torturados10.
solicitação à Secretaria de Justiça do antigo estado estabelecimento penal situado no continente. Ela- era sair de lá da Ilha, porque nossas esposas não tinham
8. ACERVO CEV-Rio. Testemunho de Joaquim Aurélio de Oliveira para a
da Guanabara, em nome da Comissão de Defesa dos boraram ainda um abaixo-assinado denunciando como ir ver a gente. Elas se cotizavam, pegavam barcos frá- CEV-Rio em 12 de agosto de 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=8PR5jGTrzcI
5. Disponível em: http://www.documentosrevelados.com.br/depoimentos- 6. Disponível em: http://arquivosdaditadura.com.br/documento/galeria/con- 9. JORNAL DO BRASIL. Rio de Janeiro, 17/12/1981, p. 14.
4. PEREIRA, Vany Leston Pessione. Ilha Grande: a masmorra verde. In: Âmbi- -torturas-denuncias-ditadura/medico-foi-perseguido-pela-ditadura-por-de- junto-documentos-sobre-situacao-preso-0 10. PEREIRA, Vany Leston Pessione. Ilha Grande: a masmorra verde. In: Âm-
to Jurídico, Rio Grande, XII, n. 62, mar 2009. nunciar-torturas-aos-presos-da-ilha-grande/ 7. Idem. bito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 62, mar 2009.

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Em março de 1983, o periódico Última Hora tam- 9. COMPLEXO PENITENCIÁRIO FREI vou para a penitenciária Lemos de Brito integrantes
bém publicou matéria de página inteira denuncian- CANECA de movimentos sociais, sindicalistas e militares re-
do o tratamento recebido pelo detentos no presídio: belados. Entre eles, os participantes da revolta dos
marinheiros, no Rio de Janeiro, e do levante dos sar-
“ Além de outras acusações, como falta de assistência mé- gentos da Base Aérea de Brasília. Três anos depois,
dica ou jurídica, maus-tratos físicos, falta de qualquer tipo foram incorporados mais trinta presos na Guerrilha
de diálogo com a direção, os detentos enumeram outros casos de Caparaó (1966-1967), movimento armado de opo-
específicos: falta de respeito para com as visitas, colocação de sição à ditadura, formado por ex-militares cassados.
maconha em determinados lugares para forjar flagrantes, in-
citamento à rebelião, instalação de presos rebeldes em celas Em 1969, nasceu no interior do presídio o Movimen-
onde há camas com estrados de ferro, propiciando a fabrica- to Armado Revolucionário (MAR), fruto do convívio
ção de estoques para que se matem entre si, humilhação siste- entre militares rebeldes e presos comuns. Seis pre-
mática para provocar rebeldia, esquecimento de detentos em sos políticos (Avelino Capitani, Marcos Antônio da
celas surdas, negativa de alimentação11.” Silva Lima, Antônio José Duarte, Antônio Prestes
Paula, Benedito Alves de Campos e José Adeildo Ra-
Apenas em 1994 o presídio foi definitivamente de- mos) e três comuns (André Borges, Roberto Cietto e
sativado e implodido por decisão do então governa- José Michel Godói) foram protagonistas, em 26 de
dor Leonel Brizola. Hoje, ainda é possível encontrar (Localização: Rua Frei Caneca, no 463, Estácio, Rio de Janeiro, RJ) maio de 1969, de uma espetacular fuga do presídio.
ruínas da construção que abrigou o IPCM. O local Em liberdade, o grupo tentou organizar um foco de
foi entregue pelo governo do Estado à Universidade O conjunto Penitenciário Frei Caneca é depositário guerrilha na região da Serra do Mar, próximo a An-
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que mantém ali de uma longa tradição de arbitrariedades e de lutas gra dos Reis. Novamente presos, dois deles foram
um ecomuseu, o Museu do Cárcere. no sistema carcerário do Rio de Janeiro. Erguido em mortos. Roberto Cietto sob tortura, no 1º Batalhão
meados do século XIX na região do Catumbi, próxi- de Polícia do Exército, e o marinheiro Marcos An-
mo ao Morro de São Carlos, o local foi inicialmen- tônio da Silva Lima em confronto com militares da
te usado para o encarceramento de negros, pobres PE, em janeiro de 1970, no Rio de Janeiro.
e imigrantes. A partir do Estado Novo, o complexo
passou a ser usado também como prisão política e A partir de 1975, o presídio da Frei Caneca passou
tornou-se conhecido por ser o local de detenção de a concentrar um grande número de militantes de
opositores do regime implantado por Getúlio Var- organizações armadas, acusados de violar a Lei de
gas, como Luis Carlos Prestes, Olga Benário, Nise Segurança Nacional (1969)1. Para lá também foram
da Silveira, Apolônio de Carvalho, Mario Lago e enviados os prisioneiros do Instituto Penal Cândi-
Graciliano Ramos. Durante a ditadura de 1964, do Mendes, na Ilha Grande. No total, cerca de 60
abrigou militantes condenados pela Lei de Seguran- presos foram alojados em um refeitório desativado
ça Nacional.Neste período, foi palco de manifesta- da Penitenciária Milton Dias Moreira, apelidado
ções de protesto e greves de fome dos detidos, que ironicamente por eles de “Cinema Íris”. O reconhe-
reivindicavam uma anistia ampla e irrestrita.
1. Por essa lei, ficava estabelecida a prisão perpétua e a pena de morte no
Brasil e os condenados por crimes nela previstos, tivessem conotação política
A repressão desencadeada após o golpe de 1964 le- ou não, seguiam processo na Justiça Militar e cumpriam penas em presídios
11. JORNAL ÚLTIMA HORA. Edição de 28/03/1983, p. 13. e celas comuns.

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cimento da condição de presos políticos e as conquis- artistas e intelectuais4. Alcançou ampla repercussão liberdade condicional. Muitos, contudo, tiveram que Ao longo dos anos, o Complexo ficou conhecido pelas
tas resultantes foram decorrentes de lutas e de anos na imprensa nacional e internacional. O objetivo aguardar a aprovação da Constituição Federal de frequentes denúncias de tortura e pelas péssimas
de resistência nos cárceres. Nas palavras de Gilney era pressionar a aprovação de uma Lei de Anistia 1988 para obterem a liberdade. condições de alimentação, higiene e habitação dos
Viana e Perly Cipriano: ampla, geral e irrestrita, contrária à proposta de detentos, situação agravada pela superlotação das
anistia parcial, apresentada pelo governo. De acordo celas. Em 2003, o governo estadual decidiu desati-
“ A sobrevivência político-ideológica, essencial para os pre- com Gilney Viana e Perly Cipriano, presos no Com- var o Complexo Frei Caneca. Três anos depois foram
sos políticos, se tornava dramática. O simples mas fundamen- plexo Frei Caneca, a anistia era um assunto central demolidas as penitenciárias Milton Dias Ferreira,
tal reconhecimento de nossa condição de presos políticos nos naquele momento e envolvia: Lemos de Brito e Romero Neto. O que restou do
conjunto foi implodido no dia 13 de março de 2010,

custou anos e anos de resistência, de esforços, preocupação,
lutas a cada dia, diante de cada guarda, policial, tribunal todo o processo de prisões arbitrárias, torturas, processos mantendo-se apenas o pórtico, tombado pela prefei-
militar, comandante ou diretor de prisão. Muitas vezes ti- e julgamentos viciados, entraves políticos da parte da Jus- tura do Rio de Janeiro em 2006. O terreno deu lugar
vemos que travar a luta em três frentes: pela sobrevivência tiça Militar para nossa soltura, os longos anos de cárcere a um projeto de moradia popular.
física; pelo respeito aos mais elementares direitos da pessoa em condições muitas vezes degradantes e desrespeitosas aos
humana incluindo a luta contra as torturas e maus tratos de direitos humanos e de cidadãos, e especialmente de presos
que eram vítimas os presos comuns; e pelo respeito aos direitos políticos, os casos dos companheiros assassinados nas câ-
cidadãos, em especial à nossa condição de presos políticos2.” maras de tortura e a responsabilidade das autoridades do
regime sobre tudo isso. Pretendíamos fazer ver que a questão
Foi no Complexo Frei Caneca que o movimento Anistia não se resumia à simples votação do projeto, mas
Darcy Ribeiro, Antônio Houaiss e Oscar Niemeyer conversam com os
pela anistia atingiu maior visibilidade. Em 1977, compreendia todo o processo político pelo qual a sociedade presos políticos Jorge Raymundo, Manoel Henrique Ferreira e Perly
os presos políticos da Penitenciária Milton Dias questionava o regime militar e almejava sua substituição Cipriano na penitenciária.
Foto: Acervo Exposição Fotográfica “30 anos de luta pela anistia no
Moreira, em solidariedade às companheiras detidas por um regime democrático5.” Brasil” da Comissão de Anistia
no Presídio Feminino Talavera Bruce, em Bangu,
aderiram à greve de fome promovida pelas presas A greve de fome acabou no dia 22 agosto de 1979, Após a libertação dos presos políticos, o anexo da
para denunciar os maus tratos e reivindicar a com a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei de Penitenciária Milton Dias Moreira passou a concen-
transferência das mesmas para uma ala especial do Anistia. A lei aprovada excluía os presos políticos trar os presos comuns condenados pela Lei de Se-
Complexo Frei Caneca. considerados responsáveis por atentados terroristas gurança Nacional. William da Silva Lima, em seu
e assassinatos e criava a figura do “crime conexo”, livro “Quatrocentos contra um”, descreve a situação
Na luta pela anistia, durou 32 dias a greve de fome uma extensão da anistia aos agentes estatais per- do presídio em 1983:
mais longa dos presos detidos no Complexo Frei Ca- petradores de graves violações de direitos huma-
neca3. Iniciada em 22 de julho de 1979, teve a adesão nos. Os presos envolvidos nos chamados “crimes de “ Estamos num anexo do presídio Milton Dias Moreira. Os
de presos em outros estados e contou com o apoio sangue” não foram libertados de imediato. Alguns presos políticos que aguardavam a anistia já foram. A nova
de várias entidades (como a OAB e a CNBB), e de foram obrigados a cumprir integralmente a conde- direção do sistema insiste em nos manter isolados. Somos 34
nação, enquanto outros tiveram suas penas diminu- presos e apenas uma certeza: tão cedo não sairemos daqui,
ídas pela reforma da Lei de Segurança Nacional em pelo menos pelas vias legais. Há mais de 10 anos a maioria
2. CIPRIANO, Perly, VIANA, Gilney A. Fome de liberdade: a luta dos presos 1978, que permitiu a progressão para o regime de de nós roda como peão pelas cadeias do Rio de Janeiro. Fugir
políticos pela anistia. 2ª Ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 40.
3. Dentre os quais: Paulo Roberto Jabur, Gilney Viana, Carlos Alberto Sales, novamente, para não apodrecer – é o que resta6.”
Jesus Parede Soto, Jorge Santos Odria, Jorge Raimundo Junior, Antônio Pe- 4. Inclusive Gilberto Gil, Luís Melodia, Jorge Mautner, Chico Buarque, Milton
reira Mattos, Perly Cipriano, Paulo Henrique Oliveira da Rocha Lins, Alex Nascimento, Oscar Niemeyer, Darcy Ribeiro, Ziraldo e Antônio Houaiss.
Polari, Nelson Rodrigues, Manoel Henrique Pereira, José Roberto Rezende, 5. CIPRIANO, Perly, VIANA, Gilney A. Fome de liberdade: a luta dos presos 6. LIMA, William da Silva. Quatrocentos contra um: Uma história do coman-
Helio da Silva e José André Borges. políticos pela anistia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. p. 66. do vermelho. 1ª Ed: Editora Vozes, 1991. p. 18.

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10. INSTITUTO PENAL TALAVERA 17.000 m², dos quais 8.000 m² são edificados, possui ram ao presídio bastante machucadas e ainda com
BRUCE um portão principal com grades de ferro e é cerca- marcas das sevícias a que haviam sido anteriormen- “ Depois desse período [no BIB de Barra Mansa], eu fui leva-
da por muros de três a cinco metros de altura. As te submetidas. Apesar de não se ter notícia da re- da de volta pro Rio. Fiquei no DOPS fazendo depoimento dois
presas políticas, para lá encaminhadas a partir do alização de interrogatórios sob tortura, no interior ou três dias, com uma tortura já mais branda, porque eu tam-
início dos anos setenta, ficavam, em regra, detidas da penitenciária, relatos de ex-presas políticas des- bém já tava toda quebrada. E fui mandada pro Presídio Tala-
em um pavilhão exclusivo, separadas das demais tacam as péssimas condições da prisão, com celas vera Bruce. Lá, eu cheguei toda enfaixada por causa das cos-
presas. O espaço contava com um pátio interno e se mínimas e insalubres, bem como a imposição de cas- telas que doíam muito. Tava com tudo quebrado, toda roxa. E
dividia em duas galerias. A primeira galeria era for- tigos (como a permanência em solitárias e em celas ai já tinham presas companheiras no pavilhão de presas polí-
mada por celas de aproximadamente dois metros de sujas, com animais em seu interior) e de isolamento ticas. Não fui mandada para esse pavilhão porque elas iriam
comprimento por um de largura. A segunda galeria, forçado (na área destinada ao manicômio judicial). testemunhar o estado em que eu cheguei. E ai me colocaram
por sua vez, permanecia sempre fechada por uma Jessie Jane, Estrella Bohadana e Dulce Pandolfi, na ala do presídio que era de doentes mentais. E lá eu fiquei.
grade de ferro, próxima da qual se situavam o ba- respectivamente, resgatam, em suas narrativas, a Encontrei a companheira Jessie Jane e Dulce Pandolfi. Cada
nheiro e o fogão, ambos de uso coletivo das internas. memória do espaço: uma numa cela isolada. E ali ficamos durante muito tempo,


isoladas e privadas de contato com as outras companheiras.
As celas permaneciam abertas de manhã e eram Eu me encontrava no Presídio Talavera Bruce saindo (…) Eu mesma cheguei a ficar de castigo por desobediência à
fechadas durante a noite, cabendo às próprias pre- do CISA, o Centro de Informação da Aeronáutica, após ter direção do presídio, a ficar num negócio chamada surda, que
sas políticas a limpeza do pavilhão. As militan- sido presa no dia 1º daquele mesmo ano. Aquele era um é uma cela baixinha, cheia de bicho, e que você fica ali dentro
tes tinham direito a tomar banho de sol por uma tempo difícil nas prisões, vivíamos sob muitas restrições. sendo punido3.”
hora diariamente e, nos sábados, podiam receber

Quando cheguei a Bangu, bairro onde se localiza o presí-
Localização: Estrada do Guandu do Sena, no 1902, Gericinó, Rio de Janeiro, RJ visitas por duas horas. Estes encontros eram, no dio sobre o qual nos referimos aqui, o coletivo de presas Eu acuso a diretora do Presídio Talavera Bruce em Bangu,
entanto, marcados pela constante vigilância dos políticas era composto por militantes de várias organiza- no Rio de Janeiro, que me deixou durante seis meses sozinha,
A Penitenciária Talavera Bruce, parte do complexo agentes de segurança, que costumavam deixar os ções, e eram em grande número. No princípio não me per- isolada, numa cela mínima, insalubre, chamada solitária.
de Gericinó (também conhecido como complexo pe- familiares esperando por longas horas e que, não mitiram ir para o pavilhão onde estavam aquelas compa- Em solitárias semelhantes estavam, naquele mesmo período,
nitenciário de Bangu) foi inaugurada no início da raro, estragavam objetos pessoais e alimentos que nheiras. Fui mantida em isolamento por muitos meses em as presas políticas Estrela e Jessie Jane4.”
década de quarenta, tendo sido a primeira unida- eram levados às presas, sob o argumento de que os um corredor onde ficavam presas comuns consideradas
de prisional no estado do Rio de Janeiro destinada estariam inspecionando. Como forma de retaliação malucas, isto é, presas que haviam sido enquadradas no História marcante do Presídio Talavera Bruce, que
a abrigar somente mulheres. Durante a ditadura às presas, quando grupos de esquerda realizavam artigo 121 do Código Penal. No início de 1971, chegaram expõe as dificuldades enfrentadas pelas mulheres
militar, militantes políticas acusadas de oposição ações contra o regime militar, as correspondências, outras companheiras que também foram levadas para presas, foi a de Jessie Jane e sua filha, Leta. Mili-
ao regime – entre as quais Estrella Bohadana, Inês os banhos de sol e as visitas eram suspensas pela este mesmo lugar. Me refiro especificamente à Dulce Pan- tante da Ação Libertadora Nacional (ALN), Jessie
Etienne Romeu, Jessie Jane, Zenaide Machado de direção do presídio1. dolfi, Estrella Bohadana, e outra companheira que ficou Jane foi capturada em julho de 1970 por agentes
Oliveira, Maria Luiza Araújo, Dulce Pandolfi, Ieda pouco tempo entre nós, que se chama, ou se chamava, da repressão e levada para o DOI-CODI/RJ. Conde-
Santos, Iná Meireles, Sandra Dias, Leila Abreu, Ta- De modo geral, as presas políticas encaminhadas ao Margarida, uma companheira da AP, se não me engano. nada pela Justiça Militar a dezoito anos de prisão,
nia Fayal, Francisca Abigail Paranhos, Sônia Hin- Presídio Talavera Bruce já haviam passado por ou- Em meados de 1971, creio que foi em junho ou julho, fo- permaneceu presa no Talavera Bruce por nove anos.
ds, Norma Sá Pereira, Ziléa Resnik, Lúcia Murat, tros centros de prisão e tortura como, por exemplo, mos incorporadas ao coletivo (…)2.” Nesse período, conseguiu autorização judicial para
Emilia Silveira, Lilian Schalders e Maria Dalva Lei- o DOPS/GB, o DOI-CODI/RJ ou o 1º BIB de Barra casar-se com seu companheiro, Colombo Vieira de
te de Castro – permaneceram ali detidas. Mansa. Por conta disso, algumas militantes chega-
2. Acervo da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva.. 3. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Estrella Bohadana para a Comissão Muni-
1. SANTOS, Rodrigo da Fonseca Vieira Justen dos. Memória e Informação: Transcrição da 49ª audiência pública (oitiva dos depoimentos sobre o caso cipal de Volta Redonda em 07/03/2013.
A penitenciária, que ocupa uma área de cerca de Ex-prisioneiras políticas e espaço prisional. - XII Encontro regional de His- Solange Gomes). 7 de junho de 2013. Disponível em: http://verdadeaberta. 4. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Dulce Pandolfi para a CEV-Rio em
tória, Anpuh-Rj. 2006. org/upload/003-transcricao-audiencia-publica.pdf 28/05/2013.

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Souza, detido no Instituto Penal Cândido Mendes, se estivesse entendendo tudo o que ocorria. Ficou acordada a noite. E a quantidade de medicamentos é absurda. (...) O que pessoa humana e, muito particularmente, às suas especifi-
em Ilha Grande. Em 1975, após conquistarem o di- noite inteira e, na manhã seguinte, pegou o pai pela mão e foi pra nós, presas políticas, acontecia nos cetros de tortura, pra cidades advindas das questões de gênero. Isso porque há um
reito à visita íntima, Jesse engravidou na prisão. apresentá-lo aos gatos da casa5.” presa comum, acontece dentro do próprio presídio. A tortura conjunto de direitos das mulheres presas que são violados de
Um mês antes do nascimento da filha, a militante foi se dá ali dentro. (…) Nós, presas políticas, já estávamos sob a modo acentuado pelo Estado, que vão desde a desatenção a di-
transferida para o hospital penitenciário, permane- Como forma de resistência e de denúncia das situa- guarda dos advogados. Quando você chega no presídio, difi- reitos essenciais como à saúde e, em última análise, à vida, até
cendo isolada em uma pequena cela. Frente à recusa ções humilhantes e desrespeitosas a que eram sub- cilmente podem desaparecer com você. Mas a presa comum, aqueles implicados numa política garantidora de direitos so-
dos hospitais militares de realizarem o parto, Jessie metidas, as presas políticas realizaram greves de não. Tudo se passa ali. Ali é um centro de tortura também. ciais como a educação, o trabalho e a preservação de vínculos
Jane, com a ajuda financeira de outros companhei- fome no interior do presídio. Entre os anos de 1970 Não é só tortura pelas péssimas condições, pela quantidade e relações familiares8.”
ros, foi encaminhada para uma clínica particular, e 1972, foram feitas duas greves, cuja principal rei- de gente. Mas no caso do pavilhão de doentes mentais, pela
onde foi mantida sob constante vigilância policial. vindicação era a melhoria das condições da alimen- quantidade de medicamento que se recebe, que é uma coisa de
Leta nasceu no dia 20 de setembro de 1975. Dois tação oferecida às detentas. Em 1977, a estratégia louco. Nós conseguíamos burlar isso, colocando remédio aqui,
dias depois, mãe e filha voltaram para o presídio Ta- seria novamente utilizada, dessa vez em prol da fingindo que tomava e não tomava. Mas as presas comuns,
lavera Bruce, onde permaneceram juntas por alguns transferência das militantes para uma ala especial não. Pelo menos uma se suicidou e nós sabíamos que ela ia se
meses. Tanto no hospital quanto no presídio, Jesse do Complexo Frei Caneca, onde se encontravam ou- suicidar. Chegamos a avisar pra guarda e eles diziam “não, é
recebeu ameaças de militares que afirmavam que tros presos políticos. Essa última greve contou com a porque vocês não entendem nada do presídio, todas dizem que
matariam sua filha, realizando o que eles chama- adesão de presos políticos dos presídios Milton Dias vão se suicidar”. Até o dia em que ela se suicidou realmente7.”
vam de operação Jacarta (em referência à matança Moreira (no Complexo Frei Caneca), Esmeraldino
de comunistas realizada na Indonésia). Para que a Bandeira (em Bangu) e Lemos de Brito (Salvador, A violação dos direitos das mulheres presas ainda
filha não crescesse entre as grades do presídio, Jesse BA), mas, apesar do amplo apoio, a reivindicação é ponto central a ser enfrentado no âmbito do siste-
entregou Leta aos cuidados da família de seu com- não foi atendida6. ma carcerário do estado do Rio de Janeiro. De acor-
panheiro. Nas palavras da ex-militante: do com dados do Departamento Penitenciário do
Com a aprovação da Lei de Anistia, em 1979, o pre- Ministério da Justiça/DEPEN, entre 2007 e 2011,
“ Leta permaneceu comigo somente nos primeiros meses de sídio Talavera Bruce deixou de abrigar presas po- houve expressivo aumento da população carcerária
vida, quando a entreguei aos cuidados da família do Colom- líticas. A libertação das militantes, apesar de re- feminina do estado, passando de 1.463 para 1.908
bo. E aquele foi o momento mais dramático em toda a minha presentar uma importante vitória na luta contra detentas. O Mecanismo Estadual de Prevenção e
existência. Uma dor dilacerante, sem igual. Pela legislação a ditadura, não alterou o cotidiano de violações de Combate à tortura do Rio de Janeiro apontou, em
penitenciária, Leta poderia permanecer no presídio até os 6 direitos humanos no interior do presídio. Como bem seu relatório do ano de 2012, a omissão do Estado
anos, na creche que existia à época, quando então teria que ser destacado pela ex-presa política Estrella Bohadana, na garantia dos direitos fundamentais das mulhe-
entregue à família ou a um juiz. Eu optei por tirá-la daquele aquele espaço era para as presas comuns o que o res submetidas à medidas de restrição de liberdade,
ambiente entendendo que ela não deveria crescer entre aque- centro de tortura era para as presas políticas. evidenciando as continuidades de um passado que
se atualiza constante em nosso presente:

las grades e que deveria ter uma vida familiar normal entre


os primos e desfrutar a sua infância como todas as crianças Realmente, na prisão, a pior coisa é quando você perde a
têm direito. (…) No dia 6 de fevereiro de 1979 fomos soltos noção do tempo e do espaço. São dois elementos fundamentais No encarceramento feminino há uma histórica omissão
e, na saída da prisão, lá estava ela. Linda, no colo das avós para você se manter minimamente lúcida. E isso eles tiram. A dos poderes públicos, manifesta na completa ausência de
– minha mãe, rompendo com as proibições que a impediam luz fica eternamente acesa, então você não sabe se é dia ou se é quaisquer políticas públicas que considerem a mulher encar-
de voltar ao país, resolveu que naquele momento estaria ali 5. SÃO PAULO (Estado). Assembleia Legislativa / Comissão da Verdade do cerada como sujeito de direitos inerentes à sua condição de
Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Infância Roubada, Crianças atingidas 8. RIO DE JANEIRO (Estado). Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate
– e, ao longo da ponte que liga o Rio a Niterói, cidade em que pela Ditadura Militar no Brasil. São Paulo: ALESP, 2014. p.158-159. à Tortura. Relatório anual - 2012. Rio de Janeiro: ALERJ, 2012. Disponível
residimos até hoje, ela ia nos mostrando o barco, a lua, como 6. VIANA, Gilney; CIPRIANO, Perly. Fome de Liberdade: a luta dos presos 7. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Estrella Bohadana para a Comissão Muni- em: http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2013/01/RELATÓRIO-ANU-
políticos pela anistia. 2ª Ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009. cipal de Volta Redonda em 07/03/2013. AL-MEPCT-RJ-2012.pdf

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11. ESTÁDIO CAIO MARTINS Em abril de 1964, como resultado das primeiras de- ram torturas psicológicas e tratamento degradante. sidente do Sindicato dos Rodoviários de Niterói e
cisões do regime golpista, o estádio Caio Martins re- Nas palavras de Benedito Joaquim dos Santos, ex- São Gonçalo e o ex-deputado Afonso Celso Monteiro
cebeu presos realocados de outros centros de deten- -presidente do Sindicato dos operários navais de Ni- relataram terem sofrido diversas sevícias enquanto
ção, tendo em vista a lotação que as dependências do terói em abril de 1964: estiveram no estádio-presídio e revelaram que:
Exército e da Polícia experimentavam naquele mo-
mento. As prisões eram realizadas com o objetivo de “ O exército coloca para nós, para cada preso, um soldado “ Além de encarcerados em solitárias, ambos são desperta-
neutralizar as possíveis resistências ao novo gover- com fuzil e baioneta (…) nós não podíamos fechar o banhei- dos alta madrugada com banhos de água gelada para serem
no. O local abrigou presos políticos que ali ficaram ro, nós tínhamos que ocupar o vaso sanitário de porta aberta, interrogados. Depois do massacre dos estudantes da Universi-
sem qualquer garantia judicial ou explicação oficial com o soldado com fuzil apontado para a nossa cabeça3.” dade Rural, do modo mais hediondo possível, como duvidar
acerca do motivo de seu encarceramento. Muitos, de novas selvagerias policiais?6.”
que já haviam passado por outros locais de deten- José Soares Gonçalves, que foi levado do Centro de
ção, foram mantidos no estádio-prisão enquanto os Armamento da Marinha (CAM) para o estádio-pre- Em 19 de maio de 1964, o mesmo jornal publicou
agentes de segurança deliberavam sobre seu destino sídio no mesmo período afirmou sobre as condições matéria divulgando a tomada de depoimentos que
e davam andamento a seus inquéritos policiais. Fo- em que se encontravam os presos no local: se sucedia no Caio Martins com a presença de 10
ram ilegalmente detidos operários navais, metalúr- comissários e escrivães. Condenando as atitudes
gicos, advogados, médicos e camponeses de diversos “ Era uma peneira, época de chuva não tinha um canto do governo, pressões populares fizeram com que o
Localização: Rua Presidente Backer, s/n, Santa Rosa, Niterói, RJ municípios do estado do Rio de Janeiro. que não chovesse (…) a gente ficava ali (…) a comida vinha Secretário de Segurança, Major Paulo Biar, orde-
da polícia militar. Quando chegava aqueles panelão de carne nasse a soltura daqueles que não possuíam nota de
O complexo esportivo Caio Martins foi o primeiro es- Em investigações realizadas pela Comissão da Ver- seca ou bucho, já tava tudo qualhado de banha em cima. Era culpa formada7. Apesar dessa ordem, muitos conti-
tádio destinado à prisão em massa na América La- dade em Niterói (CVN) no Arquivo Público do Estado aquilo que a gente comia4.” nuaram detidos de maneira ilegal e sem garantias.
tina. Logo nos primeiros dias após o golpe militar, do Rio de Janeiro (APERJ), foi localizada documen- Foi o caso de Geraldo Alcino de Moura, um operário
pessoas acusadas de oposição ao regime foram pre- tação produzida à época da ditadura pelos órgãos O jornal Última Hora, denunciando a sucessão de cuja família passou necessidades financeiras por
sas arbitrariamente e levadas ao local. Embora co- da repressão que pode comprovar a prisão de, pelo detenções ilegais e arbitrárias, destacou que entre conta de sua detenção, chegando a solicitar doações
ordenado pelas Forças Armadas, o estádio-presídio menos, 339 pessoas no Caio Martins. Não obstante, os presos estavam o deputado Francisco Alves, o ex- através do jornal para que pudesse se alimentar8.
era também ligado ao DOPS/RJ e à Polícia Militar 1. os testemunhos prestados à CVN por ex-presos polí- -diretor do Plano Agrário Irênio Matos Pereira, o Somente em 10 de junho de 1964 foi anunciada a
ticos apontam um número superior a mil2. advogado Roberto Paiva Muniz, o médico Luiz Tu- desativação do presídio9 e já no dia 20 desse mesmo
Localizado numa região de fácil acesso e próximo ao benchelack, do diretório do PSB, o marítimo Emi- mês10 o estádio abrigou um concurso de Miss Esta-
centro da cidade de Niterói, o complexo Caio Mar- Segundo os dados levantados, os presos foram alo- lio Bonfante Demaria, além do jornalista Ezíquio do do Rio de Janeiro11.
tins foi construído durante a ditadura de Getúlio jados nas arquibancadas de concreto. Havia uma Araújo. O jornal também divulgou o caso de Jairo
Vargas. Inaugurado em 20 de julho de 1941, por de- distinção de acordo com o nível de escolaridade de Mendes, presidente do sindicato dos jornalistas do Mesmo diante da existência de diversos testemu-
sejo do então governador do estado Ernani do Ama- modo que aqueles que possuíam ensino superior estado do Rio que, apesar de seu estado de saúde nhos de ex-presos políticos, as Forças Armadas não
ral Peixoto, que objetivava realizar em Niterói os podiam ficar no espaço originalmente destinado ao frágil, encontrava-se detido ilegalmente no ginásio5. reconheceram a utilização do estádio como centro de
jogos do Campeonato Carioca, o estádio foi uma das vestiário dos atletas. O jornal denunciou ainda a prática de tortura no es- prisão em massa no período da ditadura. Contraria-
subsedes da Copa do Mundo de Futebol de 1950 e o tádio-presídio. Os detentos Pedro Mayrink, ex-pre- mente, restou comprovado tanto pela Comissão da
palco de importantes partidas de futebol enquanto Os depoimentos prestados à CEV-Rio e à CVN de- 3. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Benedito Joaquim dos Santos no Teste-
munho da Verdade do Sindicato dos Operários Navais, realizado pela CEV-Rio 6. Jornal Última Hora, Edição de - 06/06/1964, p. 03.
concessão do clube Botafogo Futebol e Regatas. monstram que os presos que por ali passaram sofre- em parceria com a Comissão da Verdade em Niterói, em 25/09/2013. 7. Jornal Última Hora, Edição de - 19/05/1964, p. 09.
4. Acervo CEV-Rio. Testemunho de José Soares Gonçalves no Testemunho 8. Jornal Última Hora - 04/06/1964.
da Verdade do Sindicato dos Operários Navais, realizado pela CEV-Rio em 9. Diário Carioca - 10/06/1964, página 04.
1. COELHO, Maria José H.; ROTTA, Vera (org.). Caravanas da anistia: o Brasil 2. COMISSÃO DA VERDADE EM NITERÓI. Relatório Parcial de Pesquisas e parceria com a Comissão da Verdade em Niterói, em 25/09/2013. 10. Diário Carioca - 12/06/1964, página 06.
pede perdão. Brasília: Ministério da Justiça, 2012, p. 258. Atividades.Niterói: CVN, 2014. 5. Jornal Última Hora, Edição de - 23/05/1964. 11. Jornal Última Hora - 12/06/1964.

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Verdade em Niterói quanto pela Comissão Nacional 12. BASE NAVAL DA ILHA DAS FLORES lembrado pelos ex-presos, assim como o do médico
da Verdade (CNV)12 que o estádio funcionou dentro Coutinho (José Lino Coutinho), responsável pela
da estrutura repressiva do Estado ditatorial13. São avaliação dos militantes nas sessões de tortura. O
atualmente públicos documentos assinados pelo registro de Coutinho foi cassado pelo Cremerj em
denominado Diretor do Presídio Caio Martins aos decorrência de sua atuação na Base Naval da Ilha
agentes do DOPS, encaminhando a este centro al- das Flores, em 1969.
guns dos presos do estádio.
O procedimento de investigação foi instaurado em
1993, a pedido do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio
de Janeiro, e julgado em 3 de março de 1999. Segun-
do o Cremerj, ficou demonstrada a colaboração do
médico em, pelo menos, três maneiras: ocultação do
delito, promoção de tortura psicológica e busca por
diminuir a resistência voluntária e a capacidade de
decidir dos torturados1.

Ato na entrada do Estádio Caio Martins em maio de 2012 Localização: Avenida Paiva, s/n, Neves, São Gonçalo Dez ex-presos políticos e um ex-soldado do corpo de
Foto: Niterói pela Memória, Verdade e Justiça
fuzileiros navais da Marinha reconheceram os locais
e campeonatos esportivos. A experiência de utiliza- Integrada ao Complexo Naval da Marinha, às mar- de prisão e tortura na Base da Ilha das Flores duran-
ção de estádios de futebol como presídio ainda seria gens da rodovia Niterói – Manilha, na altura do te diligência realizada pela CNV e pela CEV-Rio2. O
repetida em 1973, no Estádio Nacional, Chile, onde bairro de Neves, em São Gonçalo, a Base Naval da grupo identificou as alas feminina e masculina da
foram concentrados presos políticos que se opunham Ilha das Flores funcionou, entre 1969 e 1971, como cadeia, que ocupavam o 2º andar do prédio, onde,
ao golpe militar. Recentemente, organizações da so- um local de prisão e tortura mantido pela Marinha. atualmente, é o alojamento dos fuzileiros navais; o
ciedade civil têm reivindicado que o Caio Martins Nesse período passaram por lá cerca de 200 presos local de triagem, interrogatórios e tortura psicológi-
seja transformado em centro de memória referente políticos. A parte reservada aos prisioneiros era cer- ca, onde os presos recebiam as visitas nos finais de
às violações ocorridas durante a ditadura militar. cada e guardada por cães policiais e marinheiros ar- semana, atualmente, funcionam o comando da base
A mesma demanda já havia sido proposta por inte- mados. Atualmente, o lugar é usado como uma base e a sala de ginástica. Outro ponto destacado por eles
grantes do Fórum dos Operários Navais, em outu- de Fuzileiros Navais e Tropa de Reforço. foi a guarita, que fica em frente ao antigo presídio.
Memorando de 19 de maio de 1964 enviado pelo DOPS/RJ ao Diretor bro de 2010, durante a realização da 45a Caravana De posto da sentinela, o lugar passou a ser utilizado
do Presídio do Estádio Caio Martins, Capitão Homero Barreto da Anistia pela Comissão de Anistia do Ministério A base naval começou a funcionar como um espa- para punição e isolamento de presos. “Como a guari-
Crédito: Comissão da Verdade em Niterói
da Justiça, na Faculdade de Direito da Universida- ço de tortura em abril de 1969, sob o comando do ta era muito apertada e pequena, o preso não conse-
de Federal Fluminense (UFF). O pedido foi corrobo- Capitão de mar e guerra Clemente Monteiro Filho guia ficar em pé e não podia dormir”. Além disto, “os
O Caio Martins, após ter seu uso subvertido pelo rado em maio de 2012, no lançamento da Comissão (1925-1977), apontado no Relatório Final da Co- 1. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
aparato repressor em 1964, voltou a sediar eventos da Verdade em Niterói. No mesmo ano, a Comissão missão Nacional da Verdade (CNV) como autor de Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume 1, Capítulo 9, p. 356.
2. Participaram da diligência os ex-presos políticos Tânia Marins Roque,
Especial de Reparação do Estado do Rio de Janeiro crimes cometidos durante a ditadura militar. Du- Umberto Trigueiros Lima, Martha Alvarez, Iná Meireles, Victor Hugo Klags-
12. COMISSÃO DA VERDADE EM NITERÓI. Relatório Parcial de Pesquisas brunn, Ziléa Reznick, Rosane Reznick, Luiz Carlos Souza, Jovanildo Savas-
e Atividades.Niterói: CVN, 2014; BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. também realizou no estádio uma cerimônia de repa- rante diligência realizada pela CNV e pela Comis- tano e Lincoln Penna, além do ex-soldado do corpo de fuzileiros navais da
Relatório. Brasília: CNV, 2014, volume I, tomo I.
13. KNAUSS, Paulo; MAIA, Eric. Niterói, 1964 – Memórias da Prisão Esque-
ração, reunindo mais de 120 pessoas para homena- são da Verdade do Rio (CEV-Rio), em 21 de outubro Marinha, Heleno Cruz. Participaram, pela CEV-Rio, Nadine Borges, Álvaro
Caldas e Geraldo Cândido. Já pela CNV foram o coordenador Pedro Dallari,
cida. A Operação Limpeza e o cárcere político do Caio Martins. In Revista gear os perseguidos políticos que ali estiveram. de 2014, o nome do então comandante Clemente foi Maria Rita Kehl, Rosa Cardoso, José Carlos Dias e Paulo Sérgio Pinheiro e os
Acervo, Rio de Janeiro, v. 27 , n º 1, jan./jun. 2014. p. 99-120. peritos Roberto Niella e Saul Martins.

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mosquitos não davam trégua”, disse Victor Hugo, eram apenas os agentes lotados na ilha que come- te dos torturadores e as sevícias sexuais as quais
com a concordância de Umberto Trigueiros3. tiam essa prática: foi submetida. “Os agentes formaram um círculo e
me imprensaram, nua, contra a parede. E gritavam:
A principal descoberta feita pelos ex-presos foi a “ Vinham pessoas de fora para interrogar e torturar. As ‘Você, tão branquinha, casada com um negro’ (seu
casa localizada na Ponta dos Oitis, que funcionou sessões eram conduzidas por oficiais de inteligência da Ma- marido Luiz Carlos também esteve preso na Ilha
como o centro de tortura do complexo. O ex-soldado rinha, que contavam com a colaboração de servidores ce- das Flores e acompanhou a diligência)5.”
do corpo de fuzileiros navais da Marinha, Heleno didos pela Polícia Federal e pelo DOPS do Rio. Os soldados
Cruz, que trabalhou na Ilha das Flores de junho de daqui não tinham muita proximidade com os presos. Sem- Martha Alvarez, ex-presa política, integrante do
1970 a junho de 1971, guiou a comitiva até lá. pre fomos muito vigiados, mas havia um pequeno grupo que Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8),
tentava ajudá-los. Levei bilhetes, embrulhados em balas, de um grupo dissidente do PCB de Niterói, também
A casa ainda existe, abandonada, ao lado de outra uma cela para outra4.” passou pela Ilha das Flores. Foi presa em 9 de julho
construção que foi demolida, e a Casa de Máquinas. de 1969, na Praça Saens Pena, Tijuca/RJ, com mais
Heleno contou que, por três vezes, jogou no mar os Primeira mulher presa na Ilha das Flores, em 1969, dois companheiros. Tinha 20 anos. Foi levada pri-
instrumentos – martelo, pau-de-arara, torniquete Ziléa Reznik reconheceu a sala onde foi torturada meiro para o Cenimar e depois para a Ilha das Flo- Os primeiros presos da Ilha das Flores foram arro-
– que eram usados para tortura. Segundo ele, não na casa da Ponta dos Oitis, relatando a nudez dian- res. Em testemunho prestado à Comissão da Verda- lados na Ação Penal 70/69, envolvendo integrantes
de em Niterói, lembrou as torturas sofridas no local: do MR-8. O comandante Clemente José Monteiro Fi-
lho foi o encarregado do inquérito e as investigações
“ Colocaram uma mesa na sala onde eu estava e me man- conduzidas pelo Cenimar. Parte da organização foi
daram escrever o nome de dez pessoas que eu considerasse presa no Paraná, onde se pretendia implantar um
importante. Toda vez que eu recusava, eles encostavam uma foco de guerrilha. No DOPS-PR e na sede da PF-PR
corneta no meu ouvido e tocavam. A sessão era acompanhada os militantes sofreram as primeiras sessões de tor-
por um médico, que avaliava se eu suportava continuar. (…) turas, que continuariam após a transferência para a
Estavam sempre nas minhas sessões de tortura um agente Ilha das Flores7.
tratado por Cláudio e outro que fazia o papel de bonzinho,
tenente Sabóia, além do médico dr. Coutinho. Em algumas O centro de tortura da Ilha das Flores deixou de
sessões compareceram o Comandante da Ilha, Capitão de Mar existir com a criação do Destacamento de Operações
e Guerra Clemente José Monteiro Filho e o Imediato, Capitão de Informações – Centro de Operações de Defesa In-
de Fragata Jader. Levei socos, pontapés e apanhei bastante de terna (DOI-CODI), entre o final de 1969 e o início
palmatória - tive um braço quebrado em três lugares6.” de 1970. Somente em 1978 a Marinha se transferiu
definitivamente para a Ilha das Flores8.
A Ilha das Flores concentrou a repressão aos mili-
tantes do MR-8. As investigações desdobraram-se em
três Inquéritos Policiais Militares (IPM), sendo dois
direcionados ao MR-8 e uma à Ação Popular.
Casa na Ponta dos Oitis, Ilha das Flores, foi reconhecida como local de tortura em diligência realizada, no dia 21/10/2014, pela CNV e CEV-Rio junto
com dez presos e um ex-fuzileiro naval que indicou o local
Foto: Fabio Cascardo 7. COMISSÃO DA VERDADE EM NITERÓI. Relatório Parcial de Pesquisas e
5. Arquivo CNV. Diligência realizada na Ilha das Flores em 21/10/2014. Dispo- Atividades.Niterói: CVN, 2014.
nível em: https://www.youtube.com/watch?v=8NSFunW2YHo. 8. SCELZA, Maria Fernanda Magalhães. Entre o controle e a resistência: o
3. Arquivo CNV. Diligência realizada na Ilha das Flores em 21/10/2014. Dispo- 4. Acervo CEV-Rio. Relato de Heleno Cruz durante diligência realizada na 6. Acervo Comissão da Verdade em Niterói. Testemunho de Martha Alvarez Presídio da Ilha das Flores como espaço de luta e afirmação de identidade
nível em: https://www.youtube.com/watch?v=vEwh7Rs1KRE Ilha das Flores em 21/10/2014. em 25/02/2015. de ex-prisioneiros políticos. XXIV Simpósio Nacional de História, 2007, p. 4.

346 347
13. DEPARTAMENTO AUTÔNOMO um dos principais focos de articulação e luta política Ele rememorou ainda os seguintes fatos transcorri- do, padre Jefferson da Conceição (...) começaram a nos bater
DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL DO durante as décadas de 1950 e 1960, teve sua sede dos no DOPS/RJ: aqui nesse DOPS de Niterói quando veio os militares do DOI-
ESTADO DO RIO DE JANEIRO - DOPS/RJ invadida e destruída no dia seguinte ao golpe.

-CODI porque tinham descoberto em nossa casa material que
Ao transitarmos pelo corredor, a caminho do xadrez, Nelson nos incriminava. Eles vieram aqui nesse DOPS e começaram
O ex-presidente do Sindicato dos Bancários em Ni- foi espancado a cassetete. Aí existiam, já, quase cem presos num a nos bater de forma absurda. (...) Foi nesse DOPS que acon-
terói, Firmino Silveira Moura, preso no DOPS/RJ local exíguo. Não havia onde dormir. Os degraus de uma escada teceu isso, o Sr. Delegado me chamou e me perguntou se eu
nas primeiras semanas após o golpe, afirmou: de acesso ao sótão eram cedidos pelos demais aos companheiros estava grávida, (...) eu já tinha mais de 20 dias em tortura


mais idosos e cansados, para repousarem sentados. Dois desses (...) neste dia, a equipe do DOI-CODI chegou aqui, no DOPS e
Uma situação horrível, preso dormindo em cima de folha companheiros, desesperados, atiraram-se dessa escada, tentan- me pendurou numa parede, algemou meu companheiro no
de jornal porque não tínhamos nada, e era um xadrez que do o suicídio. (...) À vista dos demais presos fomos espancados, mesmo quarto e me deram joelhadas na barriga até sangrar4.”
comportava no máximo umas dez pessoas, mas tinha trinta, exceto Nelson, a esta altura reconhecido irmão-maçom do dito
quarenta... Então, houve momentos em que uns dormiam e ou- sargento. Depois fomos recolhidos à cela nº 7, de onde eu fui O DOPS/RJ foi extinto em 1975, em meio ao pro-
tros ficavam em pé, porque não dava pra todo mundo dormir, retirado logo a seguir, para ser mais espancado, como de fato o cesso de abertura política conduzido pelo então pre-
e aquelas privadas cavadas no chão, acocorado. E começou a fui, sob a alegação de que diante das minhas responsabilidades, sidente general Ernesto Geisel. Em 26 de janeiro
chegar um pessoal do interior, desses rurais, desses camponeses, merecia ser mais castigado corporalmente3.” 1983, o Instituto Estadual de Patrimônio Cultural
chegaram com diarreia. Então, foi uma coisa horrorosa1.” (INEPAC) tombou o prédio e todo o conjunto da Pra-
A atuação do DOPS/RJ, contudo, não se restringiu ça da República. Atualmente, o imóvel abriga a 76ª
Localização: Avenida Ernani do Amaral Peixoto, 577, Centro, Niterói, RJ
O depoimento de Emilio Bonfante Demaria corrobo- aos primeiros momentos após a instauração da dita- Delegacia de Polícia, a Delegacia de Atendimento à
Na Praça da República, centro da cidade de Niterói, ra as denúncias ao lembrar as circunstâncias de sua dura militar. O Departamento funcionou ativamen- Mulher (DEAM) e a Delegacia de Proteção à Crian-
o Palácio da Polícia – sede regional da Polícia Civil detenção nos primeiros dias de abril de 1964: te na repressão organizada pelo regime ao realizar ça e ao Adolescente (DPCA).
– abrigou o Departamento Autônomo de Ordem Polí- buscas, apreensões e prisões no estado do Rio de Ja-
tica e Social do Estado do Rio de Janeiro (DOPS/RJ), “ Transportados para o DOPS de Niterói, somente aí fomos neiro. No seu prédio, além das condições insalubres,
órgão de polícia política criado através do Decreto n. reconhecidos como líderes sindicais; Emílio Bonfante Demaria, os presos foram submetidos a torturas psicológicas e
580, de 11 de outubro de 1938, com o objetivo de con- capitão de longo curso; Nelson Pereira Mendonça, 1° comissá- a sucessivos interrogatórios que envolviam violência
trolar e reprimir movimentos políticos e sociais con- rio; Benedito Joaquim dos Santos e Álvaro Ventura da Costa Fi- física. À medida que o regime avançava, o órgão con-
trários ao governo instituído. A atuação do Departa- lho, operários navais, todos, porém, Conselheiros da Federação tinuou cooperando com outras esferas da repressão.
mento intensificou-se durante a ditadura do Estado Nacional dos Marítimos, os dois últimos, além disso, respectiva- Em depoimento prestado à Comissão da Verdade em
Novo e a ditadura militar de 1964. mente, Presidente do Sindicato dos Operários Navais do Rio de Niterói, Rosalina Santa Cruz, detida em 1971, fez as
Janeiro e Delegado do IAPM, naquele Estado. (...) Presenciando seguintes afirmações sobre o tempo em que esteve
Nos primeiros dias após o golpe de 1964, centenas a chegada de mais presos conduzidos sob espancamentos (...); presa no DOPS de Niterói:
de pessoas foram presas no então estado do Rio de

nesse ambiente de terror, éramos qualificados, sendo aberta a
Janeiro e levadas para a capital, Niterói, sendo dis- janela da sala daquele sobrado e sugerido-nos verbal e frequen- Foi nesse DOPS, aqui nessa cidade. Eu fui presa no Rio de
tribuídas entre o DOPS/RJ, os batalhões da Polícia temente, que nos suicidássemos, atirando-nos por ela a exemplo Janeiro, do DOI-CODI do Rio eu fui trazida para aqui. Minha
Militar, o Centro de Armamento da Marinha (CAM) de outros presos, para minorar os nossos sofrimentos e poupar- mãe não sabia, ninguém sabia onde eu estava sequestrada
e o Caio Martins. De acordo com o Relatório Par- -lhes o trabalho de fuzilamento2.” (...) atravessei a barca e desci aqui nessa cidade de Niterói
cial da Comissão da Verdade em Niterói, a cidade (...) posso lhe contar que aqui nesse DOPS passei por coisas Antigo DOPS/RJ, atual 76ª Delegacia Policial
Foto: Acervo NDH PUC-Rio
foi palco de ações repressivas nos primeiros momen- 1. Entrevista concedida ao Laboratório de História Oral e Imagem do De-
partamento de História da Universidade Federal Fluminense, realizada em também muito sérias. Fui presa eu, o padre que aqui foi trazi-
tos da ditadura. O Sindicato dos Operários Navais, 06/04/2008. 4. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Rosalina Santa Cruz para a Comissão da
2. ALVES, Marcio Moreira. Torturas e Torturados. Ed. Idade Nova. 1996. p. 174. 3. Idem. Verdade de Niterói em 26/03/2014.

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14. FORTALEZA DE SANTA CRUZ destacou no século XIX, tendo sido responsável por
salvaguardar o escoamento pela baía dos metais
preciosos oriundos de Minas Gerais. Da fortaleza
saíram os ataques contra os navios que participa-
vam da Revolta da Armada, em 1893, e contra o
Forte de Copacabana e o encouraçado São Paulo,
na Revolta Tenentista, em 1922. Em seu históri-
co como presídio, a fortaleza de mais de sete mil
metros quadrados era conhecida pelas péssimas
condições das masmorras que serviram de cárce-
re para os presos oriundos de batalhas navais. Por
ela também passaram figuras eminentes como José
Bonifácio, Euclides da Cunha e Bento Gonçalves.

No período da ditadura militar, a fortificação foi o


destino de diversos militares e políticos cassados.
Dentre eles, o então capitão Ivan Cavalcanti Proen-
ça, que foi preso inicialmente na Fortaleza de São
Localização: Estrada General Eurico Gaspar Dutra, s/n, Jurujuba, Niterói, RJ João, de onde foi levado à Niterói:

Situada na entrada da Baía de Guanabara, entre “ Preso, conduziram-me, escoltado ao Forte São João (Urca),
os morros do Pico e do Macaco, a fortaleza de San- onde uma lancha já me aguardava. Início de noite. Fui leva-
Visão interna da Fortaleza de Santa Cruz
ta Cruz serviu de presídio logo nos primeiros dias da do, pela baía, chuva e mar revolto, à Fortaleza Santa Cruz; Crédito: Acervo NDH PUC-Rio Após 1967, o local institucionalizou-se como presí-
implantação do regime militar, em abril de 1964 e re- o colega major com metralhadora, mas não apontada para dio do Exército, no qual há testemunhos da ocor-
cebeu políticos e militares cassados nos atos iniciais mim. A lancha encostou numa espécie de barranco e, por uma um lugar onde a água sobe e entra água na cela. rência de tortura. Em 1968, com a promulgação do
do governo. Posteriormente, no decorrer da ditadura, trilha, subimos as alamedas. Fui conduzido a um alojamento Foi lá que ele foi interrogado’’2. Kardec Lemme foi Ato Institucional nº 5, o antropólogo Darcy Ribeiro
a fortaleza também serviu para o encarceramento de e, nova surpresa: já estavam ali, presos, alguns oficiais amigos expulso do Exército pelo Ato Institucional nº 1 e du- foi levado para o presídio-fortaleza, onde ficou por
outros presos políticos e de prisioneiros comuns. e outros que conheci ao longo do processo e movimentos de rante o regime sofreu outras prisões, tendo passado volta de quatro meses, sendo então conduzido para
apoio às Reformas, a Jango e a Brizola1.” pela Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita, o presídio da Ilha das Cobras, no qual completou
Ocupando um ponto estratégico na geografia flu- Rio de Janeiro, onde funcionava o DOI-CODI. Além nove meses de prisão. Entre 1969 e 1970, Umberto
minense, a fortificação foi construída na virada do Em situação semelhante, o coronel Kardec Lemme de Lemme e Proença, estiveram presas nesses mo- Trigueiros, ex-militante do grupo MR-8, também
século XVI para o século XVII. Pelo cálculo do go- também foi levado para a fortaleza logo após o golpe. mentos iniciais figuras eminentes na política brasi- esteve na fortaleza:
verno português, tratava-se de garantir a defesa do Seu filho, Luiz Carlos Teixeira Lemme, comentou leira, como Miguel Arraes, transferido de Recife em
porto da cidade do Rio de Janeiro. De fato, a for- sobre a prisão do pai, cujo nome constava na primei- 1965 e levado para o complexo militar em Niterói. “ Houve uma época que me levaram para a Ilha das Flo-
taleza teve papel predominante no controle do Rio ra lista de cassações divulgada pelo regime: ‘‘Essa res, onde funcionava o Cenimar (Centro de Informações da
de Janeiro pelos portugueses, uma vez que oferecia fortaleza tem um lugar cavado na pedra. Então tem Marinha). Lá, era tortura mesmo. E o sujeito ainda tinha
proteção contra os ataques de estrangeiros duran- 2. REDE BRASIL ATUAL. Ditadura: adolescente sofreu nove dias de tortura
por ter pai ‘comuna safado’. Disponível em http://www.redebrasilatual.com.
que assistir à tortura dos outros. Aqui levei muita porrada,
te os períodos da colônia e do império. Também se 1. PROENÇA, Ivan Cavalcanti. O golpe militar e civil de 64: 40 anos depois. br/cidadania/2013/03/ditadura-adolescente-sofreu-nove-dias-de-tortura-por-
São Paulo: Oficina do Livro, 2004. -ter-pai-comuna-safado.

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mas não foi como no Cenimar3.” que ele e seus companheiros fizeram como forma 15. CENTRO DE ARMAMENTO DA quim Barbosa, em testemunho à CEV-Rio e à Co-
de protesto: MARINHA missão da Verdade em Niterói (CVN), contou que
Já na década de 1970, os militares realizaram uma esteve preso no CAM após passar pelo DOPS/RJ e
espécie de ‘laboratório’ com os presos da fortaleza. “ Saímos da mão da PM e ficamos nove meses sob a custódia antes de ser levado para o Presídio Frei Caneca. So-
Tratava-se de tentar o que se chamou de ‘recupe- do Exército brasileiro (...) Ali foi o lugar onde estiveram presos bre o centro, relatou que:
ração’ dos encarcerados, uma série de técnicas (por

escravos, onde esteve Andresito Artigas, um herói do Paraguai,
exemplo, a distribuição desigual de punições) para Giuseppe Garibaldi etc. Um lugar que foi usado no período tivemos a cabeça afogada num tanque de lavar roupa
quebrar a coesão que formavam entre si, procuran- colonial como masmorra, como centro de tortura. Tanto que cheio d’água e o pau comeu, né (…) Colocaram várias vezes
do diminuir ao máximo sua resistência física e psi- na Fortaleza de Santa Cruz tinha um lugar que chamavam cigarro aceso nas nádegas para que nós disséssemos onde se
cológica4. Em 1974 foram transferidos do presídio de ‘cova da onça’, por causa dos gritos dos torturados que pa- encontravam as armas do sindicato (…) Fomos espancados a
da Ilha Grande para a fortaleza, os presos políticos reciam com o urro de uma onça, onde eles faziam o serviço ponto que quebraram meu queixo e minha camisa ficou total-
Jarbas Marques, Rômulo Albuquerque, Otoni Fer- completo. (...) Foi nesta prisão histórica, (...) que nós fizemos mente molhada de sangue, né(…)2.”
nandes, Paulo Henrique Oliveira da Rocha Lins, uma greve de fome6.”
André Borges e Alípio de Freitas. Posteriormente, Corroborando as acusações de tortura, José Gonçal-
os presos políticos que se encontravam nos quartéis Com a distensão do regime, desativou-se o presí- ves contou à CEV-Rio e à CVN as dificuldades en-
também sofreram transferência para as celas da for- dio político. No período de 1983 a 1987, a fortaleza frentadas por ele e por seus companheiros quando
tificação. Alípio de Freitas relatou: sediou o 8º Grupo de Artilharia de Costa Motori- detidos no CAM:
zado (8º GACosM), comandado pelo ex-presidente
“ “
Localização: Ponta d’Areia, Niterói, RJ

Fomos recebidos na Fortaleza, já encapuzados, pelo Te- Ernesto Geisel. Este último foi homenageado em Quando chegavam dois soldados na porta do salão, me-
nente Q.O.A., Ivo e pelo Sargento Barbosa, obrigados a ficar 1999 pela instalação, na unidade, do “Grupo Ernes- O Centro de Armamento da Marinha (CAM) foi tiam o pé naquele panelão e a comida se espalhava pelo chão.
nus. (...) Depois da revista, ainda encapuzados e sob ameaças to Geisel”. Com a construção de uma malha viária um dos locais usados pelo governo militar, logo Só cabeça de peixe... Era salve-se quem puder. Os companhei-
absolutamente idiotas para quem já passara pelo DOI-CODI, que facilitou o acesso à fortificação, a fortaleza de após o golpe de 1964, para prender e torturar opo- ros, por solidariedade, davam um pedacinho pra um, um pe-
fomos conduzidos à Cela B, que, entre outras coisas, já tinha Santa Cruz se tornou um dos principais pontos tu- sitores ao regime, sobretudo operários navais de dacinho pra outro (...). Pra fazer as necessidades fisiológicas
sido um depósito de escravos. A Cela B, bem como a Cela A, que rísticos da cidade de Niterói. Niterói ligados ao sindicato da categoria. A utili- era um buraco no chão, com uma metralhadora na frente e
fica ao lado, é uma imensa caverna cavada em parte na rocha zação desse centro pela repressão esteve direta- outra nas costas. Passamos humilhação e dificuldade3.”
pura, com água escorrendo pelas paredes cheias de fungos e mente relacionada ao funcionamento do primeiro
musgos, sem mais ventilação do que a que pode entrar pelo estádio-prisão da América Latina, o Estádio Caio Em 07 de abril de 1964, o Jornal do Brasil noticiou
seu único portão, construído de grossas barras de ferro. Esse Martins, também localizado na cidade de Niterói. que, de acordo com boletins expedidos pelo DOPS, o
seria o lugar onde a 5ª Seção do I Exército tentaria a operação Dos 399 presos políticos cuja passagem pelo está- Centro de Armamento da Marinha recebeu pessoas
de recuperação5.” dio foi comprovada, pelo menos 89 também estive- consideradas como as mais perigosas para a nova
ram encarcerados no CAM. ordem que se instaurava4. O local foi ainda o destino
Preso no mesmo período que Alípio, Rômulo Albu- de mais de 100 pessoas ligadas, principalmente, ao
querque destacou o histórico do local, relembran- Durante a ditadura, os agentes de segurança que Sindicato dos Operários Navais, segundo noticiado
do a tortura sofrida pelos presos e a greve de fome atuavam no local submetiam os presos políticos a
3. O GLOBO. Ex-preso político volta à Fortaleza de Santa Cruz 45 anos depois. torturas físicas e psicológicas, como, por exemplo, 2. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Benedito Joaquim dos Santos no Teste-
Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/bairros/ex-preso-politico-volta- munho da Verdade do Sindicato dos Operários Navais, realizado pela CEV-Rio
-fortaleza-de-santa-cruz-45-anos-depois-12023452#ixzz3WoYgW6e2 casos de simulação de fuzilamento1. Benedito Joa- em parceria com a Comissão da Verdade em Niterói, em 25/09/2013.
4. FARIA, Cátia. Revolucionários, bandidos e marginais: presos políticos e 3. Acervo CEV-Rio. Testemunho de José Soares Gonçalves no Testemunho
comuns sob a ditadura militar. Niterói: UFF, 2005. Dissertação de mestrado. 6. TELES, Janaína de Almeida. As denúncias de torturas e torturadores a da Verdade do Sindicato dos Operários Navais, realizado pela CEV-Rio em
5. DE FREITAS, Alípio. Resistir é preciso: memória do tempo da morte civil partir dos cárceres políticos brasileiros. In: Interseções: Revista de Estudos 1. COMISSÃO DA VERDADE EM NITERÓI. Relatório Parcial de Pesquisas e parceria com a Comissão da Verdade em Niterói, em 25/09/2013.
do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record, 1981. Interdisciplinares, v. 16, n. 1, 2014. Atividades. Niterói: CVN, 2014. p. 42. 4. Jornal Última Hora. Rio de Janeiro: 07 abr. 1964, p. 06.

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lidade, ‘simplesmente intragável’, como classificou Dilson. O núncias de tortura feitas pelo jornal ainda em 1964.
Almirante Candido Aragão foi preso no dia 4 de abril ficando Lembrando-se de sua prisão realizada em junho da-
detido inicialmente na Fortaleza de Lajes, onde permaneceu quele ano, afirmou:


cerca de dois meses, impedido de receber qualquer visita de
seus familiares. Depois, passou três dias no navio Princesa Le- Os militares invadiram a minha casa e, como não me en-
opoldina, período em que foi submetido a seguidos interroga- contraram, levaram o meu irmão e meu pai como reféns. Eles
tórios. Finalmente, foi transferido para o Cento de Armamen- só seriam soltos se eu me apresentasse no Centro de Armamen-
to da Marinha, onde aguarda o momento de sua libertação8.” to da Marinha. Foi o eu que fiz. Passei 68 dias naquele local
sem direito a tomar banho e pegar sol11.”
Em decorrência das péssimas condições em que se
encontrava e da falta de acesso a tratamento médico À época dos fatos, o jornal Correio da Manhã tam-
digno, o almirante Candido Aragão passou por uma bém deu voz às denúncias, publicando em 21 de ju-
cirurgia para tentar recuperar a visão, um ano após nho do mesmo ano o apelo das esposas de funcioná-
a sua detenção ilegal na Fortaleza das Lajes e no rios do Lóide Brasileiro que se encontravam detidos
Centro de Armamento da Marinha9. O jornal Última no presídio de Neves e no CAM, uma vez que estes
Hora realizou nova denúncia em 14 de outubro de últimos permaneciam incomunicáveis12.
1964 acerca das condições a que suboficiais e sar-
gentos da Armada eram submetidos no CAM e no Já desativado como centro de prisão e tortura, o
presídio de Ilha das Cobras. No CAM, segundo cons- CAM foi extinto em 197813 e, em substituição, suas
ta em nota publicada, havia 50 militares reclusos funções foram absorvidas pelo Centro de Mísseis e
que se encontravam: Armas Submarinas da Marinha (CMASM), localiza-
do na Ilha do Engenho, no Rio de Janeiro. O prédio

Centro de Armamento da Marinha


“ impedidos de ter acesso ao pátio e com permissão para que abrigou o CAM, em Ponta d’Areia, é considera-
pelo mesmo jornal no dia 25 de maio de 1964 . En- 5
Foto: Acervo de Diretoria de Hidrografia e Navegação banhos de sol apenas uma vez por mês. A permissão para vi- do patrimônio histórico-naval brasileiro. Nele fun-
tre os militares presos por ordem do regime golpista, sitas de parentes é dada segundo o arbítrio do diretor (...). ciona, atualmente, o Espaço da Memória Histórica
encontravam-se os almirantes Candido de Aragão e Nunes, além de diversos cidadãos acusados de par- Entre os prisioneiros, encontram-se o suboficial Sebastião Lo- da Diretoria de Hidrografia e Navegação, sem que
Washington Frazão Braga, respectivamente ex-co- ticipação nos “Grupos de Onze”7. Em 06 de agosto de pes de Almeida, o primeiro-sargento João Ibsen Vieira Alves, as violações de direitos humanos cometidas naquele
mandante e ex-subcomandante do corpo de fuzilei- 1964, o jornal Última Hora denunciava as condições o segundo-sargento Aristóbulo Oliva Boaventura da Silva e o espaço sejam contadas como parte de sua história.
ros navais, além dos capitães de Mar e Fragata Pau- em que os presos instalados no CAM se encontra- terceiro-sargento Otávio Batista de Medeiros, qualificados no
lo da Silveira Werneck e René Mangarinos Torres e vam: último dia 5 na 1ª Auditoria, sob a acusação de fazerem parte
dos tenentes José Atinos e Glauco Prado Lima6.

da Associação de Suboficiais e Sargentos da Marinha, entida-
O Sr Dilson Aragão declarou a UH que o tratamento dis- de com existência legal10.”
O CAM recebeu ainda o ex-governador do estado do pensado pelas autoridades navais a seu pai, durante os 124
Rio de Janeiro, Badger da Silveira, preso por fuzi- dias de prisão, foi péssimo. A cela em que está recolhido, no Em depoimento prestado em 2013 à Comissão Es-
leiros navais e posteriormente transferido para a Centro de Armamento da Marinha (...) é de uma umidade tadual da Verdade e à Comissão da Verdade em Ni-
Escola Naval por interferência do secretário Heleno doentia, ainda mais para um homem com mais de 50 anos, terói, o sindicalista Jayme Navas corroborou as de- 11. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Jayme Navas no Testemunho da Verdade
do Sindicato dos Operários Navais, realizado pela CEV-Rio em parceria com a
como o Almirante Aragão. A comida também é da pior qua- 8. Jornal Última Hora. Rio de Janeiro: 06 ago. 1964, p.02. Comissão da Verdade em Niterói, em 25 de setembro de 2013.
5. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 25 mai. 1964, p.05. 9. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 10 jun. 1965, p.05. 12. Jornal Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 21 jun. 1965.
6. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 30 mai. 1964, p.05. 7. Jornal Ultima Hora. Rio de Janeiro: 18 de jul. 1964, p.03. 10. Jornal Última Hora. Rio de Janeiro: 14 out. 1964, p.03. 13. Decreto 82.615 de 8 de novembro de 1978.

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16. NAVIOS-PRISÃO tros de carceragem clandestina. Dividia-se o espaço
em pequenas celas e utilizavam-se alguns de seus
compartimentos como celas solitárias ou métodos
de punição (caldeiras, frigorífico, local para despe-
jo de fezes). A transformação de navios em prisões
foi motivada ainda pela necessidade de manter os
acusados em isolamento, dificultando o acesso de
familiares, dos advogados, da imprensa e garantin-
do que a população permanecesse afastada desses
locais de reclusão1.

O atual presidente do Movimento Democrático pela


Anistia e Cidadania (MODAC), Raimundo Porfí-
rio Costa, contou à CNV que as embarcações não
eram utilizadas somente como cárcere, mas tam-
bém como local de triagem. Segundo seu relato, em
1964, quando ele era então cabo da Marinha, ficou
encarregado de receber os presos no navio Bracuí.
Localização: Baía de Guanabara Lá, eles eram fichados e depois enviados ao navio
Princesa Leopoldina. A Comissão não encontrou
Logo após o golpe de Estado de 1964, frente à super- documentos que comprovassem o caso, mas em sua
população dos cárceres e à necessidade da obtenção pesquisa no Livro do Navio, no Centro de Docu-
rápida de espaços para receber os presos políticos, mentação Histórica da Marinha, faltavam as pági-
Embarcação Princesa Leopoldina usada como presídio improvisado
as Forças Armadas utilizaram navios militares e nas referentes a março e abril de 1964. Foto: Arquivo Nacional, Fundo Correio da Manhã nos dias subsequentes ao 1º de abril de 1964. En-
particulares como locais de prisão de opositores. A tretanto, ela não foi a primeira. Conforme consta
maioria dos presos era composta por militares, con- Apesar das escassas informações, sabe-se que a di- roletes das Ilhas Laje e Vilegagnon, serve atualmente como na- no jornal Última Hora3, esta seria a terceira nau a
siderados insubordinados, ligados a atividades cos- tadura utilizou-se, em seus primeiros anos, de uma vio-presídio. O acesso a esse navio está sujeito à fiscalização e exercer tal função, estando os navios Ary Parreiras e
teiras, em especial os pertencentes à Marinha e à frota de navios-prisão que fazia parte do aparato re- depende de prévio assentimento das autoridades navais. Face Raul Soares já completamente lotados (a capacidade
Aeronáutica. Muitos deles haviam participado de pressivo e funcionava oficialmente. Isto fica demons- à situação acima enunciada, a área de fundeio do referido do primeiro era de 1.000 presos), embora não se sou-
movimentos insurgentes que precederam o golpe ou trado pelo aviso estampado nas páginas do jornal navio (caracterizada por um círculo de 500 metros de raio em besse o local onde estariam atracados.
não apoiavam as decisões dos altos comandos mili- Correio da Manhã, no dia 08 de abril de 1964, dado tôrno dêle) é considerada zona interditada, correndo o risco
tares. Havia também, dentre os presos, civis tidos pelo almirante Zilmar Campos de Araripe Macedo de ser hostilizada, com arma de fogo, qualquer embarcação Há poucas informações sobre as condições do navio-
como inimigos do regime recém instalado, principal- aos membros dos iates clubes e clubes de regatas: que se aproxime2.” -prisão Ary Parreiras. Entretanto, as fontes são
mente líderes sindicais dos trabalhadores portuá- mais elucidativas quanto aos usos da embarcação
rios e militantes de esquerda. “ O navio mercante ‘Princesa Leopoldina’, fundeado na A embarcação Princesa Leopoldina pertenceu à Raul Soares. Dois livros apresentam relatos de tes-
Baía de Guanabara, a meia distância do alinhamento dos fa- Companhia Costeira de Navegação e foi tomada temunhas que foram mantidas encarceradas em
Segundo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), pela Marinha para o uso como presídio improvisado suas celas: Raul Soares – um navio tatuado em nós,
os navios eram adaptados e transformados em cen- 1. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
Verdade. . Brasília: CNV, 2014. Volume 1, p. 823 2. Correio da Manhã - 08/04/1964, p.12. 3. Última Hora - 09/04/1964, p.02 e 21.

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no qual Lidia Maria de Melo conta a experiência de Em maio de 1964, o jornal Última Hora anunciou 17. YPIRANGA FUTEBOL CLUBE ram realizadas de forma ilegal e arbitrária, o que
seu pai, e Navio Presídio – a outra face da revolução, também que existia uma previsão de o navio Leo- superava a capacidade das delegacias, quartéis e
escrito e lançado pelo jornalista Nelson Gatto no ano poldina deixar de ser usado como prisão e voltar à presídios. Superlotados e insalubres, os locais de
de 1965, sendo automaticamente censurado e apre- Companhia Costeira. Por isso, os presos estavam detenção eram incompatíveis com o respeito a con-
endido pela polícia política. Em ambos os casos, os sendo gradativamente transferidos para outros lo- dições dignas de tratamento.
presos denunciam as torturas e condições degradan- cais em terra:
tes. Todavia, os relatos fazem referência ao período A cidade de Macaé, que possuía grande concentra-
em que o navio estava sob o comando do almirante “ Dos 150 militares presos [no navio], 60 já foram trans- ção de operários (sobretudo ferroviários) e de cam-
Júlio Bierrenbach, em Santos. Segundo a CNV, o na- feridos para terra, uns libertados definitivamente, alguns poneses, sofreu os efeitos desta intervenção. O lo-
vio teria chegado em São Paulo no dia 24 de abril de condicionalmente e outros transferidos para prisões em cal escolhido para manter os presos políticos foi o
1964, tendo permanecido em águas cariocas, então, quartéis de Exército, como CPOR, Fortaleza de Laje e Forte ginásio do Clube Ypiranga, fundado em 1926. Além
somente durante os primeiros dias da ditadura. Duque de Caxias5.” de ser utilizado para a prática de esportes, dispu-
nha também de uma área social para a realização
Os periódicos destacam ainda a condição de total re- A pesquisa realizada pela CNV registrou que esta- de bailes e festas de grande prestígio entre os mo-
clusão dos presos. No dia 8 de maio de 1964, o jornal ria também em funcionamento o navio-prisão Cus- radores de Macaé. O local servia como uma prisão
Última Hora noticia “Suspensa a incomunicabilida- tódio de Mello. Pertencente à Marinha, com arma- de triagem, de onde os presos eram enviados para
de: 17 oficiais já visitados por parentes”4. Ninguém, mentos e possibilidade de uso para transporte de Localização: Rua Presidente Sodré, 22, Esquina com a Rua Tenente-Coronel prestar depoimento no Forte Marechal Hermes, na
além de oficiais autorizados e presos, era permitido tropas, ele foi transformado em navio-prisão entre Amado Centro, Macaé, RJ delegacia da Polícia Civil (atual posto da Polícia
dentro das embarcações, e, por isso, as visitas dos abril de 19646 e janeiro de 1965, período em que te- Federal), ou – dependendo da avaliação dos agen-
familiares eram realizadas em terra, sendo os pre- ria permanecido atracado no cais leste da Ilha das A cidade de Macaé, município do Rio de Janeiro, fi- tes da repressão – para outros centros de repressão
sos levados a um ponto de encontro no Forte de São Cobras, no Porto do Rio de Janeiro. Sua estrutura cou conhecida, nos anos sessenta do século passado, no estado do Rio de Janeiro.
João, na Urca. A imprensa não podia acompanhar era de quinze camarotes convertidos em celas, em como “Moscouzinha”, devido a concentração de fer-
esses eventos – apenas aos jornais O Globo e Jornal sua maioria para marinheiros, muitos vindo do na- roviários da Leopoldina que lá desenvolviam ativi- Lauro Martins, presidente da Comissão Municipal
do Brasil foi permitido o acesso –, mas os parentes vio Princesa Leopoldina. dades políticas e sindicais. Com o golpe de Estado de da Verdade de Macaé, ex-preso do Ypiranga, parti-
relataram ao jornal Última Hora que não sabiam 1964, três centros de prisão foram montados na ci- cipou da diligência realizada pelas Comissões Esta-
informar o motivo das prisões ou por quanto tem- dade: a Delegacia de Polícia Civil, que atuava como dual e Municipal da Verdade, em setembro de 2014.
po durariam, afirmando que os detidos não haviam uma extensão do DOPS, o Forte Marechal Hermes, Ferroviário e dirigente sindical, logo depois do golpe,
sido interrogados. Os encarcerados também não do Exército, e o Ginásio do Ypiranga Futebol Clube, Lauro foi preso e levado para a Delegacia da Polícia
demonstravam interesse sobre os acontecimentos que passou a receber presos, a maioria ferroviários, Civil, onde passou quatro dias. Depois, foi encami-
políticos ou o estado de seus companheiros presos, por conta da lotação dos outros locais. nhado ao Ypiranga, onde ficou mais de 40 dias. Rela-
evitando falar sobre o tratamento que receberam ou tou, em testemunho prestado à Comissão Municipal
a condições de higiene do local. O jornal conseguiu No contexto da ditadura, os sindicatos e demais da Verdade de Macaé, a situação enfrentada pelos
ainda obter de fonte não-oficial a informação de que organizações de luta trabalhista passaram a ser presos no interior do estádio, ao qual se refere como
haveriam 500 presos no navio Princesa Leopoldina, duramente reprimidos sob o argumento de asso- “campo de concentração”:
a maioria dos quais continuava em completa clau- ciação à subversiva. Por conta da repressão, que
sura. Posteriormente, outras “visitas” foram reali- se seguiu ao golpe, os agentes do Estado recorriam “ O Ypiranga era um clube social que se dispôs a receber os
zadas nos mesmos moldes. frequentemente a locais clandestinos de detenção, presos políticos. Na época o presidente do clube era Rômulo
5. Última hora – 08/05/1964, p.03. tais como estádios esportivos. Prisões em massa fo- Lago Leite, que cedeu espaço para que o Ypiranga também se
4. Última Hora - 08/05/1964, p.03. 6. Última Hora - 30/04/1964, p.02. 

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tornasse um campo de concentração de presos políticos. (…) 18. ANTIGA DELEGACIA DA POLÍCIA dias, e posteriormente foi encaminhado para o Clu-
Tinha um ginásio, que está em ruínas agora pois é um lugar CIVIL DE MACAÉ be Ypiranga, permanecendo ali por mais 40 dias. Ao
amaldiçoado, éramos jogados ali ao relento, dormíamos no relembrar os primeiros dias após o golpe na cidade,
chão, nas marquises ou nos lugares onde ficavam os assisten- conta que:


tes, não comíamos, não deixavam que a gente levasse colchões
ou cobertores e passávamos frio, a privada era uma coisa Fomos presos. Foram uns 160 ferroviários e mais um gru-
horrível e o banho somente frio, nós que éramos mais jovens po enorme de intelectuais. Após o golpe, imediatamente come-
corríamos e pulávamos afim de conseguir tomar a ducha ge- çaram as prisões. Os intelectuais foram os primeiros a serem
lada, mas companheiros, já idosos, não conseguiam fazer isto presos pois tinham registros em partidos, a própria confissão
e ficavam sem banho. Era horrível, horrível mesmo1.” deles era denúncias de outros, já que muitos deles estavam
envolvidos em movimentos sem terra e sem teto. (…)
Uma das particularidades da repressão no Clube As prisões começaram imediatamente, demorou um pouco
Ypiranga foi o uso da parte esportiva como local de mais para os ferroviários porque nós ainda estávamos de
prisão concomitantemente à realização de ativida- greve e eles esperavam que voltássemos ao trabalho para nos
des na área social do clube, diferente do que ocor- prender. Muitos voltaram e outros não, mas os que voltavam
reu no Estádio Caio Martins, em Niterói. A realiza- eram encaminhados para a cadeia, onde hoje é a delegacia da
ção de festas prosseguiu normalmente. Há relatos polícia federal. Ali eles nos colocavam em celas pérfidas mistu-
de que os frequentadores do espaço conheciam a rados com os bandidos. Sofremos muito. Eles nos pegavam aos
Ginásio onde dormiam os presos políticos no Clube Ypiranga,
situação dos presos2. atualmente degradado poucos pois ali não cabia todo mundo, aí faziam uma espécie
Foto: Vitor Guimarães Localização: Rua Governador Roberto Silveira, no 247, Centro, Macaé, RJ de triagem por periculosidade que eles achavam que cada um
Após o período da ditadura militar, o Clube Ypi- tinha. Daí eles mandavam para o Rio, para presídios, que não
ranga entrou em decadência. Atualmente, o prédio Imediatamente após o Golpe de Estado de 1º de abril sei quais são, ou nos mandavam para o Ypiranga1.”
encontra-se em estado precário de conservação. Or- de 1964, uma onda de prisões em massa tomou a
ganizações sociais de Macaé reivindicam a criação cidade de Macaé. As pessoas detidas, principalmen- Em 26 de setembro de 2014, a CEV-Rio, em conjun-
de um espaço cultural, esportivo e museológico no te trabalhadores ferroviários, camponeses e intelec- to com a Comissão Municipal da Verdade de Ma-
local. A desapropriação realizada pela prefeitura da tuais, foram levadas para três centros de prisão: a caé, realizou uma diligência no edifício da antiga
cidade conseguiu evitar o leilão do imóvel, tornando Delegacia da Polícia Civil (hoje sede da Polícia Fe- Delegacia Civil da cidade. Na ocasião, Lauro Mar-
possível a construção de um Centro Cultural. deral), que atuava como espécie de “pólo” do DOPS, tins entrou no prédio pela primeira vez desde 1964.
o Forte Marechal Hermes, do Exército e o Ginásio do Segundo Lauro, a delegacia, à época da ditadura,
Ypiranga Futebol Clube. Em razão da superlotação possuía duas celas no segundo andar e uma subter-
das celas da Delegacia e do Forte, a sede do Clube rânea, conhecida como “cela pavorosa”, um subso-
passou a ser utilizada como carceragem provisória. lo escuro, sem água, luz ou qualquer outro contato
com o exterior além da porta de entrada. Essa sala
Lauro Martins, presidente da Comissão Municipal era usada pelos agentes da repressão para punir
da Verdade de Macaé, ex-presos político, ferroviá- os presos que não ofereciam respostas satisfatórias
rio, é um dos poucos sobreviventes daquele período. durante os interrogatórios. Outra prática relatada
1. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Lauro Martins para a Comissão Municipal
de Macaé em 19/06/2014. Lauro foi preso em maio de 1964 e levado para a
2. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Delegacia da Polícia Civil, onde passou cerca de 4 1. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Lauro Martins para a Comissão Municipal
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume 2, p. 74. de Macaé em 19/06/2014.

360 361
por Lauro foram as simulações de fuzilamento, re- 19. INVERNADA DE OLARIA No início da década de 1960, a Invernada realizou,
alizadas no terreno baldio ao lado da delegacia. Ele com o aval do governador Carlos Lacerda, uma série
conta que alguns presos eram retirados durante de detenções políticas, principalmente de estudan-
à noite e, momentos depois, ouviam-se tiros. Eles tes e líderes sindicais. Frente às denúncias realiza-
não voltavam para a cela, gerando medo e terror das pelos que nela foram presos, relatando as tor-
entre os demais detidos2. turas sofridas, o jornal Última Hora publicou uma
série de reportagens sobre algumas das violências
ocorridas na delegacia, relacionando-as inclusive
com a figura de Cecil Borer, um agente que desde
1932 atuava na polícia política e era ligado a grupos
de extrema direita. O jornalista Amado Ribeiro afir-
mou, em 05 de outubro de 1961:

“ A ‘Invernada’ de Borer tem tudo de um campo de concen-


tração, inclusive cercas de arame farpado. O prédio, propria-
mente dito, onde estão situados os xadrezes, forma um bloco
compacto, branco e azul com um teto de enorme laje, que,
visto do alto, assemelha-se a uma ‘casamata’ inexpugnável1.”
Localização: Rua Paranapanema, 769, Olaria, Rio de Janeiro, RJ

Batista de Paula, também jornalista e preso nessa


Situada em um bairro da zona norte da cidade do época, conta ao jornal sobre as condições do local:
Terreno baldio, que pertence à Delegacia de Polícia, onde ocorriam
Rio de Janeiro, a 2ª Subseção de Vigilância da Polí-
simulações de fuzilamento
Crédito: Vitor Guimarães cia, também denominada Invernada de Olaria, foi “ Não via nada, não sabia onde estava. (...) Sabia apenas
uma famosa delegacia que, nos anos 1960 e 1970, que estava em uma prisão, um xadrez infecto, com as pare-
Atualmente, o local está muito descaracterizado ficou conhecida pela violência policial. Por diversas des pintadas de um negro denso e opaco. (...) Somente pela
em relação ao que era durante a ditadura. Apenas vezes, a Invernada figurou em manchetes de jor- madrugada, quando ouvi latidos e uivos de cães, pude cons-
uma grade que separava a antiga carceragem e nais cariocas que denunciavam as torturas sofridas tatar que me encontrava recolhido na “Invernada” de Ola-
uma pequena cela debaixo da escada continuam pelos presos no local. ria, ao lado do canil mantido pela Polícia Militar, na Rua
iguais. A delegacia se tornou hoje um posto da Po- Paranapanema2.”
lícia Federal. A criação da Invernada tem suas raízes no final do
século XIX e início do século XX. Na época, “Inver- Em 13 de dezembro de 1962, ocorreu a prisão do ad-
nada de Olaria” era como se chamava o campo de vogado das Ligas Camponesas Clodomir Santos de
boiada do “Matadouro da Penha”, um abatedouro de Moraes, junto à sua companheira Celia Lima e ao
bois. Já em meados do século XX, o local se trans- motorista José Francisco da Silva. Acusados de car-
formou em um dos principais locais da repressão no regarem armas em seu carro, os três foram levados
estado do Rio de Janeiro, sendo inclusive apelidada à Invernada de Olaria, onde sofreram diversas tor-
de “Casa do Diabo”.
2. Acervo CEV-Rio. Relatório Diligência Delegacia da Polícia Federal Macaé. 1. Jornal Última Hora. Edição de 05/10/1961. p. 07.
26/09/2014. 2. Idem.

362 363
turas. Somado a esse caso, foi divulgada na impres- (DOPS), o presídio da Quinta da Boa Vista e o posto com parafusos, colocada na testa e parte de trás do crânio. Vigário Geral, Jardim América, Brás de Pina e Cor-
sa a denúncia de que a polícia estaria sistematica- policial do Alto da Boa Vista, que funcionou como Essa tira aperta a cabeça até que os olhos saltem e danifique dovil. O aquartelamento é dividido com o Batalhão
mente assassinando moradores de rua e desovando uma extensão da Invernada e era ligado ao Centro profundamente o cérebro. É uma tortura para matar, com de Ações com Cães.
seus corpos no Rio da Guarda. de Informações da Marinha (Cenimar). Ao longo da um nível de dor inimaginável5.”
ditadura, a Invernada continuou chamando atenção
Frente a tais acusações, criou-se, em 1963, uma pelo número de prisões, torturas e mortes no seu in- O laudo necroscópico de Aurora revelou 29 perfura-
Comissão Parlamentar de Inquérito, que indiciou terior, o que passou, contudo, a ser progressivamen- ções provocadas por tiros, além de cortes e queima- O Esquadrão da Morte: “Com a
quinze detetives para apurar a veracidade das de- te ocultado em função da censura e do endurecimen- duras no corpo. Seu crânio apresentava uma perfu- Invernada posso contar”
clarações prestadas. Durante a CPI, Clodomir, Célia to da repressão. ração de 2cm que decorreu do uso do instrumento
e Francisco foram ouvidos e acareados com seus al- de tortura conhecido como “coroa de cristo”. Tapajós O jargão, proferido pelo então governador da Gua-
gozes. Confirmando as acusações contra os policiais, Um caso paradigmático foi a morte, em 10 de no- ainda contestou a versão oficial, apresentada pelos nabara, Carlos Lacerda6, demonstra a conivência
os três laudos do exame de corpo de delito atestaram vembro 1972, da militante da Ação Libertadora Na- órgãos da repressão à ocasião, segundo a qual a mi- do Estado com as ações dos grupos de extermínio,
a presença de lesões corporais causadas por ação cional (ALN), Aurora Maria do Nascimento Furtado, litante teria sido confundida com uma traficante de atuantes no Rio de Janeiro desde a década de 1950.
contundente. O jornal Correio da Manhã acompa- a Lola. A atuação dos agentes da repressão chama drogas e que por isso teria sido torturada pelos poli- A Invernada de Olaria, marcada pela violência po-
nhou o caso e publicou, em 07 de novembro de 1964, atenção pela brutalidade cometida contra a militan- ciais da Invernada de Olaria: ‘‘Dizer que ela foi tor- licial, ficou também conhecida por ter em seu cor-
um depoimento de Clodomir descrevendo o que pas- te. Aurora foi capturada por agentes da 2ª Subseção turada por policiais comuns é tirar a responsabilida- po de agentes policiais ligados ao grupo que ficaria
sara na Invernada: de Vigilância na região de Parada de Lucas e leva- de dos membros do DOI-CODI e pelo que soubemos conhecido como “Esquadrão da Morte”, responsável
da sob espancamentos para a Invernada de Olaria. havia membros do serviço secreto da Aeronáutica na por diversas execuções entre os anos de 1950 e 1970.
“ Pouco mais tarde fui encaminhado para uma cela onde Na delegacia, a militante sofreu diversas sessões de tortura de Lola’’.
havia cerca de vinte pessoas (...). Como não morava no Rio eu tortura e seu corpo foi entregue mutilado aos fami- A criação do “Esquadrão da Morte” tem suas raízes
não sabia bem o que se tratava, mas os companheiros de cela liares. A advogada Eny Moreira, que acompanhou o A afirmação de Renato Tapajós, que associa o traba- em 1958, quando o general Amaury Kruel, então
logo esclareceram: a Invernada era o local de assassinatos, caso, declarou à Comissão Nacional da Verdade: lho dos agentes da Invernada com outras esferas da chefe da polícia no Rio, criou um grupo especial para
repressão, já havia sido anunciada em 1964 pelo jor- combater a “criminalidade”. Cedendo às pressões

espancamentos e torturas. Alguns exibiam as mãos inchadas
de palmatória; um deles tinha o corpo todo cortado a gilete A última coisa que fizeram com ela foi apertar um torni- nal Correio da Manhã. Na coluna “Doença e Cura”, de comerciantes da região da Invernada de Olaria,
porque, não suportando as torturas, tentara se matar. (...) Aí quete que eles ironicamente chamavam de “Coroa de Cristo” em 16 de setembro, ao criticar o governador Carlos assustados com a onda de assaltos que acometia a
começou o suplício: Felipão [detetive Felipe Mathias Altério] (...). A Aurora tinha um pano branco cobrindo o corpo e mui- Lacerda e acusá-lo de colocar parte de seu aparato localidade, foi formado o Serviço de Diligências Es-
batia com a palmatória na sola dos pés e os outros, em to- tas flores. (...) A gente ficou ali tentando tapar aquelas feridas policial à disposição do Cenimar, o jornal questio- peciais (SDE). Esse grupo possuía livre atuação na
das as partes do corpo. Dali a pouco, um dos detetives, do tipo para que o pai e a mãe da Aurora não vissem aquilo4.” nava-se: ‘‘Quem calou quando tanta gente era per- cidade, podendo empregar, com a certeza de impuni-
‘lombrosiano’, passou a aplicar choques elétricos nos ouvidos. seguida ou torturada? Quem autorizou as torturas dade, métodos violentos para conter e punir pessoas
A dor era insuportável. Perdi os sentidos várias vezes, mas os Denunciando as torturas sofridas por Aurora, Re- no DOPS, na Invernada de Olaria, e a utilização dos acusadas de crimes comuns.
policiais me obrigavam a recuperá-lo (…)3.” nato Tapajós, seu cunhado à época, testemunhou à seus agentes nos espancamentos do Cenimar?’’.
Comissão da Verdade do Estado de São Paulo: Na década de 1960 as funções do SDE foram pulve-
Com o golpe de 1964, a Invernada de Olaria conti- O prédio em que funcionava o centro de detenção rizadas para outros departamentos, entre eles a In-
nuou a ser destino de presos políticos. Logo nos pri- “ Ela foi pendurada no pau de arara com o joelho destro- e tortura retornou aos militares e hoje abriga o 16º vernada de Olaria. Outra divisão que recebeu parte
meiros dias do regime militar, ela se transformou çado pelo tiro que havia levado. Aplicaram-lhe choques, pan- Batalhão da Polícia Militar, que atua na região de das incumbências do SDE foi a Delegacia de Vigi-
em um dos principais locais de prisão, juntamente cadas e finalmente a coroa de cristo, que é uma tira de metal Olaria, Penha, Penha Circular, Parada de Lucas, lância, sob o comando do detetive Milton Le Cocq,
com o Departamento de Ordem Política e Social 5. Depoimento de Renato Tapajós à Comissão Estadual da Verdade do Estado
o Gringo, já conhecido pela violência empregada
4. Depoimento de Eny Moreira à Comissão Nacional da Verdade, em de São Paulo “Rubens Paiva”, em 10/04/2013. Disponível em https://www.you-
3. Jornal Correio da Manhã. Edição de 07/11/1964. p. 03. 11/12/2012. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BRp9FrTA9k4 tube.com/watch?v=rGmujBbTNpk 6. Jornal Correio da Manhã. Edição de 07/11/1964. p. 3

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em suas ações7. Durante uma operação policial, em baixa renda, esses grupos de extermínio, formados cenário de acirramento da repressão e utilizando- sim na época do General Kruel, do Coronel Borges e está sendo
1964, Le Cocq foi morto por Manoel Moreira (co- por policiais, delegados e investigadores das polícias -se da coerção e do abuso de suas funções, os poli- agora com o General França. Esperamos que o distinto povo
nhecido como “Cara de Cavalo”), perseguido pelo civil e militar, contavam com o apoio do Estado e a ciais envolvidos nos crimes de tortura e execução, na da Guanabara compreenda nossa intenção10.”
detetive a pedido de um contraventor, insatisfeito certeza da impunidade. Durante as décadas de 1960 enorme maioria das vezes, não foram investigados
com a extorsão que Cara de Cavalo realizava em e 1970, eles se disseminaram para vários estados ou punidos por seus crimes. A falta de vontade polí- A lógica de uma cultura policial violenta e autoritá-
troca de proteção. Visando vingar a sua morte, foi do país, como São Paulo, Espírito Santo, Alagoas e tica para identificar e responsabilizar os autores das ria, aprofundada no período ditatorial, produz efei-
criada a “Scuderie Le Cocq”, formada por agentes Ceará, mantiveram relações corruptas com trafican- execuções fica clara na fala do então membro “porta- tos no presente, permitindo a manutenção do grave
de segurança que perseguiram Manoel e o assas- tes de drogas e contraventores e atuaram junto à -voz” do Esquadrão da Morte, conhecido como Rosa quadro de desrespeito aos direitos humanos e de
sinaram com mais de cinquenta tiros. A Scuderie repressão política. Vermelha, que, ao comunicar os mortos da semana repetição das violações perpetradas pelas polícias
continuou atuando, realizando a perseguição e a ao jornal Última Hora, afirmou: principalmente contra a população pobre, negra e
execução de pessoas acusadas de crimes comuns, As execuções praticadas pelo Esquadrão da Morte – de áreas marginalizadas.
ficando conhecida como sinônimo do Esquadrão da normalmente anunciadas para a imprensa por um “ A distância entre a Justiça e a polícia nem sempre permite
Morte. Isto se deveu ao fato de o grupo utilizar a de seus membros, conhecido como“Rosa Vermelha”9– um combate mais eficaz ao crime e aos criminosos. Assim, só
sigla “E.M.”– que remetia ao Esquadrão Motoriza- podiam ser identificadas pelas marcas de tortura no nos resta falar a mesma linguagem deles: a lei do cão. Sempre
do da antiga Polícia Especial, criada durante o go- corpo da vítima e pelas numerosas perfurações por que contarmos com o apoio do Secretário de Segurança que
verno Vargas para efetuar a repressão policial, ao armas de fogo de diversos calibres, contendo, por ve- queira ver a cidade livre do crime, nós trabalharemos. Foi as- 10. Revista Veja, de 29 de julho de 1970, p.31
qual Le Cocq pertencera – e adotava a caveira com zes, a imagem da caveira como característica mar-
duas tíbias cruzadas como símbolo. cante. Em regra, os corpos eram encontrados com
as mãos amarradas para trás e com um fio enrolado
Em 1969, com a publicação do Decreto 667 pelo no pescoço. Pesquisas realizadas pela CEV-Rio nos
então presidente Costa e Silva, ocorreu a reorga- arquivos do Instituto Médico Legal encontraram nu-
nização das polícias em âmbito estadual. Com o merosos laudos cadavéricos contendo essas descri-
discurso de manutenção da segurança interna e ções, o que indica a extensão da atuação dos grupos
da ordem pública, o patrulhamento das ruas pas- de extermínio no estado do Rio de Janeiro.
sou a ser responsabilidade das Polícias Militares.
É nesse contexto que alguns membros da Scuderie Com claro desvirtuamento de suas funções, os poli-
Le Cocq foram chamados, pelo então Secretário de ciais envolvidos na atuação desses grupos contaram
Segurança Pública, Luis França, para formar um com a conivência do Estado e de parte da sociedade
grupo de elite da polícia civil, os “Doze Homens de civil. A permanência e a expansão do Esquadrão da
Ouro” 8, que atuou no Rio de Janeiro com liberda- Morte revelam a estratégia de controle social por
de para torturar e executar aqueles que eram tidos meio da violência, empregada contra a população
como “socialmente indesejáveis”. pobre. O Estado ditatorial, com o discurso de manu-
tenção da ordem interna, foi não apenas cúmplice
Atuando como um verdadeiro Esquadrão da Morte como também responsável pela atuação dos grupos
e voltando-se principalmente para as populações de de extermínio durante a ditadura militar. Em um
9. O codinome de Rosa Vermelha pode-se prender à explicação dada via te-
7. LEITÃO, Alexandre. Os Primeiros Esquadrões. Disponível em http://www. lefone à redação de um jornal em que ele afirmava: Sinto um prazer quase Parede pichada com o símbolo do Esquadrão da Morte. Maio de 1965
rhbn.com.br/secao/artigos/os-primeiros-esquadroes sexual ao ver balas perfurando os corpos dos criminosos e o sangue brotando Foto: Arquivo Nacional, Fundo: Correio da Manhã
8. LEITÃO, Alexandre. Faca na Caveira. Disponível em http://www.rhbn.com. como uma rosa vermelha da terra. (Ver Revista Veja, de 29 de julho de 1970,
br/secao/artigos/faca-na-caveira p.31) BR_RJANRIO_PH_0_FOT_01078_012

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pedra, entramos em uma sala de madeira que dava acesso
20. CASA DE SÃO CONRADO No depoimento, Ottoni Jr. revelou ter encontrado
por sua vez a uma sala com piso de madeira, eu vou contar
como João Carlos Tralli5. Por fim, no depoimento à
com o preso Eduardo Leite, o “Bacuri” na casa de CNV, ele relacionou ainda o agente da Polícia Fe-
esse detalhe porque depois tem como identificar a casa. Então
Localização: desconhecida, São Conrado, Rio de Janeiro, RJ São Conrado: deral, lotado em São Paulo, Ademar Oliveira6, tam-
eu percebi claramente, primeiro, eu passei um patamar, devia
bém da equipe de Fleury.
ser uma ligação entre essa parte onde estava a escada e a casa,
A casa de São Conrado era um imóvel usado pelo
a casa era mais sólida, mas você percebia que o piso era de
Centro de Informações da Marinha (CENIMAR)
madeira. Eles me jogaram no chão, começaram a me torturar,
como mais um centro clandestino de prisão e tortura
já no chão desse quarto, no nível da entrada2.”
no começo da década de 1970, no qual também atu-
avam equipes do DOPS de São Paulo, comandadas
pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Sua existên- Também o ex-agente da repressão Marival Chaves
cia foi denunciada por Ottoni Guimarães Fernandes confirmou a passagem de Bacuri por aquele centro
Júnior, na 1ª Auditoria da Aeronáutica do Rio, em clandestino:
19741, no seguinte depoimento:
“ Tem outro que o Fleury usou. (...) Bacuri, ele esteve nesse
cárcere no Rio de Janeiro, ele morreu em São Paulo, no DOPS,
chegou lá todo arrebentado, não é? (...) Ele esteve nesse cárce-
re no Rio de Janeiro3.”
Trechos do depoimento de Ottoni Guimarães Fernandes Júnior na 1ª
Auditoria da Aeronáutica
Crédito: Projeto Brasil Nunca Mais Digital Com poucos testemunhos sobre a casa, sua locali-
zação permanece desconhecida. Mas, pelos depoi-
Antes de falecer, em dezembro de 2012, Ottoni re- mentos de Ottoni Jr. sabe-se que por ali circula-
petiu o mesmo depoimento à Comissão Nacional da ram cerca de 20 agentes da repressão, inclusive
Verdade (CNV): um médico que dava assistência para que os pre-
sos pudessem continuar sendo torturados. Além de
“ Me botaram em um carro, me vendaram, me botaram um Fleury, ele denunciou a presença do comandante da
capuz. [...] Aí eles me levaram. Na época, eu achei estranho, Marinha, Armando Amorim do Valle4, do motorista
porque mesmo encapuzado eu percebia que a gente estava conhecido como Trailler, que no depoimento à CNV
indo para o sul e eu imaginava que eu ia ou para a Barão de citou como Luís Carlos, mas na lista de torturado-
Mesquita, que era o centro de tortura do DOI-CODI do Rio de res preparada por presos políticos está identificado
Janeiro, ou para o Galeão, que era outro centro de tortura, ou
para o Cenimar, que era no 1º Distrito Naval na praça Mauá.
Eu estava indo pelo cheiro do mar, pelo barulho da onda, eu
estava indo para o sul. Como militante eu tinha que conhecer 2. Testemunho de Ottoni Fernandes em Audiência Pública da Comissão Na- 5. João Carlos Tralli, Investigador da PF; desde 1969 estava no DEOPS-SP;
cional da Verdade com a Comissão Estadual da Verdade de-São Paulo sobre conhecido como Trailler; era do Esquadrão da Morte; atuou no DEIC-SP em
a cidade como a palma da mão. Aí, depois passou uma es- os casos de Luiz Eurico Tejera Lisboa e Eduardo Leite, em 12/11/2012. Dispo- 1982; foi exonerado da Polícia (1984), conforme Lista de Torturadores da
nível em https://www.youtube.com/watch?v=F3lSNhNAlJo Ditadura Preparada pelos Presos Políticos 1970-1980, disponível em: http://
trada de terra, eu imaginei que podia estar indo para o Alto 3. Arquivo CNV. 00092.000664/2013-10. Depoimento de Marival Chaves à CNV www.documentosrevelados.com.br/wp-content/uploads/2014/12/torturado-
em 21/11/2012. respdf.pdf
da Boa Vista, mas sabia que era para o sul e estranhei muito 4. Armando Amorim do Valle, Capitão de Fragata; servia no CENIMAR (1970- 6. Ademar Augusto de Oliveira, Investigador da PF; lotado no DEIC-SP; em
isso. Aí eles pararam em um pátio de cascalho, os policiais me 1973); atuou na Casa de São Conrado, local secreto de torturas no RJ (1970), 1968 era do Esquadrão da Morte; conhecido com Fininho, conforme Lista
conforme Lista de Torturadores da Ditadura Preparada pelos Presos Políticos de Torturadores da Ditadura Preparada pelos Presos Políticos 1970-1980,
agarraram pelo braço, descemos uma escada, uns degraus de 1970-1980, disponível em: http://www.documentosrevelados.com.br/wp-con- disponível em: http://www.documentosrevelados.com.br/wp-content/uploa-
1. Arquivo Brasil Nunca Mais Digital, Tomo V, Vol. III p. 414 tent/uploads/2014/12/torturadorespdf.pdf ds/2014/12/torturadorespdf.pdf.

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21. SÍTIO NÃO-IDENTIFICADO DE SÃO Na verdade, nem o acidente foi tão corriqueiro como levaram até a estrada da Cascatinha, na Baixada
JOÃO DE MERITI se imaginava, tampouco o jovem casal de estudantes “ Suspeitas recaíram sobre o acidente desde o início (...) No Fluminense, quando começaram a espancá-los.
da Universidade de São Paulo e militantes da Ação jornal “Última Hora”, de 22 de novembro de 1968, cuja man- Queriam informações sobre um tal professor. João
Localização: Km 69 da Via Dutra, próximo a Vassouras Libertadora Nacional (ALN) estava envolvido nos chete era ‘Esta confusa história da metralhadora’, o investiga- Antônio foi com parte da equipe atrás do professor,
crimes que lhe foram imputados. dor de polícia da delegacia de Vassouras, Antônio Lanzzerotti, enquanto Catarina foi para o sítio em São João do
No km 69 da BR-116, próximo a Vassouras, no dia que foi ao local do acidente, afirmou à reportagem ‘é impossí- Meriti. Lá, os agentes da repressão colocaram-na
8 de novembro de 1968, a cena era de um corriquei- Na madrugada do dia do acidente, o casal deixou o vel acontecer um desastre da forma como ocorreu no quilome- em um pau de arara, levando-a novamente a ficar
ro acidente em estradas brasileiras. No Boletim de Hotel Canadá, em Copacabana, onde se hospedara tro 69. É verdade que na Rio-Bahia sempre há uma batida ou inconsciente. O mesmo aconteceu com João Antô-
Ocorrência na delegacia de polícia do município re- em suposta lua de mel desde o dia 4 de novembro. outra, mas nunca em uma reta de quatro quilômetros, há sus- nio, ao chegar ao sítio. Ao fim deste segundo inter-
gistrou-se que: Oficialmente, o delegado do DOPS da Guanabara, peitas de que o casal vinha sendo seguido e mais tarde empur- rogatório, o comandante da operação conclui que
Manoel Villarinho, recebeu este informe apenas no o casal não tinha mais utilidade para o Exército.

rado contra o caminhão. Eu acho que é bem provável que isso
foi dado ciência à Polícia às 20 horas de 8/11/68. Três po- dia 19, onze dias após o acidente, através do policial tenha ocorrido’. Na matéria consta também o depoimento de Atirou na cabeça de ambos. Ao contestar os assas-
licias se dirigiram ao local constatando que na altura do km Darcy Schettino Rocha3. Curiosamente, na véspera Júlio Hofgeker, que fazia o trabalho fotográfico para a polícia sinatos, Valdemar diz ter sido expulso do local. Na
69 da BR-116, o VW 349884-SP dirigido por seu proprietário deste informe, isto é, na edição do dia 18, o Diário da de Vassouras. Irritado, quando lhe proibiram de documentar audiência, ele complementou:
Noite, de São Paulo, noticiava a passagem do casal

João Antônio dos Santos Abi-Eçab, tendo como passageira sua o material das sacolas encontradas no carro5.”
esposa Catarina Helena Xavier Pereira (nome de solteira), ha- pelo hotel, com base em informações repassadas pelo Para a gente fechar esse caso, após isso aqui, eu fiquei sa-
via colidido com a traseira do caminhão de marca De Soto, policial paulista Angelino Moliterno, que chefiava Apesar destas contestações, a versão da morte aci- bendo por meio de pessoas que estavam presentes que esse aci-
placa 431152-RJ, dirigido por Geraldo Dias da Silva, que não uma equipe no Rio, provavelmente atrás dos jovens. dental perdurou até abril de 2001, quando foi derru- dente entre aspas perto de Vassouras foi arranjado, foi vindo
foi encontrado. O casal de ocupantes do VW faleceu no local. bada pelo trabalho do repórter Caco Barcelos, da TV com o carro, feito o rastro de frenagem e foi dado ré com o
Após os exames de praxe, os cadáveres foram encaminhados Mesmo para mais um corriqueiro acidente de car- Globo, que localizou o ex-soldado Valdemar Martins caminhão, isso tudo ajeitado, tudo acertado. (…)
ao necrotério local1.” ro, o comportamento da polícia local foi estranho, de Oliveira. Assim surgiu a notícia da existência de Porque as fotos, tinham fotos que deviam e devem estar em
como lembrou, 37 anos depois, o advogado Belisário um centro clandestino de torturas no município de algum lugar com rastro de frenagem do fusca que vai até me-
Na imprensa2, o acidente só foi noticiado dez dias de- Santos Jr. ao analisar na Comissão Especial sobre São João de Meriti. tade do caminhão, nunca vi uma coisa dessa. (…)
pois, a partir das informações divulgadas pela polícia Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) o pro- Outra é a tal da metralhadora. Essa metralhadora, eu tenho
de São Paulo. Especulavam com o fato de nos destro- cedimento administrativo que concedeu ao casal o O ex-soldado repetiu seu depoimento na audiência aqui o laudo dela, essa metralhadora tem origem, tem núme-
ços do carro terem sido encontradas uma metralhado- status de mortos políticos: “Não há registro de perí- pública da Comissão Rubens Paiva (SP). Explicou ro, série e tudo, é uma metralhadora Ina, calibre 45, tem ori-
ra e uma pistola. Com isto, tentavam envolver o casal cia de local ou dos veículos, apenas da metralhadora que o casal começou a ser investigado pelo Exército gem em Brasília, é só seguir a numeração dessa metralhado-
no assassinato do capitão do Exército dos Estados Uni- encontrada. Os documentos oficiais afirmam a tese após a morte do militar americano, por suspeita- ra, saberá onde ela chegou e com que estava que com certeza
dos, Charles Rodney Chandler, ocorrido dias antes em do acidente – o carro em que viajavam colidiu com rem do envolvimento dos dois, o que jamais foi con- não estava na mão desses jovens, porque quando eles foram
São Paulo, em 12 de outubro. Também pretenderam a traseira de um caminhão, na BR-116, às 19h35”4. firmado. Durante algum tempo, foram acompanha- presos eles não tinham nada, pelo menos que eu tenha visto
responsabilizar os jovens pelo assalto a um carro forte dos de perto. No dia 8 de novembro, ele participou eles chegarem com isso6.”
do Instituto de Previdência do Estado da Guanabara Na audiência pública em que a Comissão Estadual de um grupo de agentes da repressão, comandados
(IPEG) ocorrido na manhã do mesmo dia do acidente. da Verdade Rubens Paiva (SP) analisou simultanea- por Freddie Perdigão, os quais, acompanhados de As certidões de óbito de João Antônio e Catarina
mente a morte do casal Catarina Helena e João An- uma pessoa chamada Miro, foram à Vila Isabel, Helena registravam como causa da morte “fratura
1. Procedimento administrativo Comissão Especial sobre Mortos e Desapare-
cidos Políticos (CEMDP) nº 090/02, em nome de Catarina Helena Abi-Eçab, tônio, foi ressaltado que: onde os dois jovens foram sequestrados. Depois os de crânio com afundamento (acidente)”. Com auto-
relator Belisário Santos Jr. Dispoinível em: http://cemdp.sdh.gov.br/modules/
desaparecidos/acervo/ficha/cid/196. Acessado em: 11 out. 2015.
2. O mistério da Via Dutra. Diário da Noite. São Paulo: 18 nov. 1968, p.19. 3. Arquivo Brasil: Nunca Mais Digital: pasta 029, p.917. 5. Acervo Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva. 6. Acervo Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva. De-
Acidente traz pista à morte de Chandler. Correio da Manhã. Rio de Janeiro: 4. Procedimento administrativo Comissão Especial sobre Mortos e Desapare- Memorial do casal Abi-Eçab, 42ª Audiência Pública, Plenário Tiradentes, poimento de Valdemar Martins de Oliveira, 42ª Audiência Pública, Plenário
19 nov. 1968, p.10. Polícia Confidencial: Marighela é um dos integrantes da cidos Políticos (CEMDP) nº 090/02, em nome de Catarina Helena Abi-Eçab, 16/05/2013. Disponível em: http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-iii/down- Tiradentes, 16/05/2013. Disponível em: http://verdadeaberta.org/relatorio/
“Colina”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro: 20 nov. 1968, p.11. relator Belisário Santos Jr, citado acima. loads/III_Tomo_2013-Audiencias-Comissao-daVerdade-SP.pdf; tomo-iii/downloads/III_Tomo_2013-Audiencias-Comissao-daVerdade-SP.pdf.

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rização dos familiares de Catarina, Caco Barcelos
promoveu a exumação do corpo da estudante. “Os
laudos da exumação concluíram que a morte foi con-
sequência de “traumatismo crânio-encefálico” cau-
sado por “ação vulnerante de projétil de arma de
fogo”, indo contra a hipótese de acidente”7, lembrou
Belisário em seu voto na CEMDP.

O sítio de São João do Meriti foi um dos centros clan-


destinos utilizados pela ditadura militar. Teria per-
manecido ignorado não fosse o testemunho de Valde-
mar Martins. Ele e Caco Barcelos tentaram descobrir
a localização da chácara. A busca não teve sucesso.
Apesar da ausência de mais informações, em entre-
vista para a CEV-Rio, o coronel Paulo Malhães confir-
mou, de forma sucinta e monossilábica, sua existên-
cia e seu uso como local de tortura:

“ CEV-Rio - E aqui na Baixada, quem é que fez um aparelho?


Se não me engano em São João de Meriti....
CEV-Rio - Tinha isso, coronel? Um sítio aqui.? Disseram que
tinha um sítio aqui? Um sítio aqui em São João, o senhor lem-
bra disso?
Malhães – Conheci...8”

Até hoje continua sendo um mistério a sua localiza-


ção, bem como o seu proprietário.

7. Procedimento administrativo Comissão Especial sobre Mortos e Desapare-


cidos Políticos (CEMDP) nº 090/02, em nome de Catarina Helena Abi-Eçab,
relator Belisário Santos Jr, citado acima.
8. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Paulo Malhães para a CEV-Rio em feve-
reiro e março de 2014. Foto: Bruno Marins

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PARTE V
AUTORIA DAS GRAVES
VIOLAÇÕES DE
DIREITOS HUMANOS

Foto: Bruno Marins

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Capítulo 20 – AUTORES DAS GRAVES elaborado pela jurista norte-americana Diane Oren- dimento do objetivo legal de identificação de autoria gera a de seus próceres de utilizar estratégias e táticas da
VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS tilicher2; necessidade de registrar que a listagem deste capítulo certa- Guerra Revolucionária e da Doutrina de Seguran-
SEGUNDO A CEV-RIO mente não é exaustiva, não incluindo nomes cujo envolvi- ça Nacional.
3) Os “Mecanismos legais para Estados saídos de mento na prática de graves violações é conhecido, mas não
Comissões da Verdade devem contar a verdade conflitos: comissões da verdade” (2006), documento se encontra comprovado pelos meios adotados pela CNV. Por Ressalte-se que os antecedentes da Guerra da Ar-
íntegra e completa sobre os fatos, narrando-os produzido pelo Alto Comissariado da ONU para Di- fim, há situações em que os autores ainda não estão identifi- gélia e da Guerra do Vietnã, a que se vinculava o
circunstanciadamente e indicando os autores das reitos Humanos3. cados, podendo sê-lo no futuro6.” engajamento no processo de guerra revolucionária e
graves violações de direitos humanos investigadas. o uso da Doutrina de Segurança Nacional, no Bra-
Desde que as comissões da verdade começaram a Também a Corte Interamericana de Direitos Huma- Ao estabelecer a verdade sobre os fatos nesta dimen- sil, deixaram muito clara para seus adeptos a opção
ser constituídas, no início da década de 70, apenas nos (Corte IDH), na sentença do caso Gomes Lund e são crucial em seu Relatório Final (ainda que restri- pela prática de graves violações de direitos. Torna-
três – a de El Salvador, a de Serra Leoa e a Comis- outros (caso Araguaia) vs. Brasil4, que julgou graves tamente por não dispor de provas suficientes para ram, também, muito nítida para a sociedade bra-
são Nacional da Verdade do Brasil – nomearam os violações de direitos praticadas pelo Estado brasi- nomeação mais ampla), a CNV obteve expressivo sileira sua opção por desconsiderar a convenção de
autores. No entanto, esta nomeação é uma das exi- leiro durante a designada Guerrilha do Araguaia, apoio e reconhecimento internacional. Em fevereiro Genebra, as leis da guerra entre Estados civilizados
gências contemporâneas para o pleno exercício do impôs-lhe a obrigação de criar uma comissão da ver- de 2015, o Transitional Justice Reserach Collabora- e o reconhecimento de que qualquer pessoa merece
direito à verdade. dade e estabeleceu para esta comissão o dever de tive, instituição constituída para avaliar o desempe- respeito ao que se chama de dignidade humana.
identificar os correspondentes autores, responsabi- nho das comissões da verdade criadas no mundo nos
Atenta ao trabalho das comissões da verdade, a Or- lizando-os factualmente5. últimos cinquenta anos, mediante avaliação de pes- Entre os anos sessenta e setenta e, especialmente,
ganização das Nações Unidas (ONU), vem, por meio quisadores especializados, afirmou que a CNV reali- durante o governo Kennedy, a CIA divulgou no âm-
de seus órgãos, ditando normas e princípios para Atendendo a este conjunto de normas internacio- zou um trabalho exemplar na indicação de autores e bito das Forças Armadas dos países alinhados com
estabelecer o alcance do que se deve entender por nais, à determinação da Corte Interamericana e se na recomendação de seu julgamento7. os Estados Unidos em relação à Guerra Fria suas
verdade. Três documentos da ONU, desde o final do submetendo à Lei nº 12.528/2011, que a constituiu, “técnicas” de luta contra a “subversão comunista”.
século passado, destacam-se no estabelecimento da a Comissão Nacional da Verdade brasileira (CNV), A Comissão da Verdade do Rio ratifica os resulta- Os militares brasileiros que desfecharam o golpe
exigência de identificação dos autores dos fatos que decidiu nomear os autores das graves violações de dos a que chegou a CNV, não apenas por conside- e impuseram a ditadura acolheram a ideia de que
correspondem a graves violações de direitos huma- direitos identificados em suas investigações. A rela- rá-los pertinentes, mas também porque subsidiou a América Latina e, em especial, o Brasil viviam
nos, como prisões ilegais e arbitrárias, tortura, de- ção apresentada não é, entretanto, exaustiva, como sua produção relativamente aos casos do Rio de Ja- o início de uma guerra não convencional, que os
saparecimento forçado, execuções arbitrárias e ex- observa a própria CNV: neiro. A CEV-Rio subscreve também a tipologia de legitimava a praticar, em contrapartida, qualquer
trajudiciais. São eles: autores das graves violações de direitos utilizada ilegalidade e tipo de violência. Ainda antes de 1964
“ Para a identificação de autoria, a CNV procedeu com ex- pela CNV, a qual ultrapassa a figura de seus exe- programas de formação militar ministrados pela
1) Os Princípios Joinet ou “Conjunto de princípios trema cautela, buscando sempre fundamentá-la a partir de cutores diretos. CIA foram desenvolvidos na América do Sul e no
para a proteção e promoção de direitos humanos por documentos, depoimentos de vítimas e testemunhos, inclusi- Brasil. Militares fizeram cursos em Fort Bragg, Ca-
meio de combate à impunidade” (1997)1; ve de agentes públicos que participam de repressão. (...) O Como foi amplamente comprovado pelo trabalho da rolina do Norte e Fort Benning, Georgia, nos Esta-
cuidado que marcou o tratamento dado pela CNV ao aten- CNV e da CEV-Rio, a prática das graves violações dos Unidos. Posteriormente, principalmente entre
2) O “Conjunto atualizado de princípios para a pro- desenvolveu-se de forma planejada e sistemática, 1966 e 1976, membros de nossas Forças Armadas
teção e promoção dos direitos humanos por meio da 2. Informe de Diane Oretlicher, especialista encarregada de atualizar o constituindo um padrão de comportamento então estudaram na Escola das Américas, no Panamá.
conjunto de princípios para a luta contra a impunidade. Arquivo CNV,
luta contra a impunidade” (2005), documento soli- 00092.000102/2015-38. adotado pelas Forças Armadas, a partir da decisão Ao mesmo tempo, o Brasil criou, em Manaus, o seu
3. “Rule of law tools for post-conflict states: Truth commissions”, do Alto
citado à Comissão de Direitos Humanos da ONU e Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Arquivo CNV, centro de instrução nas técnicas da guerra revolu-
00092.000106/2015-16.
1. Informe final elaborado por M. Joinet na aplicação da decisão 1996/119 4. Corte IDH. Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil.
6. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume I. p. 843, § 3. cionária: o Centro de Instrução de Guerra (CIG).
da Subcomissão de Prevenção de Discriminação e Proteção de Minorias da Sentença de 24/11/2010. Arquivo CNV, 00092.000112/2015-73. 7. Justice Collaboration. Disponível em https://www.foreignaffairs.com/arti- A partir de 1976 o CIG passou a ser uma escola de
Comissão de Direitos Humanos, ONU. Arquivo CNV, 00092.000101/2015-9. 5. Idem. cles/south-america/2015-02-26/nothing-truth.

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terrorismo de Estado. O site da Escola registra que A responsabilidade pelo controle de estruturas e 1964 a medalha, com a especial distinção da Palma, por diplomatas e adidos culturais e militares, con-
ali foram treinados 400 estrangeiros. Foram, en- pela gestão de procedimentos diz respeito aos agen- foi concedida a militares que serviram no Araguaia templados e colocados em lugares estratégicos da
tretanto, muitos mais, pois alguns países que uti- tes, que por ação ou omissão, permitiram que graves e aos principais torturadores do regime. burocracia estatal. Contudo, a tortura como forma
lizavam os serviços do Centro solicitaram reserva violações de direitos humanos fossem praticadas em de aniquilamento físico e moral dos opositores, como
em relação aos alunos que ali fizeram cursos. unidades do Estado, sob sua administração. Chefes Autores Diretos: torturadores e seus modo de dominação e silenciamento da imensa mas-
do DOI do I Exército, por exemplo, um dos principais cúmplices sa de detidos foi o mecanismo fundamental e o aríe-
Não foram os agentes responsáveis por perpetrar locais de prisão, tortura e assassinato da ditadura, te da nossa repressão.
diretamente as graves violações de direitos que de- mesmo sem participar diretamente das práticas de É muito extensa a tipologia dos torturadores que se
liberaram sobre o uso sistemático da tortura, sobre tortura estão vinculados a esta espécie de autoria e pode construir a partir dos depoimentos de vítimas, Como salienta a pesquisadora Janaína de Almeida
os desaparecimentos forçados – em alguns casos se- respectiva responsabilidade. familiares, testemunhas e mesmo de suas confis- Teles: “No que tange à organização do Estado, não
quenciados – e sobre a posterior ocultação dos cadá- sões. A despeito de quase todos exibirem os clássicos houve uma simples continuação ou repetição aumen-
veres. A prática das graves violações, envolveu toda A responsabilidade pela autoria direta das graves traços da designada personalidade autoritária, isto tada de práticas antes vigentes, mas uma reorganiza-
a estrutura repressiva do Estado, tendo no vértice violações relaciona-se com a participação do conjun- é, avessa a concepções de maior igualdade entre os ção do aparelho repressivo previamente instalado”8.
a Presidência da República, organizando-se em ca- to de algozes indicados em depoimentos, ou acarea- seres humanos, estes traços articulam-se de forma E explicando a reorganização ocorrida recorda:
deias de comando, com a participação coordenada ções de vítimas, familiares, testemunhas, confissões e em graus diferentes no comportamento de cada
de agentes de diferentes níveis hierárquicos, impli- dos próprios perpetradores, ou documentos, nas cor- torturador. A razão fundamental, entretanto, para “ As Forças Armadas coordenavam esse aparato e se envol-
cando algumas vezes em cooperação entre distintos respondentes práticas. que tenham atuado como torturadores, não foi o seu veram efetivamente nele, assumindo o papel de polícia políti-
órgãos das Forças Armadas e das diferentes Polícias autoritarismo e sadismo, compelindo-os à prática de ca e dedicando-se com ímpeto singular na história do país à
(Militar e Civil, Federal e Estaduais). Entre as técnicas acolhidas e adotadas pelos militares “excessos”, em situações extremas. Com indepen- tortura de presos políticos e à execução de operações de repres-
brasileiros, sob a condução dos que ocupavam o topo dência do sadismo e perversidade dos agentes des- são à população. Não foi mais do mesmo, nem um monstro
Tendo em vista esta ação planejada e sistemática dos das cadeias de comando, estava o uso sistemático da tas violações, eles agiram em nome do Estado brasi- engendrado na sociedade, como um corpo estranho a ela, mas
perpetradores a CEV-Rio, ao endossar a tipologia de tortura, tanto física, como psicológica. Nas lições re- leiro, buscando implementar, de forma sistemática, um Estado estruturado para disseminar a obediência, elimi-
autores da CNV, reafirma a caracterização das se- cebidas e utilizadas por esta elite militar dirigente in- uma política de estado que visava aniquilar os opo- nando oposições e divergências9.”
guintes espécies de responsabilidade: 1) político-ins- cluíam-se, também, as prisões em massa, as execuções sitores e difundir o terror e o medo na sociedade.
titucional; 2) pelo controle e gestão de estruturas e sumárias e o desaparecimento forçado. Deste modo É verdade que durante a escravidão a tortura foi
procedimentos diretamente vinculados à ocorrência não há como ignorar a responsabilidade dos mandan- Quanto à tortura, o que a viabilizou em larga escala amplamente utilizada como instrumento de controle
de graves violações; 3) mediante autoria direta de tes e dos administradores dos aparelhos e dispositivos, no Brasil, tornando-a o eixo do sistema de repres- e de dominação da força de trabalho escrava. Depois
condutas que materializaram as graves violações. onde eram praticadas as graves violações. são da ditadura foi ela haver sido autorizada e ser ela passou a ser um coadjuvante necessário na ob-
estimulada pela cúpula do poder militar instalado à tenção de confissões de crimes suspeitos ou efetiva-
A responsabilidade político-institucional identifi- Uma das mais irrefutáveis provas da responsabili- época, mediante a instrução e difusão reiterada de mente praticados por membros das classes sociais
ca aqueles que conceberam, planejaram ou decidi- dade e aprovação dos governantes e administrado- técnicas, cursos e distinções honrosas para os seus destituídas de recursos de poder. No Estado Novo a
ram a adoção de políticas de perseguição e repres- res relativamente à ação dos executores diretos das agentes mais destacados. tortura foi largamente utilizada pela Polícia Política
são às vítimas de graves violações. Encontram-se graves violações, foi a homenagem que se lhes fez civil contra os opositores do regime. Até então, en-
entre estes os Presidentes da República, os che- mediante a concessão de Medalhas do Pacificador, O sistema de repressão da ditadura de 64 excedeu, tretanto, o Estado Nacional não reorganizara seus
fes do SNI, os Ministros das Forças Armadas e os em geral, com Palma. Esta medalha é uma conde- por certo, a prática da tortura. Ele se baseava na poderes, visando privilegiar a sua concepção de se-
Chefes dos Centros de Informações do Exército, coração que homenageia militares e civis, nacionais vigilância e policiamento político da sociedade, na
Marinha e Aeronáutica. e estrangeiros, que hajam prestado relevantes ser- censura, na espionagem feita por agentes infiltrados 8. ALMEIDA TELES, Janaína de. Ditadura e repressão no Brasil e na Argen-
tina: paralelos e distinções. In: CALVEIRO, Pilar. Poder e Desaparecimento:
viços ao Exército Brasileiro. Durante a ditadura de das Forças Armadas, pela atuação de aliados civis, os campos de concentração na Argentino. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 8.
9. Idem.

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gurança interna como um valor absoluto e tendo as formação teórica ou doutrinária dos torturadores e repressão praticadas no âmbito da Operação Con- ponsabilidade pelas graves violações, afirmando que
Forças Armadas na posição de arauto do regime. o exercício prático da formação adquirida. Os tortu- dor, de natureza internacional, destacaram-se diplo- havia uma cadeia de comando, na qual os superiores
radores tratavam sistematicamente os presos com matas, cônsules e adidos, militares e culturais. planejavam e determinavam linhas de ação, bem como
A partir de 1964, com base nesta ideia de seguran- insultos humilhantes, expressões obscenas, “brin- recebiam respostas às suas orientações, por diferen-
ça interna o Estado foi crescentemente aparelhado cadeiras” lascivas, nudez forçada, abuso dos corpos, Malhães, o doutor Pablo tes meios. Alargou o conhecimento sobre a violência, a
com instituições destinadas a recolher informações inclusive impondo-lhes posturas e exigências vexa- brutalidade, a crueldade e a sistematicidade das práti-
e produzir contrainformações para a manutenção da tórias. Relativamente às mulheres o manuseio e o Há sempre um núcleo de verdade em todas as menti- cas de graves violações pelo regime de 64. Fez, assim,
nova ordem política e econômica, bem como a repri- abuso sexual eram mais explícitos, chegando muitas ras que se pretende fazer acreditadas. De fato, men- revelações cruciais para a sociedade brasileira e, em
mir e punir os opositores. vezes à completa violação. tiras só são críveis se forem verossímeis. Paulo Ma- especial, para os seus segmentos jovens.
lhães, coronel reformado do Centro de Informações
Como se mencionou anteriormente, os torturadores Paralelamente, se a violência sexista era uma con- do Exército (CIE), confirmou e aprofundou verdades Malhães construiu, ao mesmo tempo, estratagemas
estavam não apenas autorizados a praticar a tor- duta dos torturadores imposta a homens e mulhe- causticantes sobre a forma de atuar dos que imple- diversionistas, cortinas de fumaça com o fim de des-
tura, mas também adestrados ideológica e tecnica- res, a violência sexual contra as mulheres questio- mentaram a política de segurança e informação da viar investigações de resultados próximos e signifi-
mente para realizá-la. Eles haviam sido, em níveis nava sua participação na luta contra o regime e sua ditadura de 1964. Reiterou constatações acerca da res- cativos, de confundir e esconder peças deste comple-
mais ou menos aprofundados, preparados para ini- insubmissão à hierarquia de gênero que lhes assina- xo quebra-cabeça, que é a reconstrução do passado.
bir aquilo que a reconhecida filósofa Hanna Aren- lava um engajamento exclusivo nas tarefas domésti- Malhães contrainformou. Mentiu. “Plantou” infor-
dt chamava “a piedade animal que afeta todos os cas e familiares. A humilhação e tortura fundamen- mações em muitas estórias que divulgou.
homens normais na presença do sofrimento físico”. tada nos atributos de gênero eram, portanto, uma
Eles tinham ouvido, reiteradamente, que “comunis- norma no tratamento imposto às mulheres. Em entrevistas e declarações prestadas à Comissão
tas” e “subversivos” eram agentes do terror, terro- da Verdade do Rio de Janeiro e à Comissão Nacional
ristas destruidores de instituições como a família e Por fim, a tortura, além de uma prática intersubje- da Verdade10 o veterano militar quis afirmar seu
a pátria. Haviam sido convencidos de que opositores tiva, era uma cena construída para o conhecimento protagonismo intelectual em relação à mencionada
e insurgentes eram pragas sociais, seres nefastos, e compartilhamento coletivo dos detidos. A violência política de segurança e informação, sua fidelidade
violadores dos bons costumes e da moral vigente. praticada pelos torturadores devia ser vista, escuta- aos ideais da antiga guerra revolucionária, sua com-
da e temida por todos os presos que estivessem em petência na área da contrainformação, sua devoção
Os torturadores engajavam-se, então, tal como determinado centro de tortura e/ou extermínio. Isto às Forças Armadas e, particularmente, ao Exército,
aconteceu em outras ditaduras e regimes extremis- aconteceu generalizadamente. como instituições legitimadas a concentrar e exercer
tas, numa campanha de desumanização ou desper- o monopólio da violência, no plano internacional e
sonalização daqueles que consideravam o inimigo. O As graves violações, especialmente os assassinatos, no interior da sociedade.
inimigo era o opositor político. A orientação, portan- a tortura e os desaparecimentos forçados contaram
to, era vê-lo e tratá-lo como um verme, arrancar-lhe também com um diferenciado conjunto de cúmpli- Quis também afirmar a ingenuidade e a incompe-
todas as informações úteis ao Estado de Segurança ces, nas cidades e no campo, em cada local com suas tência das Comissões da Verdade, das vítimas e dos
Nacional implantado, humilhá-lo, alquebrá-lo física especificidades. Além dos agentes policiais e mili- ativistas de direitos humanos, que as impulsiona-
e mentalmente, silenciá-lo ou neutralizá-lo. Tudo tares, tiveram ainda papel fundamental na prática ram na busca pela verdade e na azáfama de obter
isto quando não lhe houvesse sido ditada uma sen- da tortura e no encobrimento das violações, médicos resultados. Resumidamente quis dizer: vocês são em
tença de morte. legistas, donos de cartório e policiais civis que atu- conjunto de idiotas!
Equipe da CEV-Rio esteve duas vezes com o coronel Paulo Malhães que,
aram junto a delegados. Estes profissionais serão posteriormente, prestou depoimento à CNV 10. Depoimento de Paulo Malhães à CNV em 25/03/2014. Arquivo CNV, 00092.
Nesta campanha de desumanização havia a prévia relacionados na lista de autores. Na perseguição e Foto: Acervo Comissão Nacional da Verdade/Marcelo Oliveira 000732/2014-21 e Acervo CEV-Rio. Depoimento de Paulo Malhães para a CEV-
-Rio.

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Como o próprio Malhães revelou, antes do golpe de deu, Malhães exibiu um permanente interesse em tortura psicológica foi utilizada com a tortura física.
1964, ele pertenceu ao Movimento Anticomunista “ O DOI (Destacamento de Operações de Informações) é o se apresentar como detentor de uma inteligência su- Vários insurgentes que passaram pelo DOI-CODI
(MAC), organização paramilitar de extrema direita primeiro degrau. Você entra ali, voando. Aí, se brutaliza, pas- perior e como especialista em tarefas qualificadas. da Barão de Mesquita atestam este duplo uso (por
que funcionou no país, na década de sessenta e du- sa a ser igual aos outros, mas depois vai raciocinando e se Quis sempre demonstrar que evoluíra da prática da exemplo, a conjugação da “geladeira” com os cho-
rante a ditadura. estruturando. Houve uma mudança da porrada para o cho- tortura física para a tortura psicológica, pois esta ques elétricos).
que. Você pode dizer: “Foi uma mudança ruim”. Foi não. Não seria, segundo ele, mais nobre e efetiva. Mesmo as-
Malhães sempre revelou traços de personalidade as- deixava trauma, não deixava marca, não deixava nada. Já sim evidencia sua recorrência ao prazer e à prática No DOI-CODI da Barão de Mesquita utilizou-se
sociáveis ao que a literatura das ciências humanas, foi uma evolução. Aí você vai caminhando, aprende de ou- da violência física, quando confessa no curso de seu também a técnica psico-somática dos “sofrimentos
de natureza humanística, designou como “concepção tros lugares também. De outros países, como é feita a coisa. depoimento: “Eu gosto de decapitar, mas é bandido autoinfligidos”. Literalmente esta tortura consiste
fascista de vida”11. Na personalidade de Malhães a Então, você se torna um outro personagem, um outro cara e, aqui da Baixada”14. em provocar um sofrimento que advém de ações que
maioria destes traços aparece de forma evidente: as- por causa disto, você é guindado a um órgão superior por ser se pratica ou se deixa de praticar, por uso da própria
sim, o culto à ordem tradicional estabelecida, a sub- um cara diferente e agir diferente. Tem muito mais amplitu- Utilizando a tortura psicológica, Malhães pôde tes- vontade. Neste caso sofrer a tortura dependia de
missão à autoridade e ao poder representantes des- de, tem um universo muito maior, aí você se torna um expert tar e exercer sua pretensa superioridade mental so- uma suposta escolha da vítima. Como relata Lúcia
ta ordem, a agressividade, a impiedade em relação à em informações12.” bre o opositor, o insurgente. Sem ter uma inteligên- Murat, em depoimento citado no presente Relatório,
dimensão humana do “outro”, a destrutividade. cia de tipo mais reflexivo ou formação acadêmica, ele ela foi objeto desta experiência, numa sexista adap-
Malhães, portanto, estava interessado nas técnicas estudara, obsessivamente, manuais de interrogató- tação local. Lúcia enfrentaria, assim, a seguinte
No pré-64, tendo em vista sua vinculação com o de obter e produzir informação e contrainformação, rio coercitivo produzidos pela CIA, bem como suas disjunção: ou deixar os algozes acariciar seus seios e
MAC, Malhães já tinha um bom domínio das es- como questões relacionadas à ampliação de seu po- adaptações latino-americanas. Posteriormente, teve seu corpo ou fazer um gesto de rejeição, que poderia
tratégicas aptas a produzir terror social. Depois do der e influência pessoais nas Forças Armadas. Ele conhecimento das técnicas psicológicas utilizadas provocar seu enforcamento.
golpe, Malhães transitou pela 2ª Seção do Exército queria ser um arquiteto da política de informação do pela CIA e, depois, pela Inglaterra e por Israel.
e pelo Destacamento de Operações de Informações regime, então vigente. Por isso afirma vaidosamen- Paulo Malhães participou de várias experiências
(DOI), do I Exército (RJ), até ascender ao Centro de te a respeito da sugestão de se criar na Aeronáu- A partir da II Guerra Mundial a CIA desenvolvera que associavam tortura física e tortura psicológica.
Informações do Exército (CIE). No trabalho do DOI, tica um Centro de Informações semelhante ao CIE experiências cognitivas extremadas para dominar a Os desaparecimentos forçados que conduziu como
atuou, continuadamente, como autor de graves vio- do Exército, a qual foi apresentada por ele e outros mente “do outro”, como a cirurgia cerebral, o eletro- responsável ou como integrante de uma equipe, bem
lações, em especial, como torturador. companheiros ao Brigadeiro Burnier: choque, a hipnose, o uso de drogas. Contudo, o mais como o experimento da Casa da Morte de Petrópo-
importante e efetivo experimento para a dominação lis foram práticas e local privilegiado para este em-
Considerando as tarefas repressivas que lhe fo- “ Levamos a ideia do CIE para o Burnier (brigadeiro João do psiquismo humano, no final do século XX, foi a pri- preendimento complexo, que Malhães chamava de
ram atribuídas, e que o faziam prestar serviços Paulo Burnier). Ele mostrou para o ministro (da Aeronáuti- vação sensorial, mais tarde utilizada pelos Estados “coação psicológica” e do qual se orgulhava. Diz ele:
que não demandavam especialização profissional, Unidos na prisão de Guantánamo. Mediante suces-

ca, Márcio de Souza Melo), que disse: Poxa que troço! Então
Malhães continuou buscando vincular-se a ativi- funciona. Aí fundou o CISA (Centro de Informações e Segu- sivas pesquisas a CIA descobriu que o confinamento Aprendi que um homem que apanha na cara não fala
dades que lhe dessem maior projeção e reconheci- rança da Aeronáutica). Tanto é que recebi a medalha de Méri- e a privação de estímulos ambientais (da audição, mais nada. Você dá uma bofetada e ele se tranca. Você passa a
mento entre seus pares. A propósito desta ascen- to da Aeronáutica. Eu até me senti muito orgulhoso, foi o dia visão, toque, olfato, sensação térmica, temperatura ser o maior ofensor dele e o maior inimigo dele. A rigidez é o
são profissional Malhães pondera: em que eu fiquei mais vaidoso13.” etc.) destruía a vontade das pessoas, induzindo-as a volume de voz, apertar ele psicologicamente, sobre o que ele é,
uma regressão e ao caos mental, vulnerabilizando- quais são as consequências (de sua prisão). Isto sim. Tudo isto
Em todos os depoimentos ou entrevistas que conce- -as, infantilizando-as. é psicológico. Principalmente quando houve outros casos, né?
11. Cf. conhecida pesquisa de Theodor Adorno de caráter interdisciplinar
intitulada A Personalidade Autoritária. A pesquisa chamou a atenção para o Fulano foi preso e sumiu. Ele não é preso em uma unidade de
fenômeno sociopsicológico que designou como “síndrome fascista”, caracte-
rizado pela identificação psicológica com os que têm poder, pelo preconceito
12. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Paulo Malhães para a CEV-Rio. Os tre-
chos do Depoimento de Malhães foram destacados pelo jornalista Chico Otá- No Brasil e, particularmente, no Rio de Janeiro a militar, ele vai para um lugar completamente estranho, civil,
étnico e racial, pela obsessão em relação à sexualidade, pela agressividade vio em matéria para o Jornal O Globo de 21/03/2014. vamos dizer assim, uma casa. Ninguém sabe que ele está lá.
reprimida e pelo sadomasoquismo. 13. Idem. 14. Idem.

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Não há registro. Tudo isto é coação psicológica15.” ao silêncio que as Forças Armadas se impuseram primeiro princípio”19. era a ideia mais viável20.”
acerca das violações de direitos ocorridas na dita-
E ainda chamando a atenção para a insegurança, dura de 1964. A despeito de sua ferocidade, o insidioso militar gos- Passando do caso do Rubens Paiva para questões
instalada pela tortura psicológica, em situação de tava de apresentar-se como um mestre e um mago mais gerais, Malhães faz afirmações que contra-
desaparecimento forçado afirma: Diferentemente do coronel Ustra, que encarna a po- no exercício da violência. Contudo, além de afir- riam as descobertas havidas sobre a ocultação de
sição negacionista oficial de nossas Forças Armadas, mar a sua capacidade de destruir, posta à serviço cadáver dos desaparecidos, que, na maioria dos
“ Quando o cara entra no quartel, sabe que está seguro, que afirmando que as mesmas reagiram defensivamente das Forças Armadas, Malhães precisava, também, casos analisados, corresponde à prática do enter-
ninguém vai matá-lo. Quando você prende ele em uma casa, em 1964 para preservar, naquele momento, a demo- afirmar sua inteligência na área da informação e ramento, em especial, em cemitérios da periferia
pensa: Por que me trouxeram para cá e não me levaram para cracia, e para viabilizar a sua atual robustez e, ain- da contrainformação. Por isso ele resolve prestar e em covas ou valas destinadas a indigentes. Diz
o quartel? E a gente ameaçava com isto: Você já viu que você da, que militares jamais torturaram e assassinaram importante serviço às Forças Armadas e mais es- então: “Jamais se enterra um cara que você matou.
está preso, mas não está preso no quartel. Você está preso em opositores, Paulo Malhães atuou neste cenário como pecificamente ao Exército: contrainformar sobre a Se matar um cara não enterro. Há outra solução
uma casa. Daqui você pode ir para qualquer lugar. Aqui você o famoso General francês Paul Aussaresses. No ano questão dos desaparecimentos forçados e sobre a in- para mandar embora. Se jogar no rio, por exem-
não está inscrito em nada16.” 2000, Aussaresses concedera uma polêmica entre- filtração de insurgentes “virados”. plo, corre. Como ali, saindo de Petrópolis, onde tem
vista ao jornal Le Monde justificando a tortura na uma porção de pontes, perto de Itaipava”21.
Além da tortura psicológica e do desaparecimento Guerra da Argélia. Em 2001, no livro Services Spé- Com relação aos desaparecimentos forçados, Ma-
forçado, questões em que se proclamava especialis- ciaux: Algérie 1955–1957, amplia seu relato sobre lhães adotou o caso Rubens Paiva como um ícone de Com esta afirmação, Malhães desestimulava a bus-
ta e das quais deduzia a sua suposta superioridade as atrocidades praticadas, admitindo que a tortura sua capacidade de prestidigitação. Dialogando com ca de restos mortais em cemitérios ou outros locais
intelectual sobre os companheiros de barbárie, Ma- podia ser usada como arma de combate. jornalistas e entrevistadores, da grande mídia local de enterramento, onde o cadáver é posto em sepul-
lhães declara-se um expert em cooptar militantes e da CEV-Rio, sobre o lugar onde haviam sido des- tura ou diretamente sob a terra. Entretanto, além
nas organizações de esquerda, “virá-los” e torná-los Aos 76 anos, tal como Aussaresses aos 82, Malhães cartados os restos mortais do ex-deputado, Malhães de descobertas expressivas em cemitérios como é
infiltrados. Explica: considerou que não podia morrer no anonimato, indicou a diferentes interlocutores, diferentes locais o caso de Perus, São Paulo, muitos desaparecidos
sem recordar os serviços que prestara ao Exército em que teria ocorrido a ocultação de seu cadáver. foram enterrados em vários Estados e, especifica-
“ Para virar alguém, tinha que destruir convicções sobre co- Brasileiro e sem caracterizar como virtude o uso mente, no Rio de Janeiro, visando ocultar-se os seus
munismo. Em geral no papo, quase todos os meus viravam. irrestrito da violência que ele e seus companheiros Informou, assim, a um conjunto de jornalistas do cadáveres. Este é o caso de Felix Escobar e Joel Vas-
Claro que a gente dava sustos, e o susto era sempre a morte. haviam praticado. jornal O Globo, em 14 de março de 2014, que o corpo concelos Santos, só para citar dois casos relaciona-
A casa de Petrópolis era para isso. Uma casa de conveniência, de Rubens Paiva fora lançado ao mar. Posteriormen- dos a descobertas recentes, divulgados no final do
como a gente chamava17.” Malhães tinha orgulho de ter usado esta violência te, em 21 de março 2014, confirmou a uma equipe da ano passado e início deste pela CNV.
e de fazê-lo crescentemente orientado por regras CEV-Rio, em depoimento com duração de 20 horas,
No âmbito destas declarações Paulo Malhães fez técnicas. Desdenhava daqueles “caras” que “exage- que os restos mortais de Rubens Paiva foram joga- É certo que a experiência com enterramento gerou
muitas outras sobre questões em que lhe interes- ravam naquilo que faziam, sem necessidade. Fica- dos em um rio da região Serrana do Rio de Janeiro, em várias oportunidades preocupações e constran-
sava exibir seu protagonismo, liderança e experti- vam satisfeitos e sorridentes ao tirar sangue e dar próximo ao distrito de Itaipava. A propósito afirmou: gimentos para as Forças Armadas. Isto ocorreu, por
se, ou seja, tortura psicológica, desaparecimento e porrada”18. Ele dizia se preocupar com a técnica, exemplo, com militantes do PCdoB, que foram dizi-
produção de infiltrados. Apesar de não ser um tor- como se vê nas seguintes observações: “Não [jogar] “ Enterrar, queimar, botar no ácido, que desaparece. mados no Araguaia pelo Exército e enterrados em
turador e assassino arrependido, nem um delator com muita pedra. O peso [do saco] tem que ser pro- Tudo isso passou pela minha cabeça. Mas as dificuldades diferentes locais da região.
de seus companheiros de armas e de barbárie, Ma- porcional ao peso do adversário, para que ele não encontradas para fazer isso, já eram outras: Então, disse:
lhães assumiu uma postura divergente em relação afunde, nem suba... é um estudo de anatomia... você vamos resolver esse problema de modo que não deixe ras- Malhães esteve envolvido na perseguição àqueles
15. Idem. tem que abrir a barriga, quer queira, quer não. É o tro. Aí surgiu essa ideia. Discutimos a ideia e achamos que
16. Idem. 20. Idem.
17. Idem. 18. Idem. 19. Idem. 21. Idem.

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militantes, indo várias vezes à região para parti- ro. Uns trinta ou quarenta de Petrópolis”22. 1964, entre os militares golpistas e o crime organi-
cipar de sua “caçada”. Depois, ali voltou a fim de zado. A ditadura havia se imposto mediante múlti-
participar das “operações de limpeza”, desenvolvi- Em sua ênfase sobre a “construção” de infiltrados plas ações criminosas, entre as quais atos de terror
das pelos militares para esconder as provas de seus Malhães procura, no entanto, confundir a opinião praticados com o concurso de extremistas de direi-
crimes. Por meio destas operações os restos mortais pública relativamente às diferentes categorias de ta. Mais adiante, utilizou a “banda podre”da Polí-
dos militantes foram desenterrados, destroçados e informantes utilizadas pelos agentes repressivos. cia Civil, cujo principal símbolo, mas não o único,
levados para local inacessível, havendo sido, prova- Houve, de fato, militantes convencidos a renegar foi Fleury, com a sua corte de criminosos associados,
velmente, jogados em rios da região. Assim, na me- as suas crenças e suas práticas, e a trabalhar para entre os quais o patronato do Jogo do Bicho. Com
mória de Malhães enterrar cadáveres era uma es- agentes da repressão. Foram poucos, pouquíssimos, esta associação, onde o crime organizado funcionava
tratégia de ocultação insegura, enquanto lançá-los segundo a identificação feita pelas próprias orga- subordinado às armas dos militares, os agentes da
em rios configurava uma solução mais satisfatória. nizações de esquerda. Normalmente após sofrerem repressão multiplicaram as suas oportunidades de
violentas torturas. assassinar, sequestrar e ocultar cadáveres.
O recurso aos rios não foi, contudo, a única modali-
dade de ocultação usada pelos agentes da repressão, Quanto aos civis treinados nos organismos de inte- A distensão política e o isolamento do braço terro-
nem a utilizada na maioria dos casos, ou a recor- ligência e repressão para a infiltração, o monitora- rista a que Malhães pertencia, conduziram-no a co-
rente para os crimes que alcançaram maior visibi- mento e a facilitação das prisões dos militantes de locar a sua força de trabalho à disposição do crime
lidade frente à opinião pública. Ao superdimensio- esquerda, personagens assimilados aos “cachorros”, organizado, aglutinado sob a legenda do Jogo do Bi-
nar a ocultação em rios e minimizar a utilização do “informantes” ou “X9” da Polícia Civil, estes podem cho. Da articulação entre bicheiros e torturadores,
enterramento Malhães pretendeu desestimular a ter constituído, ao longo do país, o coletivo de 300 “in- antes, durante e depois da ditadura participaram
continuação de buscas por parte dos familiares e de filtrados” a que Malhães se refere. Mas estes não são, muitos outros como o Capitão Guimarães, Freddie
ativistas dos direitos humanos e, de modo geral, das de modo algum, “os virados”, a partir dos quais Ma- Perdigão, Ronald Batista de Leão, Marco Antônio
lutas por memória, verdade e justiça. lhães tenta desacreditar os militantes de esquerda. Povoleri etc. Mas o grande amigo do poderoso Anísio
Abrão, patrono da escola de samba Beija Flor, de Ni-
O interesse de Malhães era desmoralizar os oposi- Ressalte-se, por fim, que Malhães e o grupo do CIE lópolis, conhecido como o justiceiro da Baixada, que
tores e vítimas da ditadura de 1964 e, ao mesmo ao qual pertenceu, com os seus ascendentes hierár- atuou a seu serviço e em seu interesse, foi Malhães.
tempo, exaltar as Forças Armadas, em particular, quicos, constituíram um dos núcleos do terrorismo
o seu Exército - onde, como enfatizou, os generais de Estado, imposto a partir de 1964. Admitindo e Em 25 de abril de 2014, Paulo Malhães foi assas-
eram leões e não ratos. Exaltar também a si próprio, gerenciando estes núcleos o Estado foi terrorista. sinado. A despeito das especulações acerca de uma
tanto no uso da inteligência como na violência. Isto Quando a ditadura adotou a política de distensão “queima de arquivo” promovida por companheiros
aparecerá de forma expressiva em sua fala sobre eles tentaram demonstrar a necessidade de se con- de farda, a autoridade policial caracterizou o crime
a “construção” dos infiltrados nas organizações de tinuar o combate à esquerda, atribuindo, inclusive, como latrocínio (roubo seguido de morte). Curiosa-
esquerda. Respondendo a CEV-Rio sobre o número aos opositores uma onda de terror, que eles próprios mente, um militar condenado em ação judicial como
destes infiltrados, diga-se, de militantes que haviam construíram. Tentaram organizar um golpe dentro torturador, denunciado mais de uma vez como as-
sido virados pela ação de agentes da repressão, e se do golpe. Não conseguiram. sassino, símbolo da negação que as Forças Armadas
ficaram incógnitos Malhães dirá: “Eu chamei eles, fazem dos crimes do passado, o Coronel Brilhante
quando eu vi que ia terminar tudo, eu fui ao encon- Malhães afastou-se, então, das Forças Armadas e Ustra, divulgou o assassinato de Malhães em seu
tro de um por um (...). Era bastante. Você não vai inverteu uma relação já constituída, desde antes de site, 31 minutos antes de sua divulgação pela mídia.
acreditar. Trezentos mais ou menos. Do Brasil intei-
22. Idem.

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Capítulo 21 - RELAÇÃO DE AUTORES se enquadram em mais de uma espécie de responsa- de ministros da Guerra/do Exército, nesta seção) 1974. Durante seu governo, houve a difusão do mo-
DE GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS bilidade. Além disso, foram incluídos cinco autores delo da Operação Bandeirante (Oban) para todo o
HUMANOS em relação à lista da CNV: Alceu Pencai, Guilherme (1905-1998) General de Exército. Integrou a junta território nacional, com a criação dos Destacamen-
Pereira do Rosário, José Paulo Boneschi, José Riba- militar que governou o país entre 31 de agosto e tos de Operações de Informações – Centros de Ope-
Este capítulo reproduz os autores de graves viola- mar Zamith e Magno Cantarino Mota. 30 de outubro de 1969. Foi ministro do Exército de rações de Defesa Interna (DOI-CODI). Foi chefe do
ções de direitos humanos apontados pela Comissão março de 1967 a outubro de 1969. Serviço Nacional de Informações (SNI) entre março
Nacional da Verdade (CNV), que dizem respeito ao SEÇÃO A) Responsabilidade político- de 1967 e abril de 1969.
estado do Rio de Janeiro. institucional pela instituição e manutenção 4) Augusto Hamann Rademaker Grunewald
de estruturas e procedimentos destinados 7) Ernesto Beckmann Geisel
Na presente relação utiliza-se a mesma numeração à prática de graves violações de direitos (membro da junta militar, indicado também na lista
e tipologia utilizadas pela CNV para a identificação humanos de ministros da Marinha, nesta seção) (1907-1996) General de Exército. Presidente da Repú-
de autores, conforme foi descrito no capítulo ante- blica de 15 de março de 1974 a 15 de março de 1979.
rior. Nesse sentido, esta listagem está organizada Presidentes da República (1905-1985) Almirante de esquadra. Integrou a jun-
da seguinte maneira: ta militar que governou o país entre 31 de agosto e 8) João Baptista de Oliveira Figueiredo
1) Humberto de Alencar Castello Branco 30 de outubro de 1969. Exerceu o cargo de ministro
• responsáveis pela instituição e manutenção de da Marinha em duas ocasiões: em abril de 1964 e (indicado também na lista de chefes do SNI, nesta
estruturas e procedimentos destinados à prá- (1897-1967) Marechal de Exército. Presidente da Re- de março de 1967 a outubro de 1969. Foi vice-presi- seção)
tica de graves violações de direitos humanos à pública entre 15 de abril de 1964 e 15 de março de dente da República no governo do presidente Emilio
nível nacional, portanto, abrangendo o estado 1967, tendo criado em junho de 1964 o Serviço Nacio- Garrastazú Medici (1969-1974). (1918-99) General de Exército. Presidente da Re-
do RJ (seção A); nal de Informações (SNI). Em 1963, assumiu a chefia pública de 15 de março de 1979 a 15 de março de
do Estado-Maior do Exército (EME), posição que ocu- 5) Márcio de Souza e Mello 1985. Foi chefe do gabinete militar durante todo o
• r esponsáveis pela gestão de estruturas e con- pava no momento do golpe militar de 1964. governo do presidente Emilio Garrastazú Medici,
dução de procedimentos destinados à prática (membro da junta militar, indicado também na lista de outubro de 1969 a março de 1974, e dirigiu o
de graves violações de direitos humanos no es- 2) Arthur da Costa e Silva de ministros da Aeronáutica, nesta seção) Serviço Nacional de Informações (SNI) de março de
tado do RJ (seção B); 1974 a junho de 1978.
(indicado também na lista de ministros da Guerra/ (1906-1991) Marechal do ar. Integrou a junta militar
• responsáveis pela autoria direta de condutas que do Exército, nesta seção) que governou o país entre 31 de agosto e 30 de ou- Ministros da Guerra/do Exército
ocasionaram graves violações de direitos huma- tubro de 1969. Foi ministro da Aeronáutica em duas
nos em locais situados no estado do RJ (seção C); (1899-1969) Marechal de Exército. Presidente da ocasiões: de dezembro de 1964 a janeiro de 1965 e de (2) Arthur da Costa e Silva
República entre 15 de março de 1967 e 31 de agosto março de 1967 a novembro de 1971.
• r esponsáveis pela autoria direta de condutas de 1969, editou em dezembro de 1968 o ato insti- (indicado também na lista de presidentes da Repú-
que ocasionaram morte ou desaparecimento tucional nº5 (AI-5). Quando da deflagração do gol- 6) Emilio Garrastazú Medici blica, nesta seção)
de pessoas nascidas no estado do RJ em outros pe militar, assumiu o cargo de ministro do Exército,
estados (seção C)1. que exerceu entre abril de 1964 e junho de 1966. (indicado também na lista de chefes do SNI, nesta Exerceu o cargo de ministro da Guerra/do Exército
seção) após a deflagração do golpe militar, função que ocu-
Alguns nomes se repetem em diferentes seções, pois 3) Aurélio de Lyra Tavares pou até junho de 1966.
1. Também foram incluídos agentes envolvidos na Guerrilha do Araguaia, que
(1905-1985) General de Exército. Presidente da Re-
terminou com o desaparecimento de pessoas nascidas no estado do Rio de (membro da junta militar, indicado também na lista pública de 30 de outubro de 1969 a 15 de março de
Janeiro.

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9) Adhemar de Queirós 14) Walter Pires de Carvalho e Albuquerque 19) Geraldo Azevedo Henning 24) Eduardo Gomes

(1899-1984) Marechal do Exército. Ministro do (1915-90) General de Exército. Ministro do Exército (1917-1995) Almirante de esquadra. Ministro da (1896-1981) Marechal do ar. Ministro da Aeronáuti-
Exército de julho de 1966 a março de 1967. de março de 1979 a março de 1985. Marinha de março de 1974 a março de 1979. ca de abril de 1965 a março de 1967.

(3) Aurélio de Lyra Tavares Ministros da Marinha 20) Maximiano Eduardo da Silva Fonseca 25) Joelmir Campos de Araripe Macedo

(indicado também na lista de presidentes da Repú- (4) Augusto Hamann Rademaker Grunewald (1919-98) Almirante de esquadra. Ministro da Mari- (1909-1993) Tenente-brigadeiro do ar. Ministro da
blica, nesta seção) nha de março de 1979 a março de 1984. Aeronáutica de novembro de 1971 a março de 1979.
(indicado também na lista de presidentes da Repú-
Exerceu o cargo de ministro do Exército de março de blica, nesta seção) 21) Alfredo Karam 26) Délio Jardim de Mattos
1967 a outubro de 1969.
Exerceu o cargo de ministro da Marinha em duas (1924-) Almirante de esquadra. Ministro da Mari- (1916-1990) Tenente-brigadeiro do ar. Ministro da
10) Orlando Beckmann Geisel ocasiões: em abril de 1964 e de março de 1967 a ou- nha de março de 1984 a março de 1985. Aeronáutica de março de 1979 a março de 1985.
tubro de 1969.
(1905-1979) General de Exército. Ministro do Exér- Ministros da Aeronáutica Chefes do Serviço Nacional de
cito de novembro de 1969 a março de 1974. 15) Ernesto de Melo Batista Informações (SNI)
22) Francisco de Assis Corrêa de Mello
11) Vicente de Paulo Dale Coutinho (1907-1985) Almirante de esquadra. Ministro da 27) Golbery do Couto e Silva
Marinha de abril de 1964 a janeiro de 1965. (1903-1971) Tenente-brigadeiro do ar. Ministro da
(1910-1974) General de Exército. Ministro do Exér- Aeronáutica em abril de 1964. Exercera a mesma (1911-1987) Chefe do SNI de junho de 1964 a março
cito de março a maio de 1974. 16) Paulo Bosísio função de julho de 1957 a janeiro de 1961, no gover- de 1967. Exerceu a chefia do gabinete civil de 1974 a
no do presidente Juscelino Kubitschek. 1981, nos governos dos presidentes Ernesto Geisel e
12) Sylvio Couto Coelho da Frota (1900-1985) Almirante de esquadra. Ministro da João Baptista de Oliveira Figueiredo.
Marinha de janeiro a dezembro de 1965. 23) Nelson Freire Lavenére Wanderley
(1910-1996) General de Exército. Ministro do Exér- (6) Emilio Garrastazú Medici
cito de maio de 1974 a outubro de 1977. Na condi- 17) Zilmar Campos de Araripe Macedo (1909-1985) Tenente-brigadeiro do ar. Ministro da
ção de chefe do gabinete do ministro do Exército, em Aeronáutica de abril a dezembro de 1964. (indicado também na lista de presidentes da Repú-
1967, participou da criação do Centro de Informa- (1908-2001) Almirante de esquadra. Ministro da blica, nesta seção)
ções do Exército (CIE). Comandou o I Exército de Marinha de dezembro de 1965 a março de 1967. (5) Márcio de Souza e Mello
janeiro de 1972 a abril de 1974. Foi chefe do SNI entre março de 1967 e abril de 1969.
18) Adalberto de Barros Nunes (indicado também na lista de presidentes da Repú-
13) Fernando Belfort Bethlem blica, nesta seção) 28) Carlos Alberto da Fontoura
(1905-1984) Almirante de esquadra. Ministro da
(1914-2001) General de Exército. Ministro do Exér- Marinha de outubro de 1969 a março de 1974. Exerceu o cargo de ministro da Aeronáutica em duas (1912-1997) General de Brigada. Chefe do SNI de
cito de outubro de 1977 a março de 1979. ocasiões: de dezembro de 1964 a janeiro de 1965 e de abril de 1969 a outubro de 1974, período em que as
março de 1967 a novembro de 1971. organizações de oposição ao regime militar foram
severamente reprimidas. Foi chefe do Estado-Maior

390 391
do III Exército de 1966 a 1969. Após deixar o SNI, 31) Milton Tavares de Souza. 37) Iris Lustosa de Oliveira nos anos de 1977 e 1978.
foi nomeado embaixador brasileiro em Portugal,
cargo que exerceu de 1974 a 1978. (1917-1981) General de Exército. Chefe do CIE de (1926-) General de Exército. Chefe do CIE de no- 44) Odilon Lima Cardoso
novembro de 1969 a março de 1974. À frente do CIE, vembro de 1983 a março de 1985.
(8) João Baptista de Oliveira Figueiredo participou como dirigente da Operação Marajoara, (1926-) Contra-almirante. Chefiou o Cenimar de de-
na fase final de extermínio da Guerrilha do Ara- Chefes do Centro de Informações da zembro de 1978 a fevereiro de 1979.
(indicado também na lista de presidentes da Repú- guaia, quando houve o desaparecimento forçado e Marinha (Cenimar)
blica, nesta seção) a ocultação dos cadáveres dos últimos membros das 45) Renato de Miranda Monteiro
forças guerrilheiras e de camponeses que com eles 38) Roberto Ferreira Teixeira de Freitas
Foi chefe do SNI de março de 1974 a junho de 1978. tivessem tido algum tipo de contato. (1929-) Almirante de esquadra. Chefe do Cenimar
(1917-2014) Contra-almirante. Chefe do Cenimar de março de 1979 a fevereiro de 1980.
29) Octávio Aguiar de Medeiros 32) Confúcio Danton de Paula Avelino entre abril de 1964 e novembro de 1965 e entre ju-
nho de 1967 e abril de 1968. 46) Luiz Augusto Paraguassu de Sá
(1922-2005) General de Brigada. Chefe do SNI de (1916-2000) General de Brigada. Chefe do CIE de
junho de 1978 a março de 1985. Em 1964, estando março de 1974 a fevereiro de 1976, chefiou o Centro 39) Álvaro de Rezende Rocha (1930-2007) Contra-almirante. Chefe do Cenimar de
na secretaria-geral do Conselho de Segurança Na- de Operações de Defesa Interna (CODI) do II Exér- fevereiro de 1980 a fevereiro de 1983.
cional, serviu como adjunto do Serviço Federal de cito, em São Paulo, em 1970 e 1971, e o CODI do IV (1916-1997) Almirante de esquadra. Chefe do Ceni-
Informações e Contrainformações e integrou o gru- Exército, em Recife, em 1971 e 1972. mar de setembro de 1966 a fevereiro de 1967. 47) Antônio Frederico Motta Arentz
po que criou o SNI. Quando dirigiu a Escola Nacio-
nal de Informações (ESNI), foi o responsável pelo 33) Antônio da Silva Campos 40) Fernando Pessoa da Rocha Paranhos (1934-) Contra-almirante. Chefe do Cenimar de fe-
treinamento de militares em métodos psicológicos vereiro de 1983 a janeiro de 1984.
de interrogatório. General de Divisão. Chefe do CIE de fevereiro de (1925-) Capitão de mar e guerra. Chefe do Cenimar
1976 a outubro de 1977. de abril de 1968 a maio de 1971. 48) Sérgio Tavares Doherty
Chefes do Centro de Informações do
Exército (CIE) 34) Edison Boscacci Guedes 41) Joaquim Januário de Araújo Coutinho Netto (1936-) Vice-almirante. Chefe do Cenimar de abril
de 1984 a março de 1987.
30) Adyr Fiuza de Castro (1923-2006) General de Exército. Chefe do CIE de (1917-) Contra-almirante. Chefe do Cenimar de
outubro de 1977 a março de 1979. 35) Geraldo de maio de 1971 a março de 1973. Chefes do Centro de Informações de
(indicado também na Seção B) Araújo Ferreira Braga (1922-) General de Divisão. Segurança da Aeronáutica (CISA)
Chefe do CIE de março de 1979 a novembro de 1981. 42) Dilmar de Vasconcelos Rosa
(1920-2009) General de Brigada. Chefe do CIE em Chefiou a agência central do SNI entre agosto de 49) João Paulo Moreira Burnier
1968 e 1969, tendo sido um dos responsáveis pela es- 1983 e novembro de 1985. (1923-) Contra-almirante. Chefe do Cenimar de
truturação do órgão. Chefiou a Divisão de Informa- agosto de 1974 a janeiro de 1975. (indicado também na Seção B)
ções do gabinete do ministro da Guerra, entre 1967 36) Mário Orlando Ribeiro Sampaio
e 1969, e comandou o Destacamento de Operações 43) Carlos Eduardo Jordão Montenegro (1919-2000) Brigadeiro do ar. Chefe do CISA de ju-
de Informações – Centro de Operações de Defesa In- (1924-) General de Divisão. Chefe do CIE entre novem- lho de 1968 a março de 1970. Em 1968, seu nome es-
terna (DOI-CODI) do I Exército de 1972 a 1974. bro de 1981 e novembro de 1983. Chefiou a secretaria do (1925-1983) Ocupou interinamente a chefia do Ce- teve ligado ao Caso Para-Sar, plano arquitetado por
SNI em dois períodos: de 1964 a 1968 e de 1973 a 1975. nimar em agosto de 1975, cargo que voltou a ocupar militares de extrema-direita para desacreditar os

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opositores do regime militar, por meio da realização ça e Informações (DSI) do Ministério das Relações Motorizado, cujas iniciais (EM) estão associadas ao 65) Ary Casaes Bezerra Cavalcanti
de atentados terroristas na cidade do Rio de Janei- Exteriores (MRE) de 1971 a 1980. Documentos di- “Esquadrão da Morte”. Comandante do II Exército a
ro. Em abril de 1970, assumiu o comando da 3a Zona plomáticos do Chile revelam que, logo após o gol- partir de 1963, apoiou o golpe militar de 1964 e de- (1928-) Coronel-aviador. Comandante da Base Aé-
Aérea, também no Rio de Janeiro, e em dezembro pe militar ocorrido naquele país, em setembro de sencadeou grande número de detenções ilegais em rea de Santa Cruz de fevereiro de 1971 a junho de
desse ano, em razão da repercussão das denúncias 1973, a DSI/MRE prestou cooperação à ditadura organizações militares. 1972, época do desaparecimento de Stuart Angel Jo-
relativas à morte de Stuart Angel Jones na Base Aé- chilena na organização de mecanismo para monito- nes (maio de 1971). Convocado pela CNV, alegou ra-
rea do Galeão, foi exonerado do cargo e transferido ramento de exilados políticos no exterior. Ao mes- 58) Antônio Bandeira zões de saúde para não comparecer ao depoimento.
para a reserva remunerada. mo tempo, a DSI/MRE forneceu ao governo militar
chileno dados sobre numeroso grupo de brasileiros, General de Exército. Comandante da 3a Brigada 68) Aylton Siano Baeta
50) Carlos Afonso Dellamora banidos ou exilados, que acreditava estivessem no de Infantaria, com sede em Brasília, de dezembro
Chile. Ouvido pela CNV em abril de 2014, reconhe- de 1971 a abril de 1973. Nessa função, comandou (1928-1992) Coronel-aviador. Comandante da Base
(1920-2007) Tenente-brigadeiro do ar. Chefe do ceu que a DSI/MRE não processou os pedidos de as tropas do Exército empregadas na repressão à Aérea do Galeão em 1980, à época em que ocorreu
CISA de março de 1970 a dezembro de 1971. salvo-conduto para brasileiros detidos no Estádio Guerrilha do Araguaia durante a Operação Papa- o sequestro e desaparecimento forçado dos cidadãos
Nacional, em Santiago. gaio, realizada em setembro e outubro de 1972. O argentinos Mónica Susana Pinus de Binstock e Ho-
51) Newton Vassalo da Silva ex-guerrilheiro Danilo Carneiro, em depoimento à racio Domingo Campiglia.
(30) Adyr Fiuza de Castro CNV, afirmou que Antônio Bandeira participava
(1920-1981) Major-brigadeiro do ar. Chefe do CISA pessoalmente das sessões de tortura realizadas no 69) Bento José Bandeira de Mello
de dezembro 1971 a março de 1979. (indicado também na Seção A) Pelotão de Investigações Criminais (PIC) de Brasí-
lia. Em maio de 1973 foi nomeado diretor-geral do (1917-2005) General de Divisão. Chefe do Estado-
52) Luís Felippe Carneiro de Lacerda Netto (1920-2009) General de Brigada. Chefe do Centro de Departamento de Polícia Federal (DPF) pelo presi- -Maior do I Exército de maio a agosto de 1971. Dei-
Informações do Exército (CIE) em 1968 e 1969, coman- dente Emilio Garrastazú Medici. Em junho de 1979 xou a função para assumir a chefia do Estado-Maior
(1925-2000) Tenente-brigadeiro do ar. Chefe do dou o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) foi acusado de comandar, com os generais Milton Ta- do IV Exército, cargo que exerceu até agosto de 1972,
CISA de março de 1979 a agosto de 1982. do I Exército em 1971 e 1972 e chefiou o Destacamento vares de Souza e José Luiz Coelho Netto, a chamada quando voltou a chefiar o Estado-Maior do I Exér-
de Operações de Informações – Centro de Operações Operação Cristal, responsável por atentados terro- cito. Foi chefe do gabinete do ministro do Exército
53) Dilson Lyra Branco Verçosa de Defesa Interna (DOI-CODI) de 1972 a 1974, perío- ristas ocorridos no início do governo do presidente Sylvio Frota, de agosto de 1974 a outubro de 1977.
do em que essa unidade militar teve envolvimento em João Baptista de Oliveira Figueiredo.
(1930-2007). Major-brigadeiro do ar. Chefe do CISA casos de tortura, execução e desaparecimento forçado, 70) Breno Borges Fortes
de agosto de 1982 a fevereiro de 1985. sendo identificados como vítimas Umberto de Albu- 59) Antônio Carlos da Silva Muricy
querque Câmara Neto (1973) e Fernando de Santa (1908-1982) General de Exército. Comandante do
SEÇÃO B) Responsabilidade pela gestão de Cruz Oliveira e Eduardo Collier Filho (1974). (1906-2000) General de Exército. Chefe do Estado- III Exército de 1969 a 1972. Chefe do Estado-Maior
estruturas e condução de procedimentos -Maior do Exército em 1969 e 1970. do Exército em 1972 e 1973.
destinados à prática de graves violações 57) Amaury Kruel
de direitos humanos no Estado do Rio de 63) Armando Patrício 72) Carlos Alberto Cabral Ribeiro
Janeiro (1901-1996) General de Exército. Em 1957, assu-
miu a chefia do Departamento Federal de Seguran- (1927-) General de Divisão. Chefe do Estado-Maior (1915-1984) General de Exército. Comandante da 7a
54) Adolpho Corrêa de Sá e Benevides ça Pública (DFSP), responsável pelo policiamento do I Exército de março a julho de 1981, período em Região Militar em 1973, época do massacre da Chá-
do antigo Distrito Federal. Durante sua gestão foi que ocorreu o atentado do Riocentro, na cidade do cara São Bento, no Recife. Chefe do Estado-Maior do
(1936-) Diplomata. Diretor da Divisão de Seguran- criada uma unidade especial de polícia, o Esquadrão Rio de Janeiro, em 30 de abril. I Exército de abril de 1969 a janeiro de 1971.

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74) Carlos Sergio Torres do coronel Paulo Malhães à CNV, Etchegoyen era a (1929-1998) Foi comandante da 1a companhia de Transportes – DNIT) em Marabá (PA). Na Casa Azul,
autoridade do CIE responsável pela Casa da Morte, Polícia do Exército, na Vila Militar do Rio de Ja- estiveram detidos ilegalmente e foram torturados e
(1930-1998) Tenente-coronel do Exército. Comandou em Petrópolis (RJ). neiro, de maio de 1968 a julho de 1971, período em executados guerrilheiros e camponeses. Foi um dos
a Operação Sucuri, realizada de maio a outubro de que ocorreram na unidade os casos de morte sob encarregados da chamada “Operação Limpeza”, rea-
1973 com o objetivo de obter informações sobre os 79) Darcy Jardim de Matos tortura de Severino Viana Colou e Chael Charles lizada em janeiro de 1975 na região da guerrilha, que
guerrilheiros participantes na Guerrilha do Ara- Schreier. Serviu no Destacamento de Operações de se destinou à ocultação dos corpos dos guerrilheiros e
guaia e sua “rede de apoio”. Foi elemento de ligação (1918-) General de Brigada. Comandante da 8a Re- Informações – Centro de Operações de Defesa In- camponeses executados e ao encobrimento dos vestí-
entre as operações desencadeadas na região do Ara- gião Militar, com sede em Belém, de 11 de agosto de terna (DOI-CODI) do I Exército de abril de 1972 a gios da atuação das forças repressivas.
guaia e o chefe do Centro de Informações do Exérci- 1971 a 17 de janeiro de 1973. Atuante durante todas junho de 1974.
to (CIE), Milton Tavares de Souza. As informações as fases repressivas da Guerrilha do Araguaia, e dire- 90) Francisco Demiurgo Santos Cardoso
levantadas durante a Operação Sucuri foram utili- tamente responsável pelas operações realizadas en- 86) Fernando Ayres da Motta
zadas na Operação Marajoara, desencadeada a par- tre março e julho de 1972 e pela Operação Marajoara, (1930-) Coronel do Exército. Comandante do Desta-
tir de outubro de 1973, quando ao menos 49 guerri- iniciada em outubro de 1973, com o objetivo de exter- Ex-comandante da companhia aérea Panair. Inter- camento de Operações de Informações – Centro de
lheiros foram vítimas de desaparecimento forçado. minar os focos remanescentes de guerrilheiros e sua ventor em Petrópolis (RJ) em 1965 e 1966. No início Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do I Exér-
“rede de apoio”, que seria composta por camponeses da década de 1970, foi o intermediário, naquela ci- cito de setembro de 1971 a fevereiro de 1972, quan-
76) Cecil de Macedo Borer que com eles haviam tido algum tipo de contato. dade, da cessão de imóvel de propriedade de Mário do houve intensa atividade repressiva.
e Madalena Lodders ao Centro de Informações do
(1913-2003). Delegado de polícia. Diretor do Depar- 80) Edmundo Drummond Bittencourt Herculano Exército (CIE), no qual funcionou a Casa da Morte. 91) Francisco Homem de Carvalho
tamento de Ordem Política e Social do então estado Segundo testemunho colhido pela CNV, frequentava
da Guanabara (DOPS/GB) em 1964, quando da pri- (1912-) Vice-almirante. Foi comandante-geral do o local, tendo conhecimento, portanto, de sua utili- (1924-1990) Coronel do Exército. Serviu na agência
são ilegal, no Rio de Janeiro, de nove funcionários corpo de fuzileiros navais e comandante da força de zação como centro de tortura. De acordo com o mes- do Serviço Nacional de Informações (SNI) no Rio de
da República Popular da China. Vinculado a grupos fuzileiros da esquadra durante o período da atua- mo testemunho, encontrou detido na Casa da Morte Janeiro, de setembro de 1964 a fevereiro de 1967.
de extrema direita responsáveis, no início da década ção dessa unidade na Operação Papagaio, realizada seu concunhado Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, Comandou o 1o Batalhão de Polícia do Exército
de 1980, por atentados a bomba, inclusive o do Rio- contra a Guerrilha do Araguaia em setembro e ou- desaparecido desde maio de 1971. (BPE), no Rio de Janeiro, de março de 1971 a abril
centro. tubro de 1972. de 1974. Memorando oficial de março de 1983, do
88) Flávio de Marco chefe do SNI para a agência central do órgão, indica
77) Clemente José Monteiro Filho 82) Eni de Oliveira Castro a vincula- ção de Francisco Homem de Carvalho à
(1929-1981) Coronel do Exército. Serviu no Centro Casa da Morte, em Petrópolis (RJ). Foi secretário de
(1925-1977) Capitão de mar e guerra. Comandou a Coronel do Exército. Comandante do 10o Batalhão de Informações do Exército (CIE). Esteve presente, Segurança do estado do Rio de Janeiro (1967-1971).
unidade da Marinha localizada na ilha das Flores de Caçadores em Goiânia (GO), atual 42º Batalhão como observador, na reunião de fundação da Opera-
(RJ), de 1968 a 1970, período em que ocorreu de for- de Infantaria motorizada. Participou da repressão à ção Condor, no Chile, em novembro de 1975, ao lado 92) Gastão Barbosa Fernandes
ma intensa a prática da tortura. Guerrilha do Araguaia, tendo responsabilidade pela de Thaumaturgo Sotero Vaz. Participou ativamente
ocorrência de tortura e de execuções. das atividades de repressão à Guerrilha do Araguaia (1924-) Major do Exército. Diretor do Departamento
78) Cyro Guedes Etchegoyen entre 1973 e 1974, atuando sob o codinome “Tio Caco” de Ordem Política e Social do então estado da Gua-
83) Ênio de Albuquerque Lacerda e chefiando a Casa Azul, centro clandestino de deten- nabara (DOPS/GB). Participou do acobertamento da
(1929-2012) Coronel do Exército. Chefe da seção ção e tortura localizado na antiga sede do Departa- causa da morte sob tortura de Raul Amaro Nin Fer-
de contrainformações do Centro de Informações do (indicado também na Seção C) mento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER, reira, em 1971, quando se veiculou oficialmente a
Exército (CIE) de 1971 a 1974. Segundo depoimento hoje Departamento Nacional de Infraestrutura de versão de que teria havido reação a ordem de prisão.

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93) Gastão Batista de Carvalho da. Convocado pela CNV em outubro de 2014, ale- 104) João de Alvarenga Soutto Mayor da ditadura militar. Relatos de militares e de ex-
gou razões de saúde para não prestar depoimento. -presos políticos imputam ao brigadeiro Burnier a
(1924-98) Tenente-coronel do Exército. Comandante (1917-) General de Brigada. Exerceu a chefia do participação em tortura, assim como na ocultação do
do 2º Batalhão de Infantaria de Selva e comandan- 100) Hélio da Mata Resende Estado-Maior do IV Exército de janeiro de 1971 a cadáver de Stuart Angel Jones.
te em campo de tropas empregadas na repressão à agosto de 1971. Ao deixar o cargo, assumiu a chefia
Guerrilha do Araguaia, entre março e maio de 1972. Tenente do Exército. Lotado na 5a companhia de do Estado-Maior do I Exército por cerca de um ano. 107) João Pinto Pacca
guarda do Exército. Foi membro da equipe nº 1 de
94) Gentil Marcondes Filho interrogatório, sediada em Marabá, durante a re- 105) João Dutra de Castilho (indicado também na Seção C)
pressão à Guerrilha do Araguaia, entre março e
(1916-1983) General de Exército. Chefe do Estado- maio de 1972. (1907-1987) General de Exército. Chefe do Estado- (1919-) General de Brigada. Serviu no Centro de
-Maior do II Exército, em São Paulo, em 1974. Co- -Maior do IV Exército de setembro a novembro de Informações do Exército (CIE), no Rio de Janeiro,
mandante do I Exército de 1979 a 1981, período em 101) Herculano Pedro de Simas Mayer 1964. Comandou a 1a Divisão de Infantaria da Vila de maio de 1968 a abril de 1969. Chefiou o Desta-
que ocorreu o atentado do Riocentro, no Rio de Ja- Militar, do Rio de Janeiro, em 1969, época em que a camento de Operações de Informações – Centro de
neiro, em 30 de abril de 1981. Faleceu em 1983. (1925-) Capitão de mar e guerra. Atuou como chefe da unidade foi utilizada como centro para a prática de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do I Exér-
seção de operações da Força de Fuzileiros Navais du- tortura e execução de presos políticos. cito de maio de 1971 a setembro de 1971, sucedendo
96) Gilberto Airton Zenkner rante a Operação Papagaio, realizada contra a Guer- o então major José Antônio Nogueira Belham.
rilha do Araguaia em setembro e outubro de 1972. 106) João Oswaldo Leivas Job
(1934-) Coronel do Exército. Serviu no Centro de In- 109) Jonas Braga
formações do Exército (CIE), em Brasília, em 1974 102) Hugo de Andrade Abreu (1927-) Coronel do Exército. Agente da Divisão Cen-
e 1975. Atuou como coordenador-geral da Operação tral de Informações da Secretaria de Segurança (indicado também na Seção C)
Sucuri, realizada na região do Araguaia entre maio (1916-1979) General de Divisão. Comandante da do Rio Grande do Sul no início da década de 1970.
e outubro de 1973, com o objetivo de levantar infor- paraquedista e integrante do Centro de Informa- Chefe do Destacamento de Operações de Informa- Tenente do Exército. Chefe da agência do Distrito
ma- ções sobre os guerrilheiros atuantes na região e ções do Exército (CIE). Comandou diretamente a ções – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI- Federal do Centro de Informações do Exército (CIE)
sua “rede de apoio”. Nessa operação, foram levanta- tropa de paraquedistas enviada ao Araguaia du- -CODI) do I Exército em 1974 e 1975. Secretário de em 1972, durante as operações repressivas realiza-
das informações que sustentaram a fase repressiva rante a Operação Marajoara, iniciada em outubro Segurança Pública do estado do Rio Grande do Sul das contra a Guerrilha do Araguaia, entre julho e
seguinte, a Operação Marajoara, responsável pelo de 1973. O objetivo dessa fase das operações, que se de 1979 a 1982. Teve participação no sequestro dos setembro.
extermínio final da guerrilha. estendeu até o ano seguinte, era o extermínio dos cidadãos uruguaios Universindo Rodríguez Díaz e
guerrilheiros remanescentes na região. No período, Lilián Celiberti, em 1978. 110) Jorge José de Carvalho
97) Gustavo Eugênio de Oliveira Borges pelo menos 49 pessoas foram vítimas de desapare-
cimento forçado. (49) João Paulo Moreira Burnier (1927-) Tenente-brigadeiro. Comandante da Base
(1922-) Coronel-aviador. Secretário de Segurança do Aérea do Galeão no ano de 1971, quando Stuart
estado da Guanabara no governo Carlos Lacerda, 103) Joalbo Rodrigues de Figueiredo Barbosa (indicado também na Seção A) Angel Jones foi vítima de detenção ilegal, tortura
responsável pela prisão ilegal dos membros de dele- e execução, tendo seu corpo desaparecido. Durante
gação da República Popular da China, em 3 de abril (1918-) Secretário de Segurança Pública do estado (1919-2000) Brigadeiro do ar. Comandou a 3a Zona o comando de Carvalho, esteve em funcionamento
de 1964. Foi investigado por comissão parlamentar da Bahia. Participou de operação no contexto das Aérea de 1970 a 1971. No período, agentes da Ae- presídio clandestino nas dependências da Base Aé-
de inquérito da Assembleia Legislativa da Guana- ações de perseguição a Carlos Lamarca, que, em ronáutica, sob seu comando direto, destacaram-se rea do Galeão, que serviu para detenção de presos
bara sobre tortura na Invernada de Olaria e sobre a 1971, levaram à morte de Iara Iavelberg. pela participação em prisões ilegais, tortura, mortes políticos e realização de sessões de tortura.
morte por afogamento de mendigos no rio da Guar- e desaparecimentos forçados de opositores políticos

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111) Jorge José Marques Sobrinho 114) José Luiz Coelho Netto 124) Newton Araújo de Oliveira e Cruz furdo de Natal”. Em 1981, assumiu o comando da
Polícia Militar fluminense e esteve envolvido com a
(1935-1990) Delegado da Polícia Civil. Diretor do (1921-1986) General de Divisão. Subchefe do Centro (1924-) General de Divisão. Chefe da agência cen- preparação do atentado no Riocentro.
Departamento de Ordem Política e Social do então de Informações do Exército (CIE) à época da criação tral do SNI à época do atentado no Riocentro, no Rio
estado da Guanabara (DOPS/GB) no início da déca- e funcionamento da Casa da Morte, em Petrópolis de Janeiro, em 1981, tendo sido denunciado pelo Mi- 126) Olavo Vianna Moog
da de 1970. (RJ) (1971-74) e um dos responsáveis por sua con- nistério Público Federal em 2014, por sua participa-
cepção, segundo depoimento prestado pelo coronel ção no evento. (1912-1989) General de Divisão. Comandante do
112) José Antônio Nogueira Belham Paulo Malhães à CNV. Chefe do Estado-Maior do I 1o Batalhão de Polícia do Exército (BPE) em 1964
Exército em 1979, e chefe de gabinete do ministro do 125) Nilton de Albuquerque Cerqueira e 1965. Em 1971, assumiu o Comando Militar do
(1934-) General de Divisão. Chefe do Destacamento Exército de 1981 a 1983. Planalto e a 11ª Região Militar, onde permaneceu
de Operações de Informações – Centro de Operações (indicado também na Seção C) até 1974. No exercício dessa última função, esteve
de Defesa Interna (DOI-CODI) do I Exército de no- 115) José Ney Fernandes Antunes diretamente envolvido na repressão à Guerrilha do
vembro de 1970 a maio de 1971, onde permaneceu (1930-) Coronel de Exército. Chefiou a 2a seção (in- Araguaia, sendo o responsável pelo comando das
como adido até setembro de 1971. Sob seu coman- (1926-) Tenente-coronel do Exército. Comandante formações) do Estado-Maior da 6a Região Militar operações realizadas entre julho e setembro de 1972
do, o DOI-CODI teve responsabilidade por casos de do 1o Batalhão de Polícia do Exército (BPE), no Rio de 1971 a 1973, período no qual teve atuação na e, ainda, da Operação Papagaio, levada a cabo entre
detenção ilegal, tortura, execução, desaparecimento de Janeiro, entre novembro de 1968 e fevereiro de Operação Pajussara, desencadeada contra Carlos setembro e outubro de 1972. Nesse período, treze
forçado e ocultação de cadáver. Esteve no Centro de 1971. Lamarca no estado da Bahia, e, também, na região pessoas tornaram-se vítimas de desaparecimento
Informações do Exército (CIE), em Brasília, de abril do Araguaia. As folhas de alterações relativas ao se- forçado, das quais três já tiveram seus locais de se-
de 1977 a novembro de 1981, período no qual chefiou 117) Leônidas Pires Gonçalves gundo semestre de 1973 indicam que, embora tenha pultamento identificados.
a seção de operações. Serviu no SNI, em Brasília, de permanecido como instrutor no Centro de Instrução
abril de 1984 a abril de 1987. Foi denunciado crimi- (1921-) General de Exército. Chefe do Estado-Maior Paraquedista General Penha Brasil até o final do 132) Ruy Lisbôa Dourado
nalmente pelo Ministério Público Federal em maio do I Exército de 1974 a 1976, período em que foi res- ano letivo de 1973, foi dispensado de todos os servi-
de 2014 pelo homicídio e ocultação de cadáver do ex- ponsável pela chefia do Centro de Operações de De- ços relativos à sua função. A mesma documentação (1917-1986) Delegado da Polícia Civil do antigo esta-
-deputado Rubens Beyrodt Paiva. Convocado pela fesa Interna (CODI) e por ações no âmbito da Ope- relata que esteve em viagem de instrução, no pri- do da Guanabara. Em 1959-1960, quando o departa-
CNV, compareceu à audiência em setembro de 2014, ração Radar, contra o Partido Comunista Brasileiro meiro semestre de 1973, com o curso de instrução de mento político do MRE era chefiado pelo embaixador
mas optou por permanecer em silêncio. (PCB), e do episódio conhecido como Massacre da dobragem, manutenção de paraquedas e suprimen- Pio Corrêa, participou de atividades de informação
Lapa, contra a cúpula dirigente do Partido Comu- to pelo ar que se iniciou em julho de 1973, nos esta- e contrainformação no Ministério das Relações Ex-
113) José Ferreira da Silva nista do Brasil (PCdoB). dos de Mato Grosso, Amazonas, Maranhão e Goiás. teriores (MRE) e na Junta Coordenadora de Infor-
Relata em depoimento reproduzido no livro Mata! O mações (JCI). Em abril de 1965, foi cedido ao MRE
Tenente-coronel do Exército. Comandante do desta- 121) Marcus Antônio Brito de Fleury major Curió e as guerrilhas no Araguaia (Leonen- para servir na Embaixada do Brasil em Montevidéu,
camento do Exército em Marabá e comandante de cio Nossa, São Paulo: Companhia das Letras, 2012) sempre sob a chefia de Pio Corrêa. No Uruguai, par-
tropas na região do Araguaia, entre junho e julho (1936-2012) Capitão do Exército. Comandou a 2a se- que esteve em uma operação no Araguaia prevista ticipou do monitoramento dos brasileiros exilados,
de 1972. ção do 10º Batalhão de Caçadores, em Goiânia (GO) para durar 90 dias, que acabou se estendendo por como elo de ligação com a polícia local. Em 1966, de
(atual 42º Batalhão de Infantaria Motorizada). Foi 180 dias, destinada a “caçar” guerrilheiros. Ainda regresso ao Rio de Janeiro, foi autorizado a colabo-
superintendente regional do Departamento de Po- de acordo com o livro, foram os agentes comanda- rar com o MRE no período em que o embaixador Pio
lícia Federal em Goiás. Entre dezembro de 1968 e dos por Cerqueira que desfecharam o ataque sobre a Corrêa ocupou a secretaria-geral (1966-1967). Docu-
abril de 1974, chefiou núcleo da agência de Goiânia Comissão Militar da Guerrilha, em 25 de dezembro mentos do Centro de Informações do Exterior (Ciex)
do Serviço Nacional de Informações (SNI). de 1973, no episódio que ficou conhecido como “Cha- revelam que o delegado Ruy Dourado voltou ao Uru-

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guai, quando do sequestro do diplomata brasileiro 137) Wilson Brandi Romão 139) Abílio Correa de Souza Auxiliadora Lara Barcellos, Eremias Delizoicov
Aloysio Gomide (1970-1971), e esteve em missão no (1969); Alberto José Barros da Graça, Luiz Sérgio
Chile, durante o governo do presidente Salvador Al- (1930-) Coronel do Exército. Foi secretário de Segu- (1923-2001) Suboficial da Aeronáutica. Fez curso na Dias, Jorge Leal Gonçalves Pereira, Eduardo Collen
lende. Em 1979, como delegado distrital da Barra rança Pública do estado do Pará de maio de 1974 a Escola das Américas, no Panamá. Atuou no Centro Leite (1970).
da Tijuca, conduziu o inquérito policial sobre a mor- março de 1975, período em que as Forças Armadas de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA)
te do embaixador José Jobim, corroborando a tese levaram a cabo a Operação Marajoara, no sudeste de janeiro de 1969 (então Núcleo do Serviço de Infor- 142) Ailton Joaquim
de suicídio. Suas conclusões foram posteriormente paraense. Durante a operação, pelo menos 49 guer- mações da Aeronáutica, NSISA) a setembro de 1973,
desfeitas em investigação do Ministério Público es- rilheiros foram vítimas de desaparecimento forçado. quando foi nomeado chefe do posto do Correio Aéreo (1942-2007) Capitão do Exército. Serviu no Desta-
tadual, com a qualificação do caso como homicídio de Nacional em Buenos Aires. Segundo depoimentos camento de Operações de Informações – Centro de
autoria desconhecida. SEÇÃO C) Responsabilidade pela autoria de ex-presos políticos, foi o responsável pelo seques- Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do I Exér-
direta de condutas que ocasionaram graves tro de Stuart Angel Jones e participou da tortura cito, no Rio de Janeiro. Acusado pela prática de tor-
134) Syzeno Ramos Sarmento violações de direitos humanos em locais a que este foi submetido. Foi também identificada tura, execução e ocultação de cadáver, foi apontado
situados no estado do RJ ou de pessoas sua participação na tortura de Jefferson Cardim de como um dos mais violentos torturadores do DOI-
(1907-1983) General de Exército. Comandante do II nascidas no estado do RJ Alencar Osório e seu filho Jefferson Lopetegui de -CODI. Esteve também envolvido com a prática de
Exército em 1967 e 1968, e do I Exército de 1968 a Alencar Osório, na Base Aérea do Galeão, em de- contrabando quando serviu na Polícia do Exército
1971. Durante sua gestão à frente do I Exército, criou 138) Abeylard de Queiroz Orsini zembro de 1970 e janeiro de 1971. Vítimas relacio- do Rio de Janeiro. Recebeu a Medalha do Pacifica-
o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) e o nadas: Jefferson Cardim de Alencar Osório e Jeffer- dor com Palma em 1970. Vítimas relacionadas: Cha-
Destacamento de Operações de Informações (DOI), (1927-) Médico-legista do Instituto Médico-Legal do son Lopetegui de Alencar Osório (1970-71); Stuart el Charles Schreier, Antonio Roberto Espinosa, Ma-
que funcionaram de forma integrada, no sistema co- estado de São Paulo (IML/SP), teve seu registro pro- Angel Jones (1971). ria Auxiliadora Lara Barcellos e Vera Silvia Araújo
nhecido como DOI-CODI, difundido nacionalmente. fissional cassado pelo Conselho Federal de Medicina Magalhães, Murilo Pinto da Silva, Ângelo Pezzuti
(CFM) em 10 de abril de 2002, por violação da ética 141) Ailton Guimarães Jorge da Silva, Maurício Vieira de Paiva (1969).
135) Uriburu Lobo da Cruz médica, fraude e conivência com a tortura, ao assi-
nar laudos de presos políticos executados pela re- (1941-) Ex-militar. Serviu na 1a companhia de Polí- 144) Alberto Octávio Conrado Avegno
(1931-) Capitão de mar e guerra. Vinculado ao Co- pressão. Convocado pela CNV em fevereiro de 2014 cia do Exército da Vila Militar do Rio de Janeiro de
mando de Operações Navais – Divisão Anfíbia/ GB. para prestar depoimento, não atendeu à convocação, novembro de 1966 a março de 1972. Esteve à dis- (1927-2013) Agente do Centro de Informações do
Atuou na força de fuzileiros de esquadra enviada à deixando de apresentar justificativa formal. Vítimas posição do Destacamento de Operações de Informa- Exterior (Ciex), com o codinome “Altair”, entre ou-
região do Araguaia para participação na Operação relacionadas: Carlos Marighella (1969); Alceri Maria ções – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI- tros, atuou também como agente do Centro de In-
Papagaio, em 1972. Nessa operação, ocupou o posto Gomes da Silva e Antônio dos Três Reis de Oliveira -CODI) do I Exército de maio de 1972 a novembro formações da Marinha (Cenimar). Teve participação
de comandante do grupamento operativo, formado (1970); Devanir José de Carvalho, Luiz Eduardo da de 1972. Pediu demissão do Exército em março de em detenções ilegais e desaparecimentos forçados.
por 229 homens, sendo o responsável direto pelo co- Rocha Merlino, Luiz Hirata, José Roberto Arantes 1981, após ser condenado pela prática de contraban- Vítimas e casos relacionados: sequestro de Jefferson
mando da tropa. de Almeida, Devanir José de Carvalho e Dimas An- do. Foi preso em 1993 e 2007 por envolvimento com Cardim de Alencar Osório (1970); desaparecimen-
tônio Casemiro (1971); Hiroaki Torigoe, Iuri Xavier o jogo do bicho. Teve participação em casos de deten- tos forçados de Jean Henri Raya Ribard e Antonio
136) Waldyr Coelho Pereira, Lauriberto José Reyes, Marcos Nonato da ção ilegal, tortura e execução. Recebeu a Medalha Luciano Pregoni (1973); Joaquim Pires Cerveira e
Fonseca, Alex de Paula Xavier Pereira, Gélson Rei- do Pacificador com Palma em 1969. Convocado pela João Batista Rita (1973-1974); sequestro de Flávio
(1928-1977) Coronel do Exército. Chefe da Operação cher e Ana Maria Nacinovic Corrêa (1972); João CNV em julho de 2014 para prestar depoimento, Tavares (1977).
Bandeirante (Oban), do I Exército, em 1969 e 1970. Batista Franco Drumond e Pedro Ventura Felipe de deixou de comparecer e, posteriormente, apresentou
Araújo Pomar (1976). justificativa médica. Vítimas relacionadas: Antonio
Roberto Espinosa, Chael Charles Schreier, Maria

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(Acréscimo CEV-Rio) Alceu Pencai lícia do Exército (BPE), no Rio de Janeiro. Atuou no 1977. Serviu nos batalhões de infantaria de selva eles o caso do ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva,
Destacamento de Operações de Informações – Cen- de Imperatriz (MA) e de Manaus, de 1977 a 1980. a quem teria torturado e executado pessoalmente.
(1933-) Reformado em 24 de maio de 2015 como 2º te- tro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do Esteve no Centro de Informações do Exército (CIE), Atuou na Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), de
nente, por ter sido julgado “incapaz definitivamente I Exército de 1970 a 1974, onde era conhecido como em Brasília, de maio de 1980 a maio de 1985. Foi 1971 a 1974. Recebeu a Medalha do Pacificador
para o serviço do Exército”, é citado no informe policial “doutor Carneiro”. Em 1981, foi denunciado publi- identificado como responsável pela Casa de Itape- em 1971. Vítimas e caso relacionados: Celso Gil-
da 35ºDP, no relatório referente ao cerco do casal Má- camente pela ex-prisioneira política Inês Etienne vi, centro clandestino de tortura e morte no estado berto de Oliveira (1970); Rubens Beyrodt Paiva,
rio Prata e Marilena Villas Boas Pinto, militantes do Romeu por ter atuado no centro clandestino de de São Paulo. Segundo depoimento do ex-sargento Maurício Guilherme da Silveira e Gerson Theodo-
MR-8, mortos pela repressão em 2 de abril de 1971. O tortura e extermínio do Centro de Informações do Marival Chaves à CNV, Pereira Filho, enquanto ro de Oliveira (1971); Casa da Morte de Petrópolis
então subtenente chefiou a equipe que permaneceu no Exército (CIE) conhecido como Casa da Morte, lo- servia no CIE, participou em julho de 1980 da cha- (RJ) (1971-74).
interior do “aparelho” da Rua Niquelândia, nº 23, em calizado em Petrópolis (RJ). Em 1986, o Conselho mada “Operação Limpeza” realizada com o objetivo
Campo Grande (Zona Oeste da cidade do Rio de Ja- Regional de Medicina do estado do Rio de Janeiro de ocultar os restos mortais de MariaAugusta Tho- 158) Antônio Waneir Pinheiro Lima
neiro), onde Marilena passou toda a madrugada entre cassou seu registro profissional. A decisão foi rati- maz e Márcio Beck Machado, mortos em Rio Verde
os dias 2 e 3 de abril sendo torturada. Pencai era um ficada em 1989 pelo Conselho Federal de Medicina. (GO). Em 1981, segundo entrevista de Marival Cha- (1943-) Soldado do Exército. Atuou na Casa da Mor-
integrante da 2º Seção da Brigada Aéreo Terrestre de Teve participação em casos de tortura, execução e ves publicada na edição de 24 de março de 2004 da te, em Petrópolis (RJ), com o codinome “Camarão”.
Paraquedista, o serviço reservado da unidade, e esta- ocultação de cadáver. É também suspeito de ser revista IstoÉ, Pereira Filho atuou nas “Operações Teve participação em casos de detenção ilegal, tor-
va no local. Sua reforma se deu sob a PORTARIA Nº98 mandante do assassinato de Nilson Diogo, um ex- Limpeza”, realizadas no sudeste do Pará e no norte tura, execução, desaparecimento forçado e ocultação
- SSIM-5/SAP/1-RIO/SIPRG/1, publicada no Diário -funcionário que movera ação trabalhista indeniza- do atual estado de Tocantins, destinadas à ocultação de cadáver. Vítimas e caso relacionados: Inês Etien-
Oficial da União em 24 de março de 2015. tória. Dois meses antes de sua morte, Nilson havia dos corpos dos guerrilheiros e camponeses mortos ne Romeu, Antônio Joaquim de Souza Machado,
denunciado ao delegado de polícia de Vassouras ter por ocasião da Guerrilha do Araguaia, bem como ao Mariano Joaquim da Silva, Walter Ribeiro Novaes,
146) Alfredo Magalhães recebido ameaças de morte de Amílcar Lobo. O as- encobrimento dos vestígios da atuação das forças Heleny Ferreira Telles Guariba, Carlos Alberto So-
sassinato, praticado por dois desconhecidos, ocor- repressivas. Recebeu a Medalha do Pacificador em ares de Freitas e Paulo de Tarso Celestino da Sil-
(1913-1996) Capitão de mar e guerra. Serviu no Cen- reu em 17/06/1986, quando a ação estava em grau 1963. Vítimas relacionadas: Luiz Eduardo da Rocha va (1971); Massacre do Parque Nacional do Iguaçu,
tro de Informações da Marinha (Cenimar) entre 1970 de recurso no tribunal. Vítimas relacionadas: Ma- Merlino (1971); Luís Ignácio Maranhão Filho e João em que foram vítimas de desaparecimento forçado
e 1971, onde atuou sob o codinome de “capitão Mike”; ria do Carmo Menezes (1970); Rubens Beyrodt Pai- Massena Melo (Casa de Itapevi, 1974); Élson Costa, Onofre Pinto, Daniel José de Carvalho, Joel José de
também era chamado de “Alemão”. Participou de va e Paulo de Tarso Celestino da Silva (1971); Ísis Hiram de Lima Pereira, Jayme Amorim de Miran- Carvalho, José Lavecchia, Victor Carlos Ramos e
tortura na unidade da Marinha da Ilha das Flores, Dias de Oliveira e Cecília Maria Bouças Coimbra da, Itair José Veloso, José Montenegro de Lima e Or- Enrique Ernesto Ruggia (1974), Ana Rosa Kucinski
em Niterói. De acordo com relatos contidos no livro (1972); José Roman, Thomaz Antônio da Silva Mei- lando da Silva Rosa Bonfim Júnior (1980); ocultação (1974).
Tirando o capuz, de Álvaro Caldas, teria participado relles Neto, Luís Ignácio Maranhão Filho, Wilson dos cadáveres de Maria Augusta Thomaz e Márcio
das torturas de Stuart Edgar Angel. Recebeu a Me- Silva e David Capistrano da Costa (1974). Beck Machado (1980). 163) Armando Avólio Filho
dalha do Pacificador em 1968. Vítimas relacionadas:
Eunício Cavalcante e Stuart Edgar Angel (1971). 151) André Leite Pereira Filho 155) Antônio Fernando Hughes de Carvalho (1945-) Coronel do Exército. Serviu no 1o batalhão
de Polícia do Exército (BPE), no Rio de Janeiro, de
150) Amílcar Lobo Moreira da Silva2 (1936-2003) Coronel do Exército. Chefe da seção de (1942-2005) Serviu no Destacamento de Opera- janeiro de 1970 a dezembro de 1971, usando o codi-
informações do 2o Batalhão de Polícia do Exérci- ções de Informações – Centro de Operações de De- nome “Apolo”. Teve participação na prática de tor-
(1939-1997) Médico do Exército. Designado em to (BPE) em São Paulo no ano de 1970. Atuou no fesa Interna (DOI-CODI) do I Exército, no Rio de tura. Recebeu a Medalha do Pacificador com Palma
1970 para atuar como médico no 1o Batalhão de Po- Destacamento de Operações de Informações – Cen- Janeiro, em 1970 e 1971. Teve participação em ca- em 1985. Vítimas relacionadas: Mário Alves de Sou-
tro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) sos de detenção ilegal, tortura, execução, desapa- za Vieira, Cid Queiroz Benjamin e Álvaro Machado
2. O texto foi alterado pela CEV-Rio em relação ao Relatório da Comissão do II Exército de fevereiro de 1971 a fevereiro de recimento forçado e ocultações de cadáver, entre Caldas (1970).
Nacional da Verdade.

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165) Arthur de Britto Pereira funções equivalentes aos Destacamento de Opera- política a organizações políticas de oposição ao re- chi Leme, Arnaldo Cardoso Rocha, Edgard de
ções de Informações – Centro de Operações de Defe- gime militar. Vinculou-se ao Centro de Informações Aquino Duarte, Luiz José da Cunha, Francisco
(1918-2002) Delegado de polícia. Serviu no Depar- sa Interna (DOI-CODI), que atuava em parceria com do Exército (CIE), em Brasília, de julho a dezem- Emmanuel Penteado, Ronaldo Mouth Queiroz,
tamento de Ordem Política e Social do então estado as áreas de segurança e informações do III Exército, bro de 1974, período em que participou de ações de Cristina Moraes de Almeida, Helber José Gomes
da Guanabara (DOPS/GB). Teve participação em sendo, porém, formalmente subordinado à Secreta- repressão política na região do Araguaia. Serviu no Goulart, José Carlos da Costa (1973).
caso de tortura e execução. Vítimas relacionadas: ria de Segurança Pública do estado do Rio Grande do Serviço Nacional de Informações (SNI), em Brasília,
Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo, Antônio Sul. Organizou o DOI-CODI do III Exército em 1974 de 1975 a 1978. Teve participação em casos de tor- 179) Cláudio Antônio Guerra
Marcos Pinto de Oliveira e Lígia Maria Salgado e 1975, sob a chefia do coronel João Oswaldo Leivas tura e morte. Recebeu a Medalha do Pacificador em
Nóbrega (1972). Job, primeiro chefe desse destacamento. Recebeu 1970. Vítimas relacionadas: Chael Charles Schreier, (1940-) Delegado de polícia no estado do Espírito
a Medalha do Pacificador com Palma em 1971. Foi Antonio Roberto Espinosa e Maria Auxiliadora Lara Santo. Serviu no DOPS desse estado. Teve parti-
168) Ary Pereira de Carvalho um dos mentores do “Dopinha” – local clandestino Barcellos (1969). cipação em casos de execução, desaparecimento
de tortura instalado no centro de Porto Alegre. Em forçado e ocultação de cadáver. Reconheceu essa
(1927-2006) Coronel do Exército. Serviu na 1a Di- 1967 foi denunciado na comissão parlamentar de in- (71) Carlos Alberto Brilhante Ustra atuação criminosa em três depoimentos que pres-
visão de Infantaria da Vila Militar, no Rio de Ja- quérito da Assembleia Legislativa do estado do Rio tou à CNV, ocorridos em 25 de junho de 2012, 16
neiro, em 1969 e 1970. Encarregado da condução Grande do Sul que investigou o “caso do sargento (1932-) Coronel do Exército. Comandou o Des- de agosto de 2013 e 23 de julho de 2014. Em agos-
de inquéritos policiais militares (IPM) nos quais das mãos amarradas”. Está na lista dos 13 agentes tacamento de Operações de Informações – Cen- to de 2014, participou da diligência da CNV na
ocorreram interrogatórios violentos e mortes sob do Estado brasileiro citados pelo procurador Gian- tro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) Usina Cambahyba, em região próxima à cidade
tortura. Teve participação em casos de tortura, carlo Capaldo, responsáveis pelo desaparecimento do II Exército entre setembro de 1970 e janeiro de Campos dos Goytacases (RJ); a Usina foi iden-
execução e ocultação de cadáver. Esteve vinculado forçado dos ítalo-argentinos Horacio Domingo Cam- de 1974, período em que ocorreram ao menos 45 tificada por Guerra como local onde, em 1973 e
ao atentado ocorrido no Riocentro, no Rio de Ja- piglia Pedamonti (1980), no Rio de Janeiro, e Loren- mortes e desaparecimentos forçados sob a res- 1974, incinerou corpos de presos políticos levados
neiro, em 1981. Recebeu a Medalha do Pacificador zo Ismael Viñas Gigli (1980), na fronteira de Paso de ponsabilidade dos agentes do DOI-CODI de São da Casa da Morte, em Petrópolis (RJ). Vítimas re-
em 1969. Vítimas relacionadas: Severino Viana los Libres (Argentina) e Uruguaiana (Brasil). Teve Paulo. Teve participação direta em casos de pri- lacionadas: Ronaldo Mouth Queiroz (1973); David
Colou, Sebastião Gomes dos Santos, Eremias De- participação em casos de sequestro, tortura e execu- são detenção ilegal, tortura, execução, desapare- Capistrano da Costa, João Massena Melo, Luiz Ig-
lizoicov, Maria Auxiliador Lara Barcellos e Chael ção. Vítimas relacionadas: Vera Lígia Huebra Neto cimento forçado e ocultação de cadáver. Recebeu nácio Maranhão Filho, José Roman, Thomaz An-
Charles Schreier (1969); Dulce Chaves Pandolfi, Saavreda Durão, Manoel Raimundo Soares (1966); a Medalha do Pacificador com Palma em 1972. tônio da Silva Meirelles Neto, Wilson Silva, Ana
Carmela Pezzuti, Glória Maria Percinotto, Maria Antônio Pinheiro Salles, João Carlos Bona Garcia e Vítimas relacionadas: José Idésio Brianezi e José Rosa Kucinski e Joaquim Pires Cerveira (1974);
do Carmo Menezes, Alberto José Barros da Gra- Gustavo Buarque Schiller (1970); Lilián Celiberti e Maria Ferreira de Araújo (1970); Eleonora Meni- Nestor Vera (1975).
ça, Luiz Sérgio Dias, Jorge Leal Gonçalves Perei- Universindo Rodríguez Díaz (1978); Horacio Domin- cucci de Oliveira, Antônio Pinheiro Salles, Aylton
ra, Marlene Paiva, Marcos Franco, Cecília Maria go Campiglia Pedamonti e Lorenzo Ismael Viñas Gi- Adalberto Mortati, Flávio Molina Carvalho, Jo- (77) Clemente José Monteiro Filho
Bouças Coimbra, Arlete de Freitas, Abel Silva, gli (1980). aquim Alencar de Seixas, José Milton Barbosa,
Germana Figueiredo (1970). José Roberto Arantes de Almeida, Luiz Almeida (indicado também na Seção B)
178) Celso Lauria Araújo e Luiz Eduardo da Rocha Merlino (1971);
169) Átila Rohrsetzer Criméia Schmidt de Almeida, Danilo Carneiro, (1925-1977) Capitão de mar e guerra. Comandante da
(1936-) Coronel do Exército. Serviu no quartel-gene- Gilberto Natalini, Iuri Xavier Pereira, Alex de unidade da Marinha localizada na ilha das Flores (RJ),
(1931-) Coronel do Exército. Chefiou o serviço de ral do I Exército, onde esteve encarregado, a partir Paula Xavier Pereira, Gélson Reicher, Ana Ma- de 1968 a 1970, teve participação em casos de tortura,
informações do comando do III Exército desde sua do segundo semestre de 1969, da condução de in- ria Nacinovic Corrêa, Lauriberto José Reyes, Hi- que autorizava e cuja execução acompanhava. Vítimas
criação, em 1967, até 1969. Em 1970 e 1971, chefiou quéritos policiais militares (IPM). Participou dire- roaki Torigoe, Marcos Nonato da Fonseca e Luiz relacionadas: Luiz Carlos Souza, Martha Alvarez, Um-
a Divisão Central de Informações (DCI), órgão com tamente, em 1969 e 1970, de operações de repressão Eurico Tejera Lisbôa (1972); Alexandre Vannuc- berto Trigueiros Lima e Ziléa Reznik (1969 e 1970).

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186) Dulene Aleixo Garcez dos Reis fraudulento e de desaparecimento forçado. Vítimas 205) Ferdinando Muniz de Farias Oliveira e Paulo César Botelho Massa (1972).
relacionadas: Eremias Delizoicov, Geraldo Bernardo
(1942-) Capitão do Exército. Serviu no 1o Batalhão da Silva e Roberto Cietto (1969); Juarez Guimarães (1922-) Coronel-aviador. Ingressou no Centro de In- 209) Francisco Moacyr Meyer Fontenelle
de Polícia do Exército (BPE), no Rio de Janeiro, a de Brito (1970); Carlos Eduardo Pires Fleury (1971); formações de Segurança da Aeronáutica (CISA) em
partir de novembro de 1969, tendo assumido, em Aurora Maria Nascimento Furtado (1972); Solange maio de 1969, tendo sido nomeado, em janeiro de (1929-1993) Coronel do Exército. Serviu no 1º Ba-
abril e maio de 1970, o comando do Pelotão de In- Lourenço Gomes (1982). 1971, chefe da Divisão de operações. Teve participa- talhão de Polícia do Exército (BPE), no Rio de Ja-
vestigações Criminais (PIC). Teve participação em ção em casos de tortura, execução, desaparecimento neiro, sendo também conhecido à época como major
casos de detenção ilegal, tortura e desaparecimen- (83) Ênio de Albuquerque Lacerda forçado e ocultação de cadáver. Recebeu a Meda- Fontenelle. Seu nome consta na denúncia oferecida
to forçado. Foi ouvido pela CNV em 2 de outubro lha do Pacificador em 1971. Vítimas relacionadas: pelo Ministério Público Federal como um dos res-
de 2013, permanecendo em silêncio durante prati- (indicado também na Seção B) Eiraldo Palha Freire, Jessie Jane Vieira de Sousa, ponsáveis pelo sequestro, tortura e execução de Má-
camente todo o depoimento. Recebeu a Medalha do Colombo Vieira de Souza, Fernando Palha Freire e rio Alves de Souza Vieira (1970). Teve participação
Pacificador em 1988. Caso relacionado: Mário Alves (1929-1998) Tenente-coronel do Exército. Coman- Jefferson Cardim de Alencar Osório (1970); Stuart em outros casos de tortura. Recebeu a Medalha do
de Souza Vieira (1970). dou a 1ª Companhia de Polícia do Exército, na Vila Edgar Angel Jones e Alex Polari de Alverga (1971). Pacificador com Palma em 1971. Vítimas relaciona-
Militar do Rio de Janeiro, de maio de 1968 a julho das: Vera Silvia Araújo Magalhães e Mário Alves de
190) Edson Sá Rocha de 1971, e serviu no Destacamento de Operações de 207) Floriano Aguilar Chagas Souza Vieira (1970).
Informações – Centro de Operações de Defesa In-
(1941-) General de Brigada. Chefe de operações do terna (DOI-CODI) do I Exército de abril de 1972 a (1926-2012) General de Divisão. Foi adido do Exérci- 211) Freddie Perdigão Pereira
Destacamento de Operações de Informações – Cen- junho de 1974. Teve participação em casos de tor- to na Embaixada do Brasil em Buenos Aires de 1973
tro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do tura e execução. Recebeu a Medalha do Pacificador a 1975, mantendo contato frequente com agentes ar- (1936-1996) Coronel do Exército. Serviu no Centro
I Exército em 1980 e no início de 1981. Denunciado com Palma em 1969. Vítimas relacionadas: Severi- gentinos e chilenos da área de informações. Recebeu de Informações do Exército (CIE), vinculado aos
pelo Ministério Público Federal por participação no no Viana Colou, Eremias Delizoicov, Chael Charles a Medalha do Pacificador em 1965. Vítimas e caso gabinetes dos ministros do Exército Lyra Tavares e
atentado do Riocentro, no Rio de Janeiro, em 1981. Schreier e Sebastião Gomes dos Santos (1969). relacionados: teve participação no sequestro de Jo- Orlando Geisel, de julho de 1968 a março de 1972.
Recebeu a Medalha do Pacificador com Palma em aquim Pires Cerveira e João Batista Rita, ocorrido Sob o codinome “doutor Roberto”, atuou no centro
1982. Caso relacionado: atentado no Riocentro (1981). 204) Félix Freire Dias em Buenos Aires em 5 de dezembro de 1973. clandestino conhecido como Casa da Morte, em Pe-
trópolis (RJ). Entre fevereiro de 1973 e janeiro de
191) Eduardo Rodrigues Delegado de polícia. (1949-) Ex-cabo do Exército. Foi agente do Centro de (90) Francisco Demiurgo Santos Cardoso 1975, serviu no Destacamento de Operações de In-
Informações do Exército (CIE), com atuação no Rio de formações – Centro de Operações de Defesa Inter-
Serviu no Departamento de Ordem Política e Social Janeiro e em Brasília, tendo também cumprido mis- (indicado também na Seção B) na (DOI-CODI) do II Exército, em São Paulo, sob o
do então estado da Guanabara (DOPS/GB). Teve sões na região de Xambioá (PA), sob o comando do comando de Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir
participação em casos de detenção ilegal, tortura major do CIE José Brant Teixeira. Atuava na Casa de (1930-) Coronel do Exército. Comandou o Destaca- Maciel. Esteve na agência do SNI no Rio de Janei-
e execução. Vítimas relacionadas: Raul Amaro Nin Petrópolis (RJ), um dos principais locais de tortura do mento de Operações de Informações – Centro de ro de novembro de 1974 a fevereiro de 1977. Teve
Ferreira e Carlos Eduardo Pires Fleury (1971). país, onde era conhecido como “doutor Magro” ou “dou- Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do I Exér- participação em casos de detenção ilegal, tortura,
tor Magno”. Segundo depoimentos de Marival Chaves cito de setembro de 1971 a fevereiro de 1972. Teve execução, desaparecimento forçado e ocultação de
192) Elias Freitas à CNV, Dias teve participação em casos de execução, participação em casos de detenção ilegal, tortura, cadáver. Recebeu a Medalha do Pacificador com Pal-
desaparecimento forçado e ocultação de cadáver. Re- execução e desaparecimento forçado. Recebeu a Me- ma em 1970. Vítimas e casos relacionados: Rubens
(1926-2008) Médico-legista do Instituto Médico-Le- cebeu a Medalha do Pacificador com Palma em 1974. dalha do Pacificador em 1983. Vítimas relacionadas: Beyrodt Paiva, Walter Ribeiro Novaes, Heleny Fer-
gal do estado do Rio de Janeiro (IML/ RJ). Teve par- Convocado pela CNV, prestou depoimento, negando Raul Amaro Nin Ferreira, Rubens Beyrodt Paiva e reira Telles Guariba e Paulo de Tarso Celestino da
ticipação em casos de emissão de laudo necroscópico acusações. Vítima relacionada: David Capistrano. Hamilton Pereira Damasceno (1971); Ísis Dias de Silva (1971); Joaquim Pires Cerveira (1973); Ana

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Rosa Kucinski e Wilson Silva (1974); Nestor Vera em consequência da explosão da bomba que levava pelo Ministério Público Federal no ano de 2014. 230) Jacy Ochsendorf e Souza
(1985); Zuzu Angel (1976); e atentado no Riocentro, no colo, planejada para explodir durante o show que
no Rio de Janeiro (1981). acontecia em homenagem ao dia do trabalhador, o 224) Humberto Ribeiro Quintas (1945-) Capitão do Exército. Serviu no Destacamen-
que acarretaria correria e pânica nas cerca de 20 mil to de Operações de Informações – Centro de Opera-
215) Graccho Guimarães Silveira pessoas presentes. (1942-) Policial civil. Serviu no Departamento de ções de Defesa Interna (DOI-CODI) do I Exército, no
Ordem Política e Social do Rio de Janeiro (DOPS/ Rio de Janeiro, e na Casa da Morte, em Petrópolis
(1936-) Médico-legista do Instituto Médico-Legal (98) Harry Shibata RJ) em 1970. Teve participação em casos de deten- (RJ). Foi agente do Centro de Informações do Exér-
do estado do Rio de Janeiro (IML/RJ). Teve partici- ção ilegal e tortura. Vítimas relacionadas: Cecília cito (CIE). Denunciado criminalmente pelo Minis-
pação em casos de emissão de laudos necroscópicos (1927-) Médico-legista e diretor do Instituto Médico- Maria Bouças Coimbra e José Novaes (1970). tério Público Federal em maio de 2014, acusado do
fraudulentos. Vítimas relacionadas: Célio Augusto -Legal do estado de São Paulo (IML/SP). Em 1980, homicídio e da ocultação do cadáver do ex-deputado
Guedes (1972) e Lincoln Bicalho Roque (1973). teve seu registro profissional cassado pelo Conselho 226) Hygino de Carvalho Hércules Rubens Paiva, em 1971. Em depoimento à CNV, o
Regional de Medicina de São Paulo, condenado pela ex-analista do CIE e do DOI Marival Chaves acusou
(Acréscimo CEV-Rio) Guilherme Pereira do Rosário emissão de atestados de óbito e laudos necroscópi- (1939-) Médico-legista do Instituto Médico-Legal do Jacy Ochsendorf de ser o responsável em Brasília
cos fraudulentos. Recebeu a Medalha do Pacificador estado do Rio de Janeiro (IML/RJ). Teve participação pelos agentes infiltrados entre os montoneros exila-
(1946-1981) Soldado lotado na burocracia da Com- em 1977. Vítimas relacionadas: Carlos Marighella em caso de emissão de laudo necroscópico fraudulen- dos no Brasil. Prestou depoimento à CNV em julho
panhia de Petrechos Pesados da Brigada Paraque- (1969); Edson Neves Quaresma e Yoshitane Fujimo- to. Vítima relacionada: Eremias Delizoicov (1969). de 2014, negando-se a responder às perguntas. Víti-
dista, na primeira metade dos anos 1960. Serviu na ri (1970); Luiz Hirata (1971); Luiz José da Cunha, ma relacionada: Rubens Beyrodt Paiva (1971).
Brigada de fevereiro de 1964 a outubro de 1972, sen- Helber José Gomes Goulart, Emmanuel Bezerra dos 228) Isaac Abramovitc
do transferido para o Destacamento de Operações de Santos, Manoel Lisbôa de Moura, Sônia Maria de 231) Jáder de Jesus Coutinho
Informações do 1º Exército (DOI) na condição de sar- Moraes Angel Jones e Antônio Carlos Bicalho Lana (1936-2012) Médico-legista do Instituto Médico-Le-
gento (onde ficaria até a sua morte, aos 35 anos, em (1973); José Ferreira de Almeida, Vladimir Herzog gal do estado de São Paulo (IML/SP). Teve partici- (1932-2013) Capitão de mar e guerra. Foi sub-
1981). Antes mesmo da mudança de unidade, já atu- e Manoel Fiel Filho (1975); Pedro Ventura Felipe de pação em casos de emissão de laudos necroscópicos comandante da unidade da Marinha na ilha das
ava na repressão como escrivão de inquéritos políti- Araújo Pomar, João Batista Franco Drumond e Nei- fraudulentos, tortura e ocultação de cadáver. Re- Flores (RJ), em 1969. Teve participação em casos
cos e integrante de equipes que “estouravam” apare- de Alves dos Santos (1976). cebeu a Medalha do Pacificador em 1973. Vítimas de tortura, que autorizava e cuja execução acom-
lhos. Rosário, o agente (Wagner), era um destacado relacionadas: Luiz Eduardo da Rocha Merlino e panhava. Vítimas relacionadas: Luiz Carlos Sou-
agente operativo das equipes de busca e apreensão, 220) Hilário José Corralis Antônio Sérgio de Mattos (1971); Iuri Xavier Perei- za, Martha Alvarez, Umberto Trigueiros Lima e
EBAs, embriões dos DOIs. Em 1975 recebeu a Me- ra, Alex de Paula Xavier Pereira, Marcos Nonato Ziléa Reznik (1969).
dalha do Pacificador, honraria concedida pelos ge- (1913-1982) Marceneiro e pequeno empresário, es- da Fonseca, Ana Maria Nacinovic Corrêa, Alexan-
nerais e torturadores e outros agentes da repressão. pecialista em explosivos, ligado a oficiais do Exér- der José Ibsen Voerões, Antonio Benetazzo, Gasto- 232) Jayr Gonçalves da Motta
Integrou a Seção de Operação Especiais. No ano em cito e da Polícia Militar. Em maio de 1962, esteve ne Lúcia de Carvalho Beltrão, Frederico Eduardo
que morreu fazia curso de analista de informações envolvido na tentativa de atentado a bomba contra Mayr, Gélson Reicher, Hélcio Pereira Fortes, Hi- (1935-1982) Policial federal, atuou no Departamen-
na Escola Nacional de Informações (EsNI). Adquiriu a Exposição Comercial Soviética no Pavilhão de São roaki Torigoe, João Carlos Cavalcanti Reis, José to de Ordem Política e Social do então estado da
expertise em explosivos e conhecimentos profundos Cristovão, na cidade do Rio de Janeiro. Caso rela- Júlio de Araújo, Lauriberto José Reyes e Rui Os- Guanabara (DOPS/GB) de 1966 ao início da década
sobre bombas. É apontado como o autor da bomba cionado: participava do chamado Grupo Secreto, or- valdo Aguiar Pfutzenreuter (1972); Ronaldo Mouth de 1970. Atuava também no Centro de Informações
que explodiu na Ordem dos Advogados do Brasil ganização paramilitar de direita que desencadeou Queiroz, Arnaldo Cardoso Rocha, Carlos Nicolau de Segurança da Aeronáutica (CISA) e tinha livre
(OAB), vitimando d. Lyda Monteiro, secretária do uma série de atos terroristas na tentativa de deter a Danielli, Francisco Emanoel Penteado e Francisco trânsito no Destacamento de Operações de Infor-
então presidente da Ordem, Seabra Fagundes. Mor- abertura política. Teve participação no atentado do Seiko Okama (1973). mações – Centro de Operações de Defesa Interna
reu no episódio do Riocentro, em 30 de abril de 1981 Riocentro, no Rio de Janeiro, tendo sido denunciado (DOI-CODI) do I Exército, no Rio de Janeiro. Teve

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participação em casos de detenção ilegal e tortura. 242) João Guilherme Figueiredo 256) José Anselmo dos Santos 270) José Guilherme Figueiredo
Vítimas relacionadas: Cecília Maria Bouças Coim-
bra, Marcos Franco, José Novaes e Marlene Paiva (1936-) Médico-legista do Instituto Médico-Legal (1942-) Marinheiro. Agente infiltrado em organi- (1943-) Médico-legista do Instituto Médico-Le-
(1970); Alex Polari de Alverga (1971). do estado do Rio de Janeiro (IML/RJ). Teve par- zações de oposição ao regime militar, conhecido gal do estado do Rio de Janeiro (IML/RJ). Teve
ticipação em caso de emissão de certidão de óbi- como “cabo Anselmo”. Teve participação em casos participação em caso de emissão de laudo ne-
233) Jair Romeu to fraudulenta. Vítima relacionada: Aderval Alves de detenção ilegal, tortura, execução e desapareci- croscópico fraudulento. Vítima relacionada: Ro-
Coqueiro (1971). mento forçado. Vítimas relacionadas: Luiz Almeida berto Cietto (1969).
(1926-2000) Auxiliar de necropsia do Instituto Médi- Araújo e José Raimundo da Costa (1971); Soledad
co-Legal do estado de São Paulo (IML/SP). Teve par- (107) João Pinto Pacca Barrett Viedma, Pauline Reichstul, Jarbas Pereira 272) José Lino Coutinho da França Netto
ticipação em casos de emissão de laudo necroscópico Marques, José Manoel da Silva, Eudaldo Gomes,
fraudulento e de ocultação de cadáver. Vítimas rela- (indicado também na Seção B) Evaldo Luiz Ferreira de Souza e Edgard de Aquino (1940-) Médico. Prestou serviço militar na unidade
cionadas: Luiz Hirata, Gélson Reicher, José Milton Duarte (1973). da Marinha na Ilha das Flores (RJ), em 1969 e 1970,
Barbosa e José Roberto Arantes de Almeida (1971); (1919-) General de Brigada. Chefiou o Destaca- atuando como tenente-médico. Teve participação em
Iuri Xavier Pereira, Alex de Paula Xavier Pereira, mento de Operações de Informações – Centro de 260) José Brant Teixeira casos de tortura, acompanhando-a e colaborando
Marcos Nonato da Fonseca e Ana Maria Nacinovic Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do I com sua execução por meio da ocultação do delito, da
Corrêa (1972); Antônio Carlos Bicalho Lana (1973). Exército de maio de 1971 a setembro de 1971. Teve (1934-) Tenente-coronel do Exército. Esteve vincu- promoção de tortura psicológica, buscando diminuir
participação em casos de tortura e execução. Víti- lado ao Centro de Informações do Exército (CIE) a resistência voluntária e a capacidade de decidir
235) Jeovah Silva ma relacionada: Raul Amaro Nin Ferreira e José de 1971 a 1979, quando passou a prestar serviços dos torturados e agindo junto aos presos políticos
Raimundo da Costa (1971). ao Serviço Nacional de Informações (SNI). Chefiou após as sessões de tortura física, já em suas celas,
Escrivão do DOPS-GB. Teve participação em caso equipe do CIE que atuava na Casa da Morte, centro na tentativa de ganhar sua confiança e obter novas
de tortura no DOPS-GB e no Hospital Central do 254) Jorge Nunes Amorim clandestino localizado em Petrópolis (RJ). Atuou na informações. Essas conclusões foram produzidas
Exército (HCE). Vítima relacionada: Raul Amaro repressão da Guerrilha do Araguaia e participou da pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do
Nin (1971). (1932-) Médico-legista do Instituto Médico-Legal do “Operação Limpeza” realizada em janeiro 1975, que Rio de Janeiro (Cremerj) e pelo Conselho Federal de
estado do Rio de Janeiro (IML/RJ). Teve participa- se destinou à ocultação dos corpos dos guerrilheiros Medicina (CFM), em 1993 e 2000, respectivamen-
238) João Câmara Gomes Carneiro ção na emissão de laudo necroscópico fraudulento. e camponeses executados e ao encobrimento dos ves- te, em decisões que resultaram na cassação de seu
Vítima relacionada: Antônio Carlos Nogueira Ca- tígios da atuação das forças repressivas. Convocado registro profissional. Vítima relacionada: Tiago An-
(1938-) Capitão do Exército. Serviu no 12o Regi- bral (1972) e Lincoln Bicalho Roque (1973). pela CNV em setembro de 2014, alegou que só pres- drade de Almeida (1969).
mento de Infantaria, em Belo Horizonte, em 1968, taria depoimento mediante autorização do comando
e no Destacamento de Operações de Informações 255) José Alves Assunção Menezes do Exército, tendo a CNV solicitado ao Ministério da 276) José Nei Fernandes Antunes
– Centro de Operações de Defesa Interna (DOI- Defesa a adoção de providências com vistas à apu-
-CODI) do I Exército, no Rio de Janeiro, em 1970 e (1914-1977) Médico-legista do Instituto Médico-Le- ração de infração disciplinar. Recebeu a Medalha do (1926-) Coronel do Exército. Comandante do 1o Ba-
1971. Teve participação em casos de tortura. Víti- gal do estado do Rio de Janeiro (IML/ RJ). Teve par- Pacificador com Palma em 1971. Vítimas relaciona- talhão de Polícia do Exército (BPE), no Rio de Ja-
mas relacionadas: Cecília Maria Bouças Coimbra, ticipação em casos de emissão de laudos necroscó- das: Carlos Alberto Soares de Freitas e Antônio Jo- neiro, de 1969 a 1971, atuou junto ao Destacamento
Arlete de Freitas, Dulce Chaves Pandolfi, Marlene picos fraudulentos. Vítimas relacionadas: Fernando aquim de Souza Machado (1971); David Capistrano de Operações de Informações – Centro de Operações
Paiva e Marcos Franco (1970). da Silva Lembo (1968); Eiraldo Palha Freire (1970); da Costa e José Roman (1974). de Defesa Interna (DOI-CODI) do I Exército. Teve
Gerson Theodoro de Oliveira e Maurício Guilherme participação em caso de tortura e execução. Vítima
da Silveira (1971). relacionada: Roberto Cietto (1969).

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(Acréscimo CEV-Rio) José Paulo Boneschi 281) Júlio Saboya de Araújo Jorge autor direto dos disparos que resultaram em sua 296) Luiz Mário Valle Correia Lima
morte. Segundo documento militar, o então major
Detetive do Departamento de Ordem Política e So- (1944-) Capitão de corveta. Serviu na unidade da fora ferido no rosto em outro evento, que resulta- (1945-) Coronel do Exército. Serviu no 1o Batalhão
cial do Estado da Guanabara (DOPS/GB). Partici- Marinha da ilha das Flores (RJ), nos anos de 1969 ria na morte e desaparecimento de Lúcia Maria de Polícia do Exército (BPE), no Rio de Janeiro, em
pou da invasão à Federação Nacional dos Estivado- e 1970. Teve participação em casos de tortura, cuja de Souza. Foi ainda denunciado pelo Ministério 1969 e 1970. Foi denunciado pelo Ministério Públi-
res em 31 de março de 1964. É acusado de torturar execução acompanhava. Recebeu a Medalha do Pa- Público Federal pela privação da liberdade, me- co Federal como um dos responsáveis pelo seques-
presos nas instalações daquele departamento e do cificador em 2001. Vítimas relacionadas: Martha Al- diante sequestro, de Divino Ferreira de Souza. tro, tortura e execução do militante Mário Alves de
Destacamento de Operações de Informações - Cen- varez e Ziléa Reznik (1969 e 1970). Recebeu a Medalha do Pacificador com Palma em Souza Vieira (1970). Teve participação em casos de
tro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do 1972. Vítimas relacionadas: Jeová Assis Gomes detenção ilegal, tortura e desaparecimento forçado.
Rio de Janeiro. Vítimas relacionadas: Dilson da Cos- 283) Jurandyr Ochsendorf e Souza (1972); André Grabois, Antônio Alfredo de Lima, Recebeu a Medalha do Pacificador com Palma em
ta Aragão (1964), Marcio Moreira Alves (1964), Car- Divino Ferreira de Souza, João Gualberto Cala- 1971. Foi ouvido pela CNV em 2 de outubro de 2013,
los Marighella (1964), Álvaro Caldas (1970). (1939-) Capitão da reserva do Exército. Serviu no trone e Lúcia Maria de Souza (1973). permanecendo calado durante praticamente todo
Destacamento de Operações de Informações – Cen- o depoimento. Vítima relacionada: Mário Alves de
278) José Pereira de Vasconcellos tro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do 290) Lúcio Valle Barroso Souza Vieira (1970).
I Exército, atuando também na Casa da Morte, em
(1934-) Inspetor de polícia. Serviu no Departamento Petrópolis (RJ). Foi agente do Centro de Informa- (1933-) Coronel-aviador. Fez curso na Escola das 299) Luiz Timótheo de Lima
de Ordem Política e Social do então estado da Gua- ções do Exército (CIE). Denunciado criminalmente Américas, no Panamá, de janeiro a abril de 1970.
nabara (DOPS/GB), tendo exercido a chefia da Seção pelo Ministério Público Federal em maio de 2014, Serviu no Destacamento de Operações de Infor- (1936-) Agente da Polícia Civil. Serviu no Departa-
de Atividades Antidemocráticas, em 1963. Partici- acusado do homicídio e da ocultação do cadáver do mações – Centro de Operações de Defesa Interna mento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro
pação em torturas e execução. Vítima relacionada: ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva, em 1971. Pres- (DOI-CODI) do I Exército, no Rio de Janeiro. Atuou (DOPS/RJ). Teve participação em casos de detenção
Chael Charles Schreier (1969). tou depoimento à CNV em julho de 2014, perma- como chefe de operações da 3a Zona Aérea, sob o co- ilegal, tortura, execução e desaparecimento forçado.
necendo em silêncio durante praticamente todo o mando do brigadeiro João Paulo Moreira Burnier. Foi denunciado pelo Ministério Público Federal pelo
(Acréscimo CEV-Rio) José Ribamar Zamith depoimento. Recebeu a Medalha do Pacificador com Foi denunciado por Alex Polari e outros ex-presos sequestro e tortura de Mário Alves de Souza Vieira.
Palma em 1972. Vítima relacionada: Rubens Beyro- políticos como tendo participado da tortura que le- Recebeu a Medalha do Pacificador com Palma em
Capitão Comandante da 1ª Companhia de Polícia dt Paiva (1971). vou Stuart Angel à morte. Em depoimento à CNV, 1971. Vítimas relacionadas: Mário Alves de Souza
do Exército. Participou de sessões de tortura nas em junho de 2014, reconheceu ter sido o autor do Vieira, Cecília Maria Bouças Coimbra, Marlene Pai-
instalações do Pelotão de Investigações Criminais 287) Lício Augusto Ribeiro Maciel disparo de arma de fogo que levou à morte de Ei- va e Marcos Franco (1970).
(PIC), posteriormente Destacamento de Operações raldo Palha Freire, em julho de 1970. Revelou tam-
de Informações - Centro de Operações de Defesa In- (1930-) Tenente-coronel do Exército. Vinculado ao bém detalhes da execução de Luiz Antônio Santa (Acréscimo CEV-Rio) Magno Cantarino Motta
terna (DOI-CODI) do Rio de Janeiro. É também sus- Centro de Informações do Exército (CIE), sob o co- Bárbara, no interior da Bahia, durante a Operação (Agente Guarani)
peito de ter participado do sequestro do bispo dom dinome de “doutor Asdrúbal”, atuou na região do Pajussara. Vítimas relacionadas: Eiraldo Palha
Adriano Hipólito, em 1976, e do atentado à bomba Araguaia de abril de 1972 ao final de 1973, quan- Freire, Jessie Jane Vieira de Sousa, Colombo Viei- Foi da turma de paraquedistas do Exército de 1968.
no Riocentro, em 1981. Vítimas relacionadas: Edu- do esteve diretamente envolvido na execução e ra de Souza e Fernando Palha Freire (1970); Stuart Com a patente de Sargento, foi para a Seção de Ope-
ardo Quesada Rodrígues (1966), José Felix da Silva no desaparecimento dos guerrilheiros André Gra- Edgar Angel Jones, José Campos Barreto, Otoniel rações de DOI, onde serviu com o sargento Guilher-
(1966), Virgílio José Cavalcanti (1966), Jorge Alves bois, Antônio Alfredo de Lima, Divino Ferreira de Campos Barreto, Carlos Lamarca e Luiz Antônio me do Rosário. Esteve envolvido nos atentados do
de Almeida Venâncio (1970), José Ruivo de Pereira e Souza, João Gualberto Calatrone e Lúcia Maria Santa Bárbara (1971). Riocentro e da OAB. Neste último, foi o responsável
Souza (1970), Álvaro Caldas (1970). de Souza. Sobre André Grabois, Lício afirmou, em pela entrega da carta bomba que matou Lyda Mon-
depoimento na Câmara dos Deputados, ter sido o teiro, então secretária da presidência da instituição.

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300) Marco Antonio Povolleri comandados por Cerqueira desfecharam o ataque de detenção ilegal, tortura, desaparecimento for- vil do estado do Rio de Janeiro concluí- do pela
sobre a Comissão Militar da Guerrilha, em 25 de çado e ocultação de cadáver. A importância de sua ocorrência do crime de latrocínio (roubo seguido
(1946-) Cabo do Exército. Serviu no Destacamento dezembro de 1973, no episódio que ficou conhecido atuação para as ações de repressão política con- de morte). Recebeu a Medalha do Pacificador com
de Operações de Informações – Centro de Operações como “Chafurdo de Natal”, que resultou na morte duzidas pelo regime ditatorial encontra-se eviden- Palma em 1974. Vítimas relacionadas: Isabel Fá-
de Defesa Interna (DOI-CODI) do I Exército. Teve de Gilberto Olímpio Maria, Guilherme Gomes Lund, ciada em registros militares. Em abril de 1968, foi vero (1970); Rubens Beyrodt Paiva (1971); Victor
participação em casos de tortura, execução e ocul- Líbero Giancarlo Castiglia, Maurício Grabois, Pau- designado adjunto do CIE, recebendo elogio de seu Carlos Ramos, Daniel José de Carvalho, Enrique
tação de cadáver. Recebeu a Medalha do Pacificador lo Mendes Rodrigues e Paulo Roberto Pereira Mar- superior no órgão, o então coronel Milton Tavares Ernesto Ruggia, Joel José de Carvalho, José La-
com Palma em 1969. Vítima relacionada: Eremias ques. Assumiu o comando da Polícia Militar flumi- de Souza: “Por motivo de matrícula na EsAO [Es- vecchia e Onofre Pinto (1974).
Delizoicov (1969). nense em 1981 e esteve envolvido com a preparação cola de Aperfeiçoamento de Oficiais], deixa hoje o
do atentado no Riocentro. Recebeu a Medalha do gabinete o capitão Malhães, onde prestou serviços 335) Pérsio José Ribeiro Carneiro
303) Mario Borges Pacificador com Palma em 1971. Vítimas relaciona- por mais de três anos, tendo se revelado um de
das: Carlos Lamarca, José Campos Barreto, Otoniel seus auxiliares mais valiosos. Em todas as mis- (1939-) Médico-legista do Instituto Médico-Legal do
Policial civil. Foi chefe do serviço de buscas ostensi- Campos Barreto, Luiz Antônio Santa Bárbara e Iara sões a ele confiadas, comprovou possuir espírito de estado de São Paulo (IML/SP). Teve participação em
vas do Departamento de Ordem Política e Social do Iavelberg (1971); Gilberto Olímpio Maria, Guilher- decisão, iniciativa, honestidade de propósitos, efi- casos de emissão de laudo necroscópico fraudulento,
então estado da Guanabara (DOPS/GB). Teve partici- me Gomes Lund, Líbero Giancarlo Castiglia, Maurí- ciência e, principalmente, coragem, que por várias tendo tido cassado seu registro profissional. Vítimas
pação em casos de detenção ilegal e tortura. Vítimas cio Grabois, Paulo Mendes Rodrigues e Paulo Rober- vezes implicou no risco de sua própria vida. Em relacionadas: Hamilton Fernando Cunha (1969), Jo-
relacionadas: Cecília Maria Bouças Coimbra e José to Pereira Marques (1973). várias situações críticas, revelou notável sangue- aquim Alencar de Seixas (1971) e Neide Alves dos
Novaes (1970); Raul Amaro Nin Ferreira (1971). -frio, arrojo, discernimento e bom senso. Graças Santos (1976).
320) Olympio Pereira da Silva ao seu desempenho, acumulou o capitão Malhães
313) Nelson Costa uma valiosa experiência que, inegavelmente, o 337) Raymundo Ronaldo Campos
(1922-1985) Médico-legista do Instituto Médico-Le- torna um dos elementos mais capazes para o exer-
Policial civil. Serviu no Departamento de Ordem Po- gal do estado do Rio de Janeiro (IML/ RJ). Teve par- cício de missões de informações. Grande parte dos (1935-) Coronel do Exército. Foi denunciado crimi-
lítica e Social do então estado da Guanabara (DOPS/ ticipação em caso de emissão de laudo necroscópico êxitos obtidos no combate à corrupção, subversão nalmente pelo Ministério Público Federal em maio
GB). Teve participação em casos de execução. Víti- fraudulento. Vítima relacionada: Antônio Carlos e terrorismo, tiveram como causa preponderante de 2014, por participação no homicídio e na oculta-
mas relacionadas: Maria Regina Lobo Leite de Fi- Nogueira Cabral (1972). a atuação eficiente e corajosa do capitão Malhães. ção do cadáver do ex-deputado Rubens Beyrodt Pai-
gueiredo, Antonio Marcos Pinto de Oliveira e Lígia Temos a certeza de que qualquer organização onde va, ocorridos em janeiro de 1971. Vítima relaciona-
Maria Salgado Nóbrega (1972). 329) Paulo Malhães venha a servir, estará sempre conosco, lutando da: Rubens Beyrodt Paiva (1971).
pelos ideais por ele defendidos com tanto amor,
(125) Nilton de Albuquerque Cerqueira (1938-2014) Coronel do Exército. Serviu no Cen- abnegação e patriotismo”. Em 1974, após receber 339) Renato D’Andréa
tro de Informações do Exército (CIE). Com inten- elogios do chefe do CIE no Rio de Janeiro, tenen-
(indicado também na Seção B) sa participação em atividades de repressão, atuou te-coronel Cyro Guedes Etchegoyen, e do coronel (1931-) Delegado de polícia. Serviu no Departamen-
nos estados do Rio de Janeiro – inclusive na Casa José Luiz Coelho Netto, pela coragem, desembara- to de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/
(1930-) Chefe da 2a Seção do Estado-Maior da 6a da Morte, em Petrópolis – do Rio Grande do Sul, ço, iniciativa demonstrados na “luta contra o ini- SP). Teve participação em casos de detenção ilegal.
Região Militar, em 1971, quando chefiou a Opera- do Paraná e do Mato Grosso, na região Nordeste e migo interno”, recebeu a Medalha do Pacificador. Recebeu a Medalha do Pacificador em 1973. Vítimas
ção Pajussara, sendo responsável pela persegui- na região do Araguaia. De acordo com depoimento Convocado pela CNV, prestou depoimento por oca- relacionadas: Iuri Xavier Pereira, Marcos Nonato da
ção e morte de Carlos Lamarca, Zequinha Barreto, que prestou à CNV, esteve, também, em operações sião de audiência pública sobre a Casa da Morte, Fonseca, Alex de Paula Xavier Pereira e Ana Maria
Otoniel Barreto e Luiz Santa Bárbara, em Brotas que contaram com a cooperação de s 920 agentes de Petrópolis (RJ), em 25 de março de 2014. Foi Nacinovic Corrêa (1972).
de Macaúbas (BA). Na região do Araguaia, agentes argentinos e chilenos. Teve participação em casos assassinado em abril de 2014, tendo a Polícia Ci-

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341) Ricardo Agnese Fayad de Polícia do Exército (BPE), no Rio de Janeiro, Etienne Romeu como o torturador que na Casa da 354) Rubens Pedro Macuco Janini
em 1969 e 1970. Teve participação em caso de de- Morte atuou sob o codinome de “Laecato”. O coronel
(1940-) Médico do Exército e general de Brigada. tenção ilegal, tortura e desaparecimento forçado. Paulo Malhães confirmou a participação de Rubens (1931-2009) Médico-legista do Instituto Médico-Le-
Esteve lotado no 1o batalhão de Polícia do Exérci- Foi convocado pela CNV para prestar depoimento Gomes Carneiro no massacre do Parque Nacional gal do estado do Rio de Janeiro (IML/ RJ). Teve par-
to (BPE), no Rio de Janeiro, de 1970 a 1975. Teve em audiência sobre o caso Mário Alves, realizada do Iguaçu. Teve participação em casos de detenção ticipação em casos de emissão de laudo necroscópico
participação em casos de tortura. Convocado três em 14 de agosto de 2013, mas não compareceu, ilegal, tortura, execução, desaparecimento força- fraudulento. Vítimas relacionadas: Manoel Rodri-
vezes pela CNV, prestou depoimento em setembro alegando já haver prestado depoimento ao Minis- do e ocultação de cadá- ver. Recebeu a Medalha do gues Ferreira (1968); Severino Viana Colou (1969);
de 2014, tendo deixado de responder às perguntas tério Público Federal. Vítima relacionada: Mário Pacificador com Palma em 1970. Vítimas relacio- Marilena Villas Boas Pinto (1971); Raul Amaro Nin
formuladas. Vítimas relacionadas: Francisca Abi- Alves de Souza Vieira. nadas: Paulo de Tarso Celestino da Silva (1971); Ferreira (1971); Luiz Ghilardini (1973).
gail B. Paranhos, Romulo Noronha de Albuquerque, Onofre Pinto, Daniel José de Carvalho, Joel José
Dulce Chaves Pandolfi, J. A. de Granville Ponce e 347) Roberto Blanco dos Santos de Carvalho, José Lavecchia, Victor Carlos Ramos 357) Salim Raphael Balassiano
Lúcia Murat (1970); Inês Etienne Romeu (1971); e Enrique Ernesto Ruggia (1974); ocultação dos ca-
Luiz Roberto Tenório (1972). (1940-) Médico-legista do Instituto Médico-Legal do dáveres de Maria Augusta Thomaz e Márcio Beck (1933-) Médico-legista do Instituto Médico-Legal
estado do Rio de Janeiro (IML/ RJ). Teve participa- Machado (1980). do estado do Rio de Janeiro (IML/RJ). Teve par-
342) Riscala Corbage ção em casos de emissão de laudo necroscópico frau- ticipação em casos de emissão de laudo necros-
dulento. Vítimas relacionadas: Fernando Augusto 353) Rubens Paim Sampaio cópico fraudulento. Vítimas relacionadas: Aurora
(1941-) Tenente-coronel da Polícia Militar do estado da Fonseca, Getulio de Oliveira Cabral, José Bar- Maria Nascimento Furtado (1972) e Luiz Gui-
do Rio de Janeiro. Com atuação em atividades de tolomeu Rodrigues de Souza e José Silton Pinheiro (1934-) Coronel do Exército. Oficial do gabinete do lhardini (1973).
repressão política desde o final da década de 1960, (1972); Lourenço Camelo de Mesquita (1977); Meri- ministro do Exército a partir de agosto de 1970, exer-
esteve vinculado ao Destacamento de Operações de val Araújo (1973); Valdir Salles Saboia (1972), José ceu a função de adjunto do Centro de Informações do 362) Sebastião Curió Rodrigues de Moura
Informações – Centro de Operações de Defesa Inter- Pinheiro Jobim (1979). Exército (CIE), até 1976. Identificado por Inês Etien-
na (DOI-CODI) do I Exército nos primeiros anos da ne Romeu como o torturador que na Casa da Morte, (1938-) Coronel do Exército. Conhecido também
década de 1970. Em depoimento prestado em 2014 351) Ruben do Nascimento Paiva em Petrópolis (RJ), atuou sob o codinome de “doutor como “Curió” ou “doutor Luchinni”, esteve vincu-
ao Ministério Público Federal, admitiu a prática ge- Teixeira”. Teve participa- ção em casos de tortura, lado ao Centro de Informações do Exército (CIE).
neralizada da tortura no DOI -CODI, envolvendo (1913-1995) General do Exército. Diretor do Hospi- execução, desaparecimento forçado e ocultação de ca- Serviu na região do Araguaia, onde esteve no co-
centenas de presos políticos. Recebeu a Medalha do tal Central do Exército (HCE) em 1971, concedeu dáver. Foi denunciado criminalmente pelo Ministério mando de operações em que guerrilheiros do Ara-
Pacificador em 1971. Vítimas relacionadas: Cecília autorização para o ingresso de agentes do Departa- Público Federal em maio de 2014, acusado de par- guaia foram capturados, conduzidos a centros
Maria Bouças Coimbra, José Novaes, Germana Fi- mento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro ticipação no homicídio e na ocultação do cadáver do clandestinos de tortura, executados e desaparece-
gueiredo, Carmela Pezzuti, Glória Maria Percinotto, (DOPS/RJ) no hospital, para interrogatório de Raul ex-deputado Rubens Beyrodt Paiva. Convocado pela ram. Participou da Operação Sucuri, em 1973, e
Maria do Carmo Menezes, Alberto José Barros da Amaro Nin Ferreira, que lá foi torturado. Vítima re- CNV em duas oportunidades, não compareceu às oi- comandou o posto de Marabá (PA) durante a Ope-
Graça, Luiz Sérgio Dias, Jorge Leal Gonçalves Pe- lacionada: Raul Amaro Nin Ferreira (1971). tivas; diante da inconsistência da justificativa apre- ração Marajoara, de outubro de 1973 até o final de
reira, Eduardo Collen Leite, Arlete de Freitas, Abel sentada, a CNV solicitou à Polícia Federal abertura 1974. Conforme sua folha de alterações, em 1974
Silva, Marlene Paiva, Marcos Franco e Dulce Cha- 352) Rubens Gomes Carneiro de inquérito policial. Recebeu a Medalha do Pacifi- foi elogiado pelo chefe da 2a seção e coordenação
ves Pandolfi (1970); Lúcia Murat (1971). cador em 1963. Vítimas relacionadas: Rubens Beyro- executiva do Centro de Operações de Defesa Inter-
(1937-) Segundo-sargento do Exército. Atuou como dt Paiva, Paulo de Tarso Celestino da Silva, Walter na/Comando Militar do Planalto (CODI/CMP), que
346) Roberto Augusto de Mattos Duque Estrada agente de operações do Centro de Informações do Ribeiro Novaes (1971); Onofre Pinto, Daniel José de registrou que Curió, “na árdua tarefa de combate à
Exército (CIE), lotado no gabinete do ministro do Carvalho, Joel José de Carvalho, José Lavecchia, Vic- subversão, demonstrou não somente coragem e ar-
(1936-) Capitão do Exército. Serviu no 1º Batalhão Exército entre 1970 e 1976. Identificado por Inês tor Carlos Ramos e Enrique Ernesto Ruggia (1974). rojo, como habilidade e imaginação na solução dos

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problemas com que se deparou”. Foi denunciado Nelson Lima Piauhy Dourado, Luiza Augusta Gar- 375) Wilson Luiz Chaves Machado
pelo Ministério Público Federal no ano de 2012 por lippe, Dinaelza Santana Coqueiro, Oswaldo Orlan-
ter promovido, em 1974, a privação permanente da do da Costa e Suely Yumiko Kanayama (1974). (1947-) Coronel do Exército. Denunciado criminal-
liberdade, mediante sequestro, de cinco pessoas: mente pelo Ministério Público Federal em maio de
Antônio de Pádua Costa, Daniel Ribeiro Callado, 366) Sérgio de Oliveira 2014, por sua participação no atentado do Riocentro
Hélio Luiz Navarro de Magalhães, Maria Célia (1981). Convocado em três oportunidades pela CNV,
Corrêa e Telma Regina Cordeiro Corrêa. Em depoi- Médico-legista do Instituto Médico-Legal do estado prestou depoimento em julho de 2014, tendo optado
mento registrado no livro Mata! O major Curió e de São Paulo (IML/SP). Teve participação em caso por não responder às questões que foram formula-
as guerrilhas no Araguaia (Nossa, Leonencio. São de emissão de laudo necroscópico fraudulento. Caso das. Recebeu a Medalha do Pacificador em 2001.
Paulo: Companhia das Letras, 2012), admite que relacionado: Joelson Crispim (1970).
participou do episódio da morte de Lúcia Maria de 376) Ydyno Sardenberg Filho
Souza, estando na companhia do tenente-coronel 371) Ubirajara Ribeiro de Souza
Carlos Sergio Torres, do tenente-coronel Pedro (1931-) Coronel do Exército. Atuou na repressão à
Luiz da Silva Osório, do tenente-coronel Léo Frede- (1937-) Subtenente do Exército, oficial do gabinete Guerrilha do Araguaia. Teve participação em caso
rico Cinelli, do segundo-sargento José Conegundes do ministro do Exército, de 1970 a 1977. Segun- de execução e desaparecimento forçado. Vítima re-
do Nascimento, do subtenente João Pedro do Rego do Inês Etienne Romeu, Ubirajara atuou na Casa lacionada: Luiz René Silveira e Silva (1974).
e, ainda, do major Lício Augusto Ribeiro Maciel, fe- da Morte, em Petrópolis (RJ). Teve participação
rido no episódio. Ainda conforme registro na obra em casos de tortura, execução e desaparecimento
referida, reconhece que participou da prisão de Di- forçado. Convocado pela CNV em duas oportunida-
nalva Oliveira Teixeira e Luiza Augusta Garlippe, des, prestou depoimento em julho de 2014, tendo
em 1974, e o sargento João Santa Cruz Sacramento deixado de responder às perguntas formuladas.
relata ter visto Curió embarcar com Dinaelza San- Recebeu a Medalha do Pacificador com Palma em
tana Coqueiro em um helicóptero e que Curió teria 1972. Vítimas relacionadas: Carlos Alberto Soares
participado de sua execução, bem como interrogado de Freitas, Inês Etienne Romeu, Antônio Joaquim
Suely Yumiko Kanayama na base da Bacaba (PA). de Souza Machado e Paulo de Tarso Celestino da
Raimundo Nonato dos Santos, em depoimento ao Silva (1971).
Ministério Público Federal, em 2001, declarou que
Nelson Lima Piauhy foi morto em uma operação co- 372) Valter da Costa Jacarandá
mandada pelo então capitão Curió. Após ser convo-
cado em três oportunidades pela CNV, apresentou (1939-) Coronel aposentado do Corpo de Bombeiros.
atestado médico para justificar a impossibilidade Atuou no 1o Batalhão de Polícia do Exército (BPE),
de comparecimento, não tendo sido acolhida oferta no Rio de Janeiro, em 1970. Teve participação em
da Comissão para coleta de depoimento domiciliar casos de prisão ilegal, tortura e desaparecimento
ou hospitalar. Recebeu a Medalha do Pacificador forçado. Foi ouvido pela CNV em agosto de 2013 e
com Palma em 1973. Vítimas relacionadas: Antônio reconheceu a prática de tortura, sem mencionar ca-
de Pádua Costa, Daniel Ribeiro Callado, Hélio Luiz sos específicos. Vítima relacionada: Mário Alves de
Navarro de Magalhães, Maria Célia Corrêa, Telma Souza Vieira (1970).
Regina Cordeiro Corrêa, Dinalva Oliveira Teixeira,
Foto: Bruno Marins

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PARTE VI
O QUE RESTA DA
DITADURA

Foto: Bruno Marins

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Nenhuma sociedade que tenha experimentado pe- das contra os mais pobres. Não por acaso, as prisões temunho do RJ3 e com a CEV-Rio, o Grupo realizou pessoais daquele que o viveu, como da forma atra-
ríodos de extrema violência, como foi a Ditadura arbitrárias, torturas, execuções sumárias e desapa- dois encontros que abordaram a temática da trans- vés da qual a sociedade e o Estado o encaram. Se
Militar de 1964, fica imune aos seus efeitos devas- recimentos forçados crescem exponencialmente no geracionalidade, isto é, da transmissão do trauma o dano é reconhecido por uma instância oficial, sua
tadores1. No caso brasileiro, tais efeitos foram ainda Brasil. Conhecer os efeitos da ditadura que ainda entre diferentes gerações: uma audiência pública elaboração pelo indivíduo torna-se mais fácil. Mas
mais prolongados frente às lacunas e limites da Jus- perduram é etapa necessária para conseguirmos, intitulada Efeitos Transgeracionais da Violência de se o Estado e a sociedade silenciam sobre a violên-
tiça de Transição. Fomos o último país do Cone-Sul enfim, romper com nosso passado ditatorial recente. Estado e uma conversa pública sobre Políticas Re- cia passada, acabam por legitimá-la e desmenti-la,
a instituir uma Comissão da Verdade, não investi- paratórias para Filhos e Netos Afetados pela Violên- tornando-a um corpo estranho que se naturaliza e se
gamos os crimes do passado e mantivemos, durante Capítulo 22 - O LEGADO DO TRAUMA NAS cia de Estado. Nas duas ocasiões foram ouvidos, ao transmite para as gerações futuras. Nesse sentido,
décadas, uma política oficial de esquecimento. As GERAÇÕES QUE SE SEGUIRAM todo, doze testemunhos de filhos, netos e sobrinhos os efeitos da violência institucionalizada sobre filhos
continuidades de nosso passado ditatorial revelam- de ex-militantes políticos4. As falas, apresentadas e netos de militantes presos, torturados, assassina-
-se, hoje, em diferentes esferas: nas dificuldades en- Um dos aspectos menos conhecidos da ditadura ao longo deste capítulo, trouxeram à tona uma sé- dos e desaparecidos adquire contornos peculiares,
frentadas por ex-presos e perseguidos políticos para militar diz respeito à forma como crianças e jovens rie de memórias do exílio, das constantes mudanças posto que o silenciamento, a negação e a impunida-
superar as sequelas, físicas e psicológicas, causadas foram afetados pelo terror de Estado. Muitos deles de residência, do silêncio, da distância dos pais, da de que se seguiram a essa violações converteram-
pela violência de Estado; no silenciamento imposto a foram perseguidos e monitorados, cresceram dentro solidão e do desamparo, entre uma série de outros -nos nos únicos depositários dos danos provocados
milhares de pessoas atingidas pela repressão e que de prisões, presenciaram a detenção dos pais e assis- sentimentos e traumas vivenciados por crianças e aos seus entes queridos6.
ainda temem contar suas histórias; na transmissão tiram a sessões de tortura2. Quando não diretamen- jovens à época.
dos traumas entre gerações para os filhos e netos de te atingidos pela violência de Estado, os filhos, netos Nos testemunhos prestados à CEV-Rio, muitos de-
militantes presos, mortos ou desaparecidos; e na re- ou irmãos mais novos de militantes políticos foram Vale esclarecer que o termo trauma indica a ocorrên- les relataram que, diante da omissão do Estado e
petição dos padrões de violação de direitos humanos indiretamente afetados pela atmosfera de insegu- cia de um evento violento, inesperado e arrebatador, enquanto depositários dos danos do passado, se sen-
nos tempos atuais. rança, medo, vigilância e terror que rondava suas incapaz de ser imediatamente compreendido no mo- tem no dever de guardar e contar a história de suas
vidas. As histórias dessas crianças ficaram, contudo, mento de sua experiência, mas que, posteriormente, famílias. Nas palavras de Lucinha Alves, filha do
A herança autoritária da ditadura perpetua-se não encobertas durante muitos anos e constituem, hoje, retorna na forma de lembrança, pesadelo ou outros desaparecido político Mário Alves:
somente no corpo individualizado das milhares de uma das formas de expressão das continuidades da fenômenos. Pode ser caracterizado como uma “me-
pessoas perseguidas, presas e torturadas. Ela al- ditadura no presente. mória de um passado que não passa”5. Quando não “ Sendo filha única, depois que meu pai desapareceu ficou
cança as gerações mais jovens e atinge a sociedade elaboradas, as experiências traumáticas tendem a aquela coisa né. A luta da minha mãe muito doente. Ela ti-
brasileira como um todo, impondo, por um lado, a Depois de décadas de silenciamento forçado, novos se atualizar na vida dos afetados e a se transferirem nha enfisema pulmonar. Ela faleceu de enfisema pulmonar.
despolitização do espaço público com o consequen- canais de construção de narrativas sobre o passado inconscientemente a seus descendentes. Pra mim, ela faleceu pelo longo pesar da perda do compa-
te silenciamento das memórias das lutas sociais e, começam a emergir em nosso país. No Rio de Janei- nheiro de luta dela. (…) Eu tenho que saber o que aconteceu
por outro lado, a manutenção de parte da estrutura ro, em dezembro de 2014, foi lançado o Grupo Filhos Os destinos do trauma dependem tanto dos recursos com o meu pai. Minha mãe morreu, sobrei eu pra contar
repressiva do Estado ditatorial (legislativa, policial e Netos por Memória, Verdade e Justiça com o obje- essa história7.”
3. O projeto Clínicas do Testemunho do RJ, da Comissão de Anistia do Mi-
e judiciária). As sequelas da ditadura ficam ainda tivo de debater os efeitos, nas gerações seguintes, da nistério de Justiça, é desenvolvido pela Equipe Clínico-Política do Instituto
Terapêutico do Rio de Janeiro.
mais evidentes com a constatação de que grande violência de Estado contra os opositores do regime 4. Os testemunhos foram dados por: Marcia Curi Vaz Galvão (filha de Arakém Felipe Nin, sobrinho de Raul Amaro Nin Ferreira,
parte da população desconhece o ocorrido no passado militar. Em parceria com o Projeto Clínicas do Tes- Vaz de Galvão e de Gladys Celina Curi Bermudes); Alan Brigagão Santanna
(neto de José Brigagão); Fábio da Rocha Dias Campos (filho de Lenita da
integrante da rede de apoio do MR-8, assassinado
e com a crescente banalização das práticas violentas Rocha Dias Campos e Sergio Emanuel Dias Campos); Dario Gularte (filho em 1971, também relatou o sentimento de dever,
de Carlos Gularte); Leo Alves Vieira (neto de Mário Alves); Anita Verçosa
das forças policiais que continuam a ser emprega- 2. Esse tema foi anteriormente abordado pela CNV no capítulo 10 de seu Re- Lins (filha de Amaro Lins); Heliana Castro Alves (filha de Margarida Portera 6. KOLKER, Tania. Tortura e Impunidade - Danos psicológicos e efeitos de
latório Final (BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Solero e Francisco Xavier Castro Alves); Lúcia Alves (filha de Mário Alves); subjetivação. In: BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume I. p.426) e pela Comissão Pedro Luis Moreira Lima (filho de Rui Moreira Lima); Flávio Serafini (filho República. Tortura. Coordenação Geral de Combate à Tortura (Org.). 1ª Ed.
1. VITAL BRASIL, Vera. Dano e reparação no contexto da Comissão da Ver- da Verdade do Estado de São Paulo (SÃO PAULO. Assembleia Legislativa. de Carlos Alberto Serafini); Felipe Nin (sobrinho de Raul Amaro Nin Ferrei- p. 170-195.
dade: a questão do testemunho. Trabalho apresentado na mesa “Os desafios Comissão da Verdade do Estado de São Paulo - Rubens Paiva. Infância Rou- ra); Alba Brigagão (filha de José Brigagão). 7. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Lucia Alves para a CEV-Rio. Conversa Pú-
da Comissão da Verdade do Brasil” no Seminário Internacional Comissão da bada, Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil. Assembleia Legisla- 5. SELIGMANN-SILVA. Narrar o trauma - A questão dos testemunhos de ca- blica “Políticas Reparatórias para Filhos e Netos de Afetados pela violência
Verdade e Justiça de Transição: perspectivas brasileiras. Junho, 2011. tiva, Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. São Paulo: ALESP, 2014). tástrofes históricas. In: Psi.Cli., Rio de Janeiro, 2008. Vol.20, N.1. p. 65-82. de Estado”. 18/06/2015.

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como familiar, de ir mais a fundo nas investigações

mudo silêncio, ao mais angustiante dos medos. O medo de permitiram que minha mãe trocasse minha fralda, enquanto
do caso de seu tio, o que resultou na publicação do reencontrar aquela velha infância, onde o faz de conta era eu brincava com uma espingarda. Soube que depois desse dia saí do trabalho, quando cinco homens me seguraram na
Relatório Raul Amaro Nin Ferreira, em 2014. de verdade, onde o esconde-esconde nunca terminava e a minha mãe ficou por uma semana desaparecida. Soube que porta de casa. “Onde está seu pai?”. “Tá trabalhando”. Me


cabra-cega vendada, desorientada sem rumo era eu, sempre. naquela madrugada, meu tio, Juan Carlos Curi, então com agarram e me levaram pra dentro de um carro. (…) Eu tinha
Eu nasci em 86, num momento onde eles estavam recons- Como se transita no desconhecido? Como rememoramos um quatorze anos de idade, estava dormindo na nossa casa e foi conhecimento do que se passava na época, mas não podia ima-
truindo a vida deles, a vida legal. Cresci ouvindo histórias, passado necessariamente perdido no mais profundo de to- com ele que fiquei após minha mãe ter sido levada. Soube que ginar que aquilo ia acontecer. Meu pai, um herói de guerra.
os apuros que passaram. Meu pai convivendo com essa me- dos os oceanos? Como se constrói um testemunho se, para após uma semana minha mãe apareceu no quartel 11, ou tal- É muito fácil eu falar do meu pai, contar a história dele, mas
mória e com essa dor do que aconteceu com o irmão dele e construí-lo, é necessário respirar quilos de poeiras perdidas vez no quartel 13, na cidade de Montevideo, onde permaneceu quando eu conto a minha história é barra pesada. Como se eu
a sensação de que a qualquer momento poderia acontecer o em décadas atrás9.” presa por quatro anos.(…) Soube que após a soltura da mi- fosse anulado. “Que que eu faço?”. Eram cinco homens dentro
mesmo com ele. (…) O que que isso tem a ver comigo e como nha mãe, ela teve que sair rapidamente do país, porque estava do carro. “Ele está na Presidente Vargas, 583, 12º andar”. Aqui-
eu fui trazendo isso pra minha trajetória? Eu sou militante de Da mesma forma, Alba Brigagão, filha de José Bri- ameaçada de morte. Soube que, apesar dos apelos de minha lo pra mim foi uma porrada. Eu falei isso e nem resisti. Mas
direitos humanos, sou arquiteto e trabalho mais voltado para gagão, membro do Partido Comunista Brasileiro, re- tia, minha mãe decidiu que deveria levar a filha consigo para não sabia o que resistir. Não podia imaginar. Meu pai desce,
a questão da moradia. Meu irmão se chama Raul, advogado, é latou os obstáculos enfrentados para falar sobre sua o exílio. Soube que fomos para a Argentina. Nunca entendi quando meu pai me vê dentro do carro “seus filhos da puta,
defensor público agora. Nos vimos com a questão da Comissão própria história: o que fomos fazer lá. Soube que da Argentina fomos imedia- soltem o meu filho”. Eram sargentos prendendo coronel. Isso


da Verdade, com uma certa obrigação de ir mais a fundo nes- tamente para Barcelona, onde vivemos por seis meses. (…) quebra toda a hierarquia. Veio aquela voz do comando e me
sa história do Raul Amaro. Em 2012, saiu uma foto do Raul no Eu, sob o conselho de nossas terapeutas, não consegui des- Soube que depois fomos pra Paris, França, onde moramos não soltaram. “Onde vocês estão levando meu pai?”. “Estamos le-
Jornal O Globo, uma foto que era inédita, ele preso no DOPS. colar a minha vida desses fatos todos (…) pra falar com vocês sei quanto tempo. Depois fomos para Estocolmo, Suécia, onde vando seu pai para o DOI-CODI, pra Polícia do Exército”. Meu
A matéria ainda dizia assim: “foto inédita de Raul encontrado de mim, Alba, como filha. O que eu consegui fazer foi um tra- moramos por um ano (…) Soube que depois voltamos para pai ficou três dias em condições piores possíveis12.”
vivo no DOPS”. A partir disso, a gente soube que teria mais jeto de um caminho percorrido por ele e paralelamente por Paris, onde fui alfabetizada em francês. (…) Chegamos no
informações sobre o caso dele e resolvemos nos debruçar so- mim, enquanto criança e depois adolescente e adulto jovem. Brasil em julho de 1979. (…) A partir dai, morando em Santa Heliana Castro Alves, filha dos ex-militantes Mar-
bre essa história e ir a fundo numa pesquisa, trazendo uma Foram muitos anos de silêncio, de confusão. E, por isso mes- Teresa, começou uma grande confusão e eu me mudei mais garida Portera Solero e Francisco Xavier Castro Al-
contribuição crítica pro processo da comissão da verdade que mo, eu acho que é tão difícil pra todos nós falarmos com uma em Santa Teresa do que eu me mudei pelo mundo, por causa ves contou que seus dois irmãos, ainda muito peque-
estava começando naquela altura8.” certa clareza10.” de uma coisa chamada Operação Condor. Eu sei que eu devo nos, presenciaram a prisão de seus pais no ano de
ter morado em todas as ruas de Santa Teresa. Eu me lembro 1973, descrevendo-lhe, posteriormente, o pavor que
Um elemento comum, abordado em quase todos os Muitas dessas pessoas, jovens e crianças à época, que quando eu fui alfabetizada em português, de novo, numa sentiram na ocasião:
testemunhos, foi a dificuldade de se trabalhar com presenciaram violações de direitos humanos contra

escola municipal chamada Escola Municipal Machado de As-
as memórias do passado. Acostumados a guardarem seus parentes. Algumas foram diretamente afetadas sis, em Santa Teresa, de repente eu nunca mais pude ir pra O dia em que eles foram presos, eu não tinha nascido ain-
segredos e condicionados a esquecerem o que havia pela perseguição do Estado a seus pais, sendo obri- escola e eu fui morar num apartamento que eu sei que fica da. Meus irmãos estavam presentes. O meu irmão do meio ti-
se passado com seus pais, os depoentes relataram a gados a se manterem na clandestinidade, seguirem na Equitativa, um condomínio e eu não podia sair de dentro nha três meses – ele foi desmamado pela ditadura militar – e
dificuldade de construírem as suas próprias narrati- para o exílio ou se mudarem constantemente de re- daquele apartamento. Eu devia ter uns 10, 11 anos11.” o meu irmão mais velho tinha cinco anos. Na casa, também
vas. Nas palavras de Marcia Curi Vaz Galvão, filha sidência. Como relata Marcia Curi: tinha o irmão do meu irmão mais velho que tinha treze anos.
do ex-preso político Arakém Vaz Galvão e da guerri- Pedro Luís Moreira Lima contou ainda ter presen-

Meu irmão de cinco anos lembra desse dia, apesar de ser mui-
lheira tupamaro, Gladys Celina Curi Bermudes: Quando eu tinha um ano e três meses, os milicos entra- ciado a prisão do pai, o tenente-brigadeiro Rui Mo- to novo. Ele me conta que ouviu um barulho muito grande,
reira Lima. Em 1969, Pedro chegou a ser detido por

ram em minha casa, de repente, em plena madrugada, que- muitos gritos e uma correria muito grande. A sensação era
Escrever esse testemunho foi como dar um mergulho braram tudo enquanto procuravam não sei o quê. Soube que agentes estatais para que entregasse o endereço do de um pavor pra ele, que ele não consegue descrever. Mas ele
preciso e certeiro rumo à mais profunda escuridão, ao mais 9. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Marcia Curi. Audiência pública “Efeitos pai. Segundo seu relato: ouvia os gritos da minha mãe o tempo todo dizendo “não leva
Transgeracionais da Violência de Estado”. 05/12/2014.
8. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Felipe Nin para a CEV-Rio. Conversa Pú- 10. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Alba Brigagão para a CEV-Rio. Conversa 12. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Pedro Luís Moreira Lima para a CEV-Rio.
blica “Políticas Reparatórias para Filhos e Netos de Afetados pela violência Pública “Políticas Reparatórias para Filhos e Netos de Afetados pela violên- 11. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Marcia Curi. Audiência pública “Efeitos Conversa Pública “Políticas Reparatórias para Filhos e Netos de Afetados
de Estado”. 18/06/2015. cia de Estado”. 18/06/2015. Transgeracionais da Violência de Estado”. 05/12/2014. pela violência de Estado”. 18/06/2015.

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eles”, “não leva eles”, “não leva eles”. A maior preocupação era DOI-CODI. Após ser solta, sua mãe desenvolveu um falou sobre os efeitos da constante vigilância impos- Os testemunhos apresentados, cada um com suas
que a polícia levasse as crianças. Enfim, justamente quando a quadro depressivo profundo. Conforme relatou: ta à sua família e do preconceito enfrentado em ra- peculiaridades, buscaram registrar em palavras, as
zão de seu sobrenome: experiências vivenciadas, no passado, por crianças e

polícia estava levando meus pais, quando meus pais realmen-
jovens, filhos ou netos de militantes políticos perse-

te foram sequestrados, os meus avós chegaram13.” No meio dessa depressão profunda, eu nasci. (…) A maior
lembrança que eu tenho, que eu tenho totalmente minha é Eu cresci numa família politizada e traumatizada pela guidos, presos ou assassinados. Trata-se de um esfor-
No mesmo sentido, Anita Verçosa Lins, filha de de uma tristeza muito grande, uma falta de interação com a vigilância de um Estado repressivo. Nossa vida ficou marcada ço necessariamente coletivo de superação das conti-
Amaro Lins, membro das Ligas Camponesas do Rio gente, um silêncio muito grande. Essa é a maior lembrança por falas dentro de casa. Falas que eram comuns pra mim e nuidades da ditadura militar em nosso presente. Por
de Janeiro, retratou, em seu testemunho, os obstá- que eu realmente tenho dela. Eu não conseguia sair de perto pro meu irmão: “olha, grampearam o telefone de novo”, “será um lado, o testemunho torna pública a experiência
culos que lhe foram impostos em razão das constan- dela, porque eu achava que se eu saísse de perto dela eu ia fi- que os militares vão dar outro golpe?”, “aquele rapaz que leva- até então confinada à esfera privada do indivíduo e,
tes mudanças da família: car mais triste. (…) Eu tive um atraso na fala, na linguagem va os meninos na escola desapareceu”, “isso é mentira da Rede por outro lado, transforma todos nós, aqueles que
escutamos ou lemos o relato, em testemunhas da

muito grande. Eu só comecei a falar com quatro, cinco anos. Globo”, “cuidado com os vizinhos”, “nós não arrumamos bons
Nós vivemos em Engenheiro Pedreira, Pedra Lisa, Japerí, Eu era uma menina muito fechada e não conseguia falar. E empregos por causa do sobrenome”, “não fale do seu avô nas história e co-responsáveis éticos pela superação do
Itaguaí. Não tínhamos paradeiro. (…) Não ficávamos mais ai meu pai ficou extremamente preocupado com isso e fez a entrevistas” – porque minha mãe perdeu o emprego na Shell trauma. Ao narrar os horrores do passado, exigindo
de três meses. Então, como estudar? Não tinha condição de minha mãe ir atrás de médicos. Passei por uma bateria enor- por ser filha do meu avô, minha tia também pagou um preço do Estado o reconhecimento dos crimes pretéritos e
nenhum dos quatro filhos saber o que era escola. Sem contar me de testes. (…) No final dessas baterias de testes todas, os caro pela perseguição culminando com o fim do seu casamen- sua consequente reparação, a pessoa transita da po-
que as nossas casas muito simples – eram barracos que ele médicos viraram pra minha mãe, um médico especial em São to e o retorno para o Brasil, porque na época morava nos Es- sição de vítima para a de testemunha, construindo
mesmo fazia – eram constantemente visitadas pelo Exército Paulo que era muito famoso– porque minha mãe rodou um tados Unidos. Angustia, isolamento, desconfiança, paranóias novos campos de sentido da experiência dolorosa vi-
brasileiro. Nós não entendíamos porquê. Se meu pai era ho- monte de médicos – e ele virou pra ela e falou: “mas a senho- e medo. Hoje eu percebo como nossa vida foi afetada por um venciada. A narrativa testemunhal pode, assim, ser
nesto, mesmo quando criança, a gente não entendia porque ra conversa com a sua filha, a senhora conversa com os seus sobrenome, por uma visível exclusão16.” compreendida como um ato de reparação simbólica,
as Forças Armadas constantemente rodeavam as terras onde filhos?”. Foi aí que a minha mãe desmanchou. Ela estava em quando realizada diante de um órgão estatal que a
estava nossa família14.” depressão profunda e ela percebeu que a depressão dela tinha Fábio da Rocha Dias Campos, filho do ex-militante reconheça. Ela é parte de uma ideia mais ampla de
impacto sobre os filhos dela. E foi assim que foi o diagnósti- Sergio Emanuel Dias Campos, descreveu, ainda, o reparação integral que se insere no âmbito das polí-
Os efeitos da violência de Estado sobre as vidas des- co do meu atraso na linguagem: por depressão materna. Os sentimento de frustração e de vazio constante, cau- ticas públicas por verdade, memória e justiça. Nas
sas pessoas foram inúmeros. A privação de contato médicos me encaminharam pra uma psicoterapeuta pra po- sado pela espera por seu pai, preso durante a dita- palavras de Leo Alves Vieira, neto de Mário Alves:
com os pais, presos e torturados pelo Estado; o medo dura.

der fazer ludoterapia. A minha mãe conta que nas primeiras
do abandono; a vigilância constante por parte dos ór-

sessões de terapia, a terapeuta fez questão que a minha mãe O testemunho tem um valor imenso para nós. Não é ape-
gãos da repressão; a perda de um ente querido, as- estivesse presente na sala e que eu não falava nada, que eu Hoje em dia eu odeio a palavra esperança. (…) A simples nas um efeito terapêutico que ele traz, ainda mais quando o
sassinado ou desaparecido nos centros de prisão e nem brincava, que, na verdade, eu só pegava os brinquedos ideia de esperar tomou em mim a força de um monstro avil- Estado nos ouve e isso é publicado para a sociedade que, por
tortura; o silenciamento imposto pela sociedade, en- e colocava no colo da minha mãe, amontoando os brinque- tante que nos destrói em nosso maior bem, em nosso maior sua vez, vira também testemunha da história. Nossas deman-
tre uma série de outras questões, produziram danos dos no colo dela. Na verdade, eu queria que ela interagisse ativo, que é o tempo. Esse sim é o nosso rei, o nosso guia. (…) das ao Estado são as da Justiça de Transição, nada além disso.
psicológicos, físicos, bem como aos projetos de vida comigo, queria que ela falasse, brincasse comigo. Depois desse Odeio a esperança. (…) A esperança me fez muito mal. Com (…) Nossas demandas são, por exemplo, criação dos centros
daqueles jovens e crianças. O caso de Heliana Castro período de terapia, eu comecei a desabrochar a minha fala, eu ela, eu me vi esperando muitos anos, uma possibilidade de de memória (…), a continuação da reparação terapêutica –
Alves é emblemático nesse sentido. Seu pai e sua mãe comecei a recuperar o meu atraso de linguagem e a vida foi transformação que não se fez nunca. As cartas de meu pai che- de preferência com o aproveitamento da experiência do Clí-
foram presos e torturados, lado a lado, no interior do caminhando15.” garam trazendo alegria, mas ele, de carne e osso, não vinha nicas do Testemunho, que se torne uma política de saúde – a
nunca. Me esqueci de quanto tempo passara17.” revisão da lei de anistia para julgar aqueles que praticaram
13. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Heliana Castro Alves para a CEV-Rio.
Conversa Pública “Políticas Reparatórias para Filhos e Netos de Afetados Alan Brigagão, por sua vez, neto de José Brigagão, crimes de lesa humanidade (…)18.”
pela violência de Estado”. 18/06/2015. 16. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Alan Brigagão. Audiência Pública “Efei-
14. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Anita Verçosa Lins para a CEV-Rio. Con- 15. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Heliana Castro Alves para a CEV-Rio. tos Transgeracionais da Violência de Estado”. 05/12/2014.
versa Pública “Políticas Reparatórias para Filhos e Netos de Afetados pela Conversa Pública “Políticas Reparatórias para Filhos e Netos de Afetados 17. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Fabio Campos. Audiência Pública “Efei- 18. Acervo CEV-Rio. Testemunho de Leo Alves Vieira. Audiência Pública
violência de Estado”. 18/06/2015. pela violência de Estado”. 18/06/2015. tos Transgeracionais da Violência de Estado”. 05/12/2014. “Efeitos Transgeracionais da Violência de Estado”. 05/12/2014.

428 429
Enfim, a CEV-Rio entende que a construção do limites a serem superados de nossa Justiça de Tran- Capítulo 23 - A REPETIÇÃO DAS VIOLAÇÕES pessoas e grupos que ameaçavam as sustentações
“nunca mais” e o consequente fortalecimento da de- sição. Trata-se de questionarmos sobre tudo aquilo DE DIREITOS HUMANOS do poder da ditadura e os interesses dos setores be-
mocracia passa necessariamente pela possibilidade que ainda resta da ditadura em nossa sociedade. O neficiados pelo regime. Indivíduos e grupos sociais
de construção de novas narrativas sobre o período próximo capítulo abordará outro aspecto dessa mes- A Comissão da Verdade do Rio foi instituída para foram vítimas de perseguição, censura, tortura,
ditatorial. Narrativas estas que têm a potência de ma questão: as continuidades, na democracia, dos investigar as graves violações de direitos humanos prisões arbitrárias, execução, desaparecimento for-
transformar a dor privada em responsabilidade co- padrões de violações de direitos humanos perpetra- praticadas durante a ditadura militar. No entanto, çado, remoções, discriminação de gênero e de raça,
letiva e de nos fazer pensar criticamente sobre os dos pelo Estado brasileiro. a análise dos padrões de violações no presente tor- entre outras violações.
nou-se fundamental para que a Comissão pudesse
recomendar ao Estado medidas efetivas de não-re- Diante da repetição, no presente, desses padrões
petição de violações de direitos humanos (art. 4º, V, de violência institucional, a CEV-Rio estudou rela-
da Lei Estadual n.º 6.335/12). tórios de órgãos e entidades de direitos humanos –
do Estado ou da sociedade civil –que desenvolvem
Em um trabalho voltado para a construção da me- trabalho de monitoramento e denúncia de violações
mória da injustiça passada observou-se que as atro- de direitos humanos no país, em especial no estado
cidades de outrora persistem com diferentes abor- do Rio de Janeiro. Estes relatórios, produzidos entre
dagens, mesmo após a promulgação da Constituição 2012 e 2015, são contundentes em afirmar a perma-
Federal de 1988. Essa constatação contraria a noção nência de tais violações, bem como em demonstrar
generalizada de ruptura entre o passado e o pre- que as suas vítimas possuem um perfil social especí-
sente, gerada como consequência de uma Justiça de fico: jovens, a maioria negros e pobres.
Transição tardia e comedida.
Mortes e Desaparecimento Forçado
A comparação com a transição democrática de outros
países da região, como Argentina e Chile, evidencia No cenário internacional, o Brasil figura entre os
que, no Brasil, esse movimento se deu de forma ex- mais violentos países do mundo. O Mapa da Violên-
tremamente controlada. Na Argentina, quase não cia 2015: mortes matadas por arma de fogo1 mostra
houve negociação entre o regime militar e o novo que 42.416 pessoas morreram em 2012 vítimas de
governo e no Chile, embora a elite civil tenha nego- armas de fogo no país, das quais 40.077 foram ví-
ciado com os militares, criou-se quase imediatamen- timas de homicídio. Segundo dados colhidos junto
te a Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, à Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é
dentre outras iniciativas visando à reparação dos o 11º país com a pior taxa de mortalidade por arma
atingidos. Enquanto isso, os primeiros governos de- de fogo. Já o Mapa da Violência 2015: Adolescentes
mocráticos brasileiros pouco enfrentaram os abusos de 16 e 17 anos no Brasil2 aponta que, entre os 85
da ditadura militar, contribuindo com a impunidade países analisados pela OMS, o Brasil ocupa o tercei-
e o esquecimento. ro lugar quando analisada a taxa de homicídios de
adolescentes de 15 a 19 anos, superado apenas pelo
Através de uma estrutura repressora e violenta, o 1. WAISELFISZ, J.J. Mapa da Violência 2015: Mortes Matadas por Armas de
Performance do Grupo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, realizada durante audiência pública em 05/12/2014
Foto: Bruno Marins Estado ditatorial empreendeu uma série de viola- Fogo. Brasília: FLACSO/UNESCO, 2015. p. 21.
2. WAISELFISZ, J.J. Mapa da Violência 2015: Adolescentes de 16 e 17 anos no
ções de direitos humanos com o intuito de silenciar Brasil. Brasília: FLACSO, 2015. p. 65.

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México e El Salvador. Considerando esta faixa etá- de segurança são hoje marcas do Brasil. No Rio de O Rio de Janeiro apresenta ainda índices alarman- denúncias, tendo sido internacionalmente respon-
ria, o Rio de Janeiro possui a 11ª pior taxa dentre as Janeiro não é diferente: um cenário de violência, in- tes de pessoas desaparecidas, contabilizando 5.975 sabilizado pela Corte Interamericana de Direitos
demais unidades federativas do país, com 62,5 ho- flamado pela guerra às drogas, que tem como foco casos em 2012 e 5.822 em 2013. A quantidade de ca- Humanos, nas sentenças do Caso Damião Xime-
micídios para cada 100 mil habitantes. A Campanha principal a atuação do narcotráfico nas favelas. Pes- dáveres (538 em 2012 e 502 em 2013) e ossadas (30 nes Lopes versus Brasil em 2006 e no Caso Gomes
Jovem Negro Vivo, lançada em 2015, pela Anistia quisa realizada pelo professor Michel Misse consta- em 2012 e 48 em 2013) encontrada no estado pode Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus
Internacional, destaca que dos 30.000 jovens assas- tou que, entre 2001 e 2011, mais de 10 mil pessoas ser associada à violência institucional e ao crime Brasil em 2010.
sinados todos os anos no país, 77% são negros3. Esta foram mortas em confronto com a polícia no esta- de desaparecimento forçado6. Em 2013, a delegacia
realidade está ligada a um cenário de violência ins- do do Rio de Janeiro4. Estes casos revelam ainda a que mais registrou casos desse tipo foi a de Cam- Sabe-se que a tortura ocorre principalmente em es-
titucional, no qual o Estado se faz protagonista de utilização dos chamados autos de resistência como po Grande (RJ) na Zona Oeste, local conhecido pela paços de privação de liberdade8 como presídios, uni-
violações de direitos humanos, principalmente por forma de garantir a impunidade desses policiais, atuação de milícias. Contraditoriamente, naquele dades de cumprimento de medida socioeducativa,
meio de suas políticas de segurança e custódia de demonstrando que a cultura da violência permeia ano os policiais desta área foram beneficiados com delegacias, clínicas para usuários de drogas, mani-
pessoas, que abarcam presídios e unidades de cum- órgãos como o Ministério Público e o Judiciário. um bônus orçamentário oferecido pela Secretaria cômios, abrigos etc. Isto demonstra o caráter insti-
primento de medida socioeducativa. de Segurança em razão da queda das estatísticas de tucional da tortura e a inadimplência do Estado em
O Relatório Anual da Anistia Internacional (2014- “letalidade violenta”7. Deve-se levar em conta que prevenir e combater a mesma. No Rio de Janeiro,
Nesta seara prevalece, em regra, uma perspectiva 2015) aponta que 424 pessoas foram mortas pela esses números estão aquém da realidade, posto que o crescimento da população prisional é preocupan-
militarista, seja por parte do policiamento ostensivo polícia durante operações no estado do Rio de Ja- muitas famílias preferem não registrar o desapare- te. Segundo o Mecanismo Estadual de Prevenção e
realizado pelas Polícias Militares, seja pela maneira neiro em 2013, sendo que em 2014 este número cimento, com medo de sofrerem represálias. Combate à Tortura do Rio de Janeiro:
como se organizam e atuam as Polícias Civis, Guar- cresceu a uma taxa de 37%5. Casos de violência
das Municipais, Secretarias de Segurança e de Ad- institucional são, infelizmente, rotineiros: em mar- Tortura “ Entre dezembro de 2011 e setembro de 2014 o acréscimo
ministração Penitenciária e pelo uso recorrente da ço de 2004, Cláudia Silva Ferreira foi baleada no é de 32,8%, saltando de 29.045 em dezembro de 2011 para
Força Nacional em intervenções nos estados. A pers- Morro da Congonha e arrastada, presa à traseira A prática da tortura é rechaçada pelos mais antigos 38.568 até setembro de 2014. Ao passo que o crescimento da
pectiva militarizada da segurança pública tem como da viatura policial, por 350 metros; no mês seguin- e diversos tratados internacionais de direitos hu- população prisional nacional no mesmo período é de 10,2%,
principal problema a compreensão da existência de te, Douglas Rafael da Silva Pereira foi assassina- manos, dos quais o Estado brasileiro é signatário. partindo de 514.582 em dezembro de 2011 para 567.000 em
um inimigo interno potencial, que se torna alvo do do no Pavão-Pavãozinho (os moradores reagiram e Assim, a Declaração Universal de Direitos Huma- junho de 2014. Em outras palavras, o crescimento do número
aparato bélico. Revela ainda uma dimensão seletiva Edilson Silva dos Santos, que participava do pro- nos (1948), o Pacto Internacional de Direitos Civis de encarcerados no Rio de Janeiro corresponde ao triplo da
que norteia o sistema penal, as políticas de seguran- testo, foi morto pela polícia); em setembro de 2015, e Políticos (1966), a Convenção Americana sobre média brasileira9.”
ça pública e o Poder Judiciário. Vale destacar que, Eduardo Felipe Santos Victor, de dezessete anos, Direitos Humanos (1969), a Convenção das Nações
segundo uma pesquisa da Secretaria Nacional de foi executado por policiais militares da Unidade de Unidas Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou O cenário de encarceramento em massa atinge todo
Segurança Pública e do Fórum Brasileiro de Segu- Polícia Pacificadora do Morro da Providência. O có- Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), o país. A população prisional brasileira alcança hoje
rança Pública, a maioria dos policiais brasileiros é digo beligerante, que pauta as ações das polícias, entre outros, garantiram uma definição cada vez o total de 715 mil presos10, sendo numericamente in-
favorável às reformas e à modernização das polícias. produz um grande número de vítimas entre sus- mais precisa a respeito desta prática e sobre o com- ferior apenas à dos Estados Unidos e da China.
A mais emblemática delas é a desmilitarização da peitos de crimes, agentes de segurança e pessoas promisso dos Estados-parte em proteger a dignida-
Polícia Militar, apoiada por 77,2% dos 21.101 poli- presentes no local das ações. de humana. Embora o Brasil seja signatário desses Chama atenção o fato de que, atualmente, 40% da
ciais consultados. tratados e possua uma legislação interna que pro- população carcerária nacional cumpre prisão pro-
4. MISSE, Michel (org.). Autos de Resistência: uma análise dos homicídios
cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Relatório íbe a prática da tortura, o país coleciona diversas
Final de Pesquisa - Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflitos e Violência 8. CONECTAS. Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos tribunais de
A estrutura e atuação autoritária e letal dos órgãos Urbana. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011. p. 4. 6. RIO DE JANEIRO (Estado). Instituto de Segurança Pública. Balanço das justiça no Brasil (2005-2010). São Paulo: Conectas, 2015. p. 46.
5. ANISTIA INTERNACIONAL. Informe Anual da Anistia Internacional Incidências Criminais e Administrativas no Estado do Rio de Janeiro. Rio de 9. RIO DE JANEIRO (Estado). Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate
(2014/2015): o estado dos direitos humanos no mundo. Rio de Janeiro: Anis- Janeiro: ISP, 2013. à Tortura. Megaeventos, Repressão e Privação de Liberdade – 2014. Rio de
3. Anistia Internacional. Disponível em https://anistia.org.br/campanhas/jo- tia Internacional Brasil, 2015. p.73. 7. Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo. Disponível em http:// Janeiro: ALERJ, 2014. p. 43.
vemnegrovivo/ apublica.org/2014/02/desaparecidos-esquecidos/ 10. Idem. p. 46.

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visória à espera de julgamento. Quase metade dos O enfrentamento à tortura está muito aquém dos 2015, foram assassinados e torturados três jovens Os protestos desdobraram-se em outras pautas, in-
presídios brasileiros abriga pessoas que ainda não compromissos firmados internacionalmente pelo Es- no Departamento Geral de Ações Socioeducativas do cluindo melhores condições de saúde, educação e
foram condenadas, o que denota desrespeito siste- tado brasileiro, exigindo uma resposta concreta por Rio de Janeiro (DEGASE), sob a custódia do Estado. habitação, bem como a necessidade de maior parti-
mático ao princípio da presunção de inocência11. Em parte do Poder Judiciário para preveni-la e combatê- O nome dos jovens foi mantido em sigilo, mas sabe- cipação popular nas tomadas de decisões e a crítica
relatório recente, a Comissão de Direitos Humanos -la. Estudo da ONG Conectas e do Núcleo de Estudos -se que dois casos ocorreram na unidade de interna- à violência policial.
e Cidadania da Assembleia Legislativa do estado da Violência da USP analisou decisões judiciais sobre ção Escola João Luiz Alves, na Ilha do Governador, e
do Rio de Janeiro alertou que apenas 1/3 dos pre- tortura nos Tribunais de Justiça de todo o país e de- o outro, no Centro de Socioeducação Irmã Asunción Durante alguns meses, manifestantes, organizados
sos provisórios recebem de fato sentença condena- monstrou que 61% dos formalmente acusados eram de la Gándara Ustar, em Volta Redonda20. Chama ou não, ocupavam as ruas do Rio de Janeiro e dos
tória12. O uso da medida restritiva de liberdade vem agentes públicos e 37% agentes privados. No entanto, atenção que todos os casos só chegaram ao conheci- municípios da região metropolitana e do interior do
se afirmando também como uma tendência para os quando analisadas as sentenças, os agentes privados mento público porque as vítimas vieram a óbito. Estado. As Jornadas de Junho chegaram também
adolescentes em conflito com a lei. tendem a ser condenados em 84% dos casos, enquan- às favelas. Um dos protestos aconteceu na Avenida
to os agentes públicos em 74%15. As sentenças em Não resta dúvida que as reformas institucionais Brasil, altura de Bonsucesso, no dia 24 de junho de
Este cenário se mostra propenso à prática da tor- grau de recurso demonstram ainda mais claramente promovidas após a Constituição Federal de 1988 2013. Após a manifestação, na noite daquele dia, o
tura, por se caracterizar como um crime de opor- a cumplicidade com a prática da tortura por parte do não foram capazes de enfrentar o legado autoritá- Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope)
tunidade, no qual prevalece a invisibilidade social Judiciário: quando o autor era agente público, houve rio ditatorial. A prática da tortura está presente em realizou uma megaoperação no Parque Maré, Nova
da vítima, inserida em espaços de difícil acesso, e uma tendência em converter as condenações em ab- toda a história do país, mas foi ampliada no período Holanda e Parque União, favelas do Complexo da
sua vulnerabilidade em relação ao agente público, solvições em 19% dos casos, enquanto que quando os da ditadura militar como um componente estrutural Maré, que acabou com dez mortos, entre eles, um
que é muitas vezes o seu torturador13. Além disso, a autores eram agentes privados a conversão ocorreu que visava provocar o terror e o silenciamento da adolescente de 16 anos. No dia 7 de julho, moradores
ampliação do encarceramento nas últimas décadas apenas em 10% dos casos16. sociedade. Nesse sentido, a responsabilização indi- e organizações de direitos humanos organizaram
tem como consequência imediata a superlotação vidual dos agentes estatais é insuficiente para erra- um grande ato, exigindo justiça em protesto à vio-
dos presídios, situação que estabelece uma rotina Muitas ocorrências de tortura acabam se tornando dicar tal prática. O que se observa é que a tortura lência policial. O episódio evidenciou algo há mui-
degradante, que vem se perpetuando sem atitudes públicas por meio de denúncias de organizações da e os maus tratos são procedimentos institucionali- to tempo sabido: a violência de Estado volta-se com
eficazes por parte do Sistema de Justiça. Recen- sociedade civil ou da imprensa: Amarildo de Sou- zados, adotados pelos órgãos de segurança, seja de ainda mais força contra as populações das favelas
temente, por exemplo, os custodiados no Presídio za, na Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha polícia ou de encarceramento. Estes órgãos, parte da cariocas, violando vidas e suprimindo a liberdade de
Ary Franco no Rio de Janeiro passaram por uma (julho/2013); João Mário Teixeira Francisco, na co- estrutura do Estado democrático, precisam passar expressão de seus moradores.
epidemia de tuberculose dentro da unidade, que munidade São José Operário17 (março/2014); Ma- por uma drástica mudança de paradigma, na qual a
dispõe de 968 vagas, mas abrigava 1.398 detentos. teus Alves dos Santos, no Morro do Sumaré18 (ju- proteção dos direitos fundamentais se faça impres- Nesse mesmo contexto, o Rio de Janeiro sediou al-
Ao invés de melhorar as condições do local, a solu- nho/2014); e do recruta Paulo Aparecido Santos de cindível em todos os contextos. guns dos mais importantes projetos de um ciclo na-
ção foi transferir os presos para outra unidade, a Lima, no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de cional de megaeventos: a Jornada Mundial da Ju-
Penitenciária Alfredo Tranjan, já superlotada e em Praças da Polícia Militar (novembro/2013)19. Criminalização das lutas sociais ventude (2013), a Copa das Confederações (2013) e a
condições precárias14. Copa do Mundo (2014), além da preparação para os
Vale destacar que, apenas no primeiro semestre de O período de atuação da CEV-Rio foi marcado por Jogos Olímpicos (2016). Cada uma dessas ativida-
intensas manifestações populares. No Rio, inicial- des mobilizou vultosos aportes públicos e privados
11. Idem. p. 62. 15. CONECTAS. Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos tribunais mente motivadas por questões de mobilidade urba- na construção e compra de equipamentos esportivos,
12. RIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de de justiça no Brasil (2005-2010). São Paulo: Conectas, 2015. p. 12.
Janeiro. Relatório Anual da Comissão de Direitos Humanos de 2014. Rio de 16. Idem. p. 51 e 52. na, como o preço da tarifa de ônibus, milhares de de transporte, bens imobiliários e aparato policial.
Janeiro: ALERJ, 2014. p. 56. 17. http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/moradores-de-favela-no-rio-acusam-
13. CONECTAS. Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos tribunais -policiais-de-tortura-e-morte-de-jovem-27032014 pessoas saíram às ruas, a partir de junho de 2013. Com este cenário, o que já vinha sendo experimenta-
de justiça no Brasil (2005-2010). São Paulo: Conectas, 2015. p. 30.
14. RIO DE JANEIRO (Estado). Mecanismo Estadual de Prevenção e Comba-
18. http://apublica.org/2014/07/dois-meninos-e-uma-sentenca-de-morte/
19.http://extra.globo.com/casos-de-policia/delegado-conclui-que-houve-tor-
do em termos de arbitrariedade, criminalização e re-
te à Tortura. Megaeventos, Repressão e Privação de Liberdade – 2014. Rio de tura-em-treino-da-pm-que-terminou-com-recruta-morto-maldade-gratuita- 20.http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-06-03/menor-infrator-e- pressão, por aqueles que participavam de protestos
Janeiro: ALERJ, 2014. p. 36 -desnecessaria-11409808.html -morto-por-colegas-em-escola-do-degase-na-ilha-do-governador.html

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e organizações políticas antes de 2013, se viu am- Muitos manifestantes, jornalistas25 e transeuntes nizava a violência contra os professores da rede municipal de desacato, tipificação frequentemente usada por
pliado à massa de pessoas que, nas redes sociais e ficaram feridos, já que armamentos de gás não se- que protestavam naquele dia28.” agentes do Estado para inibir críticas à sua atuação,
nas ruas, se mobilizaram em defesa de seus direitos. lecionam seu alvo. Em razão da inalação de gás la- o que é rechaçada pelo Direito Internacional dos Di-
É importante destacar que, em todas as esferas da crimogênio, utilizado durante o protesto de 20 de Além do uso excessivo da força, a Polícia Militar foi reitos Humanos por violar a liberdade de expressão.
administração pública (União, Estados, Municípios junho de 2013, o ator Fernando da Silva Cândido flagrada em diversas ocasiões infiltrando agentes à Até mesmo a Lei de Segurança Nacional, aprovada
e Distrito Federal) e nos Três Poderes, prevaleceu a morreu após trinta dias de internação hospitalar. paisana entre os manifestantes. A estratégia pro- durante a ditadura militar, foi utilizada32, referen-
resposta violenta e criminalizadora da luta social – Em relatório publicado em 2014, a ONG Artigo 19 movida pelo serviço secreto da polícia, a P2, foi res- dando a ideia de que as polícias encaram os mani-
salvo pontuais exceções. ressalta que: ponsável por causar tumulto e prisões arbitrárias. festantes como seus opositores políticos.
Ao ocasionar propositalmente episódios violentos,
Em regra, os protestos foram reprimidos sob uma “ A inexistência de lei para o uso das forças policiais no con- o Serviço de Inteligência da Polícia Militar visava A reação do Poder Legislativo à intensificação das
orientação militar, sendo a polícia responsável por texto das manifestações sociais no Brasil é prejudicial para legitimar a ação dura da polícia nas ruas e deslegi- lutas sociais demonstrou, em regra, uma predispo-
transformar as ruas do Rio de Janeiro em campo de a liberdade de expressão, uma vez que gera uma margem de timar os protestos perante a opinião pública. Isso fi- sição para alternativas autoritárias. De forma mi-
batalha, atuando como se os manifestantes fossem discricionariedade muito larga, abrindo caminho para que o cou evidente quando um policial militar foi flagrado noritária, as comissões parlamentares de direitos
inimigos da sociedade. O efetivo de policiais mili- Estado utilize seu poder de coação de forma desproporcional e quebrando o vidro de uma viatura29. Além de conter humanos adotaram posicionamento em defesa dos
tares foi desproporcionalmente alto, contando com arbitrária contra os manifestantes 26.” violentamente os protestos, a Polícia Militar reali- manifestantes, denunciando as arbitrariedades co-
segmentos prontos para a repressão violenta, como zou inúmeras prisões arbitrárias de manifestantes. metidas pelo Estado, o que também foi verificado
a Tropa de Choque e a Cavalaria, que deveriam ser É importante destacar que a Polícia Militar recor- Segundo a ONG Artigo 19, pelo menos 2.608 pessoas em mandatos de alguns deputados33 e vereadores.
usados apenas quando houvesse grave ameaça à reu ao uso de armas letais, variando a intensidade foram detidas nos protestos em 2013 no país30. No entanto, o que se viu, de maneira geral, foram
ordem pública21. Os policiais militares de diversos de sua adoção de acordo com o local da cidade onde sucessíveis projetos de lei visando a criminalização
batalhões da cidade retiravam a identificação pes- os protestos aconteciam. À época, o comandante da O procedimento investigativo adotado pelas forças das organizações políticas e violando a liberdade de
soal de seus uniformes para dificultar a responsa- Polícia Militar do Rio de Janeiro chegou a pedir a policiais se deu em prejuízo de ativistas e movimen- expressão e manifestação. Estes Projetos de Lei (PL)
bilização por seus atos, o que viola requisito legal institucionalização do uso de armas letais em ma- tos sociais, os quais passaram a constar em bancos dispõem, por exemplo, do aumento da pena de dano
do exercício da atividade policial22. A Polícia Militar nifestações, o que viola as recomendações da ONU de dados dignos das polícias políticas, sem que hou- ao patrimônio público (PL n.º 6307/2013)34, a tipifi-
se valeu ainda do uso indiscriminado de armamento sobre o tema27 ou mesmo a normativa nacional: vesse autorização judicial para a busca e armazena- cação do crime de terrorismo (PL n.º 728/2011 e PL
menos-letal, como balas de borracha, spray de pi- mento dessas informações. Enquanto policiais mi- n.º 2016/2015), a tipificação do crime de desordem
menta, bombas de gás lacrimogêneo e de efeito mo- “ O uso da força por agentes de segurança pública, segun- litares capturavam vídeos e fotografias feitas pelos ou vandalismo com qualificadora para o caso de pro-
ral. Com frequência, estes artefatos foram usados do o Decreto Interministerial 4226/2010, deve ser regido pelos manifestantes, chegando a exigir senhas das redes testos (anteprojeto apresentado pelo Secretário de
para dispersão de manifestantes, o que ocorreu até princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, sociais, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) Estado de Segurança do Rio de Janeiro)35, a proi-
mesmo dentro de ambientes fechados como a Casa moderação e conveniência. Contudo, não faltam exemplos em esquematizou um sistema de monitoramento de bição do fechamento de vias públicas ou tipificação
de Saúde Pinheiro Machado em julho de 2013 e es- que esses princípios não foram observados, como no caso do sites, como Facebook, Twitter, Whatsapp e Insta- do crime de “atentado à segurança do transporte ro-
tações de metrô, em junho e setembro de 2013 e ju- policial militar do Rio de Janeiro que publicou, no Facebook, gram31. O uso dessas redes sociais passou a constar doviário” (PL n.º 5531/2013)36 e proibição do uso de
nho de 201423. A Secretaria de Estado de Segurança uma foto sua enquanto segurava um cassetete quebrado e iro- dos inquéritos policiais, fundamentando acusações
teve que comprar, em junho de 2013, estoque emer- 25. Cabe destacar a situação a que foram submetidos os jornalistas (traba-
de associação criminosa e formação de quadrilha. 32. Idem. p. 120.
gencial de bombas de gás24. lhadores da mídia corporativa ou da mídia independente) que cobriram as Nesta fase de abertura de procedimentos investi- 33. Vide os Projetos de Lei nº 300/2013 e 6500/13, que proíbem o uso de balas
manifestações. Ao todo no país foram contabilizados dez jornalistas detidos e de borracha em manifestações públicas e sobre o princípio da não violência
117 agredidos e feridos. No Rio de Janeiro, durante a final da Copa do Mundo, gatórios observou-se a reiterada acusação de crime no contexto de manifestações e reintegração de posse, respectivamente. Ver
em 13 de julho de 2014, foram agredidos 15 jornalistas, além de inúmeros também: ARTIGO 19. Protestos no Brasil – 2013. São Paulo: Artigo 19, 2014.
casos de equipamentos quebrados por policiais. p. 66 e 120.
21. ARTIGO 19. Protestos no Brasil – 2013. São Paulo: Artigo 19, 2014. p. 111. 26. ARTIGO 19. Protestos no Brasil – 2013. São Paulo: Artigo 19, 2014. p. 52. 28. ARTIGO 19. Protestos no Brasil – 2013. São Paulo: Artigo 19, 2014. p. 111. 34. CONECTAS. Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos tribunais
22. Idem. p. 92. 27. RIO DE JANEIRO (Estado). Mecanismo Estadual de Prevenção e Comba- 29. Idem. p. 135. de justiça no Brasil (2005-2010). São Paulo: Conectas, 2015. p. 56
23. Idem. te à Tortura. Megaeventos, Repressão e Privação de Liberdade – 2014. Rio de 30. Idem. p. 117. 35. Idem. p. 68.
24. Idem. p. 105. Janeiro: ALERJ, 2014. p. 25. 31. Idem. p. 100. 36. Idem. p. 59.

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máscaras (Lei Estadual n.º 6528/13)37. decreto municipal, que incentiva o grafite em tapu- deixar o local e a região onde há décadas viviam.
mes de obras, os dois foram detidos por oito policiais Majoritariamente, as remoções ocorreram em co-
O Poder Judiciário tampouco pode ser excluído do e destratados enquanto prestavam depoimento. munidades situadas em áreas próximas aos bair-
programa autoritário que cercou os manifestantes Quando estavam sendo liberados, o delegado ame- ros mais valorizados do município ou a regiões de
em 2013. Primeiramente, coube à magistratura ba- açou “criar um crime”, se fosse necessário, para que recente valorização. No processo de negociação dos
nalizar as prisões cautelares, que se mostrou como os mesmos fossem presos. imóveis, muitos moradores foram coagidos e não pu-
mais uma ferramenta para a “contenção das lutas deram participar das discussão sobre os projetos ur-
sociais”38. As decisões proferidas pelos magistrados Remoções forçadas banísticos. As indenizações foram insuficientes, os
careceram de padronização nos casos envolvendo reassentamentos se deram em lugares distantes e
protestos, sendo algumas nocivas ao direito de ma- O Rio de Janeiro tem vivido um novo ciclo de remo- organizações comunitárias foram deslegitimadas43.
nifestação, configurando “atos de censura judicial”39. ções forçadas, que afetam especialmente a popula- Muitas vezes, a Prefeitura mudou a justificativa da
É preciso salientar o caso de Rafael Braga, único ção de baixa renda e moradora de favelas localiza- remoção, como ocorreu nos casos da Favela do Metrô
condenado, até o momento, em razão dos protestos. das em áreas de interesse do mercado imobiliário. e da Vila Autódromo44.
Morador do centro do Rio de Janeiro, Rafael foi con- Este processo de reorganização da cidade é orienta-
denado a cinco anos de prisão em razão de portar do por políticas públicas que se valem de argumen- A equipe da CEV-Rio esteve na Vila Autódromo, em
um frasco de desinfetante e outro de água sanitária. tos como a revitalização de territórios, afastamento maio de 2015, para ouvir Altair Guimarães, uma das
Embora a perícia judicial tenha concluído ser impro- de áreas de risco e reutilização de locais relaciona- lideranças da comunidade, anteriormente removido
vável a aptidão deste material para funcionar como dos ao “Projeto Olímpico”. As iniciais da Secretaria da favela da Ilha dos Caiçaras no período da dita-
um coquetel molotov, o juiz alegou que “o etanol, en- Municipal de Habitação (SMH), inscritas em spray dura45. Ficou claro, durante a visita, o interesse do
contrado dentro de uma das garrafas, pode ser utili- nas casas a serem removidas, são hoje um símbolo mercado imobiliário na área da comunidade. A Vila
zado como combustível em incêndios, com capacida- da segregação urbana que vive a cidade do Rio de Autódromo, cuja luta é um símbolo da resistência
Vila Autódromo: uma favela ameaçada pelas remoções forçadas. Como
de para causar danos materiais, lesões corporais e o Janeiro. O número estimado de famílias removidas às remoções, está localizada entre hotéis de luxo (já na ditadura, a especulação imobiliária age contra a cidadania
evento morte”40. Esta condenação reflete a atuação em razão desse processo chega a 4.772, totalizando em construção) e a Lagoa de Jacarepaguá, na Zona Foto: Lucas Pedretti

discriminatória dos órgãos de Justiça brasileiros: 16.700 pessoas em 29 comunidades41. Oeste da cidade.
como a maioria da população carcerária brasileira,
Rafael Braga é jovem, pobre e negro. A falta de transparência dos dados oficiais sobre Conforme demonstrado no capítulo 8, as remoções
esta política habitacional dificulta a obtenção de marcaram a história do Rio de Janeiro. Foram acen-
No contexto pós Jornadas de Junho, merece desta- uma dimensão verdadeira da quantidade de famí- tuadas nos anos sessenta por meio de uma violenta
que a prisão de dois ativistas da Campanha Ocupa lias removidas, havendo pesquisas que chegam ao e sistemática tomada de territórios pelo mercado
DOPS, em 29 de julho de 2014, no bairro da Lapa número de 65 mil pessoas retiradas de suas casas42. imobiliário. Repetindo práticas semelhantes àque-
(RJ). Os jovens grafitavam um tapume, em frente Certo é que moradores do Centro, de Arroio Pavuna las empreendidas pela ditadura militar, o Estado
ao antigo Prédio do DOPS/GB, cujo espaço pleiteiam (Jacarepaguá), da Favela do Metrô (Maracanã), da continua violando o direito à moradia adequada de
transformar em um centro de memória e direitos Vila Autódromo (Barra da Tijuca), da Vila Harmo- milhares de cidadãos.
humanos. Embora os militantes se valessem de um nia (Recreio), dentre outros, viram-se obrigados a
43. COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO. Me-
gaeventos e Violações de Direitos Humanos no Rio de Janeiro - Dossiê do
37. ARTIGO 19. Protestos no Brasil – 2013. São Paulo: Artigo 19, 2014. p. 120. 41. COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO. Me- Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro - junho de 2014. Rio
38. RIO DE JANEIRO (Estado). Mecanismo Estadual de Prevenção e Comba- gaeventos e Violações de Direitos Humanos no Rio de Janeiro - Dossiê do Co- de Janeiro: Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, 2014.
te à Tortura. Megaeventos, Repressão e Privação de Liberdade – 2014. Rio de mitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro - junho de 2014. Rio de p. 36 e 37.
Janeiro: ALERJ, 2014. p. 57. Janeiro: Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, 2014. p. 21. 44. Idem. p. 19.
39. ARTIGO 19. Protestos no Brasil – 2013. São Paulo: Artigo 19, 2014. p. 82. 42. AZEVEDO, Lena & FAULHABER, Lucas. SMH 2016: remoções no Rio de 45. Acervo CEV-Rio. Depoimento de Altair Guimarães para a CEV-Rio em
40. Idem. p. 78 Janeiro Olímpico. Rio de Janeiro: Mórula, 2015. 05/05/2015.

438 439
Capítulo 24 – CONCLUSÕES E (2) O modelo de desenvolvimento implementado democracia racial era um importante elemento de Volta Redonda e Macaé.
RECOMENDAÇÕES pela ditadura gerou consequências nefastas para as sustentação ideológica do regime, a ditadura repri-
classes trabalhadoras, tanto no meio rural quanto no miu fortemente as mobilizações negras e as lutas (6) As forças de segurança foram remodeladas
CONCLUSÕES urbano. anti-racistas. para servir à repressão e o Estado foi amplamente
militarizado. O legado deixado pelo período de
Ao longo de dois anos e oito meses de mandato, a Os setores populares, mobilizados no início da déca- (4) A ditadura institucionalizou o Terror de Estado arbítrio continua visível e presente ainda hoje.
Comissão da Verdade do Rio (CEV-Rio) trabalhou da de 1960 por reformas estruturais que ampliariam ao construir uma complexa estrutura para eliminar a
para esclarecer as violações de direitos humanos a democracia e os direitos, logo após o golpe de 1964 oposição política, armada ou não, e as organizações A perseguição aos militares que pensavam diferen-
ocorridas durante a ditadura de 1964 no âmbito do foram sufocados e suas demandas, reprimidas. O re- de esquerda. te, a subordinação das Polícias Militares ao Exér-
estado do Rio de Janeiro. Em seu Relatório Final, gime ditatorial aumentou a desigualdade social de cito, a autorização do uso da violência e a legitima-
a Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou forma acentuada. No Rio de Janeiro, uma das faces O golpe de 1964 inaugurou um período de extrema ção das violações de direitos humanos contra um
quatro conclusões inquestionáveis acerca do período mais nefastas deste modelo foi a política urbana se- violência, em que agentes do Estado, agindo sob suposto inimigo interno por meio da Doutrina de
da ditadura de 1964: houve graves violações de di- gregadora contra os mais pobres, que removeu mais ordem direta dos presidentes-ditadores, foram res- Segurança Nacional foram responsáveis por fazer
reitos humanos; estas possuíram um caráter siste- de cem mil pessoas de favelas da cidade. No campo, ponsáveis por graves violações de direitos huma- das próprias forças de segurança do Estado o prin-
mático e generalizado; configurou-se claramente um também houve deslocamento forçado de camponeses nos como prisões arbitrárias, torturas, execuções cipal vetor da violência e da barbárie na sociedade
quadro de crimes contra a humanidade e, por fim, e comunidades tradicionais em razão da construção sumárias e desaparecimentos forçados. A CEV-Rio brasileira. O desmonte dos DOI-CODIs foi marcado
estas violações persistem no presente1. Abaixo es- de grandes empreendimentos, além de outros con- avançou na elucidação de diversos crimes, como na por atos terroristas de extrema direita, como o caso
tão listadas as conclusões da CEV-Rio, a partir das flitos que deixaram dezenas de mortos e desapare- Chacina de Quitino, quando três militantes foram da carta-bomba enviada à OAB que vitimou Lyda
quais a Comissão pôde cumprir a atribuição legal de cidos. A CEV-Rio comprovou a responsabilidade do sumariamente executados e no caso do ex-deputado Monteiro, elucidado pela CEV-Rio. O fim da ditadu-
apresentar recomendações ao Estado. Estado em 15 casos de execução e desaparecimento Rubens Paiva, morto sob tortura no DOI-CODI e até ra não gerou reformas institucionais suficientes que
forçado de camponeses, incluindo seus nomes na lis- hoje desaparecido. permitissem a superação deste cenário de violência,
(1) O golpe de Estado de 1964 foi resultado de uma ta de mortos e desaparecidos. persistindo, no presente, o quadro de violações de
ação articulada entre setores das Forças Armadas e (5) As graves violações de direitos humanos direitos humanos.
frações das classes dominantes. (3) Os atos de violência do regime também atingiram ocorreram em estruturas oficiais do Estado, com
aqueles que não se adequavam à sua concepção moral o planejamento, autorização e conhecimento da
Durante as décadas de ditadura que se seguiram, conservadora. cúpula militar e política do regime.
houve aqueles que se beneficiaram e aqueles que fo-
ram submetidos à violência do Estado. Isto porque A ditadura identificava quaisquer formas de com- Diversas unidades militares e delegacias civis, bem
o golpe representou a tomada do Estado por setores portamento diferentes da tradição conservadora, como centros clandestinos mantidos pelas Forças
conservadores e reacionários da sociedade brasileira racista e moralista como desviantes e subversivas. Armadas, foram palco da violência ditatorial no es-
(militares, grandes grupos midiáticos, empresários Assim, o setor LGBT foi perseguido e sua luta por tado do Rio de Janeiro. A CEV-Rio fez diligências a
reunidos em torno do complexo IPES/IBAD e par- igualdade repimida. Da mesma forma, os valores várias delas, permitindo que pela primeira vez ex-
cela da Igreja) que implantaram um projeto elitista morais sobre o lugar da mulher na sociedade ma- -presos políticos adentrassem espaços como o DOPS
e antidemocrático, contrário aos interesses do país. nifestaram-se de forma mais intensa quando as e o DOI-CODI. A voz e a memória destes atingidos
militantes foram submetidas às violências sexuais são comprovação inquestionável das violações ocor-
e demais torturas que evidenciavam as diferenças ridas. A estrutura da repressão se espraiou por todo
e hierarquias de gênero embutidas nos padrões de o estado, incluindo municípios como Petrópolis,
1. BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório/Comissão Nacional da dominação masculina. Além disso, como o mito da Nova Friburgo, Barra Mansa, São Gonçalo, Niterói,
Verdade. Brasília: CNV, 2014. Volume I. pp. 962-923.

440 441
RECOMENDAÇÕES destinadas aos Poderes Executivo, Legislativo e Ju- (3) Promover a reforma das Polícias do Estado do VIII. Implementar um plano unificado de carreira, a
diciário. Englobam, em regra, atribuições do poder Rio de Janeiro ser elaborado junto com as associações dos servido-
Um dos objetivos legais da CEV-Rio é “recomendar público no âmbito do estado do Rio de Janeiro e de res da segurança pública, para garantir um salário
a adoção de medidas e políticas públicas para pre- seus municípios e, por vezes, quando pertinente, no I. Alterar o conteúdo curricular das academias po- digo a todos os policiais.
venir violação de direitos humanos” (artigo 4º, V da âmbito da União Federal. Por fim, destaca-se que a liciais e ampliar o período de formação dos agentes,
Lei 6.335/2012). As recomendações visam romper CEV-Rio endossa as 29 recomendações elencadas no priorizando a reestruturação das técnicas de treina- • Ó
rgãos e instâncias competentes: Governo do
com o que ainda resta da ditadura no arcabouço le- Relatório da Comissão Nacional da Verdade. mento (com foco em estratégias de mediação de con- Estado do Rio de Janeiro.
gislativo, nos quadros institucionais, no aparelho ju- flitos) e a elaboração de uma formação democrática
diciário e na violência cotidiana de nossa sociedade, A. Medidas e Reformas Institucionais fundamentada na garantia de direitos e na defesa (4) Desvincular o instituto de medicina legal e os
bem como afastar as constantes tentativas de esque- das liberdades; órgãos de perícia criminal da estrutura da Polícia
cimento ou de revisionismo do passado recente. (1) Fazer pedido de perdão oficial, reconhecendo a Civil e da Secretaria de Segurança Pública, a fim de
responsabilidade institucional das Forças Armadas II. Reformar o Estatuto das Polícias para garantir garantir independência e autonomia dos peritos na
A formulação das recomendações, apresentadas nes- e das forças policiais pela prática de graves viola- mais democracia interna para os servidores e aca- realização dos exames técnicos.
te capítulo, foi resultado de um amplo processo que ções de direitos humanos (prisões ilegais, torturas, bar com a rigidez hierárquica e a disciplina opresso-
reuniu movimentos sociais, militantes, ex-presos e execuções, desaparecimentos forçados e ocultações ra das corporações; • Órgãos e instâncias competentes: Governo do
perseguidos políticos, familiares, especialistas e aca- de cadáveres) perpetradas durante a ditadura. Estado do Rio de Janeiro.
dêmicos. Foram realizadas cinco Plenárias de Reco- III. Regulamentar o uso da força, tanto no que se
mendações, abertas à sociedade civil, com o objetivo • Órgãos e instâncias competentes: Exército, refere ao armamento letal quanto no caso de arma- (5) Promover a reforma do sistema prisional
de debater ações programáticas nos seguintes te- Marinha, Aeronáutica, Polícia Militar do Esta- mento menos letal, por agentes de segurança públi-
mas: abordagem da ditadura nos espaços de ensino; do do Rio de Janeiro, Polícia Civil do Estado do ca e proibir o uso de técnicas, equipamentos, armas I. Romper com a lógica do encarceramento em mas-
liberdade de expressão, liberdade de manifestação Rio de Janeiro.; Corpo de Bombeiros Militar e munições que provoquem risco injustificado; sa, aplicando penas alternativas e instituindo a jus-
e democratização dos meios de comunicação; autos do Estado do Rio de Janeiro tiça restaurativa;
de resistência; desmilitarização da Justiça; e resolu- IV. Proibir símbolos, cânticos, celebrações e expres-
ções da Corte Interamericana de Direitos Humanos (2) Responsabilizar judicialmente – no âmbito ad- sões, utilizados nas atividades policiais, que incitem II. Rejeitar quaisquer propostas tendentes à privati-
no caso Gomes Lund e outros (“Araguaia”) vs. Bra- ministrativo, cível e criminal – os agentes estatais a violência ou práticas discriminatórias; zação do sistema prisional;
sil. Também contribuíram para a construção das re- perpetradores de graves violações de direitos huma-
comendações as Comissões da Verdade municipais, nos, ocorridas durante a ditadura, afastando os dis- V. Implementar a gestão comunitária em todas as III. Implementar audiência de custódia para ga-
os sete projetos de pesquisa apoiados pela FAPERJ positivos concessivos de anistia inscritos nos artigos unidades de polícia (batalhões e delegacias), garan- rantir a apresentação pessoal do preso à autorida-
e os dez pesquisadores externos colaboradores, que da Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, e em outras tindo mecanismos de participação popular nas deci- de judiciária em até 24 horas após o ato da prisão
subsidiaram os trabalhos da CEV-Rio. disposições constitucionais e legais. Estas violações, sões que envolvam o planejamento da segurança dos em flagrante, em consonância com o artigo 7º da
por seu caráter sistemático e generalizado, são con- bairros e comunidades; Convenção Americana sobre Direitos Humanos;
As recomendações foram divididas em quatro eixos sideradas crimes contra a humanidade e, portanto,
principais: medidas e reformas institucionais; refor- não são passíveis de anistia ou prescrição. VI. Exigir a identificação obrigatória dos policiais IV. Adotar medidas que valorizem a educação e o
mas constitucionais e legislativas; políticas públicas durante exercício de suas funções (ressalvados os trabalho dentro do sistema prisional;
de memória e de educação em direitos humanos; e • Órgãos e instâncias competentes: Supremo Tri- casos excepcionais previstos na lei);
medidas de seguimento das ações e recomendações bunal Federal, Tribunais e Juízes do Estado do V. Criar ouvidorias externas como instrumentos de
da CEV-Rio. Respeitadas as competências constitu- Rio de Janeiro, Ministério Público Federal e VII. Criar ouvidoria externa e corregedoria das polí- fiscalização e controle social do sistema penitenciá-
cionais e legais, as ações e políticas propostas são Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. cias com independência funcional; rio e dos órgãos a ele relacionados;

442 443
VI. Promover a instalação de sistemas de acom- • Órgãos e instâncias competentes: Governo Fe- • Órgãos e instâncias competentes: Governo Fe- (13) Desenvolver, no âmbito estadual, uma política
panhamento (por meio de terminais eletrônicos de deral e Governo do Estado do Rio de Janeiro. deral e Governo do Estado do Rio de Janeiro. de arquivos, que abarque o recolhimento ao Arqui-
informação processual dos Tribunais de Justiça) vo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ)
no interior das unidades prisionais para garantir (7) Entregar aos ex-presos políticos, seus familiares (11) Rever a cassação dos mandatos de parlamen- e a posterior gestão, organização, descrição, pre-
acesso dos presos às informações referentes aos ou representantes e ao Ministério Público Federal tares acusados de oposição ao regime militar e rea- servação (higienização, acondicionamento, clima-
seus processos; os prontuários médicos dos militantes internados no lizar a devolução simbólica de seus mandatos como tização das áreas de depósito), digitalização e pu-
Hospital Central do Exército e em outras unidades medida de reparação. blicização dos acervos das Polícias Políticas, das
VII. Garantir assistência médica efetiva à popula- militares de saúde, no período entre 1964 e 1988. Polícias Civil e Militar estaduais, dos Institutos
ção carcerária, transferindo ao SUS a gestão da saú- • Órgãos e instâncias competentes: Congresso de Medicina Legal e de outros órgãos relacionados
de do sistema prisional; • Órgãos e instâncias competentes: Exército, Nacional, Assembleia Legislativa do Estado do à repressão exercida no período de 1946 a 1988 no
Marinha e Aeronáutica. Rio de Janeiro, Câmaras Municipais. Rio de Janeiro, garantindo recursos financeiros,
VIII. Assegurar tratamento digno às mulheres en- materiais e humanos.
carceradas, oferecendo instalações e equipamentos (8) Retificar a anotação da causa de morte nas cer- (12) Abrir os arquivos da ditadura, de modo a efeti-
que levem em consideração as especificidades de tidões de óbito de pessoas mortas em decorrência var o direito à Memória e à Verdade. • Órgãos e instâncias competentes: Governo do
gênero, garantindo condições dignas de saúde (com de graves violações de direitos humanos praticadas Estado do Rio de Janeiro.
fornecimento de materiais higiênicos e absorventes) durante a ditadura militar, em conformidade com o I. Recolher, digitalizar e tornar públicos os acervos
e de convivência familiar. disposto no artigo 3º da Lei 9.140/1995. dos órgãos componentes do Sistema Nacional de In- (14) Democratizar os meios de comunicações, es-
formações e Contra-informações (Sisni), do Sistema tabelecendo um novo Marco Regulatório das Co-
• Órgãos e instâncias competentes: Governo Fe- • Órgãos e instâncias competentes: Tribunais e de Segurança Interna (Sissegin) (em especial dos municações e implementando Conselhos de Co-
deral e Governo do Estado do Rio de Janeiro. Juízes do Estado do Rio de Janeiro e Defenso- DOI-CODI), das Forças Armadas (principalmente municação, no nível federal, estadual e local, que
ria Pública do Estado do Rio de Janeiro. CIE, CISA e CENIMAR), das Polícias Militares e assegurem o acesso aos meios de comunicação, a
(6) Estabelecer uma política de Estado permanente seus serviços secretos e dos institutos médicos le- diversidade e o pluralismo de conteúdo, a liberdade
de atendimento psicossocial às vítimas e aos fami- (9) Criar um banco de dados estadual que armaze- gais; de informação, a inclusão social e a promoção da
liares de vítimas de violência institucional do passa- ne as impressões digitais de desaparecidos políticos cultura e da educação.
do e do presente, como forma de garantir a repara- e mortos do período ditatorial para a realização de II. Fortalecer, ampliar e aperfeiçoar o Centro de Re-
ção integral. comparação papiloscópica das mesmas com as in- ferência Memórias Reveladas do Arquivo Nacional, • Órgãos e instâncias competentes: Congresso
formações constantes nas guias de reconhecimento criando uma plataforma única que permita acesso Nacional, Governo Federal, Governo do Esta-
I. Transformar o Projeto Clínicas do Testemunho, de cadáveres da época. online a versões digitais dos documentos do período do do Rio de Janeiro e Prefeituras.
desenvolvido no âmbito da Comissão de Anistia do de 1964-1985;
Ministério da Justiça, em uma política de Estado • Órgãos e instâncias competentes: Governo do (15) Combater a violência no campo no Estado do
permanente que garanta o suporte psicossocial de Estado do Rio de Janeiro. III. Nos casos de documentos destruídos, apresentar Rio de Janeiro.
ex-presos políticos e seus familiares, levando em os “Termos de Destruição”, em conformidade com o
conta os efeitos transgeracionais decorrentes da vio- (10) Cassar gratificações e honrarias concedidas a artigo 72 do Regulamento para Salvaguarda de As- I. Cumprir integralmente as diretrizes do Plano Na-
lência do Estado; agentes públicos e particulares envolvidos na práti- suntos Sigilosos (Decreto nº 79.099, de 06 de janeiro cional de Combate à Violência no Campo;
ca de graves violações de direitos humanos e afastar de 1977).
II. Promover a capacitação dos profissionais da saú- todos os servidores públicos comprovadamente en- II. Cumprir integralmente as diretrizes do II Plano
de para a realização de atendimento aos afetados volvidos nas referidas violações. • Órgãos e instâncias competentes: Governo Fe- Nacional de Combate ao Trabalho Escravo;
pela violência do Estado do passado e do presente. deral, Exército, Marinha e Aeronáutica.

444 445
III. Tornar obrigatória a oitiva do Ministério Pú- (18) Realizar a auditoria da dívida pública, no nível • Órgãos e instâncias competentes: Congresso (25) Alterar a Lei nº 9.140/95 que institui a Comis-
blico em casos de conflitos fundiários, assegurando federal e estadual, considerando que o atual ciclo Nacional. são Especial sobre Mortos e Desaparecidos para per-
o cumprimento do artigo 126, parágrafo único, da de endividamento brasileiro teve início na ditadura mitir a atualização dos dados sobre as vítimas fatais
Constituição Federal de 1988, que prevê a ida do militar (entre 1964 e 1985, a dívida pública teve um (22) Extinguir do ordenamento e da prática jurídi- da ditadura militar, incorporando entre elas setores
juiz ao local do litígio, sempre que necessário. crescimento de 3.000%, prejudicando a aplicação dos cos brasileiros a qualificação “homicídio decorrente sociais até então negligenciados ou pouco contem-
recursos públicos em áreas sociais) e que uma Co- de atividade policial” (auto de resistência) utilizada plados pelos relatórios oficiais sobre os mortos e de-
• Órgãos e instâncias competentes: Governo do missão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Congres- nos registros de ocorrência e nos inquéritos, garan- saparecidos políticos, como as pessoas em situação
Estado do Rio de Janeiro, Ministério Público so Nacional, realizada entre 2009 e 2010, identificou tindo, contudo, um controle interno da polícia judi- de rua, os presidiários, os camponeses, os operários,
estadual, Tribunais e Juízes do Estado do Rio graves indícios de ilegalidade na dívida. A audito- ciária que quantifique os casos de homicídios que os indígenas e outros grupos oprimidos por questões
de Janeiro. ria está prevista no Art. 26 do Ato das Disposições tenham policiais como suspeitos de autoria, a fim de étnicas, religiosas e de gênero.
Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constitui- produzir dados que orientem políticas de redução da
(16) Implementar, no âmbito federal, política efeti- ção Federal de 1988, mas nunca foi realizada. letalidade policial. • Órgãos e instâncias competentes: Congresso
va de reforma agrária para promover melhor distri- Nacional.
buição da terra e atender aos princípios da justiça • Órgãos e instâncias competentes: Governo Fe- • Órgãos e instâncias competentes: Congresso
social e assegurar, no âmbito estadual, a destinação deral e Governo do Estado do Rio de Janeiro. Nacional e Governo do Estado do Rio de Ja- (26) Suprimir referências discriminatórias a lés-
de recursos para incentivar a agricultura familiar, neiro. bicas, gays, bissexuais e transexuais na legislação
garantindo o direito à moradia digna e o acesso a B. Reformas Constitucionais2 e Legislativas brasileira, como aquela constante no artigo 235 do
saneamento básico nas áreas rurais. (23) Extinguir do ordenamento jurídico brasileiro o Código Penal Militar de 1969, segundo o qual confi-
(19) Desmilitarizar a polícia, promovendo a sua des- crime de desacato, em razão de sua incompatibilida- gura crime “praticar, ou permitir o militar que com
• Órgãos e instâncias competentes: Governo Fe- vinculação das Forças Armadas; de com o direito à liberdade de expressão, conforme ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não,
deral e Governo do Estado do Rio de Janeiro. já reconhecido pela normativa e jurisprudência in- em lugar sujeito à administração militar”.
• Órgãos e instâncias competentes: Congresso ternacionais.
(17) Incluir na Constituição do Estado do Rio de Ja- Nacional. • Órgãos e instâncias competentes: Congresso
neiro o reconhecimento do território, da organização • Órgãos e instâncias competentes: Congresso Nacional, Assembleia Legislativa do Estado do
social e dos costumes das populações camponesas, (20) Extinguir a Justiça Militar da União e dos Es- Nacional. Rio de Janeiro e Câmaras Municipais.
quilombolas, indígenas e demais povos e comunida- tados, determinando a competência da Justiça Co-
des tradicionais do Rio de Janeiro, devendo o Estado mum para todo e qualquer cidadão. (24) Revogar os resquícios legislativos autoritários da C. Políticas públicas de memória e de educação em
assegurar as condições para a continuidade e repro- ditadura militar que permanecem vigentes até hoje, direitos humanos
dução de sua prática cultural, social e econômica • Órgãos e instâncias competentes: Congresso como a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170 de 14 de
tradicional, bem como a consulta prévia, informada Nacional. dezembro de 1983), o Código Penal Militar (Decreto- (27) Criar Espaços de Memória e memoriais em lo-
e participativa quando da adoção de medidas legis- -lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969) e o Código cais que serviram, no período da ditadura militar,
lativas ou administrativas que possam afetá-los di- (21) Tipificar, no ordenamento jurídico brasileiro, o Processual Penal Militar (Decreto-lei nº 1.002, de 21 como centro de prisão, tortura e morte no estado do
retamente (conforme a Convenção 169 da Organiza- crime de desaparecimento forçado de pessoas, em de outubro de 1969), a fim de que sejam substituídos Rio de Janeiro, levando em consideração a diversi-
ção Internacional do Trabalho). conformidade com os preceitos do Direito Interna- por legislação adequada à nova ordem constitucional dade social, racial, de gênero e dos segmentos LGBT.
cional dos Direitos Humanos. e compatível com o Estado Democrático de Direito.
• Órgãos e instâncias competentes: Governo do I. Destinar, por meio de lei específica, orçamento pú-
Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legisla- 2. Destaca-se que, em casos de reformas constitucionais, apesar da compe-
• Órgãos e instâncias competentes: Congresso blico para o processo de construção, implementação
tiva do Estado do Rio de Janeiro. tência ser do Congresso Nacional, o Governador do Estado do Rio de Janeiro Nacional. e manutenção de um Centro de Memória sobre a vio-
pode apresentar Propostas de Emenda Constitucional.

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lência de Estado, a resistência e os direitos humanos • Órgãos e instâncias competentes: Governo do • Ó
rgãos e instâncias competentes: Governo do Didático (PNLD), visando ampliar o debate sobre
no edifício sede do antigo DOPS/GB, garantindo um Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legisla- Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legisla- o golpe de 1964, a ditadura militar e o seu legado,
regime compartilhado de gestão. tiva do Estado do Rio de Janeiro, Prefeituras e tiva do Estado do Rio de Janeiro, Prefeituras e levando em consideração as violações de direitos
Câmaras Municipais. Câmaras Municipais. humanos cometidas pelo Estado brasileiro e a mul-
II. Garantir a conclusão da desapropriação do imó- tiplicidade de indivíduos e grupos sociais atingidos
vel onde funcionou o centro clandestino de prisão, (29) Revogar o dispositivo da lei ordinária munici- (32) Reformular os Currículos Mínimos e as orien- pela repressão.
tortura e morte, conhecido como Casa da Morte de pal nº4.762/2008 que impede a mudança da deno- tações curriculares municipais, a fim de garantir a
Petrópolis, para a criação de um centro de memó- minação de logradouros, cujos nomes tenham sido inclusão do debate sobre a ditadura militar e seu • Ó
rgãos e instâncias competentes: Governo Fe-
ria no local; oficialmente reconhecidos por um período de tempo legado nas redes estadual e municipal de ensino do deral.
superior a 20 anos, posto que tal determinação legal Rio de Janeiro.
III. Criar espaços de memória em diferentes muni- permite a perpetuação de homenagens a torturado- (36) Promover cursos de formação inicial e continu-
cípios do Estado, como, por exemplo, no prédio do res do regime militar. • Órgãos e instâncias competentes: Governo do ada sobre a história e a memória do passado recente
1º Batalhão de Infantaria Blindada do Exército, em Estado do Rio de Janeiro, Prefeituras e Câma- brasileiro para os professores das redes estadual e
Barra Mansa. • Órgãos e instâncias competentes: Assembleia ras Municipais. municipais de ensino, a fim de fomentar o debate
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. sobre a temática nas salas de aula e possibilitar a
IV. Construir memoriais para preservar a história (33) Divulgar o Relatório da CEV-Rio nas escolas produção de conhecimento no âmbito da educação
de luta dos militantes presos, torturados e mortos (30) Sinalizar, por meio de placas com material de das redes estadual e municipais de ensino, bem em direitos humanos.
pela ditadura, no DOI-CODI (Rio de Janeiro), no Gi- alta durabilidade, lugares que evoquem a memória como nas bibliotecas públicas do Estado.
násio Caio Martins (Niterói), no Ginásio Ypiranga da resistência ou da repressão exercida nos anos da • Órgãos e instâncias competentes: Governo do
Futebol Clube (Macaé), na Base Naval da Ilha das ditadura militar, apontando, por exemplo, ruas em • Órgãos e instâncias competentes: Governo do Estado do Rio de Janeiro e Prefeituras.
Flores (Niterói) e na antiga sede do Supremo Tribu- que militantes foram sequestrados e mortos, bem Estado do Rio de Janeiro e Prefeituras.
nal Militar (Rio de Janeiro), entre outros locais. como espaços onde foram realizados manifestações D. Medidas de seguimento das ações e recomendações
políticas e artísticas. (34) Criar uma linha de financiamento no âmbito da da CEV-Rio
• Órgãos e instâncias competentes: Governo do Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesqui-
Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legisla- • Órgãos e instâncias competentes: Governo do sa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) com edi- (37) Criar um órgão permanente, interinstitucional,
tiva do Estado do Rio de Janeiro, Prefeituras, Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legisla- tais periódicos específicos para apoio a pesquisas na multidisciplinar e aberto à sociedade civil, com atri-
Câmaras Municipais. tiva do Estado do Rio de Janeiro, Prefeituras e área de Direitos Humanos e Justiça de Transição, a buição de dar seguimento às ações e recomendações
Câmaras Municipais. exemplo do edital FAPERJ N° 38/2013, criado para da CEV-Rio, especialmente no que se refere às in-
(28) Mapear e alterar a denominação de logradou- subsidiar os trabalhos da CEV-Rio, com a garantia vestigações das graves violações de direitos huma-
ros (ruas, pontes, viadutos e praças) e instituições (31) Instituir o dia 28 de março – dia da morte do do oferecimento de bolsas de pesquisa e flexibilidade nos e a formulação e implementação de políticas de
públicas estaduais e municipais (escolas, hospitais e estudante secundarista Edson Luís no ano de 1968 de rubricas, de forma a atender às especificidades memória e de reparação.
outros prédios públicos) que homenageiam agentes – como data simbólica para a realização de ativida- das áreas de ciências humanas e sociais.
estatais ou privados vinculados à prática de graves des voltadas para a promoção da democracia e dos • Órgãos e instâncias competentes: Governo
violações de direitos humanos, garantindo a parti- direitos humanos nas redes estadual e municipais • Ó
rgãos e instâncias competentes: Governo do do Estado do Rio de Janeiro e Assembleia
cipação e deliberação da população local, bem como de ensino do Rio de Janeiro, fomentando o debate Estado do Rio de Janeiro. Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.
um processo de renomeação que leve em considera- sobre a repressão contra os estudantes e as formas
ção expressões de diversidade cultural, racial, social de resistência criadas pelos jovens durante o perí- (35) Reformular os critérios de avaliação de livros
e de gênero. odo ditatorial. didáticos estabelecidos pelo Plano Nacional do Livro

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(38) Promover a alteração do texto da Lei estadual • Órgãos e instâncias competentes: Governo do
nº 3.744/2001 que instituiu a Comissão Especial de Estado do Rio de Janeiro e Assembleia Legis-
Reparação do Estado do Rio de Janeiro. lativa do Estado do Rio de Janeiro.

I. Reabrir o prazo para a apresentação de novos pe-


didos de reparação econômica simbólica;

II. Permitir a reparação moral e material, individu-


al e coletiva (quando pertinente) de setores sociais
até então negligenciados ou pouco contemplados
pela Justiça de Transição, como os camponeses, os
indígenas e outros grupos oprimidos por questões
étnicas, religiosas e de gênero.

• Órgãos e instâncias competentes: Governo do


Estado do Rio de Janeiro, Assembleia Legisla-
tiva do Estado do Rio de Janeiro.

(39) Apoiar a instituição e funcionamento de ór-


gãos de proteção e promoção de direitos humanos,
dotados de orçamento próprio, estrutura mate-
rial e recursos humanos suficientes para exerce-
rem, em âmbito nacional e estadual, a concepção,
implementação, desenvolvimento e acompanha-
mento de políticas de direitos humanos, no âmbito
da Justiça de Transição, com vistas a consolidar a
democracia no Brasil.

• Órgãos e instâncias competentes: Governo Fede-


ral, Governo do Estado do Rio de Janeiro e As-
sembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

(40) Instaurar uma Comissão da Verdade, em âm-


bito estadual, que investigue as graves violações de
direitos humanos praticadas na democracia, rela-
cionando a violência institucional do presente com
nosso passado ditatorial.

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