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v.10.

03

sociologia & antropologia

setembro – dezembro 2020
issn 2238-3875
Sociologia & Antropologia destina-se à UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
apresentação, circulação e discussão Reitora
Denise Pires de Carvalho
de pesquisas originais que contribuam
Vice-Reitor
para o conhecimento dos processos
Carlos Frederico Leão Rocha
socioculturais nos contextos
brasileiro e mundial. A revista está INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
aberta à colaboração de especialistas Diretora
Susana de Castro Amaral Vieira
de universidades e instituições de
pesquisa, e publicará trabalhos PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA
inéditos em português, inglês e espanhol.
Coordenação
Sociologia & Antropologia ambiciona
Felícia Picanço
constituir-se em um instrumento de Rodrigo Santos
interpelação consistente do debate
contemporâneo das ciências sociais
e, assim, contribuir para o seu
desenvolvimento.

S678 Sociologia & Antropologia.


Sociologia & Antropologia. Revista do Programa de Revista do PPGSA
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Programa de Pós-Graduação em
Universidade Federal do Rio de Janeiro. –  v. 10, n.3 Sociologia e Antropologia
(set.– dez. 2020) – Rio de Janeiro: PPGSA, 2011– Largo de São Francisco de Paula 1 sala 420
Quadrimestral 20051-070 Rio de Janeiro RJ
t.+55 (21) 2224 8965 ramal 215
ISSN 2238-3875
revistappgsa@gmail.com
1. Ciências sociais – Periódicos. 2. Sociologia – sociologiaeantropologia.com.br
Periódicos. 3. Antropologia – Periódicos. I. revistappgsa.ifcs.ufrj.br
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. Publicação quadrimestral
Triannual publication
CDD 300 Solicita-se permuta
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Researching Brazil
volume 10 número 3
setembro–dezembro de 2020
quadrimestral
issn 2238-3875

sociologia & antropologia

ppgsa programa de pós-graduação em sociologia e antropologia


ufrj universidade federal do rio de janeiro, brasil
CORPO EDITORIAL Jeffrey C. Alexander
Editores (Yale University, New Haven, CT, United States)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil) João de Pina Cabral (University of Kent, United Kingdom)
Antonio Brasil Jr. (Editor Responsável) José Sergio Leite Lopes
Marco Antonio Gonçalves (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
José Maurício Domingues
Comissão Editorial
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro/IESP, Brasil)
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
José Vicente Tavares dos Santos
André Botelho
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil)
Elina Pessanha
Josefa Salete Barbosa Cavalcanti
Glaucia Villas Bôas
(Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil)
Maria Laura Cavalcanti
Leonilde Servolo de Medeiros
José Reginaldo Santos Gonçalves
(Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, Brasil)
José Ricardo Ramalho
Lilia Moritz Schwarcz
Editor Associado (Universidade de São Paulo, Brasil e Princeton University, New
Maurício Hoelz (UFRRJ) Jersey, United States)
Assistentes Editoriais Manuela Carneiro da Cunha
Julia O'Donnell (University of Chicago, Illinois, United States)
Rodrigo Santos Mariza Peirano
(Universidade de Brasília, Distrito Federal, Brasil)
Staff
Maurizio Bach
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
(Universität Passau, Bavaria, Germany)
Júlia Kovac
Michèle Lamont
Tayná Mendes
(Harvard University, Cambridge, Massachusetts, United States)
Francisco Kerche
Patrícia Birman
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)
Conselho Editorial
Peter Fry
Alain Quemin
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
(Université Paris 8, Saint-Denis, France)
Philippe Descola
Anete Ivo
(Collège de France, Paris, France)
(Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil)
Renan Springer de Freitas
Brasilio Sallum Junior
(Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil)
(Universidade de São Paulo, Brasil)
Ruben George Oliven
Carlo Severi
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil)
(École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, France)
Sergio Adorno (Universidade de São Paulo, Brasil)
Charles Pessanha
(Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Cristiana Bastos
(Universidade de Lisboa, Portugal)
PRODUÇÃO EDITORIAL
Edna Maria Ramos de Castro
Projeto gráfico, capa e diagramação
(Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil)
a+a design e produção Glória Afflalo
Elide Rugai Bastos
Preparação e revisão de textos
(Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil)
Maria Helena Torres
Ernesto Renan Freitas Pinto
(Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Brasil)
Gabriel Cohn
(Universidade de São Paulo, Brasil) © Programa de Pós-Graduação em
Guenther Roth Sociologia e Antropologia / UFRJ
(Columbia University, New York, United States) Direitos autorais reservados: a reprodução integral de artigos
Helena Sumiko Hirata é permitida apenas com autorização específica; citação
(Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, France) parcial será permitida com referência completa à fonte.
Heloísa Maria Murgel Starling
(Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil)
Apoio
Huw Beynon
(Cardiff University, Wales, United Kingdom)
Jeffrey C. Alexander
(Yale University, Connecticut, United States)
Irlys Barreira
(Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, Brasil)
Os editores (PPGSA/UFRJ)

APRESENTAÇÃO

Este número 3 de Sociologia & Antropologia fecha um ano cheio de desafios pes-
soais e institucionais trazidos pela emergência sanitária causada pela Covid-19.
Os efeitos dessa doença, de espalhamento rápido e alta letalidade no Brasil e
na cidade do Rio de Janeiro, afetaram direta ou indiretamente autores, editores
e colaboradores da revista, tornado o próprio processo de editoração uma ver-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 759 – 761, set. – dez., 2020

dadeira façanha. Aproveitamos este espaço para agradecer profundamente a


toda a equipe de S&A a dedicação ímpar ao nosso projeto em circunstâncias
tão excepcionais.
Mesmo diante de tantas limitações, S&A também entende que a atual
crise sanitária, cujo desfecho parece finalmente se colocar no horizonte, graças
ao processo de vacinação que se iniciará em 2021, suscitou problemas inéditos
para as ciências sociais. Por essa razão, estamos editando simultaneamente
um número especial, que sairá no começo do próximo ano, dedicado ao enten-
dimento, por meio dos recursos cognitivos da sociologia e da antropologia, dos
efeitos sociais, culturais e políticos da pandemia da Covid-19 no Brasil e no
mundo, reunindo especialistas de diferentes áreas.
Abrimos a presente edição com uma série de textos dedicados à obra e
à recepção brasileira do antropólogo inglês Daniel Miller, nome de referência
nos estudos sobre consumo, objetos, materialidades e ambientes digitais. Mo-
nica Machado e Ana Carolina Balthazar realizaram entrevista inédita com Mil-
ler, que discorreu sobre sua trajetória e principais contribuições teóricas e em-
píricas; a entrevista é acompanhada por um artigo original produzido especial-
apresentação | os editores

760

mente pelas duas autoras para este número, que analisa a recepção da obra de
Miller no Brasil, bem como realiza uma apresentação geral dos demais textos
aqui publicados sobre o antropólogo londrino. Em nome do corpo editorial de
S&A, agradecemos imensamente o trabalho primoroso de organização e prepa-
ração deste número especial sobre Daniel Miller feito por Monica Machado e
Ana Carolina Balthazar, que incluiu o convite aos autores e o contato com o
próprio Miller, com quem ambas trabalharam diretamente.
O conjunto de textos dedicados à obra de Daniel Miller, editorialmente
organizado em parceria com Machado e Balthazar, é composto pelos seguintes
artigos: “The digital Dasein of Chinese rural migrants”, de Xinyuan Wang, uma
etnografia com migrantes rurais na China que analisa os efeitos das mídias
sociais na existência desses trabalhadores; “Nem o céu é o limite: sentidos do
consumo e dinâmicas de mobilidade social no perfil @blogueiradebaixarenda
no Instagram e Youtube”, de Carla Barros, que discute as percepções sobre
materialidade e suas articulações com os processos de mobilidade social por
meio de análise de um perfil em plataformas de mídia social; “Diálogos com
Daniel Miller no campo da comunicação: reflexões a partir das pesquisas do
GP Consumo e Culturas Digitais”, de Sandra Rúbia da Silva e Alisson Machado,
apresenta um balanço da produção filiada à linhagem etnográfica de Miller nos
estudos de comunicação, em particular de um grupo de pesquisa dedicado à
análise do consumo e das culturas digitais; e, por fim, “As pessoas, as coisas e
as perdas: perspectivas da cultura material e do consumo nos estudos de Daniel
Miller”, de Cláudia Pereira e Fernanda Martinelli, apoiado na abordagem etno-
gráfica de Miller – que destaca a relação dialética entre pessoas e coisas –,
propõe uma reflexão sobre as situações de luto e sobre as formas culturais
associadas à morte de pessoas e à perda de materialidades. Esse conjunto de
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 759 – 761, set. – dez., 2020

artigos também é acompanhado por três registros de pesquisa, que visam re-
fletir sobre a importância de Miller nas experiências concretas de investigação.
Mylene Mizrahi, em “O que a ‘humildade dos objetos’ pode nos dizer sobre a
beleza no Rio de Janeiro: notas sobre uma trajetória de pesquisa”, discorre
sobre os usos do referencial analítico do antropólogo inglês para pensar o funk
carioca, sua estética e materialidades; Juliano Spyer, em “As escolhas metodo-
lógicas para produzir pesquisas colaborativas e comparativas: o caso “Por Que
Postamos”, apresenta os bastidores metodológicos de uma grande pesquisa
comparativa global liderada pelo próprio Miller; já Livia Barbosa, em “Daniel
Miller e os estudos de consumo no Brasil”, discute o conceito de cultura mate-
rial de Miller e algumas vias de sua recepção nos estudos locais de antropolo-
gia e consumo.
O número integra ainda mais seis artigos e um registro de pesquisa, todos
voltados para o desenvolvimento inovador de temas consolidados ou emergen-
tes das ciências sociais. Dimitri Pinheiro, em “Anos rebeldes e a abertura da tele-
ficção”, discute os significados culturais, sociais e políticos de uma minissérie
761

televisiva sobre o regime militar no contexto do movimento pelo impeachment


de Fernando Collor, assinalando a relevância da teledramaturgia para a análise
da sociedade brasileira. Renan Martins Pereira, em “Velejar e descobrir: conside-
rações sobre vaqueiros, corpos e lembranças”, realiza pesquisa etnográfica com
vaqueiros do sertão de Pernambuco a fim de investigar a produção do prestígio
e da memória a partir de suas relações com o corpo, os animais e o território.
Bernardo Fonseca Machado, em “Social experience and US musical theatre on
São Paulo’s stages”, discorre sobre as dinâmicas econômicas, sociais e culturais
associadas à produção de musicais da Broadway em São Paulo, que conheceram
forte incremento nos últimos anos. Carla Semedo, em “‘Somos descendentes’!
Contranarrativas e agenciamentos musicais dos coletivos de tchabeta na roça
Agostinho Neto (São Tomé e Príncipe)”, analisa a experiência migratória e de
“reterritorialização” de cabo-verdianos no arquipélago santomense por meio das
práticas de coletivos musicais. Cynthia Lins Hamlin, em “Gender ideology: an
analysis of its disputed meanings”, destaca a pluralidade de sentidos dos estu-
dos acadêmicos sobre “ideologia de gênero”, propondo uma incursão pela his-
tória das ideias, com foco no trabalho da socióloga Viola Klein. Para completar,
“Rastros da violência: a testemunha”, de Cynthia Sarti, tomando como ponto de
partida uma pesquisa sobre a memória da ditadura militar brasileira, investiga
os sentidos associados à figura da testemunha, que transcendem os quadros da
vítima e da violência. E, por fim, como registro de pesquisa, por meio do diálogo
com autores contemporâneos, Maria Claudia Pereira Coelho e Eduardo Moura
Pereira Oliveira discutem, em “Reflexões sobre o tempo e as emoções na antro-
pologia: definições, práticas e políticas" as dimensões sociais e políticas ligadas
às vivências subjetivas da passagem temporal.
Completam nossa última edição de 2020 duas resenhas: Iafet Bricalli
apresenta o livro The culture of surveillance: watching as a way of life, de David
Lyon; e Michael Cepek apresenta The owners of kinship: asymmetrical relations in
Indigenous Amazonia, de Luiz Costa.
Uma boa leitura e, na esperança da vacina e do começo do fim da crise
sanitária da Covid-19, um feliz 2021.
Os editores
The editors (PPGSA/UFRJ)

PRESENTATION

This third issue of Sociologia & Antropologia closes a year full of personal and
institutional challenges posed by the Covid-19 health emergency. The effects of
the disease, its rapid spread and the high levels of mortality in Brazil, including
Rio de Janeiro, have directly or indirectly affected the authors, editors, and col-
laborators of the journal, making the editing process itself a true feat. We take
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 763 – 765, sep. – dec., 2020

this opportunity to express our profound gratitude to the entire S&A team for
their unparalleled dedication to our project in such exceptional circumstances.
Even with these limitations, S&A also realizes that the current health
crisis – the end of which finally seems to be on the horizon thanks to the vac-
cination process due to begin in 2021 – has provoked some unique problems
for the social sciences. For this reason, we are editing a special issue simulta-
neously, due to be published at the beginning of the new year, dedicated to
understanding, through the cognitive resources of sociology and anthropology,
the cultural, social and political effects of the Covid-19 pandemic in Brazil and
worldwide, uniting specialists from diverse areas.
We open the present issue with a series of texts dedicated to the work
and Brazilian reception of the English anthropologist Daniel Miller, a leading
name in studies of consumption, objects, materialities and digital environments.
Monica Machado and Ana Carolina Balthazar publish a new interview with
Miller, discussing his career and his main theoretical and empirical contribu-
tions. This interview is accompanied by an original article written by the two
authors specially for this issue, containing reflections and information on the
presentation | the editors

764

reception of Miller’s work in Brazil, as well as an overview of the other books


by the London anthropologist published in the country. On behalf of the edito-
rial board of S&A, we greatly appreciate the brilliant work of organizing and
preparing this special issue on Daniel Miller by Monica Machado and Ana Car-
olina Balthazar, which included the invitation to the authors and contact with
Miller himself, with whom both worked directly.
The set of texts dedicated to Daniel Miller’s work, editorially organized
in partnership with Machado and Balthazar, comprises the following articles:
“The digital Dasein of Chinese rural migrants,” by Xinyuan Wang, an ethnography
with Chinese rural migrants that analyses the effects of social media on the
existence of these workers; “Not even the sky is the limit: the meanings of
consumption and the dynamics of social mobility on the @blogueiradebaix-
arenda profile on Instagram and YouTube,” by Carla Barros, who discusses per-
ceptions of materiality and their articulations with processes of social mobil-
ity through an analysis of a profile on multiple social media platforms; “Dia-
logues with Daniel Miller in the communication field: reflections from the re-
search of consumption and digital cultures research group” by Sandra Rúbia da
Silva and Alisson Machado presents a survey of the literature linked to Miller’s
ethnographic approach in studies of communication, in particular works by a
research group dedicated to the analysis of consumption and digital cultures;
and finally “Persons, things and losses: perspectives of material culture and
consumption in the studies of Daniel Miller,” by Cláudia Pereira and Fernanda
Martinelli, based on Miller’s ethnographic approach – which highlights the
dialectical relationship between persons and things – reflects on situations of
mourning and cultural forms associated with the death of people and the loss
of materialities. This set of articles is also accompanied by three research re-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 763 – 765, sep. – dec., 2020

cords, which reflect on Miller’s importance in concrete experiences of investi-


gation. Mylene Mizrahi, in “What the ‘humility of objects’ can tell us about
beauty in Rio de Janeiro: notes on a research trajectory,” describes the uses of
the English anthropologist’s analytic framework to think about Rio funk, its
aesthetics and materialities; Juliano Spyer, in “Methodological choices to pro-
duce collaborative and comparative research: the case of Why We Post,” presents
the methodological background to a major global comparative study led by
Miller himself; while Livia Barbosa, in “Daniel Miller and studies of consump-
tion in Brazil,” discusses Miller’s concept of material culture and some avenues
of its reception in local anthropological studies of consumption.
The issue also includes another six articles and a research record, all
focused on the innovative development of consolidated or emergent themes
in the social sciences. Dimitri Pinheiro, in “Anos rebeldes and the opening of the
TV serial drama,” discusses the cultural, social, and political meanings of a TV
miniseries on the military regime during the movement to impeach Fernando
Collor, highlighting the relevance of TV dramas for the analysis of Brazilian
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society. Renan Martins Pereira, in “Sailing and discovering: considerations about


cowboys, bodies and memories,” presents ethnographic research with cowboys
from the Pernambuco sertão (backlands) investigating the production of prestige
and memory, based on their relations with the body, animals and the territory.
Bernardo Fonseca Machado, in “Social experience and US musical theatre on
São Paulo's stages,” discusses the economic, social, and cultural dynamics as-
sociated with the production of Broadway musicals in São Paulo, which have
seen a strong upsurge in recent years. Carla Semedo, in “‘We are descendants’!
Contranarratives and musical agencies of the collectives of tchabeta in Roça
Agostinho Neto (São Tomé and Príncipe)," analyses the migratory experience
and “reterritorialization” of Cape Verdeans in the Santomean archipelago
through the practices of musical collectives. Cynthia Lins Hamlin, in “Gender
ideology: an analysis of its disputed meanings,” emphasizes the plurality of
meanings found in academic studies of “gender ideology,” proposing an incur-
sion through the history of ideas, focused on the work of the sociologist Viola
Klein. Finally, “Traces of violence: the witness,” by Cynthia Sarti, takes as a
starting point a study of the memory of Brazil’s military dictatorship in order
to investigate the meanings associated by the figure of the witness, which
transcend the frames of victims and violence. The issue also contains another
research record, “Reflections on time and emotions in Anthropology: definitions,
practices and policies,” in which Maria Claudia Pereira Coelho and Eduardo
Moura Pereira Oliveira, through a dialogue with contemporary authors, discuss
the social and political dimensions linked to subjective experiences of the pass-
ing of time.
Our final issue of 2020 is completed by two reviews: Iafet Bricalli presents
the book The culture of surveillance: watching as a way of life, by David Lyon, while
Michael Cepek reviews The owners of kinship: asymmetrical relations in Indigenous
Amazonia, by Luiz Costa.
Good reading and, in the anticipation of a vaccine and the beginning of
the end of the Covid-19 health crisis, a happy 2021.
The editors
sociologia & antropologia

volume 10 número 3
septembro-dezembro 2020
quadrimestral
issn 2238-3875

ENTREVISTA 773 MATERIAL CULTURE AND MASS CONSUMPTION: THE IMPACT OF


DANIEL MILLER’S WORK IN BRAZIL
Ana Carolina Balthazar e Monica Machado

ARTIGOS 807 THE DIGITAL DASEIN OF CHINESE RURAL MIGRANTS


Xinyuan Wang

831 NOT EVEN THE SKY IS THE LIMIT: THE MEANINGS OF


CONSUMPTION AND THE DYNAMICS OF SOCIAL MOBILITY
ON THE @blogueiradebaixarenda PROFILE ON INSTAGRAM
AND YOUTUBE
Carla Barros

861 DIÁLOGOS COM DANIEL MILLER NO CAMPO DA COMUNICAÇÃO:


REFLEXÕES A PARTIR DAS PESQUISAS DO GP CONSUMO E
CULTURAS DIGITAIS
Sandra Rúbia da Silva e Alisson Machado

887 AS PESSOAS, AS COISAS E AS PERDAS: PERSPECTIVAS DA


CULTURA MATERIAL E DO CONSUMO NOS ESTUDOS DE DANIEL
MILLER
Cláudia Pereira e Fernanda Martinelli

907 ANOS REBELDES E A ABERTURA DA TELEFICÇÃO


Dimitri Pinheiro

931 VELEJAR E DESCOBRIR: CONSIDERAÇÕES SOBRE VAQUEIROS,
CORPOS E LEMBRANÇAS
Renan Martins Pereira
957 SOCIAL EXPERIENCE AND US MUSICAL THEATRE ON SÃO
PAULO’S STAGES
Bernardo Fonseca Machado

981 “SOMOS DESCENDENTES!” − CONTRANARRATIVAS E


AGENCIAMENTOS MUSICAIS DOS COLETIVOS DE TCHABETA
NA ROÇA AGOSTINHO NETO (SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE)
Carla Indira Carvalho Semedo

1001 GENDER IDEOLOGY: AN ANALYSIS OF ITS DISPUTED


MEANINGS
Cynthia Lins Hamlin

1023 RASTROS DA VIOLÊNCIA: A TESTEMUNHA


Cynthia Sarti

REGISTROS DE PESQUISA 1045 O QUE A “HUMILDADE DOS OBJETOS” PODE NOS DIZER
SOBRE A BELEZA NO RIO DE JANEIRO: NOTAS SOBRE UMA
TRAJETÓRIA DE PESQUISA
Mylene Mizrahi

1057 AS ESCOLHAS METODOLÓGICAS PARA PRODUZIR


PESQUISAS COLABORATIVAS E COMPARATIVAS: O CASO DO
“POR QUE POSTAMOS”
Juliano Spyer

1071 DANIEL MILLER E OS ESTUDOS DE CONSUMO NO BRASIL


Livia Barbosa

1087 REFLEXÕES SOBRE O TEMPO E AS EMOÇÕES NA


ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÕES, PRÁTICAS E POLÍTICAS
Maria Claudia Pereira Coelho e Eduardo Moura Pereira Oliveira

RESENHAS 1103 A VIGILÂNCIA COMO CULTURA


The culture of surveillance: watching as a way of life. (2018). David
Lyon. Cambridge: Polity Press, 172p.
Iafet Leonardi Bricalli

1109 FEEDING AND OWNING IN AMAZONIA


The The owners of kinship: asymmetrical relations in Indigenous
Amazonia. (2017). Luiz Costa. Chicago: HAU Books. 304p.
Michael L. Cepek
sociologia & antropologia

volume 10 number 3
september-december 2020
triannual
issn 2238-3875

INTERVIEW 773 MATERIAL CULTURE AND MASS CONSUMPTION: THE IMPACT OF


DANIEL MILLER’S WORK IN BRAZIL
Ana Carolina Balthazar e Monica Machado

ARTICLES 807 The digital Dasein of Chinese Rural Migrants


Xinyuan Wang

831 Not even the sky is the limit: the meanings of


consumption and the dynamics of social mobility
on the @blogueiradebaixarenda profile on Instagram
and YouTube
Carla Barros

861 DIALOGUES WITH DANIEL MILLER IN THE COMMUNICATION


FIELD: REFLECTIONS FROM THE RESEARCH OF CONSUMPTION
AND DIGITAL CULTURES RESEARCH GROUP
Sandra Rúbia da Silva and Alisson Machado

887 PEOPLE, THINGS AND LOSSES: PERSPECTIVES OF MATERIAL


CULTURE AND CONSUMPTION IN DANIEL MILLER’S STUDIES
Cláudia Pereira and Fernanda Martinelli

907 ANOS REBELDES AND AND THE OPENING OF THE TV


SERIAL DRAMA
Dimitri Pinheiro

931 SAILING AND DISCOVERING: CONSIDERATIONS ABOUT
COWBOYS, BODIES AND MEMORIES
Renan Martins Pereira
957 SOCIAL EXPERIENCE AND US MUSICAL THEATRE ON SÃO
PAULO’S STAGES
Bernardo Fonseca Machado

981 “WE ARE DESCENDANTS!” CONTRANARRATIVES AND


MUSICAL AGENCIES OF THE COLLECTIVES OF TCHABETA
IN ROÇA AGOSTINHO NETO (SÃO TOMÉ AND PRÍNCIPE)
Carla Indira Carvalho Semedo

1001 GENDER IDEOLOGY: AN ANALYSIS OF ITS DISPUTED MEANINGS


Cynthia Lins Hamlin

1023 TRACES OF VIOLENCE: THE WITNESS


Cynthia Sarti

Research RECORDS 1045 WHAT THE “HUMILITY OF OBJECTS” CAN TELL


US ABOUT BEAUTY IN RIO DE JANEIRO: NOTES ON
A RESEARCH TRAJECTORY
Mylene Mizrahi

1057 METHODOLOGICAL CHOICES TO PRODUCE


COLLABORATIVE AND COMPARATIVE RESEARCH:
THE CASE OF “WHY WE POST”
Juliano Spyer

1071 DANIEL MILLER AND STUDIES OF CONSUMPTION IN BRAZIL


Livia Barbosa

1087 REFLECTIONS ON TIME AND EMOTIONS IN ANTHROPOLOGY:


DEFINITIONS, PRACTICES AND POLICIES
Maria Claudia Pereira Coelho and Eduardo Moura Pereira Oliveira

REVIEWS 1103 SURVEILLANCE AS CULTURE


The culture of surveillance: watching as a way of life. (2018). David Lyon.
Cambridge: Polity Press, 172p.
Iafet Leonardi Bricalli

1109 FEEDING AND OWNING IN AMAZONIA


The owners of kinship: asymmetrical relations in Indigenous Amazonia.
(2017). Luiz Costa. Chicago: HAU Books. 304p.
Michael L. Cepek
ENTREVISTA
http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752020v1031

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),


Programa Nacional de Pós-doutorado/Capes, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
carolbalt@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-3462-3356

11 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Programa de


Ana Carolina Balthazar l
Pós-Graduação Eicos – IP e Escola de Comunicação, Capes/Print,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Monica Machado ll
monica.machado@eco.ufrj.br
https://orcid.org/0000-0002-2558-5426

Material Culture and Mass Consumption:


the impact of Daniel Miller’s work in Brazil

This special issue reflects on the impact of the work of the English anthro-
pologist Daniel Miller, trained in archaeology and anthropology at Cambridge
University in the United Kingdom, on diverse research fields of the social sci-
ences in Brazil. In this introduction we present an interpretation of the argu-
ments set out in the book Material culture and mass consumption, first published
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

in 1987, a fundamental work for comprehending the theoretical framework


proposed by Miller, never translated into Portuguese. Additionally, we also offer
a critical reflection on the continuing relevance of this theory about consump-
tion for debates in the social sciences today. We also present an interview with
Miller in which we were able to discuss some of our impressions concerning
his career and writings. In the articles that follow in this special issue, different
authors were invited to discuss the relevance of Miller’s work for their own
theoretical production. Finally, in the section Research Records, Brazilian re-
searchers who worked directly with Miller provide a brief account of their ex-
perience.

A review of the book Material Culture and Mass Consumption


In the book, Miller undertakes a review of the concept of objectification, ini-
tially formulated by G. W. Hegel (1977). According to Miller, the concept refers
to the way in which subjects and objects are mutually constituted. It is only
when subjects externalize aspects of themselves in objects – that is, when they
differentiate themselves into an “other” – that they become aware of their own
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

774

being. Next, since the externalized object itself possesses aspects of the subject,
the latter reidentifies with the object, seeing themselves in the object like a
mirror. It is in this play of differentiation and identification that subject and
object are reciprocally constituted. In this sense, the existence of a subject
depends on the process of continual externalization and reincorporation of the
object. “Object” here is used in the conceptual sense as any other body not part
of the subject. Thus, people at some level depend on the materialities external-
ized in the world to constitute themselves as persons.
In his work, Miller also considers the centrality of the historical axis for
Hegelian theory. Over the historical process, the dynamics of externalization
and identification are seen to advance progressively until attaining an absolute
knowledge of existence. According to Miller, it is important we consider the
way in which the externalization of the subject in an object and its sublimation
is constitutive of the subject, not just representative. It is in the act of forging
the object that the subject constructs her or himself. This is how Miller traces
his own understanding of the concept of culture. Culture is, for him, the out-
come of this continuous historical process of the dialectical relation between
subjects and objects.
It is on these grounds that Miller proceeds to interpret the arguments
of Karl Marx (1975) concerning the impact of capitalist industrial production
on the subject’s alienation. The process of industrial production forces the
subject to externalize objects at an accelerated pace. As each subject performs
a minimal function in this large-scale production of objects, the final item pos-
sesses very little of the subject who helped to create it. According to Marx, the
subject becomes alienated, therefore, distanced and abstracted from her or his
own work, and the process of self-realization is rendered impossible. Inspired
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

by Georg Simmel (1978), Miller argues, however, that by nature there exists a
contradictory condition in the subject/object relation beyond the industrial
dynamic. The subject needs to externalize part of her or himself to give rise to
the object: in other words, the distancing between subject and object is funda-
mental. In this sense, the problem of the industrial system is not alienation
per se, but the way in which at certain times the social dynamic has made it
impossible for the materialized object to be subsequently reincorporated by
the subject. In this sense, Marx’s theory did not contemplate the centrality of
consumer relations for the Hegelian process of objectification, consumption
allowing for the re-incorporation of the alienated object. Miller argues for the
relevance of analysing consumer practices to comprehend the contemporary
subject – and the construction of her or his subjectivity.
Given the centrality of objects for the constitution of the subject, Miller
goes on to advocate the importance of research methods that not only include
social relations, but also focus on the role performed by objects themselves in
this process. The author turns to theses of child development to reinforce his
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

775

argument about the centrality of objects in the constitution of subjects. Citing


Jean Piaget (1962) and Melanie Klein (1975), Miller contends that objects, prior
even to words, perform a fundamental role in the process of infant cognitive
development. In other words, in parallel to anthropological theories that elab-
orate a notion of culture as networks of meanings that give sense to the world,
Miller pays attention to the role performed by materiality in the development
of a symbolic process – thereby configuring the field of studies known as “ma-
terial culture.”
Thus, a research methodology elaborated by social scientists interested
in the material dimension of culture should perceive objects as “cues” (Goffman,
1975) or “frames” (Gombrich, 1979). For Miller (1987: 102), it is essential to real-
ize that “unconscious, non-linguistic processes may act to control conscious
and linguistic articulation. This is not to deny some level of autonomy to the
latter, but to reject assertations of its virtual total autonomy.” In other words,
as a frame that silently directs our gaze, objects also humbly direct our con-
sciousness. Here Miller underlines the importance of Pierre Bourdieu’s contri-
bution (1977) to our understanding of the relevance of objects in processes of
power negotiation. Studies of material culture should, therefore, observe and
analyse the symbolic properties presented by objects. This aim, in turn, requires
accompanying consumer practices given that in industrialized societies con-
sumption is central to Hegelian processes of objectification.
Finally, in the book the author argues that the social sciences have giv-
en an extreme emphasis to production processes in detriment to the practices
of consumption. In this sense, there is no historical primacy of production
practices in relation to consumption practices, but rather a difference in ana-
lytic focus. It is through paying attention to consumption that Miller discusses,
for instance, works like that of Dick Hebdige (1981) on how scooters were “ap-
propriated” by English consumers in the 1960s and attributed meanings and
functions not initially foreseen by the industry. Put otherwise, the subjects used
these objects of consumption to negotiate and react to the social frameworks
imposed on them. Miller stresses that it is crucial to accompany this process
through which goods are appropriated, since only in this way can the research-
er comprehend exactly how the individual is giving new meanings and using
or transforming these consumer goods.
Thereafter, Miller will develop diverse studies that focus on consumers.
Among the books published in Portuguese, we can cite a few examples. In Teo-
ria das compras (Miller, 2002) − A theory of shopping − the anthropologist accom-
panies residents from North London on their trips to the supermarket. He shows,
for instance, not only how the purchase of items “marks” and “stabilizes” (Doug-
las & Isherwood, 1979) existing social relations, but also how the very negotia-
tion of the objects constitutes relations: between parents and children, spous-
es or friends. In turn, in the book Trecos, troços e coisas (Miller, 2013) − Stuff
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

776

(Miller, 2010) − we can observe how in diverse societies analysed by Miller, for
example in India or Trinidad, people are invested in different processes of ap-
propriating objects.
Miller’s proposed research methodology is fundamental to comprehend-
ing his critique of diverse theorists of the “culture industry” (Adorno &
Horkheimer, 1944). Echoing Bourdieu’s critical reading of the role of the aca-
demic system in the reproduction of social hierarchies, Miller argues that many
moralist theses concerning consumer society act as an instrument of class
distinction, seeking to reinforce the intellectual power of some through the
stigmatization of others. Throughout his career, Miller has remained a strong
critic of theories that contribute to “elitist” knowledge (something the author
himself explains in the interview contained later in this special issue).
In response to Miller’s propositions, at least two critiques may emerge.
On one hand, the term “material culture” could reinforce the very same dualism
that diverse currents of anthropology have tried to surpass. Apropos this argu-
ment, Miller has explained that the choice of the term arose from its capacity
to communicate the proposed theoretical discussion to a broader audience
(Miller, 2005: 4). In other words, the choice of the term “material culture” pri-
oritizes a dialogue with these people who are not necessarily immersed in the
complexity of the conceptual debate in academia. It should serve, therefore, to
remind people in general about the overlapping of more ideological and phys-
ical dimensions. Perhaps the relevance of the conceptual strategy proposed by
Miller is shown by its considerable impact on an international interdisciplinary
debate (see Miller, 1995a). By prioritizing a term that sacrifices some “purisms”
of the anthropological debate, Miller can engage in a debate with geography,
history, sociology, media studies and other areas (as we shall also see in the
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

articles contained in this special issue).


On the other hand, a critical evaluation of the arguments proposed by
Miller might argue that individuals have only a limited power to act as consum-
ers in the face of the structural force of an economic system of mass production.
In other words, although individuals may be “appropriating” and giving new
meanings to the products offered by the market, their capacity to act is still
limited by the interests of the market itself. In response to this assertion, the
author argues that the scenario is a little more complex than pure domination,
and needs to be investigated ethnographically, given that the consumer increas-
ingly influences the production through the market surveys developed by the
industry (Miller, 1995b: 4).
Today, looking back at Miller’s work, perhaps we can consider it embry-
onic of a project that would emerge later with the “ethical turn” of anthropology
in the 1990s (Balthazar, 2021). Led by authors like James Laidlaw (2013), the eth-
ical turn in anthropology seeks to extricate itself from some of the theoretical
vices inherited from the conceptual framework proposed by Durkheim. In his
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

777

conceptualization, Durkheim opposes society and individual, the latter destined


to respect or revolutionize the ethical and moral norms established by the for-
mer. Inspired by Foucault, Laidlaw argues for the importance of theoretical per-
spectives that recognize the individual’s reflexive capacity to evaluate and act
on her or his life. The “ethical turn,” therefore, proposes that anthropological
studies avoid attempting to map large ethical paradigms to focus instead on the
everyday practices in which subjects attempt to construct themselves as ethical
beings (Mattingly & Throop, 2018). In the 1980s, Miller already appeared to an-
nounce the importance of the analytic focus on individual processes of con-
structing the subject. Thus, it is the concentration on the routine and particular
appropriations developed by social subjects that reinforce the importance of
ethnography in Miller’s work. Miller (2017a) positions himself as a strong advo-
cate of ethnography and “critical empiricism”. In other words, the long-term
immersion in the social practices under study becomes essential for the analyst
to perceive how other people resignify and transform theoretical premises.
It is worth noting that this methodological strategy not only confers the
possibility for greater creative autonomy for the subject under analysis, but
also offers opportunities for the researcher too. If the empirical data possesses
such relevance for the production of theory, any junior researcher who develops
careful ethnographic research is already qualified for a debate with the field’s
major thinkers. It can even be suggested that Miller’s methodological approach
has consequences for anthropological practice given that it anticipates the
destabilization of conceptual structures (and disciplinary canons) through a
prioritization of empirical data. In this way, it provides a more welcoming space
for the experience of new researchers. The author’s way of doing anthropology
reproduces the same values that he advocates at the theoretical level concern-
ing the democratization of knowledge.

A new object: mediations, humanities and technologies


Two of Miller’s recent projects are key references for comprehending his an-
thropological perspective of humanity and consequences of uses of media cul-
tures. Both projects are developed by the Material Culture section of the An-
thropology Department of University College London under Miller’s supervision:
Why We Post and ASSA (Anthropology of Smartphones and Smart Ageing). 1 The
latter is an ongoing five-year project investigating from an anthropological
perspective the mediations of smartphones in contexts of promoting health
for the public over the age of 45. Miller and his research group offer us thought-
provoking reflections on anthropology’s contributions to the analysis of the
sociocultural mediations between social subjects, digital media learning pro-
cesses, and relations between technologies and humanities.
In the book Digital anthropology, Horst and Miller (2012) propose six basic
principles for comprehending the field. In so doing, they present the key ques-
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

778

tions for analysing the digital as a subdiscipline of anthropology. The first no-
tion derives from the view that the digital intensifies the dialectics of contem-
porary cultural life. The digital is seen as a privileged cultural space since it
produces a proliferation of particularities and differences, depending on the
context where its social uses emerge. Interested, therefore, in human social
relations and in the ways of interacting in everyday life, anthropologists inves-
tigate the ethnographic experiences of particular social groups in local contexts
and that invest in discovering the reasons for use of the technologies and their
potential for valorising local singularities or possible universalizations.
The second principle suggests that social subjects are neither more nor
less mediated following the growth of the digital era. Dialoguing with Goffman
(1975), Horst and Miller (2012) turn to the concept of “frame” to think about the
processes of framing mediations, whether in face-to-face relations or in the com-
plex contemporary relations mediated by technologies. All modes of interaction
involve complex mediative dimensions, as in face-to-face exchanges – interjec-
tions, non-verbal communications, gazes, bodily codes – and in the digital phase
through the mediation of smartphones. Online arenas are perceived as spaces
just as effective for interaction as physical spaces. And precisely for this reason
digital cultures interest the anthropological tradition, as culturally relevant spac-
es for observing the cultural practices of lives lived by social subjects. In the study
of the kinship relations of Filipina mothers who live in London and their children
who stayed in their homeland, Madianou and Milller (2012) formulate the concept
of mediated motherhood, arguing that it is possible to identify very rich varia-
tions in the modes of social interactions of the affects mediated by technology.
Another principle is to define the digital through dialectics. Setting out
from the premise that the digital derives from binary culture, we can observe
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

the possibility of its historical precedents. For Horst and Miller (2012), the same
system of the contemporary digital environment founds the modern financial
system. Globally, money represented a new phase of human abstraction that
simultaneously reduced and commoditized social relations while expanding
them in terms of difference and plurality. The principle of dialectics should,
therefore, comprehend the fact that the uses of digital technologies can con-
tradictorily expand both movements. The authors call on anthropologists to
focus attention on this spectrum and allow the ethnographic experience to lead
them to the analysis of the social uses of technology. In the book The internet:
an ethnographic approach, Miller and Slater (2000) had already signalled ethnog-
raphy’s fundamental contribution to studies of the internet and to investigat-
ing how the digital field is assimilated in local contexts. More than study the
uses and effects of the media, the anthropological experience focuses on how
members of a specific culture act in their communicative actions and how they
try to attribute singular meanings to their own social universes.
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

779

Returning to the principles of digital anthropology, the notions of voice


and dialogue between relativism and holism are fundamental concepts. Horst
and Miller (2012) point out that cultural relativism is part of the backbone of
anthropology. While the notion that the digital environment standardizes social
relations forms part of the contemporary imagination, ethnographic studies of
the uses of digital media on different platforms combine regional and paro-
chial factors with possible levels of generalizations. Here in Brazil, for example,
my ethnographic study of the uses of social media in the Favela Museum in
Cantagalo, Pavão and Pavãozinho in Rio de Janeiro revealed very rich dimen-
sions of the modes of interaction of young people from the community and
their modes of engagement with the museum’s platforms (Machado, 2017)
gravitating around themes as expressions of citizenship, identity contexts, re-
gimes of visibility/invisibility in public space. Meanwhile the study of Spyer
(2017) with a local community in Bahia revealed other dimensions of socialities,
some related to local conditions, experiences of digital learning, socioaffective
exchanges, social aspirations and accounts of the everyday life of residents.
The debate on the ambivalence of the opening and closure of worldviews
is the next principle. The internet very often promises to open up spaces for
activists and political mobilization outside the traditional field of the large
media corporations. At the same time, new forms of controlling and limiting
the freedom of expression have also appeared. The work of Sonia Livingstone
(2002) on the opportunities and risks involving the digital world is a good ex-
ample of the opening and closing of worldviews. Much has been discussed about
the potential openness of the internet for young people in terms of stimulating
learning, developing relationships in non-geographic territories, exchanges and
rich cultural interchanges, but, conversely, also the freer access to dangerous
content like pornography, violent videos or paedophilia.
Another important concept in Miller’s work is the “theory of attainment,”
a notion developed in the book Webcam by Miller and Sinanan (2014). To explain
the concept, the authors revive the discussion on authenticity as one of the pri-
mary discursive keys for understanding the anthropological vision of the cul-
tural uses of technology. They argue that it is commonly held that the emer-
gence of digital cultures provoked the decline of preceding sociocultural experi-
ences. They recall, though, that a similar critique was made by Plato in discuss-
ing how writing, as a support beyond the mind, could be seen as an expressive
device that values memory and the cognitive dimensions less. The starting point,
therefore, is that the digital world is part of the lived lives of subjects, meaning
that they are just as interesting for anthropological analysis and just as cultural
as other forms of mediation. The authors observe, then, that if we are neither
more nor less mediatized by digital culture, what has changed in contemporary
cultural experiences in relation to previous cultural modes? The idea underlying
this view is that older cultural experiences leave their marks on the new modes
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

780

of mediation and thus become important to comprehending what is retained of


previously active sociocultural modes and to identifying new sensibilities dis-
tilled by the relations with new media. When we talk about webcams, the para-
dox lies in the fact that there are dimensions of humanity that are new and oth-
ers that are activated from previous cultural connections (moral, social, political,
relational) that can be either potentialized or reduced in digital life. The expres-
sion of self-consciousness, for example, is one of the modes of mediation cited
by the authors. In social uses of the webcam we can see, as well as others, our-
selves mirrored in a contemporary fashion. This is a new phenomenon in our
culture and implies debates on the impacts on subjectivities, a strange discon-
certedness in the gaze and in the self-image. Another mark of “attainment” can
be seen as the place of intimacy in the relations via webcam. The sense of co-
presence between people living in physically separate locations signals new
meanings of sociabilities, revising the place of the home and intimate space.
What is interesting to observe is that digital experiences can be different and
more diachronic than synchronic in relation to different cultures.
In 2012 in the book Migration and new media: transnational families and poly-
media, Madianou and Miller (2012) analyse the concept of polymedia – that is,
sociocultural mediations and consumption in digital contexts. Mapping the ana-
lytical categories proposed to investigate the social uses of technology – such as
access to infrastructure, cost analysis, user friendliness and skill – the authors
promote a debate on the digital field referring to the narrative dimensions of
sociality (collective experiences of using technologies among the reference
groups), the dimensions of power relations, which are strongly associated with
asymmetries and questions of literacy – knowing the language, the capacity to
produce content – and with emotional attributes – affective bonds with digital
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

devices and their logics. The focus of this theory is not to investigate digital plat-
forms but the modes of mediation of users and their preferences for digital lan-
guages, practices and processes.
The concept of “polymedia” also presumes the analysis of narratives that
interfere in the choices on how digital media are used. One of these fields is
the dimension of sociality. Madianou and Miller (2012) assert that diverse mo-
tivations intervene in the choices of which communication devices to use for
digital interaction. In many circumstances, these choices are motivated by re-
lationships, people to stimulated to share the same cultural spaces as their
peers. With this spirit of investigation, Miller entered the world of the hos-
pices in an English village in one of his most recent works.

The Comfort of People: life, expecting death and mediations


In his book The comfort of people Miller (2017b) describes his ethnographic ex-
periences in a hospice (a place where terminal patients are treated) in an Eng-
lish village. Based on the narratives of the subjects and their experiences with
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

781

social media, the book is a moving account of life and its meanings in a context
of imminent death. The concept of hospice is relevant since it is not a hospital
for long-term admissions: the patients prefer to live at home and go to the
centre for holistic health treatments and meetings with the local community.
Precisely because of the specificity of this mode of treatment, the patient com-
munication system – with medical staff, carers and relatives – is extremely
important. It is interesting to observe that the project combines classical an-
thropological investigation with applied research, since at the end of the study
Miller includes a technical report with guidelines for doctors, carers and health-
care professionals on best practices for the use of smartphones in the context
of patients.
The book’s title is a reference to the author’s previous work, The comfort
of things, published in 2008. In the latter ethnographic study, Miller investi-
gated a street in London given the fictitious name of Stuart Street, where he
presents the ways of life of 30 residents who describe themselves and their life
histories through objects in the home. Thus, the life portraits of the participants
are described through the activation of memories related to these objects, flow-
ing into the debate on the interweaving of material culture and people. Thus,
the work involves an enriching view of the lives of certain “Londoners” in the
contemporary multicultural context.
In The comfort of people, the dynamic is similar: the depictions of the
patients also involve fictitious names, but the work essentially examines social
expressions in the context of the relations between patients and the commu-
nity, friends, and family, the feelings of isolation, solitude, connection, and
co-presence. The narratives detail their life experiences, describing places, peo-
ple and perceptions of moments of joy, sadness, depression, life and death, the
legacy of the past, and the future.
The concept of “polymedia” is explored again in this work to comprehend,
above all, the ecosystem of connections to which patients turn to communicate
with carers, relatives and doctors. It is in this context that smartphones emerge
as important devices for socioaffective connections and the network of health-
care, as well as investments in health apps. Miller describes, for instance, the
case of Sarah who died during fieldwork and who until the final moment of her
death was active on Facebook, posting content as she wised to leave a public
legacy of her life history. This most recent publication was one of the inspira-
tions for the creation of the ASSA project (The Anthropology of Smartphones
and Smart Ageing) currently in progress.

Reverberations of Miller’s work in the special issue articles


As highlighted earlier, this special issue presents articles by researchers who,
like us, worked with Miller or gave voice to his work in Brazil. Carla Barros pre-
sents an innovative theoretical contribution with the article “Not even the sky
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

782

is the limit: the meanings of consumption and the dynamics of social mobility
in the @blogueiradebaixarenda profile on Instagram and YouTube.” The research-
er investigates the symbolic experiences of consumption among the popular
classes, especially the relationship between consumption and social mobility.
The contributions of Claudia Pereira and Fernanda Martinelli with the article
“Persons, things and losses: material culture and consumption in the studies of
Daniel Miller” have a special importance for this issue. Discussing mourning as
a rite of passage, the authors reflect on the experiences of losing loved ones and,
from another perspective, losing things/objects of symbolic value. Sandra Rúbia
da Silva and Alisson Machado offer an important contribution with “Dialogues
with Daniel Miller in the communication field: reflections from the research of
consumption and digital cultures research group.” Contrasting with the Brazil-
ian setting, the article by Chinese researcher Xinyuan Wang considers the rel-
evance of the concept of objectification to think about the uses of social media
by young industrial workers who migrate from China’s interior to its urban cen-
tres seeking to become “modern citizens.”
In the Research Records section, Livia Barbosa, for example, was respon-
sible for the first of Miller’s work to be translated into Portuguese and in his
account tells us something about this experience, fundamental to the develop-
ment of studies of consumption in Brazil. Mylene Mizrahi, for her part, uses
arguments proposed by Miller and the opportunity to work directly with the
author to consider the relation between form and function in the funk aes-
thetic – from the “Gang trousers” to female hairstyles. Finally, Juliano Spyer
describes the experience of working with Miller in the ambitious Why We Post
project.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

783

Interview with Daniel Miller

Ana Carolina Balthazar. You were first trained in anthropology and archaeol-
ogy at Cambridge University. How would you explain the experience of studying
at Cambridge to a Brazilian?

Daniel Miller. Cambridge was exhilarating, but I think ultimately did me harm as
well as good. As soon as I became a postgraduate student I realized I could simply
turn up at seminars in any discipline. One day I would hear Anthony Giddens
deliver a powerful two-hour lecture in sociology without notes, and then I would
hear David Harvey in geography and next day listen to Mary Hesse in philosophy.
Within anthropology itself, I went to lecture series by Edmund Leach and Jack
Goody, and an early inspiration was David Clarke in archaeology. It wasn’t just
the calibre of people teaching. I was also fortunate that this was a period of in-
tense intellectual discussion around three systems of ideas that transformed our
consciousness: structuralism, Western Marxism and feminism. Structuralism for
me was the inspiration of Lévi-Strauss and Edmund Leach, but also Barthes and
Eco. It shifted us all away from thinking about things in themselves, to always
seeing them in relationship to the other. My Western Marxism included Lukács,
the Frankfurt School, Kolakowski and Hyppolite. It provided a basic social con-
sciousness about poverty and oppression, but also my route to Hegel. Feminism
came more though popular works such as Marilyn French’s The women’s room but
also at the level of student discussion. It was the ideological shift that had most
impact upon my private life. Overall, I see myself as immensely fortunate. This
was a short period of genuine enlightenment, immensely exciting and stimulat-
ing and I don’t think there has been a period quite like this since.
So, what was the harm? At that time, the culture of study was extreme-
ly competitive and aggressive. We would go to a seminar with the idea of doing
everything we could to destroy the argument of the speaker and our peers. With
some effect. I remember the archaeologist Lewis Binford telling me afterwards
that he would make sure I never got a job anywhere, so I guess my attacks had
struck home. When I subsequently become employed as a lecturer at Univer-
sity College London and I think for a long time thereafter I asked the most
aggressive questions at seminars. It was also an elitist technique in which the
only aim was to be clever. We were also taught to look down on people who did
“applied” academic work that was actually changing people’s lives. It took me
decades to unlearn this culture, and to realise that one can be just as intellec-
tual while also trying to be supportive and that actually being engaged in ap-
plied research was just as much a test of intellect as arguing points of philoso-
phy. Finally, I would like to think it was the lessons of feminism that have re-
mained, after the strict structuralism and Western Marxism have faded into
anthropological history.
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

784

A.C.B. I also remember you once told me that authors like Raymond Williams
and E.P. Thompson had influenced your education, is that right? Do you see any
relations between your theoretical work and the kinds of social issues they
were concerned with?

D.M. These were two of many authors that expressed Marxist thinking at the
time. What I took from this was probably a little different from most. If you
look at my corpus of work, you can see that it has always been directed towards
people who would see themselves as ordinary. I was never concerned with elites
or people that were in any way special. This was certainly in the spirit of Thomp-
son and Williams, who insisted on giving voice to those who had been ignored
in history. On the other hand, they shared a tendency that was prevalent
throughout that Marxist-inflected tradition to project a rather romanticised
idealization of the proletariat. A counter-influence to that trend was a book by
André Gorz called Farewell to the working class. I have never seen anything par-
ticularly positive about having to work in a factory, or for that matter on a farm.
The only exception would be people who chose such work in preference to
other livelihoods. That is one of the reasons that typically the ordinary that I
aspire to lies closer to what might be called the lower middle-class, which in
many countries is now also the majority of the population.
For the same reason, unlike most of my peers, I remain comfortable with
what Bourdieu acknowledged is one of the primary consequences of the uni-
versity system, which is helping people to become middle-class. The quiet at-
tacks on middle-class values by university lecturers in social science, as in and
of themselves suspect, has always struck me as hypocrisy. My primary role is
to contribute to education, and it is based on the ideal that everyone benefits
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

from education, and I don’t have a problem if that then qualifies them as mid-
dle-class. I see on the news everyday migrants who take great risks with their
own lives, often in the quest that they and their children will have these pos-
sibilities in life.

A.C.B. Were there other important references in your intellectual formation?

D.M. One key influence was Stuart Hall whom I met several times. Apart from
the deep humanism of this brilliant, but also kindly man, I was very influenced
by his insistence that culture is as much the project of audiences as of produc-
ers. When Hall first created what later became known as cultural studies, he
promoted some wonderful ethnographic work by Hebdige, Willis and others. I
have always seen it as tragic that cultural studies then abandoned deep eth-
nography and become more an exercise in literary exegesis. Within anthropol-
ogy, key influences included Lévi-Strauss, Munn, Sahlins and Geertz. The two
primary influences on my work, however, remain Bourdieu and Hegel.
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

785

A.C.B. Now, over 30 years after launching Material culture and mass consumption,
would you change anything in the book? Do you think the argument on objec-
tification needs any kind of update?

D.M. The concept of objectification was an attempt to transcend the dualism


of subject and object. There have been many similar arguments since, including
by Bruno Latour, Alfred Gell and the recent discussion of ontology. But I still
prefer my own concept of objectification, since I think the emphasis on process
that I extrapolated from Hegel had a dynamic quality that alternatives lack. I
also still employ the ideas derived from Munn about how culture comes into
being. The part of that book that I would now see as outdated would be the
strict differentiation between production and consumption, which in the digi-
tal world is no longer apparent. The encounter with Hegel’s writing that led to
that book was, alongside Bourdieu, the most important intellectual influence
on my work. It was not just the Phenomenology, since I still make use of the
arguments of his Philosophy of right as the basis of much of my critique of con-
temporary institutions. For example, I am currently writing about the way
theory has become a fetish in anthropology. Theory was originally supposed to
help us clarify and understand the world, but today has simply become an end
in itself, as though we exploit our research about the world mainly in order to
serve this deity theory. The underlying reasoning in my critique of theory in
essence derives from Hegel, though blended with a touch of Wittgenstein’s
Philosophical investigations on the importance of ordinary language as opposed
to formal theory. For me, it is about staying grounded in the messy world of
contextualised ordinary activity rather than the simpler abstractions of theory.
Theory is still vital but as a means to clarify and help us understand the sub-
stantive world, a means, not an end.

Monica Machado. Once you told me that The comfort of things was one of the
books you most enjoyed writing. Could you tell us about your study on the lives
of residents of a street in London from the point of view of household objects?

D.M. My attack on the dualism of people and things that led to a re-direction
in material culture studies was not just at the level of theory. My point was
that the study of objects should be a way of appreciating people. Ultimately, I
am an anthropologist because I am in awe of people and one way of expressing
that was a kind of democratising of the concept of the artist. In The comfort of
things I saw each individual as the curator of their home interiors, taking the
design of their homes as their work of art. This then grew into my sense that
the sense of order that they had developed was, in effect, an expression of the
aesthetic that they had developed through their life experience. This is why I
cared strongly about the quality of my own writing, since I felt each chapter
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

786

was akin to painting a portrait, which in turn respected the quality of each of
my subjects as an artist.
In a book called Anthropology and the individual I theorise this movement.
One starts with structuralism and the appreciation that each thing/person de-
rives meaning mainly through their relationship to other things/meanings. We
progress to the best grounding of structuralist ideas, which is the writing of
Bourdieu and his documentation of how people are socialised into embodying
normative culture through being brought up within that structuralist order
experienced through the material culture around them. This was habitus. What
I now added was the principle that this was not just true of normative culture,
but also of each and every individual, who had developed their own variant of
these principles in which they created their own style. The resulting idea of
personal habitus is a bit like the anthropological equivalent to the colloquial
concept of personality.
This issue remains important in our current project about smartphones
and ageing. The problem of writing anthropology is how to respect the human-
ism of each and every person one has worked with and yet write at the level
of generality that comes from the analysis of typicality and the normative. I
am presently writing, along with my team, a book on The global smartphone. This
weaves in and out between discussing general findings for fieldsites in Japan
or Cameroon with trying also to give mini-portraits of individuals. In a way,
though, the point has become easier, since the smartphone is unprecedented
in its ability to be altered by the owner, so that a careful dissection of the
smartphone shows how it quickly become highly expressive of that particular
person. Through studying the smartphone one can see this process in action,
a person and an object developing their joint aesthetic, which we now strive
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to portray as the portrait of them both. But in turn people are microcosms of
the wider cultural values they have been socialised into, so the smartphone
expresses typicality as well as individuality.

A.C.B. You have been a big advocate of the importance of ethnography for the
production of anthropological arguments. What kinds of advice do you usually
give to your students before they start doing fieldwork?

D.M. Yes, ethnography is to me the “heart” of anthropology, dedicated to human


empathy, which complements the “brain” of theory. My recent projects have
reinforced this view. I don’t see how we can create policy, or feel educated, if
we do not know what is happening in the world. My recent projects concern
social media and smartphones, and much of this activity is private. Everyone
in Brazil is aware that the dominant platform right now is WhatsApp. So how
can we know what happens in that WhatsApp world, much of which is family
conversation, intimate and private? Yet how can we talk about WhatsApp if we
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

787

don’t know that world? The only possible method is long-term ethnographic
fieldwork that creates trust between the anthropologist and their participants,
which means that people appreciate that no harm will come to them in sharing
the everyday family communications that is the core of WhatsApp.
I give my students unusual advice. They spend months prior to fieldwork
preparing an “upgrade” report about what they plan to do. I suggest to them
that once that have passed their upgrade examination, they tear up this docu-
ment and expect to significantly deviate from their own plans. I see fieldwork
as highly opportunistic and carried out in a spirit of discovery. Once they are
in the field, they will encounter things they never expected or knew about.
Those could not have appeared in their upgrade, precisely because they were
unknown to them at that time. Yet these are the genuine discoveries that may
well be just as important to know about as those they planned to investigate.
I argue that, as ethnographers, we must work as opportunists and abjure test-
ing hypotheses which are always limited to prior knowledge.
This is not just true of individual research. My current project started
with a commitment to the study of mHealth [“mobile health”] – that is, bespoke
smartphone apps designed to help people with problems of health. After a few
months, however, everyone in our team realised that few people were using
these apps and that actually, if we wanted to consider the impact of smart-
phones upon health, we needed to completely rethink the very notion of
mHealth – that what really mattered were the use of ubiquitous activities such
as Googling, or ubiquitous apps such as WhatsApp, and not the specialist
mHealth apps. We then completely changed the direction of our research away
from the original grant proposal to what we now appreciated mattered more
to the people we were studying.

A.C.B. Often prominent scholars give up on doing fieldwork and hire someone
else to do it for them. You, instead, still do it yourself. Why?

D.M. Most of the anthropologists I learnt from had repeatedly returned to the
field, such as Geertz or Barth or Leach. I see this as essential for anthropology,
which at least claims to be a comparative discipline. For this sense of the com-
parative to be experienced by anthropologists, they need to have several dis-
tinctly different fieldsites that they themselves have worked in. Otherwise they
tend to become overly specialist in ever more esoteric minutiae of just one
particular region.
It is also hard to imagine any discipline thriving that didn’t include the
continual commitment to empirical experience as evidence. Every experience
of fieldwork has taught me so much, and inevitably changed the direction of
my thinking and my sense of what actually matters to people. Fieldwork is
visceral, it becomes part of you in a way that simply reading about another
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

788

person’s fieldwork, or seeing the material from a research assistant, cannot. I


admit I may be a bit extreme in that I have carried out ethnographic fieldwork
on over twenty occasions. I guess it is also because I really enjoy meeting new
people and hearing about their lives. I don’t believe I have ever met a boring
person; once you work out how to make them comfortable about expressing
their views and experiences. There is always going to be something about what
they do and why they do it that will be a surprise and make you realise the
infinite capacity of humanity.
I also think continually going back to the field is good for one’s soul. In
the bubble of academia, it is easy for people to become self-important and that
leads to a style of writing and speaking that can become quite abstract and
hyperbolic. When you do fieldwork, people don’t care at all about who you are,
and mostly they see you, at least initially, as a bloody nuisance who is wanting
to take up their time. This periodic experience of personal humiliation is prob-
ably a very healthy exercise, in its own right.

M.M. At what point in your career did you become interested in digital cultures
as an anthropological reference? What were your motivations for conducting
these studies?

D.M. I have always accepted that mainly I do not choose my research topics;
rather my job is to simply acknowledge the world and direct myself to it. Often
this reflects my own experience. My initial work on material culture and con-
sumption reflected the disparity between the sheer scale of the commodity
culture we lived within and the relative neglect at that period of academia. My
later work on the topics of shopping and parenting reflected my own personal
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

experiences at that time. The rise of the digital was simply inescapable; it was
what we were all doing. If I decided to launch myself into it earlier than most,
this probably reflects the same opportunism I have just described. I don’t think
I was especially prescient in recognising that digital media represented a fun-
damental change in the world.
I am, however, careful, in engaging with unprecedented phenomenon. I
have never wanted anthropology to be the study of possible futures, or the latest
digital objects. The right time for the anthropologist to pay attention comes
when the device has become commonplace, such that it would already be a
significant presence within an ethnography of the everyday. This can happen
quite quickly. Our current project on smartphones and older people would not
have been possible even two or three years ago; but in most of our fieldsites
there are people in their eighties who can barely imagine doing without their
smartphones. Ultimately, I am not that interested in either material objects or
digital technology. My concern is with human relationships and social normativ-
ity. The legacy of the material culture studies is, however, that the best way to
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

789

study people and society is through practice and not just language. Once peo-
ple were constantly using the internet or social media, or now the smartphone,
you have the opportunity to observe so much and learn so much that might
not be present in interviews and conversation. If you just consider the amount
of visual content that now exists online, this is an anthropological gift horse.
Take, for example, a topic I am often drawn to, that of love. People were
surprised when my book A theory of shopping turned out to be a study of love.
But my point was that English people are quite embarrassed and awkward
talking about love. They tended to assume that just meant the romantic form.
While I saw how housewives every day showed their concern for their children
through their attention to detail in their shopping. I apply the same logic to
digital technologies. When I go through the smartphone, app by app, I can see
what it actually looks like to spend every day dealing with the dementia of
one’s parent. In my first book with Don Slater, The internet: an ethnographic
approach, we showed how young people were quickly shifting to different ways
of engagement, or how even religious practice and belief changed because of
the ways in which ideas could be expressed and communicated online. You
didn’t have to be particularly interested in the digital itself, you just had to
see its potential as a vehicle for academic research.

M.M. If I am not mistaken, the first time you mentioned the concept of poly-
media was in the book Migration and new media: transnational families and poly-
media, written with Madianou. Am I right? Could you explain how this aca-
demic concept has contributed to your current studies?

D.M. Yes, the concept of polymedia was created in a conversation we had


about some of the conclusions of that fieldwork. It possibly helped that Ma-
dianou is Greek and that we started with a Greek term. The problem, from the
beginning, was that we realised this term could be used to mean something
relatively superficial, while we intended it to refer to something quite pro-
found. The superficial interpretation was that this is just a reference to the
choices people have as to which media to use. But we meant the term to refer
to a re-socialising and re-moralising of media itself. Previously the choice of
media had been determined by factors such as cost and access. Now with
phone and internet plans, these factors faded away. As a result, people now
judge each other as to which media they choose to make contact with. This
turns media choice itself into an expression of morality and relationships.
That is the more significant meaning of our concept of polymedia.

M.M. In the book Digital anthropology, you and Horst point out that when stud-
ying digital cultures, one should investigate the phenomena of materiality in
social-cultural mediations. Could you tell us a bit more about that?
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

790

D.M. I think that there was a huge advantage in coming to digital anthropology
from the study of material culture, and again it was about seeing this trajectory
at a deeper level. Of course, digital technology is itself material, and one can
study where in the house people locate their computer or the implications of
the size of screens – from smartphones, through tablets to laptops. But the more
important legacy of material culture studies was the realisation that the key to
studying digital technologies was to focus upon content, that which ordinary
people created and used to populate the online world. This is the real substance
of the digital and it echoes that of prior material culture studies in that it is vast.
Take one example, the rise of the visual. In my paper “Photography in
the age of snapchat,” I argue that social media photography is more or less the
opposite of traditional photography. It used to be about keeping a record for
the future, but now it is all about the present; using the smartphone to filter
out and actually look at the things that matter around you. Then there is a
world of new visual materials. One of the findings of our current project is the
way people use emojis and stickers in places such as China and Japan. These
overcome traditional formal constraints of face-to-face speech and can convey
more affective feelings and emotions, so that informants tell how they wish
that oral conversation could be as expressive as sticker-based conversation.
This became very important for our study of care at a distance. I see all this as
a continuation of material culture studies in that we dissect the substance of
content and learn to sing its tunes.

M.M. In your latest book, The comfort of people, you portray a beautiful sense of
humanity when investigating both online and offline experiences of people in
UK hospices. Could you tell us more about it?
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

D.M. The work that I carried out with hospice patients was especially significant
in that I think it will impact upon all my future research. I noted at the start of
this interview that at Cambridge I was socialised into a rather elitist conception
of academia that considered theorisation intellectual and applied work as not.
I think working with the hospice made me finally realise that in many ways the
abstraction represented by theory is often less challenging to the intellect, pre-
cisely because it remains at that abstract level. By contrast, applied research that
has to deal with the contingency and the variety of life as lived, is actually often
more challenging intellectually as well as practically. It also adds two further
advantages. One is that it may actually improve people’s lives, while mere cri-
tique usually just improves the status of the critic. Finally, it returns us to a core
task of anthropology which is to help people appreciate the humanity of others.
It is the last of these points that is perhaps foregrounded in the storytell-
ing style of a book such as The comfort of people. Most likely this urgency in con-
veying the humanity of people is linked to the subject matter. These were people
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

791

who had been diagnosed with a terminal illness and mostly have died since the
research. As I have already noted the key in anthropological writing is to blend
analytical generalisation with conveying the unique character of every person
we work with. These storytelling books provide one way of achieving this.
As you suggest, this book is also about blending online and offline lives.
The research was intended to map the entire social universe of a person who
is dying. This has to include their phone contacts and emails, but also who they
see face-to-face and how often. What this has in common with my earlier study
of how Filipina care workers try to parent their children half-way across the
world is the necessity of online communication. People who are dying often
also become less mobile as frailty becomes an issue. So, they use new tech-
nologies, not for new purposes, but simply to try and retain the social connec-
tions they might otherwise lose.
In addition, the book considers how such research might assist the hos-
pice. I was hugely impressed by the hospice. It was the antidote to technology
research. It had completely transformed the lives of these people. But not at
all because of any new technology. It was simply by reconceptualising from the
negative sense of the final stage before death into a positive last opportunity
to do interesting and worthwhile things with one’s life while one still had it.
Communication is particularly important since people want to stay in
their homes for as long as possible, so mostly the hospice staff are dealing with
patients in their homes, not in the hospice. This was the opportunity to actu-
ally employ ideas that had started as theories. For example, polymedia became
a specific recommendation to hospice staff, suggesting that they start by as-
certaining how each patient preferred to use media in communicating with
them. Might they prefer a text first to alert them that they were about to get a
phone call, or to prepare themselves for a webcam discussion? It was a revela-
tion to doctors that patients may not always prefer face-to-face when hearing
news about the development in their cancer.
Another significant finding was that the factor that proved most harm-
ful to patients, other than their disease, was the medical profession’s obsession
with confidentiality. As a result, medical information was not being passed
between the many different groups that look after them. I find it immensely
frustrating that when we talk about our smartphone research, audiences con-
stantly emphasise privacy and confidentiality over almost any other factor.
They simply cannot imagine that, as well as being sometimes something we
would all want to protect, privacy and confidentiality can also become a sig-
nificant cause of harm to ordinary people.

M.M. In all your recent studies the perspective of comparative anthropology is


an important piece to identify the different uses of social technologies in dif-
ferent places. What are the main differences between digital sociabilities in
Brazil and England?
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

792

D.M. The first point is simply that Brazil is not comparable to England because
the former is far more heterogeneous than the latter. There are differences in
England between north and south, across gender and inequalities in income,
but Brazil is more like a continent than a country. For example, I was watching
the film by Flavia Kramer on the impact of new media for the Bororo people
studied by Lévi-Strauss – a fascinating intersection between anthropological
interest in issues such as moieties and marriage rules, alongside the rise of
social media and smartphones. Clearly, however, lessons from Amazonia do
not apply to professionals in São Paulo. Currently Marilia Duque is working, as
part of our team, on ageing with smartphones in São Paulo. She finds, for ex-
ample, that retired people focus on retaining their links to their previous work-
ing lives, which remains central to their sense of identity. By contrast, in my
most recent ethnography in Ireland (clearly NOT England, but not far). I found
that working with retired people, even after a year, you might not know what
job they had prior to retirement.
The best evidence we have, however is the published book by Spyer on
Social media in emergent Brazil. Again, you can’t really say this is “Brazil,” since
the people in this Bahian squatter community are entirely different from the
professionals being studied by Duque. But what is clear is that there are many
aspects of sociality that bear no relation to the English, including all sorts of
regimes of secrecy, but also gossip, that his book expertly dissects. By contrast,
my own book Social media in an English village, explains a very specific form of
English sociality based on what I call the “Goldilocks” principle, where the main
use of social media is to create a new degree of sociality in which people are
seen as sufficiently connected that they are not ignoring relatives and friends.
But this is used to legitimate keeping these people at a distance, so one doesn’t
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

actually need to talk to them or see them. This antipathy to sociality is very
English and contrasts with the much more expansive and frankly friendly so-
ciality that English people almost always remark upon when they gain some
experience of Brazil.

M.M. In several of your recent studies, digital environments appear as spaces


of cultural contradictions, offering not only opportunities for social expansion,
a sense of co-presence, mediating long distance affection, but also restrictions
of world views, such as lack of freedom, social control, the spreading of hate
speech and intolerance. How do you see the future of digital platforms and
democratic cultures in the world?

D.M. My first response is one of caution. I see the impact of new media on
politics as an arena of fake news, but I mean something quite different from
that phrase. It is the hype around fake news that may be the main fake news.
Similarly, for years we have been told that new media creates a “filter bubble”
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

793

which narrows the exposure of people to the media, but as far as I am aware
the evidence has always been that the opposite is true. Works such as Axel
Bruns’s Are filter bubbles real? or David Sumpter’s Outnumbered tend to be ignored
so almost everyone thinks that social media creates “filter bubbles” even when
they don’t. In my first book about the internet, with Don Slater, we pointed out
that the reason there is so much hate speech online is that this tends to be
stuff that wasn’t taken seriously, and no one would publish anywhere else. The
fact that it all ends up online was a sign of its insignificance, rather than sig-
nificance. The term fake news has the absurd consequence of deluding people
into thinking that news prior to social media was mainly true. Here in England
the lies that led to Brexit came almost entirely from established tabloid news-
papers, far more than from social media
The problem is that the newspapers whose financial interest are being
undermined by new media tend to be relentless in their critique. Since I am
usually trying to oppose that with evidence, my work sounds like it is biased
towards the positive consequences of new media. This is not the case. I am just
trying to keep us wedded to evidence. In my current work, for example, I am
examining how Googling for health information exacerbates class differences
when it appears to be merely neutral. This is a negative most people are una-
ware of. If we were to take a broad brush and look at the evidence overall, I think
I would say that new media’s effects are, not surprisingly, equally positive and
negative on the field of democratic politics as in most other things. Social media
can potentially help develop an Arab Spring, but equally populist politics such
as the Italian Five Star movement in Italy, that takes much of its ideology from
the democratic possibilities of the internet, suffers from the contradictions of
most populist parties. But then I have always argued that people who try and
see impacts as good or bad are generally being simplistic. I am a follower of the
work of the sociologist Georg Simmel who presents clear theoretical grounds for
expecting new cultural developments to be inherently contradictory.
Having said all that, there are clearly dangers that digital technologies
allow a degree of surveillance and control that could make authoritarian re-
gimes extremely effective. Recently one of my team, Xinyuan Wang, wrote a
piece (in The Conversation) that explained why people in China may be less op-
posed to the social credit system than outsiders to China imagine. Nevertheless,
these systems should certainly make us fearful of the potential for a form of
absolute political control that is unprecedented.

A.C.B. Do you consider your work to be political in any way? How exactly?

D.M. I was educated in the work of Habermas, who clearly showed that all
academic work is political. But I have strong views on where that politics should
be best directed. There is much good work within the field of cultural studies,
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

794

but I would suggest that precisely because it tends to foster work that favours
the author’s political stance, it loses credibility. If someone from gender stud-
ies argued that gender is highly significant for some study, it could be read as
simply a reflection of their institutional role. Perhaps influenced by Karl Popper,
I have always tried to come up with evidence that does not necessarily support
my own politics. For example, I found that supermarkets might have ethical
consequences that were superior to corner shops, even though I personally
want to favour corner shops. You should not know my politics from my findings.
Research itself should be as objective as possible so that people trust that it is
a direct reflection of evidence not the author’s institutional position.
The politics comes subsequently, when we consider how our research
should engage with policy. Indeed, the key point is that it should engage. I have
seen generations of academics, whose only stance is pure critique, claiming that
they are more political than I am. But their work has rarely resulted in changes
to policy. By contrast, I am now increasingly involved in trying to engage our re-
search in actually improving people’s welfare. The most powerful critique is the
demonstration that something could be feasibly done better than the status quo.
So, in our current work, we are distinct from the vast commercial industry that
promotes and develops mHealth Apps and instead publishing documents that
show some of this could be done for free using ubiquitous free apps such as
WhatsApp. Marilia Duque has created an impressive manual on how WhatsApp
could be used for health in Brazil. I believe my work is political to the degree that
I can actually see people’s welfare has been improved as a direct result of our work.
Pure critique to me is often self-indulgence and therefore ultimately conservative.

A.C.B. Your work often draws on some of Pierre Bourdieu’s arguments. He has
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

made important claims regarding the role of academia in the reproduction of


social hierarchies. Is it possible to develop work in academia that does not
contribute to social distinction? How exactly?

D.M. I have already mentioned that in some ways Bourdieu could be argued as
saying something else. While academia has in the past mainly reproduced so-
cial hierarchies, the effect of the university system is to create and sustain the
middle-class – that is, people who view the world through a sophisticated lens
of distinction informed by education, while Bourdieu portrays the working class
as generally having a more immediate or literal interpretation of what they
encounter, which he may also see as more authentic. I have always believed
that education is vastly superior to ignorance. The problem for me is that the
universities only serve a minority, and we want everyone to have access to
these educational possibilities.
This is something I am also trying to put into practice. Before the ar-
rival of digital technologies, I could only speak to 30 or sometimes 300 in a
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

795

lecture theatre. But in our last Why We Post project, our free online university
course was taken by over 30,000. I am especially excited that our books, most
of which are ethnographic monographs, have been downloaded by more than
875,000. Especially important are the numbers we see in countries with emerg-
ing middle classes and subsequent demand to expand tertiary education such
as Ethiopia or the Philippines.
How have we achieved this? The first factor is that all our research dis-
semination consists of free “Open Access” books, or a free online university
course. Perhaps even more importantly we only use colloquial English, that is
words which someone finishing high school would understand. I believe most
theory can be explained in ordinary language, and the reason people don’t is
often because the theory is weak and is being artificially protected by obfusca-
tion. Our style of writing is intended to be highly accessible, mostly told in the
form of stories about recognisable people. We also translate our work into the
languages of the places where we work, such as Hindi and Tamil. In addition,
we use new media to publicise our work through social media platforms, blogs
and by providing simple versions of our arguments on websites that get people
interested in reading the more complex work. This does not dilute our aca-
demic output. That project produced 11 books – more than 2,000 pages of evi-
dence. I really don’t mind if, to some degree, this giving away of education for
free is destructive of the traditional university system as we have known it. In
its current form it is elitist, as Bourdieu indicated. In our work we are trying to
push towards what I see as sophisticated original insights, which is the value
of research, but made available to everyone, especially those who don’t have
the money to go to universities, but may be extremely interested in knowing
more about the consequences of social media or smartphones. Education is a
human right and to the degree that this is possible, it should be free.

A.C.B. What do you feel you achieved through the Why We Post project and how
does your current project aim to go beyond that?

D.M. The single most important achievement of Why We Post is the evidence
that it collected about the uses and consequences of social media and the fact
that this was ethnographic evidence. The point is that most arguments about
social media come from disciplines that skim off only the publicly available
evidence. There is a vast amount of work about the political consequences of
Twitter, since academics have easy access to Twitter. Some also tend to univer-
salise their findings. But our work should incorporate everything that people
do and the diversity between different populations. As I noted above, this must
include the private worlds found on platforms such as WhatsApp that are more
consequential for ordinary people. So that project was committed to providing
scholarly evidence which is made readily available through mass dissemination.
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

796

Today it seems natural to progress to smartphone-based research. Social


media itself is no longer a separate entity, but rather a set of apps alongside
other smartphone apps. The smartphone itself is unprecedented in its inti-
macy and power as a personal device. So, the first stage has been to replicate
what was successful about Why We Post. This time we have 11 team members
involved in 16-month ethnographies and we hope again to produce 11 books. 2
The topic has been expanded by the focus upon ageing as the context.
Most studies of ageing focus on people defined by age – that is youth and the
elderly. Yet the primary change in ageing has been for people who see them-
selves as neither elderly nor young. This varies across our different sites. In
Ireland, for example, people in the sixties, seventies, and even eighties, who
expected by now to be elderly, find that that they are still listening to the Roll-
ing Stones, while smoking dope like the hippies they once were. They are doing
many of the same things they have always done, perhaps still dating. This is
not what being elderly was expected to feel like. The recent introduction of the
smartphone to their lives is, then, an iconic moment in this retained sense of
youth. In many ways I suspect it will be our findings about the transformation
of ageing that will outlast our work on smartphones.
In addition, this project has an orientation towards applied anthropol-
ogy that didn’t exist in Why We Post. It is represented by the challenge to con-
ventional mHealth that I have just referred to. Each team member has their
own project relevant to their own fieldsite and only selected after they had
finished nearly a year’s fieldwork. This ensured that it arose from their sense
of what was needed, not simply what they would have liked to do. This repre-
sents a set of new challenges that I find a welcome addition to the ambitions
of Why We Post.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

Finally, I want to see this project as a demonstration of my ambitions


around changing the role of theory in anthropology. How can we have theory
that is not a form of fetishism? The answer I believe is to return theory to its
initial role as the handmaiden to understanding and explaining our substantive
findings. In writing The global smartphone there are many theoretical interven-
tions that generalise our comparative study of the use and consequences of
smartphones. This includes our definition of the smartphone as The Transportal
Home: more a place within which we live, than a device we just use. We argue
that the smartphone goes Beyond Anthropomorphism. Theories of the robot are
relatively superficial in that the robot is supposed to look like a human being.
By comparison, the smartphone’s relationship to humanity is more intimate,
reciprocal and profound. We discuss the phenomenon of “perpetual opportun-
ism”, and the role of the smartphone as a Control Hub and Care Transcending
Distance. We have new ways of conceptualising what we call social ecology and
screen ecology. The book is replete with what might be called theory, and we are
in no way anti-theoretical. It is just that in every case theory is clearly illus-
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

797

trated by ethnographic evidence that shows how it means different things for
each population. It doesn’t look like theory because we spend so much effort
trying to make the arguments clear and accessible. We examine the way it clar-
ifies our original insights to a greater extent than how it contributes to estab-
lished theoretical debates. The book thereby exemplifies what I hope de-fetish-
ised theory within anthropology might look like in the future.

A.C.B. What is the next project?

D.M. This will be my longest answer since I am someone who has always been
much more orientated to the present and future and not especially interested
in the past. There are three phases to this, but they shift from projects that are
pretty definite, to ideas that at the moment are more like dreams that may or
may not become reality.
At present, I am just half-way through our five-year project, and I am
hugely enthusiastic about the results. When we started the idea of linking three
topics – the transformation of middle-age, the question of what a smartphone
is, and whether we could contribute to mHealth – this seemed a bizarre beast,
part giraffe, part crocodile, part spider. Yet at this point we simply can’t imag-
ine how you could tackle any one of these three topics except in combination
with the others. Finding that ubiquitous apps, such as WhatsApp, were more
important than bespoke apps, is linked to understanding both what a smart-
phone is and how ageing has changed. Presently we are completing The global
smartphone and then we hope there will be nine monographs all with the titles
of Ageing with smartphones in each of our various fieldsites. We intend to write
an edited book about our alternatives to mHealth, but also will publish com-
parative work on ageing, probably in journal papers.
If, however, you spend 16 months living in a fieldsite as an ethnographer,
you end up with far more material than that dictated by your project. I find I
want to write a book that has little to do with this project and is more what
struck me from the ethnographic experience. The title I would like to give this
book has been ruined by Monty Python, since you can’t use the expression “The
meaning of life” without thinking of them. Yet actually this would be the topic
of my book. I worked with retired people who had undergone a profound shift
from Catholicism to secularism, from poverty to affluence and from many con-
straints to a form of freedom that is, perhaps, unprecedented in human his-
tory. I suspect there are many parallels to this amongst populations in Brazil.
I spent some of my time asking people about life purpose. As you might expect,
they had very little to say in response and found the topic vaguely embarrass-
ing. This was also true of my previous work with hospice patients who were
dying. So instead, I think we need to extrapolate issues about life purpose from
what people do, rather than what they say.
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

798

I won’t even start writing this book for another year or so, but in my
head, there is a fantasy that much of the book will come from the ethnograph-
ic findings. But once that is written, I will then compare it to classic philosophy
and discussions of life purpose in ancient Greece and Rome. There is a little of
this in the book Aging thoughtfully by Martha Nussbaum and Saul Levmore. I
would want to go much further, with more extensive discussion of various
movement such as the Stoics, Epicureans and others. My argument would be
that later philosophy is mainly influenced by religion, while these earlier clas-
sical sources are in some ways closer to the largely secular world of my con-
temporary Irish retirees. I also imagine writing about issues such as the nature
of community and consumption as seen from the same perspective.
Even more in the realms of fantasy would be a project that would start
only when my present five-year project is complete, that is three years from
now. Unfortunately, with the UK leaving the EU – something that I see as a
complete disaster in so many ways – I may be no longer eligible for the scale
of funding I will have enjoyed for the last ten years. Yet I feel that these large-
scale comparative projects offer something to comparative anthropology that
is more than just the aggregate of smaller projects. So, I would love to have
the opportunity to conduct another such programme in the future; if I can
find the funding to do so, which is doubtful. As for the topic, this is even more
tentative, but I am currently thinking about what seems to be something of
a crisis in young people’s relationships; issues around commitment and inti-
macy. This would follow from previous work I have carried out on the nature
of love. I don’t think I would carry out such an ethnography myself – I am too
old. At this point I would rather concentrate on helping young people train
as ethnographers and gain their own expertise.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 773 – 803, sep. – dec., 2020

More than once in my career I have wondered about whether to send


my research upwards to the discussion of political economy, or downwards to
issues of intimacy. Much of my work has been about capitalism, theories of
value, the rise of audit culture, climate change and similar topics. But mostly
I tend towards the study of relationships. Partly personal preference. I am very
happy sitting in a pub listening to people talking at length about their relation-
ship problems and giving them my often terrible advice as to how to solve these.
But more than that, there is an academic alignment. As we see in the digital
media research, so much of what matters to people happens in private worlds.
If ethnographers are the only researchers who could ever really know what is
going on there, since access to such information completely depends upon trust,
perhaps we have a particular responsibility to engage in those studies. No
other methodology has the time patience, or possibly the desire, to spend so
much effort on building trust. Yet this is the key part of people’s lives, that
which usually determines whether they feel life is happy and worthwhile or
otherwise.
interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

799

I have no idea if I will have the funding, good health or opportunity to


embark on these future journeys. Quite possibly I will come up with com-
pletely different ambitions over the next few years. As I have noted through-
out these answers, I am best characterised as an optimistic opportunist; I
don’t know the future, but I feel something interesting will turn up. Alongside
many academics, once my work appears in print, I only see the faults and I
am ashamed and feel the result is immature; but I am also convinced that my
next project will actually achieve some maturity and might even suggest I am
finally growing up (though I know, and all my friends know, that will never
happen).

Received on 3/ May/2020 | Approved on 19/Oct/2020

Ana Carolina Balthazar holds a PhD in Social Anthropology from University


College London (UCL) and is currently pursuing a postdoc (PNPD/CAPES) at
PUC-Rio. She researches material culture and nationalism in the United
Kingdom and Brazil and has published articles in international academic
journals like American Ethnologist and the Journal of Material Culture.

Monica Machado is Associate Professor of the School of Communication at


the Federal University of Rio de Janeiro and Professor of the Eicos- IP/UFRJ
Postgraduate Program. She leads the MEDIATIO research group. She gained
her PhD in Communication and Culture on the PPGCOM program at ECO-UFRJ.
She was Honorary Research Associate (2014-2015) at University College
London (UCL) in the United Kingdom under the supervision of Daniel Miller
and funded by a Capes award. Her most recent book is Antropologia Digital e
Experiências Virtuais do Museu de Favela. Her current line of research is the
media and sociocultural mediations with an emphasis on communication,
material culture, digital anthropology, and communities.
material culture and mass consumption: the impact of daniel miller’s work in brazil

800

NOTEs
1 Both projects are on the site of UCL Anthropolog y (UK):
<https://www.ucl.ac.uk /why-we-post / and https://blogs.
ucl.ac.uk/assa/about/>. Accessed 28 September 2020.
2 Here Miller refers to his current project, funded by the
European Research Council, The Anthropology of Smart-
phones and Smart Ageing (ASSA): see https:// blogs.ucl.
ac.uk/assa/.

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interview with daniel miller | ana carolina balthazar and monica machado

803
Material Culture and Mass Consumption:
Considerações sobre o Impacto da obra de
Daniel Miller no Brasil
Palavras-chave Resumo
Cultura material; Este artigo introduz o número especial sobre o impacto do
consumo; livro Material culture and mass consumption, de Daniel Miller,
mídia digital. para o debate interdisciplinar das ciências sociais no Brasil.
Nesta Apresentação, nós, as organizadoras, fazemos uma
revisão das principais ideias contidas no livro – que nunca
foi traduzido para o português – , além de considerar algu-
mas críticas que surgiram nas últimas décadas sobre a obra.
Abordamos também a relação da teoria do consumo de Mil-
ler e sua larga produção em antropologia digital. Em segui-
da, numa entrevista com o próprio Miller, discutimos algu-
mas das impressões que temos sobre sua perspectiva teó-
rica e trajetória profissional. Por fim, o texto apresenta os
quatro artigos originais que, a partir de dados de pesquisa
empírica, discutem a pertinência daquele estudo inicial
sobre consumo e cultura material para o atual debate teó-
rico sobre materialidades, mídias sociais e trocas interdis-
ciplinares. Além disso, o artigo também introduz a seção
Registros de Pesquisa, em que pesquisadores próximos a
Miller escrevem sobre a sua produção teórica, colaborações
acadêmicas e parceria profissional.

Material Culture and Mass Consumption:


the impact of Daniel Miller’s work in Brazil
Keywords Abstract
Material culture; This article introduces the special issue reflecting on the
consumption; influence of the book Material culture and mass consumption
digital media. by Daniel Miller on interdisciplinary debates in social sci-
ence in Brazil. Here we review the main arguments pre-
sented in the book – yet to be translated into Portuguese
– while also considering some of the criticism it has re-
ceived in past decades. Next, we present the connection
between Miller’s theory of consumption and his wide-
ranging work in digital anthropology. Afterwards, we in-
troduce the four original papers contained in this special
issue and which consider, based on empirical research, the
on-going relevance of Miller’s theory to current debates on
materiality, social media and interdisciplinary exchange,
including an interview with the author. Finally, in this in-
troduction, we also present the section Registros de Pes-
quisa, where different Brazilian researchers discuss the
opportunity of working closely with Miller.
ARTIGOS
http://dx.doi.org/10.1590/2238-38752020v1032

1 University College London (UCL), Department of Anthropology,


London, United Kingdom
amberonic@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9506-9323

Xinyuan Wang l

The digital Dasein of Chinese Rural


Migrants

As Miller and Slater (2000: 5) argue, “If you want to get to the Internet, don’t
start from there… we need to treat Internet media as continuous with and
embedded in other social spaces, that they happen within mundane social
structures and relations that they may transform but that they cannot escape
into a self-enclosed cyberian apartness”. In the light of these reflections on
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

digital anthropology, this paper aims to understand the use of social media
among young Chinese migrant workers in both offline and online contexts.
First of all, the significant “offline” context of this study is the massive
domestic migration in China. In the process of ongoing urbanisation and in-
dustrialisation, the expansion of capitalism has had profoundly dislocating
effects on Chinese society. By 2015, when the fieldwork was conducted, there
were more than 250 million Chinese who had left their places of origin in
rural China to seek employment in Chinese factory towns and cities (NBSC,
2016). These rural migrants are referred to as a “floating population,” which
indicates the difficulty of settling down in urban China in the rigorous Chinese
household registration (Hukou) system. This paper is based on 15 months of
ethnographic research (2013-2015) in a small town called GoodPath 1 in south-
east China. GoodPath is a typical industrial town which serves as a transi-
tional place connecting the village and city. The local process of industrializa-
tion has turned most of the farmland (76%) into more than 60 large scale
factories within a decade. Migrant workers account for two-thirds of the
the digital dasein of chinese rural migrants

808

resident population, which totals 62,000. Around 80% of these rural migrant
workers are from a new generation born in the 1980s. Unlike the previous
generations of rural migrants, who as surplus labour in rural China had no
choice but to leave the countryside and make a living in cities, the younger
generation of rural migrants sees rural-to-urban migration as their “rite of
passage” (Fang, 2011) in which they search for self-identity and self-transfor-
mation along with attempting to meet economic needs. As extensively noted
by other researchers, rural migrants have encountered discrimination and
have frequently become the scapegoats for all kinds of social problems in
urban China (Jacka, 2006; Ngai, 2005). Ironically, as the indispensable force for
building modern China, rural migrants in post-communist China have been
subjected to a process of “othering” where their very existence is characterised
as “potentially hindering China from reaching modernity” (Rofel, 1999: 106).
It is in this social context that this paper explores the role which social media
plays in the daily life experience of young migrants.
In terms of the “online” context, the paper examines the QQ platform.
During fieldwork, this was the main social media platform among rural migrants
even though use of WeChat had been increasing remarkably. QQ provides a
variety of different digital services, including instant messaging, social media,
gaming, e-mail, video music sharing, and so on. Unlike Facebook which applies
an identical look to every profile, QQ offers a great variety of formats and extra
design elements for users to create their own profiles.
This paper starts with a general theoretical reflection on the relationship
between place and human existence. Drawing on this discussion, the rest of
the paper, based on my ethnography among Chinese rural-to-urban migrants,
sets forth a dialogue between Miller’s thoughts on objectification and the Hei-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

deggerian concept of Dasein.

Literature review: Dasein, Objectification and Chinese migrant


workers
“To be is to be somewhere” Aristotle claims (Physics IV, 208a30, cited in Malpas,
2008: 200). It is nowadays taken for granted that any distinctive culture and
society “takes place” within the confines of a certain physical location. It is so
taken for granted that the expression “take place” simply refers to “happen” or
“come into being,” which even suggests that if there is no place to take, nothing
will happen. Furthermore, for people to be recognised as active social beings,
they must produce space for themselves (Lefebvre, 1991: 416). There has been
an established area of research on the home and place/space making within
the disciplines of sociology, anthropology, philosophy and even more exten-
sively in human geography (e.g., Douglas, 1991; Lefebvre, 1991; Mallett, 2004;
Tucker, 1994), with anthropologists emphasising cultural differences in the
sense of space (e.g., Feld & Basso, 1996). The primary influence behind the ex-
article | xinyuan wang

809

isting literature on place-making has been Martin Heidegger’s exploration of


the “Being” of humankind, which he termed Dasein (Moran, 2002: 198). Rather
than seeing Dasein as an individual entity, Heidegger argues that it can only be
understood within the surrounding context, its “situatedness” (Inwood, 1997).
For Heidegger, it is situatedness that gives rise to the possibilities of being
(Malpas, 2006), an ongoing everyday being-in-the-world, rather than just met-
aphysical abstraction (Larsen & Johnson, 2012). Human existence is highlight-
ed as being-in-the-world, as Dasein brings the whole world along with it and
the truly existential character of human existence lies in Dasein’s proclivity for
dwelling, that is, being alongside the world as if it were at home there (Casey,
1997: 246).
This paper deploys the concept of Dasein to discuss the lived experience
of migrant workers in their floating life, reflecting on how individuals develop
their relationship with the surrounding world in which social media plays a
significant role. The discussion of Dasein can only make sense when seen as a
process of “objectification.” In Phenomenology of spirit, Hegel suggests that eve-
rything that people are and do arises out of the reflection of themselves pro-
vided by the mirror image of the processes through which people create form
and they are themselves created (Miller, 2005: 8). Expanding on Hegel’s argument,
Miller (2005) takes the example of Bourdieu’s “Kabyle house” to show how the
dwelling becomes the cultural object within which people comprehend them-
selves, and how the very sophistication of the form allows people to appreciate
complex possibilities for themselves within it. Specifically, in this paper, I ex-
amine the ways in which the sophisticated form of social media has allowed
Chinese migrant workers to discern complex possibilities for themselves, and
how access to the online environment has transformed both social media and
Chinese migrant workers.
The rapidly expanding and quickening mobility of the world population
since the twentieth century has created a profound sense of placelessness, a
deterritorialization of identity. It is generally acknowledged that traditional
ideas about the home and homeland have been challenged by the new patterns
of life in the digital age. In the face of digital ubiquity, the human existential
condition has become even more complicated as discussion of self-identity and
cultural identity need to incorporate the consequences of digital developments
as a constitutive part of people’s daily lives all around the world (Rainie & Well-
man, 2012; Miller et al., 2016). Anthropological studies have provided rich de-
scriptions of the human experience of belonging and the sense of place in
dislocation, migration and diaspora. Such endeavours have developed our un-
derstanding of place, revealing the spatiality of social life (e.g., Constable, 1999;
Dominy, 2000; Semts et al., 2019). On the other hand, ethnographies based on
virtual communities such as Second life (Boellstorff, 2008) and Cibervalle (Gresch-
ke, 2012) have raised the question of “is there a home in cyberspace?” as well
the digital dasein of chinese rural migrants

810

as “does the virtual world in and of itself constitute a society?” This research
prompts questions of how far place is regarded as something separated from
experience and embodiment, or whether we can incorporate a fundamental
understanding of place as the framing within which meaning and knowledge
are made possible in the first place (Malpas, 2006).
Much of the fieldwork among Chinese migrant workers presents findings
relevant to discussion of the issue of place: (a) following Lefebvre and Foucault,
scholars have been scrutinizing “place-making” in terms of spatial disciplining
and social control to rethink urbanization and modernization in China (Rofel,
1992; Bach, 2010; Wu, Zhang & Webster, 2013; Zhang, 2002); (b) from the perspec-
tive of production and consumption, there has been a thorough exploration of
the daily struggle of Chinese migrant workers in a situation where people’s
possibilities for living in space is now controlled by the consumer revolution
in post-socialist China (Ngai, 2003); (c) acknowledging the impact of digital
technologies, scholars have started to explore the ways in which the digital has
been integrated into the transformation of social structures of contemporary
China, empowering the previous “information-less” population to perform a
modern identity (Qiu, 2009; Wallis, 2015). This paper builds upon all these pri-
or considerations in order to interrogate them anew within the context of the
daily lives of Chinese migrant workers which are taking place offline and online
simultaneously.
The rest of the paper consists of three sections. Based on ethnography,
each section focuses on one layer of existential experience in the context of
social media use. The discussion of Being starts with concerns about the “self”
and proceeds to an examination of sociality where the self is suited in the
context of connections. The last section sheds light on the wider context of
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

“situatedness” where the experience of “being-in-the-world” is facilitated by


social media.

The desired self on social media


The factory owners and managers in GoodPath are overwhelmingly local people.
For them, the consensus was that efficient factory production is achieved by
treating “humankind as part of the machine” as a factory manager stated. The
ethnography testified to the common feeling of being an “unperson” (Jackson,
2000: 2) among rural migrants in GoodPath. The social bonding between local
and migrant workers in GoodPath was minimal. A survey among 238 rural mi-
grants and 75 local people (June 2014), for instance, showed that about 72% of
rural migrants reported no connection or daily communication with local peo-
ple, apart from functional relations such as “factory manager/factory worker”
and “landlord/tenant.” This social separation started in schools. In the local
primary school, classes were divided into “outsider classes” (waidi ban) and
“local classes” (ben di) with better teaching resources allocated to the “local
article | xinyuan wang

811

classes,” which only enrolled local students. The reason given was that local
people were concerned that their children would pick up bad habits from the
children of rural migrant families with low “human quality” (di suzhi). In field-
work, migrant workers were fully aware of their inferior social status as “out-
siders” with low social visibility. It was common to hear factory workers remark:
“My opinion/right doesn’t matter as I am just an outsider.” Liping, a 22-year-old
former factory worker, was one of them.
Liping lost her job in the factory because of a minor dispute with the
line manager. She left the job without getting fully paid but abandoned any
attempt to obtain redress since, as she remarked, “all the managers are local
people who cover each other and don’t care about us outsiders.” The only
place Liping showed her dissatisfaction was on her QQ where her post com-
plaining about the factory was supported by several her QQ friends who were
also migrant workers. “QQ is my own place… at least I say what I want to say,”
Liping explained. Furthermore, Liping was a VIP on QQ (having purchased the
VIP membership). Being a VIP entitled her to a variety of online privileges,
from extended use of various functions to significantly enhanced visibility.
As a VIP, Liping’s QQ avatar is always on top of the contact list in the chatting
interface, and her QQ name was shown in bold red. In addition, Liping was
also an expert in tailoring her online status. For example, she applied the
“visible to somebody in invisible status” function, which allowed her to always
be seen by selected contacts while in invisible status when the rest of her
contacts would be unable to tell whether she was online or not:

Sometimes I just want to talk to one or two [friends] and don’t want to be dis-
turbed by any random guys, so I set myself invisible… but for a few people I feel
I can always talk to or wish they can ping me if they see me online, I set myself
always visible for them, even though to others I am still invisible.

Liping reported that this setting gave her a strong feeling of being special,
as she further explained, “It’s like I am always there waiting for you, you know,
very close and exclusive… and it’s the way we make ourselves special for each
other…”
The “self” is by no means experienced as a purely personal matter, since
being a person means being treated as someone whose “personal views matter
in some public, articulate, expressible sense” (Scannell, 2000). On QQ, Liping
enjoyed a much-increased control of her visibility in so far as she could deter-
mine when “I set myself invisible” and this self-tailored visibility facilitated
her self-perception as a “special person” who can be seen by people she cares
about, rather than an unimportant outsider in GoodPath town.
JiaDa, a 23-year-old forklift truck driver, provided another example. JiaDa
arranged a QQ group comprising 168 online contacts, the majority young male
migrant workers. None of the images on the album of this QQ group were taken
by any of the members themselves — all were obtained from the internet by
the digital dasein of chinese rural migrants

812

people in the group. According to JiaDa, the images worth posting were those
that “look cool and modern,” images such as “modern city landscapes,” “con-
sumer culture” (luxury cars and other goods), “sex,” “smoking,” and large sun-
glasses (Figure 1). Addressing the QQ group, JiaDa wrote “I hope everyone will
become a person with suzhi.” Suzhi, meaning “human quality,” is deeply associ-
ated with the Chinese urban-rural divide and the nation’s modernisation since
the 1980s. People in cities frequently refer to rural people, whom they regard as
intrinsically inferior, as “low human quality” (di suzhi). In the discourse of suzhi,
the rural lifestyle is measured on the scale of modernity and ends up being stig-
matised as “backward” and a threat to the “project of national modernity” (Jacka,
2006: 31). In other words, the party-state actually claims that to enjoy the pros-
perity offered by economic reform, citizens must take the initiative to improve
themselves, casting off their low suzhi dispositions. In such a conceptualization,
emphasis is on individual responsibility, rather than individual rights (Fong &
Murphy, 2006). The message on JiaDa’s QQ group suggested that rural migrants
seem to have already accepted this denigrating discourse, which echoes various
studies among marginalized groups of Chinese people who tend to internalize
the judgement of “mainstream” society that they are “backward” or “uncivilized”
(Fong & Murphy, 2006). On the other hand, the implicit message sent by the QQ
group seems to be that “human quality” can be effectively improved online.
In terms of utilizing visual posts to articulate personal aspirations, Lily,
a 19-year-old factory worker, provides a typical case. Most of the images Lily
posted on her QQ were artistic photos of beautiful women in gorgeous dresses
which she collected online (Figure 2). On Lily’s QQ, there was not the slightest
trace of her life as an assembly line worker or her lived environment in the
factory town. The only set of photographs of herself was produced by the local
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

photography studio. It took Lily half a month’s salary to have these photos
taken to “record her most beautiful self” in her own words. By “most beautiful
self” she refers to the look that took the stylist two hours to produce by apply-
ing make-up and dressing her in an evening dress with extra padding around
her breasts and hips (Figure 3).
The truth that these artistic photographs held for Lily was not about her
everyday “authentic” look, but her real desire to become a “most beautiful self”
who can fit into the online space. In Bonnie Adrian’s (2003) study of bridal
photography, artist photos that transformed the images of Chinese young wom-
en beyond recognition are regarded as a significant ritual marking a woman’s
self-awareness and self-expression of being a young, attractive, independent
woman before she becomes exhausted by household work and family duties.
“Photography is prized not for its ability to capture lived experience but for its
capacity to create ‘memories’ markedly different from the goings-on of every-
day life” (Adrian, 2003: 10). The acknowledgement of this creativity of photog-
raphy provides a different perspective, given these offline precedents to Lily’s
Fig. 1 Sample of images on JiaDa’s QQ group album Fig. 3 The “artistic photo” of Lily
article | xinyuan wang
Fig. 1 Sample of images on JiaDa’s QQ group album Fig. 3 The “artistic photo” of Lil

813

Fig. 2 Sample of images on Lily’s QQ album


1
Fig. 2 Sample of images on Lily’s QQ album

Fig. 2 Sample of images on Lily’s QQ album

2

3
Figure 1
Sample of images on JiaDa's QQ group album

Figure 2
Sample of images on Lily's QQ album

Figure 3
The "artistic photo" of Lily

use of her “once-in-a-life-time” artistic photographs to create her online image.


The postings of both JiaDa and Lily are not anecdotes. A systematic
visual analysis based on 7,500 visual posts (the last 20 visual posts of each
participant) among 377 migrant workers in GoodPath during fieldwork shows
that about 71% of young men (aged 25 and below) and 86% of young women
posted these “fantasy” photos depicting an ideal lifestyle rather than actual
life in offline situations (Wang, 2016: 77-78). The analogue photograph was
regarded as an object of memory, a technical facility to retain an image beyond
memory. The proliferation of social media images in the digital age has become
such a ubiquitous part of everyday communication that today “images used in
social media are so removed from everything previously called photography
that the semantic continuity may be misleading” (Miller, 2015). The kind of im-
age consumption found on social media among migrant workers casts further
light on the constituent relations between subject and object. As Miller suggests,
in mass consumption, objects are translated from an alienable to an inalien-
able condition as the “the vast morass of possible goods is replaced by the
specificity of the particular term” (Miller, 1987: 190) and “the object is trans-
formed by its intimate association with a particular individual or social group”
(Miller, 1987: 191). The images posted on rural migrants’ social media profiles,
as well as the specificity of social visibility online, serve to detach people from
their offline situation and construct a new subjectivity with self-respect online.
the digital dasein of chinese rural migrants

814


Desired sociality on social media
Traditionally, non-kinship ties are taken less seriously in Chinese society, and
people avoid introducing a social contact as a “friend” since this category fails
to provide any background information about the person (Smart, 1999). The
very concept of “friendship” as a form of social relationship only started to gain
importance during the processes of modernisation when people became free
of dependency on the land and started to encounter and co-operate with others
outside of kin ties and regional social networks (Bell & Coleman, 1999). This
research project started out with the assumption that social media would play
a key role in facilitating re-connection between kin. However, the ethnography
found that this was not the case for young migrant workers. In GoodPath many
young migrant workers left home to ‘become independent’ from the older gen-
eration, which made it possible for them to experience something new, fit into
and then take part in urban life. Breaking down the pre-existing structure of
social relationships was perceived as an essential part of growing up and be-
coming a modern citizen − to use the terminology of Victor Turner (1969) in
characterising rites of passage as the creation of an “anti-structure.”
Meanwhile, most generalised accounts of modern China stress the role
of schooling and education. Factory workers are a vast and significant exception
to these common claims about the close relationship between Chinese people
and educational aspirations. Most rural youth in GoodPath left their villages
and entered the factories between the age of 15 and their early 20s when most
of their urban peers were still attending school. What these young rural migrants
missed was not just formal education, but the chance to develop social skills
within the relatively secure environment provided by schools. In this context,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

social media had become the place where these young people could meet peers
and practise friendship (Wang, 2016).
“Without discarding the old, there would be no coming of the new” − this
folk saying has been applied many times by people to justify their friending
principles on social media. Many felt that the people they left behind no long-
er shared their value system and thus they became less motivated to keep
contact with them on social media. Baozi, a 23-year-old apprentice cook at a
local restaurant, would regularly delete his social media contacts:

Some of those [the contacts he deleted] are my fellow villagers and relatives… I
guess we don’t share a common language anymore. Those who stay in villages
worry about different things… well, without discarding the old there would be
no coming of the new.

In post-socialist China, young people have developed “a self-conscious


enthusiasm for coherence in their search for a new cosmopolitan humanity,”
which “emerged out of the upheavals and excitement within the uncertainties
of social life” (Rofel, 2007: 197). This is a situation the older generation have
article | xinyuan wang

815

never encountered and thus have no experience to share. Yan, Y. (2003) also
observed how young people were gaining increasing control of their own lives
and had no problem going against the wishes of their parents and other senior
family members in the rural community. However, in GoodPath, the young ru-
ral migrants still felt the surveillance and pressure from the older generation
but tried to avoid it. Xiaozhi, a 19-year-old factory worker, had a few relatives
in GoodPath, all working at factories. Once over dinner, one of Xiaozhi’s aunt-
ies told her not to spend so much on shopping, recalling that when she was
her age, she had contributed money to the family. Xiaozhi blushed and left
without finishing her dinner. Before long, her QQ status was updated, saying
“QQ is the only unpolluted land left where old women all shut their mouth.”
Later Xiaozhi explained: “They know nothing but still point fingers, I had
enough… at least on QQ I don’t need to listen to their rubbish.” The fact that
Xiaozhi had no family member or relative on her QQ made the platform her
“only unpolluted land.”
In GoodPath, although people still tended to address one another as
“fellow villager”’ (lao xiang) or “fellow worker” (gong you), rather than “friend” in
offline situations, it seemed that the situation had changed on social media.
The capacity to make new friends online was regarded as convincing evidence
of one’s personal charm and modern taste. As 23-year-old Bingbing remarked:
“If you remain in a small village you will never know the importance of friend-
ship… people in cities all have many chances to meet new friends, and they
have many friends.” The majority of contacts on social media did not come
from kinship or regional ties, and even strangers played an important role. It
was not unusual to see people spending hours on QQ chatting with “online
friends” (wang you) with whom they had no offline connections at all. This re-
flects a more general acceptability of strangers as a result of experiences with
social media in contemporary China (McDonald, 2016).
A representative case was provided by a factory forklift truck driver, Feige,
who was highly active in various QQ groups. Even though Feige hardly knew the
real names of his online friends, he found chatting with them was most enjoy-
able and relaxing. He felt that people made friends with him not because of any
pragmatic concerns, such as asking for money, and among online friends he was
not judged as a rural migrant − “The friendship online is much purer,” Feige
remarked. Contrary to the widespread idea that relationships mediated by digi-
tal technology are not as authentic as offline relationships (Fröding & Peterson,
2012; Turkle, 2011), Feige’s case showed that online relationships may feel purer
and more authentic than the offline. The common view amongst migrant work-
ers was that the voluntarism of these online relationships that have not been
imposed on them by outside forces resulted in their greater authenticity.
The new online relationship also allows for a different kind of communi-
cation. Like many of his peers, Baozi’s connection with his family back in the
the digital dasein of chinese rural migrants

816

village was mainly via phone calls. In these phone calls, practical concerns such
as daily errands, wages, and job hunting predominated, whereas on Baozi’s QQ
profile, more than half of the articles he shared over the past year were inspiring
stories of successful men. From time to time, there were also articles about life
philosophy. It was also while on QQ chatting that Baozi told me most of his
personal stories. Baozi commented: “There is no point talking about feelings or
daydreams with your family. Family needs solid things… like money or a stable
job… Online you can talk about feelings or dreams… and you feel comfortable
talking about these things here [on QQ] and everybody on QQ does so…”
For Liping, Feige, Baozi and many others, social media is the place where
they are not excluded as “outsiders,” and the proper place to express themselves
alternatively. It is not only because the platform provides different possibilities
for communication, but also because it has become normative. The online space
is perceived as the place where such communication and self-expression are
justified since “everybody on QQ does so,” as Baozi observed. It has become a
practice in the sense given by Bourdieu, one dependent on the “economy of the
proper place” (de Certeau, 1984: 55). The sense of which action is possible and
appropriate depends on the specific place that an individual occupies (Bourdieu,
1975). It was challenging to make friends offline because of shortened schooling
and social discriminations, as well as the pragmatic use of interpersonal rela-
tions to survive in a floating life. These factors account for the use of social
media as an alternative “proper” place for young migrants to participate in the
new sociality, as well as to break away from the old social structure. Practising
friendships online has been integrated into the process of coming of age and
has become an important way for these young people to gain their new identity.
Migrant workers in this study had no decision of where to be born or
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

into what kind of situation − like every human being, they were “thrown” into
the world. But as Heidegger puts it, Dasein is not present-at-hand, but the pos-
sibility of various ways of being. Furthermore, as the theory of objectification
proposes, “as an intrinsic part of being, and in order to attempt an understand-
ing of the world, the subject continually externalizes outwards, producing forms
or attaching itself to the structures through which form may be created” (Mill-
er, 1987: 179-180). “A subject cannot be envisaged outside the process of its own
becoming” (Miller, 1987: 179). Here we have seen the ways in which young rural
migrants explore the possibilities of their own “becoming,” both in terms of
self-presentation and in terms of developing a desirable sociality on social
media. The next section brings a further focus on the lived experience of “being-
in-the-world” facilitated by social media.

Being-in-the-world: Social media as home


For Heidegger, the homeland (Heimat) is where human beings exist in a state
of “nearness to Being.” As such, he calls for a return to the homeland (Heidegger,
article | xinyuan wang

817

1977a: 241-242). By equating the emergence of Dasein with the homeland, this
Heideggerian ideology has influenced many traditional studies of migration
and diaspora, providing a philosophical underpinning of their work with dis-
placed people’s desire to return to their homeland and satisfy a longing for
home and the sense of belonging (Falzon, 2003; Safran, 1991).
Far from being this desired return, in GoodPath “homeland” seems to
evoke ambivalent and often negative feelings. Longing to become modern citizens,
young rural migrants are eager to be done with their rural background, which
is always associated with the homeland. “Post-Mao development has robbed the
countryside of its ability to serve as a locus for rural youth to construct a mean-
ingful identity” (Yan, H., 2003: 579) The countryside is constructed as a “wasteland
of ‘backwardness’ and ‘tradition’” (Yan, H, 2003: 586). On the other hand, what
everyone regards as their floating life constantly reminds them of the continued
importance of having a homeland. For most migrant workers, returning has
become a myth. First of all, they are very likely to lose their financial independ-
ence, or even the chance to make a living back in the villages, and, in any case,
people see themselves as no longer belonging to these rural communities. As
increasing numbers of the migrant population are born during the “floating” life,
more and more young people have no real-life connection to the villages. When
“home” refers to the place of origin, it is not automatically impregnated with the
usual sense of place of belonging where people “feel at home” (Siu, 2007).
Such mixed feelings about homeland were manifested in people’s social
media profiles. Even though interpersonal communication with home village
contacts was in many cases left out on QQ, visual elements of their homeland
gained popularity on people’s social media profiles. Around 15 per cent of rural
migrants’ QQ profiles had a specific online album called “homeland” (lao jia). For
example, Hua, a factory worker in her 30s, uploaded large numbers of photo-
graphs of the mountain behind her native village to her QQ album. She had been
floating for almost a decade and only visited her home village three times dur-
ing that period. Hua thought she would never move back to her home village, as
she explained: “My home village is a place you always miss, but not really a
place you want to return to.” “History is always ambiguous, always messy, and
people remember, and therefore construct the past in ways that reflect their
present need for meaning” (Ang, 1993). It seems that by posting the home village
images on QQ, all the negative memories and associations of village life had
been excised, leaving only the positive symbolic meaning of homeland. Once
again, then, we see how online spaces enable rural migrants to construct an
alternative site of homeland with which they feel they can relate more posi-
tively because they have created and crafted these albums, in contrast to the
physical homeland which they merely happen to have come from.
Further scrutiny of rural migrants’ social media profiles revealed diverse
forms of homeland-making. While most homeland postings contain photo-
the digital dasein of chinese rural migrants

818

graphs of physical villages, some carried no visual resemblance at all. Chun


Mei, a 25-year-old factory worker, shared a posting with the title “If you feel
tired, please go back to our village” on her WeChat (Figure 4). The posting reads:

“If one day we all feel tired, let’s go back to our village together, not to pursue
our aspirations, but merely for the transportation free of traffic jams and the
air free of pollution… dur ing the daytime we can work together in our little
vegetable garden, feed chickens and play with dogs, in the evening we can visit
old friends and neighbours…”

Rather than using a photo of the village, Chun Mei chose an “enjoying-
beach-holiday” image as the background picture.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

Figure 4
The homeland posting on Chun Mel's WeChat profile
article | xinyuan wang

819

The home village Chun Mei depicted on social media, which she and her
husband had left nine years previously, is completely different. Recently the
couple had to move back to their home village to take care of their seriously ill
parents. Chun Mei’s husband complained at length about village life: “Had it
not been because of my parents…we would definitely not have gone back to
the rubbish countryside.” Given the tough situation that the young couple en-
countered in their home village, what Chun Mei posted becomes even more
puzzling.
The ethnography provides a plausible explanation. The program Where
are we going, Dad? – Chun Mei’s favourite live TV show – is about five celebrity
fathers and their children travelling to rural places. In one episode, a movie
star remarked: “even though it’s tough, I enjoy the pure and natural life here
[in the countryside].” Chun Mei demurred: “I really don’t understand why the
urbanites think the countryside is so good! Maybe they had too much sweetness,
and they’re looking for some bitterness…”
Chun Mei’s remark echoed another comment made by a young factory
worker. When I asked to take some photos of their place, the host, in his 40s,
appeared reluctant and urged his wife to sort out the room quickly. His sugges-
tion was disdained by his son, who exclaimed: “There is no need to make the
room look better… they all like these things. The more rural, the better!” The
17-year-old young son’s irony skewers this urban aesthetic which values the
authenticity of the rural. Such awareness emerged from their consumption of
popular content in the mass media and on social media, as well as their own
experience in urban areas. Picking on urban taste is regarded as essential to
becoming urban citizens (Fang, 2011). So, the repudiation of their place of ori-
gin is deflected by their need to incorporate bucolic ideals of the urban imagi-
nary re-cast as nostalgia. By setting themselves apart from the countryside and
appreciating it as the “other” place on social media, Chun Mei gave a future to
her rural past with the self-expectation of becoming urban. Social media is
thus the chrysalis within which homeland undergoes a metamorphosis from
dirty grub to fantasy butterfly.
David Morley (2000) argues that home in the digital age is a transitory
construct where new media not only articulate the “home” but also transgress
its boundaries. Vincent Descombes defines home as a virtual space: to be at
home is to be at ease with the rhetoric of the people with whom the person
shares a life (Auge, 1995: 108). “Homeland” and “home” are, in many cases, in-
terchangeable in daily conversation in GoodPath. Regardless of the differences
between “homeland” and “home” in various specific situations, in most cases
a longing for home or homeland begins when people feel “not at home.”
Lily, the factory girl who took artistic photos, lived with her sister in a
simple room that used to be a storage space for a small grocery shop. Without
proper ventilation and air conditioning, it was literally a sauna on hot summer
the digital dasein of chinese rural migrants

820

days. However, this did not prevent Lily from spending most of her leisure time
sitting on the edge of her bed, working on her QQ with eyes glued to the screen.
It seemed that the physical surroundings had no influence on her at all when
she immersed herself in the QQ world. The moment when she finally “returned”
to the offline world, Lily looked up and sighed: “Life outside the mobile phone
is unbearable.” Such an extreme statement only makes sense once we con-
sider the physical place in which Lily had no choice but to stay and the digital
space where she chose to live in. Here the feeling of being-in-the-world has
little to do with the physical place as Lily demonstrated how she and her fellow
rural migrants managed to create and sustain a sense of belonging and au-
tonomy online.
Human beings are never truly at home in the world, indeed: “Not-being-
at-home must be conceived existentially and ontologically as the more primor-
dial phenomenon” (Heidegger, 2000: 41). Nevertheless, the feeling of not-being-
at-home seemed likely to be overwhelming among this floating population. On
Chinese New Year 2014, Yue, a 21-year-old girl, posted on QQ:

Nowhere makes me feel at home. Nowhere! Well, QQ is probably the most home-
like place, where at least some friends wish me happy new year here… and one
of them even gave me a paid QQ decoration (QQ zhuang ban) 2 as a new year’s gift…
at least my home on QQ has a new look in the new year.

Yue was forced to get married when she was 17. She managed to run
away from her hometown when she was only 19, hoping that she could have a
different life, but she was wrong. There was nowhere, no geographical place, to
make Yue feel at home. Yet the digital dwelling on QQ, in a way, compensated
for this loss. The uncanny feeling of “not-being-at-home” always highlights the
inconvenient absence of home, and the desire return, and further contempla-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

tion of home, is thus awakened. It was on QQ that Yue managed to express


herself, to wish life could have a new look. It was also on QQ that Yue felt she
might be able to receive care and friendly wishes from people, rather than, as
she remarked, being dumped and betrayed.
There is simply no reason to assume that the online is any less able to
be a home than the offline. Jackson (2000: 6) uses his ethnography of aboriginal
Australia to illustrate how the meaning of home cannot necessarily be sought
in the substantive and how people use “house” as a verb in as much as the term
refers to fleeting things. Based on fieldwork with herding families who traverse
the Mongolian-Russian borders, Rebecca Empson (2011) provides intimate in-
sights into the ways in which photographic montages and mirrors in domestic
spaces bring relations into being and articulate a notion of home for these
families who have no private land or state of their own. Both ethnographies
allude to Mary Douglas’s argument (1991) that home starts by bringing space
under control and home is not necessarily fixed in space. Yue had no control
over which family she was born into, and when she tried to run away, she lost
article | xinyuan wang

821

control of her offline life. Social media in her lived experience was the only
place where she could find some control: hence it was the place where she felt
most at home.
“Imagination,” writes Bachelard (2014: 43), “separates us from the past as
well as from reality: it faces the future.” In The Poetics of Space, he praises im-
agination’s power to realise the world’s potential. In Bachelard’s mind, “the
highest act of imagination is the will to attune oneself to the saying of being
itself” (Kearney, 2014: 17). Facilitated by the digital, imagination, stimulated by
aspirations, gives birth to the digital Dasein where human existence can feel at
home in the world. “In objectification, all we have is a process in time by which
the very act of creating form creates consciousness or capacity such as skill
and thereby transforms both form and the self-consciousness of that which
has consciousness, or the capacity of that which now has skill” (Miller, 2005:
9). What Heidegger probably missed is the creative imagination, which has been
further empowered by the affordance of social media in the process of objec-
tification, so that Dasein can re-inhabit a world created by itself. Heidegger
failed to pursue certain implications of his own arguments (Larsen & Johnson,
2012). “Dasein is its possibility” (Heidegger, 1962: 42): however, by prioritising
an idealised homeland as the place where Dasein can be near to its authentic-
ity, Heidegger overlooked its other possibilities. Responding to Heidegger’s claim
that the authenticity of dwelling is destroyed by the spread of technology and
mass production, Harvey forcefully accuses him of “a pervasive elitism”: “Some
people can claim the status of authenticity by virtue of their capacity to dwell
in real places… while the rest of us − the majority − live empty and soulless
lives in a ‘placeless’ world” (Harvey, 2009: 187). Chinese migrant workers may
well be categorised as a “placeless” or “floating” population given their offline
living situations, but there is simply no reason for us to overlook their digital
Dasein, which is as profound and authentic as any form of human existence.

Conclusion
It might seem surprising to equate Heidegger’s existential philosophy (1977b)
with the everyday practices of social media among Chinese rural migrants,
given Heidegger’s deep scepticism of technologies of communication. Clearly,
the circumstances investigated in this paper could not have been envisaged by
Heidegger. But it is still important to see just how challenging an ethnography
within the digital age can be to what has been regarded as an inspiring approach
to the very notion of human existence and the issue of place represented by a
phenomenological perspective. There is an obvious temptation to dismiss the
understanding and experiences of these factory workers because, in their cre-
ation of these worlds, they ignore those transformations of political economy
and history that led them to have these desires and aspirations in the first
place. Huge and powerful forces represented by rapid industrialization, the
the digital dasein of chinese rural migrants

822

Chinese party-state and the pressures of a new consumer economy have also
driven this rural migrant population into a desire for modernity characterised
by affluence and an urban lifestyle. But if we dismiss their creative interpreta-
tions and self-understandings, we would indeed have to be equally dismissive
of Heidegger’s claims regarding the rural German population that he took to be
icons of authenticity, since they too were the creations of historical transforma-
tions in the German peasantry and equally powerful economic, religious and
political forces. They no more chose to be who they were and their own values
than these young Chinese factory workers. Anthropology has retained the ca-
pacity to both insist that we recognize and give weight to the historical forces
that create habitus and treat as authentic the practices that we encounter eth-
nographically and people’s ability to create a new normativity.
Following the theory of objectification (Miller, 1987), what needs to be
studied are not things or people but processes – which means that we are not
studying the adoption of objects by subjects, because there is no fixed thing
called social media or fixed group called Chinese migrant workers. Rather, the
ethnography shows what the new generation of Chinese migrant workers has
become in light of their use of social media and what social media has become
in light of its use by Chinese migrant workers (also see Horst & Miller, 2006: 7).
From self-crafting to home-creating online, the use of social media among
Chinese rural migrants actually represents us with a parallel to the offline-to-
online migration taking place simultaneously to the massive rural-to-urban
migration (Wang, 2016). Chinese young rural migrants who do not feel at home
in their home villages or in the factories and cities, finally encounter a feeling
of being-at-home on social media. The home or homeland that was lost, or
simply never existed in the physical world, comes to life online. The labour
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

which produces humanity is not the factory work but the craftsmanship on
social media, which produces not only themselves but also the world within
which they dwell.
Today’s world is often characterized by words such as hyper-mobility,
time-space compression, globalization and the like. Across the world, fewer
and fewer people live their lives in the places where they were born. Perhaps
at no other time in history has the question of the relationship between iden-
tity and place seemed so urgent (Jackson, 2000: 1). The intention of this paper
has been to discuss what may well appear as something like the extreme use
of current social media by Chinese rural migrants. This population is radical to
the degree that they can be described as a “social media population.” Spurning
the sociality of both their place of origin and the factory floor, the only possi-
bilities given to them offline, they embrace the opportunities facilitated by
social media to the fullest. But I would argue that there are grounds for think-
ing that the kinds of situation I have been describing here will become more
common around the globe in the future.
article | xinyuan wang

823

“There is no a priori subject which acts or is acted upon. The subject is


inherently dynamic, reacting and developing according to the nature of its
projections and experience” (Miller, 1987: 179). Dasein is not a given, but some-
thing made; not a bounded entity, but a dynamic model of being-in-the-world,
which is defined by connections and relationships rather than physical location.
The site that holds the desired sociality and self is the key place for human
existence, and such a site need not be a geographic location. The actual geo-
graphical location in which all kinds of migrants are situated may come to
matter less and less – to some, like Chinese migrant workers, even reduced
largely to the functional facilities of working, eating and sleeping. However,
when it comes to their emotional geography, the place where they feel they are
actually dwelling at the time, it may not be their current physical location. More
generally in modern life, in the face of digital ubiquity, even for non-migrants,
online activities have become an integral part of more and more people’s daily
life all over the world (Miller et al., 2016). Rather than being a fantasy or the
other place, the spatiality of the digital has been absorbed into the fabric of
ordinary everyday life. “Most serious thought in our time struggles with the
feeling of homelessness,” as Susan Sontag (1986: 53) keenly observed. Although
the feeling of “placelessness” may manifest itself in a somewhat extreme form
in the case of floating populations, as a consequence of mobility it is a feeling
shared by migrants and non-migrants alike, especially in the age of migration
(Castles, Haas & Miller, 2013). The critical concerns that really matter are the
relationships, the site of connections, rather than the physical locations of the
participants.
As Miller (1987: 11) points out, “Perhaps the major shortcoming of many
theories of the concept of culture is that they identify culture with a set of
objects… rather than seeing it as an evaluation of the relationship through
which objects are constituted as social forms”. Instead of seeing the digital
infrastructure as “a set of objects” that provides affordance to human societies,
I argue that the ubiquitous digital has indeed become the place of daily life
where social relations are navigated, and social forms and norms emerge. For
anthropology, the possibilities of the digital as the dwelling place and of the
digital Dasein need to be taken seriously if we are to understand human exist-
ence and sociality in the digital age.

Received on 30/6/2020 | Revised on 09/11/2020 | Approved on 18/9/2020


the digital dasein of chinese rural migrants

824

NOTES
1 The names of the town and informants are all pseudo-
nyms.
2 The dig ital application on QQ allows user to apply spe-
cific a profile style, including head banner, background
picture and music, font, tailored layout, and so on. QQ
offers a range of free decorative elements, as well as paid
ones that people can purchase for themselves or other
users.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

Xinyuan Wang is a post-doctoral research fellow at UCL


Department of Anthropology. She received her PhD in anthropology
from UCL in 2016. She is an artist in Chinese traditional painting
and calligraphy. She is the author of Social media in industrial China
and is the co-author of How the world changed social media. She
translated Horst and Miller’s Digital anthropology into Chinese and
contributed a piece in the Chinese version of the book Digital
anthropology by Beijing People's Press.
article | xinyuan wang

825

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O DASEIN DIGITAL DOS MIGRANTES


RURAIS CHINESES
Resumo Palavras-chave
Este artigo procura reconhecer as possibilidades radicais Dasein;
nos modos pelos quais a existência humana é percebida e objetificação;
construída na era digital. Uma etnografia de 15 meses, fo- mídias sociais,
calizando o uso das redes sociais entre os operários chine- antropologia digital;
ses, é empregada para abrir uma conversa com pensamen- migrantes rurais chineses;
tos filosóficos sobre a existência humana e pensamentos migração.
antropológicos sobre objetificação. Afinal, as mídias sociais
são mais do que uma forma de comunicação ou uma tec-
nologia que facilita a conexão entre diferentes locais. Ao
explorar as três camadas de experiência existencial dos
migrantes rurais chineses no contexto do uso onipresente
da mídia social, o artigo sugere que podemos começar a
considerar o grau em que a mídia digital é em si um lugar
em que as pessoas realmente vivem e se sentem em casa.
O reconhecimento de tal construção de lugar por meio do
digital nos permite repensar a relação entre a materialida-
de e as possibilidades digitais para a existência humana e
explorar mais o processo fundamental de objetivação pelas
lentes da antropologia digital.

THE DIGITAL DASEIN OF CHINESE RURAL MIGRANTS


Abstract Keywords
This paper sets out to acknowledge the radical possibilities Dasein;
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 807 – 830 , sep. – dec., 2020

in the way in which human existence is perceived and con- objectification;


structed in the digital age. A 15-month ethnography, focused social media,
on the use of social media among Chinese factory workers, digital anthropology;
is employed to create a conversation with philosophical Chinese rural migrants;
thoughts on human existence and anthropological thoughts migration.
on objectification. Social media is more than a form of com-
munication, or a technology, that facilitates the connection
between different locations. By exploring the three layers of
existential experience of Chinese rural migrants in the con-
text of ubiquitous social media use, this paper suggests that
we might start to consider the degree to which digital media
is itself a place in which people actually live and feel at
home. The acknowledgement of such place-making via the
digital allows us to re-think the relationship between the
materiality and digital possibilities for human existence and
further explore the fundamental process of objectification
through the lens of digital anthropology.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v1033

1 Universidade Federal Fluminense (UFF), Programa de Pós-Graduação


em Comunicação, Niterói, RJ, Brasil
barros.carla@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0003-4037-1060

Carla Barros I

Not even the sky is the limit: the meanings


of consumption and the dynamics of
social mobility on the @blogueiradebaixarenda
profile on Instagram and YouTube

Conventional economic thinking in relation to poverty is situated within a


wider field of representations that associates “resource scarcity” with “subsist-
ence economies.” In this view, poor and indigenous people live in an eternal
“fight for survival” in hostile environments governed by “material shortage.” An
automatic association is made in this explanatory model between “basic needs,”
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

“privations,” “scarcity” and “the fight for survival.” If the primordial character-
istic of consumption is choice, then the presupposition is that economically
less-favoured classes do not practice the act of choosing, being guided instead
by a logic of lack and material shortage. Sahlins (1979) developed a powerful
critique of utilitarianism, understood as the idea that individuals follow their
own best interests through a logic of maximizing means-end relations, and that
all human cultures are thus formed through practical activity and utilitarian
interest. He rejects the notion that human cultures are formulated through
practical activity, calling attention instead to how the cultural order is consti-
tuted within the field of meaning.
The historical disinterest in the consumption of popular classes in the
social sciences is partly due to the prevalence of this logic of “lack” and the
“fight for survival,” which in practice removes the structuring symbolic and
cultural dimension from the phenomenon. As Barbosa (2004: 62) observes, the
study of consumption in Brazil appeared much more within a vision of “losses
and absences” than one of “gains and positive changes”.
not even the sky is the limit

832

Indifference to the topic gradually dissipated. A pioneering landmark


was the publication in 1985 of the book Magia e capitalismo (Magic and capital-
ism) by Everardo Rocha. In this work, the author analyses consumption as an
ideal means to understand social relations in the contemporary world, present-
ing an analogy between the rationale of advertising and totemic logic. From
the second half of the 2000s, ethnographic studies aligned with the field of the
anthropology of consumption began to emerge, expanding the field of research.
A common characteristic of these works has been to extricate consumption
from its position of mere subordination to the sphere of production, posing it
as a crucial element of symbolic and social reproduction. A complex phenom-
enon, a producer of meanings, communicator of alterities, localizations in so-
ciety, and a mediator of relations with other spheres of the social.
One tendency in these studies on consumption among low-income groups
has been to observe the phenomenon as an expression of distinction and emula-
tion, supported primarily by the contributions of Bourdieu (1979a) and Veblen
(1970), respectively. Although these are important analytic frameworks to be
mobilized, this field of investigations needed to be expanded through research
into specific situations that reveal other dimensions of such a nuanced theme.
Some of these studies have emphasized the act of consuming as a desire for
belonging, as Silva (2010) points out in her ethnography showing how mobile
phone use expresses a mode of access to wider society, a “being-in-modernity.”
Other works have demonstrated that a poverty of resources is not synonymous
with material scarcity (Barros, 2007; Scalco & Pinheiro-Machado, 2010; Castro,
2016). On the contrary, the materiality of the groups studied provided an enor-
mously rich source of cultural meanings, their budgets allocated to a diverse
range of consumer items very distant from the narrow logic of “subsistence
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

items.” Among middle- and upper-class sectors of Brazil, in parallel with aca-
demic studies, there has been a moral condemnation of the profusion of “out-of-
place” objects among the popular classes, shown in the purchase of expensive
mobiles and smart TVs. An expansion of material culture apparently inconsistent
with the economic circumstance of scarce resources.
Thus, learning about the behaviour of specific social groups is a privi-
leged form of mapping modern-contemporary culture. This involves compre-
hending consumption as a creator and maintainer of social bonds, a classifier
of identities, a means of expressing subjectivities, a mediator of society’s fun-
damental values, seeing the phenomenon, in sum, as an articulator of systems
of categories with an expressive and symbolic function.
It is in this context that the interest emerges in analysing the @blogue-
iradebaixarenda (@lowincomeblogger) profile as a marker of important ques-
tions relating to the consumption of low-income groups. Very popular in Brazil
on social media sites like YouTube, Twitter and Instagram, the profile sets out
to publicize the “low-income lifestyle,” a theme in which consumption occupies
a prominent place.
article | carla barros

833

Since the research was undertaken in digital environments, it is worth


recalling the position of Miller and Slater (2004) concerning the inadequacy of
any a priori distinction between online and offline life. The authors, who stud-
ied the relations lived in cybercafés in Trinidad, pointed out that this distinction
should not be established as neither a methodological or an analytic starting
point for research: on the contrary, it is contingent, since in some contexts
people establish clear boundaries in their lives for each of these spheres, while
for others the distinction is irrelevant or simply never made.
The research forms part of the field of anthropological studies that ad-
vocates exploring consumer activities as important everyday phenomena of
cultural creation (Miller, 1987). In the discussion on material culture more spe-
cifically, Daniel Miller took inspiration from Hegel’s reflections to suggest that
material culture is a specific mode of externalization of industrial society. Goods
produced on a large scale and in huge variety are reappropriated at the level
of consumption when they lose the anonymity present in the domain of pro-
duction to be humanized, completing the trajectory from merchandise to pri-
vately-owned item. The author seeks to unravel the meanings and implications
of this proliferation of material goods making up industrial society by identify-
ing the specificity of its “progress” through the continual emergence of exte-
rior forms in the form of goods. Through the process he calls “objectification,”
person and object become connected after consumption as subjects reveal their
choices, worldview and aesthetic sense through their uses of the objects.
As Kopytoff (2008) emphasizes, the object-person separation is highly
particular and limited in scope, although lived in western society as though it
were a universal phenomenon. Objects, in their relations, always constitute
classificatory systems in which we situate and hierarchize them.
The article thus sets out to comprehend the meanings of consumption
in the @blogueiradebaixarenda profile on the online social networks Instagram
and YouTube, considering the perceptions concerning materiality and their ar-
ticulations with the dynamics of social mobility in an extremely hierarchized
society like Brazil’s. Its aim is to analyse which elements make up the “low-
income lifestyle” (lifestyle baixa-renda) as a native category within the context
of “digital influencers.” The research was developed through the analysis of the
posts 1 made by the @blogueiradebaixarenda profile on the Instagram and You-
Tube social networks from the beginning of the author’s online presence to
February 2020. Hashtags (#) were also included since they comprise native clas-
sifications. As well as constituting a way of grouping messages that allow
searches for specific content on social media, these symbols are of direct inter-
est here since they are created and tagged by the users themselves, allowing
the classificatory logics of the actors to become apparent. Hashtags can also
express feelings, ideas or humoristic contents when the intention is not only
to help users find topics.
not even the sky is the limit

834

The field procedure adopted was online observation, a particular modal-


ity of observational research (Flick, 2004) conducted in the digital environment,
accompanying social dynamics on the online platforms without interacting
with users. Selected images have been included in the text without the need
to camouflage people’s faces since the @blogueiradebaixarenda on Instagram
is a public, not private, account. Hereafter, Blogueira de Baixa Renda (Low-In-
come Blogger) will be abbreviated to BBR.

The low-income lifestyle


The BBR profile present on digital platforms was created by Nathaly Dias, 27
years old, a resident of the Morro do Banco community in the East Zone of Rio
de Janeiro city. In her posts, she recounts her upbringing in a family with severe
economic difficulties until her enrolment on a university course where she
studies Business Administration with a full scholarship.
Nathaly is active as a content creator on the social media platforms 2
Instagram (124,000 followers in February 2020) and YouTube (160,000 subscrib-
ers in February 2020) with the proposal to divulge, in her own words, the “life-
style of the poor” and raise the awareness of baixa-rendinhas – “low-incomers,”
the nickname given to her followers – that belonging to a particular social class
is not an impediment to social mobility.
In her profile presentation on Instagram, Nathaly declares that she is “(re)
signifying influence.” In an interview, she explains how she perceived that the
universe of so-called digital influencers 3 was formed largely by women who di-
vulge luxurious lifestyles with a level of consumption very distant from the
everyday world of most of the population. From this perception emerged the idea
of exploring “low-income lifestyle,” (re)signifying influence by adopting a more
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

realistic tone matching the experience of the popular classes in Brazil. 4


One of the main theoretical references for the concept of “lifestyle” is
Bourdieu (1979a), who suggested that different classes exhibit different life-
styles according to the place occupied in the social hierarchy. ‘Taste,’ as a pro-
pensity to appropriate certain objects and practices, appears in a set of distinc-
tive preferences expressed in elements like furniture, clothing and bodily
hexis, among others. The emphasis in this article is on the idea of lifestyle as
a native category, seeking to analyse its constitutive elements and meanings
present in the context of the BBR profile.
It is worth emphasizing that the polarity between low-income and high-
income lifestyles appearing in the case analysed here can be inserted in a
debate on imitation and distinction developed by various authors from the
social sciences like Veblen, Simmel, Bourdieu and McCracken. In this context,
the “trickle-down” theory stands out, discussed by Veblen (1965) and Simmel
(1957) and carefully revised by McCracken (1988). According to this theory, the
entry point for a fashion object should be the society’s highest class: from there,
article | carla barros

835

the other classes would successively copy what they saw above within a logic
of imitation on the part of subordinates and differentiation on the part of the
elite, leading to a constant renewal of the fashion circuit. As McCracken (1988)
argues, the behaviour of the groups at the base of the pyramid cannot be reduced
to just a single possibility as trickle-down theory suggests. Alongside the imi-
tation and assimilation of what is created by the elites, the popular classes
also reject many of these tendencies or reformulate them according to their
own codes. In the present article, I eschew the idea of trickle-down because of
the element of generalization present, which presupposes a passive behaviour
among subordinate classes. In this context, alterity presents various layers in
which the affirmation of the singularity of class coexists with the desire for
practices of consumption related to a more individualist set of ideas (Dumont,
1972), as we shall see later.
Nathaly Dias’s activities as a content creator on the internet began with
the creation of the @blogueiradebaixarenda profile on Instagram on October 3,
2017. The choice of this social network to begin her career as a blogger had a
declared motive. Instagram is known for the significant presence of images of
luxury and ostentation in numerous profiles, especially those of digital influ-
encers who divulge lifestyles connected to high patterns of consumption. Sim-
ilarly, this appropriation connects to a practice found on the pinboards of Pin-
terest, another online social network where the visualization of goods and
settings is stimulated by “daydream” mechanisms as a mode of “contemplative
digital materialism” (Barros, 2015). As a theoretical concept formulated by Col-
in Campbell (2001: 128), the daydream is characterized by the use of the im-
agination for pleasure through the search to anticipate a real event. The author
calls this process “self-illusory hedonism”, wherein the individual is the artist
of the imagination and dreams, taking images and rearranging them into unique
products. This is identified as a legitimate modern faculty – the creation of an
illusion known to be false but felt to be true. In this “hedonism in another world,”
different from traditional hedonism, the unknown is a field open to innumer-
able and unlimited possibilities. Desire here is allocated in the unknown, itself
a pleasurable activity. Faced with an elitized universe of consumption, the BBR
profile is explicitly opposed, offering a self-described “feet on the ground” ap-
proach that seeks to inject doses of “reality” in each post. “Dreaming” is also a
constant theme but based on the deglamourized day-to-day life of the blogger:
“I fight every day for an internet I always wanted to see, REAL.”
Baixa-renda, low-income, is an adjective used on the profile to encompass
a universe of situations, forms of consumption, modes of being, sociabilities and
moralities. How to travel without spending much, how to paint the walls at home,
how to make purchases in a controlled fashion, how to stop procrastinating, how
to cook low-income meals: these are some of the themes of the posts whose
hashtags frequently include the adjective: #casalbaixarenda (#lowincomecouple),
not even the sky is the limit

836

#faxinabaixarenda (lowincomecleaning), and many others. BBR’s husband and


mother also gravitate around the same designation, their profiles on Instagram
named @maridobaixarenda (@lowincomehusband) and @maedablogueira (@blog-
germother). Her husband, Guilherme ‘Stu,’ participates constantly in the activi-
ties involving the BBR profile – he records the videos, interacts verbally during
the recordings, and features in many of the images published online.
Following the success on Instagram, BBR set up a YouTube channel and
began to attract the attention of the business market, becoming recognized as
an influencer of the “class C public.” This classification of a target public was
how the market labelled consumers, emerging from the poorest strata, who
experienced economic upward mobility during the Lula governments. With the
improvement in living conditions, marketing professionals identified this sec-
tor as a prime target for their campaigns, undertaking market research and
creating new forms of persuasive advertising (Moura, 2015). In this scenario,
Nathaly Dias appears as an important “digital influencer” close to the popular
classes, eventually contacted for a variety of marketing projects with companies
like SERASA Experian, Gol, Superdigital MEI, Editora Intrínseca and the Unic-
esumar faculty where she studies. The advertising posts – also called publi (from
the Portuguese publicidade) and indicated on her profile with the hashtags
#publi and #publibaixarenda – possess a strong element of financial education
and professional growth within a context of encouraging social mobility.
One of these partnerships, formed with the company Superdigital MEI,
illustrates how BBR poses herself as an example for anyone seeking upward
social mobility through work. The company sponsored a mini-series 5 on favela
entrepreneurs to advertise its banking business to people wanting to profes-
sionalize in which BBR appears selling bolos em pote (pot cakes).
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

The contents published on her profile have a strong motivational aspect,


seeking to “inspire,” as in the posts: “I came from the bottom of the well, so low
there was no further to go, and yet I managed to climb up, I’m raising myself
up again, building something beautiful. Lots of things that will help and encour-
age you,” “Woke up for what? Woke up to win!” or “Let’s wake up every day to
win and bash the sadness away, after all we wake up every day to fight.” The
response from her followers is typically enthusiastic, ranging from praise
“you’re beautiful, you’re the best…” and “best blogger!” – to thanks for the mo-
tivating messages. Also observable is the legitimization of her proposal to pub-
licize and represent low-income sectors, as in the post: “this Instagram is mar-
vellous, I’m feeling represented ❤”
The Morro do Banco community where BBR lives is visible in numerous
posts, as in the YouTube video Tour of the favela | Morro do Banco.6 In this way, the
“effect” of the social conditions, circumstances and constraints on individuals is
underlined. The emphasis on the physical, social and human “geography” of the
favela as a place of origin expresses a feeling of belonging to a reality perceived
article | carla barros

837

as highly active in the creation of aspects like behaviours, sociability, life condi-
tions and sensorialities. In the latter field, one element that is frequently em-
phasized is the high volume of noise present in the community, whether the
loud voices of neighbours or the sound of a passing motorbike. The comments
in response to these posts tend to confirm a particular conditioning of life in
the community: “that’s what it’s like among the low-income,” Nathaly remarks
in one video, as though apologizing too for something perceived as undesirable.
The embarrassment shown with the emphasis on the faltas (lacks, wants,
deprivations) that make life in the favela precarious closely reflects the con-
struction of these communities as problematic places from their first emergence
in Rio de Janeiro at the end of the nineteenth century (Valladares, 2005). Since
then, serious social problems have been associated with these urban spaces,
depicted as hotspots of extreme poverty, filth and insalubrity, an example of
the country’s housing crisis and the genesis of social violence (Machado da
Silva, 2002). The precarious living conditions in her local community and the
strategies available to confronting and find a solution to this adversity are,
therefore, themes widely present in BBR’s profile.
But although the “problem favela” appears in some of her content, this
is not the overall tone of the posts. Superimposed is the perception of a space
of morality in which conditions can shape noble values like perseverance and
persistence. There is a valorisation of community residents, emphasizing their
adaptability to scarce resources (“poor people get by”), their creativity and pro-
file as “warriors” in the “battle” of everyday life, a feeling that can be expressed
in the idea of superação, “overcoming.” In this emphasis, there is no feeling
ashamed of the favela – no social construction of the locality as a “problem
place” – but instead pride over a sense of belonging, expressed, for instance, in
the slogan on the t-shirt that appears in one photo published on Instagram,
taken in front of the window with the community in the background: respeita
minha história, respect my history.
In this context of valorising the favela’s residents, BBR poses herself as
an example to inspire others, emphasizing her trajectory from a childhood of
poverty, the daughter of a housemaid who raised her two children alone, to her
present life as a university student and digital influencer. The emphasis is on
effort, tenacity, formal education and honest work to achieve a new social place.
The phenomenon of consumption occupies a prominent place in BBR’s
social media publications. The low-income lifestyle, in her proposal to show
popular class “life as it is,” is represented in posts like “poor people’s break-
fast,” “going to the market with 30 reais” or “monthly shop at the Guanabara
Anniversary.” 7
Among the various themes published in this context, cleaning is fre-
quently present, appearing though some cleaning activity being undertaken or
the display of recommended products, as in:
not even the sky is the limit

838

I love this product. It’s for general use but I throw bleach on everything, rinse
and wipe with this just to leave a nice smell. And aaaaaaaaaaah how I love the
smell, tomorrow my bathroom will still be like it’s just been cleaned.

REALOVE

🚽🚿🛀 # myhome # t idyhouse # cleanhouse # cleanbathtoom # myapt # poorbut-


clean #housewife

Source
<https://www.instagram.com/p/Bic0XSWFOXk/?utm_source=ig_web_copy_link>

Discussing the practice of washing clothes in Brazil, Barbosa (2006) has


shown how notions of disgust and pollution underlie the classificatory system
operating in the country. As Douglas (1976) proposed, cleanness is found at the
core of the symbolic reproduction of order. The Brazilian system, as Barbosa
points out, presents such complexity that it presupposes a total and radical
separation between different categories of clothes, distinguishing those of the
body from those of the home, based on the principle of pollution. The central
logic of this system is to prevent clothes that have had contact with certain
types of persons and things, taken to be distinct in nature, from mixing with
others, revealing how notions of pure and impure are articulated with an im-
portant moral code.
In the case of low-income groups, the negative connotation of poverty
may be compensated by many forms of care with cleanness, expressed in the
popular saying “I’m poor but clean.” Duarte (1986) had already called attention
to this compensatory dynamic also operative in the dimension of work with
the maxim “I’m poor but hardworking.”
Thus, the emphasis on cleanness can be experienced as a way of dealing
with the stigmatization of poverty as a polluting element (Douglas, 1976), work-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

ing to loosen class segregations. In the BBR profile appear both the hashtag
#poorbutclean, and the variation #oldbutclean. In one of the Instagram posts,
this latter expression appears alongside a photo showing a clean oven with
comments expressing playful regret, since it was soon due to be dirtied again
by her mother who would be using it “on loan.”
Observing the set of hashtags, a profusion exists around the themes of
cleaning and household work, like: #cleanoven  #cleankitchen  #tidy-
house  #springclean  #housewife  #myapt  #myhome  #cleaning  #decor  #mar-
riedlife #homeblogger #eletrolux #homeneighbours
Identification with the cleaning theme led to the first commercial part-
nership of the BBR profile with the company Limpano, which sent her a basket
of their line of products:
article | carla barros

839

Figure 1
<https://www.instagram.com/p/Bk-y0yNlsaf/?utm_source =ig _web_copy_link>

Cleaning, as well as appearing as an element that serves in the construction of


a positive identity in the context of poverty, also emerges in another context
where the ‘basic’ encounters a lifestyle, as in the following post:

💥 W h e n y o u r c o l o u r p a l e t t e m at c h e s t h e s u p e r m a r k e t of f e r 💥
This is my blogger way of being… I can’t see washing powder without wanting
some.

#blogger #organisedhome #cleanhome #myapt #myhome #supermarket house-
wife #scrubbing #cleaning #cleanclothes #lookoftheday
not even the sky is the limit

840
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

Figure 2
<https://www.instagram.com/p/BlTLkPvl88n/?utm_source =ig_web_copy_link>

The hashtags #scrubbing and #cleanhome are found side-by-side with


#lookoftheday, highlighting the aesthetic and performative aspect of the dis-
semination of lifestyles in the online environment, enchanting the most ba-
nal tasks of ever yday life. Similarly, the packed lunch – the stigmatized
symbol of belonging to the popular classes – appears in a decorated frame in
another post where the combination of a ‘basic’ item and an aesthetic frame
is stressed.
article | carla barros

841

Thus, the negative connotation of poverty is compensated by the low-


income lifestyle, which softens this condition by passing to another plane on
which the idea of lifestyle relates to an act of choice (Slater, 2002), as well as
something that can be observed, admired and emulated.
In another post, BBR seems to be smiling as she cleans the bathroom,
wearing shorts and a bikini top, accompanied by the hashtags #my-
home,   #myapt,  #cleaning,  #lookoftheday and #housewife and the phrases:
“Real look of the day: CLEANING. That’s what accessible bloggers do SMILING
EMOJI.” The hashtag #lookoftheday, common on the profiles of a wealthy uni-
verse, is inserted in the context of the “feet on the ground” reality of the baixa-
renda (low-incomers). Her followers react by endorsing her place as a blogger
disseminating a particular lifestyle and trends, as in the humorous comment:
“Bikini-clad cleaning… I’ve discovered a trend! That’s what bloggers do! Haha-
haha 👏👏👏👏.”
As well as cleaning, other regular themes in the publications are meals, 8
products recently bought for the home, along with kitchen utensils and decora-
tions, items and goods photographed in stores as desired objects of future
consumption, and spaces in the apartment. In one of the posts, 9 the “real life”
dimension merges with the “daydream” (Campbell, 2001). Under the heading
“TABLE I’D LIKE TO HAVE VERSUS TABLE I’LL BE ABLE TO BUY,” the publication
displays two photos, one the table that BBR says she has the funds to buy, the
other the product she wants. As well as cataloguing the purchased or donated
items found in her home, the profile also registers the desired objects of con-
sumption, when the dream component mixes with the recorded materiality.
The purchased or desired objects are combined with dreamt or still im-
materialized goods like the “imaginary sofa”:

Testing my imaginary sofa

I haven’t a clue when I’ll manage to buy one, right, but I’m determined and even
if it isn’t a priority, I’ve already constructed everything in my mind. Have I ever
told you that I’ve never had a sofa? In fact, I’ve never had a LIVING ROOM! That’s
why I’m so eager to have one. ❤

‘Wish’ items that I want and will get in 2019:

📍Sofa
📍Table
📍Bed frame and headrest
📍Kitchen cabinet

And who knows, maybe a television for my living room? DREAMING IS GREAT,
I’M ADDICTED 💭

Note: I bookmarked Magalu [online store], maybe it’ll happen! HAHAHAHAHA


not even the sky is the limit

842

Figure 3: “https://www.instagram.com/p/Bocr7CLBLg7/?utm_source=ig_
web_copy_link”

Figure 3
<https://www.instagram.com/p/BmbxvizhNW1/?utm_source=ig_web_copy_link>
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020
article | carla barros

843

When items from her home are shown in the posts, whether public or
not, they are accompanied by information on the retailer and price, indicating
a good buy:

Figure 4
<https://www.instagram.com/p/BmbxvizhNW1/?utm_source =ig _web_copy_link>
not even the sky is the limit

844

Comments from her followers on this type of post are typically enthu-
siastic about the accessible price and/or beauty of the item, as well as its choice
as an object of desire: “One more thing saved, one more shop that will end up
with my money at the end of the month… that’s not gonna work! @blogueirade-
baixarenda  😂💙”
In the lifestyle propagated by BBR, evinced in the shrewdness of know-
ing how to spend money well, which does not mean just buying the cheapest
item, but also knowing something “is worth it” or “cheap end up expensive.” As
commented earlier, an important element of this idea of “lifestyle” is its aes-
thetic aspect, combined with the question of good value. This is perceptible in
the declaration: “Wow, I’m impressed by how you can have a well-decorated
home spending little.”
The content follows the tone of other profiles propagating lifestyles
through the use of terms like “outfit” and “look,” only in a “real” and “accessible”
context, words frequently used by BBR, as in the hashtag #accessiblebloggerlook.
Alongside the elements of material culture, the low-income lifestyle en-
compasses sociabilities, modes of feeling, moral values, attitudes and stances
towards events. In the case of BBR, the presentation of her impressions is per-
vaded by a light-hearted humour in response to difficult events. Everyday situ-
ations are depicted with an ironic outlook that alleviates the scene:

I took advantage of the fact my cupboard door fell off (SEE THE STORYLINE) 🆘
to clean my shelves.

The bottom shelf is where I keep my HUGE PILE of plates. 2 large, 2 deep and 2
for dessert, there’s no space for more, it’s all there is, and it meets the basics.
THE ONLY THING IS, NO MORE THAN TWO PEOPLE AT A TIME HAHAHAHAHA

Source
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

<https://www.instagram.com/p/BmWul0lBP5B/?utm_source=ig_web_copy_link>

The hashtags are also a vehicle for this good-humoured tone, as appears
in a post showing BRB on a work trip, stepping out of a hotel swimming pool:
#hotel  #trip  #sp  #rj  #lowincomeblogger  #dontknowhowtoswim  #mermaid-
ing #diva #accessible.

Source
<https://www.instagram.com/p/BqYNUe-hE0Z/?utm_source=ig_web_copy_link>

The strong solidarity among peers also forms part of this conception of
the low-income lifestyle, exemplified in the fitting out of the new apartment,
all done with items donated by friends and family. In turn, this way of dealing
with events is expressed in the values of persistence and hard work. The act of
“fighting” emerges as a response to everyday challenges, which to be met require
a determined and positive approach: “Let’s wake up everyday to win and bash
away sadness, after all we wake up everyday to fight.”
article | carla barros

845

Social mobility
As we have seen, the BBR profile initially emphasized her “poor condition,”
which has a social and physical “place” – the favela – idiosyncrasies, behaviours,
a profile: in sum, particularities to be recognized. On another level, though, a
call is made to leave behind the fatalism of poverty in favour of the fight for
social mobility, as evident in the expression “not even the sky is the limit,” found
in the presentation to her YouTube channel.
As well as an identity and a lifestyle, low-income is also a state that
should and can be altered, as in the following post:

You use the bankcard liked credit, but the money leaves the account immediately
like debit. That way, it becomes easier to control your money. Because we’re low-
-income but want to be high-income, right? 💛

Source 10
<https://www.instagram.com/p/BrTarBABoJk /?utm_source =ig _web_copy_link>

Making an appeal through the maxim “occupy all the spaces,” BBR en-
courages her public to challenge the historical barriers to mobility in the coun-
try and make themselves present in situations once unattainable to the poor,
like travelling by plane, studying for a degree or learning foreign languages.
One of the recurrent themes in the posts is financial education, seen as
an essential element to achieve balanced expenditure and the desired eco-
nomic upward mobility. Many posts contain practical advice on how to avoid
becoming hostage to consumer impulses, avoid getting into debt and beginning
to exert some effective control over spending. This also appears in hashtags
like #YourAccountYourRules. Advice includes writing down revenues and ex-
penses in a notebook, getting an extra job, avoiding borrowing from loan sharks,
taking a packed lunch to work, saving on electricity, drinking at home, and
taking cold showers to reduce energy costs. The advice looks to fill a gap in the
experience of her public: “We low-incomers were not financially educated. We’re
not used to talking about money, but we have to talk about the topic all the
time. My mother is always out of control, she can’t look at a card without using
it, but that’s how she was brought up, and after living like that for 40 years, it’s
difficult to change.” 10
Managing expenses is identified as a central aspect of the social mobil-
ity project, as shown in the post below:

[If you earn R $ 1,000 and spend R $ 999, you’re richer than someone who earns
R $ 10,000 and spends R $ 10,001]

Financial education is the basis for LOW-INCOMERS to prosper.We’re going to


win for real! Educate yourself 💚”
not even the sky is the limit

846

Figure 5
<https://www.instagram.com/p/B0N34skg3m6/?utm_source=ig_web_copy_link>

Financial education is articulated with the idea of overall administration


of the everyday, including an appeal to rationality and self-control. To make
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

this life project a reality, some tools, like a weekly planner, are presented to
help plan and organize day-to-day activities.
Her commercial partnerships emphasize the same ethos of saving mon-
ey and controlling finances. In partnership with the company Superdigitalapp,
BBR produced a publipost advertising a physical pre-paid bankcard. Using this,
clients spend only what is in their account, avoiding consumer impulses in-
compatible with their budget:

Superdigital prepaid bankcard. You only spend what you have in your account
and don’t end up in the red. LOVE IT! @ superdigitalapp take me travelling again?

AND MAY 2019 COME WITH NO DEBTS AND MANY TRIPS LIKE THIS ONE 💛

#YourAccountYourRules #publi #lowincomeblogger #blogger #25march #pur-
chases

Source
<https://www.instagram.com/p/Bq8KmTqByMY/?utm_source =ig _web_copy_
link>
article | carla barros

847

An example of these guidelines for a balanced financial life is one of the


videos with the highest number of views on her YouTube channel. In the clip,
BBR teaches viewers how to teach make “smarter purchases” in the supermar-
ket through a strategy she calls the “restocking method.” This involves only
buying products when they are running out, purchasing items every fortnight
rather than monthly, for example.
Miller (2002) and Goidanich (2012), in their ethnographic studies of su-
permarket purchases among middle-class housewives in London and Flori-
anópolis, respectively, show how “spending” is, in fact, conceived as an act of
“saving.” Goidanich (2012) recounts that consumers use the adjectives “con-
scious,” “demanding,” “moderate,” “controlled” and “selective” in their self-
definition as buyers. Miller’s study shows how the act of buying, as well as
revealing aspects of relationships, results in an expressive gesture of saving
money. Saving strategies are related to moralities and the individual’s wider
identity, including class and reputation among other aspects (Miller, 2002: 22).
In addition, saving does not necessarily imply buying cheaper items since an
equation commonly present involves balancing low price and perceived qual-
ity. Miller calls attention to an important point: namely, that the desire to save
needs to be examined in context, related, perhaps, in the London situation to
aspects like modesty and aversion to excess.
In the Brazilian case, “spending” also results in “saving” as in British
parsimony, but as a result of a major effort to control what are perceived as
almost irresistible impulses to consume. At a primary level, “smart” purchases
evoke a call for rationality in spending, acquiring products at a “good price” and,
where possible, quality items. Going to the supermarket also functions as a
sign of upward social mobility, such as when Nathaly remarks that she feels
elated to be able to “buy a Danone, some cheese…,” foods to which she had no
access as a child.
The consumer education transmitted by BBR also includes a presentation
of rules, etiquettes and conducts necessary to circulate in the new spaces
opened up by social mobility. It is embarrassing not to know the rules to live
new social situations, especially in a hierarchized society adverse to struc-
tural changes, built on the idea that “everyone has their place” (DaMatta, 1981).

L O W- I N C O M E R S A R E G O I N G T O T R AV E L A B R O A D ! 🌍
I DON’T KNOW WHEN BUT THEY WILL! BUT HOPEFULLY SOON , OKAY UNIVER-
SE? BECAUSE I’M EAGER TO GO, THANKS! 💙

T H AT ’S I T, W E LOW-I NCOM ER S A R E T H E M A JOR I T Y, W H Y A R E N’ T W E OC-


CUPYING ALL THE SPACES? LET’S OCCUPY!

Source
<https://www.instagram.com/p/BxA7EXwBArX/?utm_source=ig_web_copy_link>
not even the sky is the limit

848

In one of her YouTube videos, called “In the hotel in SP and a few more
little purchases,” BBR conducts a tour of the hotel room where she is staying
in São Paulo during a work trip. She begins by advising viewers that the com-
pany paid for her and that she does not know how to “be chic.” Next, she shows
details of the hotel room, paying special attention to things seen for the first
time, like the air conditioning unit embedded in the wall high up and the move-
able TV screen. It amounts, then, to an apprenticeship in consumption for eco-
nomically emergent groups, presenting the new places to be occupied with
their specific rules and etiquettes.
From this perspective, social mobility should be actively pursued, es-
chewing a passive and fatalistic approach, as appears in the presentation on
her YouTube profile: “How to win in a world in which, if you don’t make your
own opportunity, you have nothing.” The search to join the world of work may
not necessarily involve formal channels, since improvisation is one of the hall-
marks of “low-incomers,” as appears in her sayings: “poor people have to get
by” or “so many things are possible, the poor are creative!” Whatever the case,
life involves sweat and perseverance, and upward mobility should come through
merit.
In an Instagram post, these elements are expressed in the photo showing
the blogger on a hilltop, like a “heroine-warrior” on a magazine cover, reaching
the desired summit. The symbolism of the broom, which in other contexts may
be taken as a reference to devalued manual labour, appears here with the con-
notation of her own work that should not cause shame and will be recompensed
with upward social mobility:

I’m ready to carry the salvation of the internet on my back 😂


sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

LOW-INCOME ON TOP 🔝🔝🔝


article | carla barros

849

Figure 6
<https://www.instagram.com/p/B0mE3MvgVwZ/?utm_source =ig _web_copy_link>

The words “overcoming” and “dream” appear at various moments, indi-


cating the need for an active response to hardships, allied with the capacity to
dream. In the posts, there is always a celebration when her dreams are realized,
seeking to inspire her followers to take a similar path.
Various markers of social mobility appear in the profile, like living in a
location separate from the family of origin, having a bank account, or enrolling
in higher education. Along with financial control, priority is given to education
as a privileged means to transform the condition of poverty. The increase in
the level of schooling, expressed in the hashtag #poorbutgraduated, is celebrat-
ed by the fact that the blogger belongs to the first generation of the family to
gain a higher education diploma:

WHO IS THIS STUDENT APPEARING ON THE TIMELINE, BRAZIL?

As I would say myself: “education is the most precious wealth that we, Low-In-
comers, can have.” They can deprive us, they can take away everything, save our
knowledge. And knowledge transforms. Mother always said: “daughter, study so
that you don’t end up like me” – and I studied not because I was scared to be
like her, after all she makes me proud in so many ways – but because I want to
g ive her what she tr uly deser ves. And on this journey as a blogger, I found a
teaching institution whose objective is to take knowledge to the most different
and distant places: @ eadunicesumaroficial. 💙

Source
<https://www.instagram.com/p/B7UM2ykghSW/?utm_source=ig_web_copy_link>
not even the sky is the limit

850

The space of the apartment is frequently the setting for her Instagram
posts. At the start of her activities on the social network, BBR had just moved
to the apartment that she considers to be her “true home,” indicating a sig-
nificant “life improvement” (Sarti, 1996). The second publication on the social
network is a photo of the door lock taken on the day of the move, where she
thanks for “this victory as well.”
Content showing spaces of the apartment is abundant, like the deco-
rated bathroom door, the new carpet or the worktable:

A WOMAN WHO ASSEMBLES HER HOME OFFICE WITH MONEY FROM HER OWN
WORK DOESN’T WANT A WAR WITH ANYONE 💪

Tomorrow is Thursday and video day on the channel… I told you a bit about how
I began here on INSTAGR A M and showed you how I spent my f irst BLOGGER
‘salary’ 😂

� Do you remember what you did with your first salar y? Tell me in your com-
ments!
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

Figure 7
<https://www.instagram.com/p/Bvh2P5iB1uo/?utm_source =ig _web_copy_link>
article | carla barros

851

The posts show the initially empty spaces followed by their occupation
by objects, utensils, furniture, whether bought or donated, which formed part
of the construction of the home. The sequences of photos and videos show the
family history, the projects, the process of upward social mobility, and the tasks
of maintaining and organizing the home. The elements of material culture are
appropriated as part of the couple’s trajectory in the process of decorating,
since they are, as Miller (2001) declares, a “source and the setting of mobility
and change.”

Low-income minimalism
In her choice of lifestyle elements to be propagated, BBR elects the dissemina-
tion of the minimalist lifestyle as one of her main missions on digital platforms,
making a series of 23 episodes on YouTube called Minimalismo de baixa renda.
The blogger tells her viewers that she became aware of the theme after watch-
ing the documentary Minimalism on Netflix. Researching the subject on the
internet, she discovered that nobody talked about the issue to the low-income
public – remarking, ironically, that poor people have always been minimalist
without knowing – which persuaded her turn to produce this type of content.
The minimalist movement as a lifestyle (Meyer, 2004) first emerged
among wealthier sectors of society, who always spent large amounts of their
budgets on items as diverse as culture, leisure, hobbies, fashion and design. In
the field of consumption and lifestyles, minimalism involves living with less
items, enjoying “experiences” more than “things,” expressed in the hierarchical
superiority of “being” over “having.” It also incorporates elements of sustain-
able consumption, with a stance against the irresponsible use of natural re-
sources and the decision to support “fair,” solidary and ethical means of pro-
duction and distribution.
Thus, the minimalist lifestyle proposes a re-evaluation of life priorities
that entails discarding surplus things, whether in terms of consumption, rela-
tions, ideas or activities that are not adding “value” to the person’s life. Innu-
merable bestsellers have been published along these lines, like the book The
joy of less: a minimalist guide to declutter, organize, and simplify, cited by Nathaly
Dias as one of her own sources of inspiration.
Consumption thus comprises one of the main topics of conversation in
this lifestyle. To incorporate the ethos, it is essential to resist senseless desires
for purchases, which can lead to an overflow of goods that fills the home with
products seldom if ever used. A distinction is made, therefore, between the
“necessary” and the “superfluous” – associated here with irrationality, waste
and ostentation – which informs everyday practices of acquiring, using and
discarding goods.
The idea of “low-income minimalism” advocated by BBR involves rede-
fining life priorities, strategies of financial education, ecological awareness,
not even the sky is the limit

852

and new attitudes towards commodities. In her words, “minimalism means


bringing out what makes you happy,” in the sense of a re-evaluation of values
with the aim of “valorising people and moments more than goods.” These are
the general principles of the minimalist lifestyle, founded on the idea of “less
is more,” as adopted on the BBR profile. It is worth stressing that these precepts
need to be read from somewhere other than the middle and elite classes of the
society where the movement originated, observing its local specificities.
The series of videos on minimalism shows actions like donating books
to a neighbourhood public library and transforming the wardrobe by eliminat-
ing surplus items. In an interview, 11 Nathaly ponders that it is very difficult for
poor people to adopt the philosophy of “less is more” because when you get an
income rise, you want to buy everything you always wanted. She cites the ex-
ample of her mother who “despite being low-income has a load of pots.” Her
intention, therefore, is to “raise the awareness” of poor people that they do not
need to have everything they want, escaping the persuasive campaigns of the
marketing industry.
Another divergence from the experience of minimalism among wealth-
ier sectors is that in the context of BBR, the adoption of this lifestyle is articu-
lated with a project of upward social mobility. Spending less to spend better,
not succumbing to debts, and avoiding “superfluous” consumption are all ac-
tions that contribute to achieving social mobility. Defining priorities and spend-
ing on what possesses “value” means reorienting expenses towards actions like
paying for a professional training course, or buying clothes seen as “suitable”
for circulating in new workspaces.
BBR’s minimalism places considerable emphasis on the home space. In
the second episode of the series “Low-income minimalism,” called “Tour of the
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

minimalist apartment,” she shows “before” the reorganization of the home to


be implemented with the help of minimalist precepts. All the rooms are shown
with comments about the furniture, the division of spaces and the actions that
will be taken with the adoption of the new lifestyle. “We already feel detached
from the physical space,” she remarks at one point of the video. The perception
is that the organization of the home governs the way in which one lives and
reflects historical and family trajectories: an aesthetic and identity-laden space,
imbued with a lifestyle (Miller, 2001).

Cultural mediation and change


Analysis of the BBR profile on social media sites evokes the idea of cultural
mediation, a theme of major importance in modern-contemporary society since
it allows the transit and contact between distinct universes in a scenario of
sociocultural heterogeneity and the diversification of social roles. Velho and
Kuschnir (2001) examine this phenomenon, emphasizing that individuals im-
mersed in the urban environment are exposed to a wide range of experiences
article | carla barros

853

as they circulate through universes with distinct and sometimes conflicting


values and worldviews in which power relations are also at work:

Social life only exists through differences. It is these differences that, through
interaction as a universal process, produce and enable exchanges, communica-
tion and interchange. The study of mediation, and specifically mediators, allows
us to obser ve how interactions occur bet ween distinct social categor ies and
cultural levels. […] In a ongoing process of negotiating reality, choices are made,
taking symbolic systems, beliefs and values as frameworks of reference surroun-
ding all kinds of material objectives and interests. Mediation is a permanent and
not always evident social action, present in interactive processes at the most
varied levels (Velho & Kuschnir, 2001: 9-10).

Some individuals, transiting through different social dimensions, can


become mediators between distinct worldviews, lifestyles and social experi-
ences. Nathaly Dias’s trajectory spans from her origin in a family with a low
level of schooling to her entry into university, where she has contact with new
forms of cultural capital, enabling her to deal with codes different from her
original environment. In the process, BBR confronts new rules, habits, tastes,
aesthetics and behaviours in a space of constant negotiation of reality, where
she acts as a cultural mediator, promoting the exchange of information between
symbolic systems, values and worldviews.
As Duarte (1986) proposes from a relational viewpoint, there is a discon-
tinuity between the individualist ideology and the ethos dominant among
popular classes, marked by traditional references like the pre-eminence of re-
ligion, family and kinship as spheres encompassing the individual dimension.
With the economic rise of groups at the base of the pyramid, especially
during the two Lula governments (2003-2010), there has been an observable
increase in the level of schooling of children from popular families, including
the emergence, in many cases, of the first generation of members with access
to university. The same family environments started to be shared by people
with significant differences in terms of their educational experiences and their
cultural, social and symbolic capital (Bourdieu, 1979b). While the popular con-
sumption discussed in some of the studies cited earlier appears in its “ex-
cesses” and in the emphasis on increasing the number of material possessions,
the case of BBR reveals another meaning, the conscious limiting of consumption
as part of a new “minimalist” lifestyle. The transition between two worlds pro-
vides BBR with access to repertoires previously confined to middle- and upper-
class sectors who chose to adopt a new relationship to material culture after
an experience of intense consumption. This reveals, then, the dynamism of
cultural mediation, blurring the boundaries between distinct social groups. As
Velho and Kuschnir (2001: 27) have argued, cultural mediators can become
agents of change as they negotiate between diverse and sometimes conflicting
universes.
not even the sky is the limit

854

The article thus calls attention to the plurality of meanings relating to


consumption among the popular classes in a situation where the ways of deal-
ing with materiality contrast with other low-income contexts in which the
profusion of goods is actively pursued. The phenomenon of consumption has
a central place in the BBR profile, appearing in diverse contexts such as in the
curating of purchases, strategies for acquiring goods, and cataloguing both pur-
chased and desired items. Financial education and the vision of “low-income
minimalist” point to a new attitude towards consumption, enabling a more
“rational” organization of budgets, an element driving socioeconomic mobility.
The “occupation of spaces” called for by BBR appears with content relating to
lifestyle, seeking to contrast with the opulence conveyed by other digital influ-
encers present on Instagram. The encouragement of social mobility is opposed
to a fatalistic position in relation to poverty, more widely present in a hierarchi-
cal context defined by a Catholic tradition. In BBR’s case, the emphasis is on
an appeal to individual awareness, rationality, self-control and proactivity,
within a more individualist spectrum (Dumont, 1972).
As Miller (2001) argued, the lack of possessions does not imply that social
actors have no agency over material goods. He suggests that materiality may
have more value among the poor because they depend on few possessions to
create cultural meanings. Along the same lines, Taylor (2013: 172) argues, in an
ethnography conducted in the Dominican Republic, that “the materiality of the
poor is not necessarily a materiality of poverty.” Material forms are a way of
combatting social stratification, explaining their enormous significance among
these sectors of the population. The relation with material culture, without
ignoring the influence of the huge economic difficulties confronted by the poor-
est groups, generates social change and builds futures.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 831 – 859 , sep. – dec., 2020

Received on 25/May/2020 | Revised on 14/Sep/2020 | Approved on 08/Oct/2020

Carla Barros is a postdoctoral researcher at University College London. She


gained her PhD from the COPPEAD-UFRJ Institute, having studied Social
Anthropology at the National Museum (UFRJ) with an undergraduate
degree in Social Sciences at IFCS-UFRJ. Professor on the Postgraduate
Program in Communication at Fluminense Federal University (PPGCOM-
UFF), her main area of interest is the anthropology of consumption,
focusing on the popular classes. Her main publication is “Collective uses of
mobile phones in the global South: cultural diversity among low-income
groups in Brazil and in South Africa.”
article | carla barros

855

Notes
1 The term “post” is used in this article as a synonym for a
publication made by the owner of a social media profile.
2 Data from February 2020.
3 A digital inf luencer is a producer of content who utilizes
their online channels (pr incipally blogs and social net-
works) to “inf luence behaviours,” both on the internet
and beyond.
4 As well as Nathaly Dias, other content producers emerged
who disseminated the everyday life of women from poor
communities of Rio de Janeiro, like Nathalia Rodrig ues
(Nath Finanças profile), who provides financial advice to
poor people, and Ana Helena Ernesto (Helena Pisponelly
profile), who publishes re-enactments of her arguments
with her mother on the YouTube channel Marilene não se
mete (Mar ilene stay out of it) with the Maré favela as a
background.
5 The miniseries can be found at: <https://www.instagram.
com/p/B2f hTV8AwuI/?utm_source =ig_web_copy_link>.
6 The YouTube video can be found at: <https://www.youtu-
be.com/watch?v=iFuj7yaF-Mk)>.
7 ‘Guanabara Anniversary’ refers to the anniversary of the
Guanabara supermarket chain present in the State of Rio de
Janeiro. This well-known promotional event of the Rio retail
trade typically draws more than a million consumers to its
stores to take advantage of the huge discounts offered on
products. In this period, traditional media and social net-
works publish photos and videos showing packed super-
markets, queues waiting for the stores to open, and, in some
cases, heated disputes over the discounted products.
8 As is common in images of meals on the profiles of other
lifestyle inf luencers, a photo is published of the dish ta-
ken from above without showing anyone eating. On the
BBR prof ile, comments frequently praise the meals as
examples of good home cooking.
9 Source:<https://w w w.instag ram.com /p /Bm3kkz2BDb4 /
?utm_source =ig_web_copy_link>.
10 Interview available at: <https://www.uol.com.br/universa/
noticias /redacao /2019 /08 /12/ blog ueira-de-baixa-renda-
-nathaly-e-pobre-e-ensina-minimalismo-no-youtube.htm>.
not even the sky is the limit

856

11 Source: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/reda-
cao /2019 /08 /12/ blog ueira-de-baixa-renda-nathaly-e-po-
bre-e-ensina-minimalismo-no-youtube.htm>.

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article | carla barros

859
Nem o céu é o limite: sentidos do consumo
e dinâmicas de mobilidade social no perfil
@blogueiradebaixarenda no Instagram e Youtube 
Palavras-chave Resumo
Estilo de vida; O artigo aborda os sentidos do consumo no perfil @bloguei-
grupos populares; radebaixarenda nas redes sociais online Instagram e You-
consumo; tube, considerando as percepções presentes acerca da ma-
mobilidade social; terialidade e suas articulações com dinâmicas de mobili-
minimalismo. dade social. Trata-se de analisar quais elementos compõem
o “lifestyle baixa renda” enquanto categoria nativa, dentro
do contexto dos “influenciadores digitais”. Mediante pes-
quisa de observação online, foram analisadas publicações,
hashtags e comentários nas duas plataformas, explorando-
se de que modo as práticas de consumo aparecem como
mediadoras de dinâmicas de hieraquização social e cons-
truções identitárias. Dentre os resultados, destacam-se as
articulações entre materialidade e mobilidade social, a
ideia de minimalismo dentro do “lifestyle baixa renda” e o
lugar da blogueira como mediadora cultural.

Not even the sky is the limit: the meanings


of consumption and the dynamics of social
mobility on the @blogueiradebaixarenda profile
on Instagram and YouTube
Keywords Abstract
Lifestyle; The article sets out to explore the meanings surrounding
low-income groups; consumption on the @blogueiradebaixarenda profile on the
consumption; Instagram and YouTube online social networks, considering
social mobility; the perceptions of materiality and their articulations with the
minimalism. dynamics of social mobility. It analyses the elements making
up the “low-income lifestyle” as a native category within the
context of “digital influencers.” Through online observational
research, the posts, hashtags and comments on both social
media platforms were analysed, seeking to explore how con-
sumption practices appear as mediators of social dynamics
and identity constructs. Among the results, the articulations
between materiality and social mobility, the idea of minimal-
ism within the “low-income lifestyle” and the blogger’s status
as a cultural mediator are highlighted.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v1034

1 Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Programa de Pós-Graduação em


Comunicação, Santa Maria, RS, Brasil
sandraxrubia@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-7548-5178
11 Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Departamento de Jornalismo,
Florianópolis, SC, Brasil
Sandra Rúbia da SilvaI
machado.alim@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-1687-7248
Alisson Machado Il

DIÁLOGOS COM DANIEL MILLER NO CAMPO DA


COMUNICAÇÃO: REFLEXÕES A PARTIR DAS PESQUISAS
DO GP CONSUMO E CULTURAS DIGITAIS

A antropologia, cuja base é o trabalho etnográfico, renova sua tradição a partir


dos conhecimentos adquiridos em sua história disciplinar quando confrontados
com as observações realizadas a cada vez que novos(as) pesquisadores(as) vão
a campo (Peirano, 1994; Cardoso de Oliveira, 2006). Esses saberes atualizam o
ethos antropológico e orientam as interpretações não apenas por servir como
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

teoria, mas porque sinalizam, alertam e inspiram reflexões referentes à obje-


tividade relativa que caracteriza a natureza do entendimento antropológico
(Geertz, 2013; Velho, 2013). Se, por um lado, o texto representa a materialização
e a reinscrição comprometida do(a) pesquisador(a) (Clifford, 1998; Strathern,
2014), por outro, existe um trabalho constitutivo da imaginação antropológica
que se produz no espaço entre, entre texto e experiência, que desloca os eixos
entre o “estar lá” e o “estar aqui”, resultado desse tipo de empenho interpreta-
tivo (Geertz, 2012).
Esse entre pode ser vivenciado de diferentes formas, entre elas pelos
entrecruzamentos das fronteiras disciplinares. Tendo em vista a articulação
desse lugar de interfaces, o objetivo do artigo é, ao examinar dez pesquisas rea-
lizadas pelo Grupo de Pesquisa Consumo e Culturas Digitais (UFSM/CNPq), 1
discutir como o legado teórico e metodológico de Daniel Miller tem sido incor-
porado nesse conjunto de reflexões, reconhecendo a potência do método etno-
gráfico para a análise cultural e para a descrição da cultura digital e dos am-
bientes de interação online.
diálogos com daniel miller no campo da comunicação

862

Nossas práticas assumem a comunicação como um campo transdisci-


plinar (França, 2001; Martín-Barbero, 2009) também demarcado pelo que Gros-
si (2004) chamou de parentesco acadêmico: as filiações teóricas e relações so-
ciais estabelecidas pelo e no processo de orientação, o que pode ser entendido
principalmente pelas heranças recebidas dos(as) orientadores(as) que funcio-
nam nos moldes dos regimes das reciprocidades (Mauss, 2003). Conhecimento
recebido e presentificado nas experiências de cada trabalho de campo. Hau
adquirido, levado consigo e sempre adiante.
O GP aproximou estudantes − principalmente da área da comunicação
− da antropologia, apresentando, discutindo e produzindo um fazer etnográfico
com nuanças próprias da pesquisa em comunicação, mobilizado por questões-
problema que envolvem o enfrentamento das mídias e das tecnologias digitais
na vida cotidiana e as distintas mediações com as instâncias sociotécnicas que
conformam as culturas midiáticas. 2 Esse encontro resultou no investimento de
vivências propriamente antropológicas (DaMatta, 2010) e na busca de formu-
lações teórico-etnográficas (Peirano, 2014) para a compreensão dos artefatos
das culturas digitais e das diferentes apropriações e usos 3 que os atores sociais
fazem dessas tecnologias.
Somos todos(as) herdeiros(as), por um lado, da tradição fonsequiana de
“fé no trabalho de campo” (Brites & Motta, 2017), pois, no doutorado em antro-
pologia social na Universidade Federal de Santa Catarina (2006-2010), Sandra
Rúbia, líder do GP, foi orientanda de Carmen Silvia Rial, que fora orientanda de
Claudia Fonseca. Durante o doutoramento, Sandra ainda realizou um período
de estágio doutoral na University College London, sob orientação de Daniel
Miller.
A obra de Miller e coautores(as) provou ter influência duradoura na fu-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

tura tese, tanto em termos teóricos quanto metodológicos, influência essa que
persistiu posteriormente nos trabalhos orientados por Sandra Rúbia. Como
legado temos, de um lado, a revelação da potência de uma antropologia da
comunicação para a compreensão do papel das tecnologias móveis e da inter-
net na cultura e nas relações sociais, bem como no consumo como cultura
material (Horst & Miller, 2006) e, de outro, a reflexão sobre a obra seminal de
Christine Hine (2000), Virtual ethnography. Desse livro, revelaram-se fundamen-
tais tanto o entendimento da internet como um artefato cultural quanto a
crítica à dicotomia online e off-line presente nos primeiros estudos sobre a in-
ternet, crítica essa empreendida em diálogo com Miller e Slater (2000) e poste-
riormente aprofundada na compreensão da internet como dimensão incorpo-
rada, corporificada e cotidiana (Hine, 2015).
As pesquisas do GP buscam construir diálogos com importantes trabalhos,
como os advindos da atuação de Livia Barbosa, principalmente sobre as relações
entre consumo e cultura material (Barbosa, 2003; Barbosa & Gomes, 2004; Bar-
bosa & Campbell, 2006) e de Carla Barros (2007), em relação às mediações cul-
artigo | sandra rúbia da silva e alisson machado

863

turais pelo consumo e à perspectiva etnográfica para a investigação midiática


(Campanella & Barros, 2016). Além de fomentar o campo e traduzir importantes
textos sobre consumo, Livia Barbosa foi responsável pela visita de Daniel Miller
ao Brasil em 2006. A respeito dos estudos da cultura material, é possível pon-
tuar pesquisas sobre a circulação de mercadorias e pessoas (Pinheiro-Machado,
2009; Martineli, 2011) e sobre relações entre consumo, formulações identitárias
e culturais (Machado, 2010; Mizrahi, 2014). Além dessas, constituem uma mira-
da aos estudos da antropologia do consumo a perspectiva comparada entre
Brasil e Argentina (Leitão et al., 2006) e a 28 a edição da revista Horizontes Antro-
pológicos, em comemoração à publicação do livro O mundo dos bens, de Mary
Douglas (Oliven & Pinheiro-Machado, 2007).
Os enfoques interpretativos das pesquisas analisadas aglutinam esforços
em compreender as apropriações de sites e aplicativos digitais, bem como smar-
tphones e computadores nas periferias urbanas, por grupos populares, em vul-
nerabilidade, subalternidade social ou desprovidos de poder institucional. 4 A
pluralidade que demarca esses distintos contextos de pesquisa permite o de-
senvolvimento de práticas etnográficas em espaços sociais diversos reconfigu-
rados pelas tecnologias de comunicação digital (Horst et al., 2012). A etnografia,
como uma prática de pesquisa interdisciplinar, é ela própria adaptável a diver-
sos campos, ambientes e situações, refletindo a pluralidade das relações hu-
manas sejam elas consideradas em formatos mais tradicionais de interação ou
aqueles característicos das culturas digitais. Miller, em entrevista a Monica
Machado (2015), afirma:

em nossos estudos, descobr imos que a comunicação dig ital frequentemente


ainda tem base nas unidades dos estudos da antropologia mais tradicional. As-
sim, em nosso estudo na Índia, mostramos que a casta é central na forma como
a rede social é usada, enquanto nos estudos na Turquia ela é mais tribal e, em
outros estudos, tem mais base na família. Todos esses estudos antropológicos
ligam o individual ao social em vez de vê-los como duas categorias opostas na
vida.

As pesquisas analisadas buscaram construir costuras interdisciplinares


(Fonseca, 1999) considerando os contextos e as materialidades das interações
digitais, bem como os desafios de repensar a extensão da etnografia nas mídias
como ambiente, objeto e instrumento de pesquisa (Sheppard, 2012). Essa pers-
pectiva entende que os artefatos digitais participam ativamente da cultura
material e que a internet pode ser mais bem compreendida não como um apa-
rato técnico em si, mas como uma tecnologia social e dinâmica que habilita as
pessoas a criar outras tecnologias sociais (Miller, 2007, 2013; Miller et al., 2016).
É na atenção dedicada aos diferentes contextos que as práticas na internet, em
sua dimensão plural, podem ser reconhecidas, pois

deixamos de pensar em tecnologias da comunicação como coisas, ou capacidades,


e começamos a vê-las como análogas à ar te da sedução: modos de nos fazer
diálogos com daniel miller no campo da comunicação

864

atraentes para a pessoa com quem nos comunicamos. Claro, a sedução é apenas
uma das muitas coisas que estão em jogo aqui. A questão mais ampla é que as
tecnologias da comunicação são essencialmente gêneros culturais, e que a melhor
maneira de apreciá-las é comparável à que usamos para outros gêneros culturais
(Miller, 2013: 170).

Pensar esses gêneros culturais na perspectiva dos estudos da cultura


material (Miller, 1987) permite perceber o processo dialético entre os bens ma-
teriais (neste caso, as mídias e tecnologias digitais) e os gêneros culturais uti-
lizados para criar, manter, estabelecer, reforçar ou mesmo romper as relações
sociais. Ao mesmo tempo, imersas nas particularidades de suas culturas, as
pessoas criam formas de relacionamento umas com as outras e, com isso, for-
mas de se relacionar com as mídias. Nesse processo, participam também as
formatações e determinações tecnológicas que constituem esses ambientes e
que impactam as inteligibilidades sociais.
Nesses cenários, o(a) pesquisador(a) se insere nas redes que constituem
as interações, podendo desenvolver para cada ambiente que percorre uma sen-
sibilidade etnográfica que melhor permita compreender os fluxos e as dinâmi-
cas das interações em cada contexto (Leitão & Gomes, 2017). Isso implica diá-
logo com outras fontes de pesquisa, perseguindo questionamentos a respeito
de como a internet se caracteriza para um determinado grupo e das circuns-
tâncias em que as conexões ocorrem (Hine, 2015). Além disso, investem na
imersão em um campo particular de interlocutores(as), cujas reflexões são
conduzidas pelas principais técnicas do trabalho etnográfico, como a observa-
ção participante e manutenção do diário de campo (Miller & Slater, 2000).
As seis dissertações e quatro teses analisadas neste artigo contemplam
contextos sociais específicos que se estabelecem nas apropriações das tecno-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

logias digitais e mídias sociais na vida cotidiana, singularizadas por elementos


como gênero, sexualidade, geração, agremiações, trabalho, condições socioeco-
nômicas, posições políticas e religiosas e demais elementos que constituem,
de forma conjunta e interconectada, as experiências vividas na internet.

DEZ CONTEXTOS DE PESQUISA EM MÍDIAS DIGITAIS


Para a análise, desenvolvemos um protocolo analítico de pesquisa bibliográfica
(Salvador, 1986; Gil, 1999). Ocupamo-nos, neste momento, em apresentar bre-
vemente cada uma delas. A partir disso, apresentamos inferências teóricas que
têm por objetivo perceber como as pesquisas dialogam com noções advindas
da antropologia digital. Dessa forma, identificamos como algumas das propo-
sições de Miller são incorporadas em nossas reflexões, seja na dimensão da
vivência do trabalho de campo ou da interpretação das apropriações e usos
descritos.
A dissertação de Tondo (2016) investigou o consumo de smartphones en-
tre jovens moradores de uma comunidade popular na cidade de Santa Maria
artigo | sandra rúbia da silva e alisson machado

865

(Rio Grande do Sul). A aproximação com o campo ocorreu pela promoção de


uma atividade socioeducativa, com duração de um ano letivo, com 43 jovens
de uma escola. A partir disso, o autor passou a conviver com quatro jovens de
três famílias, buscando entender a importância desse dispositivo nas dinâmi-
cas de posse e consumo das mídias digitais e as formas como o relacionamen-
to dos(as) jovens entre si e com seus familiares era organizado.
Em sua dissertação, Pereira (2017) realizou um estudo com duração de
12 meses sobre o consumo de smartphones por sete mulheres cisgêneras de
camadas populares, de diferentes faixas etárias e bairros de Santa Maria. A
autora atentou para as interfaces entre a produção/reprodução das demarcações
de gênero e as tecnologias digitais, percebendo que o gênero constitui uma
especificidade do consumo dos celulares. Por meio desses aparelhos, as inter-
locutoras se mantinham como trabalhadoras autônomas e interpretavam a si
mesmas, construindo modelos de feminilidade, sexualidade, maternidade, as-
sim como suas relações amorosas e familiares.
A tese de Menezes (2017) analisou os deslocamentos dos fluxos midiá-
ticos e estéticos realizados por dançarinos(as) do grupo cultural-identitário
Dream Team do Passinho. Mediante a comparação entre o discurso do grupo
nas redes sociais e os discursos das mídias tradicionais, a autora interpretou
os usos das linguagens televisuais, principalmente da informal, utilizada com
o intuito de aproximação ao cotidiano das favelas cariocas.
Kuntz (2018) tratou em sua dissertação da participação das crianças no
contexto de produção de conteúdo, tendo o objetivo de compreender como uti-
lizavam o YouTube para expressão, sociabilidade e aperfeiçoamento pessoal e
como essa plataforma incidiu sobre a infância e a maternidade/paternidade. A
autora triangula estudos de casos empíricos de crianças que estão à frente de
canais com grande número de seguidores com as experiências e interações que
realizou durante 18 meses de pesquisa com quatro youtubers mirins iniciantes.
A dissertação de Trindade (2018) identificou os circuitos em que ocorrem
a construção e a manutenção da sociabilidade juvenil por meio das práticas de
consumo de smartphones de um grupo de 13 jovens do ensino médio em duas
escolas de Santa Maria durante o período de 15 meses. O autor encarou as
apropriações desses artefatos como uma via de acesso à internet que organi-
zava as redes de relacionamento e os modos como a privacidade era construí-
da e mantida nessas relações.
A tese de França (2018) investigou a participação política na internet,
percebendo as redes sociais digitais como uma arena informal para as discus-
sões de cinco SUGs (sugestões legislativas) apresentadas no e-Cidadania, por-
tal do Senado Federal. A autora buscou perceber as apropriações que atores
políticos e cidadãos faziam da internet, especialmente na promoção de debates
para o agendamento midiático dos temas sugeridos a fim de que eles interfe-
rissem nas pautas do Senado.
diálogos com daniel miller no campo da comunicação

866

Flores da Rosa (2018) apresenta em sua tese um estudo sobre a atuação


do leigo na internet para pensar a inserção dessas pessoas na produção e con-
sumo de conteúdo religioso. O objeto empírico foi o blog “O Catequista”, criado
para tratar de assuntos doutrinários e temas diversos a partir de uma visada
de reinstitucionalização católica pela atuação na mídia, pelo conservadorismo
e pela oposição a ideias marxistas/socialistas/comunistas. O trabalho de cam-
po foi realizado a partir da observação participante, entrevistas e visitas aos
blogueiros no Rio de Janeiro, entre 2014 e 2018, e com seis leitores, de 2017 a
2018.
Em sua dissertação, Paz (2019) buscou compreender o consumo das redes
sociais digitais por jovens em torno da temática das ideações suicidas. Por
imersão etnográfica durante o período de 12 meses, foram observadas as prá-
ticas desenvolvidas no “Grupo Suicidas”, grupo fechado no Facebook, e na “Co-
munidade Kaneki”, organização formada por jovens que, entre outras ações,
promovem práticas voluntárias, colaborativas e solidárias para o combate ao
suicídio no Brasil.
A dissertação de Pavanello (2019) teve como problemática compreender
as práticas de consumo das redes sociais por quatro mães de vítimas do incên-
dio da Boate Kiss, ocorrido em janeiro de 2013, em Santa Maria. A autora aten-
tou para a criação de experiências digitais no cotidiano pós-tragédia das mães,
percebendo nos usos das mídias digitais formas de reestruturar a vida após o
acontecimento. O trabalho de campo teve duração de 12 meses, assumido pelas
dinâmicas ativistas das mães em sua luta por justiça.
Por fim, a tese de Machado (2019) apresenta um estudo sobre as apro-
priações das mídias digitais na formulação do cotidiano de interlocutoras tra-
vestis, a maioria delas profissionais do sexo. O trabalho de campo teve duração
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

de três anos e foi realizado em regimes de curta e longa duração, dependendo


das “temporadas” das interlocutoras, que mantinham um fluxo de viagens em
razão do trabalho. Os contextos de interação observados são demarcados pela
precariedade social e por distintas manifestações da violência.
O quadro a seguir organiza uma apresentação por título, autoria, ano de
defesa e principais gêneros culturais observados. Essa ênfase foi motivada, a
partir da perspectiva da antropologia de Miller, por meio dos principais achados
empíricos, compreendendo práticas, tendências, continuidades e rupturas nas
dinâmicas e experiências sociais descortinadas no trabalho etnográfico e sin-
gularizadas pelos usos e apropriações das tecnologias digitais em cada contex-
to de pesquisa.
artigo | sandra rúbia da silva e alisson machado

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Quadro I
Principais gêneros culturais observados nas pesquisas
Fonte: elaborado pelos autores.

Título (autoria, ano) Principais gêneros culturais

Celulares, conexões e afetos: a sociabilidade Dispositivo como mediador de afetos e performances


e o consumo de smartphones entre jovens Dificuldades geracionais de letramento digital
de comunidade popular (Tondo, 2016) Não tornam públicas desavenças entre familiares e
amigos(as)
Racionalização pouco efetiva por parte de pais e mães
Satisfação familiar de oferecer acesso à internet
Na internet, os(as) filhos(as) estão em casa: pais/mães
sentem que ofertam proteção
Frustação das expectativas amorosas

“Em um relacionamento sério com o celular”: O smartphone significa a internet, e o Facebook, o navegador
uma etnografia das práticas de consumo de Maternidade e status de relacionamento são definidores dos
smartphones por mulheres (Pereira, 2017) tipos de publicações
Sem o smartphone não há trabalho
24 horas conectadas com o mundo doméstico
Papéis de gênero normativos: ciúmes como principal motivo
de interdição de alguns tipos de publicações
Uma boa mãe e mulher é reconhecida pelo que publica
É preciso desligar o aparelho para dar conta das atividades
domésticas e familiares

No ritmo do passinho: deslocamentos Estratégias visuais consolidadas nas redes para adentrar as
midiáticos e estetização cotidiana do grupo coberturas e a grade da televisão
Dream Team do Passinho (Menezes, 2017) Demarcação de identidades coletivas por meio de conteúdos
de dança e militância
Deslocamentos do que é ser celebridade na favela
Influência dos patrocinadores nas composições estéticas
Produção de conteúdo digital sem a chancela da gravadora

Crianças no YouTube: um estudo YouTube como aprendizado de habilidades e expansão da


etnográfico sobre as infâncias e suas sociabilidade infantil
estratégias de relacionamento nas mídias Insultos e haters causam insegurança em pais e mães frente
digitais (Kuntz, 2018) ao retorno financeiro
Imitação de canais famosos: repetição de um modelo de
infância
Fortalecimento de laços com familiares
Papéis projetivos de si (dos pais e das mães) na estética dos
vídeos
diálogos com daniel miller no campo da comunicação

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Título (autoria, ano) Principais gêneros culturais

“A gente se ama e se odeia ao mesmo Valores da masculinidade hegemônica para ambos os sexos
tempo”: uma etnografia do consumo de Imperativo do conflito que admite o cômico
smartphones em circuitos de sociabilidade Materialização das disputas (emojis, gifs, memes)
de jovens de camadas populares Espaços off-line para liberação do estresse online
(Trindade, 2018) Geolocalização e check-ins como forma de usufruir a cidade
Procura de um namoro ideal igual ao do mundo digital
Sentimento frustrado de liberação sexual das jovens em
cenários de machismo
Moralização das estéticas

Participação política na timeline: o Apoio às SUGs para movimentar a agenda pública do tema
Facebook como arena pública para pleiteante
sugestões legislativas apresentadas no Cidadão produtor e responsável pela circulação do tema
E-cidadania (França, 2018) Mobilização junto a ativistas, blogueiros(as) e youtubers
Atuação individual de cidadãos/ativistas
Superficialidade nas interações devido à matriz interacional
das plataformas

A internet dos leigos: catolicismo midiático Tendência ao entretenimento, humor e à catequese de


e práticas de consumo como experiência boteco
vivida (Flores da Rosa, 2018) Tensões políticas, doutrinárias e litúrgicas entre diferentes
setores da Igreja
Embate digital contra os hereges
Ênfase dada não ao transcendente, mas à vida prática da fé
Mídia como o encontro com a Igreja e suas exigências
Experiências digitais de afirmação da catolicidade: buscam
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

atingir quem já é católico


Explicação da fé canônica e de temas considerados
polêmicos
Postagens blindadas pelos poderes eclesiais
artigo | sandra rúbia da silva e alisson machado

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Título (autoria, ano) Principais gêneros culturais

O suicídio em torno da vida e da morte: Criação de espaços de escuta


uma etnografia do consumo do Facebook Ações de responsabilidade, cuidado e meios de sustentação
por jovens (Paz, 2019) da vida
Interferir pontualmente nos momentos de crise do(a)
suicidando(a)
Maior segurança no desabafo: liberdade em falar da
temática sem ser estigmatizados(as)
Combater a exposição de material íntimo de meninas na
internet por meninos
Tribunais públicos para punição desses acusados
Uso de vários perfis por uma mesma pessoa por se sentir
mais livre para autoexpressão

Práticas de consumo das redes sociais Luta por justiça e memória no Facebook
por mães de vítimas do incêndio da Boate Direito à saudade como demarcação política em um cenário
Kiss: a criação de experiências no cotidiano marcado pela impunidade
(Pavanello, 2019) Narrativas para corporificar nos outros a dor que sentem
Proteção afetiva e recurso terapêutico
Sentem-se mais protegidas de insultos em seus perfis do
que na Tenda da Vigília (local de memória mantido pelos
familiares das vítimas)
Facebook para manter diálogos com os(as) filhos(as)
mortos(as)
Manutenção dos perfis da mesma forma como outros
objetos significativos são preservados
A mediação tecnológica diminui as distâncias insuperáveis

Toda trabalhada na wi-fi: cotidiano travesti Manutenção de reputações pela valorização da honestidade
em trajetórias digitais (Machado, 2019) Fofocas e jocosidade para demarcar a fidelidade a si
mesmas
Sentem que não têm direito à privacidade
No trottoir também se busca conexão wi-fi
Fazer a pista conectada é menos arriscado
Dinâmicas da prostituição contidas nos celulares: 24 horas
conectadas para o sexo (cansaço e diminuição da libido)
Trabalho constante de atiçar o desejo das mariconas
O encontro online precisa acontecer off-line para assegurar o
retorno financeiro
O perfil e as publicações são dedicados aos orixás
diálogos com daniel miller no campo da comunicação

870

OBSERVANDO E REFLETINDO SOBRE OS GÊNEROS CULTURAIS


Os estudos da cultura material entendem que o consumo dos bens fala sobre
e por nós, e que os objetos participam ativamente das elaborações sociais e
culturais dos indivíduos e das populações. As pesquisas das culturas digitais
permitem compreender os deslocamentos entre o real e o virtual, o material e
o imaterial e o online e o off-line como esferas intercambiantes e constituintes
das práticas humanas (Horst & Miller, 2012). Assim, a pesquisa etnográfica, ao
dar ênfase às elaborações cotidianas do uso da internet e dos artefatos digitais,
desloca o eixo analítico não para as imposições tecnológicas da cultura, mas
para as realizações humanas que definem e dão os contornos de como as mídias
são utilizadas.
Os diálogos com Miller apresentados por Silva (2010) em sua tese de dou-
torado sobre o consumo de telefones celulares em um bairro popular de Floria-
nópolis foram importantes tanto por revelar e avaliar as relações pessoa/telefo-
ne – posteriormente desdobradas nas pesquisas de seus(suas) orientandos(as)
– quanto por veicular importantes noções teóricas e metodológicas da antropo-
logia das mídias e, especificamente, da antropologia digital. Recebe especial
destaque The cell phone: an anthropology of communication (Horst & Miller, 2006),
estudo pioneiro da abordagem etnográfica para a pesquisa sobre telefones ce-
lulares.
Em seu estudo, Tondo (2016) admite que os afetos dos(as) jovens não se
relacionavam apenas aos conteúdos das postagens e compartilhamentos nas
redes sociais, mas também eram produzidos pela materialidade de controle e
posse dos celulares. Os aparelhos desencadeavam emoções específicas – como
raiva, quando travavam por pouca memória; inveja, de modelos mais novos e
eficientes; felicidade e sentimento de completude, ao encontrar o aparelho que
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

estava perdido. Trindade (2018) percebeu que as performances de ouvir música


alta sem fones de ouvidos, nas ruas e nos ônibus, descritas em Silva (2012a),
convergiam para os ambientes digitais por meio de novas performances que
expandiam os significados da masculinidade nas redes sociais e aplicativos. Da
mesma forma, Pereira (2017) refutou a ideia de que o mundo doméstico seria
um mundo atrasado por ser considerado “menos tecnológico” ou “menos me-
diado” e percebeu como a produção visual, principalmente o compartilhamen-
to de fotografias em formato selfie, atualizava as normatividades de gênero
enfrentadas pelas interlocutoras, sobretudo em função das atribuições sociais
estabelecidas para homens e mulheres no matrimônio e no sistema de heran-
ças ameaçado na hipótese de separação (Silva, 2012b).
A leitura de Tales from Facebook (Miller, 2011), especialmente as 15 teses
sobre essa mídia social, também foi fundamental para as investigações, devido
à sua proeminência como polimídia na maioria dos campos de pesquisa. A
noção de polimídia (polymedia) adverte que não conseguimos entender uma
plataforma midiática de forma isolada, devendo percebê-la sempre como rela-
artigo | sandra rúbia da silva e alisson machado

871

tiva às outras mídias. Por meio dessa noção, os trabalhos compreenderam que
a distinção entre os ambientes digitais também significava a distinção entre
as pessoas.
O modo como essa rede social converge tanto sobre as demais ambiên-
cias digitais quanto sobre as práticas de consumo foi analisado em relação às
materialidades e linguagens digitais que impactavam os significados da vida
social. Para os blogueiros de “O Catequista”, conforme Flores da Rosa (2018), os
vários sites sobre o catolicismo na internet apresentavam boas reflexões, mas
não atingiam seus objetivos por utilizar uma linguagem considerada por eles
“católica demais”. Para realizar essa tradução, os blogueiros aproximaram os
conteúdos que produziam das linguagens “características” da mídia social, de-
marcadas pelo uso de coloquialismos, fórmulas rápidas, humoradas e miméti-
cas. A atenção às materialidades permitiu a Pavanello (2019) perceber que as
mães mantinham o mesmo tipo de zelo entre os perfis na rede social e os bens
materiais mais significativos dos(as) filhos(as) perdidos(as), como algumas rou-
pas, ursinhos de pelúcia, violão etc. A preservação da memória digital mate-
rializava não apenas a saudade, mas a corporificação e a presença deles(as)
(Miller, 2013).
Flores da Rosa (2018) aponta ainda o impacto da circulação de conteúdos
nas práticas cotidianas de vivência da fé por meio do combate às transforma-
ções dos rituais e do zelo litúrgico. Um de seus interlocutores, depois de ler no
Facebook sobre esse assunto, passou a considerar desrespeitoso bater palmas
e acompanhar com pequenos gestos o ritmo das músicas nas celebrações, en-
tendendo a missa como um rito de sacrifício. França (2018) conclui que a au-
sência da SUG 02/2014 (sobre o fim da isenção fiscal das igrejas) no Facebook
diminuiu a possibilidade de o tema ser mais bem aproveitado no Senado, pois
a falta de divulgação online implicava menor acesso a informações retidas na
sociedade civil e que poderiam colaborar com o debate social mais amplo, além
daquele já estabelecido para o andamento da proposta.
Outro dado é a forma como as linguagens próprias da internet implica-
ram, em vários campos de pesquisa, a consolidação de sistemas de classificação
do mundo social. Em Flores da Rosa (2018), a catequese dos blogueiros ganha
contornos apologéticos a partir do apontamento de “erros” doutrinários e mo-
rais das outras crenças e do próprio catolicismo progressista. Expressões como
“Católico #FAIL”, “Crente #FAIL” e “Fantasminha #FAIL” indicavam, respectiva-
mente, as “falhas” na doutrina de católicos, evangélicos e espíritas. Essas crí-
ticas, ao ser compartilhadas no Facebook, acabavam gerando atritos, disputas
e discursos intolerantes tanto por católicos quanto por membros dessas reli-
giões, que se consideravam desrespeitados. Em Machado (2019), a classificação
dos comportamentos dos clientes de acordo com o tipo de carro que dirigiam
e que apareciam nas fotos do Facebook permitia às interlocutoras realizar uma
triagem da clientela. Quanto melhor o carro, melhores as condições de realiza-
diálogos com daniel miller no campo da comunicação

872

ção do programa e mais alto o pagamento (o que nem sempre acontecia de


fato). Da mesma forma, elas compartilhavam denúncias entre si, nas conversas
privadas, de perfis de homens bagaceiros, caloteiros e fakes e, de modo público,
a todas as pessoas da rede, quando o problema passava dos limites toleráveis.
Igualmente importante foi a publicação de How the world changed social
media (Miller et al., 2016), que permitiu às pesquisas comparar seus dados de
campo com os resultados das pesquisas em outros países. Além disso, a noção
de “sociabilidade escalonável” (scalable sociality), desenvolvida na obra, pontuou
a importância de observar as variações entre o tamanho do alcance das intera-
ções e os graus de extensão das mídias sociais. De modo geral, para a maioria
das pesquisas nas culturas juvenis, o estabelecimento do uso de aplicativos
como Tinder e Instagram servia como fronteira para as amizades serem aceitas
no Facebook. Somente após a estruturação de laços de confiabilidade nesses
ambientes é que os convites mudavam para plataformas consideradas mais
pessoais. Em função disso, Trindade (2018) entendeu como determinadas perfor-
mances já eram esperadas ou não em cada ambiente. Uma de suas interlocutoras
se sentia pressionada a mandar nudes (o que não era uma vontade dela), o que
causou o fim do relacionamento que começou no Tinder e migrou para o What-
sapp. Para alguns participantes, a primeira interação no Tinder representa o
primeiro passo para a estruturação de um laço com intuito sexual. Posterior-
mente, as conversações migravam para plataformas como o Whatsapp, o que
significava maior intimidade nas conversações e liberdade para que elas assu-
missem um rumo sexualizado, mediante o envio de nudes e sexting.
Para Tondo (2016), essa relação implicava não apenas o fato de os jovens
continuamente esconderem dos pais e mães determinados conteúdos ou mes-
mo aplicativos específicos, principalmente os de namoro, ou de moralizarem
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

seus pais e mães quando eram esses(as) que publicavam algum conteúdo
considerado inadequado ou vergonhoso, como piadas ou qualquer outro con-
teúdo alusivo à vida sexual dos(as) adultos(as). Da mesma forma, para Kuntz
(2018), pais e mães, temendo cenários hipotéticos de violência, se preocupa-
vam por sentir que não podiam controlar a circulação dos vídeos das crianças
e, para isso, desenvolviam ações protetivas, como desativar os comentários
nos vídeos.
Flores da Rosa (2018) descreve transformações das relações dos leigos
com a institucionalidade da religião quando um dos blogueiros foi credencia-
do à sala de imprensa do Vaticano, colocando a atuação de “O Catequista” em
destaque no cenário internacional. Pela primeira vez, o Vaticano concedeu
esse tipo de credencial para um não residente de Roma. Um leigo ocupar uma
credencial geralmente dada a jornalistas e profissionais religiosos sinaliza
como as instituições suportam e resolvem, dentro de suas principais lógicas,
as novas formas de atuação articuladas pelo uso da internet. Menezes (2017)
também demonstra essa relação conflitiva, apontando como os(as) dançarinos(as)
artigo | sandra rúbia da silva e alisson machado

873

do grupo negociam e adentram os circuitos das mídias tradicionais a partir


da valorização de estratégias de publicidade e autocomunicação, garantindo
acordos e patrocínios com marcas reconhecidas que projetam mais visibili-
dade ao grupo.
O sistema de fãs e a utilização de um marketing eficiente nas redes sociais,
ainda que tenham possibilitado, por exemplo, que uma das dançarinas se tor-
nasse personagem em séries televisivas e embaixadora de marcas de cosméti-
cos e vestuário, não apagaram as contradições da cultura hegemônica. As po-
líticas editoriais da maioria dos veículos definiam os limites e os enquadra-
mentos permitidos ao grupo. É o caso da revista Elle, de março de 2015, em
comemoração ao aniversário da cidade do Rio de Janeiro. O editorial de moda,
ainda que “celebre a diversidade” das culturas cariocas, manteve uma dicotomia
entre a retidão e o luxo dos brancos em oposição à sexualidade e simplicidade
(pobreza) dos negros. No ensaio fotográfico analisado por Menezes, o centro do
enquadramento é ocupado por uma modelo branca, única vestida com requin-
te, enquanto cinco modelos negros(as) apresentam seus corpos quase desnudos.
As SUGs estudadas por França (2018) também não estão livres dos po-
deres institucionais intrínsecos às posições partidárias dos(as) senadores(as).
A autora aponta que, quando a temática é de interesse dos políticos, recebe
maior atenção e incentivo nas redes sociais, incluindo postagens públicas nos
perfis de parlamentares, como no Twitter. Quando os temas podem trazer pre-
juízos e refletir na perda de votos ou privilégios, acaba recebendo menor ou
nenhuma atenção. É o caso da SUG 02/2014 (pelo fim da imunidade tributária
para igrejas no Brasil). A proponente, ao perceber a ineficácia de tentar promo-
ver um debate online, pois o tema afetava diretamente os interesses conserva-
dores dos parlamentares da bancada religiosa, passou a desenvolver uma agen-
da de atuação corpo a corpo no Senado. Por outro lado, a SUG 08/2014 (pela
descriminalização do uso da maconha), apesar de ser considerada polêmica,
conseguiu apoio mais amplo nas redes sociais, principalmente por acionar con-
teúdos que mostravam histórias de pessoas que portavam doenças graves, mas
que melhoraram com o uso de medicamentos contendo canabidiol. Se o uso
recreativo da maconha encontrava resistência nos comentários, o interesse na
saúde pública, principalmente quando envolvia doenças em crianças, conseguia
mobilizar retornos de interesse à SUG.

DINÂMICAS E DEMARCAÇÕES NAS MÍDIAS DIGITAIS


Noções relativas ao tempo, às pessoas e às formas de organização das relações
sociais descritas nas pesquisas possibilitam entender como esses elementos
organizam as experiências digitais e as formas de interação nos contextos ob-
servados. A cultura digital, assim, participa da forma como os grupos dão sen-
tido às suas experiências sociais e singularizam distintas maneiras pelas quais
a internet passa a ser compreendida (Miller, 2011; Miller et al., 2016). Em sua
diálogos com daniel miller no campo da comunicação

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tese, Silva (2010) percebeu que, conforme os celulares adentravam os contextos


familiares, as pessoas sentiam que precisavam estar perto do aparelho para
não perder nenhuma chamada ou SMS. Pereira (2017) observou essa mesma
continuidade, relacionada, todavia, à necessidade de checar constantemente
as redes sociais. Para as interlocutoras de Silva (2010), o celular invocava a
necessidade de elas estarem “24 horas” disponíveis para atender ligações, en-
quanto as de Pereira, da mesma forma, sentiam que deveriam estar “sempre
conectadas”, principalmente para atender às necessidades de filhos(as) e ma-
ridos e para se sentir atualizadas a respeito da vida social. Se as interlocutoras
de Pereira estavam conectadas o dia todo para o cuidado familiar, as da pes-
quisa de Machado (2019) também sentiam essa noção de urgência do tempo.
Os perfis masculinos agiam como se elas estivessem 24 horas disponíveis ao
contato sexual, enviando convites incessantes para transas, pedindo fotos, ma-
nifestando “elogios” descabidos incansavelmente ou ainda, quando frustradas
as tratativas de consumação sexual, avisando que estavam se masturbando
com o conteúdo das conversas.
Pavanello (2019) também percebeu como o consumo do Facebook estabe-
lecia uma relação direta entre as mães e a demarcação do tempo da tragédia.
Além das publicações sobre amor, valor das amizades, luto e mensagens de
protesto e denúncia da impunidade, outro importante uso era o compartilha-
mento de publicações referentes aos meses e anos transcorridos desde o incên-
dio. Para elas, o Facebook se transforma em um calendário público de atualiza-
ção da saudade. O sistema automatizado de “lembranças”, que reapresenta na
timeline do(a) usuário(a) postagens antigas, também interferia na produção so-
cial do afeto, surpreendendo ou emocionando as mães e impactando o geren-
ciamento cotidiano das emoções.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

As pesquisas observam também que as interações com a modalidade


“amigo” do Facebook não implicavam necessariamente intimidade ou proximi-
dade. Essas interações geralmente estavam concentradas em modalidades que
se encaixam em “outras”, no sentido de que elas não configuram relações ne-
cessariamente mantidas com pessoas próximas ou conhecidas (Spyer, 2018;
Miller & Venkatraman, 2018). Esse deslocamento reconfigura tanto os entendi-
mentos sobre a categoria conceitual “amizade” quanto a noção de pessoa e
comportamentos que se articulam nas redes.
Não raras vezes os trabalhos de campo, especialmente sobre as culturas
juvenis, pontuaram modalidades de insultos, brigas, ameaças e agressões que
não eram apenas admitidos, mas negociados dentro do que cada grupo enten-
de por “amizade de Facebook” e daquilo que é esperado individualmente pelas
pessoas conectadas à rede. Interações desse tipo podiam ser percebidas nos
aplicativos de conversação, como WhatsApp ou Messenger, ou nos espaços de
conversa privada, como as dm (direct message) do Instagram. Para muitos(as)
dos(as) interlocutores(as), esses espaços são os principais lugares onde se pode
artigo | sandra rúbia da silva e alisson machado

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conhecer verdadeiramente alguém. Como o perfil na rede social é considerado


um lugar de formulação pública da imagem, é nas conversas privadas que as
pessoas se dão mais a conhecer, sem tantas amarras sociais.
As publicações e interações públicas permitem maior atuação com atores
sociais não muito próximos ou mesmo desconhecidos, ou que tenham algum
tipo de interesse, ainda que momentâneo. Isso vale tanto para curtidas (likes)
em fotos, que podem independer da proximidade, quanto para marcações e
interações mais amplas do que a núcleos sociais específicos. Nesse contexto, a
autoapresentação é uma característica fundamental da noção de pessoa elabo-
rada nas redes, que precisa angariar reconhecimento entre aquilo que é postado
e o que se sente em relação à pessoa que posta. Por meio da noção de máscara
social (Miller, 2011) – diálogo que se estabelece com os conceitos de “palco”,
“equipe” ou “fachada social”, ou seja, múltiplos arranjos no campo das interações
(Goffman, 2009) –, trabalhos como os de Pereira (2017), Trindade (2018) e Macha-
do (2019) conseguiram entender contextos digitais em que interessava mais o
trabalho de enunciação, ou seja, os esforços para dizer e mostrar do que efeti-
vamente aquilo que se mostrava.
Pereira (2017) identificou esse processo em uma de suas interlocutoras,
uma manicure, que se apresentava no Tinder como “doutora”, vestindo jaleco
branco para se passar por médica. Uma amiga havia ajudado a editar a foto,
“diminuindo a papada”, as manchas e o tamanho do rosto. Essa mentira, que
ela usava mais para se divertir, demonstra uma separação entre sua apresen-
tação nesse aplicativo específico com o perfil do Facebook, em que todos os
dados estavam indexados como os mais próximos “à sua vida real”. As provo-
cações entre os jovens que não tinham a mesma popularidade nos likes por não
terem fotos do corpo sarado, no campo de Trindade, e as fofocas sobre as infi-
delidades conjugais e falsas juras de amor declaradas no Facebook, na pesqui-
sa de Machado, mostram não apenas como as reputações são projetadas e vão
circulando, mas os valores sociais de quem interage com esse tipo de conteúdo.
Já França (2018) percebeu como a atuação dos proponentes das SUGs im-
plicava seu reconhecimento como ativistas do tema, incluindo as pessoas adicio-
nadas às redes sociais em um sistema de ajuda e reciprocidade. Em um vídeo
postado, o interlocutor responsável pela SUG 08/2014 performa fumando maconha
e fazendo explicações sobre o projeto. Ao pedir votos à sugestão, ele ensina as
pessoas a ligar para o Alô Senado (canal de comunicação pública) para manifestar
apoio ao projeto. A fim de demonstrar como é fácil votar, o rapaz deixa o áudio do
telefone no viva-voz e ensina como qualquer pessoa também pode atuar.
A ambiguidade da noção de pessoa se expressa nas mídias digitais da
mesma forma com que as relações como parentesco, parentalidades, filiações
e associativismos são negociados, flexibilizados ou reforçados, enquanto es-
truturas concretas do mundo social (Miller & Madianou, 2012; Miller & Venka-
traman, 2018, Miller et al., 2016). Na pesquisa de Paz (2019), a organização por
diálogos com daniel miller no campo da comunicação

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“patentes” demonstra como os cargos e méritos eram atribuídos aos(às)


membros(as) a fim de promover seleções para as diferentes atividades, como
o socorro nas crises suicidas ou o mapeio e hackeio de explanadores (quem
divulga fotos íntimas das meninas). Dessa forma:

Cada patente tem sua missão que são práticas secretas, entre elas está a nomea-
da por Forasteiro, que é o menor nível de patente dos membros. São os que estão
chegando à comunidade e conhecendo como ela funciona. Também entre os
cargos ocupados pelos membros estão os cargos ocultos. São eles: Guarda: Mais
velho, Anjos, Deusa Kaneki e Deus Kaneki; Zero, e Rainha da corte. A Guarda são
membros que detêm poder maior na comunidade, já com um grau de conheci-
mentos avançado (Paz, 2019: 114).

As obrigações e continuidades do parentesco são demonstradas por Pa-


vanello (2019) tendo em vista que as mães seguem cuidando dos(as) filhos(as)
perdidos(as). Uma delas desativou a conta da filha no Twitter depois que pes-
soas utilizaram uma frase escrita pela jovem na noite da tragédia para espalhar
teorias conspiratórias. Essa mãe mantém o perfil da jovem no Facebook “em
memória” (quando o perfil fica em funcionamento após a morte do(a) usuário(a)
como um espaço recordação), para que os(as) amigos(as) da rede se sintam
conectados(as) a ele(ela). A publicação de fotografias, no entanto, não ocorre
de forma irrefletida. As mães liberam fotos somente a familiares e amigos(as),
pois temem encontrar esse material sendo desrespeitado em sites ou grupos
que as acusam de “não deixar a cidade voltar a ser feliz”. Kuntz (2018) percebe
como as relações de parentesco redefinem a preocupação dos pais frente a
conteúdos considerados danosos à infância e como o YouTube reorganiza a
reunião das famílias, circunstância que difere, por exemplo, de assistir à tele-
visão, considerado um ato mais solitário da criança.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

Machado (2019) percebeu que as relações de parentesco que se desenvol-


vem entre as trans eram anteriores a suas inscrições nas mídias digitais e en-
volviam formas práticas de sobrevivência, uma vez que, ao assumir suas tran-
sidentidades, elas eram expulsas de casa, abandonavam a escola e não encon-
travam trabalho a não ser na prostituição. Com isso, as amizades no Facebook
descrevem relações sociais por vezes mais efetivas do que o parentesco consan-
guíneo. Elas se organizavam como irmãs, filhas, mães, avós, tias (do território
material e simbólico que é “se assumir” e “enfrentar a quadra”). A divisão entre
casas, famílias e gerações de novas meninas que já eram mães ou tias, em ques-
tão de dias ou semanas, a depender da chegada das mais novas à quadra (lugar
da prostituição), estabelece as formas desses relacionamentos nas interações
digitais. O Facebook disponibiliza, em uma seção “sobre” o usuário, espaço para
indexar os perfis de familiares. Nessa seção, o parentesco pela vida da noite era
fixado e tornado público. O mesmo acontece para as linhas entre os(as) orixás,
que assumem a cabeça daqueles(as) que praticam as religiões de origem africa-
na e que passam a ser assumidos(as) de forma pública nos perfis na rede.
artigo | sandra rúbia da silva e alisson machado

877

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a análise, demonstramos como as pesquisas do GP Consumo e Culturas
Digitais têm realizado uma costura interdisciplinar entre o campo da comuni-
cação e o da antropologia, seja pelo caráter etnográfico das pesquisas analisadas
ou dos diálogos com o campo da antropologia do consumo e da antropologia
digital e que se alinham às perspectivas teórico-metodológicas de Miller. Para
tanto, descrevemos alguns elementos que participam das práticas de consumo
e elaboração dos gêneros culturais implicados nos contextos de pesquisa anali-
sados. O estudo do consumo das mídias sociais e das tecnologias digitais, tal
como o compreendemos, permite perceber como as pessoas interpretam e dão
sentido a suas próprias interações, sendo interpeladas por valores, percepções,
moralidades e capitais próprios de que dispõem, pelas configurações da infra-
estrutura tecnológica, bem como pelas circunstâncias de tempo e espaço em que
se encontram. Com isso, demonstramos uma pluralidade de elementos que nos
ajudam a compreender como a tecnologia digital participa da vida social e a
configura, atuando tanto para a manutenção das normatividades sociais exis-
tentes quanto na proposição de agências cotidianas e formas de resistência.
Os gêneros culturais, como usos específicos da cultura material por in-
divíduos ou grupos, elaboram-se na experiência vivida e nos contextos parti-
culares e cotidianos em que as pessoas utilizam as tecnologias digitais. Essa
perspectiva implica entender que os usos das mídias sociais são relacionais,
tanto às práticas e aos contextos observados quanto às formas de que dispomos
para observar, ou seja, como o trabalho de campo frente a esses contextos vai
sendo construído. Nas pesquisas analisadas, esse aspecto está relacionado aos
desafios metodológicos, às estratégias para acesso às experiências digitais, à
permanência junto a interlocutores(as) e ao reposicionamento dos imponde-
ráveis que podem se desdobrar em cenários tanto online quanto off-line. Tondo
(2016) e Trindade (2018) desenvolveram atividades pedagógicas nas escolas,
utilizando esses espaços para a observação empírica. Além disso, mais de uma
vez, afirmaram que se envolveram nas “tretas” (confusões) de seus(suas)
interlocutores(as), atuando como mediadores, precisando ponderar até que
ponto “tomar uma posição” causaria impasses e problemas para o desenvolvi-
mento das pesquisas.
Nos trabalhos com mulheres, Pereira (2017) e Machado (2019) entenderam
que as mídias digitais os aproximavam das interlocutoras em momentos que
o contato físico era impossível. Antes dessa aproximação, partilhavam de um
sentimento de insegurança (de importunar, de as interlocutoras “simplesmen-
te” desistirem da pesquisa), o que implicava estratégias para manter as intera-
ções. Participar da vida social off-line ajudava a manter esses vínculos, mas eles
não podiam ser tomados de forma apriorística. Por isso, revelam que se trans-
formaram em confidentes (principalmente amorosos), tendo que, para isso,
dividir suas próprias intimidades.
diálogos com daniel miller no campo da comunicação

878

Machado (2019) percebeu ainda que o trabalho de campo seria entre-


cortado de acordo com as temporadas de suas interlocutoras e optou por
utilizar as mensagens em áudio do WhatsApp, mas só depois de perceber que
o cotidiano possuía uma organização própria. De manhã, elas voltavam can-
sadas da quadra e dormiam. Interagiam melhor à tardinha (enquanto se ar-
rumavam para sair) ou à noite, no intervalo entre um atendimento e outro.
Suas interlocutoras também souberam utilizar dessa ferramenta de acordo
com suas necessidades, como quando estavam em alguma situação de risco
e pediam para que ele ficasse conectado com elas, para demonstrar a alguém
(em geral algum homem inoportuno ou perigoso) que elas não estavam so-
zinhas.
Kuntz (2018), por sua vez, aponta que as crianças estavam mais abertas
a conversar com ela na internet do que presencialmente, quando pareciam
mais envergonhadas. Ela indaga, sobre essas conversas, se as respostas monos-
silábicas que recebia poderiam indicar um aparente desinteresse ou, pelo con-
trário, uma característica própria da linguagem infantil – não exigindo delas
vasto domínio da linguagem escrita ou grandes explicações de suas ações na
internet. A imersão de Paz (2019) implicou sua própria transformação como
pessoa para o grupo. Inicialmente considerada uma forasteira (quem sabe pou-
co sobre o grupo), ela se candidatou à patente de diário (pessoa que se compor-
ta como um “livro aberto” para que a “caneta”, o(a) jovem que está precisando
de ajuda, “escreva” nele). A partir disso, recebeu de uma interlocutora de 17
anos um treinamento para atuação terapêutica, que implicava seguir um con-
junto de 11 regras e preencher modelos de “relatórios diários” e “prontuários”
apresentando as características depressivas e os quadros de melhora que pre-
cisava enviar regularmente aos seus superiores.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

Com esses exemplos queremos demonstrar que a inscrição dos(as)


pesquisadores(as) em campo implica formas específicas de atuação – tanto
em relação às mídias quanto a interlocutores(as) – tendo como referente as
principais dinâmicas e características de cada contexto. O modo como essa
atuação vai sendo construída implica diretamente como cada realidade social
vai sendo interpretada. Assim, temos destacado a importância de situar nos-
sos próprios usos e apropriações, o que permite inquirir as configurações
metodológicas e as estratégias que conformam o exercício da pesquisa.
Essa postura reflexiva se assenta na percepção crítica da antropologia
de Miller, de que, por meio dos estudos da cultura material e das tecnologias
digitais, é possível pensar as transformações tanto da humanidade quanto
da própria produção de conhecimento, pois “parece razoável, portanto, tam-
bém usar a antropologia digital para desenvolver debates sobre o que a hu-
manidade está se tornando e também o que a antropologia está se tornando”
(Miller, 2018, tradução nossa). Não refletir sobre nossas próprias práticas é
ignorar o movimento situacional, dialético e mediado das experiências que
artigo | sandra rúbia da silva e alisson machado

879

desejamos compreender e, por conseguinte, perder de vista um dos maiores


ensinamentos que Daniel Miller nos deu, de que o digital é humano.

Recebido em 13/5/2020 | Revisto em 30/8/2020 | Aprovado em 28/9/2020

Sandra Rúbia da Silva é doutora em antropologia social pela Universidade


Federal de Santa Catarina, com período sanduíche no University College
London, com supervisão de Daniel Miller. Mestra em comunicação e
informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e bacharela em
comunicação social publicidade e propaganda pela Universidade Regional de
Blumenau. É docente do Departamento de Ciências da Comunicação e do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de
Santa Maria e pesquisadora-líder do GP Consumo e Culturas Digitais (UFSM/
CNPq). Seus atuais interesses de pesquisa e áreas de atuação incluem teorias
do consumo, cultura material, culturas digitais e práticas de consumo da
internet para a inclusão social.

Alisson Machado é doutor e mestre em comunicação pelo Programa de Pós-


Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria e
bacharel em comunicação social, habilitação em jornalismo, pela mesma
instituição. Membro do GP Consumo e Culturas Digitais (UFSM/CNPq). Seus
atuais interesses de pesquisa e áreas de atuação incluem as perspectivas
qualitativas de investigação; antropologia e consumo das mídias; e mídia,
relações entre gênero, corpo e sexualidade.
diálogos com daniel miller no campo da comunicação

880

NOTAS
1 Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunica-
ção da Universidade Federal de Santa Maria.
2 No texto, essas expressões são utilizadas como sinônimos.
Noção advinda de Certeau (2014), de que os usos possibi-
litam consumos combinatórios, arte de utilizar que cir-
cunscreve as práticas do consumo na vida cotidiana. A
elas se soma com mesmo significado a expressão “gêneros
culturais” tomada de Miller (2013; Miller et. al., 2016) pa-
ra sinalizar práticas particulares de consumo das tecno-
logias. O consumo é entendido como um fenômeno social,
simbólico e cultural (Miller, 1987; Sahlins, 2003; Douglas
& Isherwood, 2004; Barbosa & Campbell, 2006), e os con-
tornos e enfoques midiáticos estão entremeados nessas
práticas.
3 Aproximações entre o campo da comunicação e a antro-
pologia podem ser encontradas, entre outros, em traba-
lhos como os de Travancas e Farias (2003) e Lago (2008).
4 Os trabalhos, ao ref letir o consumo por camadas popula-
res, criticam especialmente as políticas da carência ma-
terial (Sarti; 2011; Rocha & Barros, 2009). Com isso, per-
cebem não apenas os esquemas de distinção entre grupos
(Bourdieu, 2007), mas também o impacto, a ascensão e a
participação social das camadas populares pelo consumo
(Slater, 2002; Silva, 2008).
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

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diálogos com daniel miller no campo da comunicação

886

DIÁLOGOS COM DANIEL MILLER NO CAMPO DA


COMUNICAÇÃO: REFLEXÕES A PARTIR DAS
PESQUISAS DO GP CONSUMO E CULTURAS DIGITAIS
Resumo Palavras-chave
O artigo reflete as práticas de investigação do grupo de Consumo;
pesquisa Consumo e Culturas Digitais (UFSM/CNPq) tendo cultura material;
em vista o legado teórico de Daniel Miller a respeito do etnografia;
consumo e da cultura material em interface com os estudos internet;
do campo da comunicação e, em especial, das culturas di- mídias digitais.
gitais. Mediante a apreciação crítica de quatro teses e seis
dissertações, demonstramos como temos realizado diálo-
gos com a antropologia digital por meio da tessitura de
diferentes pesquisas de campo que animam e propõem
desafios à pesquisa empírica. Nossa filiação à linhagem
etnográfica de Miller nos faz perseguir o argumento de que
as práticas cotidianas de consumo da internet, das mídias
sociais e de dispositivos móveis podem ser entendidas en-
quanto gêneros culturais que se elaboram na experiência
vivida e nos contextos particulares em que as mídias digi-
tais são utilizadas.

DIALOGUES WITH DANIEL MILLER IN THE


COMMUNICATION FIELD: REFLECTIONS FROM THE
RESEARCH OF CONSUMPTION AND DIGITAL CULTURES
RESEARCH GROUP
Abstract Keywords
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 861 – 886 , set. – dez., 2020

The article reflects the research practices of the research Consumption;


group Consumption and Digital Cultures (Consumo e Cul- material culture;
turas Digitais, Brazil) in view of Daniel Miller’s theoretical ethnography;
legacy regarding consumption and material culture in in- internet;
terface with studies in the field of communication and in digital media.
particular of digital cultures. Through the critical apprais-
al of four theses and six dissertations, it demonstrates how
we have been working with digital anthropology through
the interlacement of different field researches that ani-
mate and pose challenges to empirical research. Our af-
filiation with Miller’s ethnographic lineage makes us pur-
sue the argument that it is possible to understand the
everyday consumption practices of the internet, social
media and mobile devices as cultural genres elaborated in
the lived experience and in the particular contexts in which
digital media are used.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v1035

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Programa


de Pós-Graduação em Comunicação, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
claudiapereira@puc-rio.br
https://orcid.org/000-0002-5382-130X
11Universidade de Brasília (UnB), Programa de Pós-Graduação em
Comunicação, Brasília, DF, Brasil
Cláudia Pereira I
nandamartineli@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-0196-048X
Fernanda Martinelli Il

As pessoas, as coisas e as perdas: perspectivas


da cultura material e do consumo nos estudos
de Daniel Miller
As pessoas existem para nós em e por meio de
sua presença material 1
Daniel Miller

Tinha tudo sob controle: sua rotina regrada, seu corpo, seus sentimentos, seus
relacionamentos, sua mesa de escritório na sala. Tudo estava conforme o espe-
rado, nada fora do lugar. Um dia, pela janela de sua casa, sempre aberta para
os dias de sol, avançou um vento muito forte, imprevisível, que primeiro sacu-
diu a cortina, que fez tombar a luminária, estilhaçando a lâmpada em mil pe-
daços, e que depois percorreu toda a casa, cômodo por cômodo, derrubando
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 887 – 905 , set. – dez., 2020

bibelôs, desfolhando as plantas, espalhando as pétalas secas perfumadas pela


mesinha de centro, agitando as folhas do livro aberto na mesa de cabeceira,
levando ao chão a correspondência recém-resgatada da caixa de correios. Fa-
zendo a volta pelo corredor, depois de adentrar os quartos, antes de perder sua
força, o vento deixou o tapete do escritório todo coberto com as mais de 100
folhas de papel recém-impressas − e que agora, espalhadas, deixavam sem
sentido os números das páginas −, suas canetas multicoloridas e as fotografias
antigas que estava separando a fim de levar para sua irmã. Saiu correndo da
cozinha, assustada com a súbita visita desse vento de verão, deparou-se com
a bagunça que de repente se instalara em seus espaços e, primeiro, imobilizou-
se, depois sentiu raiva pela desordem, em seguida entristeceu, resignou-se e,
só mais tarde, pôs-se a rearranjar as coisas que restaram, resmungando e la-
mentando o que se perdera.
Metáforas e eufemismos são figuras de linguagem sempre bem-vindas,
mesmo quando o discurso se pretende sociológico e científico. Como José Ma-
chado Pais (1993, p. 13) já pontuou, “No discurso científico, a metáfora desem-
as pessoas, as coisas e as perdas

888

penha também uma função de transporte − transporte de ideias − para melhor


as fazer chegar a bom termo, a bom porto. Deste modo, a metáfora não é redu-
zível a ornamento. É também um meio de redescrever a realidade”. Quando
tentamos abordar temas que podem trazer algum tipo de ruptura na ordem que
estabelecemos para nossas vidas diárias, tal qual o vento inesperado que entra
violento pela janela da casa, a metáfora nos chega a bom termo. A morte de
pessoas que amamos, para a maioria de nós, é um desses temas disruptivos.
De repente, vemos nossa vida tão desordenada e sem sentido como o tapete
da sala de estar. Mas há também outros tipos de morte, não de pessoas, mas
de coisas ou de um conjunto de coisas, que nos levam a um sentimento de luto,
aquele que primeiro nos paralisa, depois nos leva à revolta ou indignação, em
seguida à tristeza, resignação e reconstrução. Em meio a esse processo, passa-
mos a nos posicionar como sujeitos que somos diante de uma nova realidade
e isso fazemos, não raro, reordenando, rearranjando e ressignificando as ma-
terialidades ou o que delas restou, para que possamos, enfim, nos tornar outra
pessoa, que se reconfigura diante de uma nova ordem.
O objetivo deste artigo é enfatizar a construção ontológica que se dá
entre pessoas e coisas, coisas e pessoas, para além das trocas simbólicas, co-
letivas e públicas, promovida pelo consumo. Para tanto, propomos uma reflexão
sobre relações que as pessoas estabelecem com as coisas em situações de luto,
expressão que usaremos aqui referindo-nos não somente ao sentimento asso-
ciado à morte de pessoas, mas ampliando seu significado para um sentimento
de perda de determinadas materialidades.
A abordagem das teorias de Daniel Miller, antropológica e etnográfica,
que se concentra nas relações dialéticas entre pessoas e coisas, e entre coisas
e pessoas, é o que sustenta as ideias propostas neste texto. Dois de seus livros,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 887 – 905 , set. – dez., 2020

Material culture and mass consumption, de 1987, e The comfort of things, de 2008,
nos inspiram na discussão sobre a concepção maior dos estudos da “cultura
material” no campo da antropologia do consumo.
Em sua obra de 1987, Miller elabora o que se tornaria, a partir de então,
sua teoria geral sobre a cultura material e sobre o consumo, apresentando-nos
a conceitos importantes para a compreensão de seus textos, como “objetifica-
ção”, “humildade dos objetos” e “poder da agência”, os quais serão explorados
adiante.
Mais tarde, em 2008, o autor nos oferta outro texto, menos formal e cheio
de densidade teórica, que busca fazer conhecer de que modo os londrinos re-
sidentes em uma rua da cidade − muitos deles não ingleses – se relacionam
com seus objetos. Batendo de porta em porta, o antropólogo escolhe 30 retratos
− no original, portraits − de pessoas, de uma centena delas, algumas vivendo
sozinhas e outras em família, que estabelecem diferentes tipos de “relaciona-
mentos” com os objetos que possuem dentro de suas casas, cada uma em sua
cosmologia e diversidade muito próprias, mas que, todas juntas, levam-nos a
artigo | cláudia pereira e fernanda martinelli

889

compreender as sociedades em que vivemos. Cabe aqui antecipar que Miller


entende o termo “objeto” de modo bastante amplo, o que inclui vasos, por
exemplo, mas também cachorros. Aprendemos, com os portraits de Miller (2008,
p. 286), que os objetos materiais são vistos como parte integrante e inseparável
dos relacionamentos, aspecto que é central para a vida moderna − e, mais que
isso, o autor defende a centralidade da cultura material para os relacionamen-
tos que colecionamos ao longo da vida. De acordo com ele, há um ordenamen-
to que diz respeito às coisas que nos cercam e, por consequência, aos relacio-
namentos que mantemos. Essa ordem, que em seu livro Miller chama de “es-
tética”, é que conduz as pessoas para a socialização, quando então tomamos
as categorias sociais para afirmar quem somos e quem é o outro. Dos 30 portraits,
escolhemos um, o de Elia, para nos ajudar a pensar de que modo as coisas e as
pessoas se relacionam, em sentido estrito, para além da esfera das trocas sim-
bólicas e, portanto, públicas e coletivas do consumo.
Na primeira seção do artigo, trazemos breve síntese da teoria de Daniel
Miller, destacando alguns conceitos importantes para a compreensão de nosso
ponto de vista e uma discussão sobre a relação entre consumo e cultura mate-
rial. Na segunda seção, apresentamos um olhar etnográfico de Miller sobre o
caso de Elia e o relato de Walter Benjamin sobre seus livros, buscando compre-
ender de que modo se dá o poder de agência dos objetos em contextos de
mudança de vida.

O luto à luz da cultura material em Daniel Miller


Antes de entrar na discussão mais específica sobre o luto, apresentamos breve
panorama do universo intelectual que orienta nossas reflexões para pensar,
junto com Miller, os significados das coisas em contextos de perdas. Embora a
discussão sobre luto seja pontual nos escritos do autor, sua vasta obra fornece
subsídios que elaboram a compreensão das relações entre as perdas e as ma-
terialidades, bem como do luto e suas cosmologias. No horizonte da discussão
que desenvolvemos aqui estamos, no sentido apontado por Miller e Parrott
(2009), menos preocupadas com as causas das perdas do que com o modo como
os objetos têm protagonismo simultaneamente na continuidade e no término
de relações marcadas pelo luto.
Em Material culture and mass consumption, até o momento ainda sem tra-
dução para o português, Miller (1987) afirma a existência de uma relação dia-
lética entre pessoas e coisas. A preocupação do autor com o estudo das coisas
remonta à sua formação em arqueologia, e a partir desse livro adquire contor-
nos que expressam um esforço para pensar como sujeitos e objetos se consti-
tuem mutuamente em contextos contemporâneos, marcados em particular pela
produção industrial de bens em larga escala. Aqui, nosso interesse recai espe-
cificamente sobre o modo como pessoas continuam a significar coisas após sua
morte e como os objetos produzidos em larga escala se ressingularizam em
as pessoas, as coisas e as perdas

890

contextos específicos de perda. Se a morte silencia os objetos em um primeiro


momento, sobretudo se se trata de morte inesperada ou não planejada, nos
termos de Miller (2013), ela também produz, posteriormente, deslocamentos
que evidenciam a autonomia das coisas. A compreensão dessas dinâmicas ten-
siona o próprio sentido social da herança, como discutiremos mais à frente,
pelo reconhecimento de que os objetos armazenam sentidos, absorvem histó-
rias, exalam emoções, sobrevivem a perdas e têm poder de agência.
Antes de Miller, outros intelectuais se dedicaram ao estudo das coisas,
e dentre eles destacamos Marshall Sahlins (2003) em “O pensamento burguês”,
texto originalmente publicado no livro Cultura e razão prática, de 1976; Arjun
Appadurai (1986) em The social life of things; e Mary Douglas e Baron Isherwood
(2004), em O mundo dos bens, cuja edição original é de 1979. Sahlins, Appadurai,
Douglas e Isherwood, cada qual a seu tempo, registram contribuições funda-
mentais no sentido de reivindicar a centralidade da cultura nas trocas econô-
micas e da cultura material em particular no estabelecimento e manutenção
de vínculos sociais que não se esgotam nem dependem exclusivamente das
atividades comerciais. Já na introdução de Material culture and mass consumption,
Miller (1987, p. 3) se coloca ao lado desses autores ao reivindicar o reconheci-
mento da cultura material como elemento central na organização social da vida
moderna, ao mesmo tempo em que afirma ter sido a relação entre sociedade
e cultura material notoriamente negligenciada pelos meios acadêmicos ao lon-
go do século XX.
Miller, porém, também se distingue de seus antecessores ao propor um
novo olhar sobre o entendimento da cultura material na vida moderna e con-
temporânea, e talvez nisso resida a grande contribuição de Material culture and
mass consumption. Ele introduz seu livro com a argumentação de que, em rela-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 887 – 905 , set. – dez., 2020

ção aos conhecimentos de linguística, nossa compreensão da cultura material


é extremamente rudimentar (Miller, 1987, p. 95). Mas embora adote uma pers-
pectiva dos bens como mediadores de relações sociais, o antropólogo britânico
não procura transplantar metodologias da linguística para o estudo dos objetos;
antes ancora sua afirmação em constatações etnográficas e fundamenta essa
relação entre pessoas e coisas a partir de uma “teoria da objetificação”, de
inspiração hegeliana.
Segundo Miller, existe uma relação de interdependência ontológica en-
tre pessoas e coisas: pessoas precisam de coisas para ser pessoas, coisas pre-
cisam de pessoas para ser coisas. Nessa dinâmica de cocriação da cultura ma-
terial, nos ensina ele, há, nas materialidades que nos cercam, um poder de
agência que nos interpela e, muitas vezes, nos controla, seja no espaço da vida
social ou da vida privada. Embora atualmente essa já seja uma perspectiva
consolidada no campo da filosofia e, mais especificamente, da fenomenologia,
sobretudo em função de Hegel, ela continua a desafiar o campo dos estudos de
consumo.
artigo | cláudia pereira e fernanda martinelli

891

Podemos mesmo considerar que, para Miller, a materialidade é um atri-


buto não somente das coisas, mas também das relações. O fenômeno do con-
sumo, por sua vez, atribui aos bens materiais o lugar privilegiado de marcado-
res sociais, dentro de um sistema de significação e de codificação que nos
classifica, hierarquiza e socializa − e nós também classificamos, hierarquizamos
e socializamos as coisas, nos usos sociais que delas fazemos. A relação é, na
perspectiva da antropologia do consumo, dialógica.
A cultura é o lugar em que se realiza o consumo, lição que aprendemos
na tradição dos estudos antropológicos que remontam à discussão sobre a dá-
diva em Marcel Mauss (2007) e ao caráter simbólico indissociável das trocas.
Consumo, aqui, tomado como o sistema de significação e comunicação em
Douglas e Isherwood (2004), no qual os bens são codificados para estabelecer
aproximações e distâncias sociais, mantendo vivas as dinâmicas das sociedades.
São os bens materiais que elaboram identidades coletivas e individuais, e, mais
ainda, na sociedade de consumo, não resta dúvida de que há uma relação de
interdependência entre pessoas, coisas e significados. Por “cultura material”,
expressão controversa adotada por Daniel Miller para delimitar seus estudos
sobre as materialidades, entendemos o conjunto de “coisas”, as quais, por fazer
parte da cultura, estão intrinsecamente dotadas de significados, que sustentam
o sistema de trocas, base do consumo. E tal qual Miller, evitamos subjugar os
bens materiais à sua função meramente simbólica ou sígnica, compreendendo
que há, neles, um poder de agência sobre os indivíduos. Trata-se de inspirar-se
na discussão sobre materialidade e sociedade desenvolvida por Tim Dant (2006):
o autor toma de empréstimo a expressão braudeliana “civilização material” e
o “processo civilizador” de Norbert Elias para enfatizar que os objetos criados
pela civilização tanto constituem como refletem a sua natureza. Para Dant, o
valor dos objetos materiais que estão incorporados na vida social não deriva
exclusivamente de suas origens na produção, de seus significados atribuídos
pelo consumo, de seus usos práticos na vida cotidiana ou de redes associadas
com sua emergência como entidades técnicas – ele deriva de tudo isso simul-
taneamente. E, mais, o autor demonstra a interdependência entre materialida-
de e sociedade uma vez que os objetos são mediadores das relações humanas,
conectando pessoas, ganhando autonomia por meio de ações capazes de regu-
lar/controlar os ambientes em que nos encontramos e armazenando memória
e informação.
À luz da discussão que propomos neste artigo, acreditamos, sobretudo,
que a cultura material é um espaço de transcendência, grosso modo, em que as
coisas, em algum momento, podem deixar de servir exclusivamente ao consu-
mo, como parte de seu sistema, cujos significados são públicos e coletivos, e
passar a integrar outro sistema, este privado e subjetivo, o que configura uma
reconversão de valores e de valorações, as quais, muitas vezes, elaboram novas
semânticas, representações e relações dentro de universos particulares alheios
as pessoas, as coisas e as perdas

892

às prescrições do consumo como espaço de trocas – simbólicas e mercantis.


Para tanto, buscamos o contexto do luto como um dos momentos em que ocor-
re esse fenômeno.
Nesse sentido, entendemos que nem sempre a classificação, a hierar-
quização e a socialização explicam a relação entre pessoas e coisas, entre coi-
sas e pessoas, quando tal relação se dá em lugar distinto daquele em que resi-
dem as trocas simbólicas, especialmente aquelas dadas ao estabelecimento de
cercas e pontes em sociedade. Sendo assim, assume-se que a cultura material,
nos termos de Daniel Miller, sustenta o consumo, mas o consumo não é capaz
de sustentar todas as possibilidades dialógicas da cultura material nas relações
entre coisas e pessoas. É nesse sentido que compreendemos, ao seu lado, que
os estudos de consumo estão inscritos no campo de estudos da cultura material,
porém a cultura material abre possibilidades para um universo mais amplo que
o mundo do consumo enquanto espaço público e coletivo da cultura. Ao longo
de sua obra, Miller reitera inúmeras vezes que o consumo é uma das chaves
para compreender a nossa humanidade. Ao mesmo tempo, demarca que as
práticas de consumo incluem processos de construção identitária, mas a eles
não se restringem, uma vez que são também uma esfera de produção dessa
cultura material.
Essa perspectiva se apoia na premissa de que o contexto da significação,
que aqui discutimos a partir do luto e da perda, revela os códigos coletivos e
públicos que mapeiam a relação dialética entre as pessoas e as coisas. Mas é
justamente o contexto da vida cotidiana que faz emergir os códigos particula-
res, nem sempre partilhados socialmente, que configuram a interdependência
ontológica entre as próprias materialidades das coisas e das pessoas, e não
apenas pela representação, pela significação dessa relação. Ou seja, a teoria
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 887 – 905 , set. – dez., 2020

dialética da objetificação não é uma teoria da representação, mas um processo


de criação de novas formas e significados, que por sua vez produzem também
novas subjetividades.
Metodologicamente, a contribuição dos estudos de Daniel Miller dedica-
dos à cultura material não é puramente epistemológica e reside sobretudo na
abordagem antropológica e etnográfica das relações dialéticas entre pessoas e
coisas. A teoria da objetificação, fundamentada em uma compreensão etnográ-
fica da cultura material, transcende tanto a dualidade quanto as hierarquias
tradicionalmente atribuídas à relação sujeito/objeto. Sua formulação problema-
tizou o paradigma de um suposto poder de agência dos indivíduos sobre as
coisas, dialogando e, por vezes, opondo-se a outras perspectivas teóricas, como
as de Jean Baudrillard (1993), que toma os objetos como instrumentos e signos
dentro do sistema do consumo, e de Russel Belk (1988), que entende que as coi-
sas são posses (aí incluindo não somente bens materiais, mas também pessoas,
lugares, coleções e até mesmo partes de um corpo) que representam extensões
de nosso self.
artigo | cláudia pereira e fernanda martinelli

893

Essa relação sujeito/objeto, dentro das discussões de Miller, engendra


uma série de perguntas, das quais algumas são chave para reelaborar essa dico-
tomia a partir de uma reflexão sobre o poder de agência: quais são os limites e
as possibilidades do poder de agência na constituição do nosso self? E qual o
poder de agência de um objeto para ser o que é? Miller questiona a noção de
agência como um atributo inerente aos sujeitos e/ou objetos e propõe, com sua
teoria da materialidade, um olhar relacional e sempre contextual para a agência.
Outros intelectuais influentes da atualidade também reconhecem o po-
der de agência dos objetos e se dedicam à superação de dualidades entre pes-
soas e coisas, como Bruno Latour (1999) e Tim Ingold (2007).
Latour considera os objetos atores que possuem um tipo de agência que
não pode ser separada do mundo social. Em sua concepção, a agência dos obje-
tos é definida socialmente, em contextos de interação entre sujeitos; e os obje-
tos carregam informações do mundo social; isso é o que lhes fornece agência
para, também, agir no lugar das pessoas – de modo que em seu entendimento os
objetos atuam como representações e não no registro de uma interação dialética
entre pessoas e coisas. 2 Em outras palavras, Latour compreende que a agência
dos objetos é aquela que os sujeitos humanos lhes deram. Em contraponto, Mil-
ler (2002) usa a objetificação para criar uma teoria da cultura material, e argu-
menta em prol do reconhecimento da autonomia das coisas, das coisas como
sujeitos – ou, como propomos, Miller reconhece a “coisidade” das coisas, mas
compreende que a materialidade é sempre o suporte de significados simbólicos
definidos contextualmente.
Miller (1987, 2008) elabora, ainda, uma reflexão sobre a força da presen-
ça das coisas em nossas vidas, ao propor o conceito de “humildade dos objetos”,
e argumenta que a forma como nos relacionamos com os objetos nem sempre
acontece de um modo livremente escolhido. Isso significa dizer que a força dos
objetos muitas vezes reside no fato de que eles não são notados, ou seja, pre-
cisamente porque “não os vemos”, no sentido de não estarmos conscientes de
sua presença, é que são tão poderosos. Esses objetos se inscrevem em nossas
rotinas de uma forma normativa, definindo situações e, como explica Miller,
definindo a nós mesmos – de tal modo que o que somos não se restringe à
materialidade dos nossos corpos e à nossa consciência: estamos também nas
coisas.
Os contextos de luto são sintomáticos para pensar sobre a humildade
dos objetos e sua relação com o poder de agência como definido por Miller. As
coisas que muitas vezes são silenciadas e se inscrevem em situações rotineiras
normativas na vida de alguém potencialmente podem adquirir um novo signi-
ficado com a morte dessa pessoa. Por exemplo, quando se passa a usar um
relógio de uma pessoa amada que morreu, torna-se quase imperativo não sair
de casa sem esse relógio, de tal modo que esse esquecimento pode gerar culpa.
O luto, então, confere às coisas novo poder de agência: coloca os objetos em
as pessoas, as coisas e as perdas

894

evidência, e a consciência da presença desses objetos é uma forma de fazer


com que a pessoa querida permaneça presente.
Assim como Miller, Tim Ingold argumenta que as coisas são tanto ma-
teriais quanto culturais. Contrastando, porém, com a perspectiva etnográfica
e dialética proposta por Miller, Ingold (2007, 2010) propõe uma abordagem ex-
perimental, caracterizada como física e ambiental, ao enfatizar as propriedades
materiais dos objetos ou sua matéria (em inglês, matter). Essas propriedades,
por sua vez, não são qualidades fixas, mas têm um caráter processual e rela-
cional (Ingold, 2007) porque estão em interação com o mundo material que as
circunda. Para ele, o poder de agência reside justamente na materialidade, de
tal modo que “as coisas estão na vida em vez de a vida estar nas coisas”3 (Ingold,
2007, p. 12). As coisas estão vivas e ativas não porque possuem um “espírito” ou
uma vida, mas porque sua matéria, aquilo que as compõe fisicamente, é con-
tinuamente significada pelos contextos de circulação em que essas coisas se
inscrevem ou para os quais são arrastadas, nas palavras de Ingold. Esses con-
textos podem definir tanto a dissolução e o fim das coisas quanto sua regene-
ração. Nisso, segundo o autor, reside a ontologia das coisas.
O que diferencia Miller de outros teóricos, em particular Latour e Ingold,
que, como vimos, também se dedicam a pensar a questão da materialidade, é
o fato de Miller sempre buscar mais os significados das coisas do que a “coisi-
dade” em si. Ou seja, ele dialoga mais com a antropologia do consumo do que
Bruno Latour e Tim Ingold, que no limite olham principalmente para a fisica-
lidade dos objetos.
Em outra publicação, Stuff (Miller, 2010), que em português foi traduzida
como Trecos, troços e coisas (Miller, 2013), Miller (2010, p. 209) afirma que “coisas
(no original stuff) são tanto uma questão de morte quanto de vida”. Na versão
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 887 – 905 , set. – dez., 2020

em português dessa frase a palavra stuff foi traduzida como treco, que conside-
ramos imprecisa, e isso aparentemente confere uma nova dimensão analítica
(em alguns dicionários inglês-português a tradução para stuff é “coisa”). O que
queremos reter nesta reflexão, contudo, é o caráter contingencial das coisas
atravessando contextos de vida e morte de pessoas. Miller (2010, p. 217) lembra
que existe uma variedade de formas pelas quais as sociedades se separam das
coisas e também as retêm e ressignificam.
Raramente, em nossa cultura, guardamos como lembrança objetos que
remetem à morte ou ao processo de alguma doença degenerativa que causou
a morte de entes queridos. O que nos interessa guardar são memórias felizes
dos nossos familiares e amigos. Por isso guardamos fotos, objetos que faziam
parte se sua rotina de trabalho, que foram importantes em alguma ocasião
especial, como a celebração de um casamento, aniversário, alguma homenagem,
uma viagem especial, objetos associados a uma rotina de atividades protago-
nizadas de forma saudável pela pessoa querida. Os exemplos podem se esten-
der indefinidamente. Outro ponto importante nessa discussão, e que Miller
artigo | cláudia pereira e fernanda martinelli

895

(2010, p. 217) observou em sua pesquisa, diz respeito a pessoas de gerações


mais antigas que costumavam definir o que deixariam de herança para seus
familiares, como se esperassem que os objetos selecionados pudessem ajudar
seus descendentes a se tornar mais do que elas gostariam que fossem. A esse
respeito Miller (2010, p. 217) cita como exemplo pais religiosos que podem dei-
xar objetos sagrados como herança para seus filhos na expectativa de que, após
sua morte, esses objetos garantam maior grau de observância religiosa aos seus
descendentes.
A seguir discutimos a relação emblemática entre luto e materialidade re-
fletindo a partir das propriedades materiais das coisas mergulhadas em um con-
texto específico de perdas na história de Elia, personagem descrita em The comfort
of things (Miller, 2008), e de Walter Benjamin, em seu processo de reorganização de
uma nova vida, descrito em “Desempacotando minha biblioteca” (1987).

A vida e a morte das materialidades


Para melhor defender a premissa de que a cultura material é maior do que o
consumo ou a ele anterior, expressão e termo aqui tomados como categorias
de pensamento ou campo teórico, cabe-nos buscar na obra de Daniel Miller
alguma referência etnográfica que nos ancore de volta ao solo fértil da vida
cotidiana. E é aqui que entra Elia, um dos 30 portraits já mencionados.
Elia é uma mulher que vive sozinha em uma casa repleta de objetos que
contam histórias. Elia é, aliás, segundo o autor, uma ótima contadora de histó-
rias. Gesticula tanto, que é possível quem a escuta visualizar mentalmente a
forma das pessoas de sua família que ela constantemente rememora e que já
morreram. A avó, a tia, o tio, a mãe, todos estão presentes nas histórias e nos
objetos da casa de Elia; a presença mais forte, contudo, é a do avô, com quem
ela conversa e a quem pede conselhos, às vezes apoiada na mesa que ele fez
com suas mãos. No armário, que Miller associa a uma espécie de museu, há
roupas que foram costuradas por sua tia querida, usadas por sua mãe e que,
volta e meia, saem para passear ou dançar no corpo de Elia. As joias também
têm seu lugar, mas nada, nada se compara às roupas.
A descrição sensível e densa de Elia feita por Miller estimula a reflexão
sobre perda, sofrimento e luto. Mas não é só isso. Principalmente, faz pensar so-
bre como se constroem relacionamentos, nos termos do autor, com os objetos
das pessoas que morreram, e com elas próprias, especialmente aquelas que são
mais importantes ou mais amadas. Ao contrário do que poderíamos pensar de
forma mais apressada, para Miller a prática de guardar coisas de pessoas que já
morreram não trata de substituir a pessoa que está ausente por objetos que a ela
pertenciam, como uma metonímia. As roupas que Elia guarda tão respeitosa e
carinhosamente, de acordo com Miller (2008), tampouco são meras “representa-
ções” das pessoas que se ausentam, elas são mediadoras que transferem subs-
tância e emoção entre as pessoas, vivas e mortas.
as pessoas, as coisas e as perdas

896

As pesquisas de Daniel Miller buscam sempre a “objetificação” por trás


da relação que as pessoas estabelecem com as coisas. Nesse caso, a objetifica-
ção está na “estética” do interior das casas que visitou, ou seja, na configuração
de valores, sentimentos e experiências humanas, mais do que do sistema re-
petitivo, presente no ordenamento das coisas por meio da decoração, da dis-
posição racional dos objetos nos espaços. No caso de Elia, sua estética pode ser
sintetizada em “relacionamentos, coisas e emoções”. Nas palavras do antropó-
logo, “Os objetos armazenam e possuem, inspiram e expiram as emoções com
as quais foram associados” (Miller, 2008, p. 36). Emoções associadas, é claro,
com as experiências vividas junto às pessoas que, no caso de Elia, fazem parte
de sua história na condição de neta, filha, sobrinha, alguém que tinha uma
família e que, agora, vê-se solitária no mundo.
O ordenamento que damos às coisas e a relação que estabelecemos com
essa ordem é uma forma de encontrar algum conforto existencial naquilo que
é familiar e repetitivo – daí o “conforto das coisas”. A perda material, ou a mor-
te, seria, então, o vento forte que tira tudo do lugar, que desordena, que desafia
o controle sobre a ordem. É o “ficar sem chão”, perder o suporte material que
nos sustenta, é viver o susto, revoltar-se, recolher-se, conformar-se e, depois,
tentar encontrar uma nova ordem ou uma nova “estética” para a vida sem a
pessoa ou o objeto que se perdeu, que ficou para trás.
Miller (2008) observa que a cultura material tem papel central nesses
processos de perda e de luto, que se revelam, no caso de Elia, por meio de três
tipos de objeto: o cemitério, as roupas e as joias. Para o antropólogo, “O instru-
mento de luto mais adequado e bem-sucedido é a coleção de roupas, o mais
difícil, o conjunto das joias, e o mais pungente é o cemitério” (Miller, 2008, p. 42).
O cemitério, observa o autor, é onde Elia ainda pode dar vazão ao seu
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 887 – 905 , set. – dez., 2020

sentimento de dor. É um lugar de manutenção e dedicação aos mortos de sua


família. Por ter origem grega, trata-se, tradicionalmente, de um jardim com
flores e, como tal, deve ser permanentemente cuidado. É no cemitério que ela
visita seus avós, senta-se sobre o túmulo, conversa e conta as boas novas.
As roupas, ele prossegue, são porosas: inspiram e expiram emoções que
vinculam Elia à sua tia e à sua mãe. Elas não duram para sempre, mudam, des-
botam e carregam algo da corporalidade de quem as usou. São ressocializadas
quando vai a uma festa ou aos bailes em que dança livremente. Quando doadas,
destinam-se apenas a quem as irá reverenciar: “Tais coisas levam os mortos e
os vivos a um estado de imediatismo um com o outro. Assim, graças às roupas,
ela pode servir a mãe novamente: ‘você encontra formas de trazê-la para es-
paços e eventos sociais e eventos familiares e de lhe proporcionar bons mo-
mentos’” (Miller, 2008, p. 42). O relacionamento que ela estabelece com essas
roupas permite que Elia assimile, de forma recorrente, um pesar que foi vivido
e depois superado pelo próprio processo do luto. No guarda-roupas guardam-se,
também, as lágrimas que mantêm vivo, como os próprios vestidos que ali re-
sidem, o sentimento afetuoso para com sua mãe e sua tia.
artigo | cláudia pereira e fernanda martinelli

897

As joias, que pertenceram à sua mãe, determinam outro tipo de relacio-


namento com Elia. Segundo Miller (2008, p. 41), as joias “resistem à humanida-
de”. Sendo materialmente imutáveis, permanecem como objetos mais rígidos,
menos “porosos”, ou seja, não têm vocação igual à dos vestidos, pois nada há,
nos anéis e braceletes, de resquícios de um corpo que um dia os usou. A relação
que esses objetos estabelecem com a mãe de Elia é mais “abstrata” (Miller, 2008,
p. 43). Há, porém, outro aspecto das joias para o qual o autor chama atenção:
seu valor monetário. A joia ainda é uma mercadoria e, como tal, estará sempre
ancorada em seu vínculo também abstrato com outro tipo de valor que, ali, não
interessa à filha devotada. Pondera-se, aqui, que tal análise sobre as joias pode
ser refeita à luz das mesmas considerações sobre “objetificação” operadas por
Miller. Em termos de temporalidade e manuseio, joias possuem substância dis-
tinta daquela dos materiais mais “porosos”; é interessante recordar, porém, que,
embora resistentes, elas também são transformadas, desgastadas e alteradas
pela ação de pessoas, e passam a carregar em si essas alterações. Afinal, joias
podem ser refeitas, gravadas com datas, iniciais e outras informações, fracio-
nadas e dadas em herança, recombinadas ou recompostas, desgastadas pelo
uso constante e pelas próprias práticas de manutenção, como o uso de abrasi-
vos e polimentos, de maneira que podem demonstrar mutabilidades caracte-
rísticas de sua relação com as pessoas, que é a pátina que as singulariza (Mc-
Cracken, 2010).
Considerando os exemplos das roupas e das joias, retomemos o que nos
ensinou Igor Kopytoff (2010, p. 109) a respeito da “singularização” dos objetos:

As sociedades complexas têm um ev idente desejo de sing ular ização. Grande


parte desse desejo é satisfeita individualmente pela singularização particular,
baseada em princípios tão corriqueiros quanto os que determinam o destino de
grandes patrimônios, ou de chinelos velhos – a longevidade do relacionamento
de alg um modo os assimila de tal forma à pessoa que torna impensável uma
separação entre eles.

Por vezes esse desejo humano assume as propriedades de uma fome coletiva,
que se evidencia nas respostas generalizadas a renovadas formas de singulari-
zação. Coisas velhas, como latas de cerveja, caixas de fósforo e revistas em qua-
drinhos, de repente assumem valor, e passa a ser vantajoso colecioná-las; assim,
elas passam da esfera do que é sem valor para a esfera do que é singularmente
caro [...] Tal como entre os indivíduos, grande parte da singularização coletiva
é alcançada pela referência à passagem do tempo. Como mercadorias, os carros
vão perdendo valor conforme ficam mais velhos, mas, quando chegam mais ou
menos à idade de 30 anos, começam a transitar para a categoria de antiguidades
e passam a ganhar valor com cada ano que passa.

As roupas que Elia preserva em seu guarda-roupa estariam, sob esse pris-
ma, singularizadas pelo seu próprio desejo de preservar, também, o relaciona-
mento com quem um dia as vestiu. E tal singularização se dá, exatamente, pelo
que Miller chamou de porosidade, propriedade que favorece o (re)encontro de
pessoas por meio das coisas. Trata-se, sobretudo, de uma singularidade de cará-
as pessoas, as coisas e as perdas

898

ter individual, já que não depende do circuito mercantil nem da esfera pública
para ter sentido e valor para Elia. As joias, dentro do sistema simbólico do con-
sumo, vinculam-se a ideais de preciosidade e luxo, e quando associadas à pas-
sagem do tempo, como aponta Kopytoff, estão muito mais próximas de uma
singularidade de caráter coletivo do que as roupas velhas (desde que usadas por
pessoas comuns e não por celebridades). Enquanto as joias vão ganhando valor
à medida que passam a transitar por critérios objetivos como antiguidade, as
roupas, ao contrário, vão perdendo valor. Se há algum espaço para as trocas
simbólicas, elas estariam muito mais favorecidas com relação às joias do que
com relação às roupas usadas e já gastas do “museu” de Elia. As roupas de sua
tia e de sua mãe um dia foram mercadorias e deixaram de ser por escolha pró-
pria, mas poderiam ser novamente postas em circulação em algum charmoso e
barateiro brechó de Londres. As joias, por outro lado, carregam, em sua imuta-
bilidade, uma vocação mercantil muito mais poderosa, pautada exatamente no
caráter coletivo de sua singularidade, cuja simbologia é traduzida por aspectos
mercantis, podendo ser vendidas a preço alto. Ainda assim, Elia tem poder de
decisão, esvaziando, se assim desejar, o anel e o bracelete de qualquer valor que
não seja o do sentimento de amor e do relacionamento que mantinha com sua
mãe, deixando-os fora da esfera das trocas mercantis.
A mesa, as roupas, o cemitério, as joias e tantos outros objetos que pre-
enchem a vida de Elia, dentro do ordenamento por ela construído, tornam co-
tidianos, novamente, os relacionamentos que, um dia, tiveram lugar em sua
história. Os objetos que ela guarda expressam um perene sentimento pelas
pessoas que mais amava e por tudo o que perdeu ao longo de sua trajetória:
“Ela naturalmente reúne diferentes experiências de perda: a morte de sua mãe
e tia, filhos crescendo e saindo de casa, seu divórcio, ela mesma envelhecendo.
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Todas essas coisas exigem alguma forma de luto” (Miller, 2008, p. 41).
Tomemos, agora, outra situação de “luto”, aquela que diz respeito à per-
da não de pessoas, mas de coisas. Situações vividas, por exemplo, por refugia-
dos, migrantes, solteiros que se casam, casados que se separam, famílias que
se mudam de cidade, pessoas que saem de grandes espaços e passam a ocupar
pequenos espaços. Rupturas forçosas, tal qual a morte, entre as pessoas e as
coisas que possuem. O cachorro, a coleção de discos de vinil, os livros, os su-
venires comprados em viagens inesquecíveis, o sofá e tudo o mais que entra
na partilha dos bens de um casal que se divorcia, todos esses objetos fazem
parte de uma “estética”, como sugere Miller (2008), construída a dois. De repen-
te, esse ordenamento dos objetos dentro de casa, que garantia o “conforto das
coisas”, é invadido pelo vento de verão. Hora de viver o luto, ficando imóvel,
depois raivoso, em seguida profundamente triste e vazio, para então se resignar
e reconstruir uma nova ordem para a vida cotidiana.
O luto é uma transformação. Esse luto que não acontece pela morte de
uma pessoa, mas por uma situação ou combinação de situações que desesta-
artigo | cláudia pereira e fernanda martinelli

899

biliza a permanência e os significados dos objetos, desestabiliza também o


conforto das coisas das nossas casas e das nossas vidas, e nos coloca muitas
questões sobre objetificação, agência e materialidade.
Em Home possessions, livro organizado por Miller, o texto de Jean-Sébas-
tien Marcoux (2001) inicia com a citação de um ensaio bastante conhecido
escrito por Walter Benjamin em 1931, um ano após seu divórcio. Nele, Benjamin
(1987, p. 227) nos conta: “Estou desempacotando minha biblioteca”, e prossegue
narrando que “os livros ainda não estão nas estantes e, portanto, não foram
tocados pelo suave tédio da ordem”. Benjamin convida quem lê a juntar-se a
ele na desordem de sua mudança e experimentar a alegria de um colecionador
que reencontra seus livros guardados nas caixas já há alguns anos, sem ver a
luz do sol. E prossegue dizendo que aparenta estar falando de sua biblioteca,
mas na realidade fala de si mesmo.
Diferente do relato sobre Elia, que se trata de uma etnografia feita por
Miller, Benjamin escreve em primeira pessoa um relato sobre si mesmo e sobre
sua relação com os livros e seus significados. Acessamos esse texto com um
olhar histórico-etnográfico sobre Benjamin e sua biblioteca na tentativa de
compreender, a partir das noções discutidas por Miller, o poder de agência dos
objetos em um contexto de mudança de vida. A noção de luto, aqui, perpassa
a ideia de ruptura, desestabilização e perda ou separação das materialidades.
Enquanto vai desencaixotando sua biblioteca, Benjamin relembra uma
série de situações, pessoas e lugares. Lembra contextos de aquisição de alguns
desses livros, memórias familiares, das casas onde morou, dos volumes que
herdou e daqueles da infância que foram perdidos. Em seu ensaio, Jean-Sébas-
tien Marcoux recorre a Benjamin para discutir o papel desempenhado pelas
posses móveis (mobile possessions) na conformação de uma “memória em mo-
vimento”. Benjamin não se dedicou ao estudo da cultura material, mas com-
preendia bem a relação dialética entre pessoas e coisas. Compreendia que a
relação com seus livros era muito mais do que uma relação funcional de leitu-
ra, estudo e acesso à informação, e não por acaso usa palavras como “paixão”,
“memória” e “lembrança” em seu texto.
Embora Benjamin focalize, em primeiro plano, o ato de colecionar livros,
ele também nos dá acesso a outros caminhos de reflexão. Percorrendo, ao lado
de Miller, as trilhas do consumo e da cultura material, encontramos em Benja-
min a narrativa de uma experiência sensível que evidencia como as memórias,
lembranças e emoções evocadas pelo objeto livro configuram uma trajetória
de sentimentos marcados pela mobilidade geográfica, pelas conquistas e tam-
bém pelo que passou, pelo que se perdeu e pelas incertezas do que virá.
Sentimentos contraditórios emergem enquanto Benjamin desempacota
seus livros. Se por um lado ele expressa alegria por reencontrar os volumes
outrora guardados em caixas, por outro também hesita e afirma que “nada pode
realçar mais a operação de desempacotar do que a dificuldade de concluí-la”
as pessoas, as coisas e as perdas

900

(Benjamin, 1987, p. 234). Nesse contexto a crítica à ordem, no primeiro parágra-


fo do ensaio, pode ser compreendida não simplesmente como uma dificuldade
em organizar pragmaticamente os livros na estante, mas como hesitação em
reposicionar esses objetos em uma nova vida, em construir para eles uma “nova
estética” e, nesse processo, se deparar com sua “porosidade”, como definiria
Miller. Existe mesmo uma dualidade presente nesse processo, em que o “con-
forto das coisas”, aparentemente recuperado pelo reencontro com seus livros,
não parece descolado de um certo desconforto existencial em reordená-los em
uma vida nova e imponderável. Podemos, aqui, recorrer a uma leitura histórica
que não está integralmente descrita no ensaio de Benjamin, mas que sabemos
ser indissociável dele. O recente divórcio, as dificuldades de viver na Alemanha
no período entre guerras, a crescente ascensão do nazismo no país e a perse-
guição às pessoas de origem judaica e aos intelectuais são fatores que obriga-
riam Benjamin, no ano seguinte à arrumação da biblioteca em sua nova casa,
a se mudar novamente, separando-se mais uma vez de seus livros e seguindo
para o exílio forçado na Espanha.
A porosidade dos livros de Benjamin, de forma análoga à das roupas de
Elia, expressa a relação entre perdas, transformações, permanências e conti-
nuidades. Os livros dão acesso ao passado e suas memórias, são mediadores
de relações com outras pessoas, lugares e temporalidades, e isso constitui sua
singularidade. Os exemplos de Elia e Benjamin, distantes no tempo e ancorados
em contextos específicos, devem ser também compreendidos, nos ensina Mil-
ler, a partir dos padrões específicos dessas relações, bem como do poder de
agência das materialidades em cada contexto.
Em certo ponto da arrumação, dois volumes encadernados com papelão
desbotado caem nas mãos de Benjamin. Ele nos explica tratar-se de dois álbuns
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 887 – 905 , set. – dez., 2020

de figurinhas que sua mãe colecionava quando criança e que foram herdados
por ele: “são as sementes de uma coleção de livros infantis que ainda hoje
cresce constantemente ainda que não seja no meu jardim” (Benjamin, 1987, p.
234). Podemos supor que essa menção seja uma referência a seu filho, de quem
Benjamin estava separado.
Os álbuns da infância de sua mãe levam Benjamin (1987, p. 234) a refle-
tir sobre o significado dos livros como objetos herdados: “a herança é maneira
mais pertinente de formar uma biblioteca”, pois impõe um sentido de respon-
sabilidade particular, associado ao orgulho da posse. Aqui, retomamos uma
atribuição de valor aos objetos herdados que guarda semelhanças com o exem-
plo de Elia, no sentido de a transmissibilidade da coisa herdada já ser um
traço de distinção per se. Mas a porosidade dos livros herdados talvez os posi-
cione em um lugar intermediário entre as roupas e as joias de Elia. Embora
também sejam objetos móveis, reverenciáveis e sujeitos ao desgaste, os livros
não “saem para passear” e não são ressocializados da mesma maneira que as
roupas.
artigo | cláudia pereira e fernanda martinelli

901

Ao final do ensaio Benjamin (1987, p. 235) complexifica sua reflexão


sobre posse e responsabilidade, e argumenta que “a posse é a mais íntima re-
lação que se pode ter com as coisas”. Para explicar essa afirmação, ele recorre
à metáfora dos livros que edificam uma morada, como se fossem tijolos, dentro
da qual o colecionador desaparece. Com esse olhar Benjamin expressa a con-
cepção de si mesmo pelo processo de objetificação e do poder de agência dos
objetos em sua capacidade de também nos possuir.

Considerações Finais
Os dois tipos de luto que aqui sugerimos, de pessoas e coisas, decorrentes
portanto de perdas materiais, estarão sempre conectados. Quando perdemos
uma pessoa com quem convivemos, com ela morre uma ordem que rege a vida
cotidiana, já que, como vimos, tal ordem se dá pela forma como construímos
o nosso mundo material ao redor. O processo doloroso do luto envolve, primor-
dialmente, dar destino às coisas que ficaram sem dono. Envolve também esta-
belecer um novo ordenamento ou uma nova “estética”, como quer Miller, às
nossas casas, buscando alcançar novamente, de outro modo, o conforto pro-
porcionado pelas coisas. Por outro lado, quando perdemos também forçosa-
mente algumas das coisas que ordenam a nossa vida, quando temos que as
deixar para trás, deixamos também pessoas, memórias, relacionamentos, pro-
jetos de vida, sofrimentos, experiências, enfim, uma vida pregressa que morre
junto com aquele arranjo. Ainda que tenhamos a oportunidade de escolher o
que colocar na mala, essa seleção esvazia-se do sentido anterior, posto que a
nova casa exigirá, também, uma nova “estética”, nos termos de Miller (2008).
Visto pelo ângulo da cultura material, o luto é o processo solitário, pelo
qual lidamos com a ausência física das coisas, dos corpos, do ordenamento
cheio de significação que nos situa no mundo. É quando percebemos o quanto
aquela pessoa ou aquelas coisas – se é que podemos, agora, as separar – faziam
parte de nós, o quanto estavam impregnadas no que somos. É, também, valorar
o mundo de um modo único e não estar disposto a trocar nada com ninguém.
Visto pelo ângulo do consumo, o luto é a “expressão obrigatória dos
sentimentos” (Mauss, 2005). Na perda de uma pessoa, interessa mais o preto
ou o branco das roupas na hora da última despedida, ou o bom senso de saber
escolhê-las para evitar reprovação social. Na perda de algumas coisas, é a opor-
tunidade de renovar o armário, os móveis, o carro, mostrar para todos o quan-
to somos resilientes. É, também, tornar a dor pública, divulgá-la nas redes so-
ciais online e nas conversas com os amigos, marcando um novo status de “viúva”
ou “divorciada”.
De um modo ou de outro, e em geral dos dois ao mesmo tempo, estare-
mos sempre buscando ordenar o nosso mundo por meio das materialidades,
seja de qual for o ponto de partida. Se o consumo, no luto pelas pessoas ou
pelas coisas, abre espaço para coisas novas em uma “vida nova”, esta só será
as pessoas, as coisas e as perdas

902

dotada de sentido à medida que a dinâmica da cultura material entrar nova-


mente em ação, proporcionando, no “conforto das coisas”, o ordenamento da
vida, dos sentimentos e das emoções. Até que um novo vento chegue e bagun-
ce tudo outra vez.

Recebido em 10/3/2020 | Revisto em 19/8/2020 | Aprovado em 07/9/2020


sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 887 – 905 , set. – dez., 2020

Cláudia Pereira é professora e pesquisadora do Programa de Pós-


Graduação em Comunicação da PUC-Rio. Em 2018, realizou pesquisa como
investigadora visitante no ICS – Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa, no campo dos estudos das juventudes e da cultura material. É líder
do grupo de pesquisa JuX – Juventudes Cariocas, suas culturas e
representações midiáticas. Em 2020, organizou o livro Brazilian youth: global
trends and local perspectives.

Fernanda Martinelli é professora e pesquisadora no Programa de Pós-


Graduação em Comunicação da UnB, e visiting scholar na Brown University
entre 2019-2020. Coordena o grupo de pesquisas Consumo e Cultura Material
e trabalha com temas como moda, pirataria e alimentação. Atualmente
coordena o projeto Territories of flavors, em que discute o pensamento
culinário como dispositivo metodológico. É coautora dos capítulos de livros
“Comida como afeto” e “Rebuilding lives: itinerancies, life projects and field of
possibilities of migrant youth in Brazil”, entre outras publicações.
artigo | cláudia pereira e fernanda martinelli

903

NOTAS
1 No original, People exist for us in and through their ma-
terial presence (Miller, 2008, p. 286). Nessa e nas demais
citações de originais em idiomas estrangeiros, a tradução
é nossa.
2 Um exemplo heurístico a esse respeito é a conhecida dis-
cussão de Latour (1999) em que o autor propõe que uma
pessoa em posse de uma arma não esteja sujeita a um
objeto. Conforma aí, em sua opinião, um novo híbr ido,
que é a combinação pessoa/arma. Esse híbrido é que seria
a causa de qualquer possível efeito, como se pessoa/arma
conformasse então uma nova entidade. A crítica de Miller,
nesse caso, seria a de uma compreensão incompleta da
agência por parte de Latour, que ignora justamente o pa-
pel da agência da cultura material.
3 No original, things are in life rather than that life is in things.

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artigo | cláudia pereira e fernanda martinelli

905

As pessoas, as coisas e as perdas: perspectivas


da cultura material e do consumo nos estudos
de Daniel Miller
Palavras-chave Resumo
Daniel Miller; Na sociedade de consumo, as relações entre pessoas, coisas
cultura material; e significados se estendem por territórios vastos e diver-
pessoas; sificados. Neste artigo, enfatizamos a construção ontoló-
coisas; gica que se dá entre pessoas e coisas, coisas e pessoas, para
luto. além das trocas simbólicas, coletivas e públicas, promovi-
da pelo consumo. Propomos uma reflexão sobre as relações
que pessoas estabelecem com coisas em situações de luto,
expressão que utilizamos para nos referir não somente ao
sentimento associado à morte de pessoas, mas, de modo
amplo, ao sentimento de perda de materialidades. Meto-
dologicamente, a contribuição de Daniel Miller está na
abordagem antropológica e etnográfica das relações dialé-
ticas entre pessoas e coisas, e entre coisas e pessoas, que
discutimos aqui a partir de conceitos como “objetificação”,
“humildade dos objetos” e “poder da agência”.

People, things and losses: perspectives of mate-


rial culture and consumption in Daniel Miller’s
studies
Keywords Abstract
Daniel Miller; In the consumption society, the relationships between
material culture; people, things and meanings extend across vast and di-
people; verse territories. In this article, we emphasize the onto-
things; logical construction that occurs between people and things,
mourning. reciprocally, beyond symbolic, collective and public ex-
changes in consumption practices. We reflect upon rela-
tionships that people establish with things in contexts of
mourning. By mourning, we refer not only to the feeling
associated with someone’s death but broadly, to the feeling
of loss of materialities. Methodologically, Daniel Miller’s
contribution lies in the anthropological and ethnographic
approach to the dialectical and mutual relationships be-
tween people and things, which we discuss here departing
from concepts such as “objectification”, “humility of ob-
jects” and “agency”.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v1036

1 Universidade de São Paulo (USP), Núcleo de Sociologia da Cultura,


São Paulo, SP, Brasil
dimpinhas@gmail.com
https://orcid.org/0000-001-7907-9943

Dimitri Pinheiro I

Anos Rebeldes e a abertura da teleficção 1

Existe uma contradição na televisão brasileira que faz com que o


telejornal seja mais mentiroso do que a novela. Há mais verdade na
novela – que é ficção – que no telejornal, que seria a informação!
Principalmente na Globo, que foi quem deu o formato de televisão que
temos hoje. [...] Foi, por exemplo, uma minissérie – Os Anos Rebeldes
– que trouxe para a televisão o tema da guerrilha, que era um tabu
no telejornalismo. Todo telejornalismo da Rede Globo era a favor do
Collor. [...] Assim, pelo melodrama, pela ficção essas questões sociais
e políticas entram na televisão. Isso porque, ao receber a função de
integrar a nacionalidade – hoje um pouco transformada –, a televisão,
e principalmente o telejornalismo que fazia o discurso da integração
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

nacional, precisava mostrar certas coisas e esconder outras. Isso


produz uma polarização tão grande com a realidade que a ficção acaba
servindo de mediação e muitas vezes é porta de entrada para coisas que
estavam escondidas. [...] Porque a televisão, por intermédio da novela,
dá visibilidade e isto é condição para existir no Brasil. Aquilo que não
aparece na TV, a sociedade ignora. Paradoxalmente, ao dar
visibilidade, a novela deu também cidadania
(Bucci, 1997).

Certamente Anos rebeldes está entre as mais celebradas produções televisivas


brasileiras, especialmente da Rede Globo. Essa posição constitui um efeito tan-
gível da lógica promocional imposta pela típica sinergia entre as diferentes
instâncias da própria indústria cultural. Seria ingenuidade, no entanto, desco-
nhecer a participação da própria atividade acadêmica nesse processo. Mesmo
quando assume as roupagens de um juízo depreciativo e acusatório – median-
te tortuosas operações simbólicas que guardam muita semelhança com a de-
anos rebeldes e a abertura da teleficção

908

negação psíquica –, a celebração que envolve a minissérie também vem emba-


lando a realização de uma fortuna considerável de estudos. Tal fenômeno não
deixa de ser um tanto surpreendente, ainda mais tendo em vista a relativa
desvalorização dos bens simbólicos associados ao polo ampliado de produção
cultural na hierarquia dos objetos acadêmicos. 2
Para a pesquisa sociológica sobre a teleficção 3 produzida no Brasil, Anos
rebeldes constitui marco importante numa periodização orientada por balizas
internas e externas ao domínio televisivo: a Queda do Muro de Berlim e a Guer-
ra do Golfo; a vitória de Fernando Collor nas eleições presidenciais de 1989, o
movimento dos “caras pintadas”, o processo de impeachment e a renúncia do
presidente da República; a edição abertamente tendenciosa do último debate
entre Lula e Collor promovido pela Rede Globo e a derrocada de Armando Cos-
ta da direção da Central Globo de Jornalismo; a minissérie como a primeira vez
em que a emissora ousa abordar diretamente o tema ditadura militar na fren-
te de produção teleficcional; entre outras possíveis. A concatenação dessas
balizas evita que a análise incorra nos riscos simétricos de impor um enqua-
dramento demasiado generalizador ao objeto – isto é, supor uma correspon-
dência imediata entre os eventos da conjuntura e a produção dos programas – ou
de simples reiteração dos marcos estabelecidos pela narrativa dominante entre
os profissionais. Como formulou sinteticamente Fredric Jameson (1988: 179,
tradução livre),

o “período” em questão é compreendido não como algum estilo partilhado ou


modo de pensar e agir onipresente e uniforme, mas como o compartilhamento
de uma situação objetiva, para o qual todo um conjunto de respostas variadas e
inovações criativas é, então, possível, mas sempre dentro dos limites estruturais
dessa situação. 4
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

Não que as produções da emissora tenham evitado completamente abor-


dar os anos do regime militar. De fato, quando adotamos as minisséries como
ponto de observação, fica patente que a Rede Globo se voltou regularmente
para aqueles anos, mas, sobretudo, de modo indireto, ou seja, mediante o que
Ismail Xavier, fazendo referência a outra formulação de Jameson (por sua vez,
inspirada na “figura” auerbachiana), chamou de estratégias de alusão. 5 Dessa
perspectiva, Anos rebeldes viabiliza um corte transversal, permitindo à análise
transitar dos registros mais rarefeitos (por exemplo, os acontecimentos da “con-
juntura mundial”) aos densamente substantivos – tomadas de posição inscritas
especialmente na fatura das obras (Bourdieu, 2005).
À medida que tenta compatibilizar essas diferentes coordenadas de aten-
ção, o encaminhamento da análise desenvolvida aqui realiza os seguintes mo-
vimentos: primeiro, delineia telegraficamente os fatores gerais (sociais e polí-
ticos) que condicionaram o esforço despendido pela Rede Globo no sentido de
diversificar seus formatos teleficcionais; em seguida, pontua algumas das cir-
cunstâncias mais importantes na realização de Anos rebeldes; o terceiro movi-
artigo | dimitri pinheiro

909

mento reconstitui sumariamente o enredo, enfatizando uma vertente de suas


tramas; à guisa de conclusão, alinhava um comentário, bem como um esboço
de síntese sobre os sentidos assumidos pelo programa e, reflexivamente, pela
própria análise sociológica da indústria cultural.

Condicionantes
Entre 1977 e 1982, a Rede Globo realiza experiências envolvendo a produção e a
exibição de programas com formatos alternativos às telenovelas. Primeiro testa
os chamados seriados e, posteriormente, encampa as extremamente onerosas
minisséries, cuja produção se rotiniza a partir de então. De 1982, quando a pri-
meira minissérie é exibida, a 1985, ano em que a emissora realiza adaptações
de romances consagrados – Tenda dos milagres (Jorge Amado), O tempo e o vento
(Érico Verissimo) e Grande sertão: veredas (João Guimarães Rosa) – como parte das
comemorações pelos seus 20 anos, 14 minisséries seriam veiculadas. Diferente
da telenovela e, em menor medida, do seriado, a minissérie não se enquadra nos
mecanismos rotineiros de financiamento das produções no âmbito do sistema
televisivo comercial brasileiro, sobretudo em função da curta duração, inviabi-
lizando a reiteração de personagens e cenários, e, por sua vez, reduzindo as
possibilidades de diluir custos ao longo de meses de exibição, bem como a mar-
gem de retorno obtido em termos de verbas publicitárias e merchandising.6 Não
por acaso viabilizada em um momento no qual a emissora detinha liderança
absoluta nas “escalas de audiência” – favorecida pelo fechamento progressivo
das principais concorrentes (a Excelsior em 1970 e a Tupi justamente em 1980)
– e açambarcava o maior naco das verbas publicitárias estatais e privadas, a
aposta pode ser explicada como uma tomada de posição com dupla interface.
No front político, sinaliza um movimento de distanciamento da emisso-
ra em relação ao regime militar então nos estertores. Como a própria reviravol-
ta com relação aos formatos indica, não se tratou de um processo uniforme e
unívoco. Isso fica evidente sobretudo quando se consideram as diferentes ló-
gicas, bem como os diversos ritmos imperantes nas principais frentes de pro-
dução (ou “polos de legitimidade”) da televisão: na terminologia nativa, “tele-
dramaturgia” e “telejornalismo”. 7 Os avanços e recuos na frente de teleficção
– sempre sujeitos às marchas e contramarchas da conjuntura – podem ser fla-
grados ao menos desde 1968 seja no comprometimento das dez horas da noite
com a veiculação de telenovelas extremamente arrojadas estética e politica-
mente, seja na tentativa de reformar a grade de programas – transferindo para
o horário das oito as telenovelas veiculadas às dez – tolhida por veto unilateral
da Censura Federal à primeira versão de Roque santeiro (1975), ou, ainda, no
mesmo ano, com o estabelecimento do horário das seis (visando corresponder
ao viés paternalista também exigido pelo regime militar) para a veiculação de
adaptações de obras associadas ao romantismo literário brasileiro como Helena
(Machado de Assis). 8
anos rebeldes e a abertura da teleficção

910

Já no telejornalismo aquele movimento seria ainda mais complexo por-


que se concluiria apenas na esteira da campanha pelas eleições diretas em 1984,
com a Rede Globo sucessivamente abandonando o bloco de sustentação ao
regime militar, se colocando na retaguarda da luta pela redemocratização po-
lítica, ocupando a posição de fiel da balança na candidatura de Tancredo Neves
à presidência da República e assumindo virtualmente o cockpit no governo do
presidente José Sarney. 9 Ao contrário do que se observa na teleficção, entretan-
to, no telejornalismo o movimento seria concomitante a um acirramento da
censura interna que reduziu drasticamente não só a possibilidade de veicular
perspectiva diversa daquela imposta pelo editorial, como tolheu a margem de
experimentação formal. 10
No front do público, a experimentação se insere numa estratégia de pro-
gramação que visava atingir um segmento específico de telespectadores: pes-
soas do sexo masculino, com maior nível de renda e escolaridade, possibilida-
des mais amplas de lazer e relativamente impacientes diante da cantilena si-
tuacionista. A tentativa de diversificação na frente de teleficção poderia, então,
ser tomada como uma aposta na segmentação – embora ainda bastante em-
brionária – do mercado de comunicação eletrônica, indicando, por sua vez, uma
diferenciação da estrutura social brasileira também passível de ser compreen-
dida à luz das transformações mais gerais ocorridas nesse período. 11
Tampouco constitui coincidência fortuita o fato de que justamente em
1985 – outro marco fundamental da conjuntura nacional – o formato minissérie,
contando com núcleos de produção plenamente estabelecidos, exibições regu-
lares e bastante prestígio no interior da Rede Globo, tenha sido objeto de outro
projeto de renovação: a “Casa de Criação Janete Clair”. Idealizada por Dias Go-
mes, a Casa constituiria um espaço de troca entre os profissionais, de treina-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

mento e de revelação de novos autores, mas o projeto seria inviabilizado pre-


cocemente. Ao menos parte das propostas, em especial os “retratos de época”
e a incorporação de procedimentos coletivos de produção, seria levada adiante
por minisséries. 12
A proposta dos retratos de época previu inicialmente a realização de
duas minisséries: uma centrada nos anos de 1950, Anos dourados (1986) e outra
em 1960, Anos rebeldes. 13 Esta última só seria realizada em 1992 e também sob
a autoria de Gilberto Braga – mudança reveladora, uma vez que a indicação
original da emissora foi a de Gianfrancesco Guarnieri. O próprio Gilberto Braga
(2010: 24) atribui a escalação a seu perfil político: considerando-se um “aliena-
do” notório durante a juventude, ele representaria menor risco para a emisso-
ra do que Dias Gomes ao tratar do tema “ditadura”.
Tal escolha foi diretamente atribuída a José Bonifácio de Oliveira Sobrinho,
o Boni (nessa ocasião vice-presidente de operações da Rede Globo), mas envolveu
indiretamente Roberto Marinho, que encarregou o jornalista Cláudio Mello e
Souza de ler o roteiro e emitir o “parecer” pela reformulação do décimo capítulo
artigo | dimitri pinheiro

911

ao 14o, porque, ao retratar o período que vai de dezembro de 1968 ao AI-5, estava
“carregando demais nas tintas políticas” (Braga, 2010: 29). O conjunto de medidas
não pode ser dissociado das tensões acumuladas durante os vários episódios de
censura interna, ao menos desde os cortes em O pagador de promessas (1988), 14
passando pelos protestos internos desencadeados pelos vários lances de apoio
aberto ou velado da emissora à candidatura de Fernando Collor e culminando
com a edição do último debate antes das eleições de 1989. Essas tensões ilumi-
nam, retrospectivamente, o fechamento da Casa de Criação e, prospectivamente,
o destino dos produtores associados à tradição populista de esquerda, que per-
dem espaço na Rede Globo a partir da segunda metade da década de 1980.15
Ao mesmo tempo em que alija esses profissionais ostensivamente in-
quietos (os autores especialmente) do trabalho com telenovela – livrando seu
produto mais rentável de riscos tidos como dispensáveis –, a cúpula da empre-
sa os mantém em seus quadros, evitando, com isso, desfalques que eventual-
mente poderiam fortalecer a concorrência. Nessa estratégia, as escalações es-
porádicas para a realização de minisséries desempenharam papel auxiliar,
funcionando como uma espécie de reserva mutuamente prestigiosa, embora,
por vezes, significando uma faca de dois gumes para profissionais que precisem
de um maior volume de trabalhos para sobreviver financeiramente. 16
Por se tratar de um produto finalizado antes de sua exibição, de menor
duração, estruturalmente mais coeso e que usualmente concede maior tempo de
preparação para os profissionais envolvidos em sua produção – motivos que
elucidam o interesse que desperta no interior do próprio meio televisivo –, o
formato não se mostra tão sujeito quanto à telenovela às pressões econômicas
diretas (sob a forma do merchandising) e indiretas (via índice de audiência). 17 Em
função desse conjunto de características, as minisséries se prestam melhor às
pretensões autorais dos profissionais – roteiristas e diretores em especial – dese-
josos de expressar perspectivas pessoais sobre a teleficção e o mundo, deixando
entrever de modo mais explícito o “pendor pedagógico tanto do enredo como dos
diálogos, permitindo uma apresentação cabal e explícita da visão de mundo que
rege as lições morais da indústria cultural brasileira” (Xavier, 2003: 144).
Se a telenovela constitui o centro axial de sustentação comercial da
televisão, a minissérie configura, principalmente no período que circunscreve
Anos rebeldes, uma zona de prestígio depurado para os produtores. O significa-
do prestigioso da minissérie, entretanto, não se encerra aí. Também ilumina a
importância que a legitimidade cultural – programação ou audiência de “qua-
lidade” na terminologia nativa – angariada por esse tipo de programa represen-
ta para uma instância da indústria cultural que se encontra perenemente ame-
açada pelo descrédito simbólico, esteja este sob a expressão mais indireta do
arbitrário cultural dominante (as campanhas contra a “baixaria”) ou mediante
a forma mais direta dos reclamos por cumprimento de sua função social (a
agenda voltada para a “democratização” dos meios de comunicação).
anos rebeldes e a abertura da teleficção

912

Circunstâncias 18
Anos rebeldes foi exibida pela Rede Globo entre julho e agosto de 1992, coinci-
dindo, portanto, com um momento decisivo no processo de democratização
política do país: o agravamento da instabilidade política que levaria à renúncia
de Fernando Collor, então o primeiro presidente eleito diretamente desde 1960.
Como já mencionado, foi também a primeira incursão explícita na teleficção
da emissora pelo tema ditadura militar brasileira, abrangendo diageticamente
um período que vai do momento imediatamente anterior ao golpe de 1964 à
anistia em 1979. Explorada pelas diferentes frentes da indústria cultural, a
concomitância catalisada na minissérie ensejou o que parcela da literatura
chamou de “fusão da memória” relativa aos anos 1960 e a campanha “Fora
Collor” (Kornis, 2000: 115-116), convertendo Anos rebeldes não só em marco da
teleficção brasileira, mas, ironicamente, numa força social com algum peso na
esfera pública.
A escalação para a autoria da minissérie (a segunda em sua carreira)
significou mais uma premiação simbólica conferida pela Rede Globo aos servi-
ços prestados por Gilberto Braga, que vinha de dois sucessos consecutivos –
Vale tudo (1988-1989) e, apesar de um “tropeço” inicial, O dono do mundo (1991-
1992) 19 – nas escalas de audiência no horário das oito horas da noite. O trajeto
percorrido por ele expressa muito bem os principais fatores que incidem no
recrutamento e na carreira profissional de um “autor” de televisão: domínio da
cultura letrada e treinamento pregresso – condição necessária tendo em vista
a demanda compulsória pelo exercício da criatividade – em alguma instância
da indústria cultural.
O ingresso de Gilberto Braga na emissora se deu pelo contato com Do-
mingos de Oliveira, um dos responsáveis pelo programa de unitários Caso Es-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

pecial. Por intermédio do diretor, o egresso da Aliança Francesa e então crítico


teatral de O Globo seria escalado para escrever os roteiros de cinco programas
entre 1973 e 1974, o primeiro deles adaptado do romance A dama das camélias
(Alexandre Dumas Filho). Com a perspectiva de remanejamento de Lauro César
Muniz para escrever telenovelas das oito horas, o iniciante seria convidado
para ocupar a vaga deixada na faixa das sete, inicialmente como colaborador
e posteriormente assumindo Corrida do ouro (1974) sob supervisão informal de
Janete Clair. Certamente a experiência com adaptações motivou Daniel Filho a
convidá-lo para a equipe responsável por implementar, em 1975, telenovelas
às seis horas – novo horário inteiramente dedicado aos romances brasileiros
(especialmente os pertencentes ao romantismo literário) –, obtendo seu maior
sucesso nas escalas de audiência em 1976, com Escrava Isaura (Bernardo Gui-
marães). Nesse ínterim, quando Janete Clair vai cobrir a lacuna na faixa das
oito causada pela proibição de Roque santeiro, ela o escolhe para continuar Bra-
vo! (1975-1976), exibida às sete. A eleição pela mais importante autora da emis-
sora lhe conferiria notoriedade e a partir daí ele desenvolve uma careira ascen-
artigo | dimitri pinheiro

913

dente nos quadros da Rede Globo. Ao ocupar o topo na hierarquia de poder


espiritual, o autor impôs à minissérie a chave melodramática à la Balzac que
lhe é característica 20 e definiu o centro nodal da narrativa: o romance entre
uma “garota individualista”, interpretada por Malu Mader, e um “rapaz idealis-
ta”, representado por Cássio Gabus Mendes, sob o “pano de fundo” da ditadura
militar – ator e atriz já haviam se notabilizado em papéis de mocinho e mocinha
nas telenovelas do autor (Braga, 2010).
Dennis Carvalho para a “direção geral” – o topo na hierarquia de poder
temporal – foi outra escalação diretamente associada a Gilberto Braga. 21 Tal
qual o trajeto do autor, o de Dennis Carvalho revela tão bem quanto os princi-
pais fatores incidentes no recrutamento e na carreira de diretor em televisão:
o sexo (masculino), a raça (branca) e a socialização primária no meio profissio-
nal, seja por experiência familiar, seja pelo trabalho precoce. Ainda adolescen-
te iniciou como ator na adaptação de Oliver Twist (Charles Dickens), veiculada
em 1964 pela TV Tupi, onde seguiria carreira aproximando-se de Walter Avan-
cini (não por acaso, ele próprio um ex-ator mirim), que lhe teria despertado o
interesse por direção. Após sucesso nas escalas de audiência como vilão em
Ídolos de pano (1974), aceita, sob promessa de posterior iniciação na direção,
convite de Boni para se transferir para a Rede Globo. Na emissora, se aproxima
de Daniel Filho, intercalando o aprendizado na função e papéis como galã (po-
sição extremamente racializada). A partir de Sem lenço, sem documento (1977-1978),
exibida às sete horas, assume formalmente a direção sob o comando de Régis
Cardoso. Ainda nesse ano, é convidado a dirigir sozinho o último episódio de
Ciranda cirandinha. O entrosamento com Gilberto Braga vinha de uma longa
série de trabalhos, entre os quais Vale tudo e O dono do mundo.
Despertado para a carreira pela figura de Walter Avancini, a partir de
sua inserção na Rede Globo o futuro diretor foi diretamente influenciado por
Daniel Filho, razão pela qual pode ser considerado um seguidor da moderniza-
ção do melodrama – isto é, a introdução de maior “coeficiente de realismo” às
tramas (Xavier, 2003: 93; 143-144) – que notabilizou o então chefe do Departa-
mento de Telenovelas. Todavia, Dennis Carvalho não deixou de expressar de
maneira mais discreta em seus trabalhos os arroubos de experimentação formal,
bem como o recurso a “estratégias de alusão” que tornaram marcante a fatura
de Avancini. Salvo engano, essa convergência de influências também pode ser
conferida na minissérie.
Como já era de esperar, durante a produção da minissérie Boni determi-
nou a modificação de quatro capítulos já gravados (11, 12, 13 e 14) requentando
a justificativa de que enfatizavam excessivamente aspectos políticos em detri-
mento da trama amorosa entre João Alfredo e Maria Lúcia, sob a alegação adi-
cional de que isso provocaria inevitável desinteresse do público (verdadeiro
deus ex machina para os produtores e, a fortiori, perante a cúpula de executivos
da Rede Globo). Essas interferências acarretaram atraso, e as gravações só foram
anos rebeldes e a abertura da teleficção

914

concluídas quando Anos rebeldes já estava sendo exibida, algo inusual para um
formato que, ao contrário da telenovela, se caracterizaria por constituir “obra
fechada”. Outra prática de censura, embora menos ostensiva, foi o atraso deli-
berado no horário de exibição quando os episódios abordaram a decretação do
AI-5 (Kornis, 2000: 112).
Em consequência mais ou menos direta dessas circunstâncias de pro-
dução, a história do período se transfigura sob chave moral e individualizada,
similar em diversos momentos aos moldes do “drama doméstico” (Kornis, 2000:
109). Não por acaso, a narrativa praticamente reduz os trabalhadores rurais e
urbanos a figurantes, concentrando todo o foco de atenção na luta deflagrada
pelo setor radicalizado da pequena e da alta burguesia, contra o regime militar
e em defesa de um ideal difuso de justiça social (figurado sobretudo por refe-
rências à questão agrária).

Enredo22
Os letreiros exibidos em diversos momentos da narrativa explicitam uma or-
ganização em três fases: “março de 1964: Os anos inocentes”, “abril de 1966: Os
anos rebeldes”, “[dezembro de 1968] Os anos de chumbo”, mais um epílogo que
remete a 1979 e à anistia. Não obstante, parece possível localizar inflexões
associadas aos movimentos – ora de aproximação, ora de afastamento – do
casal principal por conta das opções de João Alfredo ante a conjuntura política,
bem como pela inserção de painéis documentais realizados com a participação
do cineasta Silvio Tendler.
A minissérie se inicia com a recapitulação do primeiro contato entre João
e Maria Lúcia anteriormente ao golpe civil-militar de 1964. Simultaneamente
também é apresentado o grupo de rapazes cuja formação (em seu último ano
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

no Colégio Pedro II) e posterior desagregação serão acompanhadas até o final do


enredo: Edgar (Marcelo Serrado), Galeno (Pedro Cardoso) e Waldir (André Pimen-
tel). Em função da coerência interna deste artigo não é possível nem convenien-
te reconstituir em detalhe a narrativa e tampouco reproduzir o minucioso sis-
tema de notação necessário para uma análise da minissérie em sua complexi-
dade. A análise prioriza, assim, as tramas que se desdobram a partir de uma
personagem que originalmente não integra a turma de amigos, mas, pouco a
pouco, ganha a posição de protagonista: a personagem Heloísa (Cláudia Abreu).
Do ponto de vista formal, Heloísa permite um equacionamento ótimo
da economia narrativa, que, a um só tempo, eleva a voltagem melodramática,
concatena a pedagogia política propagandeada pelos profissionais e aciona a
estratégia de alusão indicada no início desta exposição. A personagem põe em
cena Fábio Andrade Brito (José Wilker), pai de Heloísa e dono do poderoso gru-
po empresarial homônimo. Intermediado por Maria Lúcia, sua colega do curso
de francês, o contato com a turma do Colégio Pedro II – em especial as sequên-
cias pautadas pelos diálogos com João Alfredo – desencadeia a progressiva
artigo | dimitri pinheiro

915

conscientização política que conduz a filha do magnata – e, figurativamente, o


público telespectador – ao rechaço da vida burguesa (cujo marco é a ruptura
com o casamento de conveniências), à radicalização e ao posterior engajamen-
to na luta armada.
A conversão de Heloísa em heroína é simétrica à caracterização de Fábio
como vilão, condensando, com isso, todas as tensões da minissérie (sexuais,
geracionais, raciais, sociais, políticas e culturais) na esfera íntima. O conflito
entre filha e pai caracteriza um embate do bem contra o mal. Personificação
do regime político opressor, o magnata é apresentado pela narrativa como pai
ausente, marido infiel, racista, capitalista selvagem, fazendeiro escravagista,
apoiador de primeira hora do golpe civil-militar, presuntivamente patrocinador
dos aparelhos clandestinos de violência estatal, e, suprema vilania, responsável
indireto pelo assassinato da própria filha por forças da repressão.

Comentário
Dada a usual suspeição política que recai sobre a Rede Globo e seus programas,
Anos rebeldes dificilmente poderia ser mais desconcertante. Põe em tela uma re-
presentação da ditadura militar em que os mocinhos são guerrilheiros que se-
questram um embaixador suíço para libertar presos políticos, e o magnata, dono
de um conglomerado empresarial, figura como vilão, constituindo uma mostra
bem-acabada do potencial “democrático” do melodrama.23 Conforme afirma Is-
mail Xavier, Anos rebeldes configura a reconstituição audiovisual mais bem suce-
dida acerca do período, sobretudo se comparada às melhores realizações da ci-
nematografia no país até então. Não obstante, ele interpõe a ressalva de que
apesar de ter aprendido a se comunicar com o seu público sobre os assuntos
relativos à vida privada, a rede de televisão ainda se voltaria para a política

com uma preocupação autoapologética que conduz à idealização costumeira,


velando seus interesses em jogo no processo econômico e político, e apresentan-
do apenas o que parece politicamente correto em sua performance como instân-
cia maior de administração da consciência pública. Esse é claramente o caso de
Anos rebeldes, em que a Rede Globo conta a história dos anos de ditadura sem
mencionar o papel e a cumplicidade dos meios de comunicação, incluindo o seu,
no processo de controle político e social no período (Xavier, 2003: 160).

Não parece pertinente rejeitar o juízo informado daquele que, segura-


mente, está entre os mais reconhecidos estudiosos seja do cinema em parti-
cular, seja da crítica cultural de modo geral. Cabem, entretanto, algumas qua-
lificações. A apreciação é analiticamente rentável, sobretudo, para a posição
oficiosa do conglomerado mais dinâmico do polo ampliado de produção cul-
tural no país. Este, entretanto, nem sempre consegue “administrar a consci-
ência” dos seus criadores completamente, mormente tendo em vista proces-
sos de realização que envolvem redes de cooperação tão vastas e complexas
como aquelas vigentes na indústria cultural.
anos rebeldes e a abertura da teleficção

916

Quando o enredo da minissérie é considerado de viés, focalizando espe-


cialmente as tramas armadas no entorno da personagem encarnada por Cláu-
dia Abreu, é notável o acionamento de estratégias de alusão, delineando um
movimento reflexivo que se volta, sim, para os “papéis” desempenhados pela
própria indústria cultural durante o regime militar: os jornalistas e a empresa
editorial figurando como instâncias indiretas de remissão à própria televisão.
Ao representar o movimento heroico de jornalistas – condensado em Damas-
ceno (não por acaso encarnado pelo icônico Geraldo Del Rey), o honorável mi-
litante do “Partidão” e pai de Maria Lúcia –, assumindo as posições de porta-voz
da experiência, bem como de resistência pacífica à censura e à repressão polí-
ticas como contraponto à luta armada, é forçoso reconhecer, a abordagem joga
água no moinho autoapologético apontado por Ismail Xavier.
O mesmo já não se pode afirmar peremptoriamente sobre a figuração
da indústria cultural representada pela editora. A empresa de Queiroz (Carlos
Zara) – pai de uma das amigas de Maria Lúcia e personificação do ideal missio-
nário de ilustração incensado pelas casas editoriais do período – é abalroada
pela censura e pela concentração monopólica que o regime militar incentiva
em diversos setores da economia. Gradativamente o editor enfrenta dificulda-
des financeiras decorrentes das apostas arriscadas pela edificação cultural ou
pelo engajamento político e pede socorro ao grupo Andrade Brito, prelúdio da
incorporação ao conglomerado empresarial.
Inicialmente o processo se condensa em torno do conflito entre o editor
e Edgar, preposto de Fábio na editora, como personificações da legitimidade
cultural versus a submissão da inteligência à lógica comercial típica da indústria
cultural. Posteriormente a contradança segue com Edgar assumindo a posição
ocupada pelo antigo editor contra o comercialismo desbragado representado
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

por Waldir, rapaz pobre – filho do porteiro alcoólatra no prédio onde mora João
Alfredo – que, mediante amparo da turma, empenho escolar e cooptação por
Fábio (para quem, numa figuração dos procedimentos utilizados pela polícia
política, presta serviços de informante), consegue ascender socialmente.
A condenação da indústria cultural como suporte por inteiro do regime
militar é figurada pelo desfecho das tramas vinculando as personagens Heloísa,
Fábio e o cenário da editora. Waldir descobre o plano para retirar do país João
Alfredo, Heloísa e seu companheiro, Marcelo (Rubens Caribé) – com quem tem
uma filha (a prole é sinal inequívoco de virtude no melodrama) –, organizado por
Maria Lúcia, a essa altura casada com Edgar, tradutora e secretária executiva da
editora, e Bernardo (André Barros), irmão de Heloísa. Dividido entre os amigos e
o patrão, Waldir revela o plano para Fábio, prova de lealdade e, numa espécie de
pacto fáustico, trunfo que lhe permitirá alçar maiores voos no conglomerado.
Consequentemente o vilão desbarata o plano, exigindo uma mudança de rota que,
na descarga de maior voltagem melodramática da minissérie, termina por acar-
retar a morte da própria filha numa perseguição deflagrada pela polícia política.
artigo | dimitri pinheiro

917

Únicas a alterar radicalmente as respectivas posições sociais durante a


narrativa, os destinos cruzados das personagens de Cláudia Abreu e de André
Pimentel lançam luz sobre o condensado caudaloso de experiências plasmado
em Anos rebeldes. Por um lado, impulsionada pela identificação visceral com os
de baixo – figurada na relação com a personagem Zulmira (Edyr de Castro),
mulher negra que a criou e a quem confia a própria filha devido à situação de
clandestinidade – e pelo processo de conscientização vivenciado mediante con-
tato com o pessoal do Colégio Pedro II, Heloísa recusa a se submeter ao tráfico
de mulheres e sabota o circuito fechado da reprodução social do império co-
mercial que lastreia o poderio do pai (ao mesmo tempo patriarca, proprietário,
tirano, arquivilão, enfim), para assumir o martírio de uma trajetória descen-
dente de radicalização voluntarista e comunhão de destino com os condenados
da terra. Por outro, espécie de decalque carbonado do subalterno identificado
com o opressor e movido a ressentimento de classe, Waldir rompe com a posi-
ção de agregado submetido ao favor humilhante da turma, para palmilhar, cal-
çado em investimento escolar, ambição e virtù maquiavélica, a ascensão social
irrefragável.
A fatura formal evidencia o peso reconhecível (as tais “marcas autorais”)
do poder espiritual exercido por Gilberto Braga, de um lado, e do poder temporal
empalmado por Dennis Carvalho, de outro. O sobranceiro desprezo pelo agrega-
do arrivista mal esconde as espalhafatosas disposições das frações pequeno-
-burguesas que – tendo desfrutado dos prazeres associados à prolongada incul-
cação sedimentada pelo investimento escolar (por sua vez, viabilizada por uma
origem social privilegiada) – veem o signo da ameaça na mera visibilidade de
uma população alquebrada que a fotogenia da Rede Globo, como instância su-
prema da indústria cultural no Brasil, fracassa em recalcar.24 Já o encantamento
pela imagem meio sapeca, meio coquete do anjo vingador guarda afinidade com
as disposições de outras frações da pequena burguesia obrigadas a renunciar
aos prazeres mais “sublimes”, “refinados” e “desinteressados” (preconizados
pelo arbitrário cultural dominante) em função de uma vida submetida ao traba-
lho criativo precoce e compulsório demandado pelas instâncias articuladas
junto ao núcleo duro do polo ampliado do mercado de bens simbólicos à brasi-
leira. Eis o entroncamento inflamável de tensões e angústias sociais que enfor-
ma o funcionamento desempenado da indústria cultural local e seus produtos.

Desfecho
De modo geral, a análise sociológica da teleficção produzida pela Rede Globo
em particular e dos bens simbólicos radicados no polo ampliado de produção
cultural demonstra gume conceitual, ganhos metodológicos e rentabilidade
explicativa inequívocos. Para além da acuidade cognoscitiva do conceito de
indústria cultural – desde que devidamente desbastado do ranço etnocêntrico
e intelectualista, bem como rigorosamente informado historicamente 25 –, o en-
anos rebeldes e a abertura da teleficção

918

caminhamento realizado pelo presente trabalho esboça uma abordagem cru-


zada, apta a apreender os rendimentos econômicos advindos das obras de arte
e os mecanismos de legitimação simbólica dos bens culturais produzidos se-
gundo a racionalidade mercantil. O formato minissérie tal como aclimado pela
emissora poderia ser tomado, então, como expressão cabal da dinâmica vigen-
te num mercado de bens simbólicos no qual as fronteiras entre os polos restri-
to e ampliado não se estabeleceram de modo tão demarcado como nos países
europeus em que a autonomia dos campos de produção da cultura legítima se
firmou muito antes do espraiamento da lógica mercantil para as demais di-
mensões da vida social (Ridenti, 2014: 31-32).
O estabelecimento desse enquadramento exige a rejeição terminante da
atitude sobranceira tipicamente etnocêntrica e intelectualista que repõe, sob a
aparência de um juízo depreciativo acerca do “des-valor inerente” aos bens sim-
bólicos produzidos no âmbito da indústria cultural – juízo esse que por vezes
não passa das favas contadas de um julgamento social do gosto –, a aversão ou
mesmo o desprezo de classe pelas pessoas que os consomem. Ao contrário dos
estudos que, mediante todo um esforço de investidura, assumem a roupagem
de portadores desse tipo de atitude, o presente trabalho quer se alinhar às po-
sições segundo as quais os bens simbólicos oriundos do polo ampliado de pro-
dução cultural – mesmo quando simplesmente reciclam fórmulas rotineiras ou
deliberadamente legitimam o status quo – têm o princípio de sua ação eficaz
atrelado ao trabalho transformador que realizam sobre angústias e tensões so-
ciais com um potencial utópico em certa medida inconforme à ordem:

Reescrever o conceito de uma administração do desejo em termos sociais nos


permite pensar o recalque e a satisfação [...] conjuntamente, dentro da unidade
de um mecanismo único, que dá e toma igualmente, numa espécie de compro-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

misso ou barganha psíquicos. Isso estrategicamente desperta um conteúdo ima-


ginário no interior de estruturas de contenção cuidadosamente simbólicas que
o desarmam, gratificando os desejos intoleráveis, irrealizáveis, propriamente
imperecíveis apenas na medida em que possam ser momentaneamente aplaca-
dos ( Jameson, 1995: 25).

Isso – é importante não perder de vista – tanto para o “bem” (existem


ordens sociais mais ou menos intoleráveis) quanto para o “mal” (as experiências
autoritárias estão aí a assombrar todo e qualquer sonho feliz de sociedade).
Seja como for, os produtos da indústria cultural – quer aqueles tomados como
os mais degradados do ponto de vista estético, quer aqueles que, mediante
toda aversão declarada e cuidados de higiene sanitária, a crítica cultural se
digna a examinar – sempre desempenham funções práticas, econômicas, sociais,
políticas e culturais insuspeitadas que justificam o esforço de uma análise
sociológica.

Recebido em 01/4/2019 | Aprovado em 12/8/2019


artigo | dimitri pinheiro

919

Dimitri Pinheiro é graduado em ciências sociais pela Universidade


de São Paulo. Possui  mestrado e doutorado pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da mesma instituição. Realizou estágio
sanduíche junto ao Consortium For Women Research da
Universidade da Califórnia – Davis. Estuda temas relacionados à
história social dos intelectuais e indústria cultural no Brasil, com
ênfase em televisão. Integra o Núcleo de Sociologia da Cultura
(USP). É autor de “Jogo de damas: trajetórias de mulheres nas
ciências sociais paulistas – 1934-1969” e coautor, com Alexandre
Bergamo, de “Indústria cultural no Brasil e o balanço da sociologia:
dois pesos, muitas medidas”.
anos rebeldes e a abertura da teleficção

920

NOTAS
1 Este artigo resulta de pesquisa realizada junto ao PPGS-
-USP e contou com apoio da Fapesp. Apresentei versões em
2018 na mesa “A despedida do Ministério da Cultura e ar-
tistas em pé de guerra (1989-1990)” do Pequeno Ciclo His-
tória da Política Cultural no Brasil (1980-1993), organizado
pelo CPF (Sesc-SP), e na quarta sessão do III Seminário
Internacional de Sociolog ia da Cultura (USP). Agradeço
nas pessoas de Fábio Marelonka Ferron e de João Victor
Kosicki, respectivamente, os comentários suscitados nes-
sas ocasiões. Sou especialmente grato a Luiz Carlos Jack-
son, que leu, comentou e fez sugestões fundamentais.
2 Para uma discussão sobre a hierarquia simbólica dos ob-
jetos nas ciências sociais, ver Pinheiro e Bergamo (2018).
Convém mencionar ao menos três dos trabalhos mais im-
portantes para a argumentação relativa a minisséries aqui
desenvolvida: Lobo (2000), Kornis (2000) e Xavier (2003).
Embora desiguais, as análises realizadas nesses trabalhos
têm em comum o enraizamento institucional nas escolas
de comunicação, bem como a convergência para Anos re-
beldes como ponto de fuga.
3 O termo não é usual. Além de ser uma categoria nativa, a
opção por “teledramaturgia” teria a vantagem de eviden-
ciar a inf luência da experiência teatral na constituição
da televisão no Brasil e, adicionalmente, enfatizar sua
especificidade em relação ao caso estadunidense, no qual,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

ao contrário, o cinema é que foi determinante. A opção


por “teleficção” se ampara em Xavier (2003), mesmo que
o autor não apresente nenhuma justificativa explícita. O
rigor que o crítico dispensa à fatura das obras cinemato-
gráficas, bem como a própria problematização subjacen-
te à rejeição da categoria estabelecida, indica, entretanto,
uma preocupação com a precisão terminológica. Assim
como no cinema, os formatos ficcionais audiovisuais pro-
duzidos e veiculados pela televisão apresentam traços
estilísticos que estão mais distantes da ação dramática e
relativamente próximos dos gêneros épicos ou narrativos.
Para uma discussão avalizada do problema, ver Rosenfeld
(2004: 30-31).
4 No or ig inal, the “period” in question is understood not as
some omnipresent and uniform shared style or way of thinking
artigo | dimitri pinheiro

921

and acting, but rather as the sharing of an objective situation,


to which a whole range of varied responses and creative inno-
vations is then possible, but always within that situation’s
structural limits.
5 Inter-relações entre essas formulações podem ser rastrea-
das em Xavier (2000), Jameson (1992) e Auerbach (1997).
6 Vinte e três telenovelas foram produzidas no mesmo pe-
ríodo. Convém mencionar que a elas eram dedicados três
horários fixos da grade diária de programação da Rede
Globo. Os demais formatos – unitário e seriado – não con-
taram com produção e exibição rotinizadas no mesmo
interregno temporal. Salvo menção em contrário, as in-
formações referentes aos programas foram coligidas no
Guia ilustrado TV Globo (2010) ou no sítio eletrônico Memó-
ria Globo (c2013). Tanto a publicação quanto o sítio inte-
graram as iniciativas que celebraram os 45 anos da emis-
sora. Uma descr ição sintética do esquema de f inancia-
mento para o caso da telenovela é realizada por Borelli
(2005). Para uma avaliação em registro prático e compa-
rativo tendo em vista a minissérie, ver Daniel Filho (2001).
7 Sobre a estruturação do domínio televisivo em dois polos
de legitimidade, ver Bergamo (2006).
8 Escritas por autores associados à modernização da cena
teatral no Brasil – Dias Gomes, Bráulio Pedroso, Jorge de
Andrade e, eventualmente, Lauro César Muniz foram es-
calados para o horário –, as telenovelas que eram veicu-
ladas introduziram efetivamente temas, ling uagem e
procedimentos narrativos considerados ousados para a
televisão. Condizente com autoimagem heroica que cons-
truíram de si próprios nesse período, a censura traumá-
tica a Roque santeiro é praticamente onipresente nas me-
mórias dos profissionais que trabalharam na emissora.
Ver, por exemplo, Daniel Filho (1988), Dias Gomes (1998)
e Oliveira Sobrinho (2011).
9 A análise desenvolvida por Sallum Jr. (1996) f lagra de mo-
do ag udo a ocasião exata em que essa inf lexão ocorre.
Para relatos que corroboram a importância política da
Rede Globo e de seu dono no período, ver, por exemplo,
Lima (2005) e Bial (2004).
10 Os rumos tomados inicialmente pelo Globo-Shell Especial
e, posteriormente, pelo Globo Repórter são exemplares a
anos rebeldes e a abertura da teleficção

922

esse respeito. A participação de cineastas de esquerda


nesses prog ramas é discutida por Ridenti (2000 ). Conti
(2012) resume de modo sintético os processos de centra-
lização e padronização estética do Globo Repórter, bem
como a retomada do controle direto do telejornalismo
pela família Mar inho após a demissão de Walter Clark.
Sacramento (2011) estuda minuciosamente os dois proje-
tos de produção que deram origem aos programas. Para
uma apresentação oficial de suas diferentes fases, ver o
descritor Globo Repórter no sítio Memória Globo (c2013).
11 Que a Rede Globo tenha priorizado inicialmente o forma-
to seriado, mais nitidamente especializado se comparado
à telenovela e à minissérie, é um evidente indicativo dis-
so. O simples arrolamento dos títulos dos primeiros se-
riados realizados já demonstra essa conexão: Ciranda ci-
randinha (1978), voltado para o público jovem com maior
escolaridade; Malu mulher (1979-1980), ao feminino com
maior escolaridade; Carga pesada (1979-1981), ao masculi-
no com menor escolaridade; e Plantão de polícia (1979-1981),
masculino com maior escolaridade. Uma caracterização
histórica e formal do unitário (single play), seriado (serie)
e da minissérie (serial) pode ser conferida em Williams
(2003). Para uma discussão mais detalhada, ver Pallottini
(2012). Em reg istro prático, Daniel Filho (2001) também
enfatiza o caráter menos segmentado da telenovela em
relação ao seriado. A análise realizada por Almeida (2011)
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

contextualiza e dimensiona o impacto de Malu mulher.


12 O projeto também teve colaboração de Antônio Mercado,
Ferreira Gullar, Joaquim Assis, Luiz Gleiser, Marília Garcia,
Doc Comparato (chefe do Departamento de Formação de
Autores) e Euclydes Marinho (responsável pelo Departa-
mento de Novos Formatos). O próprio Dias Gomes (1998)
atribuiu o malogro a acusações internas de dirigismo cul-
tural e a uma campanha promovida em veículos impres-
sos e eletrônicos capitaneada pelo jornalista conservador
Ferreira Neto. Outras explicações enfatizam a resistência
da parte dos autores – principalmente os “tradicionais” –,
que teriam visto a tentativa de instaurar processos cole-
tivos de trabalho como uma possível ameaça às prerro-
gativas colocadas pela posição que ocupam na hierarquia
interna de produção televisiva (Ortiz & Ramos, 1991).
artigo | dimitri pinheiro

923

13 Sobre isso, ver o item “Cur iosidades” no descr itor Anos


dourados (Memória Globo, c2013).
14 Ver o item “Driblando a censura” do roteiro publicado em
livro – um caso ainda raro – de Anos rebeldes (Braga, 2010:
29). Diferentemente da versão or ig inal, a adaptação da
peça O pagador de promessas à linguagem televisiva, rea-
lizada pelo próprio Dias Gomes com direção da cineasta
Tizuka Yamazaki, tematizou a reforma agrária e denun-
ciou explicitamente o latifúndio. Após a exibição do pri-
meiro capítulo, Roberto Mar inho deu ordens para que
Boni suspendesse a veiculação. O executivo resistiu, ape-
lando para Roberto Irineu – filho do proprietário e então
vice-presidente executivo –, que negociou a exibição me-
diante o corte de quatro capítulos iniciais da minissérie.
Na versão de Boni (Oliveira Sobr inho, 2011: 364-365), o
proprietário fora pressionado por amigos. Já segundo Dias
Gomes (1998: 340), a reação foi capitaneada pelas lideran-
ças da União Democrática Ruralista e do Banco Bradesco
(Ronaldo Cayado e Amador Aguiar, respectivamente). Co-
mo é o usual em disputas como essas, a controvérsia ga-
nhou os jornais: autor, executivo e propr ietár io – num
inusitado editorial assinado em O Globo, Roberto Marinho
acusa Dias Gomes de trair a própr ia obra (e, implicita-
mente, a sua confiança) – trocaram acusações (Cortes na
minissérie..., 1988: 31; Quem traiu, 1988: 1). O embaraço
revela, simultaneamente, a margem que o exercício com-
pulsório da criatividade exig ido pela indústria cultural
concede aos produtores e a distância relativa – no tele-
jornalismo isso praticamente inexiste quer em função da
maior familiaridade profissional, quer pela sua imbrica-
ção imediata com o campo do poder – da ingerência dos
proprietários em relação ao setor de entretenimento. So-
bre o caráter compulsório do trabalho criativo demanda-
do pela indústria cultural, ver Miceli (2018 ). As constri-
ções impostas pelo campo do poder sobre o telejornalismo
em geral podem ser rastreadas em Conti (2012).
15 A expressão populismo de esquerda se refere à caracte-
rização que faz Schwarz (1992: 63) de uma vertente, pre-
dominante no Brasil pré-1964 , de socialismo “forte em
anti-imperialismo e fraco na propaganda e organização
da luta de classes”. A tal formulação convém acrescentar
anos rebeldes e a abertura da teleficção

924

que a correspondência dessa vertente no plano estético


foi o “nacional-popular”.
16 Para uma demonstração tangível de como o contrato com
a Rede Globo poderia dificultar a vida profissional, ver o
caso de Walter George Durst (Lebert, 2009).
17 La crème de la crème é a expressão utilizada para se referir
às minisséries tanto pelos profissionais quanto por pes-
quisas que incor poram a classif icação nativa (Balogh,
2004). Os depoimentos de profissionais geralmente asso-
ciam o melhor de suas carreiras na televisão ao trabalho
realizado nesses programas teleficcionais.
18 Ainda que implicitamente , a ênfase conferida às circuns-
tâncias de produção para a análise de minisséries da Re-
de Globo foi proposta por Kornis (2000). Diferentemente
dessa abordagem, entretanto, a reconstituição de tais
circunstâncias aqui delineada realiza o trabalho racioci-
nado de mediação entre as condicionantes gerais, os prin-
cípios hierárquicos vigentes na televisão como domínio
específico de atividades, os trajetos dos profissionais e
as tomadas de posição inscritas na fatura das obras.
19 Não obstante o decalque da versão heroica recriada pelo
própr io Gilberto Braga, bem como da imputação de um
sentido unívoco à reação do público, ver a reconstituição
circunstanciada do episódio realizada por Ab’Saber (2003).
20 Sobre diferentes expressões da imaginação melodramá-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

tica, conferir Brooks (1984).


21 A “parceria” autor-diretor é “estratégica” (Ortiz & Ramos,
1991: 151; Hamburger, 2005: 45) na produção de programas
televisivos, mormente os de telef icção. Embora menos
sujeita à interferência do público – seja mediante dispo-
sitivos de sondagem de opinião, seja por meio de veículos
impressos e eletrônicos – do que a telenovela, a produção
da minissérie também se dá em meio a intrincadas redes
de relações entre profissionais em colaboração (Becker,
2008: 43). Não obstante, as posições de “autor” (poder es-
piritual) e “diretor geral” (poder temporal) exercem maior
pressão na definição dos rumos e dos resultados finais
das produções específicas na televisão.
22 Embora a experiência de ter assistido a Anos rebeldes quan-
do o programa foi veiculado pela primeira vez tenha in-
artigo | dimitri pinheiro

925

f luído, a análise aqui desenvolvida só foi possível a partir


da versão compacta comercializada em Digital Video Disc
pela Som Livre (Anos rebeldes, 2003). Em que pese o privi-
légio de poder preservar parcela considerável da sua pró-
pr ia produção audiovisual pela posição de verdadeiro
aparelho que a teleficção da Rede Globo ocupa, não é pos-
sível deixar de registrar aqui os obstáculos praticamente
intransponíveis colocados aos pesquisadores pelo contro-
le draconiano exercido sobre o próprio acervo – passível
de ser contornado muito parcialmente em função do es-
forço (animado pelo amor comum aos programas de tele-
visão) despendido por colecionadores amadores ou do
solidário auxílio prestado pelos funcionários alocados no
Centro de Documentação (Cedoc) – nem, tampouco, o ho-
locausto rotineiro a que foi submetida parcela inestimável
da cultura audiovisual brasileira decorrente quer da pró-
pr ia or ientação para o curto prazo imposta pela lóg ica
mercantil, quer do reaproveitamento cotidiano de video-
teipes já g ravados, quer, ainda, da simples carência de
recursos para sustentar arquivos privados ou da quase
inexistência de instituições públicas dedicadas a esse
trabalho. Para uma ref lexão pioneira sobre esses aspectos
no contexto argentino, ver Mestman e Varela (2011).
23 A af irmação é deliberadamente rebarbativa, mas não é
possível avançar nesse debate aqui. Sobre os elementos
estruturais e, mais precisamente, uma caracter ização
política do “melodrama clássico”, ver Thomasseau (2012).
Para uma análise que considera os desdobramentos mais
contemporâneos dessa forma na indústria cultural, ver
Xavier (2003). A caracterização do melodrama como de-
mocrático se apoia em Brooks (1984).
24 “Atualmente, alg uns f ilmes brasileiros me irr itam um
pouco. Pobreza com gente feia. Ora, no neorrealismo italia-
no, em Ladrões de bicicleta o protagonista é um cara atraen-
te [;] Belíssima tem a Anna Magnani. Cidade de Deus, por
exemplo, tem atores muito bonitos. Nas produções mais
recentes, porém, a miséria e gente muito feia têm sido um
osso duro de roer” (Braga, 2010: 27; grifos meus). Acerca da
longa tradição de fotogenia no caso do cinema e do pen-
samento (social e político) radicados no Brasil, ver Salles
Gomes (1973).
anos rebeldes e a abertura da teleficção

926

25 Nesse ponto a análise aqui desenvolvida se associa ao


esforço despendido pelo melhor da tradição sociológica
radicada no Brasil no sentido de aclimar o conceito de
indústria cultural. A acepção rigorosa desse conceito “su-
põe a configuração de um sistema articulado de diferen-
tes meios de produção, difusão e conser vação cultural
( jornais, editoras, gravadoras, agências de propaganda,
emissoras de rádio, canais de televisão, telefonia móvel
e, mais recentemente, as diversas plataformas da Inter-
net), cujo financiamento rotineiro depende dos recursos
obtidos através da concorrência entre os setores pelos
gastos com publicidade” (Pinheiro & Bergamo, 2018: 107-
108). Para formulações nessa direção, ver Cohn (2014) e
Arruda (1985).

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anos rebeldes e a abertura da teleficção

930

Anos Rebeldes e a abertura da teleficção


Resumo Palavras-chave
O artigo aborda Anos rebeldes, minissérie da Rede Globo de televisão;
Televisão veiculada entre junho e agosto de 1992. Primeira teleficção;
incursão explícita da teleficção da emissora pelo tema regi- minissérie;
me militar, a exibição do programa coincide com um mo- figura.
mento decisivo no processo de democratização política do
país: a campanha Fora Collor. A análise delineia telegrafica-
mente as condicionantes gerais, as circunstâncias de pro-
dução e o enredo da minissérie, enfatizando uma vertente
de suas tramas. O objetivo é examinar diferentes figurações
da indústria cultural na teleficção brasileira com rebati-
mentos reflexivos sobre a própria atitude dos estudos em
relação ao objeto. Longe dos juízos depreciativos acerca do
“des-valor inerente” aos bens simbólicos associados ao polo
ampliado de produção cultural, o argumento sustentado
aqui é o de que tais objetos sempre desempenham funções
práticas, econômicas, sociais, políticas e culturais insuspei-
tadas que justificam o esforço de uma análise sociológica.

Anos Rebeldes and the OPENING OF THE


TV SERIAL DRAMA
Abstract Keywords
The article approaches Rebel Years, a serial of Rede Globo Cultural industry;
Television that was displayed between June and August of television;
1992. It was the first time that the television station ex- telefiction;
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 907 – 930 , set. – dez., 2020

plicitly approached the theme of the military regime, and serial;


the show’s presentation happened at a decisive moment figure.
in the process of political democratization of the country:
the campaign for “Fora Collor” (Collor Out). The analysis
slightly outlines the general conditions, the circumstanc-
es of production and the plot of the miniseries, giving em-
phasis in one specific story. Its objective is to examine
different representations of the cultural industry in the
Brazilian telefiction with a reflexive repercussion about
the attitude of academic studies themselves in relation to
the object. Far from the disparaging judgments about the
“inherent worthlessness” of symbolic goods associated with
the expanded pole of cultural production, the argument
advanced here is that such objects always perform unsus-
pected practical, economic, social, political, and cultural
functions that justify the effort of a sociological analysis.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v1037

1 Universidade Federal de São Carlos


zinhotravis@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-7295-6306

Renan Martins Pereira I

Velejar e descobrir: considerações sobre


vaqueiros, corpos e lembranças

Neste artigo,1 meu objetivo é analisar a partir de narrativas contadas por ‘vaquei-
ros de verdade’2 como suas relações com o corpo, os animais e a caatinga produ-
zem memória e reputação social. Mais especificamente, observo como essas rela-
ções com o corpo, os animais e o território constroem e reproduzem o ‘prestígio’
e a reputação de senhores reconhecidos no sertão de Pernambuco como ‘vaquei-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 931 – 956 , set. – dez., 2020

ros, vaqueiros mesmo’: senhores hábeis na arte de capturar o gado na caatinga,


mas também hábeis na arte da memória. Por um lado, ‘homens do campo’ que
vivem, trabalham e labutam na fazenda de gado cuidando do rebanho próprio ou
do patrão. Por outro, ‘vaqueiros velhos’ ou ‘antigos vaqueiros’ cujo ‘prestígio’, ‘co-
nhecimento’ e ‘experiência’ os diferenciam de ‘vaqueiros mais novos’, ‘vaqueiros
de vaquejada’, ‘vaqueiros de festa’, ‘vaqueiros modernos’.
Além disso, demonstro que a exaltação de uma vida de sacrifícios e as
tarefas concernentes ao ofício do vaqueiro resultam de diversas de suas práti-
cas e de seus conhecimentos, mas também de sua habilidade retórica de narrar
acontecimentos passados, protagonizados por humanos, animais e caatingas.
A partir de uma narrativa que me foi concedida na primeira pesquisa de cam-
po que realizei em Floresta (PE) 3 entre fevereiro e maio de 2016, dou ênfase
etnográfica à habilidade retórica de Cláudio Correia, ‘vaqueiro velho’ cuja par-
ticularidade no modo de confeccionar oralmente suas experiências passadas
– e, consequentemente, no modo de confeccionar a memória – expressa uma
relação contínua entre o corpo do vaqueiro, os animais e o território. Para ser
velejar e descobrir: considerações sobre vaqueiros, corpos e lembranças

932

e se dizer vaqueiro, do seu ponto de vista, necessita-se de um corpo específico.


Não se é vaqueiro de qualquer forma, a qualquer tempo, em qualquer lugar
nem, aliás, com qualquer corpo. De sua perspectiva, nem toda pessoa pode ‘ser
vaqueiro’. Trata-se de uma ‘profissão perigosa’ que requer domínio sobre os
animais e o território, mas também sobre o próprio corpo.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 931 – 956 , set. – dez., 2020

1 2

Figura 1
‘Vaqueiro véio’ em sua propriedade,
Fazenda São Miguel (Serra Talhada-PE)
março, 2016
foto do autor

Figura 2
Jovem vaqueiro na ‘vaquejada’ da
Fazenda Lucas (Floresta-PE)
maio, 2016
foto do autor
artigo | renan martins pereira

933

Metodologicamente, 4 ‘vaqueiros velhos’ ou ‘antigos’ como Cláudio Cor-


reia e o senhor representado na Figura 1 são analiticamente importantes por
três motivos. O primeiro deles é que detêm a sabedoria e a habilidade de narrar.
Além disso, detêm a sabedoria e a habilidade de cavalgar. De um lado, trata-se
da faculdade de falar a respeito de si (pensemos na imagem do narrador sen-
tado no alpendre de sua morada reproduzindo relatos pessoais). De outro lado,
trata-se da montaria, da cavalgada. Uma atividade obviamente definida pela
mobilidade, pelo movimento, pela fuga do boi, pela corrida no ‘mato’5 (pensemos
na imagem do cavaleiro em movimento na caatinga). E, terceiro motivo, essas
duas formas de sabedoria e habilidade (na posição de narradores e cavaleiros)
produzem, juntas, memória e reputação: falar de suas aventuras na caatinga e
ser hábil na arte da cavalaria são formas de os vaqueiros se perpetuarem no
tempo, produzirem memória e deixarem um ‘rastro’. Portanto, a predominância
da narrativa de Cláudio Correia neste artigo se dá metodologicamente pelo seu
modo particular de relatar o que ele considera momentos de glória: as ‘pegas
de boi’ do passado e a ‘vida de vaqueiro’ no ‘tempo dos antigos’.
Em antropologia, os trabalhos no Brasil sobre os sertões focalizam, em
grande medida, a questão da memória na sua extensão com os temas, por exem-
plo, da mitologia nacional (Sena, 1998, 2011), da narrativa (Lima, 2000; Cavignac,
2009), da política (Villela, 2008a, 2008b), da família (Marques, 2002, 2013) e do
território (Godoi, 1999). Poucos, porém, são os que se dedicam detidamente à
figura do vaqueiro (Aires, 2008; Lopes, 2016; Pereira, 2017), mas ainda assim sem
tratar das relações conjuntas dos vaqueiros com o corpo, os animais e o territó-
rio na produção da memória, tal como desenvolvo neste artigo.
Ainda hoje prevalecem as teses de folcloristas (Cascudo, 1956, 2005) e
pensadores sociais brasileiros (Barroso, 1930; Menezes, 1970; Andrade, 1986;
Mello 2011) a respeito do vaqueiro do Nordeste. Com a queda da pecuária nor-
destina no final do século XIX e início do XX, a previsão desses autores era a
de que o vaqueiro e seu ofício desapareceriam da vida social sertaneja (Cascu-
do, 1956, 2005; Prado Júnior, 2006; Furtado, 2007). O vaqueiro nordestino, no
entanto, não desapareceu do meio rural. Não obstante os processos de “moder-
nização” no campo, Lopes (2016) e Pereira (2017) demonstraram, recentemente,
que a memória do vaqueiro permanece, transformando seus conhecimentos e
suas práticas tradicionais.
Da prática da ‘pega de boi’, por exemplo, derivou a ‘pega de boi no mato’
ou ‘pega de boi na caatinga’. Também chamada de ‘vaquejada’, a ‘pega de boi’
é um festejo nos sertões do Nordeste, onde um conjunto de vaqueiros – a ‘va-
queirama’ – disputa a derrubada do gado, visando à premiação e comemoração.6
Quanto a essas competições, os ‘vaqueiros de verdade’ entre os quais realizei
pesquisa de campo em Floresta são bastante críticos. Para eles, nas ‘pegas de
boi no mato’ os vaqueiros lidam com o gado somente por lazer ou esporte.
‘Antigamente’, no entanto – eles afirmam –, as ‘pegas de boi’ eram atividade
velejar e descobrir: considerações sobre vaqueiros, corpos e lembranças

934

voltadas para as ‘necessidades’ do trabalho do homem rural. Para meus amigos


sertanejos, as ‘necessidades’ concernentes às tarefas do vaqueiro se destinavam
à manutenção e à vigília do rebanho. Uma vez que os trabalhadores se arrisca-
vam na caatinga, o ofício do vaqueiro se fazia ‘necessário’, mas também pra-
zeroso e gratificante, no sentido de que os desafios e perigos enfrentados na
caatinga proporcionavam disputas e competições entre trabalhadores e fazen-
deiros, resultando algumas vezes em festejos, ‘reuniões’ e ‘confraternizações’.
A diferença é que nas ‘vaquejadas’ e nos desafios passados lidava-se com um
rebanho selvagem e bravio. O gado era “criado solto na caatinga”, era “bicho
bruto que não via gente”. Hoje em dia, em contrapartida, dizem os vaqueiros,
“o gado é manso, domesticado, preso em cercados e mangas”. E, portanto, os
cavaleiros já não são habilidosos e corajosos como os de antes.
Frente a essas diferenciações temporais, as lembranças, as memórias e
as histórias passadas são constantemente agenciadas pelos vaqueiros de Flo-
resta. Por essa razão, nas seções seguintes analiso como a relação dos vaqueiros
com o corpo, os animais e a caatinga possibilita entender os procedimentos
pelos quais os vaqueiros qualificam e diferenciam passado e presente, reveren-
ciando-se como herdeiros de um tempo glorioso. A primeira seção é dedicada à
questão do corpo. A segunda, aos animais e à caatinga. A terceira analisa a pro-
dução do ‘prestígio’ em sua correlação com a memória. As duas últimas seções
procuram definir conceitualmente a memória do ponto de vista dos vaqueiros.
Para tanto, faço uma análise da noção nativa de ‘ciência do vaqueiro’ a partir da
noção grega de métis, tal como definida por Détienne e Vernant (2008).

O corpo
Nos diálogos que estabeleci com os vaqueiros em Pernambuco, muito se dizia
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do desgaste físico e corporal vivido por eles em tempos remotos. Em um de


meus encontros com Cláudio Correia, minha anfitriã em Floresta, Amélia, per-
guntou-lhe:

– Quer dizer que não podia sentir sede no mato?

– Sentia sede, claro. Mas não podia levar água para o campo. Não dava para beber
nem comer, porque não podia carregar nada na sela – respondeu-lhe sem delongas.

– Mas por quê? – perguntei-lhe.

– Ué, porque é incômodo! – afirmou com obviedade.

‘Campo’ significa a parte não cercada da caatinga, território livre para os


animais, onde nasce e vive o rebanho, “solto no mato”, que em certos períodos
necessita ser recrutado para fins de manutenção e vigília de vaqueiros e ‘cria-
dores’. 7 Sua forma verbal ‘campear’ é sinônimo de ‘descobrir’ na espacialidade
específica do ‘campo’ as reses (gado bovino) e as ‘criações’ (gado caprino e
ovino) de um rebanho. 8
artigo | renan martins pereira

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Para procurar e capturar as reses, os vaqueiros devem, por exemplo, ali-


mentar-se comedidamente, ser frugais e moderados. Uma carne de bode assada
na brasa – comum entre os alimentos dos sertanejos – não é uma boa opção. “Pa-
ra correr na caatinga atrás de um boi”, reflete Cláudio, “deve-se comer algo leve”.
Primeiro, para não despertar a fome durante a cavalgada. Em segundo lugar, para
que a sede não se antecipe antes da hora. Em síntese, o trabalho do vaqueiro
exige uma economia do corpo. Uma forma de regê-lo, preveni-lo e prepará-lo.
“Antigamente”, disse o interlocutor, “o vaqueiro saía de madrugada atrás
de uma rês”. Nessa circunstância, segundo ele, reinam os imprevistos. Não se
sabia de antemão, por exemplo, a que horas vaqueiro e cavalo (e quem sabe o
boi) retornariam do ‘mato’. Na vida do vaqueiro, as tarefas nem sempre são
findadas como se espera. Mesmo capturado, o gado pode deixá-lo à sorte do
destino. “O vaqueiro pode pelejar para sair com o boi e ele não sair”. O gado
pode lutar para não se submeter às ordens do homem. Ele resiste à morte, as-
sim como o homem também se adestra contra ela. Nesse sentido, sofrer mas
ao mesmo tempo preservar-se e ter cuidado de si são atitudes essenciais de
quem enfrenta os perigos da caatinga e as surpresas do destino.
Cláudio me contou ter arriscado a própria vida capturando um determi-
nado boi. Nos anos 1970, ele e um ‘companheiro’ saíram às três da manhã
para pegá-lo, encontraram-no às três da tarde e só terminaram de amarrá-lo
às sete da noite. Passaram o dia todo sem comer e sem beber água. Ao chegar
a casa, o vaqueiro se encontrava completamente “arrebentado, enfadado e do-
ído”. O ‘sofrimento’ era tanto, que, embora necessitasse de água, o corpo a
rejeitava: “Os lábios eram rachados, e eu não conseguia engolir nada, só café
amargo”. Apesar do ‘sofrimento’ (ou talvez em virtude dele), meu amigo lem-
brava do ocorrido com bastante orgulho. Afinal de contas, asseverou: “Essa é a
realidade do vaqueiro do campo”, o solo onde o vaqueiro cultiva o seu ‘prestígio’.
Muitos ‘vaqueiros velhos’ de Floresta adquiriram reputação por já ter
dormido no ‘mato’ à espera de um boi ou por passar horas sem se alimentar.
Por esses e outros motivos, ‘vaqueiros velhos’ se articulam retoricamente para
nos convencer de que sofreram mais do que ninguém. Para eles, os ‘vaqueiros
mais novos’ jamais se submeteriam a condições equivalentes. E isso não diz
respeito apenas a um problema moral e geracional. Acontece que os motivos
são de natureza prática: embora se digam vaqueiros, os ‘mais novos’ não vivem,
não sofrem e não se dedicam à ‘profissão de vaqueiros’ como os de ‘antigamen-
te’. Pode-se notar, portanto, a partir da lógica do ‘sofrimento’ elaborada por
Cláudio Correia, apenas uma primeira demonstração de como a memória é
trabalhada e construída nas narrativas a partir das relações com o corpo, os
animais e o território, de modo que a produção do ‘prestígio’ e da reputação
social só ocorre à medida que essas relações existam e façam sentido.
Mas qual o saldo do ‘sofrimento’? Por que o vaqueiro é devoto ao exer-
cício de sua ‘profissão’ a ponto de, em seu nome, sacrificar-se horas ou dias na
velejar e descobrir: considerações sobre vaqueiros, corpos e lembranças

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caatinga? Seria supostamente em nome de uma tarefa a partir da qual se firmam


compromissos com alguém a quem se deve o boi prometido, um cliente ou um
patrão, e, além do mais, em nome de um compromisso vital do vaqueiro de si
para consigo? Sob o sol escaldante e à espera da rês prometida, o vaqueiro se
esgota até finalmente capturá-la. Os corpos precisam ser ágeis, sobretudo para
adquirir velocidade na ‘carreira’ – ato em disparada atrás do gado. Nas palavras
de Genésio de Nato, vaqueiro da Fazenda Lucas, não se trata apenas de ‘sofri-
mento’, mas também de ‘agilidade’. Para ele, os vaqueiros não correm no ‘cam-
po’ somente para honrar um ‘trato’, seja com o cliente, com o fazendeiro ou
consigo mesmo. E também não o fazem apenas para cuidar do rebanho. Sobre-
tudo, fazem-no por uma questão de ‘agilidade’, uma vez que os objetivos estão
condicionados às relações com os animais e o território. Em suas palavras, “O
vaqueiro tem que saber a luta do mato!”.
Dessa maneira, ao mesmo tempo em que se trata de responsabilidade
moral, de uma questão de ‘honra’ ou ‘prestígio’, sugiro que se trata igualmen-
te de um problema técnico e pragmático – sobre isso, exatamente, trato melhor
na última seção deste artigo, em que abordo a categoria ‘ciência do vaqueiro’.
Trata-se, enfim, da percepção do que é e do que não é eficiente na ‘luta do
mato’. No lugar de comidas e bebidas, como bem nos demonstrou Cláudio Cor-
reia, prevalecem ferramentas e utensílios. Na indumentária e nos arreios, car-
regam-se ‘peias’ (cordas para amarrar os animais e imobilizá-los), ‘serrotes’
(para cortar as ‘pontas’ dos bois quando pontiagudas), ‘caretas’ (máscara de
botar na rês para interromper o poder da visão) e ‘búzios’ (instrumento de
sopro feito com a ‘ponta’ do boi com o qual os homens se comunicam, princi-
palmente para avisar aos ‘companheiros’ a aproximação dos animais).
Encourado, com os acessórios essenciais e sem carregar comida e bebi-
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da nos arreios, o vaqueiro do sertão, segundo Cláudio Correia e Genésio de


Nato, dá primazia à atitude de ‘correr limpo’. Segundo eles próprios, a leveza
na montaria é o que dá velocidade, ritmo e, portanto, ‘agilidade’ aos corpos. Ela
implica a possível vitória na captura, isto é, os domínios dos homens sobre os
animais frente aos imprevistos, perigos e desafios. Tendo em vista o modo
como as técnicas e as habilidades se desenrolam na ‘luta do mato’, na seção
seguinte trato de analisar como a memória do vaqueiro é produzida nos relatos
não apenas a partir de suas relações com o corpo, mas também das relações
com os animais e a caatinga.

Os animais e a caatinga
Em nossas conversas, Cláudio sempre enfatizava a função do cavalo na ‘carrei-
ra’. A esse respeito, mencionou que o vaqueiro não é nada sem um ‘bom cava-
lo’. Tal a sua importância na corrida que, orgulhoso de si mesmo, destacou
suas posses:
artigo | renan martins pereira

937

– Eu já tive cinco cavalos de ‘campo’, só para correr atrás de boi, só para ‘campear’!
– e, exaltado ao se lembrar do passado, deu início a uma narrativa. – Vou te con-
tar uma ‘história de vaqueiro’! Aconteceu que um dia eu fui para o ‘campo’ pegar
um boi, um determinado boi...

Nesse exato dia, o vaqueiro mencionou que estava só. Ao lembrar da árdua ta-
refa a ser cumprida, passou na fazenda de seu tio, Manoel Gomes Correia, tam-
bém conhecido como Nelinho Yoyô. Ao encontrá-lo, disse ao parente: “Padinho,
me dê um empregado para me ajudar a pegar um boi, pra eu não ir só? ”. Acom-
panhado, Cláudio e seu ‘companheiro’ seguiram.

Nesta fase da narrativa, os olhos do vaqueiro-narrador reviviam o passado. En-


quanto falava, seus gestos pareciam ref letir suas lembranças:

– Meu amigo, vou te dizer uma coisa: a gente achou esse boi num lugar meio fe-
chado, onde havia muita macambira, muito espinho. A caatinga era ‘braba’ e, de
repente, o gado se espantou de longe. E correu, correu. Fugiu!

Figura 3
Cláudio Correia na Fazenda Tigre (Floresta-PE)
abril, 2016
foto do autor
velejar e descobrir: considerações sobre vaqueiros, corpos e lembranças

938

Nesse momento, portanto, o alvo começou a fuga, dando início à primeira


‘carreira’. Segundo os vaqueiros, o boi se espanta porque sente ‘medo’. De antemão,
o gado não expressa ‘valentia’, pois o seu temor é a reação imediata de quem se
depara com seres externos ao seu convívio. Para Dulcimar, vaqueiro de Cláudio,
“o gado brabo que a gente cria tem medo”. Criado na caatinga à própria sorte, o
gado ‘brabo’ é definido como “bicho bruto que não vê gente”. Outros animais, no
entanto, “já são valentes por natureza”. O primeiro foge. Já os últimos, a depender
das circunstâncias, podem enfrentar o homem que, entretanto, tem vantagem
sobre o boi só e despreparado, pego de surpresa. O boi, então, é vítima das circuns-
tâncias, enquanto seu oponente está devidamente prontificado. Ao gado resta a
própria fuga, fomentando a fúria de quem virá em seu encalço. O boi, aliás, é quem
confere ritmo e duração à corrida. Seguindo o ‘rastro’ do gado, é preciso que o
vaqueiro vá ao seu encontro, tentando descobri-lo. Em seguida, tendo-o feito, é
preciso ‘puxar’ o cavalo para cima dele, ir de encontro a ele, para tocá-lo, puxá-lo
pela cauda, derrubá-lo, capturá-lo.
Cláudio continuou:

– Eu puxei no cavalo, descobri onde o boi ia e tirei o cavalo em cima. Eu ia des-


cendo de cabeça baixa. Olha, você sabe a posição que o vaqueiro corre no ‘cam-
po’, não sabe? – perguntou-me, supondo que com os poucos dias em Floresta eu
talvez soubesse a resposta.

Para correr no ‘campo’, descrevia o vaqueiro, é preciso o olhar atento de


quem iguala o seu corpo ao do cavalo, apoiando-se no seu pescoço. A caatinga
é cortante e tortuosa, e nela o vaqueiro precisa da visão aguçada. Em uma caa-
tinga ‘fechada’, por exemplo, é preciso potencializá-la. Se a visão aguçada é
condição para o ‘vaqueiro do campo’, é porque aos olhos do vaqueiro somam-se
os olhos do cavalo. O encaixe de um corpo ao outro complementa a capacidade
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coletiva de manter a atenção e o movimento – na próxima seção, volto com mais


afinco à importância da visão na corrida. Por ora, antes de retornar à narrativa
de Cláudio, faço breve digressão sobre a postura corporal do vaqueiro na corrida.
Segundo os vaqueiros de Floresta, ao compartilhar o movimento e pro-
duzir ritmos variados, cavaleiro, cavalo e boi se harmonizam até a hora de uma
ruptura, o fim da corrida. Nesse contexto, há um jogo de confiança e disputa
entre os seres. O cavalo, por exemplo, é o veículo por excelência do vaqueiro.
Com ele, os homens atingem a velocidade do boi sob determinada modulação
ecológica: a caatinga espinhosa e cortante. Se levarmos a sério a ideia de De-
leuze e Guattari de que “o corpo não é questão de objetos parciais, mas de
velocidades diferentes” (2012: 42), podemos dizer que a busca pela leveza na
montaria e a atitude de ‘correr limpo’, já mencionadas por Cláudio, dependem
da relação entre corpos de naturezas distintas, humanas e não humanas.
Sob esse aspecto, as características da vegetação e dos animais contri-
buem para a particularidade do ofício do vaqueiro. Quanto mais penosa a ca-
atinga, maior a reputação humana. Quem souber lidar com a braveza e a va-
artigo | renan martins pereira

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lentia do gado em determinado ambiente ganha maior ‘prestígio’ e mais repu-


tação, diferenciando-se de seus pares. Aos vaqueiros são conferidos atributos
específicos, a saber: ‘catingueiro’, ‘estragado de mato’, ‘valente’, ‘bom vaqueiro’,
‘cabra corajoso’, ‘doido’. Mas a vegetação – que se imaginaria única e invariável
– também se distingue em categorias específicas segundo seus próprios atribu-
tos. Conforme os perigos que impõe e a natureza dos animais que nela vivem,
a caatinga é dividida em duas mais notórias: ‘caatinga de tabuleiro’ (com ve-
getação rasteira, ‘aberta’ e, por isso mesmo, facilitadora da técnica de ‘descobrir’
o rebanho) e ‘caatinga fechada’ (chamada também de ‘caatinga braba’ – espaço
épico onde se luta com o gado bravio e selvagem).
O quadro geral é que, na posição de cavaleiro, os ‘vaqueiros de verdade’
se aventuram geralmente na ‘caatinga braba’ procurando dominá-la, uma vez
que ela tem suas parcelas de passividade como plano de circulação e de pas-
sagem. Sendo ‘braba’, ‘fechada’, ‘espinhosa’, ‘tortuosa’, cortante e, portanto,
desafiadora, ela é também, entretanto, um obstáculo a ser contornado, um pla-
no de circulação e de passagem que, conforme a aceleração da corrida, pode
interromper a velocidade, o ritmo, a frequência. Um ecossistema que atinge,
perfura e mata. A esse respeito, Cláudio Correia oferece com sua narrativa al-
gumas pistas:

– Depois de ‘descobrir’ o boi, encontramos uma ‘vereda’ dentro de um ‘macam-


biral’. E o boi tanto ‘buracou’ nessa ‘vereda’, que eu botei o cavalo nesse bicho e
saí curtinho com ele.

Nesse instante, ele explicava que seu corpo permanecia rente ao pesco-
ço do cavalo. Ele e seu cavalo estavam próximos do boi. Enquanto se preparava
para derrubá-lo, o inesperado aconteceu. Numa curva da ‘vereda’, ‘descobriu’
uma árvore, um pé de angico que “nascia da beira do caminhozinho e fazia um
galho”. A passagem era estreita e, segundo ele, “o galho vinha em cima”. O
vaqueiro desviou do galho. No ritmo da fuga, segundo o vaqueiro, “o boi parecia
que se abaixou pra passar”. Destacando a sagacidade do boi e as decisões feitas
por ele, o narrador ressaltou um problema. Embora os corpos estivessem rentes,
a altura do cavalo com a do cavaleiro prejudicava a travessia. Para resolvê-lo,
Cláudio disse não ter tido tempo para “pensar no que fazer”. De sua perspec-
tiva, não houve lugar para contemplação:

– Eu não tive tempo de me levantar pra pensar. Se eu me levantasse, o pau me


matava. Não podia levantar, senão eu quebrava a cabeça. O boi entrou, o cavali-
nho entrou e eu também.

Frente ao obstáculo, ele percebeu a ineficiência de se manter apoiado


no pescoço do cavalo. Buscando apoio lateral, conquistou outra posição. Reu-
tilizando os corpos, produziu uma nova frequência. Da divisão rítmica entre
cavaleiro e cavalo, surgiu um movimento diferencial, um gesto mínimo e total-
mente inovador. Um desvio.
velejar e descobrir: considerações sobre vaqueiros, corpos e lembranças

940

– Eu tirei o corpo da sela... – disse o vaqueiro encenando a maneira pela qual se


apoiou lateralmente em seu cavalo para conquistar uma nova posição. O arran-
jo necessário para atravessar.

Para ele, embora o galho fosse um obstáculo imposto pelo boi, entre os
dois grandes aliados, cavalo e cavaleiro, há também uma relação de disputa.
Segundo sua narrativa, homem, cavalo e boi não podem ser pensados separa-
damente. O cavalo seguirá sempre o que o boi faz. “O boi entrou, e o cavalinho
entrou também!”. Nessas circunstâncias, cabe ao homem acompanhar a fuga,
o movimento iniciado pelo boi. E cabe a ele também saber sustentá-lo ou, quem
sabe, transformá-lo, obtendo um desvio. O cavalo segue incondicionalmente a
trajetória do boi; impedi-lo é um erro. Talvez uma fatalidade. Se o boi engana,
levando o cavalo a um caminho perigoso, o cavalo é vulnerável às armadilhas
assim como o cavaleiro o é. Nas corridas, as vidas dividem os mesmos riscos.
Traçando os mesmos rumos, o boi procura fugir, esconder-se, enquanto cava-
leiro e cavalo o perseguem, desejando descobri-lo a todo custo.
“Eu passei só com ‘isso aqui’ em cima do cavalo!”, Cláudio asseverou
apontando para sua coxa direita. Para ele, todos estavam no limite. Boi, homem
e cavalo estavam, segundo o narrador, “na conta de passar”. Em fração de se-
gundos, o cálculo foi espontâneo e imediato, produzindo um movimento se-
quencial: esticar-se no pescoço do cavalo; mudar de posição diante do impre-
visto (um galho!); e, por fim, apoiar-se lateralmente. Essas atitudes trouxeram
sua primeira vitória. Adiante, um novo desafio: derrubar e ‘dominar’ o boi. Pa-
ra tanto, onde estava seu ‘companheiro’? A seguir, trato da técnica de ‘correr
junto’ e do ‘prestígio’ envolvido nesse empreendimento.

O prestígio
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Nas ‘pegas de boi’, geralmente não há lugar para que dois vaqueiros tenham
protagonismo, pois sempre haverá apenas um vencedor. Há o que correrá ‘na
ponta’, e outro que seguirá por trás, acompanhando dois movimentos sequen-
ciais: o trajeto traçado pelo vaqueiro que corre ‘na ponta’ e que supostamente
derrubará o boi, puxando-o pela cauda ou pulando em seu pescoço; e as sub-
sequentes rotas e desvios feitos pelo gado durante o percurso.
“Quando eu estava ‘piando’, chegou o companheiro.” Em geral, ‘piar’ sig-
nifica “dominar o boi”. Detalhadamente, é quando a rês, para ser tangida, terá
suas ‘mãos’ (patas) e ‘pontas’ (chifres) amarradas umas às outras. Cláudio, po-
rém, não precisou da ajuda de seu parceiro. No limite entre a vida e a morte,
passar sob o galho potencializou a atitude de terminar a empreitada sozinho.
Mais uma fonte de atuação magistral do ‘vaqueiro do campo’, do ‘vaqueiro de
verdade’: realizar autonomamente o que em teoria deveria ser feito em coleti-
vo. Não se trata, contudo, de escolhas e vontades. Trata-se, sobretudo, de ‘ne-
cessidade’ e obviedade. Como já vimos, nas corridas não há lugar para hesita-
ções, simples escolhas ou contemplações. Independentemente de o ‘compa-
artigo | renan martins pereira

941

nheiro’ estar atrasado ou não, é preciso ‘lutar’ com o gado antes que retome o
fôlego, ganhe energia e parta. Os imprevistos não são meros obstáculos, mas
elementos que catalisam as disputas, segmentam as continuidades e traçam
novos desafios. Logo, correr ao lado de alguém não é só um meio de subtrair os
perigos e compartilhá-los. Não se trata somente de cumprir o ‘trato’ com o
cliente ou o patrão. Não é só uma fonte de reciprocidade, correlação e ‘honra’,
mas também de unilateralidade, parcialidade e disputa.
Ora, se um único vaqueiro triunfará, é porque esse será o protagonista
de um acontecimento extraordinário, e o parceiro, embora coadjuvante, ates-
tará o desafio vencido pelo outro. Por isso, o ‘companheiro’ não é só o olho que
procura o boi e segue o curso dos movimentos. Ele é também o olho-testemunha.
É o campo de visão que comprova o que o outro foi capaz de fazer. A esse res-
peito, vejamos o que disse Cláudio do ‘companheiro’ que testemunhou o fato:

No f inal, o companheiro chegou e me disse: “Meu amigo, como você passou


naquele pau? ”. “Ué”, eu respondi, “não sei, só sei que eu passei”. Na hora, não
me chamou muito a atenção, porque eu sou acostumado a fazer isso: passar e
pronto. Mas, enfim, pegamos o boi e fomos embora. Só que o rapaz insistiu na
altura do pau. Ele disse: “Óia, ali onde você passou é muito baixo, o negócio lá é
muito apertado”. Eu disse de volta: “É, eu sei que é muito baixo, eu abaixei tudo
o que pude e tirei o corpo de cima da sela, porque senão eu quebrava o espinha-
ço ou então a cabeça. Eu poderia morrer”.

No dia posterior ao acontecimento, ele decidiu revisitar o palco de sua


façanha. No pé de angico, estava a prova. O ‘rastro’ era a casca de árvore salta-
da, descolada do tronco, demarcando a passagem, a rápida colisão, o parcial
atrito que atingiu apenas a coxa direita do cavaleiro.

– Eu senti mesmo que roçou o pau na perna... É por isso que tirou a casca do an-
gico! – ref letiu meu amigo nos instantes finais de sua narrativa.

Por onde passou, chamou-lhe atenção a altura entre o galho e o solo. Ele,
então, mediu para ver quantos palmos davam. O cavalo tinha seis palmos e
meio, a contar a espessura da sela. Do chão até o pau, a medida foi de cinco
palmos e meio, e o cavalo tinha um palmo a mais. Ora, o vaqueiro atravessou
um espaço menor que o tamanho do seu ‘animal’. Sem hesitar, logo constatou
a destreza do cavalo. O aliado em quem um dia confiou e a quem agora deve a
‘honra’ de uma ‘história’.

– Quer dizer, o cavalo diminuiu um palmo para passar, se abaixou e me salvou!


Se não fosse um cavalo bom... Enfim, mesmo se fosse um vaqueiro bom e um
cavalo ruim, o cavalo tinha me matado na hora, e o boi tinha ido embora.

É em razão dessa mutualidade de sentimentos, habilidades e perigos que


os vaqueiros valorizam a montaria. Cascudo (1956: 75), por exemplo, percebeu
que desde o ciclo do gado “o animal favorito não é o touro, o novilho, a vaca, o
boi, mas o cavalo”. O seu significado maior, segundo a perspectiva de meus in-
velejar e descobrir: considerações sobre vaqueiros, corpos e lembranças

942

terlocutores, é que o cavalo não defende apenas a si mesmo. Como fiel escudei-
ro, ele defende também o seu aliado. Percebe-se a partir disso que a dimensão
do extraordinário contida nas ‘histórias de vaqueiro’ não se fundamenta apenas
nas intenções do boi, mas em um “agenciamento coletivo” (Deleuze & Guattari,
2008), nesse caso, no agenciamento cavaleiro-boi-cavalo-caatinga.9
Como destacado na narrativa de Cláudio, para controlar o tempo e tomar
as decisões corretas, não há espaço para contemplação, e as ações em nada se
confundem com um cálculo racional. Em vez disso, as relações dos homens
com os animais e a caatinga se desenrolam segundo os agenciamentos entre
eles. Trata-se de relações entre humanos e não humanos que não são teleoló-
gicas, isto é, equacionadas por causas e efeitos, mas de natureza tautológica,
isto é, faz-se o que deve ser feito. Nas palavras de Cláudio: “A gente não pode
pensar que vai morrer ou que não vai morrer. Isso é coisa que o vaqueiro tem
que fazer, simplesmente fazer!”.
Minha amiga Amélia, bastante curiosa, perguntou-lhe por que motivo, no
momento do perigo, não desistiu daquela ‘vereda’ perigosa. Se tudo era arrisca-
do demais, pensou minha amiga, por que ele não estacionou o movimento e
escolheu outra trajetória? Diante da provocação, a resposta do vaqueiro foi cla-
ra: “Sim, existe a possibilidade. Mas o ponto é que, se desistirmos, o boi vai
embora.” A desistência, portanto, não é a solução. No limite, se o que está em
jogo é o próprio ‘prestígio’ do vaqueiro, deixar o boi fugir quando se está tão
próximo dele é nada mais que uma ação imprudente e ‘covarde’. O correto é
sempre fazer o que o boi faz. Na corrida, o homem segue o boi justamente por-
que o cavalo tem um mandato: “O cavalo entra da maneira que o boi entrar,
senão também morre!” asseverou Cláudio diante das indagações de Amélia.
Os argumentos do vaqueiro sugerem que a desistência é uma alternativa
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 931 – 956 , set. – dez., 2020

ainda mais perigosa, botando em risco a vida do cavalo que cumpre o seu papel.
Portanto, manter-se no ritmo da ‘carreira’ é, a despeito do que possa acontecer,
respeitar quem o carrega. Não fariam sentido saudar o ‘sofrimento’, as horas sob
o sol escaldante e se reverenciar como ‘vaqueiro de verdade’ se todo imprevisto,
toda dificuldade ou qualquer obstáculo cedessem lugar à desistência. Desistir,
portanto, mais do que um ato ‘covarde’, é uma atitude ineficaz.
No lugar da desistência, a permanência. Em vez da redução, a aceleração.
Entre permanências e acelerações, o vaqueiro sabe que se há desvios e decisões
a tomar elas são internas aos próprios movimentos, às continuidades e aos
cruzamentos. Para entender melhor essas questões, é fundamental analisar
outra habilidade do ‘vaqueiro do campo’: antes da ‘carreira’ (aceleração, fuga
e colisão), vem o ato de ‘velejar’ (vagarosidade, procura e atenção).
artigo | renan martins pereira

943

Velejar e descobrir: potencialidades do corpo


Até onde pude compreender, ‘velejar’ significa aguçar a percepção visual e au-
ditiva, potencializando o corpo do vaqueiro na busca pelo boi. Em movimento
vagaroso, a finalidade de ‘velejar’ é ‘descobrir’ o animal que se esconde. ‘Vele-
jar’ é também sinônimo do que, às vezes, os vaqueiros chamam de ‘caçar’. De
uma forma ou de outra, trata-se de processos em que os sentidos do vaqueiro-
caçador se adestram para ‘descobrir’ a presa-gado que vigia o homem, mas
também é vigiada por ele. ‘Velejar’ é, enfim, ‘descobrir’ o ‘gado brabo’ que teme
o seu adversário.
Além da visão e da audição, joga-se também com os odores. O ‘cheiro’
do vaqueiro encourado é atenuante. O boi foge ao senti-lo. Por isso, com a de-
vida astúcia, o vaqueiro deve ‘velejar’ contra o vento. Ao contrário do barco à
vela que se utiliza do vento para ganhar sentido e velocidade, o vaqueiro corre
contra o vento de modo que o ‘cheiro’ do couro não dê pistas de sua proximi-
dade. O vento para o navegante é um combustível; para o vaqueiro, um obstá-
culo. A respeito dos sentidos, foi Dulcimar quem destacou a importância do
olfato e da audição:

O gado sente o cheiro, eu não entendo, é o cheiro da gente que eles pegam. Óia,
se eu tiver nessa posição aqui [seg undo ele, a favor do vento], o gado sente e
corre. Agora, para ele não sentir, a gente tem que ir contra o vento, abaixado,
devagarzinho e desv iando dos paus pra não quebrar e pra não fazer bar ulho,
porque se fizer barulho, o boi também corre.

A visão aguçada, o controle do ar e o silêncio são meios para obter êxito


quando o vaqueiro procura o boi que se esconde. É por essas e outras razões
que os vaqueiros reduzem as ações do boi em algum momento atingindo-o
justamente nos olhos. Se capturado, vendam-lhe os olhos com a ‘careta’, tipo
de máscara feita de couro.
Segundo meus interlocutores, vendar os olhos é uma forma de ‘dominar’,
mas também de jogar com o animal. A venda é uma das vantagens que os ca-
valeiros têm em relação à ‘presa’. Embora o corpo do cavaleiro esteja devida-
mente protegido pela indumentária (couro que transmite ‘cheiro’), seus olhos
estão totalmente descobertos (e por isso, é claro, ele vem a ‘descobrir’ o que
está à sua frente). Ao passo que a visão é potencializada, os olhos, contudo, se
tornam a superfície mais vulnerável, pois facilmente atingida por algum espi-
nho, por uma ponta de galho, pela caatinga cortante e tortuosa.
Nessas circunstâncias, é comum vaqueiros ficarem cegos. Dois vaqueiros
de Floresta, Quinca Pedro e Dulcimar de Canãa, perderam a visão ‘campeando’.
O primeiro ficou cego de um olho, mas persistiu por um algum tempo. Ao ficar
cego do outro, o ‘rei dos vaqueiros’ – como ainda é conhecido o finado Quinca
Pedro – abandonou definitivamente a ‘profissão’. Sua história, no entanto, per-
manece. Biografias foram escritas sobre ele (Ferraz, 2004), e missas ainda são
celebradas em sua homenagem.
velejar e descobrir: considerações sobre vaqueiros, corpos e lembranças

944

Figura 4
Boi ‘encaretado’; ‘pega de boi’ na
Fazenda São Pedro (Floresta-PE)
fevereiro, 2016
foto do autor
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O segundo vaqueiro, Dulcimar, no momento em que o conheci, tinha


perfurado o olho esquerdo, e, embora estivesse parcialmente recuperado, já
não suportava o sol. A visão impotente e afetada pela claridade fez do ‘campo’
e das ‘vaquejadas’ práticas cada vez menos frequentes em seu cotidiano. O
vaqueiro, porém, deixou sua marca. Na Serra Negra, onde a caatinga é ‘braba’
e a mata é fechada, Dulcimar pegou um boi ‘afamado’ e ‘valente’, Marroeiro, o
animal que lhe concedeu ‘fama’ e ‘prestígio’.
Em virtude da memória, a percepção enfraquecida, a anulação do corpo
e a consequente desatenção à vida são situações que vaqueiro nenhum deseja.
Para meus interlocutores, o cavaleiro cego é praticamente a morte; porém, em-
bora a cegueira e a morte levem à anulação de uma prática, elas não trazem o
seu esquecimento. Para não ser esquecidos e anulados, o objetivo dos vaqueiros
passa a ser exatamente a construção da memória. Quanto mais experiente e
vivido o vaqueiro, mais ‘história’ carregará consigo e provavelmente dele se
artigo | renan martins pereira

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falará e se lembrará. Daí a importância de ‘vaqueiros velhos’ e ‘antigos’. Daí,


enfim, a importância do corpo, dos animais e do território no processo de cons-
trução da memória, do ‘prestígio’ e da reputação dos homens.
Mas, afinal, que memória é essa que os vaqueiros buscam a todo instan-
te recorrer e reconstituir de modo a garantir o seu ‘prestígio’? A seguir, analiso
o modo como o ‘conhecimento’ e a ‘experiência’ dos vaqueiros extrapolam o
campo conceitual da antropologia e das ciências sociais no que se refere à
memória e às categorias a ela adjacentes.

Ciência do vaqueiro
Os relatos trazidos por Cláudio Correia neste artigo seguem o propósito de
conservar uma verdade histórica. Do fenômeno narrado surge, por exemplo,
um conselho. Ele reelabora um momento pretérito e transmite uma verdade
aos seus ouvintes. Concluindo definitivamente a sua narrativa, disse-me: “Tu-
do isso que eu te contei, meu amigo, é a ‘ciência do vaqueiro’!”.
Sabe-se bem que a memória é um objeto de conhecimento complexo e
controverso no campo das ciências humanas e sociais. Ela envolve um debate
interdisciplinar, associando-se, portanto, a diversos conceitos, termos e temá-
ticas. Sob a clássica perspectiva dos “quadros sociais da memória”, a sociologia
francesa buscou dar conta de uma “memória coletiva”, diretamente conectada
às noções de sociedade e Estado-nação (Halbwacks, 1994, 1997). Na historiogra-
fia, a memória recebeu interpretações e relativizações variadas da noção de
“tempo histórico”. Nessa linha, as teses produzidas na Escola dos Anais são
célebres no que diz respeito aos métodos para lidar com a memória coletiva
(Bloch, 1925) e a sua relação com a história (Le Goff, 2003). Preocupados mais
com os processos de memorização do que necessariamente com os conteúdos
da memória, o historiador Pierre Nora e o filósofo Paul Ricouer propuseram
conceitos importantes para o debate. O primeiro se concentra na categoria de
“lugares de memória”, a fim de entender por meio dela as representações ma-
teriais e imateriais do espaço na memória coletiva (Nora, 1989). O segundo
propõe o conceito de “memória justa”, segundo o princípio de que recordar é
em si mesmo um ato relacional, uma forma de alteridade (Ricoeur, 2000). No
que se refere à relação entre memória e alteridade, Fabian (2013) sugere que,
se os estudos a respeito da memória social no campo da história se debruçam
sobre o passado, a função da antropologia é lidar com as comunidades no pre-
sente, tomando o passado não como uma totalidade em si, mas um conjunto
de temporalidades e espacialidades culturalmente definidas. É em torno do
debate de como as sociedades lembram, esquecem e recompõem o seu passa-
do (Douglas, 1986; Connerton, 1989) que os pós-colonialistas e os pós-modernos,
no contexto de uma disputa epistemológica nos anos 1980 entre memórias
oficiais e memórias subalternas (Pollak, 1989), buscaram analisar como a his-
tória é mobilizada na vida cotidiana e, ademais, quais os limites do passado
velejar e descobrir: considerações sobre vaqueiros, corpos e lembranças

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como recurso para a produção da memória (Appadurai, 1981). Entretanto, de-


vido à profusão terminológica e semântica da noção e aos seus usos nos mais
diferentes eixos temáticos e perspectivas de análise nas ciências humanas,
Berliner (2005) sugere que a memória é frequentemente confundida com os
objetos, os conceitos e as temáticas a ela correlatos, entre eles, principalmen-
te: sociedade, cultura e identidade.
Este artigo trata de uma memória que dê conta especificamente das
relações dos vaqueiros com o corpo e, mais ainda, da interespecificidade entre
humanos e animais, pois o ‘vaqueiro de verdade’ só constrói memória e pode
conquistar o seu devido ‘prestígio’ se as ‘histórias’ contadas por ele derem aos
ouvintes um conjunto de gestos e imagens em que homens, animais e caatin-
gas estejam entrelaçados.
Para Walter Benjamin (1987: 198), por exemplo, a “arte de narrar” é “a
faculdade de intercambiar experiências”. Nesse sentido, os ‘vaqueiros de ver-
dade’ podem ser pensados, nesse caso, como sábios narradores cujas funções
são as de compartilhar o que viveram para transmitir, segundo Joana Medrado
(2012: 159) em seu estudo sobre os vaqueiros na Bahia, “os valores que as his-
tórias veiculam”. Ainda segundo Benjamim (1987: 200), a experiência vivida e
narrada resulta sempre “num ensinamento moral, numa sugestão prática, num
provérbio ou numa norma de vida”. Tendo eficiência, preparo e disciplina (não
levar comida e bebida para o ‘campo’, por exemplo), o vaqueiro expõe a sua
sabedoria. Mas se a sabedoria é “o lado épico da verdade”, como quer Benjamin
(1987: 200), o que há de épico nas ‘histórias de vaqueiro’ está justamente na
conjunção da ‘experiência’ com o ‘conhecimento’, no que Cláudio nomeou ‘ci-
ência do vaqueiro’.
Mas essa conjunção ‘experiência-conhecimento’ como ‘ciência do va-
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queiro’ não é sinônimo de erudição ou de objetividade. Por essa via, a ‘ciência


do vaqueiro’ está longe de estabilizar saberes e leis que normatizem os fatos
– além de transmitir conselhos, ensina aos ouvintes o que o cavaleiro sabe, o
que pratica e como o pratica. Não está em jogo, portanto, somente compartilhar
conhecimentos e experiências, mas também expor uma forma específica de
sabedoria.
Ao modo da métis grega, sugiro que a ‘ciência do vaqueiro’ é o efeito de
“formas de inteligência astuciosa” (Détienne & Vernant, 2008: 21). Para os auto-
res, o homem dotado de métis “está sempre prestes a saltar [...] ao agir no
tempo de um relâmpago”.

Isto não quer dizer que ele cede, como fazem comumente os heróis homéricos,
a um impulso súbito. Ao contrário, sua métis soube pacientemente esperar que
se produzisse a ocasião esperada. Mesmo quando ela procede de um impulso
brusco, a obra da métis situa-se nos antípodas da impulsividade. A métis é rápida,
pronta como a ocasião que ela deve apreender no voo, sem deixá-la passar [...].
Em vez de f lutuar lá e cá ao sabor das circunstâncias, ela ancora profundamen-
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te o espír ito no projeto que ela maquinou antes, g raças a sua capacidade de
prever, além do presente imediato, um pedaço mais ou menos espesso do futuro
(Détienne & Vernant, 2008: 21-22).

As práticas dos vaqueiros se assemelhariam nesse sentido às atividades


do artesão grego e do guerreiro homérico. Como abordado por Détienne e Ver-
nant, as formas de conhecimento desses oficiais clássicos não são objetivas,
mas processuais, concretizando-se concomitantemente à transformação da
experiência vivida.
Como vimos na narrativa de Cláudio Correia, o saldo das ações do cava-
leiro provém da minimização dos erros e, sobretudo, da prudência frente aos
imprevistos. Para Detiénne e Vernant (2008: 17), “a capacidade inteligente que a
métis designa se exerce sobre os planos mais diversos, mas sempre onde o acen-
to é posto sobre a eficácia prática, a procura do êxito em um domínio da ação”.
Por conta da imprevisibilidade e dos domínios acionados, algo se supõe à custa
do que se aprendeu em vias de antecipar o futuro pela memória. Em face da na-
tureza intempestiva dos acontecimentos, a ‘ciência do vaqueiro’ não se articula
por códigos e regras, e os narradores não darão a seus ouvintes uma sequência
ordenada (e cronológica) de fatos sociais. Em suas epopeias, o vaqueiro é um
memorialista, e sua ‘ciência’ funciona segundo a conservação e a acumulação do
passado no presente. A ‘ciência do vaqueiro’ pode ser, portanto, uma sabedoria
que gera conselhos (Benjamin, 1987), um tipo de inteligência astuciosa (Détien-
ne & Vernant, 2008) e, ao mesmo tempo, uma forma muito específica de memó-
ria. Pela materialidade da “memória”, segundo o filósofo Henri Bergson (2009: 5),
os homens se ocupam “do que existe e do que vai existir”.
Ora, como vimos até agora, as ‘histórias’ contadas pelos vaqueiros são, por
um lado, prévias do que o cavaleiro é capaz de fazer e, por outro, uma análise de
suas ações frente às incertezas do tempo. Suas narrativas reconstroem os fenô-
menos passados à medida que os desenrolam no presente com o intuito de dar
ao narrador a oportunidade de contar o que realmente sabe. Parafraseando Jean-
Pierre Vernant (1978: 45), “bom dizedor de casos porque bom fazedor de feitos”.
Não se trata, contudo, de viver para lembrar e de lembrar para narrar. Se
as relações dos vaqueiros com o corpo, os animais e a caatinga se entrelaçam
de maneira contínua em seus relatos é porque os vaqueiros buscam constan-
temente produzir memória a fim de evitar o esquecimento e, ademais, para
conquistar ‘prestígio’ e reputação. Eternizadas, porém, as lembranças extrava-
sam o corpo de quem as carrega. Elas necessitam se expandir e correr no mun-
do. Cravam-se em outros corpos, nos animais, nas folhas, na terra, no tronco
das árvores, nos homens, nos couros que os revestem. Com os ‘rastros’ deixados
no tempo e no espaço, o vaqueiro do sertão edifica a sua verdade histórica.
velejar e descobrir: considerações sobre vaqueiros, corpos e lembranças

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Considerações Finais
Neste artigo, desenvolvi uma correlação temática pouco explorada na literatu-
ra antropológica sobre os sertões do Nordeste, a saber: corpo, memória e rela-
ção humano/animal. Primeiramente, demonstrei que a reputação do vaqueiro
é resultado de relações particulares com o ‘sofrimento’, os animais e a caatin-
ga. Em seguida, com o objetivo de analisar a natureza dessas relações na prá-
tica da ‘pega de boi’, empenhei-me para entendê-las segundo os conteúdos da
narrativa de um interlocutor reconhecido em Floresta como ‘vaqueiro de ver-
dade’. Nos relatos desse vaqueiro, homens e animais estão propensos a tomar
ritmos diferentes na corrida. Como vimos, o ato de ‘velejar’ não é apenas pro-
curar o que se esconde, mas ganhar velocidade e, por conseguinte, transformar-
-se na ‘carreira’, substituindo a vagarosidade, a procura e a atenção por acele-
ração, fuga e colisão. No ato de ‘velejar’, dá-se mais energia aos olhos e à bus-
ca do boi. Na ‘carreira’, por sua vez, a fuga do boi põe os corpos em disputa.
Concluo que se na corrida o vaqueiro arrisca a própria vida é porque as
‘pegas de boi’ são espaços privilegiados de atualização e construção da memó-
ria. Nos limites de seu ofício (como a cegueira e a anulação do corpo), median-
te a produção da memória o vaqueiro constrói para si um modo de vida carac-
terizado pelo ‘sofrimento’ e pela ‘honra’ (o compromisso com o cliente, consi-
go mesmo, com o parceiro e com o cavalo), mas também pela ‘agilidade’, pelo
‘conhecimento’ e pela ‘experiência’. Nesse sentido, a disposição dos corpos no
território e os rumos traçados pelo cavaleiro, como entendi, não são a conse-
quência de meras escolhas, equacionados por uma relação de causa e efeito,
mas fruto de uma forma particular de inteligência − a ‘ciência do vaqueiro’.
Por fim, sugiro nesta conclusão que o vaqueiro não é apenas uma imagem
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que se perpetua no tempo, uma tradição, um resquício histórico. Mais especi-


ficamente, o vaqueiro do sertão é uma memória cujo poder está na ação e na
transformação do corpo. Primeiro, vimos que o cavaleiro se move, corre atrás
de um boi e se arrisca na caatinga. Depois, vimos que a sua faculdade de recor-
dar o torna um memorialista (aquele que lembra, narra e registra os próprios
feitos). Agora, vê-se que a possibilidade de ser recordado o transforma em mo-
numento (aquele de quem se lembra, fala e escreve).

Recebido em 20/12/2018 | Revisto em 17/9/2019 | Aprovado em 1/10/2019


artigo | renan martins pereira

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Renan Martins Pereira é mestre pelo PPGAS/UFSCar e atualmente


doutorando no mesmo programa (bolsista Capes), com estágio de
doutorado sanduíche na UC Davis. Pesquisador integrado ao Hybris
(Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos,
Socialidades) e ao NuAP (Núcleo de Antropologia da Política).
Realiza pesquisa de campo no sertão de Pernambuco desde 2016.
Seus principais temas são memória, ecologia, relação humano/
animal e teoria antropológica; e as principais publicações,
“Dominação e confiança: vaqueiros e animais nas pegas de boi
do sertão de Pernambuco”; “Cavaleiros em tempos de glória:
uma análise etnográfica da história do vaqueiro do Nordeste”;
“O sertão, a seca e o fim”.
velejar e descobrir: considerações sobre vaqueiros, corpos e lembranças

950

Notas
1 Agradeço primeiramente aos meus amigos e às minhas
amigas sertanejas que tão bem me acolheram em Flores-
ta. Este artigo é dedicado a eles/as – uma pena que a pan-
demia tenha nos afastado fisicamente, por ora. Agradeço
as leituras atentas e generosas de Jorge Villela e Ana Clau-
dia Marques de suas primeiras versões, assim como aos
colegas do Hybr is, g rupo de pesquisa (UFSCar/USP) em
que pude compartilhar algumas das primeiras ideias que
aqui se encontram. Também não poderia deixar de agra-
decer aos debatedores do GT “Práticas Esportivas e Cor-
poralidades” Carlos Eduardo Costa e Yasmine Ávila Ramos,
que contribuíram com críticas e sugestões pertinentes à
versão prototípica deste artigo quando de sua apresenta-
ção no IV Seminário de Antropologia da UFSCar em 2017.
Agradeço ainda aos pareceristas anônimos pelos comen-
tários, críticas e sugestões, assim como à equipe editorial
da revista Sociologia & Antropologia por todo o suporte téc-
nico. Por fim, agradeço à Capes pelo financiamento.
2 Termos entre aspas simples correspondem a expressões
nativas. Frases entre aspas duplas representam transcri-
ções diretas da fala nativa e citações de autores acompa-
nhadas de referência bibliográfica.
3 O município de Floresta está localizado sertão de Pernam-
buco, mais especificamente, na mesorregião do São Fran-
cisco e na microrregião do sertão de Itaparica, distante
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439km da capital do estado, Recife. Segundo dados de 2016


do IBGE, sua população estimada é de 32.152 habitantes.
4 Os recursos metodológicos utilizados no trabalho de cam-
po para coleta de dados (entre eles, em grande parte, nar-
rativas e histórias contados por ‘vaqueiros de verdade’)
foram os mais variados: anotações no caderno de campo,
mas sobretudo e preferencialmente mater ial de áudio
(com gravador) e de audiovisual (com câmera fotográfica
digital). Não cabe aqui neste artigo, por falta de espaço e
por não ser seu objetivo, desenvolver um debate sobre o
assunto, contudo ficam como referência bibliográfica al-
guns trabalhos que elaboram metodologicamente discus-
sões específicas no campo da antropologia visual (Collier,
1973; Rouch, 2003; Sztutman, 2005), parte deles mobili-
zando uma relação entre memória e imagem (Koury, 2001;
artigo | renan martins pereira

951

Severi, 2010), a partir de intermediação de pesquisador,


câmera e objeto na escrita etnográfica.
5 ‘Mato’, especificamente nesse contexto, refere-se à área
de caatinga, longe da ‘morada’, do quintal, das cercas (cur-
rais e mangas). Em outros casos, ‘mato’ se opõe também
à ‘rua’, nome que se dá à zona urbana.
6 Entre os trabalhos no campo das ciências sociais que se
preocuparam detidamente com a prática da vaquejada,
ver, por exemplo, Costa (2002), Barbosa (2006), Aires
(2008), Menezes e Almeida (2008), Félix e Alencar (2011),
Pereira (2016). Deles, Costa (2002), Aires (2008) e Pereira
(2016) são as únicas abordagens antropológicas.
7 A partir de temáticas e eixos analíticos distintos, a relação
de vaqueiros e “cr iadores” com os animais nos sertões
tem sido abordada por Andr iolli (2011), Teixeira (2014),
Vasques (2016) e Pereira (2016, 2017).
8 De modo geral, ‘cr iadores’ são pessoas que cr iam gado
caprino, ovino, bovino ou equino na região. Entre os ani-
mais, as diferenças básicas consistem em quatro termos
convencionais: ‘criação’ (rebanho de caprinos e ovinos),
‘cr iatór io de gado’ (rebanho de gado bovino), ‘animais’
(sempre o gado equino) e ‘criatório’ (totalidade do rebanho
de uma propriedade).
9 O conceito de “agenciamento coletivo” proposto por De-
leuze e Guattari (2008) é interessante para avançar ana-
liticamente no que se refere às relações do par vaqueiro-
cavalo que compartilha territorialmente certas técnicas,
signos e domínios em direção a um terceiro agente, o
gado. No sentido conferido pelos autores, “agenciamento
coletivo” é uma relação entre “formas de conteúdo” e “for-
mas de expressão”, um acoplamento entre uma materia-
lidade específica e um regime de signos agenciados por
humanos e não humanos.

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vaqueiros, corpos e lembranças
Resumo Palavras-chave
Neste artigo, meu objetivo é analisar a produção de ‘pres- Vaqueiro;
tígio’, reputação e memória entre vaqueiros do sertão de narrativa;
Pernambuco a partir de suas relações com o corpo, os ani- corpo;
mais e o território. Para tanto, demonstro que a exaltação memória;
de uma vida de sacrifícios e as tarefas concernentes ao animais.
ofício do vaqueiro resultam de diversas de suas práticas e
de seus conhecimentos, mas também de sua habilidade
retórica de narrar e reconstruir acontecimentos passados.
Nas práticas denominadas ‘pega de boi’, vaqueiros, animais
e caatingas surgem como seres em disputa, buscando triun-
far uns em relação aos outros. Para analisar essas práticas,
o material etnográfico ao qual recorro são narrativas de
um ‘vaqueiro velho’ cuja particularidade no modo de con-
feccionar oralmente as suas experiências passadas expres-
sa de uma só vez a importância do corpo, da memória e
dos animais no cotidiano dos vaqueiros.

Sailing and Discovering: Considerations about


cowboys, bodies and memories
Abstract Keywords
In this article, my objective is to analyze the production of Cowboy;
prestige, reputation and memory among cowboys of the narrative;
sertão of Pernambuco, focusing in their relations with body, body;
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 931 – 956 , set. – dez., 2020

animals and territory. I demonstrate that the exaltation of memory;


a life of sacrifice and the tasks concerning the cowboy’s animals.
craft result from several of his practices and knowledges,
but also from his rhetorical ability to narrate and to recon-
struct past events. In the practices known as pegas de boi,
cowboys, animals and the native vegetation (caatinga) ap-
pear as beings in dispute, seeking to triumph over each
other. In order to analyze these practices, the ethnograph-
ic material to which I refer are narratives of an old cowboy
whose particularity in the way of making orally his past
experiences expresses at once the importance of body,
memory and animals in the daily life of the cowboys.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v1038

1 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Instituto de Filosofia e


Ciências Humanas, Campinas, SP, Brasil
bernardofmachado@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-8884-2357

Bernardo Fonseca Machado I

Social experience and US musical theatre


on São Paulo’s stages 1

Since the turn of the millennium, shows originating on Broadway, New York,
have begun to be produced in many different cities around the world. During
the 1980s and 1990s, American entrepreneurs developed strategies for selling
theatrical works in cities of various nations (Machado, 2018). These producers
elaborated a procedure for selling the rights to Broadway shows to other coun-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 957 – 980 , sep. – dec., 2020

tries: they started to offer the rights to musicals for purchase by foreign com-
panies via a rights licensing agency, Music Theatre International (MTI) (Gamer-
man, 2010).
Brazil was one of the countries that invested in these productions. Par-
ticularly in the São Paulo theatre scene at the start of the new century, a series
of indicators demonstrates the vigour of this enterprise: the number of shows,
the size of audiences, the financial sums generated, and the construction of
new buildings. For example, there were three versions of Broadway shows be-
tween 1950 and 1969, four between 1970 and 1979, rising to seven between 1980
and 1989, and the same number between 1990 and 1999. In the decade from
2000 to 2009, the conditions for producing musicals changed and the shows
rose to 20 and, finally, between 2010 and 2016, jumped to 48 (Cardoso, Fernandes
& Cardoso Filho, 2016).
The data from the last few years reveals how the public embraced these
musicals with particular enthusiasm. In 2001, Les misérables attracted 350,000
theatregoers over the 11 months it was running. More recently, between 2013
social experience and us musical theatre on são paulo’s stages 

958

and 2014, The lion king sold 800,000 tickets over its almost 20-month run (Cardoso,
Fernandes & Cardoso Filho, 2016; Brasil, 2014). The volume of money needed to
produce each show is also remarkable. Time 4 Fun, one of the main companies
specializing in the area, made use of the tax breaks provided by the Rouanet
Law to stage 15 musicals between 2001 and 2016. The cheapest, Sweet Charity
(2006), spent R$ 1,446,245 (equivalent to US$ 683,642.16 at the time) and the
most expensive, The lion king (2013-2014), received funds of R$ 28,112,570 (equiv-
alent to US$ 11,933,343.24 at the time). 2 As a parameter for these budgets, the
Theatre Promotion Law of São Paulo municipality ( “Lei de Fomento ao Teatro”
created in 2002 to finance theatre in the city) allocated R$ 15,894,042 in funding
(or US$ 6,810,370.21) in 2013 to be distributed among 30 theatre projects.
Furthermore, in the space of a little over 15 years, between 2001 and
2016, seven new theatres were built to stage these productions. The smallest
– the Teatro Net São Paulo, opened in 2014 with 508 paying seats. The largest –
the former Teatro Abril, now the Teatro Renault –, reformed in 2001 specially
to put on large musicals, can accommodate up to 1500 spectators. By way of
comparison, less than 5% of theatre spaces in São Paulo, as of 2004, were able
to receive more than 1000 people and less than 15% possessed more than 500
seats (Machado, 2012; Almeida Júnior, 2007).
While the twenty-first century is impressive for its entrepreneurial en-
ergy, Brazilian producers and artists were already dedicating themselves to the
genre in the 1960s, 1970s and 1980s. At the time, musicals were sporadic, how-
ever, and there was no regular training of groups of artists specifically for this
kind of theatrical production. The process involved in staging a show varied
greatly: the type of financing depended on the abilities of the producer respon-
sible and Brazilian actors lacked the technical skills in singing and dancing to
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 957 – 980 , sep. – dec., 2020

perform the musical numbers adequately. In the 1980s, there was a small shift:
pedagogical institutions began to teach repertoires from these musicals to teen-
agers and adults. But it was only in the final years of the 1990s that the envi-
ronment changed. The condition for national theatre productions was altered
with the advent of a new Cultural Incentive Law (the controversial Rouanet
Law). In 2001, São Paulo witnessed the convergence of these previously diffuse
factors. A Broadway production called Les misérables inaugurated the reform of
the Teatro Abril in the city centre. The aspirations of artists and producers,
while scattered in small projects before, now seemed to encounter a strongly
directed formula for work. In the years that followed, the show came to be
considered a landmark for the recent history of musicals in Brazil. After then,
the scene developed rapidly. The number of productions swelled and there was
a specialization of professionals from the area.
My intention is not to sketch a complete panorama of the shows pro-
duced in this period. For this, I suggest the book by the actor Gerson Steves
(2015) – which lists the main musicals produced in the country – and the article
article | bernardo fonseca machado

959

by Cardoso, Fernandes, and Cardoso-Filho (2016) – which provides for a brief


historical overview based primarily on quantitative data. It is worth emphasiz-
ing that the history of musical theatre production in Brazil is not limited to US
examples, much the opposite. From the nineteenth century to the mid-twen-
tieth, for example, the spotlights witnessed the vitality of review theatre (Ven-
eziano, 1991; Lopes, 1999; Gomes, 2004) and many musical shows played a key
role in artistic and political resistance during the period of military dictatorship
(Marques, 2014).
This text scrutinizes a selection of these musical theatre productions:
it takes as its subject the Brazilian versions of US originals and investigates
the essential lines of tension that explain the abundant recent production of
these shows in the São Paulo capital. As well as dialoguing with the literature
on the topic, I have also turned to primary sources. Using online document
research tools, I consulted news items and reports published in the Folha de S.
Paulo and O Estado de São Paulo newspapers between 1980 and 2015. Also instru-
mental were the lengthy conversations recorded by the journalist Tania Car-
valho (2008, 2009) with artists working in the area. In addition, I interviewed
37 professionals from the sector – actors, directors, producers, and journalists
– paying close attention to the histories and memories that they recounted. I
was present at events organized to discuss or celebrate the musical theatrical
productions and I enrolled as a student on a theory workshop on the history
of the topic. Finally, I turned to the Federal Government’s official data on the
amounts spent in the sector under the provisions of the Rouanet Law. Having
obtained the documents and materials, I selected some aspects, checked facts,
and sought to contrast opinions and trajectories.
This work seeks to offer a contribution to studies in anthropology and
sociology that have been investigating the relations between theatrical prac-
tices and social experiences (Arruda, 2001; Pontes, 2010; Sarlo, 2010; Charle,
2012; Krüger, 2008; Machado, 2012, 2018; Romeo, 2016). I am interested in de-
scribing how particular agents orchestrate multiple procedures and ambitions
in organizing this unique setting. I seek to identify how these subjects mutu-
ally position themselves in this diverse theatrical environment. I characterize
the desires and choices, and develop a line of argument that aims to render
intelligible the multiple events that unfolded.

Sporadic productions, desires in syntony
During the economic and political hangover endured by Brazil in the 1960s,
some Broadway musical productions made a small appearance on São Paulo’s
stages. At the time, they depended on the enterprise of ambitious independent
producers like Victor Berbara. 3
Born in 1928 to a Lebanese father and a Portuguese mother, Berbara
trained as a psychologist at Columbia University and began his career in the
social experience and us musical theatre on são paulo’s stages 

960

1940s as a producer of communication programs. He worked in large advertis-


ing agencies, on National radio, and for TV Globo in its early years. Highly active
and restless, in 1959 the young man decided to try his luck as a theatre director.
Little did he know that the first Broadway musical in Brazil would be staged by
him. At the time, an American producer had decided to expand presentations
of My fair lady 4 to Mexico, Argentina, and Brazil. Berbara received the invitation
and, months later, embarked for the capital of Mexico. There the “gringo” team
would teach them the procedures needed to put on the show.
As the person responsible for funding the musical in Rio, Victor did not
want to fund the investment entirely with his own money. The producer there-
fore sought partners willing to invest capital and cover the initial costs: in
exchange, they would receive a portion of the profits – each would own 25% of
the show. “I never regretted it,” he declared, “My fair lady was a money-making
machine!” (Carvalho, 2008: 130). The enthusiasm at the premiere was evident
in the report by O Estado de São Paulo, 25 July 1963. My fair lady was announced
as “the first contact of São Paulo’s audiences with a musical comedy, as it is
understood in the United States.” Discussing the topic in retrospect, Berbara
would declare years later: “Never had that type of show been staged in Brazil
before then. There was the opera experience: static scenes in three or four acts.
In My fair lady, the scenery changed, even moving about during the scene” (Car-
valho, 2008: 137).
In the following years, other musicals of Anglo-Saxon origin would hit
the stages and fill the stalls: Hello Dolly (1966), Hair (1969); Fiddler on the roof
(1971); Man of La Mancha (1972); Jesus Christ Superstar (1972); Godspell (1974); Pippin
(1974); Rocky horror show (1975), and Evita (1983). Despite the diversity of their
plots, the varied forms of staging, and the settings depicted, the shows had
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 957 – 980 , sep. – dec., 2020

some elements in common: the Broadway origin and the aura of foreign glamour.
Even so, the experiences were intermittent and depended on the indi-
vidual desire and autonomy of producers like Berbara. They were far from a
world of systematic regularity and specialized professionals. Furthermore, the
cast brought its own issues. The producer of My fair lady himself hesitated over
casting the actress for the main role. One of the candidates was Tônia Carrero,
who, at the height of her beauty and fame, “lacked the humility to accept that
she could not sing. She thought that with a few lessons she would get there,
but she wouldn’t, I’m sure” (Carvalho, 2008: 131). 5 The other candidate was Bibi
Ferreira. Concerning her, Berbara explained: “I didn’t think she was right for
the part; it was complicated. The person had to be a singer and Bibi isn’t; the
actress must have a lot of charisma, which Bibi doesn’t. She was always about
technique” (Carvalho, 2008: 131). The role had been obtained due to the lobby-
ing of Bibi’s mother, who insisted on her daughter being hired.
In the 1980s, a new set of agents joined the scene. Walter Clark, also
coming from the TV networks, debuted as a theatre producer on the stages of
article | bernardo fonseca machado

961

Sérgio Cardoso with the show Chorus line. 6 Born in 1936, he became the artistic
director of Globo in 1965 at the indication of Berbara himself, his friend. Clark
would remain in the post until 1977 when he fell out with the patriarch of the
Marinho family, Globo’s owners. His experiments with theatre began after this
television phase.
To pay for the costly undertaking, budgeted at 300 million cruzeiros, 7 he
dreamt up a share system: he made 44 shares available for purchase by anyone
interested. Each person would obtain a return, corresponding to the portion of
shares purchased, from the revenue generated at the ticket office. 8 Chorus line
became a success and was decisive for the career of one actress in particular:
Claudia Raia. A native of Campinas, in 1966 her artistic career would take off.
Ever since a girl she had dedicated herself to becoming a performing artist. Her
mother, owner of a ballet school, ensured she enrolled for classical ballet. At
the age of 13, she went to live in New York alone and studied at dance schools
for a year and a half.
Raia joined the cast of the show produced by Walter Clark when she was
16. Figures from Globo invited by the producer were enchanted by the young
woman and asked her to work at the broadcaster. In the following years, she
exploded onto the scene as an actress playing the prostitute Ninon in the soap
opera Roque santeiro (1985) and would star in her first pocket show – Essas noites
assim (1987) – in a nightclub in Ipanema. At the time, Raia lamented the absence
in Brazil of “a school of art where any artist can learn everything they want and
discover themselves” (Cavalcanti, 1987).
In fact, such complaints about the absence of technical teaching were
far from unique. In 1989, the director Jorge Takla also expressed his dissatisfac-
tion. Born in 1951, and trained at the School of Fine Arts and the National
Conservatory of Dramatic Art, in Paris, he was explicit about how, at the end
of the 1980s, Brazilian actors were unprepared: “No actor is ready to handle a
musical like this” (Pimenta, 1989: D1). He was referring to Cabaret (1989), a show
set during the period of the Nazi rise to power in Germany. To solve the problem,
before official rehearsals began, the director scheduled a “pre-rehearsal” phase
just for improving bodily techniques. The O Estado de São Paulo report of 20 May
1989 describes a cast uncertain about singing and dancing skills: “For now, the
master of ceremonies, Sally Bowles and company still get their steps wrong,
look down at the ground when they should look to the sky, and almost break
the boards with the weight of their bodies” (Pimenta, 1989: D1). The observation
reveals the lingering perception of a dearth of technique, first signalled by
Berbara years earlier. Much of the national cast lacked the basic skills for sing-
ing and dancing – at least by US aesthetic standards. 9
Since that time, shows premiered that were either directly linked to
Broadway or inspired by US musicals. At the end of the 1980s and the beginning
of the 1990s, a series of shows were staged whose design, according to a report
social experience and us musical theatre on são paulo’s stages 

962

in the Folha de S. Paulo, was “the most North American possible.” “The intention,”
the journalist alleged, “was to do something along Broadway lines” (Camargo,
1989: E-3). For instance, Claudia Raia’s surname – meaning “line” or “limit” – had
become the epicentre of numerous puns: Não fuja da raia (“Stay on the line,”
1991),  Nas raias da loucura (“On the limits of madness,” 1993) and  Caia na raia
(“Fall in line,” 1996). The shows were stripped down to a simple plot, composed
of musical, choreographic and comic sketches, monopolized by Raia herself
(Oliveira, 1996).
The actress was not alone. A generation born in the 1960s and 1970s
dialogued with references to foreign music. There were, for instance, producers
who ventured to make musicals that freely alluded to Broadway. In Rio de Ja-
neiro, the young Charles Möeller and Claudio Botelho experimented with new
formats. The former was born in Santos (SP), in 1967, and had pursued a career
as an actor from an early age. Botelho, meanwhile, born in 1964, a native of
Araguari (MG). He had trained as an actor but, finding work difficult to come
by, decided to pursue a new profession as a translator and composer. The young
men first met at the start of 1990 and began a long and enduring conversation
about musicals. Their first works merged songs from a variety of shows and by
different composers. Such was the case of Hello Gershwin (1991) and As malvadas
(Bad Girls, 1997) (Carvalho, 2009).
Another fan of musicals, Miguel Falabella was at the time associated
with his involvement in the so-called teatro besteirol (nonsense theatre) of the
1980s, his participations in Globo TV soaps, and his work as a playwright (Caste-
lo, 1995; Gama, 1998; Wasilewski, 2008). Born in São Cristóvão, in Rio de Janeiro’s
North Zone, in 1956, he had a short experience with a musical show in 1994. In
Falabella canta Disney (“Falabella sings Disney”), the author inaugurated the Café
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 957 – 980 , sep. – dec., 2020

do Teatro in the Gávea Shopping Mall in Rio de Janeiro. The show’s director said
on the occasion: “It was two exhausting months of rehearsals since nobody
there was used to singing” (Dias, 1994).
A set of people who shared foreign aspirations thus started to become
involved, little by little, in the performance of musical works either directly
informed by shows produced for Times Square or filled with allusions to Broad-
way. These figures – who cultivated the theatrical terrain and learned about
Broadway’s artistic conventions – were fundamental to enabling shows origi-
nally from New York to be systematically staged in São Paulo from the 2000s
onward. But before proceeding further, other important elements of this scene
need to be described.

Pedagogical paths
The 1980s also witnessed the beginning of an unprecedented pedagogical en-
vironment. As well as teaching vocabulary and grammar, the English language
school Cultura Inglesa started to offer classes in Musical Theatre to adult stu-
article | bernardo fonseca machado

963

dents. Founded in 1935 by the British consulate, in 1979 the institution decided
to experiment with staging a musical show in English with students from the
choir. The experiment proved something of a success. Since then, more than
40 works have been performed.
The initial idea behind the school’s project had not been to provide pro-
fessional training to aspiring actors. Nevertheless, during the 1990s the estab-
lishment became “a hothouse for people who wanted to make musicals but had
nowhere to go. Because there were no courses, there was no scene,” as former
student Daniel Salve pointed out. A native of São Paulo, Salve was born in 1976
and debuted on stage at the age of 15 in professional shows for children. When
he first learnt about the institution’s course for musicals he thought little of
the idea: “Just imagine, I’m a professional. Audition for an amateur production?
I turned up and was enchanted. I went, took the audition, and passed! Cultura
Inglesa was a school,” he declared.
Enrolled students, the sons and daughters of liberal professionals and
public workers, generally came from the same social background: most of them
studied at private schools in São Paulo city and shared a taste for pop music.
In the environment provided by the foreign language course, these similar in-
terests converged and, over the next few years, fertilized the city’s stages with
musicals referring to Broadway. Here the friendship between Daniel Salve and
Rodrigo Pitta provides a perfect example. The young men first met in 1992 and,
in the years that followed, worked together on seven shows put on by Cultura
Inglesa. In 1997, they decided to travel together to New York: Pitta spent eight
months studying Musical Theatre Direction at the American Music and Drama
Academy (AMDA), 10 while Daniel, between singing and dancing classes, found
time to audition for the musical Rent. 11
After more than a year, the friends returned to Brazil in 1998 and decided
to premiere the show Pocket Broadway in the Studium theatre in Rui Barbosa Street,
São Paulo. Open from Friday to Sunday, the show was described as “a mix of
various musicals performed on Broadway, including The phantom of the Opera, Les
misérables, Grease, Hair and The lion king” (Pocket Broadway, 1998: D2). The produc-
tion was a success according to the new artists. The musical closed after running
for almost a year and achieved a total audience of around 20,000 (Rocha, 2000).
The following year, 1999, Salve obtained the desired role in the Brazilian
version of Rent – to be described later. The investment in time and money, as
well as the experience at Cultura Inglesa and his studies in New York, led to
him being selected from around 900 candidates. On the occasion, the producer
responsible explained in a report published in O Estado de São Paulo: “This is
definitely not a show for amateurs […] It’s impossible for actors who don’t know
how to sing, you can’t bluff it” (Gama, 1999b). Unlike the technical difficulties
faced by casts in previous decades, younger Brazilian artists managed to find
spaces to learn these skills.
social experience and us musical theatre on são paulo’s stages 

964

In the mainstream media, the publications contributed to circulate the


discourse favourable to Broadway shows. On 20 March 2001, Pitta began work
as a special correspondent for Estadão, reporting as a specialist in US musicals.
Excited, he wrote: “It is incredible how in such a short time it has been possible
to create a real panorama of growth in the fledgling industry of musical produc-
tions in Brazil.” His diagnosis revealed “an activity that, in São Paulo, began in
a small group of theatre studies at Cultura Inglesa […] and today has trans-
formed into a small industry within the cultural scene of the Rio-São Paulo
axis” (Pitta, 2001: D7). The inflated relevance of the school echoed in the young
man’s own trajectory. Ultimately, in his view, former students like himself were
now guiding the city’s theatre scene.
Indeed, another pedagogical venture also emerged from the Cultura In-
glesa school, coordinated this time by the choreographer Maiza Tempesta. With
wide experience as a dancer, she had participated in the 1980s in the musical
Chorus line in both Brazil and New York. In 1997, the institution hired the new
teacher to help stage musicals for adult students. Tempesta, however, was trou-
bled by the absence of courses for young people: “this age group of teenagers
had nowhere to take courses or even any shows to watch, they were stuck in a
vacuum.” The proposal to give musical theatre classes to adolescents emerged
in 1999: The Teen Broadway West End – a name simultaneously referencing the
United States and London. At the hands of Brazilian professionals, the spaces
available for people to experience foreign musicals gradually expanded.
A new generation of young people familiar with the New York refer-
ences was slowly formed. Alongside other initiatives, the pedagogical ventures
proved that, in financial and cultural terms, a change had taken place in the
city of São Paulo. However, the production of major shows vied for a place un-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 957 – 980 , sep. – dec., 2020

der the sun with another aesthetic genre also emerging at the time.

Disputes over the law


The 1990s ended with a different configuration emergent in the theatre world,
both from the viewpoint of the agenda of aesthetic conventions, and in terms
of the cultural policies being implemented.
On one hand, a portion of the artistic field defended the so-called “re-
search theatre,” According to this convention, when staging a show, it was es-
sential to reflect a deep respect for its content (Costa, 2009; Fernandes, 2010;
Machado, 2012). Artists recently graduated from public universities in the mid-
1990s guided a section of the city’s theatrical production. Many groups origi-
nated from this period, including Cia. de Teatro Os Satyros (1989), Parlapatões,
Patifes e Paspalhões (1991), Teatro da Vertigem (1992), Cia. do Latão (1996), and
Cia. da Revista (1997) (Machado, 2012). The search for financial and profes-
sional stability motivated, in large part, these actors, striving to achieve artis-
tically and critically successful productions.
article | bernardo fonseca machado

965

Cultural policies, meanwhile, evolved in tandem with decisions taken


in the federal sphere. Law 8.313/91, known as the Rouanet Law, had become
routine during this period (Gonçalves Dias, 2014). Among its mechanisms was
sponsorship: individuals or entities could support cultural projects whose fi-
nancial amounts and range had to be approved by the Ministry of Culture (MinC).
Each proposal was submitted to the ministry, detailing the budgets, and indi-
cating how the funds obtained through the tax exemptions would be used.
Consequently, the law defined a new relationship between cultural producers,
the public administration, and sponsoring companies. In the first years, between
1992 and 1994, the amount of funds spent was less than 6% of the total of R$
250 million (or US$ 295 million at the time) made available by the State in the
form of fiscal incentives (Weffort & Souza, 1998). It was only after 1995, follow-
ing a wide-ranging reform, 12 that use of the law become more routine.
This exponential increase coincided with the running of the Ministry of
Culture during the first and second mandates of President Fernando Henrique
Cardoso (1995 to 2002). From 1995, by determination of Cardoso himself, the
law was projected as the principal mechanism for funding culture in Brazil. It
would solve the problems diagnosed by the minister, Francisco Weffort: “It must
be recognized […] that we are an ample consumer market for culture and that
the culture we need and cannot produce will have to be imported” (Weffort &
Souza, 1998: 25). The declaration encapsulates the practices that guided cul-
tural policies from 1995 and would continue to inform the minister’s initiatives
until the end of his mandate in 2002.
According to the sociologist Maria Arminda Arruda (2003) in a critical
survey of the policies at the end of the “FHC era,” MinC’s decisions were based
on the premise that the State would only act as a regulator of practices, leaving
the free market to promote economic and cultural development. The tax incen-
tive laws, especially the Rouanet Law, would allow companies to invest in cul-
ture according to their brand interests. The result, Arruda (2003: 181) concludes,
was “a kind of migration of procedures typical of the culture industry and the
advertising market” inside the public sector.
The term “cultural marketing” began to be applied to any action that
used “culture” as a means of communication to publicize the name, product,
or image of a sponsoring company. Following the widespread uptake in the use
of the Rouanet Law, the process of company sponsorship and investment trans-
formed this marketing model into a habitual tool in Brazil (Sá Moreira, 2014;
Gonçalves Dias, 2014). Companies invested in “cultural products” capable of
adding value to their image, selected projects strategically in line with brand
marketing, and created departments responsible for evaluating the sponsorship.
In 1998, Márcio Souza, 13 president of Funarte, had foretold: “Although
group theatre is once again visible, it cannot be forgotten that theatre is also a
commercial activity that needs to reconcile its productions with the logic of
social experience and us musical theatre on são paulo’s stages 

966

the market” (Weffort & Souza, 1998: 207). Even this theatre, he continued, “is a
risky investment,” which is why a law like Rouanet was urgently needed. The
big change took place in 1999 with a Provisional Measure that altered Article
18 of the Rouanet Law and increased the possibility of a 100% reduction of in-
come tax in the case of theatrical arts projects. As a result, the volume of funds
raised exploded. Between 1999 and 2000, for example, the increase was 88%,
jumping from R$ 25,655,375 to R$ 48,389,275 (or US$ 14,340,623.15 to US$
24,746,484.09).
The rapid increase in funding was not met with immediate celebration,
however. Some theatre groups reacted. In May 1999, they published a mani-
festo against the decisions of the Ministry of Culture, opposing in particular
the reform of the law. Calling itself the Movimento Arte contra a Barbárie (Art
Movement Against Barbarism), the group denounced official government pol-
icy and accused it of limiting culture to the commerce of entertainment (Costa
& Carvalho, 2008; Machado, 2012; Romeo, 216). The director Hugo Possolo, a
founder of the Parlapatões group, declared in an interview given to the news-
paper O Estado de São Paulo: “No investment exists to continue the development
of artistic works. On the contrary, what prevails is a policy of events, which
treats theatre and other areas as happening, valued not for their artistic content
but for their publicity potential” (Weiss, 1999: D3). Although the collective of
united artists was “politically heterogenic” and did not advocate any one aes-
thetic project, it brought them together “to fight the common enemy: commer-
cial theatre and the ‘marketing events’” (Romeo, 2016: 62) .
It was into this arena of disputes that the musical Les misérables disem-
barked in the country. We are in 2001 and the producer Corporación Inter-
americana de Entretenimiento (CIE, whose history I describe in the next section)
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 957 – 980 , sep. – dec., 2020

raised R$ 1,331,541 (or US$ 573,841.15 at the time) through tax exemptions
under the Rouanet Law for staging the show in Portuguese. A new phase of
using the law came into force, offering the economic conditions for large US
musicals to arrive in São Paulo. For some of the creators of São Paulo theatre,
Musical Theatre merited a new label: a synonym of commercial theatre, and a
synthesis of “barbarism.” This explains why a section of the performing arts
departments of the public universities of the State of São Paulo have not de-
veloped – at least in recent years – studies of the topic. Many of the generation
of professors employed at the university, and those replacing them, belonged
(or were sympathetic) to the Movimento Arte contra a Barbárie. Academic pro-
duction took a political side: the polarization of “research theatre” versus “com-
mercial theatre,” although already in existence earlier (Ridenti, 2010; Marques,
2014), acquired fresh impetus during this period.
Added to this was the defence of an aesthetic that, in many aspects,
distanced itself from the practices of Musical Theatre. Professor Silvia Fernandes
(2010: 122), from the USP Department of Theatre, argues that “theatre” over
article | bernardo fonseca machado

967

recent decades in São Paulo (and elsewhere) has been “motivated by the desire
to test its limits, stretching the traditional sources of its production to breaking
point”. This was a research aesthetic that aimed to avoid the logic of “repre-
sentation” – that is, it eschewed illusions and fictional plots in favour of the-
atrical actions comprehended as “more real.” This aesthetic agenda, however,
did not match the concerns of the professionals involved in a large portion of
the musicals (McMillin, 2006).
A system of theatrical classification was at work, therefore, based on
people’s taste, located on an interface with the market, and immediately refer-
ring to a specific political stance (Bourdieu, 2007). The effect led to a polarization
through which musicals were defined as direct agents of foreign capital in the
country, complicit with the national “culture industry” itself. The heated escala-
tion with its unpredictable results cooled after the publication in 2002 of the Lei
de Fomento ao Teatro (13.279/02) by the São Paulo City Council (Machado, 2012;
Romeo, 2016). Designed to support the creation and continuation of theatrical
research and production projects, the new law met the demands of the different
groups, reinforcing the tension already existing between them. After 2002, each
theatre sector began to be supported by a separate state mechanism.
To develop the argument, it is necessary to keep in mind how the Roua-
net Law removed the risks to producers interested in musicals. As money pre-
viously allocated to the Federal Revenue, using it for culture generated – in the
eyes of banks and companies – the potential to expand the divulgation of their
brands and using lost funds (otherwise “consumed” by tax payments) in a prof-
itable way. In other words, symbolically significant cultural events were associ-
ated with the company in the agendas of Brazilian metropolises. Theatre pro-
ducers, for their part, saw the law as the possibility to stage expensive musicals,
capable of drawing in the public and generating profit. The future seemed
promising.

Convergences
The dispersed initiatives of the previous decades assumed a more definite
course from 2001. Manipulated by some central figures, the desires, sporadic
in the past, now converged. I turn the spotlight to three specific names: Giuliano
Caterini, Fernando Altério, and the company Corporación Interamericana de
Entretenimiento. Their interests, initially independent, produced a sequence
of theatrical events that eventually synthesized previously diverse economic,
aesthetic, and emotional expectations.
Born in the city La Spezia, in Italy, in 1944, and raised in Argentina, Gi-
uliano Caterini arrived in Brazil in 1964, the year of the military coup. He mar-
ried, had two daughters, and never left the country again. Unknown then in
the São Paulo theatrical world, he adopted a stage name very early on: Billy
Bond. His career began in 1978 as the singer in a punk band. In the next few
social experience and us musical theatre on são paulo’s stages 

968

years, he worked as a producer of records and video clips. At the end of the
1980s, Bond decided to set up a theatrical production company – Black and Red
– and dedicate himself exclusively to direction and to running two theatres:
Jardel Filho and Teatro Brigadeiro, both on Brigadeiro Luís Antônio Avenue in
São Paulo.
During the same period, in the Moema neighbourhood, the entrepreneur
Fernando Altério had invested in building a new theatre: The Palace. Born in
1953, a producer of national and international shows, Altério became a regular
figure in the social columns over the 1990s – he held parties and dinners, an-
nounced contracts with artists, and made news winning a cookery competition.
His business decisions became the most daring at the end of the 1990s, when
construction work began on a theatre on the banks of the Pinheiros river: Credi-
card Hall. An unknown Mexican company appeared as a partner of the project
and promised to change the cultural circuit of the city.
The Corporación Interamericana de Entretenimiento was formed in 1990
in Mexico City. At the outset, it promoted live events solely in the national
capital. By its second year, however, the signing of an agreement with Ticket-
master Corporation – a US ticket sales company – expanded its show business
operations to the whole of Mexico and Latin America. In 1996, the corporation
signed a licensing contract with another conglomerate: Walt Disney Theatrical
Worldwide Inc. Thereafter, CIE was authorized to stage shows from the Disney
portfolio in Latin America, Spain, and Portugal. The first production would be
La bella y la bestia (“Beauty and the beast”), which premiered in Mexico City in
1997.
In January 1999, the Mexican company decided to expand its operations
to Brazil. As a strategy, it acquired 30% of Stage Empreendimentos – a consor-
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tium owned by the aforementioned Fernando Altério with some other partners.
In parallel, CIE also signed a partnership with Billy Bond’s company to ensure
an arm in show production. In the negotiation, the Mexicans acquired two
theatres previously owned by the Italian: Teatro Ópera and Teatro Jardel Filho.
The objective was to produce two musicals in São Paulo, Rent (1999) and O
beijo da mulher aranha (2000). The shows would serve as an experiment to test
the economic viability of Broadway productions in the country.
In November 1999, Rent premiered at Teatro Ópera with a budget of US$
400,000 (corresponding to R$ 776,920 at the time and R$ 2,699,432 today). 14 For
the casting, a panel including a US director and choreographer arrived in the
city. The selection process was not as problematic as Billy Bond had imagined:
“there’s a new generation that sings, acts and dances well enough to give you
goose bumps” (Gama, 1999a: D17). Daniel Salve, the actor selected for the lead
role, had his CV boosted by the shows at Cultura Inglesa and his studies abroad.
The São Paulo actress Alessandra Maestrini, born in 1977, had worked on the
show As malvadas, the first musical production by Möeller and Botelho. Salve
article | bernardo fonseca machado

969

and Maestrini proved how, unlike the shows of earlier years, actors in Brazil
were now able to perform the songs, choreography and acting on stage accord-
ing to US parameters.
The production of O beijo da mulher aranha (“Kiss of the Spider Woman”,
2000), 15 for its part, was budgeted at US$ 1 million (corresponding to R$1,842,900
at the time, worth R$ 6,403,212 today). 16 A ton of machinery and hundreds of
computerized scenery and lighting changes were brought to the production’s
design. To meet these demands, the Teatro Jardel Filho was reformed. The lead-
ing actors were Claudia Raia and Miguel Falabella. According to a report in
Estadão (Nunes, 2000a; 2000b), the show was the realization of one of Raia’s
oldest dreams: “The Spider Woman is a fetish, a strong character, which match-
es my personality,” she told the newspaper. In an anecdotal tone, she added:
“The funniest thing is that the first time I watched the show, on Broadway, I met
Miguel [Falabella] and we both said how we wanted to put it on stage one day”
(Nunes, 2000b). Another fan of musicals would join the group of artists involved.
During the first rehearsals, singers had difficulties with the version submitted
by the first translator. Raia sought an alternative solution and recommended
the already well-known Claudio Botelho. He took the test, passed, and was hired.
At the time, the Mexican company’s work model was an innovation. As
the productions were large and expensive, the foreign owners of the rights
demanded an organized system already put into practice in the original produc-
tions. It became common for theatrical work to be divided into sectors: Produc-
tion (with the production director, production manager, executive producer,
administration, accountancy, ticket sales), Marketing, Press, Artistic Team (ar-
tistic director, resident director, musical director, choreographer), the Cast (main
actors, understudies, chorus, swings), and Technical Team (technical director,
costume designer, accessories designer, automation, machinery, sound engineer,
wig stylist, makeup artist, special effects technician, sound designer and light-
ing designer). The form in which the backstage of shows was organized derived
– with varying degrees of approximation – from these guidelines (Pierce, 2013;
Duarte, 2015).
For many artists, Rent and O beijo da mulher aranha offered a job, as well
as the introduction of new working conditions thanks to the economic vigour
promised by CIE. In March 2001, the supplement Economia in the O Estado de São
Paulo newspaper observed the hegemony that the company had achieved in
Brazil: “The Mexican group Corporación Interamericana de Entretenimento (CIE)
is on the way to becoming the largest company in the country’s show business
industry” (Medeiros, 2001: B30). The report claimed that US$ 45 million 17 had
been invested in just two years – it had bought Stage Empreendimentos, taking
control of theatres like Credicard Hall and DirecTV Music. Altério became the
president of the company in Brazil and Billy Bond was chosen as the person
responsible for the theatre sector. In March 2001, Alterio explained: “I don’t even
social experience and us musical theatre on são paulo’s stages 

970

call CIE a Mexican company anymore, but a company of a globalized economy”


(Medeiros, 2001: B30). After all, according to him, 70% of the group’s shares were
investment funds, divided among American (80%) and European (20%) financers.
Among his various plans, the president revealed the idea of “installing
a mini-Broadway” in the Bela Vista region (Medeiros, 2001: B30). The production
of shows like Rent (1999) and O beijo da mulher aranha (2000) paved the way. The
musicals were presented in the theatres acquired by CIE with an organiza-
tional structure compatible with the “model” exemplified by US professionals.
At the time, Altério stated: “CIE has been growing at a rate of 35% to 40% per
year in the world and Brazil is the number one priority now” (Vale, 2001: E5).
“Miserable millionaires” was the title given to the report announcing the
show Les misérables to readers of the newspaper Folha de S. Paulo, on 24 April
2001 – a day before the musical’s official opening. Although the headline had
a critical tone, the content of the text was fairly informative. It highlighted the
sums involved in the enterprise: 38 versions toured worldwide over a 16-year
period, while US$ 3.5 million had been spent on the Brazilian production, equiv-
alent to R$ 7,885,500 million at the time (R$ 24,023,295 in December 2020).
In the pages of the country’s largest circulating newspaper, the project’s
international ambitions were clearly apparent: “To claim its place once and for
all in the globalized circuit of musicals, Brazil sees the inauguration of a space
in SP, the Teatro Abril, previously called the Paramount” (Santos, 2001). Closed
since 1996, the building was frequented by São Paulo’s high society in the 1940s
and 1950s. In the 1960s, it served as a setting for the large festivals of MPB
(Brazilian Popular Music). According to the report, the reform aimed to “re-
cover lost time” and reverse “the decline” after the building had been divided
into five spaces showing a mixture of porn films and children’s plays. Purchased
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by CIE, the restoration work cost around R$ 10 million (US$ 4,309,601 at the
time). The place was completely transformed and equipped to meet the techni-
cal requirements of large scales – an orchestra pit, sound desks, modern light-
ing and a huge audience. The report focused on the internationalization that
the production would represent, marking a definitive event for the city – a
before and after. The funds evoked by the article left no room for doubt: the
country would be joining an already consolidated entertainment network and,
once inside the “club,” it “would never again leave.”
On 20 April 2001, Guia da Folha reporting on the series of events, stamped
the headline: “Broadway is here.” For Staut (2001: 10), “The inauguration of
Teatro Abril signified another step in the consolidation of a kind of São Paulo
mini-Broadway in the case of the Mexican company Corporación Interameri-
cana de Entretenimiento”. Some paragraphs later, it was the turn of Altério to
declare: “We decided to invest in the [Paramount] theatre due to its cultural
and architectural importance. The Bela Vista region has a similar history to that
of Broadway […]” As the producer said: “In the 1920s, when the Paramount was
article | bernardo fonseca machado

971

constructed, the region was undergoing a period of cultural effervescence. The


Paramount also hosted the first staging of a musical in Brazil, My fair lady, in
1966” (Staut, 2001: 10). The rhetoric played between reiterating the national
imaginary and mobilizing foreign references. The musical My fair lady appeared
both as an anchor of the past – capable of helping justify the reform – and a
lever to confer prestige to the expensive venture. CIE’s choice of the building
thus aimed to produce both tradition and a prospect for the future.
The successful consolidation of an articulated system of musicals would
be celebrated repeatedly over the following years. Les misérables became some-
thing of a symbol: it was a metonym for the vectors that converged in São
Paulo. CIE’s experiences would subsequently become exemplary and would
shape new enterprises. The company catalysed actors, translators, directors,
and investors through its undertakings.

Conclusion
In the following years, the capital interests – American, Mexican, and Brazilian
– were able to recuperate its investments without risk through a tax benefit
scheme provided by a cultural incentive law. New production companies
emerged that specialized in putting on shows in the “Broadway format.” Artists
who previously worked sporadically with musicals – like Claudia Raia, Claudio
Botelho, Daniel Salve, and others – began to regularly exercise the function of
actors, translators, and directors in these new productions. The desires re-
pressed over the years – expressed not only in the continual attempt to produce
shows in dialogue with Broadway repertoires, but also in English school cours-
es – could finally find a home in the promising horizon of work that began to
emerge. The result was the creation of expensive shows and the building of
new theatre halls, as we saw at the start of the article. The São Paulo theatre
scene had changed substantially.
In 2001, asked about the expectations for musicals to continue to be
produced in Brazil, Claudia Raia would say: “The future is promising” (Franco,
2001: E5). What sounded like a prophecy gradually became true with the con-
solidation of a system of shows, schools, and producers. Ten years later, O Es-
tado de São Paulo printed a resounding headline: “A decade to the sound of
musicals – ten years after the premiere of the precursor Les misérables, Broad-
way-style shows have conquered terrain.” The triumphant tone, the narrative
of success and the confidence of the subjects involved took up half a page of
the newspaper. According to the text, “everything began on 25 April 2001 when
Les misérables opened at the Teatro Abril […], beginning a new and productive
era” (Brasil, 2011: D4). The enthusiastic description situated the experience in
“a true [theatrical] revolution.”
Subjects, investments, legislation, and desires converged to establish
this theatre system in continual reference to Broadway, a radiating centre in-
social experience and us musical theatre on são paulo’s stages 

972

terested in exporting aesthetic and political parameters. This particular system


of musical theatre production was constituted on an aesthetic and organiza-
tional foreign dependency. Over the years, subjects prepared their bodies, im-
proved their production techniques, and invested in new knowledge. In other
words, the professionalization of this specific São Paulo scene only became
possible by adapting to US models. The insistent accusation that national art-
ists lacked the technical skills to perform musicals is an example of the con-
ventions that served as a parameter for comparison and evaluation.
This type of phenomenon reveals how, more than a mere reference point
or imposition, foreign repertoires – in peripheral countries like Brazil – are only
realized when appropriated and materialized in “national” bodies, voices, and
gestures (Machado, 2018). Only in this way would it be possible to ensure – via
musicals, dramas and acting – the desired insertion of “Brazil” in a symbolic
register taken as “international.”

Received on 2/4/2019 | Revised on 16/8/2019 | Approved on 16/8/2019


sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 957 – 980 , sep. – dec., 2020

Bernardo Fonseca Machado has a PhD from the Department of


Social Anthropology at USP. He is author of the articles “Sonhos
que migram: atrizes e atores brasileiros em Nova York” and
“Emoções em disputa: usos do ‘amor’ em manifestações”, and co-
edited the collection Marcadores sociais das diferenças: fluxos,
trânsitos e intersecções. Between 2015 and 2016, he was visiting
student research collaborator at Princeton University. He worked
as a replacement professor between 2018 and 2019 at the Faculty of
Social Sciences of UFG. In 2019, he began a Postdoctorate at
Unicamp with a Fapesp award (process no. 2019/08713-2).
article | bernardo fonseca machado

973

Notes
1 A f irst version of this text was presented at the 42nd
annual meeting of ANPOCS. My thanks for the valuable
comments from the people present, especially Bernardo
Ricupero, Simone Meucci and Heloisa Pontes. The text was
transformed into Chapter 2 of my doctoral thesis, Atos da
diferença: trânsitos teatrais entre São Paulo e Nova York no
início do século XXI, presented at the University of São Pau-
lo (2018 ) under the super vision of Lilia Schwarcz. This
article is based on the thesis version. I thank the generous
suggestions of both the anonymous reviewers and the
journal’s editors. Their comments helped me improve and
develop these ideas.
2 All the figures cited in the text were adjusted for the equi-
valent in US dollars using the tool available on the website
of the Brazilian Central Bank: <https://www.bcb.gov.br/
conversao> Accessed 23 December 2020.
3 The information on the producer was obtained from the
lengthy interview granted to Tania Carvalho (2008).
4 My fair lady is a musical based on the play Pygmalion by
Bernard Shaw, with libretto and lyrics by Alan Jay Lerner
and music by Frederick Loewe. The show opened on Broad-
way on 15 March 1956. Until the end of its run, in 1962, the
show was presented 2,717 times, a record at the time.
5 To learn more about the trajectory of Brazilian actresses
during the period, I suggest consulting Pontes (2010).
6 Created, directed and choreographed by Michael Bennett,
the Chorus line’s libretto was written by James Kirkwood
Jr. and Nicholas Dante. With lyrics by Edward Kleban and
music by Marvin Hamlisch, the show opened in April 1975,
remaining 15 years on Broadway without interruption.
7 According to the “citizen tool” made available by the Cen-
tral Bank, the amount would correspond in November 2020
to R$ 4,051,703.82. As a parameter, I used the adjustment
provided by IPCA/IBGE available on the website of the Bra-
zilian Central Bank: <https://www3.bcb.gov.br/CALCIDA-
DAO/publico/exibirFormCorrecaoValores.do?method= exi
birFormCorrecaoValores>. Accessed 23 December 2020.
8 Initially, each share was worth Cr$ 1.5 million (around R$
20,258 when adjusted for November 2020), but, after ad-
social experience and us musical theatre on são paulo’s stages 

974

justments, they remained f ixed at Cr $ 3 million (or ap-


proximately R$ 40,517 in November 2020).
9 The accusation of a lack of technique does not emerge so
saliently when we analyse other aesthetics and periods of
Brazilian musical theatre (Veneziano, 1991; Steves, 2015).
10 Created in 1964, AMDA is one of the oldest conservatories
for training in performing arts in the United States. Today
it has campuses in New York and Los Angeles, and offers
programs in Acting, Musical Theatre, Dance and Perfor-
ming Arts.
11 With lyrics, music and plot written by Jonathan Larson,
Rent was premiered in 1996. In the stor yline, a group of
friends live in 1980s New York, resisting the economic dif-
ficulty, the AIDS epidemic, amid widespread drug use.
12 To learn more about the changes, see Moisés (1998).
13 A novelist, playwright and filmmaker born in 1946, in Ma-
naus, Souza would enrol in Social Sciences at the university,
interrupting his studies in 1969 when persecuted by the
military dictatorship. He was the president of the National
Art Foundation (Funarte) of MinC between 1995 and 2002.
14 To convert the US dollar to the Brazilian real, I needed to
proceed in two stages. First, I used the currency conversion
tool on the Central Bank website (https://www.bcb.gov.br/
conversao) respecting the dollar conversion rate at the date
of the report. Next, I updated the figure, already in Brazi-
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lian reais, for December 2018, according to the National


Broad Consumer Price Index (IPCA) of the Brazilian Institu-
te of Geography and Statistics (IBGE). Sites accessed 23 De-
cember 2020.
15 The musical was based on the novel of the Argentinean
writer Manuel Puig and told the story of Valentim, a Mar-
xist revolutionary accused of terrorism, and Molina, a ho-
mosexual in prison for corrupting minors, forced to occupy
a small cell in a prison somewhere in South America.
16 The Central Bank’s currency conversion tool was used,
23 December 2020.
17 At the time, the amount corresponded to R$ 91,890,000, using
the Central Bank’s conversion tool. In December 2020, this
sum corresponded to R$ 279,944,281, adjusted using the IPCA/
IBGE parameters, using the Central Bank’s “citizen tool.”
article | bernardo fonseca machado

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Experiência social e teatro musical


estadunidense nos palcos paulistanos
Resumo Palavras-chave
Na virada para o século XXI, espetáculos da Broadway pas- Experiência social;
saram a ser largamente produzidos em diversos países. No teatro musical;
Brasil, particularmente na cidade de São Paulo, as con- São Paulo;
dições legislativas, os interesses empresariais e o fascínio Broadway.
de parcela da classe artística se combinaram e permitiram
a criação de um sistema de montagens na cidade. Este
texto esquadrinha os fatores sociais que considero essen-
ciais para a abundante produção de musicais nos últimos
anos. Estou particularmente interessado em descrever
como determinados agentes orquestraram múltiplos pro-
cedimentos e interesses na ordernação de um cenário ím-
par e profícuo que alterou a produção cênica da cidade.
Minha aposta reside na compreensão do teatro como uma
forma expressiva, um termômetro de desejos e práticas
sociais.

Social experience and US musical theatre


on São Paulo’s stages
Abstract Keywords
At the turn of the twenty-first century, Broadway musicals Social experience;
began to be produced in many countries outside the Unit- musical theatre;
ed States. In Brazil, particularly the city of São Paulo, new São Paulo;
laws, business interests, and the fascination of some artists Broadway.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 957 – 980 , sep. – dec., 2020

with US productions converged to enable the creation of a


new system of musicals. In this article I examine the social
elements I consider fundamental to understanding the
proliferation of musicals in recent years. My description
focuses especially on how some actors orchestrated mul-
tiple procedures and interests to organize a unique and
fertile setting that changed the city’s theatrical production.
In the process, I explore theatre as an expressive form that
acts as a thermometer of social desires and practices.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v1039

1 Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, Unidade de Ciências


Humanas e Sociais. Praia, Cabo Verde
diracarvalho@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-6756-1599

Carla Indira Carvalho Semedo I

“Somos descendentes!” − Contranarrativas


e agenciamentos musicais dos coletivos de
Tchabeta na roça Agostinho Neto
(São Tomé e Príncipe)

Não estavam de mãos dadas, mas as sombras


deles estavam. Seth olhou para a sua esquerda e
as sombras deles três deslizavam pela areia de
mãos dadas. Talvez ele tivesse razão. Uma vida.
Toni Morrrison, Amada

Os arquivos do contrato administrativo para as roças de São Tomé e Príncipe 1


apontam para milhares de cabo-verdianos que, desde finais do século XIX até
o último quartel do século XX, se inscreveram na lista dos que foram aliciados
à necessidade de contratar para as roças santomenses, com a homologação dos
enunciados jurídico-oficiosos. Conforme decreto-lei de 8 de fevereiro de 1903,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 981 – 1000 , set. – dez., 2020

o processo de recrutamento da mão de obra barata e escravizada nas então


colônias − Moçambique, Angola e Cabo Verde −, visava: “salvaguardar as roças
[em São Tomé e Príncipe] de monocultura de café e posteriormente de cacau,
após a abolição da escravatura em 1869” (São Tomé,1903).
Em paralelo com o recrudescimento, no espaço cabo-verdiano, do capi-
talismo colonial nas corporações/companhias agrárias e dos decretos-leis fab-
ricando realidades marcadas pela “possibilidade de escolha”, quotidianos de
escravidão e de relações escravistas habitavam e irrompiam as relações sociais
nas roças de São Tomé e Príncipe. Relações ancoradas a um processo de criação
do enunciado de que a “única saída possível” a um quotidiano de fomes e a
eminência de mortes era a evasão e o “alistamento” às roças santomenses. Os
informes demográficos de Carreira (1984: 177) são muito esclarecedores quan-
do assinalam que Cabo Verde, em 1947 com a população em cerca de 160 000
habitantes, tinha 128 000 (80%) tidos como os “necessitados” do país.
Diante disso, o território Cabo Verde experimentava os efeitos do capi-
talismo moderno e a experiência das práticas escravistas − novamente o terror
“somos descendentes!” − contranarrativas e agenciamentos musicais...

982

do tráfico negreiro irrompia na vida das pessoas cabo-verdianas em pleno sé-


culo XX, décadas após o período abolicionista. Isso porque as narrativas dos
cabo-verdianos que se alistaram e experimentaram o trabalho contratado nas
roças santomenses de 1940 a 1970 e os descendentes dessa experiência atroz
denunciam o fato de que, a despeito da abolição da escravatura no território
português, a governamentalidade colonial portuguesa criou e instaurou nas
roças santomenses de café e cacau um espaço onde vidas e trabalhos foram
escravizados: mão de obra barata e escravizada de pessoas oriundas das então
colônias, em pleno século XX. As precárias condições nos porões dos barcos/
navios que as transportavam (“gente vinha no porão como saco”), as configu-
rações das então roças e das “senzalas”, as normas rígidas e desumanas de
funcionamento nas senzalas, o “castigo” do trabalho no mato, a violência e os
maus-tratos que foram impingidos e a impossibilidade de dispor da própria
existência por ser pessoa em situação de contrato povoam as narrativas e as
experiências de meus interlocutores. 2
Ainda, esse espaço laboral por se encontrar acoplado a uma gestão dos
corpos e das formas de relações, marcada pelo intenso adestramento dos cor-
pos de pessoas em situação de contrato, buscando garantir a produção econômi-
ca das roças sob fortes e duras regras e punições, reitera a constatação de que
a realização do trabalho conforme esperado e definido pelos roceiros era a
única garantia possível contra as duras e fortes punições corporais.
A despeito de Cabo Verde aparecer na memória social e nas práticas de
pessoas cabo-verdianas atravessado e costurado pelas mobilidades a outros
territórios, 3 desde Europa, passando pelas Américas e África, a diáspora cabo-
verdiana e a experiência do contrato no território São Tomé e Príncipe foi e
continua sendo narrada na chave de “má migração”. Por ser uma migração que
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 981 – 1000 , set. – dez., 2020

reverbera, ainda, a experiência da escravidão e da africanidade intensamente


repelidas, não cabe no tipo ideal de mobilidades, e São Tomé e Príncipe foi e
continua sendo narrado como um território “impensável” e “improvável”.
As várias e múltiplas narrativas elaboradas sobre o coletivo cabo-verdia-
no em São Tomé e Príncipe, quer os que experimentaram o acontecimento do
trabalho contratado e da escravidão nas roças de café e cacau, quer os de-
scendentes dessa experiência atroz, foram e continuam sendo, a todo in-
stante, (re)inscritas numa chave de registro depreciativo. Essa migração, por
incomodar e tensionar os debates acesos sobre a identidade cabo-verdiana,
foi inscrita no regime de “um passado negr(eiro)o” que urge ser silenciado,
criando, nesse processo de produção de verdades, vidas e narrativas que não
importam, silenciando corpos e existências de sucesso. Entendo que, por ter
sido e ainda ser rememorada nas práticas mnemônicas, nos regimes discur-
sivos e nas historicidades como a “pior migração cabo-verdiana” (Nascimen-
to, 2008, 2007; Semedo, 2016), essas múltiplas narrativas e regimes de verdade
ao (re)insistir em falar desse coletivo nessa chave, cria(ra)m uma “história
artigo | carla indira carvalho semedo

983

única” (Adichie, 2009) deles. E, parafraseando Adichie (2009), o problema é


menos que seja uma história irreal e mais que seja somente essa a única
história a ser narrada sobre esse coletivo.
Recusando a “história única” narrada e a ela resistindo, nesse panorama
de encontros e de discursividades, a despeito da experiência da migração pa-
ra as roças santomenses − onde viveram relações e quotidianos de violência
que os relegaram a uma condição de corpos e vidas escravizados, num estado
ontológico continuum de dor −, essas pessoas cabo-verdianas denunciam, a
todo instante, as narrativas e histórias desumanizantes e depreciativas elab-
oradas sobre elas, por meio de um trabalho de criação de outros modos exis-
tenciais. Nesse sentido, o argumento norteador do artigo é o de que as pessoas
cabo-verdianas, em meio a uma experiência atroz do que foi o trabalho
contratado nas roças de São Tomé e Príncipe, resistiram e criaram vidas e ter-
ritórios existenciais nessas roças; vidas e projetos emancipatórios que existi-
ram e persistem, recusando a “histórica única” que se elaborou da/com a ex-
periência cabo-verdiana no arquipelago santomense.
Desses lugares de criações possíveis, o artigo propõe analisar o lugar das
práticas do ritmo musicocoreográfico batuko, que se pode constituir em es-
paço político em que os cabo-verdianos em São Tomé criam contranarrativas
que visam mostrar como a existência deles é reversa ao modo narrado quer em
Cabo Verde, quer em São Tomé e Príncipe.
Antes de avançar, importa pontuar que entre os descendentes de pessoas
cabo-verdianas, o batuko passa a ser denominado tchabeta; assim sendo, quan-
do me referir à experiência em São Tomé e Príncipe, usarei a expressão êmica
tchabeta.
Outrossim, decorrente da experiência de desterritorialização de pessoas
cabo-verdianas em condição de contratados, de ser descendentes da experiên-
cia de trabalho contratado nas roças santomenses e, enquanto sujeitos perce-
bidos nos territórios santomense e cabo-verdianos, como perdidos no mato,
selvagens, o artigo recupera analiticamente as musicalidades enquanto artifí-
cios acionados e acoplados dentro de um trabalho de criação de modos on-
tológicos de pensar o lugar dos “descendentes” cabo-verdianos em São Tomé,
quer na relação com os forros santomenses, quer na relação com os cabo-
verdianos não santomenses.
Com as narrativas de meus interlocutores e as narrativas musicais de
tchabeta em São Tomé, viso mostrar que esse ritmo musicocoreográfico opera
enquanto uma variação contínua dos modos existenciais cabo-verdianos. Assim,
não interessa neste artigo conceber as práticas dos ritmos musicocoreográficos,
no contexto diaspórico, numa chave de recriação de territórios e identidades
enquanto uma réplica de um Cabo Verde imaginário, mas antes o modo como, a
partir do ritmo tchabeta, as experiências, os encontros existenciais e as territo-
rialidades aparecem marcadas por temporalidades e historicidades coexistentes,
“somos descendentes!” − contranarrativas e agenciamentos musicais...

984

aglutinadoras, uma reatualização dos vários “cristais de tempo” (Deleuze, 2011).


O que vai estar em jogo, portanto, é perceber como essa experiência diaspórica
sinaliza outros modos existenciais, quer com o território prometido, quer com
o território do desterro: de um batuko reprimido e silenciado do tempo colonial/
do branco em Cabo Verde para um tchabeta que permite outros espaços e outros
modos existenciais no arquipélago de São Tomé e Príncipe.

Corpos, vidas e afetos desterritorializados


Ritmo musical associado a mulheres e homens de grupos populares, o batuko
é uma expressão musicocoreográfica caracterizada por canto antifonal acom-
panhado por fortes e ensurdecedoras percussões numa espécie de tambor – o
tchabeta – que dão pulso ao ku torno. Ku torno é expressão êmica em crioulo
cabo-verdiano 4 para o movimento de requebrar o baixo corporal feminino, em
rebolar intenso e frenético dos quadris com rápidas flexões dos joelhos que
magnetiza a atenção dos espectadores. A configuração espacial e corporal é
caraterizada por mulheres/homens sentadas/os em círculo ou arco com o tron-
co levemente inclinado, pernas esticadas e cruzadas. A disposição na roda não
é em função de estatuto social no grupo social ou escolha individual, mas do
tipo de sonoridade que produz: bam-bam ou rapicada. Pelo fato de alternarem-se
as sonoridades obtém-se seu equilíbrio − bam-bam, rapicada, bam-bam, rapicada,
bam-bam ad infinitum − a fim de manter a harmonia entre as sonoridades do
tchabeta e as da cantadeira (Semedo, 2009).
Se o período colonial criminalizou os modos de vida africanos, silenciou,
exotizou e criminalizou o batuko (Nogueira, 2015), nos modos de existência ca-
bo-verdianos pós-independência, esse ritmo musicocoreográfico aparece sendo
mobilizado na construção dos discursos identidários, acoplados ao discurso da
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 981 – 1000 , set. – dez., 2020

constituição da nação cabo-verdiana no qual os legados da corporeidade negra,


embora não tivessem sido silenciados, funcionam, segundo entendo, num mov-
imento de folclorização e invisibilização desses corpos.
Outrossim, os modos de vida de pessoas cabo-verdianas bem como todo o
debate sobre a identidade cabo-verdiana, buscando resolver o dilema decorrente
dos encontros entre pessoas europeias e africanas, foram sempre construídos
num jogo de forças entre um ideal de civilização europeia e um coletivo africano
que experimentou a escravidão. O discurso da mestiçagem acionado e elegido
visou estabilizar essas forças e manter novamente as fronteiras estáveis, su-
pondo que a figura elaborada do mestiço cabo-verdiano as condensaria e hierar-
quizaria (Dos Anjos, 2006, Fernandes, 2002). A despeito do fato de, durante o
período colonial, a africanidade ter sido silenciada num discurso de mestiçagem
acoplada à ideia criada e instrumentalizada pela Administração Colonial de que
os cabo-verdianos seriam segundos europeus ou “europeus de segunda”, os mo-
dos de vida escravistas novamente devastariam a vida da pessoa cabo-verdiana
(Semedo, 2016).
artigo | carla indira carvalho semedo

985

Nhu Bana, Nhu Frank e Nhu Mamede, trazidos na condição de contrata-


dos, reiteravam o uso da categoria segundos europeus, a ideia de que os cabo-
verdianos, em decorrência da mestiçagem, estariam mais próximos aos modos
ditos europeizados, embranquecidos e civilizatórios. E, por conta disso, em
diferenciação corporal e cultural em relação aos outros africanos vindos do
continente (angolanos e moçambicanos) como também aos nativos santomen-
ses. Ao rememorar a experiência da migração contratada, Nhu Bana mostra-se
afetado pela não reatualização de uma virtualidade aparentemente já dada – a
de que o indigenato não se aplicava mais em Cabo Verde, diferentemente das
outras então colônias da administração portuguesa, e, por conseguinte, o cabo-
verdiano continuaria sendo visto como “cidadão”, situação então vigente em
Cabo Verde: “Quando gente chegou, gente pensou ‘branco’ daria boa cama para
dormir, boa comida… Credo ehh…! Deu gente fubá de milho podre e peixe
salgado podre de comida e deitar no chão só…”.
Por ter sido percebida num regime discursivo, a “migração para o Sul” 5
desnuda, por um lado, questões das relações identitárias constituintes da pes-
soa cabo-verdiana, entre as quais o jogo de forças entre o imaginário da África
e o da Europa. Numa base em que o continente africano era “diluído” e renega-
do a ponto de a identidade racial ser continuum à concessão de nação e do Es-
tado, “ser cabo-verdiano e não ser africano”, ao mesmo tempo em que se pro-
jetavam possibilidades de uma aproximação Cabo Verde-Europa (Dos Anjos,
2006; Fernandes, 2002; Furtado, 1987).
Por outro lado, o processo de concebê-la e de narrá-la na chave de um
suposto “atraso cultural” silencia um movimento de denúncia que sinaliza os
usos desses fatalismos na criação e na propiciação de um deslocamento de
corpos braçais inseridos num sistema jurídico de trabalho contratado escravo.
Igualmente, o legado escravista e os modos existenciais de pessoas africanas
materializados nas práticas musicais, no caso o batuko, são lidos na mesma
chave de silenciamento. Como frisado, ainda que no pós-independência essas
práticas tivessem deixado de ser criminalizadas e reprimidas, e passassem a
fazer parte da cena musicocoreográfica no território cabo-verdiano e na diás-
pora, percebo uma tentativa de folclorização dos corpos e das habilidades per-
formáticas, incentivando os deslumbres, os gritos e zombarias na plateia. Assim,
os regimes de verdades que elegeram o “deleite dolente da morna”, por recusar
e silenciar formas outras de experiências sonoras e performáticas, realocam
os legados africanizados numa escala hierárquica de não sublevação civilizante.
“Descendente” do evento contrato, a quinquagenária Zizi, nascida em São
Tomé, viveu sua infância na ilha do Príncipe, tendo crescido com o batuko. Pas-
sados dez anos, retorna para São Tomé, integrando-se no Coletivo de Batuko
Ouro Verde, na roça Agostinho Neto. No início da formação desse coletivo, an-
tes de a integrante Ricarda ter partilhado os ensinamentos das artes de fazer
descobertas em Cabo Verde, o instrumento percussivo era de material plástico.
“somos descendentes!” − contranarrativas e agenciamentos musicais...

986

Dos “plásticos enrolados e/ou plásticos com roupa velha no interior”, Ricarda
sugeriu um novo feitio: uma lata de 250ml a suster tecidos ou roupas velhas,
como se de um funil se tratasse: a base alongada e a superfície plana e dura na
qual se bate, criando uma caixa de ressonância percussiva, envolvida por cou-
ro sintético, ficando a parte afunilada entre as coxas para garantir firmeza –
explica Zizi. Esse formato manteve-se igual também no outro coletivo da roça
Agostinho Neto, o Raiz di Terra e, em vários momentos, ambos os coletivos
faziam questão de enfatizar o fato de o instrumento estar em consonância com
o usado pelos grupos de batuko e funaná em Cabo Verde e, na diáspora cabo-
verdiana na Europa, particularmente em Portugal. Nos coletivos de tchabeta de
outras roças, era visível ainda, o uso de bolsas de plásticos enrolados com
roupa gasta por dentro.
A presença e a monumentalização das práticas ditas culturais de um
povo são lidas em muitas das pesquisas sobre as diásporas cabo-verdianas
(particularmente nas pesquisas sobre práticas culturais e modos de ser e estar
do cabo-verdiano) enfatizando a ideia de que “onde existem os cabo-verdianos,
há um território Cabo Verde” intato, criado e produzido, à procura de sempre
manter essa ligação com o território original e criando réplicas (Cidra, 2008;
Barbosa & Ramos, 2008; Góis & Marques, 2008; Ribeiro, 2012). Distanciando-me
dessa perspectiva de recriação da tradição e da ideia de uma cabo-verdianidade,
que perpassaria e habitaria a pessoa cabo-verdiana, argumento que os cabo-
verdianos nas roças santomenses sinalizam outras dimensões, pois, como pon-
tua Gilroy (2001), há toda uma “articulação” entre dinâmicas locais e globais, e
a diáspora negra, o Atlântico Negro, em nenhum momento, se resume a uma
unidade homogênea, pois as conexões e as relações tecidas e elaboradas no
plano local são potencialmente múltiplas e singulares.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 981 – 1000 , set. – dez., 2020

Por conseguinte, importa perceber de que forma a experiência dester-


ritorializante do trabalho contratado eclodiu na vida de pessoas cabo-verdianas
e em suas práticas musicocoreográficas, bem como o tchabeta passa a operar
enquanto um espaço de criações existenciais nas roças santomenses. Assim,
partindo do pressuposto de que os ritmos musicocoreográficos materializam
noções de criação de corpos e pessoas, apresento ao longo do artigo criações
de contranarrativas e contra-histórias no coletivo cabo-verdiano em São Tomé.

Tchabeta cabo-verdiano em São Tomé


Comumente, o regime de verdade veiculado e reconstruído de que os modos
cabo-verdianos estão esvaziados das possíveis práticas e existências africanas
e marcados por uma dita europeização é mobilizado quando se narra e se fala
dos corpos e das pessoas descendentes do trabalho escravizado e do que foi a
experiência do trabalho contratado nas roças santomenses. A vida no mato, a
coleta dos alimentos naturais, a conformação das casas ainda no modelo senza-
las são inscritas nas narrativas e nas tentativas de desumanização que os veem
artigo | carla indira carvalho semedo

987

“como perdidos no mato” por “viverem ainda no meio do mato”, “viverem em senza-
las, a comer dos frutos do mato”.
Francisca, sexagenária beneficiária da pensão do Estado cabo-verdiano, sai
todas as madrugadas na companhia do filho para ir buscar, mato adentro, os búzi-
os de mato e, revendê-los na cidade. Assim como Francisca, um pouco por todas as
roças, muitos saem na madrugada para coletar os búzios de mato, com candeeiro a
petróleo e facão na mão: “não tem mulher, não tem homem, vai só. Não tem que
estar parado não, não dá, tem que buscar meio de vida”. Bastante usual na ilha de
São Tomé, os búzios de mato são grandes caracóis usados no preparo de vários
pratos gastronômicos, molhos apimentados à base de leite de coco, azeite de palma
(azeite de dendê), ou fritos/grelhados, substituindo outras proteínas animais, pois,
mesmo na cidade, as carnes bovina e suína costumam ser as mais caras no mer-
cado, estando seu consumo, por vezes, limitado aos coletivos com maior poder
aquisitivo. Os búzios de mato, coletados no mato sem custo para os moradores das
roças, constituem forma de geração de renda de muitas famílias nas roças e na ci-
dade, além de garantir o consumo de proteína animal.
Apesar das precariedades existentes nas roças, em umas mais acentuadas
do que em outras, agudizadas pelos problemas estruturais do país, particularmente
a eminente instabilidade política e a pobreza estrutural, a ideia de que na roça se
passa fome é inconcebível entre meus interlocutores. E o perigo das narrativas
únicas, elaboradas com as paisagens arruinadas das então “casas de patrão”, “ca-
sas de empregados” e “senzalas” (Semedo, 2016), nas suas formas de ser e de estar,
é criar uma “história única” acoplada ao registo de fome e de miséria. Completa-
mente dissociado e irreal, porém, o regime de fome sufoca-se e implode.
Igualmente, o enunciado de que a migração para as roças santomenses não
foi o “tipo-ideal” da migração cabo-verdiana constrange e impossibilita olhar o
mundo como percebem-no e como procede-se. “Viver em senzalas, a comer dos fru-
tos do mato”, faz do mato um território povoado de afetos e relações, e “a floresta e
os trabalhos nas parcelas concedidas pelo governo santomense” traduzem a materi-
alização de um projeto emancipatório, o de poder fazer a casa própria sem a compra
do terreno e usar a madeira do mato, a baixo preço, para a construir.
Nessa chave, o território santomense foi se constituindo, entre os coletivos
cabo-verdianos, num espaço em que houve a experimentação da reterritorialização
não só num estado ontológico de dor, na vida escravizada com o contrato nas roças,
como também, no encontro com um território verdejante, sem o espectro da fome.
Em certa medida, o projeto de um espaço verde, com chuva e não mais faminto,
como Cabo Verde na época, reterritorializou-se em São Tomé e Príncipe, onde uma
espécie de um novo território existencial cabo-verdiano foi elaborado, bem como
as experiências musicocoregráficas cabo-verdianas.
Se até os anos 1990 o batuko se restringia ao espaço presencial, a partir do
século XXI (2000) passa a circular pelos espaços físicos enquanto realidade audio-
visual. Era desnecessário um deslocamento físico e social, dado que a cena musi-
“somos descendentes!” − contranarrativas e agenciamentos musicais...

988

cocoreográfica audiovisual permitia aos sujeitos formas de acessibilidade e


visibilidade do batuko. Ao mesmo tempo, permitia aos cabo-verdianos na diás-
pora, no caso em São Tomé e Príncipe, acesso às criações feitas em Cabo Verde
e pelos cabo-verdianos na diáspora. Conforme narra Flora, integrante do Cole-
tivo de Tchabeta Ouro Verde, as tecnologias foram se constituindo num artifício
de ensinamento e de aprendizagem das artes percussivas quer para ela, quer
para as outras integrantes, observando as artes de fazer dos grupos em Cabo
Verde e/ou na diáspora.
A roça Agostinho Neto, de 2007 a 2010, foi identificada unicamente pelo
Coletivo de Tchabeta Ouro Verde, que atualmente tem 11 integrantes cuja idade
varia de dez a 70 anos: Sônia (atual chefe do coletivo), Zizi (a voz lírica do grupo),
Nha Ninha (a única anciã do coletivo), Lena, Tina, Bia, Flora, Aneurite, Didy, Mai-
te e Denise, as três últimas são as dançarinas do ku torno – acompanhadas por
Zizi. Em 2010, em decorrência de vários ciclos de tensões internas, o grupo se
fragmenta, e emerge o Coletivo de Tchabeta Raiz di Terra, atualmente com cerca
de 12 integrantes: Ingrácia, Nina, Lúcia, Jo (irmão da Ingrácia e homem de Mar-
celina, faz tchabeta e dá ku torno), Ana, Ticiana, Marcelina (a voz lírica do grupo,
substituída nas necessidades por Ingrácia e Lúcia), Mena, Ita (a única não de-
scendente de Cabo Verde), Ruth, Ju e Tatiana.
Como mencionado, ainda que aparentemente as dinâmicas pós-coloniais
e a globalização tenham também potencializado as artes de fazer batuko na
diáspora cabo-verdiana no arquipélago santomense, as vicissitudes do evento
desterritorializante da migração contratada introduziram variações na ex-
periência musical, como é frisado pelas integrantes dos coletivos Ouro Verde e
Raiz di Tera.
Um exemplo disso é o fato de que, enquanto em Cabo Verde e nas diás-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 981 – 1000 , set. – dez., 2020

poras em que se brinca o batuko, quando se usa a categoria batuko é sempre em


alusão ao ritmo musicocoreográfico e a categoria tchabeta ao instrumento de
percussão e à prática percussiva, na diáspora cabo-verdiana em São Tomé ter-
se-ão deslocado as categorias êmicas. O ritmo musicocoreográfico batuko entre
os descendentes de cabo-verdianos em São Tomé virou tchabeta, e o instru-
mento de percussão e a prática percussiva tchabeta virou batuko. Igualmente,
as categorias percussivas alusivas às sonoridades, em vez de ser “bam-bam”,
virou “pam-pam”, permanecendo quase parecidas, mas sendo modificada quan-
do outros movimentos corporais emergem. No grupo somente Zizi faz a variação
da “rapicada”, que chamam de tchabeta: o braço levanta, e a mão faz o movi-
mento com os braços sob o instrumento virado para o corpo e intensifica o som,
dobrando o tronco; e, quando a mão cansa, levanta os dois braços, como se es-
tivesse pausando e se preparando para retomar o movimento percussivo. Zizi
reparou nessa técnica corporal e percussiva quando do encontro com outras
coreografias feitas em Cabo Verde e quis aprender, por entender que torna a
“percussão mais forte e o batuko mais intenso”.
artigo | carla indira carvalho semedo

989

Por ser Nha Ninha a única anciã no grupo, questionei-a, ciente de que
as variações nas práticas e nas nomenclaturas poderiam ser uma chave rele-
vante nas artes de fazer tchabeta. “Minha filha, tempo antigo assim chamavam,
nós seguimos com a tradição.” Visto que essas artes de fazer seriam remanes-
centes à primeira onda da migração de cabo-verdianos para São Tomé e tendo
em conta que mesmo entre os registros dos outrora fazedores de batuko, entre
os quais Nha Nacia Gomi e Untoni Denti D’Oru, ou pesquisadores folcloristas,
como Tomé Varela da Silva (1985, 1988) e António Gonçalves (2006), não há
referência, possivelmente seriam as primeiras manifestações da criação do
território Cabo Verde e das socialidades dessa diáspora no arquipélago santo-
mense.
Igualmente, as narrativas musicais de ambos os coletivos de tchabeta
operam na rememoração das experiências silenciadas enquanto um ato políti-
co e na criação de um espaço em que as musicalidades, o tchabeta, a africani-
dade e os modos de vida nas roças constituem a atualização menos de uma
mobilidade malsucedida e mais de modos de vida cabo-verdianos, de criação
de um território cabo-verdiano negro e africano no território santomense. Das
experiências quotidianas vividas, rememoradas e partilhadas, trago duas nar-
rativas musicais do coletivo Ouro Verde:

3 de fevereiro – música de escravos

Era um dia 3 de fevereiro, tempo de massacre


Santomenses passaram muito mal aqui no solo de ponte de Obrigada
É no solo de São Tomé, humhum jovens quanta tristeza em contar. Quan-
do chegou 25 de abril [1975], santomenses tomaram liberdade. Africanos
preparam para celebrar, oh, jovens, quanta tristeza em contar. Dizemos
santomenses são de resistências, cabo-verdianos de resistências, moçam-
bicanos de resistência, angolanos de resistência.

Música: Era na 46, 47

Era na 46, 47, minha mãe e meu pai vieram para São Tomé procurar
trabalho
Porque Cabo Verde não tinha trabalho
Minha gente agora como Cabo Verde está bom de viver
Aqueles que conseguiram ir foram e nunca mais voltaram, aqueles que
não conseguiram ir ficaram todos por cá
Nós somos descendentes, filhos de cabo-verdianos que nasceram em
São Tomé e Príncipe, vamos manter nossa cultura firme.
“somos descendentes!” − contranarrativas e agenciamentos musicais...

990

Ambas as narrativas musicais aludem, ainda que em registros temporais


e espaciais diferenciados, aos usos e aos efeitos do sistema colonial na confor-
mação de socialidades e na criação de projetos de vida. 3 de fevereiro ou o
massacre de Batepá, ocorrido a dois e três de fevereiro de 1953, um marco na
historiografia santomense celebrada e rememorada nos rituais governamentais,
faz alusão a uma série de chacinas perpetradas pelo então governador português
Carlos Gorgulho. As tentativas de subjugação da sociedade santomense, aos
desmandos do então governador, visavam à manutenção da estrutura colonial
de roças e à incorporação dos forros, esses ainda reticentes em se tornar ser-
viçais nas roças ou pessoas escravizadas.
Cabe frisar que os abusos e as violências perpetrados aos trabalhadores
serviçais – muitos, no desespero, fugiam para o mato, sendo referidos como os
‘fugidos’ – pelos capatazes e feitores ainda faziam parte do quotidiano laboral
dos cabo-verdianos [angolanos e moçambicanos] contratados para as roças san-
tomenses nos finais dos anos 1940 (Semedo, 2016). O massacre de Batepá vem
intensificar a insurgência contra o colonialismo português e o trabalho es-
cravizado nas roças, provocando mudanças nas relações sociais nas roças, até
então tidas como escravistas, e a fuga do governador português Carlos Gorgulho.
De centenas e milhares de santomenses e cabo-verdianos [angolanos e moçam-
bicanos] em situação de contrato, muitos teriam sido torturados até a morte por
relutarem em se curvar ao regime laboral vigente nas roças. Com a narrativa
musical 3 de fevereiro:

É história que nós ouvimos de quem passou o massacre, tiveram vida massacra-
da, conversámos com eles para vermos como as coisas na época correu e para
vermos como colocar na letra. Antigamente tempo de massacre e muitos cabo-
verdianos, angolanos, moçambicanos, santomenses todos passaram muito mas-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 981 – 1000 , set. – dez., 2020

sacre, morreram mal, com porrada, acorrentados, ficaram muito mal. Tem os
que sobreviveram, tem aqueles que morreram, e aqueles que morreram morreram
numa situação difícil, penosa, com injúrias, maltratados, falta de água e de co-
mida. Mas aqueles que sobreviveram lutaram mesmo, outros mataram branco,
para conseguirem sobreviver e conseguiram sobreviver. Fizemos essa música
porque muitos passaram mal, acorrentados, alguns fugiram para o mato, não
ouviste falar de fugidos!? Passaram mal com fome, com chicote nas costas (Zizi).

Na narrativa musical ‘Era na 46, 47’ rememora-se o acontecimento da


migração contratada, do qual os integrantes do tchabeta são “descendentes”, e
as narrativas do quotidiano de fomes e de mortes em Cabo Verde, as quais
serviram de mote ao sistema de contrato laboral escravista.

Aqueles contratados que vieram de Cabo Verde, conforme nos contaram, Cabo
Verde estava mal, difícil, vieram contratado. Muitas pessoas tinham vontade de
vir cá em busca de vida melhor. Eu sou filha daqueles que vieram, descendente
dos que vieram, de filhos de cabo-verdianos. Estamos em São Tomé agora, nós
não somos cabo-verdianos, somos descendentes de cabo-verdianos, mas nasce-
mos em São Tomé. Nós seguramos a cultura da nossa mãe e do nosso pai para
artigo | carla indira carvalho semedo

991

não cair, porque eles vieram, vieram com tradição deles, nós também vamos
segurar a tradição para não deixar cair. Maioria de nós que estamos cá, somos
só descendentes, porque dos que vieram ficaram poucos, muitos já morreram,
nós somos filhos cabo-verdianos que está em São Tomé e Príncipe. Nós, os des-
cendentes, tem que pegar tradição com toda força para não deixar cair (Zizi).

Ambas as narrativas musicais fazem dos atos de rememorar atos de


subjetivação de produção de novos sujeitos em afeção, por formas novas e
múltiplas de vivenciar as unidades de medida do tempo. Escapando à historio-
grafia oficial construída sobre o acontecimento da migração cabo-verdiana
contratada e da escravidão em São Tomé e Príncipe, em pleno século XX, as
narrativas musicais sinalizam como os coletivos “descendentes” na roça
Agostinho Neto concebem-se e, simultaneamente, criam condições de possi-
bilidade aos sujeitos, quer na produção da noção de self, quer enquanto me-
canismos de rearranjos das experiências passadas vividas e/ou partilhadas.
As narrativas musicais falam sobre algumas questões das agendas
político-governamentais, outras aludem à violência, gravidez na adolescência,
toxicodependência (bebidas alcoólicas e estupefacientes) nos jovens, a rela-
ções familiares e poligamia, maus-tratos e abusos infantis, tal como o fenô-
meno de “menino de rua”, questões que povoam o quotidiano dos integran-
tes do coletivo. Também as narrativas rememoram a experiência do trabalho
contratado e da migração cabo-verdiana para São Tomé e Príncipe, como tam-
bém os fluxos migratórios de familiares e/ou integrantes dos coletivos para
Portugal, Cabo Verde e Angola. Por conseguinte, quer com as narrativas mu-
sicais sobre a condição de vida, quer com a reatualização de experiências
passadas, está a todo instante em jogo, um movimento do coletivo cabo-
verdiano em São Tomé, por meio desse agenciamento musical, de romper com
a história única construída e criar outras histórias:

eu acho que a imagem que levam de São Tomé é também um pouco pejorativa,
de modo a denegrir também um pouco a vivência, a imagem das comunidades.
De fato, os cabo-verdianos passam aí dificuldade, então eu acho eles veem so-
mente afirmar aquilo que é mau, que os cabo-verdianos estão a viver. Mas há
também cabo-verdianos que estão a viver muito bem, há filhos cabo-verdianos
que já foram ministros, ocuparam altos cargos no governo. Mas, isso não levam.
Vêm só buscar esta situação das comunidades mais desfavorecidas. […] Nós
devemos também mostrar as boas coisas, ou fazer junção das duas coisas, porque
há cabo-verdiano no bairro de Hospital vivem muito bem. Têm suas própr ias
casas, têm seus negócios. Há cabo-verdiano noutra zona que tem sua roça, tem
seus animais. Então eles vêm mais buscar estas pessoas que, por infelicidade,
não deram muito bem na vida, vivem uma situação mesmo lamentável. Eu acho
que dev ia mudar também um pouco o cenár io ( Saydel, descendente de Cabo
Verde, nascido em São Tomé)
“somos descendentes!” − contranarrativas e agenciamentos musicais...

992

“Cristais de tempo”… musicalidades e as temporalidades


Batuko foi construído em Cabo Verde pelos negros escravizados, durante o pro-
cesso de colonização, e, diferente das outras ilhas, se enraizou na ilha de San-
tiago; segundo os estudos históricos, em Cabo Verde, a escravidão regulamen-
tada esteve vigente até meados do século XIX. Contudo, as literaturas histórica
e folclorista (Gonçalves, 2006; Nogueira, 2015) afirmavam que convivência da
prática do batuko com os brancos europeus e, particularmente, com a Igreja
enquanto instituição reguladora das práticas dos sujeitos era marcada por re-
pressão e proibição.
Com o movimento de descolonização em Cabo Verde, processos variados
de modernização têm lugar no campo da cultura, entre os quais novas dinâmi-
cas na produção das formas tradicionais duramente reprimidas no período
colonial, como é o caso do batuko. Na dinâmica das relações pós-coloniais, os
shows de batuko como signo de identidade nacional, a produção musical de
vários grupos de batuko em CD/DVD, assim como apropriações do gênero por
outros grupos sociais (classe média alta) sob outros moldes, marcadores de
diferença dos grupos populares, ganham visibilidade em Cabo Verde. Igualmen-
te, na diáspora cabo-verdiana esse movimento começa a ter efeitos, particular-
mente a partir de 2001.
Conquanto os modos e artes de compor e experimentar as musicalidades
em outras diásporas cabo-verdianas visam à recriação de um território Cabo
Verde (Cidra, 2008; Barbosa & Ramos, 2008; Góis & Marques, 2008; Ribeiro, 2012),
a diáspora cabo-verdiana no arquipélago santomense é povoada por outros
movimentos existenciais, como ilustra a experiência do ritmo musicocoreográ-
fico tchabeta. Argumento que o acontecimento do trabalho contratado e es-
cravizado nas roças santomenses opera enquanto um marcador de diferenças,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 981 – 1000 , set. – dez., 2020

quando se percebe como e de que forma o movimento de desterritorialização


de corpos e pessoas cabo-verdianas atravessados por tentativas de invibilização
e desumanização possibilit(ou)a atualizações e criações dos múltiplos territóri-
os Cabo Verde, em São Tomé.
As variações em que o ritmo tchabeta foi inscrito, transformando ex-
pressões êmicas, falam do movimento de uma diáspora cuja chamada terra
prometida se tornou uma espécie de país do desterro. E, em São Tomé, a terra do
desterro ter-se-á tornado a terra prometida, a realização de um projeto emanci-
patório, onde a natureza e a chuva provedora dos alimentos impossibilitarão o
espectro da fome, criando-se modos de existência da pessoa cabo-verdiana. As
musicalidades e as práticas do tchabeta constituirão, assim, artifícios acionados
na criação de um território e corporeidades resultantes de encontros produzidos
e propiciados pelo acontecimento desterritorializante da migração contratada
para as roças santomenses.
Outrossim, as socialidades e multiplicidades dessa diáspora cabo-verdi-
ana, enquanto criação de outros modos existenciais na roça, outros territórios
artigo | carla indira carvalho semedo

993

Cabo Verde, mostram que está em jogo sinalizar como as relações com as espa-
cialidades, o mato, a coexistência com a natureza em toda a sua plenitude, são
recuperadas pelos descendentes de pessoas cabo-verdianas na roça de Agostin-
ho Neto, e não só como uma contranarrativa reatualizada nas narrativas music-
ais do ritmo tchabeta. As narrativas, as contranarrativas, enfatizam o cuidado de
como narrar e como conceber as corporeidades, e são acionadas para demarcar a
forma como os cabo-verdianos nas roças são vistos – “perdidos no mato, animal-
izados” – pelos santomenses e pelos cabo-verdianos não santomenses. O modo
como essa diáspora se pensa na relação com Cabo Verde opera numa relação di-
alética para se pensar esses lugares e essas ontologias, em que as musicalidades
condensam os vários afetos, forças e sociabilidades, subtraindo, anulando ou
intensificando-os nesses encontros.
Destarte, a experiência do tchabeta constitui artifício acionado e aco-
plado dentro de um trabalho de criação de modos ontológicos de pensar o
lugar dos descendentes de cabo-verdianos em São Tomé, quer na relação com
os forros santomenses, quer na relação com os cabo-verdianos não santo-
menses, destacando que não estão “perdidos no mato”, como tem sido pos-
tulado, bem como que Cabo Verde não é “sempre” um lugar melhor que São
Tomé e Príncipe.
Outrossim, percebendo os agenciamentos musicais enquanto atualiza-
ção de um passado vivido que vai sendo atravessado e atualizado num pre-
sente vivido, a experiência temporal de pessoas cabo-verdianas nas roças
santomenses permite revisitar as unidades de medida do tempo e as tempo-
ralidades. Desta feita, permite um diálogo com a perspetiva deleuziana sobre
tempo e memória, quando os atos de criação musicais e as narrativas musi-
cais de tchabeta possibilitam criar movimentos trans-históricos não porque
restituem outras relações às condições de descendentes de pessoas cabo-
verdianas e do trabalho contratado na sociedade santomense, mas um movi-
mento a despeito delas, pois “a história só pode recuperar ou recolocar nos
sistemas pontuais” (Deleuze & Guattari, 2008: 95), uma vez que agenciam
realidades e mundos outros.
Do mesmo modo, pelo fato de o tchabeta ter sido e estar sendo criado
em decorrência desses vários momentos de desterritorialização e reterrito-
rialização de pessoas cabo-verdianas nas roças santomenses, percebo um
certo paralelismo em pensar a prática musicocoreográfica enquanto um “cris-
tal de tempo” 6 (Deleuze, 2011), no qual várias temporalidades se aglutinam
e não se anulam, pois possibilita atravessar as várias temporalidades, não
mais o “tempo de castigo”, do contrato, pois, “um presente do futuro”, não
mais haverá o “branco” a subjugá-los; nem aos mais jovens cabe rememorar
o contrato, visto que a apropriação da roças e as possibilidades de poder
construir uma moradia, sem necessitar da autorização prévia da Edilidade
local, atualizam um projeto emancipatório de um presente-passado.
“somos descendentes!” − contranarrativas e agenciamentos musicais...

994

Embora, o batuko em Cabo Verde tenha alcançado projeção transnacional,


entendo que tal como o ritmo musical santiaguense funaná (ainda presente entre
as pessoas cabo-verdianas nas roças), o ritmo tchabeta em São Tomé e Príncipe
teria sido apropriado enquanto um espaço de criações, resultante da migração
forçada e escravizada nesse arquipélago. Nessa chave, no tchabeta percebo um
campo de possibilidades de atravessamento do tempo e narrativas não só por ser
uma expressão êmica reversa, mas por ser agenciada para criar outras versões da
história, tal como outros sujeitos na/da história. Com o tchabeta, a territorialidade
Cabo Verde aparece enquanto “um presente do passado”, um passado de fomes
deixado nesse arquipélago, e que constitui ainda um presente pelas e nas marcas
corporais da fome, das então pessoas em situação de contrato, à “necessidade de
se sucumbir a ter que vir no navio pra São Tomé”, resignadas à sorte do destino
− “sobrevivemos à fome… a vida pode melhorar” − e, em seguida, se reterritoriali-
zar num “presente melhor” em São Tomé e Príncipe, apesar dos reveses do sul,
quando asseveram: “São Tomé e Príncipe é bom e se vive ‘remediado’, como tam-
bém é o ‘inferno’; igualmente Cabo Verde parece ser um ‘país bom’, mas ‘não de
viver, só pra passear’”.
O ritmo tchabeta, reitero, constitui paralelismo a um cristal de tempo, que
aglutina temporalidades atualizadas por pessoas marcadas e povoadas por his-
toricidades múltiplas, pois não somente os integrantes dos coletivos do tchabeta
vivenciaram temporalidades e historicidades múltipas, como também os ouvintes
desse ritmo são povoados por essas multiplicidades e singularidades históricas,
compondo assim múltiplos e singulares Cabos Verdes. Um “presente do passado”
de ‘Cabo Verde’ dos anos 1940 ressoando na memória dos idosos, marcados e
maculados pelas secas, pela fome, pelos usos coloniais e capitalistas acoplados
a um quotidiano de fome e à eminência de mortes, que se desmancha num “pre-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 981 – 1000 , set. – dez., 2020

sente do presente” do encontro de um “Cabo Verde” em que pulsa a modernização,


nos marcadores e nas materialidades que acionam: as estradas, a iluminação e
as infraestruturas. Um “Cabo Verde” em que a memória da fome e de navios atra-
cados nos portos, aguardando pessoas em situação de contrato para as roças
santomenses, não cabe mais nesse quotidiano, é uma “memória passada não mais
rememorada”.
O encontro de “um Cabo Verde” retoma também as outras “pontas de pre-
sente” (Deleuze, 2011), ainda que sob modulações diferenciadas quer nos cabo-
verdianos em condição de contratados, quer nos “descendentes”. Diferentemente
do que ocorreu aos cabo-verdianos que vieram em situação de contrato para as
roças, os modos narrativos e de agência dos “descendentes” passam por conceber
Cabo Verde como um “presente do futuro” onde outras experiências e outros
projetos de vida podem ou poderão ser criados − seja dentro de um projeto mi-
gracional menos de retorno ao país dos pais e mais como um destino migracional,
seja em outra chave como um destino de passagem, dentro da existência nômade
e não de permanência, já que São Tomé e Príncipe permanece um país bom para
se viver.
artigo | carla indira carvalho semedo

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Importa sinalizar, no coletivo dos descendentes, “Cabo Verde” constitui-


se menos enquanto um “presente do passado”, em que nem compartilham
nem acionam as narrativas das fomes, das secas para produzir os arranjos
dos modos de existência – caso dos seus pais e avós cabo-verdianos − e menos
também como um terra prometida, da qual almejam conservar os legados
culturais: a diáspora que procura a manutenção e a recriação dos traços tidos
como idiossincráticos do povo cabo-verdiano. E, mais, se se pensar como a
possibilidade de existir em São Tomé e Príncipe, criando-se nessa retroali-
mentação com a sociedade santomense, na fala de Gualter: “Cabo Verde está
lá, nós estamos aqui. Nós somos descendentes de cabo-verdianos que de lá
vieram, que são os cabo-verdianos”. Assim, a prática do tchabeta constitui
um campo de possibilidades tanto aos que vieram em situação de contrato
retomar esse Cabo Verde de fomes, para que a história dessa migração seja
rememorada por suas falas, como também, para os descendentes, possibilidade
de falar da condição de ser descendente dessa experiência atroz e, apesar
disso, ter conseguido criar vidas numa experiência de dor e sofrimento.
As narrativas e práticas de meus interlocutores − por afirmar a potência
do tempo e como o passado, mais que um rememorar, torna-se numa possibi-
lidade de transformação, subjetividades sendo afetadas e potencializadas no
encontro com as múltiplas temporalidades − nos mostram que o tchabeta não
é uma tentativa floclorista de replicar um Cabo Verde no espaço santomense,
mas é principalmente poder criar um território existencial naquela que inicial-
mente era a terra do desterro: São Tomé e Príncipe. Quando agenciam outras
possibilidades e realidades com o tchabeta, criando outros sujeitos num pro-
cesso histórico que visou desumanizá-los, criam outras histórias e rompem
com a história única que deles foi criada e com (n)a qual são narrados, nos
lembram as leituras deleuzianas sobre Henri Bergson (Deleuze, 2011: 103), de
que “o tempo não é o interior em nós, é justamente o contrário, a interioridade
na qual estamos, nos movemos e mudamos”.

Recebido em 26/6/2019 | Revisto em 19/5/2020 | Aprovado em 20/5/2020

Carla Indira Carvalho Semedo é doutora em antropologia social pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional, mestre em antropologia
social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e graduada em sociologia
pela Universidade Jean Piaget de Cabo Verde, onde atua como professora auxiliar.
Tem como áreas de interesse: práticas de cura, musicalidades, diáspora cabo-
verdiana em São Tomé e Príncipe, e memórias coloniais. Publicou “Musicalidades
das cabo-verdianas nas roças de São Tomé e Príncipe” e “Noções estéticas na
performance do batuko: experiência etnográfica entre as batukadeiras de São
Martinho Grande (Ilha de Santiago-Cabo Verde)”.
“somos descendentes!” − contranarrativas e agenciamentos musicais...

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NOTAS
1 Este artigo propõe uma releitura dos resultados da pes-
quisa realizada no âmbito do doutorado em antropologia
social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro /Museu
Nacional, com apoio de bolsa Capes PEC-PG. A tese resul-
tante de tal pesquisa debruça-se sobre a comunidade
cabo-verdiana residente nas roças de São Tomé e Príncipe,
explorando tanto as narrativas dessa migração como as
exper iências dessa comunidade no presente tempo et-
nográfico.
2 Sobre a metodologia, a pesquisa de campo foi realizada
exclusivamente na ilha de São Tomé de janeiro a julho de
2013 e de novembro de 2014 a janeiro de 2015. Interessou
registrar as narrativas dos idosos cabo-verdianos alusivas
à experiência de contrato e, no Arquivo Histórico Nacional
de São Tomé e de Cabo Verde, pesquisas sobre a migração
contratada. Num segundo momento, fez-se etnografia do
quotidiano e as relações na roça Agostinho Neto a partir
do contato com os dois grupos de Tchabeta lá existentes.
3 Conforme os registros históricos (Carreira, 1977; Carreira,
1983; Andrade, 1996), a formação da diáspora cabo-ver-
diana teria começado entre finais do século XIX e inícios
do XX, muito condicionada pelas vulnerabilidades ecoló-
gica e ambiental (clima árido e escassez de chuvas). Ini-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 981 – 1000 , set. – dez., 2020

cialmente para os Estados Unidos da América nas então


embarcações pesqueiras (de baleia), para São Tomé e
Príncipe e Angola, posteriormente Europa, outros países
da Africa e América.
4 O cr ioulo cabo-verdiano é a líng ua de conversação – a
língua materna. O português cabo-verdiano, a língua ofi-
cial, aparece falado unicamente em situações cerimoniais,
nas salas de aula, nos manuais escolares e na mídia.
5 Conforme registros históricos (Carreira, 1984), a migração
cabo-verdiana para São Tomé e Príncipe – “santa praça”
– se equipara a uma “condenação a degredo” e, em decor-
rência, recr iada numa chave de “mig ração pra Sul”. Se-
gundo pontua Carreira (1984: 175), “a ida dos cabo-verdia-
nos para as roças de São Tomé e Príncipe foi sempre con-
siderada no arquipélago uma deportação ou mais pro-
pr iamente uma condenação a deg redo – sem se ter co-
artigo | carla indira carvalho semedo

997

metido crime algum. Tanto é assim que não se dizia que


alguém embarcou para S.Tomé, mas que ‘embarcou para
o Sul’, alusão ao envio de condenados de delitos comuns
pelos Tribunais ordinários para Angola, onde iam cumprir
penas – como era corrente. Por outro lado, no consenso
geral o ‘dar nome’ ao agente recrutador para a efetivação
do contrato de trabalho para São Tomé e Príncipe corre-
spondia a uma autocondenação. O contrato para o Sul era
o último recurso a lançar mão, uma vez reconhecida a
impossibilidade de emigrar para qualquer outro país”.
6 A partir das leituras bergsonianas sobre o tempo e a me-
mória (imagem lembrança e imagem atual), a noção de
“cristal de tempo” em Deleuze (2011: 103) articula-se com
a noção de “imagem-cristal”, que constitui a “operação
mais fundamental do tempo: já que o passado não se
constitui depois do presente que ele foi mas ao mesmo
tempo, é preciso que o tempo se desdobre a cada instan-
te em presente e passado”. Por conseguinte, “o cristal, com
efeito, não para de trocar as duas imagens distintas que
o constituem, a imagem atual do presente que passa e a
imagem virtual do passado que se conserva.” E esses es-
tados cristalinos Deleuze (2011: 103) nomeia “cristal de
tempo”: “o passado coexiste com o presente que ele foi;
o passado se conser va em si, como passado geral (não
cronológico); o tempo se desdobra a cada instante em pre-
sente e passado, presente que passa e passado que se
conserva”.

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“somos descendentes!” − contranarrativas e agenciamentos musicais...

1000

“Somos descendentes!” Contranarrativas


e agenciamentos musicais dos coletivos de
Tchabeta na roça Agostinho Neto (São
Tomé e Príncipe)
Resumo Palavras-chave
Cabo Verde, localizado na costa ocidental da África, é recon- Tchabeta;
hecido como país marcadamente migratório. Entre vários reterritorialização;
destinos das pessoas cabo-verdianas, a experiência mi- territórios existenciais;
gratória em São Tomé e Príncipe foi concebida e narrada São Tomé e Príncipe;
como o retrato da “pior migração” cabo-verdiana, por rever- Cabo Verde.
berar a experimentação da escravidão e reforçar uma negri-
tude renegada. À luz da forma como a prática musicoco-
reográfica tchabeta aparece mobilizada no quotidiano das
pessoas cabo-verdianas e os descendentes em São Tomé e
Príncipe, as musicalidades constituem um mecanismo de
reterritorialização e criação de um território existencial no
arquipélago santomense. O que está em jogo é uma reatual-
ização dos vários cristais de tempo: um batuko reprimido e
silenciado do tempo colonial/do branco para um tchabeta
que permite outros espaços e outros modos existenciais no
território santomense.

“We are descendants!” contranarratives


and musical agencies of the collectives of
tchabeta in Roça Agostinho Neto
(São Tomé and Príncipe)
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 981 – 1000 , set. – dez., 2020

Abstract Keywords
Cape Verde, located on the West Coast of Africa, is recog- Gentrification;
nized as being a highly migratory country. Among several new-build gentrification;
Cape Verdean destinations, the migratory experience in São urban mobility;
Tomé and Príncipe was conceived and narrated as the por- urban policies;
trait of the Cape Verdean “worst migration”, reverberating socio-spatial inequalities.
the experimentation of slavery and reinforcing a denied
negritude. In light of the way the Tchabeta musical-choreo-
graphic practice appears mobilized in the practices of Cape
Verdean people and the descendants in São Tomé and Prín-
cipe, musicality is a mechanism of reterritorialization and
creation of an existential territory in the São Toméan archi-
pelago. And what is at stake is a re-updating of the various
crystals of time: a repressed and silenced Batuko from colo-
nial time/from white to a tchabeta which allows other spac-
es and other existential modes in the territory of São Tomé.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v10310

1 Universidade Federal de Pernambco (UFPE), Departamento de Sociologia,


Recife, Pernambuco, Brasil
cynthiahamlin@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-8370-2192

Cynthia Lins Hamlin I

Gender ideology: an analysis of its disputed


meanings 1

Opposition to gender has become a central element in the discourses and ini-
tiatives of the “global right”. Although the convergence between anti-gender
movements and other manifestations of the new right takes distinct and some-
times contradictory forms 2 (Paternotte & Kuhar, 2018; Corrêa, Paternotte & Ku-
har, 2018), the dismantling of a series of polices for social inclusion and reduc-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1001 – 1022 , sep. – dec., 2020

ing inequalities is at stake. Ideologues of the new right such as Steve Bannon 3
and Olavo de Carvalho have waged a “culture war” 4 on enemies like “gender
ideology,” “globalism” and “cultural Marxism.” As Mirrlees (2018: 49) argues,
these epithets act as full-blown “political instruments of intersectional hate”
that are applied to values, practices, and identities of a progressive, liberal, or
left-wing inclination. They are mobilized and combined in varying forms de-
pending on the type of enemy to be attacked: organizations, parties or spe-
cific groups like “communists, blacks, gays, feminists and all those who do not
share their mental universe” (Messenberg, 2017: 637).
Much as they prove theoretically and empirically flimsy, many of these
counter-narratives are based on the reinterpretation of empirical data, concepts
and, more generally, theoretical perspectives developed by academics: “cul-
tural Marxism” is a distortion of the tradition of Western Marxism, especially
Gramsci and the first generation of the Frankfurt School; “globalism” is a dis-
tortion of the critiques of the economic dimension of globalization, considered
an integral part of “cultural Marxism”; “gender ideology” and “gender theory”
gender ideology: an analysis of its disputed meanings

1002

are distortions of feminist and gender theories, in particular queer theory. In


this specific sense, we are faced with “projects of alternative knowledge pro-
duction” (Bracke & Paternotte, 2016: 144) or, in more Foucauldian terms, the
construction of a new episteme: “a system that produces and organizes knowl-
edge and truth, located strongly in social fields such as religion, education,
media and research” (Verloo, 2018: 22).
The academic response has taken the form of genealogies that set out to
account for the conditions of emergence of the notion of “gender ideology” uti-
lized by the right, emphasizing religious discourse especially. There is also a
considerable literature on how “gender ideology” has become associated with
“cultural Marxism,” particularly, in the Brazilian context, in the development and
political uses of the Escola sem Partido (Non-Party School) program in the area
of education (Miguel, 2016; Junqueira, 2017; Corrêa, Paternotte & Kuhar, 2018).
However, in emphasizing the political-moral forces that enabled the
emergence of these discourses connected to right-wing populism, most of these
analyses do not examine the internal meanings that the concept of gender
ideology (without quotation marks) had already acquired within feminist the-
ory itself. While the critique of the uses of the expression as a weapon in the
culture war is justified on ethico-political grounds, ignoring the previous his-
tory of the sociological concept has the effect of rendering invisible an entire
intellectual framework produced by feminist academics, thus contributing, al-
beit involuntarily, to the process of theoretical-conceptual distortion and/or
erasure that grounds the epistemic project of the global right. In fact, much of
the literature on the theme of gender ideology – and this is not limited to Bra-
zil – has ignored or denied the existence of the concept in the social sciences,
something that has been repeated exhaustively in the media. Only a few works,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1001 – 1022 , sep. – dec., 2020

such as Junqueira (2017: 27), recognize gender ideology as a concept in the


social sciences, generally in passing references that fail to explore the tension
between the disputed meanings of the phrase. The silence concerning this issue
seems unjustified to me. The systematic disqualification of academic discourse
is part of a dispute for hegemony that certainly does not suggest a good prog-
nosis for academia if its main strategy consists of accepting that the terms of
the debate are based on the systematic distortion and/or erasure of its own
concepts.
In this work, I set out to illustrate the plethora of meanings associated
with academic discourse on gender ideology and argue that, via distinct though
not necessarily competing paths, these meanings converge through a radical
negation of the anti-gender discourse of the new right. To this end, I construct
my argument in two parts. First, I will map a distinction between, on one hand,
a “gender ideology” (in quotation marks) as part of the anti-gender project and,
on the other, gender ideology (without quotation marks) as part of the feminist
project. This distinction involves a summary of the main arguments developed
article | cynthia lins hamlin

1003

in the genealogical studies concerning the emergence of the “gender ideology”


discourse of the global right, followed by a brief explanation of the principal
meanings associated with the concept’s use in academic research. The second
part of the article involves an exercise in the history of ideas 5 focused on the
sociology of Viola Klein, whose analyses of the “ideology of the feminine char-
acter” constitute one of the first theoretical explorations of the theme of gen-
der ideology. Klein’s work, based on Karl Mannheim’s sociology of knowledge
elucidates two important questions: firstly, academic studies of gender, from
their outset, have been based on a constructivist approach that is profoundly
antithetical to the naturalizing and essentializing discourse of the global right;
secondly, and no less importantly, gender, as a social construct, is deeply tied
to the production of narratives about the meaning of femininity and masculin-
ity. An assessment of Klein’s valuable contributions to sociology offers an ex-
emplar of the kind of academic reflections on gender ideology that risk being
erased should the social-scientific response to the discourse of the new right
be reduced to ignoring the concept as part of the social science lexicon.

“Gender Ideology” and Gender Ideology: Disputed Meanings


The recent literature on “gender ideology” has emphasized the use of the ex-
pression as opposition to and rejection of the concept of gender through a
series of discussions surrounding women’s reproductive health, sexual educa-
tion, recognition of the identity of trans persons, same-sex marriage, or adop-
tion by non-heterosexual couples (Miskolci & Campana, 2017; Cornejo-Valle &
Pichardo, 2017). Although these works emphasize the fact that the Catholic
Church does not have a monopoly on this opposition, it is not only considered
one of its main protagonists, sometimes it is also identified as responsible for
inventing the term gender ideology (Bracke & Patternote, 2016; Case, 2016). These
works also specify that opposition to gender became more visible as a response
to its use in mainstream policies proposed at the United Nations Conference
in Cairo, 1994, and in Beijing, 1995, when the term “woman,” used in the previ-
ous conferences, was substituted by the term “gender.” This substitution met
with resistance among the coalition of diverse religious actors attending the
conferences: the Vatican, the US Christian right, and a diverse group of Chris-
tian-and Islamic-majority states (Butler, 2004). The terminological variability
of the opposition to gender has also been explored in recent investigations of
the theme: “gender ideology,” in the contexts of Latin America, Africa, and some
European countries (like Poland and Italy), transforms into “gender theory” in
the French context (Fassin, 2016; Garbagnoli, 2016) and occasionally too in the
Brazil of Minister Damares Alves.
Beyond their differences, these discourses operate by reducing gender
to (binary) sex through a simplified and distorted representation of biology
itself: “since religion’s capacity to justify gender ideology collapsed, biology has
gender ideology: an analysis of its disputed meanings

1004

been called in to fill the gap” (Connell, 2005: 46). Hence, the religious discourse
of the Catholic Church became modernized through an anthropology of com-
plementarity according to which human beings are conceived as biologically
sexed and the sexes as essentially different (biological dualism), “though not
unequal” (Case, 2016: 155). Difference was distinguished from inequality through
a kind of anti-colonialism that, read more closely, reveals itself to be a form of
opposition to international organizations like the UN, UNESCO, the OECD, and
others that have developed gender equality policies. A speech by Pope Francis
in Poland on World Youth Day, July 16, 2016, clearly illustrates this strategy:

In Europe, America, Latin America, Africa, and in some countries of Asia, there
are genuine forms of ideological colonization taking place. And one of these – I
will call it clearly by its name – is [the ideolog y of ] gender. Today children – chil-
dren! – are taught in school that ever yone can choose his or her sex. Why are
they teaching this? Because the books are provided by the persons and institu-
tions that give you money. These forms of ideological colonization are also sup-
ported by inf luential countries. And this [is] terrible! […] In a conversation with
Pope Benedict […] he said to me: ‘Holiness, this is the age of sin against God the
Creator.’ God created man and woman; God created the world in a certain way…
and we are doing the exact opposite. God gave us things in a ‘raw’ state, so that
we could shape a culture; and then with this culture, we are shaping things that
bring us back to the ‘raw’ state! (quoted in Bracke & Paternotte, 2016: 143).

Although the Vatican’s theological anthropology indicates some compat-


ibility with the liberal idea of reducing inequalities in opportunities, an idea
that guides international organizations like those cited, what is offered by one
hand is violently taken away by the other when the Church suggests that inclu-
sion policies are forms of ideological colonization. In fact, the religious use of
academic jargon not only establishes a distinction between nature and culture
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1001 – 1022 , sep. – dec., 2020

in which the former takes a primary role; more fundamentally, what is in ques-
tion are the diverse forms of social constructivism.
It is precisely under the guise of constructivism, understood in the broad
sense of a form of anti-essentialism and anti-reductionism, that the studies of
gender ideology developed in the social sciences can be understood. Since their
earliest formulations, these studies have emphasized the socially constructed
dimension of the meanings of femininity and masculinity. As occurs in the
anti-gender discourse, studies of gender ideology also present an ample termi-
nological variation: 6 gender ideology, sexual role ideology, gender role ideology,
attitudes about gender, attitudes relating to gender, gender equality, and beliefs
about gender are expressions that have been used with a similar meaning in a
series of research studies in areas like sociology, anthropology, psychology, ad-
ministration, literary studies and so on (Davis & Greenstein, 2009). The use of
one term over another is generally due to conceptual distinctions within the
field, 7 but Kroska (2007: 1867-1868) summarizes the issue adroitly:
article | cynthia lins hamlin

1005

Both gender ideolog y and gender role ideolog y refer to attitudes regarding the
appropriate roles, rights, and responsibilities of women and men in society. The
concept can ref lect these attitudes generally or in a specific domain, such as an
economic, familial, legal, political, and/or social domain. Most gender ideolog y
constr ucts are unidimensional and range from tradit ional, conser vat ive, or
anti-feminist to egalitarian, liberal, or feminist. […] Gender ideolog y also some-
times refers to widespread societal beliefs that legitimate gender inequality. […]
Used in this way, gender ideolog y is not a variable that ranges from conservati-
ve to liberal; instead, it refers to specific types of beliefs – those that support
gender stratification.

The differences highlighted by Kroska reflect the polysemy of the concept


of ideology itself. The use of the term in the social sciences can involve every-
thing from sophisticated theoretical models to the simple identification of a
set of shared ideas about a particular theme. 8 In sum, the concept of ideology
has been given two main meanings over its more than 200 years of history: a
critical, negative or prescriptive meaning, “used to evaluate a state of affairs”
through association with ideas like inversion, distortion, mystification, false
consciousness, reification, alienation, illusion, misrepresentation, bias, domina-
tion, interpellation and subjectivation; and a descriptive or neutral meaning
whereby “ideologies can be regarded as ‘systems of thought,’ ‘systems of belief’
or ‘symbolic systems’ which pertain to social action or social practice” (Thomp-
son, 2000: 14). From a theoretical viewpoint, the negative or prescriptive con-
ception of ideology is associated primarily with the work of Marx and Engels
(though it may involve readings deeply critical of their humanism, as found
among ‘post-Marxists’ such as Zizek and Laclau); 9 while the descriptive or neu-
tral conception is found especially in the work of Karl Mannheim (see note 12).
The form in which the expression gender ideology is used in academic
studies depends, therefore, on the conception of ideology adopted. However, it
is important to note that, in practice, the separation sustained by Kroska is not
always maintained: it is possible to identify authors who use both conceptions
of ideology when they refer to gender ideology. Furthermore, some studies can
clearly be characterized as studies on gender ideology – i.e., studies that focus
specifically on the identification, classification, or understanding of these ide-
ologies – while others merely refer to the term in order to integrate the ideo-
logical dimension with other analytic themes and domains of social life.
One of the main focal points of studies on gender ideology is the meas-
urement of “individuals’ levels of support for a division of paid work and fam-
ily responsibilities that is based on the belief in gendered separate spheres”
(Davis & Greenstein, 2009: 87). These tend to be descriptive studies of individ-
ual beliefs and practices relating to the division of paid and unpaid work. Many
of these studies are presented in the form of attitude scales or large surveys in
which theory plays a minor role – examples being the General Social Survey
gender ideology: an analysis of its disputed meanings

1006

linked to the United States Census, the World Values Survey, and surveys like
those developed by the International Social Survey Program. As Kroska empha-
sizes, this type of survey tends to work with one-dimensional conceptions of
gender ideology. Recent research, though, has argued in favor of multivariate
approaches that transcend the developmentalist premise expressed in the tra-
ditional/modern divide. Grunow, Begall and Buchler (2018), for example, in a
comparative study of eight European countries, construct distinct clusters
through the identification and differential combination of five profiles that
potentially coexist in different domains of social life: egalitarian, essentialist
egalitarian, intensive parental care, moderate traditional and traditional (see
too Araújo & Scalon, 2006).
Studies on gender ideology can also take a historical and critical ap-
proach, as in the case of Besse (1999), who describes the reconfiguration of
Brazilian patriarchy in the Vargas Era (1930-1945) through an ideological anal-
ysis of the gender system in the family, education, the labor market, and poli-
tics. Gender ideology appears in these domains as a way of reconciling the
demands of modernization and economic development with the stability of
existing power relations.
Studies of gender ideology have been particularly impactful in the soci-
ology of work. An example is the classic text The second shift by Hochschild and
Machung (2003) in which the authors break with the quantitative emphasis
characteristic of most attitude scales by replacing closed questionnaires with
participant observation and interviews. Their aim is to understand the “emo-
tional work” involved in the interpersonal tensions between couples in eco-
nomic contexts marked by rapid change. The comprehension of this emotion-
al work involves the identification and negotiation of “traditional,” “egalitarian”
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1001 – 1022 , sep. – dec., 2020

or “transitional” gender ideologies among couples, as well as the conflicts pre-


sent in the division of labor. The starting point of the research, characteristic
of the first formulations of the concept in general, is that the influx of women
into the paid labor market has not been accompanied by cultural changes re-
garding the meaning of marriage and work itself.
Hochschild and Machung’s work is located at the interface of what I call
studies on gender ideology and studies that make use of the notion of gender
ideology to integrate the theme of ideology with diverse analytical topics and perspec-
tives. Many other research studies linked to the sociology of work make similar
use of the notion of gender ideology, whether in relation to domestic work or
“in the production system [which] orient distinct management practices” (Heil-
born & Sorj, 1999: 19-20).
This latter use of the concept of gender ideology is by far the most wide-
spread in the feminist and gender literature, and, as in the preceding case, may
alternate between both meanings of ideology. By way of illustration, – and ex-
cluding here its correlates like “ideology of femininity,” “ideology of masculin-
article | cynthia lins hamlin

1007

ity” or “patriarchal ideology” –, the term appears in analytic topics and perspectives
as distinct as Saffioti (2009: 26 and ff), Longino (1993: 102 and ff), De Lauretis (1987,
Chapter 1) and Collins (1990: 183 and ff). An endless multiplicity of such examples
exist, but Raewyn Connell provides a good summation of what is involved:

In Gender and power [Connell, 2003], I have a chapter called “Sexual ideolog y” (which
would have been better called “Gender ideolog y” ). Looking at it now, I think the
chapter oscillates bet ween the t wo meanings in a potentially confusing way. In
Gender: in world perspective [Connell & Pearse, 2015] I tried to solve such ambiguities,
and integrate the cultural analysis better into the structural analysis, by defining
culture/symbolism/communication as one of the four substructures of gender. This,
in effect, generalizes the “neutral” version of ideolog y, which is treated as a terrain
of social practice on which political struggles occur. The critical analysis becomes
a second layer of analysis, when we see cultural formations such as fashion, theology,
sport, pop music and school curr icula as bearers of gendered interests resulting
from structural inequality. […] the feminist and social-scientific literature shows
both the critical and the neutral usage of “ideolog y” when it treats gender. In my
work they sometimes intermingle (e.g. chapter 11 of Gender and power), and someti-
mes move towards one or the other pole. (E.g. my discussion of hegemonic mascu-
linity rests on a critical theor y of ideolog y, derived ultimately from Gramsci and
Lukács.) I think you would be right to say that I’m not a “gender ideology” researcher.
But you would have to say that I have tried to integrate the problem of ideolog y into
an approach to gender that also gives weight to material interests, economies, states,
violence and sexuality. The point (I think) is that good ideology-critique never stands
alone (personal communication via email. Reproduced with the author’s permission).

Even in cases where the analysis of gender ideology is not the sole or the pri-
mary aim of the research, therefore, it may constitute an important aspect of the ex-
amination of the cultural dimension of gender relations in society. Use of the term
varies from case to case – for instance, adhering to a theoretical framework inspired
by Lukács, Saffioti uses a critical conception of the term; De Lauretis also works
with its critical meaning, but from a perspective rooted in Althusser; Collins oscil-
lates between a critical meaning associated with the work of authors like Franz
Fanon and Paulo Freire, and a more descriptive meaning.10
Having demonstrated the diffusion of the term in the humanities, as well
as the plethora of meanings associated with its use, I now turn to the work of Viola
Klein to illustrate how its meanings in the sociology of knowledge prompt a series
of questions that ultimately lead to conceiving of gender itself as a social construct.
Viola Klein’s pioneering work focuses particularly on the relation between knowl-
edge and the social production of gender, albeit not always in a consistent fashion.

The Sociology of Knowledge and the Ideology of the


Feminine Character
Viola Klein (1908-1973) belongs to a generation of intellectuals whose work was
published between the 1940s and the beginning of the 1960s – thus between the
first and second wave of feminism. Less well known than some of her contempo-
gender ideology: an analysis of its disputed meanings

1008

raries, such as Margaret Mead, Simone de Beauvoir and Mirra Komarovsky, Klein
shared with them and others of their generation themes like the malleability
of the human personality, the social construction of femininity, and the ideo-
logical justifications that reinforce women’s position of subordination (Tirrant,
2006). In Klein’s case, these themes, fundamental to the later development of
the concept of gender, also involved another form of constructivism that was
epistemological in kind.
Born in Vienna during the Austro-Hungarian Empire, Klein came from
a politically progressive Jewish family in which women’s independence was
encouraged. In 1928, she spent a year studying at the Sorbonne before head-
ing to the University of Vienna and later moving to Czechoslovakia with her
family. After four years working as editor at a newspaper, she studied French,
Spanish, philosophy, and psychology (including psychoanalysis), obtaining
her first doctorate at the University of Prague in French literature in 1937.
Although Klein was already interested in the “woman question” – she pub-
lished articles on marriage and on the persistence of prostitution in the So-
viet Union – the topic of her first thesis was the work of Louis-Ferdinand
Céline, known for his direct prose, closer to the working classes, and for his
antisemitic positions (Tirrant, 2006; Lyon, 2007). Klein’s analysis of the “the
social nature of linguistic constructions and usage addressed in her thesis,
and the ways in which oppressive lived realities become ideologically con-
structed in opportunistic political and scientific discourse” (Lyon, 2007: 831)
are still pertinent and relevant, and profoundly marked her intellectual tra-
jectory. It was also through the research involved in this thesis that she came
across Karl Mannheim’s work. In 1939, shortly before the German invasion
of Prague, Klein and her brother fled to England where she worked as a
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1001 – 1022 , sep. – dec., 2020

housemaid for about two years before obtaining a scholarship from the Czech
government in exile to study social sciences at the London School of Econom-
ics. In 1941, she met Mannheim, also exiled in London after the rise of Na-
zism, with the idea of a project on women’s emancipation (Lyon, 2007).
Since the 1930s, while still at the University of Frankfurt, Mannheim
had already considered the situation of women to be an important theme,
supervising various female doctoral students. In 1932, in a speech addressed
to Dutch students, Mannheim (1993) makes this importance clear when he
argues that class cannot be considered the only social group capable of self-
consciousness and rational transformation of the world. For him, the impulse
towards self-consciousness has been present throughout history and arose
from contact with alterity or the perspective of an Other. In this sense, self-
consciousness cannot be reduced to a class perspective but includes other
groups, like intellectuals, women, or young people. In sum, groups that found
themselves in a crisis due to the discrepancy between their objective social
situation and the conceptions through which they framed their actions, lead-
article | cynthia lins hamlin

1009

ing towards self-knowledge and towards the critique of the kind of knowl-
edge produced about them. This was translated to the plane of women in the
following form:

We see everywhere (although in variable degrees and in different forms) woman


becoming more conscious of her own being. She has begun to ref lect about her-
self. Undoubtedly, she was not the first to do so: everybody knew what woman
was, as her partner, or rather her opponent, imagining how they would like her
to be. The striking fact is that man occupied the dominant position and could
express his thoughts, while woman lacked a consciousness of her own, and ac-
cepted his thoughts about her as binding truth, both in her spiritual life and in
her everyday action (Mannheim, 1993: 73).

While emphasizing his debt to the theory of knowledge present in Marx’s


work, Mannheim introduced a far more pluralistic perspective by stressing that
our interpretation of the world invariably stems from belonging to distinct
groups. In an important sense, Mannheim contributed decisively to identifying
forms of injustice that are irreducible to questions of economic redistribution.
From an epistemological perspective, his sociology of knowledge also pro-
claimed the importance of the researcher’s self-consciousness in relation to
their localization for, only then, setting out from this personal experience in
the world, can they establish the critical distance necessary to sociology: “those
who have not yet despaired of their own situation cannot truly enter sociology
and should abandon it” (Mannheim, quoted in Gianoncelli, 2016: 49). This reflec-
tion not only explains his pioneering interest in a sociology of women, but
also reveals the intimate relations that he established between knowledge and
politics, a concern deepened after his arrival in England. In this new phase of
his work, sociology’s objective was no longer simply to counter heteronomous
factors that obscure self-consciousness and individual autonomy, but to pro-
mote mobilization and social planning (Kettler & Meja, 1993) – revealing an
intense preoccupation with the formation of a welfare state that, by safeguard-
ing individual freedoms, would oppose “conservative historicism, bourgeois
liberalism, socialism and communism, [and] fascism” (Villas Bôas, 2002: 127).
Beyond the interest in women, Klein shared with Mannheim a culture
that valued the idea of Reason present in the Enlightenment (in the sense of
Bildung, or formation/education), a multidisciplinary approach to social ques-
tions, the interest in art and literature, and support to social democratic move-
ments (Lyon, 2007). Although he believed that she could equally have chosen
antisemitism as a research topic, even recommending that she read a project
coordinated by Max Horkheimer at Columbia University (Kettler & Meja, 1993),
Mannheim agreed to supervise what would become her second doctoral thesis.
Completed in 1944 under the title Feminism and anti-feminism: a study in ideolo-
gies and social attitudes, the thesis was subsequently published in 1946 with a
new title suggested by Mannheim: The feminine character: history of an ideology.
gender ideology: an analysis of its disputed meanings

1010

Klein’s proposed research question was to know “whether there are traits
which can be called typically feminine, what these traits are, and whether they
have always been regarded as characteristic of women” (Klein, 1972: 1). She
believed that, given its emotional resonance, the theme was particularly suited
to demonstrating the influence of unconscious and irrational factors on scien-
tific theories. Considering scientific knowledge to be situated within a broader
“cultural system,” she concluded that the theories produced about women reflect
three main elements: the status of women in each society, the ideologies relat-
ing to women in a given historical period, and the personal attitudes of research-
ers in relation to women. These three elements were integrated into her anal-
ysis of the “feminine character” 11 in biology (Havellock Ellis), philosophy (Otto
Weiniger), psychoanalysis (Freud), experimental psychology (Helen Thompson),
psychometry (L. M. Terman and C. C. Miles), history (Mathilde Vaerting), anthro-
pology (Margaret Mead) and sociology (W.I. Thomas).
From a theoretical standpoint, Klein began with the incompatibility be-
tween the “objective situation of women,” who were beginning to participate
in the public sphere in large numbers, and the perspectives that were supposed
to inform their actions, which still emphasized an ideology of domesticity. Lim-
iting her analysis to middle and upper-middle class women, based on the prem-
ise that working class women were never outside the paid labor market, Klein
explains this objective situation through factors like shrinking family size, the
creation of a compulsory school system, and greater attention to education in
general, as well as an increase in the number of women in the paid labor mar-
ket before marriage. This situation created a dilemma at the psychological
level, resulting from the contrast between changes in the material dimension
without something comparable occurring at the ideological level. Thus, women
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1001 – 1022 , sep. – dec., 2020

from her generation were guided by two incompatible ideologies: one empha-
sizing “the quality of rights and capacities,” the other emphasizing traditional
roles linked to the domestic sphere: “The characteristic feminine conflict of
our time is that put forward by the domestic sphere on the one side, and the
business sphere on the other” (Klein, 1972: 33).
But it is in scientific knowledge production that Klein would seek the
traces of these ideologies and conclude that, in different degrees and emphases,
theories concerning the “feminine character” are heavily influenced by an ide-
ology of domesticity that emphasizes traits like “passivity, emotionality, lack
of abstract interests, greater intensity of personal relationships, and an instinc-
tive tenderness for babies” (Klein, 1972: 164).
From a methodological viewpoint, her thesis adopts Mannheim’s “inte-
grative method,” combining different aspects of the same problem according
to how it was treated by authors who studied the topic within a particular
period:
article | cynthia lins hamlin

1011

‘Truth’ in social matters presents itself in terms of various ‘perspectives.’ By the


method of a Sociology of Knowledge these ‘perspectives’ are exposed to criticism
and, as time goes on, an ever r icher ‘integ ration sui generis’ of these aspects
becomes possible by an ever fuller understanding of their partiality. Relativism
is thereby avoided, and a theor y of ‘Relationism’ established which takes into
account the fact that knowledge of social matters is connected with the social
and cultural background (Klein, 1972: 3).

Additionally, although Klein provides no explicit link to the type of “so-


cioanalysis” that she undertook, the conception of knowledge underlying her
doctoral thesis echoed her supervisor’s concerns:

The search for truth in sociological matters calls not only for a thorough exami-
nation of the facts, but for a dynamic process of self-cr iticism, in which the
diag nosis of our own ‘perspective’ (i.e. our place in the histor ical and social
process) and a continuous analysis of the unconscious motivations guiding our
observations are of prime importance (Klein, 1972: 3).

Inspired perhaps by this kind of reflection, Klein did not limit herself to
simply revealing the ideological dimension of the theories about the feminine
character in her own time, but included a socio-psychological premise that
also anticipates questions connected to what we today understand as pro-
cesses of subjectivation: women, as well as

foreigners, Jews, Negroes, etc. […] are subject to collective judgements instead
of being treated on their own merits. […] To be judged, not as an individual but
as a member of a stereotyped group, implies an incalculable amount of restric-
tions, discouragement, ill-feelings – even if the occasional f lattering generali-
zation may help to bolster up a weakening ego (Klein, 1972: 4-5 ).

Nowhere in her thesis does Klein define the concept of ideology, but
there are indications that she subscribes to Mannheim’s dual conception: 12 as
well as making use of the concept to refer to systems or worldviews – espe-
cially political ones (when she refers, for instance, to “democratic ideology” or
“liberal ideology”) –, ideology also appears as a synonym for stereotypes associ-
ated with psychological feelings, as in a later publication:

[A]lthough there is no uniform feminine ‘t ype,’ societ y carr ies, as part of its
ideological baggage, a stereotype of Woman, a sort of rough model purporting
to contain the essential characteristics, while all the existential features are but
variations on a basic theme. Stereotypes – def ined by Kimball Young as false
classificatory concepts to which, as a rule, some strong emotional-feeling tone
of like or dislike, approval or disapproval, is attached – are popular means to
simplify, indeed to oversimplify, a complex social reality (Klein, 1950: 3, empha-
sis in original).

Thus, given the impossibility of revealing the nature of the feminine


character through Mannheim’s integrative method, Klein deepens her supervi-
sor’s belief that the construction of a welfare state cannot be the magical re-
gender ideology: an analysis of its disputed meanings

1012

sponse to all problems. 13 In her analysis of Margaret Mead’s work, for example,
she points to the dangers of social planning (Klein, 1972: 136), which can be
used “to produce uniformity, rigid control, a short-termed and one-sided effi-
ciency, and endless monotony and frustration.” For her – in a way that is sur-
prising given the context in which her work was produced, namely the develop-
ment of policies focused on women –, the antidote to totalitarianism was to
reject “the standardization of two sex temperaments as two ‘clearly contrasting,
complementary, antithetical’ personality types” (Klein, 1972: 6), as well as the
danger of the universalization of a male perspective.
Incidentally, Klein’s pioneering research anticipated what became central
preoccupations of contemporary feminist social epistemology. Indeed, she made
many contributions. She was not alone in this endeavor, of course. Margaret
Mead, Mirra Komarovsky and Simone de Beauvoir, to mention just some figures
of her generation, helped combat the reductionism and essentialism that dom-
inated intellectual production about women. In applying the sociology of knowl-
edge to gender, Klein raises questions still relevant today concerning the rela-
tionship between the contexts of production of sexual ideologies, their subjec-
tivizing effects, and their consequences for the gender domain.
I am not questioning whether the language of roles or the use of the
concept of ideology are the best ways to explore concepts such as binarism, es-
sentialism or the universalism/particularism relation that constitute some of
Klein’s principal contributions to feminist and gender theories that followed in
her wake. Everything indicates that they are not, especially if we consider that
the affinity of her thought with so-called “liberal feminism” does not allow those
questions to be further investigated – something that would require a much
more radical critique of the inequalities inherent to capitalism, as well as of
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heterosexuality as an exclusive or dominant cultural standard. Nevertheless,


two important aspects should be noted: first that, despite the difficulties linked
to the concept of ideology, what Mannheim designated by the term can be iden-
tified today by other sociological concepts such as “social constructivism” or
even “discourse analysis” (Kumar, 2006) – as in the aforementioned work of De
Lauretis (1987) and Laclau (2014). Second, as Raewyn Connell argues, it is pos-
sible to develop “the sociology of knowledge to raise questions about the con-
texts of the production of sexual ideology, its consequences for the gender order,
and the social character of its producers” (Connell, 2003: n.p.). Klein’s work on
the scientific discourses of her era represents an excellent example of both.

Conclusion
The term gender ideology cannot be reduced to the anti-intellectual or anti-
academic meaning preached by the global right, a meaning that has been the
subject of a series of excellent genealogical analyses by social scientists. Prior
to its transformation into a weapon of the “culture war,” the term had been
article | cynthia lins hamlin

1013

used in feminist and gender studies to target those very ideas that inform the
political project of the global right. Despite this fact, we need to recognize that
the movements linked to the global right share an important element with
academia: a narrative structure, in other words a discourse, centered on think-
ing about thought. In this specific sense, it amounts to a narrative about epis-
temology – that is, about the production of what counts as knowledge and truth.
But there are substantial differences. In a context marked by the supposed
disappearance of shared minimum standards of objectivity and truth, an im-
portant element in the epistemic project of the global right is the systematic
assault on teaching, research and media institutions and others linked to cul-
tural production. This constitutes a very particular gesture of what philosophers,
historians and sociologists of science have characterized as “agnotology”: the
social production of ignorance based on the erasure, forgetting or distortion of
certain forms of knowledge, frequently for economic and/or political ends (Proc-
tor, 2008). This, in sum, is what the discourses on “cultural Marxism,” “globalism”
and “gender ideology” are all about.
These epistemological narratives are deeply linked to producing doubt
and disbelief in established sources of knowledge and information. In this spe-
cific sense, ignorance is not simply the opposite of knowledge, the vacuum that
precedes it, the lack of knowledge derived from focusing interest somewhere
else, or, as we can learn from Klein’s work, a perspectivism associated with the
researcher’s social position. Ignorance here is the result of an active construc-
tion, a strategic maneuver with the objective of relativizing or even denying
positions well-established by the academic and scientific community by block-
ing information, by creating disinformation or, purely and simply, by lying (Kou-
rany, 2018). This kind of strategy marked the concept of gender after the Unit-
ed Nations conferences in 1994 and 1995, which began to be conceived through
a notion of ideology that amounts to a mere term of abuse (see note 8).
Thus, the central point of my argument is that the silence of social sci-
entists in relation to the sociological use of gender ideology as a category –
whether by limiting their analyses to the meaning used by conservative move-
ments, or by explicitly denying that this is a category used by the social sci-
ences – has non-trivial consequences. Following the anthropophagic logic of
capitalism, terms like “ideology,” “gender” and “colonization” – to limit myself
to those used by Pope Francis – have been appropriated by movements of the
global right. If one of the focal areas of contemporary feminist studies consists
of making visible the production of women, this strategy contributes precisely
to erasing female authors who helped pave the way for the type of knowledge
that today allows us, among other things, to question the sexual politics of the
global right.
Clearly, this does not imply a theoretical or even political concordance
with the development of an academic literature about gender ideology. What
gender ideology: an analysis of its disputed meanings

1014

is at stake is something much more basic: free thought as an antidote to anti-


intellectualism and dogmatism. In a period when academic freedom finds itself
under constant threat, it is essential that we do not allow our discourses to be
hijacked by groups and organizations that confuse objectivity with censure or
who turn their political views into a moral foundation that justifies “the fear
of thinking, indeed, the fear of the question” (Butler, 2004: 180). Accepting this
would not only amount to excluding from our concerns the freedom of aca-
demic thought and discourse, but would also preclude the very possibility of
scrutinizing the historical processes that made their silencing possible.

Received on 29/7/2019 | Revised on 29/5/2020 | Approved on 30/6/2020


sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1001 – 1022 , sep. – dec., 2020

Cynthia Lins Hamlin is professor in the Department of Sociology at


UFPE, where she coordinates the Study Group in Social Theory
(GETSS/PPGS). Research interests in social theory, social science
methodology, and feminist theory and epistemology. Her recent
publications include articles such as “Consumindo como uma
garota” (with Gabriel Peters), and “An exchange between Gadamer
and Glenn Gould on hermeneutics and music”, as well as book
chapters like “Peter Berger (1929-2017)”, “Realismo crítico”, and an
entry on Raymond Boudon Blackwell Encyclopedia of Sociology.
article | cynthia lins hamlin

1015

Notes
1 Versions of this paper have benefitted from the criticisms
and suggestions of a large number of people, including
Betânia Ávila, Frédéric Vandenberghe, Fuyuki Kurasawa,
Gabriel Cohn, Márcia Couto, Ricardo Antunes, Silke Weber,
and Simone Brito, as well as members of the Study Group in
Social Theor y and Subjectivities at PPGS /UFPE. Special
thanks to Raewyn Connell for the exchange of emails that
helped me elucidate her work considerably. Finally, I also
express my gratitude to the anonymous reviewers of Socio-
logia & Antropologia.
2 In Holland, for instance, far-right parties have demonstrat-
ed a very particular and paradoxical form of opposing gen-
der as part of anti-immigration policy. Parties like the PVV
and the PvD maintain that gender equality is a fundamental
Dutch value at risk of disappearing due to the recent “Is-
lamization” of Europe. At the same time, these parties have
been characterized by a strong parliamentary opposition to
any measures designed to reduce gender inequalities. In
other words, they are “for gender equality but against meas-
ures to ensure gender equality” (Verloo, 2018: 25).
3 For an excellent analysis of the ideological program of Steve
Bannon, former adviser to Donald Trump’s campaign who
elected Eduardo Bolsonaro (son of Brazilian president Jair
Bolsonaro) as the main representative of his populist army
in Latin America (the Neo-Nationalist International), see
the essay by Jeffrey Alexander (2018). Under the suggestive
title “Rag ing against the Enlightenment,” the author ex-
plains not only the bellical nature of Bannon’s project but
also its profoundly anti-Enlightenment meaning.
4 Although the notion of “culture war” was never used by
Gramsci himself, the term has been used in reference to his
political theory, which, very brief ly, addresses the possibil-
ity of building a communist society in the West through
democratic means: in place of revolution, the articulation,
on the cultural dimension, of a series of values, ideas and
traditions that ensure the “intellectual and moral direction”
of particular groups not through force but through the crea-
tion of a consensus (Gramsci, 2011: 290). In Brazil, appropri-
ating Gramsci’s political concepts, Olavo de Carvalho in-
gender ideology: an analysis of its disputed meanings

1016

verts the Gramscian position by proposing a counter-he-


gemonic project to “cultural Marxism,” “globalism” and
“gender ideology.”
5 Obviously an exhaustive histor y of ideas in relation to
the concept of gender ideology is beyond the scope of this
paper. My choice of the term appears simply as an alter-
native to the Foucauldian term “genealog y”, insofar as
Klein’s work is treated here as one of the “origins” of the
concept in the social sciences.
6 To illustrate this var iety, in a br ief compilation of the
abstracts published in Sociological Abstracts between 2000
and 2008, Davis and Greenstein (2009: 89) identified 168
articles dedicated to discussing levels of individual sup-
port for the division of paid and unpaid work by gender:
75 articles out of this total used the terminolog y “atti-
tudes related to gender roles,” 53 referred to “gender ide-
olog y,” 24 mentioned “gender attitudes” or “attitudes re-
lating to gender” and the rest were divided among terms
like “beliefs concerning gender,” “attitudes on gender” and
“gender equality.”
7 See, for example, the feminist debate surrounding the
concept of sexual roles in mainstream sociolog y and its
gradual substitution by the concept of gender in English-
speaking countries (Lopata & Thorne, 1978, Connell, 1979;
Komarovsky, 1992). Put succinctly, criticism focus on the
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1001 – 1022 , sep. – dec., 2020

functionalist roots of the concept of roles, its over-prox-


imity to biolog y, its difficulty in handling social change
and power relations, and, more generally, its focus on
inter-individual relations rather than the structural di-
mensions of social life.
8 Everyday use of the term ideology basically tends to imply
ideas that contrast with facts. As Terr y Eagleton (2004:
n.p.) wrote apropos the anti-philosophical and anti-aca-
demic pragmatism of modern politicians: “As with bad
breath, ideology is always what the other person has. So-
cialism and anti-racism are ideas; greed and inequality
are just plain, honest-to-goodness facts of life.”
9 Brief ly, what the poststructuralist tradition rejects is the
idea that the analysis of ideolog y enables the unveiling
or unconcealing of a fundamental truth and, in this sense,
article | cynthia lins hamlin

1017

that ideolog y involves a false or distorted discourse in


opposition to a true discourse. The ideolog ical critique
present in discourse analysis appears above all in terms
of the forms through which discourses are constructed
as self-contained identities, how particular contents pre-
sent themselves as universal, and the subjectivizing ef-
fects of these processes. It is in this sense that, in authors
like Laclau (2014), the category “ideolog y” loses its epis-
temolog ical status and takes on an eminently political
character. My thanks to Leonardo Almeida for this insight.
10 For an analysis of the epistemological dimension associ-
ated with use of the term gender ideology by Hill Collins,
see Hamlin & Peters (2018).
11 In her foreword to the second edition of The feminine charac-
ter, Klein (1972: xviii) recognizes that the phrase “feminine
character” was substituted by those of sexual roles and
gender roles – in her view, phrases more adequate to under-
lining the recognition that humans beings are not just bio-
logical organisms but “organisms in social situations.”
12 Mannheim (1936) makes a distinction between a “particu-
lar” or “psychological” conception of ideology and a “total”
or “epistemolog ical” conception. Roughly speaking, the
former refers to the classification of an adversary’s ideas
as a function of the relationship between their psychologi-
cal interests and their political and/or socioeconomic inter-
ests, while the latter refers to the relationship between a
sociohistorical group and its frameworks for interpreting
the world, allowing comprehension of an opponent’s par-
ticular perspective through their group belonging. It is on
the basis of this distinction that the concept of ideolog y
acquires a descriptive or classificatory dimension, which
will become a topic of criticism by a series of authors, no-
tably those linked to critical theory such as Adorno and
Horkheimer. For these authors, by abdicating the dialecti-
cal dimension of the concept, Mannheim had f lirted with
positivism, making the concept of ideology lose its critical
edge. For an excellent over view of this critique, see the
article by Glaucia Villas Bôas (2002).
13 Klein’s efforts to contribute to the development of a wel-
fare state appear especially in her works from the 1950s
with Alva Myrdal.
gender ideology: an analysis of its disputed meanings

1018

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gender ideology: an analysis of its disputed meanings

1022

Ideologia de Gênero: uma análise dos se


Resumo
O discurso sobre “ideologia de gênero” como “arma de Palavras-chave
guerra cultural” vem sendo analisado em uma série de es- Ideologia de gênero;
tudos genealógicos relativos aos processos históricos re- direita global;
centes que possibilitaram sua emergência. Como esses sociologia do conhecimento;
estudos mostram, trata-se de um projeto alternativo de Viola Klein;
produção do que conta como conhecimento e como ver- agnotologia.
dade. Contudo, pouca ou nenhuma atenção vem sendo
dada aos sentidos que a expressão assume nas teorias
feministas e de gênero. Ao negar que a ideologia de gêne-
ro pode ser reduzida a um mero espantalho produzido pela
agenda conservadora, proponho uma espécie de história
das ideias associadas à expressão, com ênfase no trabalho
da socióloga Viola Klein, cujas reflexões em sociologia do
conhecimento constituem uma das primeiras explorações
teóricas do tema. Ao ilustrar a pluralidade de sentidos dos
estudos acadêmicos sobre ideologia de gênero, argumento
que, embora por vias distintas, eles convergem numa ne-
gação radical do discurso antigênero da direita global.

Gender ideology: an analysis of its


disputed meanings
Abstract
In the last few years, a number of genealogical studies have Keywords
been published about recent historical processes that en- Gender ideology;
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1001 – 1022 , sep. – dec., 2020

abled the emergence of the discourse on “gender ideology” global right;


as a “weapon in the culture war.” As some of these studies sociology of knowledge;
suggest, what is at stake is an alternative project of knowl- Viola Klein;
edge and truth production. Little or no attention, however, agnotology.
has been given to the meanings of gender ideology internal .
to feminist and gender theories. Rejecting the idea that
gender ideology can be reduced to a straw man produced
by a conservative agenda, I propose a brief history of ideas
associated with the concept, foregrounding the work of
sociologist Viola Klein, whose reflections on the sociology
of knowledge represent one of the first academic investiga-
tions of gender ideology. In illustrating the plethora of
meanings associated with the concept, I argue that they
converge towards a radical negation of the anti-gender
discourse of the global right.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v10311

1 Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Programa de Pós-Graduação


em Ciências Sociais, São Paulo, SP, Brasil
sarti@uol.com.br
https://orcid.org/0000-0002-6962-3527

Cynthia Sarti I

Rastros da violência: a testemunha

Este texto discute formas de abordar a memória do sofrimento quando asso-


ciado a experiências de violência, em particular de violência política, tendo
uma pesquisa sobre a memória da violência durante a ditadura militar brasi-
leira (1964-1985) como a referência a partir da qual emergiram as indagações. 1
Atém-se, em particular, à figura da testemunha − embora ela possa coincidir
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1023 – 1042 , set. – dez., 2020

ou ser identificada com a figura da vítima, que sofreu diretamente a experiên-


cia da violência, ambas não se confundem. Na abordagem aqui proposta, ela
transcende a experiência da violência, de quem a viveu ou a presenciou de
alguma maneira, sendo tratada em um registro distinto daquele da ocorrência
da violência. A figura da testemunha constitui-se a partir da inclusão de quem
não estava lá, mas se dispôs a ouvir o relato da dor do outro, colocando a alte-
ridade no centro do processo de elaboração do sofrimento. A dor expressa-se
para um outro, disponível para a escutar, fazendo com que a testemunha se
configure numa relação na qual emergem os sentidos dessa experiência e a
própria possibilidade de simbolizá-la. O reconhecimento da experiência de vio-
lência por parte do outro torna-se, assim, uma condição de possibilidade da
elaboração, no plano subjetivo, da violência sofrida. Nos casos de violência
política, essa possibilidade está diretamente relacionada ao lugar que os acon-
tecimentos adquirem no plano político da esfera pública.
Em uma perspectiva comparada, o texto traz a discussão a partir de
problemas das ciências sociais, da antropologia em particular, situando-a no
rastros da violência: a testemunha

1024

âmbito da reflexão que acompanhou os processos de memória nos distintos


países da América Latina, a partir dos anos 1980, quando esses países enfren-
tavam a transição de ditaduras militares para governos democráticos. 2 Jelin
(2003: 12) analisa o surgimento desse campo de preocupações nas ciências
sociais latino-americanas, ressaltando as novas questões que acompanharam
seu desenvolvimento:

A partir das preocupações políticas com a democracia, dos desenvolvimentos de


novos movimentos sociais e de seu olhar para a cotidianidade, do pensamento
sobre a cidadania e a construção da subjetividade cidadã, abonado pela prática
política de luta dos movimentos de direitos humanos, implantou-se na região
um novo marco interpretativo da esfera pública, da relação entre Estado e socie-
dade, e dos mecanismos e articulações entre o plano das condições materiais,
das instituições, da subjetividade e do nível simbólico-cultural.3

Este texto traz ainda a perspectiva de pesquisadora do caso do Brasil


cujo processo de memória tem a particularidade, em relação ao caso da Argen-
tina, por exemplo, de não ter sido marcado pelo uso da via jurídica para o en-
frentamento da Justiça em relação aos crimes cometidos durante a ditadura
militar, em função das limitações advindas da Lei de Anistia (lei 6.683, de 1979),
que incluiu como anistiados também os torturadores, numa suposta conciliação
vista pelos protagonistas da luta contra a ditadura como um acordo forçado
dentro de uma luta desigual, porque forjada no arbítrio (Cardoso, 2001; Meza-
robba, 2009; Gagnebin, 2010). Até hoje a questão da responsabilização dos que
cometeram os crimes − oficialmente reconhecidos e nomeados pela Comissão
Nacional da Verdade (CNV) em seu relatório final (Brasil, 2014) − não está so-
cialmente resolvida. 4
Esse caminho particular dos acontecimentos norteou os rumos da in-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1023 – 1042 , set. – dez., 2020

vestigação sobre a memória da ditadura, no que se refere tanto às fontes quan-


to ao próprio objeto da reflexão, direcionando-os para o testemunho dos que
viveram a experiência de violência – prisão, tortura ou desaparecimento e mor-
te de familiares − em suas distintas formas de expressão. 5 São testemunhos
produzidos em momentos distintos em relação aos acontecimentos e sob formas
diversas: livros e textos escritos que começaram a ser publicados durante a
ditadura e também relatos ou depoimentos de domínio público veiculados pos-
teriormente. Eles foram o resultado tanto de uma estratégia política, um mo-
vimento espontâneo ou uma necessidade interior de dizer quanto de demandas
externas, como é o caso dos depoimentos frente às comissões de verdade e
outros dispositivos vinculados mais recentemente às políticas de memória.
Cumpre ressaltar que, em qualquer contexto, o testemunho dos que
viveram a experiência de violência constitui-se em eixo central para a memó-
ria dos acontecimentos. No caso da ditadura brasileira, diante das dificuldades
de dizer impostas pela Lei de Anistia, de 1979, que visava ao silenciamento
público da violência, inclusive pela tentativa de inviabilizar seu tratamento
artigo | cynthia sarti

1025

judicial, os livros, escritos, relatos ou depoimentos constituíram fonte particu-


larmente importante de evidência de que, apesar do silêncio pretendido, se
procuravam incansavelmente formas de dizer pelos meios possíveis e acessíveis
à sociedade, num processo de busca de reconhecimento, diante de um acerto
de contas considerado sem ponto final, que faz do trabalho de memória um
campo de acirradas disputas por seu sentido. 6 Essa insistente demanda de re-
conhecimento que se mostra no testemunho dos que sofreram a violência da
ditadura militar brasileira (Azevedo, 2018; Ribeiro, 2020), fazendo apelo de di-
versas formas à presença do outro, amplia o sentido de testemunhar, reconfi-
gurando a testemunha, como argumentado a seguir. Ler os testemunhos signi-
ficou, no desenrolar da leitura e, a partir dela, na escrita analítica, perceber-se
nesse lugar do outro que, de fora, escuta e reconhece, atendendo, ainda que
inadvertidamente, a esse apelo. O que busco neste texto é refletir sobre esse
sentido não previsto de tornar-se testemunha, que emergiu da pesquisa sobre
o sofrimento associado à violência, ao interrogar os que a viveram sobre o
sentido dessa experiência, e que me levou a procurar caminhos “bons para
pensar” sobre essa figura pouco estudada pelas ciências sociais.
A questão sobre o sentido das experiências de sofrimento que inspirou
a reflexão vincula-se à busca de compreender como experiências de violência
associadas a esse momento de exceção se incorporam e se inscrevem no curso
da existência de quem as viveu, por meio da busca de compreensão das formas
de inteligibilidade que constroem para seu sofrimento, supondo que esse pro-
cesso de inscrição se dá ao longo do tempo. São experiências que permanecem,
mas não da maneira como aconteceram no momento de sua ocorrência. Há um
movimento, que é o próprio trabalho de incorporação das experiências envol-
vido na reconstrução da vida, que lhe dá o sentido, implicando o que Das (2020:
116) chama de delicado trabalho de criação de si, dentro de sua formulação da
reconstrução, após eventos disruptivos, como um processo que envolve inevi-
tavelmente negociações subjetivas entre o indivíduo e as possibilidades do
mundo social (Das et al., 2001).
Continuar a ação política, transmutada em luta por “memória, justiça e
verdade” em relação aos acontecimentos ocorridos durante a ditadura, conside-
rados crimes contra os direitos humanos pelo direito internacional, constituiu o
pano de fundo sobre o qual se inscreveram as experiências de dor e violência no
curso da existência dos que lutaram contra a ditadura e de seus familiares, tor-
nando-se parte de sua forma de habitar o mundo. Foram os movimentos indivi-
duais e coletivos, que percorreram caminhos distintos e forçosamente tortuosos,
na busca de identificação e localização dos corpos empreendida pelos familiares
dos mortos e desaparecidos diante de informações sempre imprecisas e dúbias
sobre as circunstâncias das mortes e desaparecimentos com as quais se viram
obrigados a conviver (Teles, 2009; Azevedo, 2018);7 na procura da responsabiliza-
ção pela prática da tortura como política de Estado, nunca alcançada, apesar dos
rastros da violência: a testemunha

1026

testemunhos que a comprovaram (Oliveira, 2011; Sarti, 2019); enfim, na referida


busca agonística do reconhecimento da violência silenciada e encoberta por
seus perpetradores, mas afirmada pela memória de quem a sofreu.
Assim alude uma ex-presa política, torturada na prisão, ao sentido da
ação política que permite a inscrição da dor da tortura em outro registro:

Você só consegue se livrar do torturador, na medida em que você tem uma ação
política, e essa ação política só é possível se você começa a falar sobre o que
aconteceu. Enquanto você não falar sobre o que aconteceu, o torturador continua
te dominando, porque ele te domina pelo medo, ele te domina pelo sequestro...
ele não queria só que você falasse no momento da tortura, ele queria que você
calasse para sempre. [...] Enquanto você não retomar a ação política, você não
consegue se livrar dele. Você não consegue se curar disso.

[...] A ação política não necessar iamente era ação par tidár ia, pelo contrár io.
Era uma ação de denúncia, uma ação que f izesse que você, na sociedade, to-
masse uma posição com relação ao que aconteceu. 8

Diante do encobrimento da violência, sem espaço público onde ela pu-


desse ser dita, em momentos em que se está, portanto, constrangido a calar, a
ação política em busca do reconhecimento da violência vivida, na qual se ins-
creveu o sentido das experiências de dor, revestiu-se de formas distintas, no
limite das possibilidades. A escritura, forma de expressão usual e acessível, por
sua condição social, aos que lutaram contra a ditadura, tornou-se, em seu ape-
lo ao outro, um modo de agir recorrente na luta pela memória (Ginzburg, 2009).9
Salinas Fortes (2012: 115), professor de filosofia, assim enuncia o sentido da
escritura como combate na construção da memória:

No entanto, eles quase tinham conseguido me quebrar, restando-me agora, como


único recurso, como único antídoto e contraveneno, a metralhadora de escrever,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1023 – 1042 , set. – dez., 2020

o alinhamento das palavras, o arado sobre a folha branca, a inscrição como res-
posta. É, aqui, neste exato momento, que se trava a luta. Cada traço inscrito é
um tiro, é um golpe, il n’y a de bombe que le livre, cada linha é lança, gume, faca
que penetra na carne dura do inimigo vário.

Na perspectiva aqui delineada, esta pesquisa alinha-se às abordagens


antropológicas que postulam as emoções como linguagem, segundo as quais
a experiência de sofrimento − como qualquer experiência humana que envol-
ve o corpo e as emoções − estão inscritas em uma ordem simbólica e fazem
sentido na relação do sujeito com o mundo social (Lutz & Abu-Lughod, 1990).
Se os sentimentos, na acepção de Mauss (1979), são linguagem, operam no
plano da cultura e tornam-se inteligíveis quando expressos mediante formas
que estão, de alguma maneira, socialmente instituídas, a questão a sublinhar
é que as emoções se tornam inteligíveis mediante sua manifestação sob for-
mas instituídas porque estão referidas ao outro. No caso de experiências de
violência, ao sofrimento da experiência vivida, agrega-se o sofrimento de não
haver formas de expressão instituídas para a dor. Ao contrário, nesse caso, há
artigo | cynthia sarti

1027

a imposição do silêncio, do esquecimento, a recusa da escuta e, assim, a ne-


gação da violência, da humilhação e da dor impingidas ao outro. Dessa forma,
“O problema que a violência coloca é o da ausência de um lugar de inteligibi-
lidade e escuta para o sofrimento que dela advém, lugar que requer, como
condição de sua possibilidade, o reconhecimento social da violência” (Sarti,
2014: 81). O trabalho de reflexão situa-se, então, no ponto dessa tensão im-
plicada na busca de expressar o sofrimento quando associado à violência, nos
espaços intersticiais, nas brechas e nas lacunas constitutivas dos testemunhos.

Violências nomeadas, apesar de tudo


Implicitamente a análise da violência durante a ditadura militar brasileira aqui
empreendida traz também o propósito de pensar como o caráter de exceção
atribuído a esse momento de violência permite indagar, à maneira clássica de
Durkheim (2003), o que o extraordinário pode dizer da vida social ordinária,
daquilo que fica invisível como normalidade, encarnada em formas de ser e de
agir naturalizadas que moldam e afetam inadvertidamente os sujeitos no trans-
correr de sua vida cotidiana. Assim, é o próprio caráter de exceção que se in-
terroga. Wieviorka (2007), analisando as mudanças não apenas nas formas da
violência, mas nas representações do fenômeno, ressalta que a violência é, ca-
da vez mais, considerada aquilo que afeta existências singulares, pessoais ou
coletivas. Foi nessa perspectiva que Das (2020: 21) abriu o caminho, tão fecun-
do, para fazê-la “descer ao ordinário”, questionando “que tipo de trabalho a
antropologia faz ao dar contornos ao objeto que temos chamado de violência”.
Sua preocupação volta-se, então, para as singularidades, buscando-as na “re-
lação escorregadiça entre o coletivo e o individual, entre o gênero textual e o
enredo individual dos casos narrados (Das, 2020: 22). 10
A interrogação acerca de situações consideradas de exceção, ali onde
vidas foram afetadas, como na ditadura militar brasileira (1964-1985), ou em
qualquer dos episódios de violência que marcaram o século XX (genocídio ar-
mênio, campos nazistas, Hiroshima, gulags stalinistas, ditaduras em Portugal,
Espanha e na América Latina, massacre dos Tutsis em Ruanda, entre outros),
implica, assim, considerar o que Agamben (2008: 20) chamou de a aporia de
Auschwitz: “uma realidade que excede necessariamente os seus elementos
factuais”. Para o autor, essa aporia configura “a própria aporia do conhecimen-
to histórico: a não coincidência entre fatos e verdade, entre constatação e com-
preensão”. As análises sobre a violência do século XX, que tem na experiência
concentracionária e de extermínio nazistas a referência a partir da qual se
operou uma inflexão no pensamento da sociedade ocidental sobre si própria, 11
já assentaram, quase como um lugar-comum, que o sentido do que se passou
não está fixado, mantendo-se aberta, portanto, a possibilidade de sua interpre-
tação (Ricoeur, 2007), no terreno das disputas pelo sentido do que ocorreu (Jelin,
2002, 2003) e de como afetou vidas (Das, 2020).
rastros da violência: a testemunha

1028

Trata-se de pensar esses eventos históricos a partir de uma posição ética


que coloca em questão o caráter indizível, impensável ou irrepresentável da
violência extrema, essa que envolve uma proximidade singular com a morte,
problematizando-se o efeito de distanciamento que a ideia de uma violência
extrema produz, quando formulada a partir da suposta incomunicabilidade
dessa experiência, como se estivéssemos moralmente a salvo de atos atribuídos
a um outro inacessível, fora do registro do humano (Sarti, 2014). Para Didi-Hu-
berman (2012), a negação da possibilidade de representar a violência torna ab-
soluta tanto a noção de irrepresentabilidade quanto a opacidade do horror, ou
melhor, o próprio horror, permanecendo, assim, dele prisioneira. Como assina-
lam Barbosa e Kupermann (2016: 38), em sua análise do testemunho de Primo
Levi a respeito de sua experiência concentracionária, “A produção de Levi nos
mostra de modo veemente que não é que esses acontecimentos sejam indizíveis,
mas que vêm marcados pela rubrica do escândalo e do fora de tempo”. Não se
trata, assim, de “uma dimensão do indizível, mas do inaudível”.
No que se refere à reflexão sobre o século XX, Crenzel (2010) argumenta
que as experiências de violência desse século puseram em questão as categorias
políticas e jurídicas do mundo ocidental, desafiaram os marcos da ética e dei-
xaram em suspenso nossos recursos de representação, fazendo com que com-
preendê-las implique repensar nossas próprias categorias de pensamento. Nes-
se sentido, o problema desta pesquisa coloca-se na interseção da antropologia
com a filosofia, uma vez que a questão em pauta tem uma incontornável di-
mensão filosófica. Segundo Cardoso de Oliveira (2013: 409), se o próprio pro-
cesso de interpretação etnográfica tem necessariamente essa dimensão, o que
aproxima e ao mesmo tempo diferencia esses campos do conhecimento é a
forma como a antropologia, disciplina que se constituiu na busca de compre-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1023 – 1042 , set. – dez., 2020

ensão do outro, postula a inteligibilidade dos fenômenos na tensão entre a


empiria e a metafísica, entre o dado e o significado. Haveria, segundo o autor,
“uma tensão permanente entre o material colhido no campo e o sentido a ele
atribuído”.
Se a violência do século XX colocou, no registro dos direitos humanos,
o problema jurídico dos “crimes contra a humanidade”, colocou também ques-
tões éticas e metafísicas que, na argumentação de Agamben (2008), o transcen-
dem. Do ponto de vista antropológico, fez emergir a tensão em torno da con-
ceituação de uma violência que atenta contra a humanidade como uma cate-
goria universal, o que envolve o problema correlato das fronteiras que delimi-
tam o que se considera humano, definidas em concepções duais, tais como
sobrevivência e vida, humano e desumano, que se constituem elas próprias em
construções discursivas a interrogar.
Problematizando-se qualquer concepção a priori e descontextualizada
de violência, a inteligibilidade desse fenômeno inscreve-se em uma ordem de
significação que faz dessa experiência algo para além do tolerável. Trata-se,
artigo | cynthia sarti

1029

assim, de trabalhar no registro dessa inscrição simbólica, dos limites a partir dos
quais a sociedade e nela os indivíduos não toleram o ato, ou o acontecimento, e o
nomeiam violência, nomeação que dá à dor a ela associada a possibilidade de um
lugar. Interessam, assim, a uma pesquisa antropológica em sua busca de “dar con-
torno a isso que chamamos de violência” precisamente essas fronteiras a partir
das quais se definem socialmente o tolerável e o intolerável, em meio às quais se
move o sujeito, com suas possibilidades, em suas permanentes negociações com
o mundo social. Isso significa considerar as circunstâncias sociais e políticas da
enunciação da violência, os atores em jogo e a situação na qual a violência é enun-
ciada, como argumentado anteriormente (Sarti, 2014, 2015a). 12

Experiências incorporadas
Este trabalho de investigação supõe ainda as formulações da psicanálise segundo
as quais as experiências de violência não se apagam, mas permanecem de alguma
maneira inelutavelmente, fazendo com que a inquietação em torno da lembrança,
em tempos e contextos políticos distintos e sob formas diversas, atravesse e as-
sombre toda experiência de violência (Gagnebin, 2006).
Seligmann-Silva (2005), ao analisar a relação entre literatura e trauma, ar-
gumenta que afirmar o trauma não significa excluir a simbolização, mas apenas
apontar seus limites. A experiência do trauma que faz silenciar, lembra o autor,
não se apaga, mas permanece. Não tem repouso. Alonso (2006) refere-se ao tempo
do inconsciente como “o tempo que não passa”, a partir da afirmação de Freud de
que a passagem do tempo não tem registro no inconsciente. Segundo a psicana-
lista, a forma na qual se constroem as lembranças nos mostra isso: “O tempo do
inconsciente não é um tempo que passa, é um ‘outro tempo’, o tempo da ‘mistura
dos tempos’, o tempo do ‘só depois’, o ‘tempo da ressignificação’. Nesse sentido,
Barbosa e Kupermann (2016: 33) ressaltam que Primo Levi, “sempre tratava sobre
sua experiência no Lager no tempo presente”.
No plano subjetivo, assim, a reconstrução da vida permanece um processo
incessantemente trabalhado pela temporalidade, implicando que o passado seja
evocado, mas a cada vez em termos diversos, por elos distintos entre presente e
passado, segundo os eventos individuais e coletivos do presente, movimentos que
são deslocamentos recorrentes e que abrem a possibilidade de permanentes res-
significações da experiência vivida no passado nos termos das questões colocadas
pelo momento presente (Sarti, 2016a). 13
Indaga-se a própria noção de experiência não como atributo individual nem
sequer como atributo que possa ser explicado pela referência a seu caráter cole-
tivo. Sabe-se, pressuposto básico de qualquer ciência social, que nenhuma expe-
riência prescinde de seu caráter simultaneamente individual e coletivo, mas o que
interessa à investigação sobre o sofrimento associado à violência é o caráter ne-
cessariamente relacional da experiência, cujo sentido só pode ser apreendido quan-
do compartilhado.
rastros da violência: a testemunha

1030

O caráter relacional da experiência da violência aparece magistralmen-


te no trabalho de Cho (2008), que analisa, a partir da categoria psicanalítica de
trauma intergeracional, o processo pelo qual a violência impetrada pelo exér-
cito norte-americano às mulheres coreanas na Guerra da Coreia (1950-1953)
permaneceu, em seu silenciamento, como experiência traumática que atingiu
a geração seguinte, assombrando-a como fantasmas, e só pôde ser expressa
pelas filhas, em outro contexto social e histórico, o da diáspora, quando torna-
ram visível e nomearam a violência sofrida por suas mães. 14
Em sua crítica ao positivismo de estudos históricos que se baseiam na
“evidência” da experiência, seja pela metáfora da visibilidade ou de qualquer
outra forma de “transparência”, Scott (1999: 27) argumenta que a experiência,
tomada como construção discursiva, “torna-se não a origem de nossa explica-
ção, não a evidência autorizada (porque vista ou sentida) que fundamenta o
conhecimento, mas sim aquilo que buscamos explicar, aquilo sobre o qual se
produz conhecimento”.
Nessa perspectiva, interrogam-se não os fatos ocorridos, mas, com base
em testemunhos, o que ficou dessa experiência como rastro ou “resto”, na
acepção de Agamben (2008), espaço necessariamente lacunar, no sentido de
que a experiência está aquém de seu significado, é algo a ser permanentemen-
te interrogado e interpretado, fazendo da memória da experiência vivida uma
questão aberta.
Essa perspectiva de análise apresenta-se como particularmente fértil
diante do caráter inacabado e agonístico da memória das experiências de vio-
lência, cujo sentido, como argumentado anteriormente, se dá num terreno de
disputas, por meio de lutas travadas na arena política que dificilmente se en-
cerram. Quando se resolvem por tréguas ou acordos parciais, estabelecidos em
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1023 – 1042 , set. – dez., 2020

um desequilíbrio de forças, mantém-se a tensão das soluções provisórias e


adiadas, como foi o caso da Lei de Anistia, de 1979, no Brasil, precisamente
pelo fato de se constituírem em torno de, ou entre, posições quase sempre
inconciliáveis, que reproduzem sob outras formas o conflito originário. Como
argumenta Jelin (2002: 44), “As controvérsias sobre os sentidos do passado ini-
ciam-se com o próprio acontecimento conflitivo”. 15

A testemunha
Analisando os distintos sentidos dos testemunhos depois da Segunda Guerra Mun-
dial, Wieviorka (1998) argumenta que o julgamento de Eichmann em Jerusalém
estabelece o “advento da testemunha”, como a figura que marca os processos de
memória na segunda metade do século XX, aquela que é solicitada a ser ouvida em
uma perspectiva judicial, fazendo de seu testemunho um dever. No entanto, não é
na perspectiva do “dever de memória” que se interroga, aqui, a testemunha, mas
sim situando-a como uma “maneira de entender a relação entre violência e subjeti-
vidade”, como se refere Das (2020, p. 116) ao ato de testemunhar. Segundo a análise
artigo | cynthia sarti

1031

da autora, se a violência assinala a morte do mundo tal como era habitado antes,
fornece também um novo modo de voltar a habitá-lo. Voltar não se refere a um re-
torno, mas a outra possibilidade, em outros termos. São essas formas em que se é
levado a habitar o mundo outra vez, apesar de todo o sofrimento, que se questiona,
com base nas narrativas das testemunhas. Busca-se, com a autora, alargar o sentido
da testemunha “não apenas no sentido de estar no contexto dos acontecimentos,
mas também de estar marcada por eles” (Das, 2020, p. 111).
Como argumentado, a possibilidade de voltar a habitar o mundo, sob
novas formas, no caso dos que viveram a experiência de prisão e tortura du-
rante a ditadura militar brasileira, vinculou-se ao movimento individual ou
coletivo de busca do reconhecimento da violência sofrida, que foi se configu-
rando, sem repouso, de maneiras diversas, tanto na ação política, tal como
expressa pela ex-presa política citada, e materializada pela ação de ex-pri-
sioneiros junto a familiares dos mortos e desaparecidos como também em
iniciativas individuais, igualmente marcadas pela tenacidade. Entre tantos
testemunhos, foi assim com o pai de Ana Rosa Kucinski, cuja saga solitária,
tortuosa e obstinada em busca de localizar a filha sequestrada, desaparecida
e morta durante a ditadura foi narrada em terceira pessoa, por seu filho, Ber-
nardo Kucinski, no já mencionado livro K., cujo título nomeia o protagonista
da história.
Há, ainda, em outro registro, os testemunhos que falam da impossibili-
dade de inscrever a experiência de dor e violência em qualquer ordem de sen-
tido, que permita dar-lhe inteligibilidade e a ela sobreviver por meio de sua
ressignificação. Interpreto o testemunho de Salinas Fortes (2012), publicado em
seu livro inicialmente em 1988, como uma evidência da dificuldade de inscrição
da experiência da tortura no curso de sua vida (Sarti, 2019). Para a psicanalista
Maria Auxiliadora Arantes (2013: 387), em sua reflexão sobre a tortura, não se
extinguem as lembranças da tortura, como evidenciam os testemunhos. “Mui-
tas vezes retornam, incidem sobre o corpo, materializam-se como adoecimen-
to precoce e intermitente. Escorrem pelas lágrimas, em palavras liquefeitas. E
pior, abraçam a morte como último refúgio do apagamento da dor”. Foi o que
aconteceu com frei Tito de Alencar Lima, cuja história, segundo a psicanalista,
“é definitiva”. Banido do país em 1971, frei Tito suicidou-se na França em 1974,
aos 31 anos. 16
Se existe o testemunho é porque algo de indizível precisa ser dito. Agam-
ben (2008) ressalta, nesse sentido, o paradoxo como constitutivo do testemunho:
é a testemunha quem fala, mas, se há o testemunho, isso acontece em função
da impossibilidade de dizer diante da violência. Analogamente, referindo-se ao
trabalho terapêutico com sobreviventes de campos de extermínio, tortura e
violência, Gondar e Antonello (2016: 16) afirmam o paradoxo que lhe é intrín-
seco, quando ressaltam a contribuição que suas narrativas trazem à clínica
psicanalítica:
rastros da violência: a testemunha

1032

A maior delas consiste em reconhecer que a clínica do traumático põe em jogo


algo mais do que uma narrativa e sua escuta. [...] não se trata simplesmente de
narrar o que aconteceu, mas de fazê-lo ao mesmo tempo em que se admite que
o que aconteceu não faz parte do narrável. Sem o reconhecimento desse para-
doxo o efeito terapêutico não se dá, ou ocorre de maneira enfraquecida.

Exigência que transcende a escuta clínica e se faz presente também no


trabalho da pesquisa nas ciências sociais, de forma a permitir aceder ao sofri-
mento alheio, com todos os limites inerentes ao acesso ao outro nas relações
intersubjetivas. Trata-se de, em qualquer caso, manter e suportar a tensão en-
tre o narrável e o inenarrável frente às condições de escuta, atravessadas pelas
circunstâncias.
Agamben refere-se ao paradoxo da testemunha a partir da análise do
testemunho de Primo Levi, em Os afogados e os sobreviventes. Segundo Levi (2004),
o sobrevivente é aquele que pode testemunhar, já que sobreviveu; no entanto,
a testemunha em sua integridade, aquela que “foi ao fundo”, é o “afogado” que
não sobreviveu. O testemunho do sobrevivente é, assim, testemunho por dele-
gação. A partir daí, Agamben (2008: 21) faz uma advertência, no início de sua
obra, mais um dos muitos escritos sobre Auschwitz, sobre o sentido que atribui
a seu livro. Para o autor,

Na sua forma, ele é, por assim dizer, um comentário perpétuo sobre o testemu-
nho. Não nos pareceu possível fazer outra coisa. Contudo, tendo em vista que, a
uma certa altura, nos pareceu evidente que o testemunho continha como sua
parte essencial uma lacuna, ou seja, os sobreviventes davam testemunho de
algo que não podia ser testemunhado, comentar seu testemunho significou ne-
cessariamente interrogar essa lacuna – ou, mais ainda, tentar escutá-la.

Gagnebin (2006), comentando, a partir de Walter Benjamin, as figuras de


sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1023 – 1042 , set. – dez., 2020

narração modernas, indaga sobre o sentido da testemunha analisando também


o relato de Primo Levi (1988), nesse caso em É isto um homem?. Refere-se à sua
conhecida descrição de um sonho recorrente que o atormentava e assombrava
outros também nos campos de concentração: de volta à sua casa, depois de
viver nos campos, ele sonha que, quando falava dos horrores vividos, seus
ouvintes não o escutavam e iam embora, indiferentes ao relato. A autora chama
a atenção para esse personagem do sonho, “aquele que vai embora, na indife-
rença” (Gagnebin, 2006: 55). Para ela, esse ouvinte teria a função de restabelecer
o espaço simbólico de um terceiro, que permitiria romper o “círculo infernal”
do torturador e do torturado. Como argumenta Kehl (2004) na mesma linha, o
terceiro institui o campo simbólico a partir do qual a narrativa pode se abrir
para novas significações.
Gagnebin (2006: 57) fala, então, a respeito da necessidade de uma am-
pliação do sentido da testemunha:

testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios olhos [...] a tes-
temunha direta. Testemunha seria aquele que não vai embora, que conseg ue
artigo | cynthia sarti

1033

ouvir a nar ração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem
adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou
por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar
e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada ref lexiva do passa-
do pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente mas a ousar esboçar uma outra
história, a inventar o presente.

Esse ouvinte, terceiro elemento, que se constitui em um lugar fora da


díade algoz e vítima, possibilita a reinscrição simbólica do sofrimento numa
história que transcende o indivíduo violentado. A essa possibilidade parece
referir-se o apelo ao outro que subjaz, explícita ou implicitamente, aos teste-
munhos dos que sofreram a violência da ditadura brasileira analisados, como
mencionado no início deste texto. Traduz o sentido da demanda recorrente das
“vítimas da ditadura” de que a memória da violência não seja um assunto par-
ticular dos que foram diretamente atingidos pela prisão, tortura ou morte ou
pelo desaparecimento de familiares, mas uma causa social, que envolve a so-
ciedade brasileira como um todo (Sarti, 2015a).
Trata-se da dimensão política do trabalho da memória, “impossível de
ser feito na privacidade”, como afirma, novamente em um apelo, Janaína Teles
(2009: 159), historiadora, filha de pais presos e torturados durante a ditadura,
também presa quando criança junto com seu irmão. O chamamento é explíci-
to: “ele requer o testemunho de um terceiro, o endereçamento à escuta de al-
guém de ‘fora’” (Teles, 2009: 159). Gondar e Antonello (2016: 18) argumentam,
nesse sentido, que “O apelo ao terceiro – a testemunha – é um apelo a algo ou
alguém que estava ausente no momento em que a situação traumática se deu.
É o apelo ao cuidado, à salvação, e, consequentemente, à superação do trauma”.
A construção da figura da testemunha envolve, assim, um universo trian-
gular de relações – a tríade a que se refere Simmel (2013) 17 –, introduzindo um
terceiro elemento em sua própria configuração que transcende a díade da ví-
tima, que estava lá e foi diretamente atingida pelo evento, diante de seu ver-
dugo. Simmel aponta para a configuração das relações sociais não em termos
duais, mas a partir da presença não fixa, mas deslocante, de um terceiro ele-
mento constitutivo das relações, que exerce a função de mediador.
Na situação de pesquisa, o pesquisador pode estar no lugar do terceiro
elemento dessa tríade, mas desde que se deixe afetar, no sentido que Favret-
Saada (2005) atribui a “ser afetado”, o de um lugar desprovido de intencionali-
dade, que abre uma comunicação específica, que nada tem a ver com empatia
ou identificação, mas com uma forma de compartilhamento que supõe a exis-
tência singular de um e do outro, lugar, portanto, de alteridade por excelência.
A forma como o pesquisador é afetado diz respeito à própria configu-
ração da matéria em estudo. Não se trata de um trabalho “sobre” o testemunho,
numa relação de exterioridade, mas sim de uma parte que inadvertidamente
passa a integrá-lo no desenrolar da pesquisa, pelas próprias características
rastros da violência: a testemunha

1034

do objeto da reflexão. Pensar e escrever em torno desse “objeto que temos


chamado de violência”, no caso da memória da ditadura brasileira, implicou
confrontar a busca do reconhecimento de uma violência encoberta e negada
de muitas formas, tantas vezes assim expressa pelo testemunho dos que vi-
veram as experiências de prisão e tortura e de morte e desaparecimento de
seus familiares, sobre as quais paira uma sombra. Sombra que evoca o indi-
zível dessas experiências, enquanto não houver lugar para dizê-las, que as
faz, portanto, inaudíveis. Ler atenta e cuidadosamente os testemunhos escri-
tos, assim, converteu-se em tornar-se testemunha, no lugar mediador do ter-
ceiro antes referido, a que fazem apelo os que sofreram a violência, fora da
díade vítima-algoz. Desse modo, o paradoxo intrínseco à testemunha, que é
quem fala o indizível que, mesmo assim, insiste e precisa ser dito − e escu-
tado −, é o que faz o pesquisador parte constitutiva dessa figura, na dimensão
incontornavelmente relacional da pesquisa etnográfica. A testemunha existe
porque, para além da relação de violência entre ela e seu verdugo que a si-
lenciou e, por isso mesmo, a constituiu como tal, ela pôde encontrar um lugar
onde dizer da dor, e alguém estava lá para escutá-la.
Construir a memória do que chamamos de violência envolve, assim, pro-
cessos que ultrapassam os acontecimentos a que se refere originalmente, dan-
do-lhes uma continuidade pela evocação das lembranças, mas alterando simul-
taneamente seu sentido, em função das questões do presente, como já assina-
lado. Pesquisadores desses processos, neles estamos imersos nesse lugar me-
diador da testemunha, aquela que se abre para escutar a dor insuportável do
outro e, assim, acompanhá-lo – por meio de suas falas, seus silêncios, escritos,
ações, movimentos – em sua busca de reinscrever a experiência de violência
no curso de sua existência e de poder, ou não, voltar a habitar o mundo, sob
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novas formas.

Recebido em 28/7/2019 | Revisto em 29/5/2020 | Aprovado em 30/6/2020

Cynthia Sarti é professora titular de antropologia na Universidade


Federal de São Paulo (Unifesp) desde 2008, professora nesta
universidade desde 1994 e pesquisadora do CNPq. Livre-docente
pela Escola Paulista de Medicina da Unifesp e doutora em
antropologia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é
diretora da Editora Unifesp. Suas áreas de interesse, em torno das
quais giram suas publicações – dentre as quais se destaca A família
como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres, já na sétima edição
– são: memória, exílio, sofrimento, dor e violência; corpo, doença e
saúde; moralidades; família e gênero.
artigo | cynthia sarti

1035

NOTAS
1 Trata-se da pesquisa “Fig uras da violência: a vítima, a
testemunha”, desenvolvida com recursos do CNPq (Bolsa
Produtividade em Pesquisa).
2 Essa perspectiva foi definida em função da apresentação
original deste texto durante a XII Reunião de Antropolo-
gia do Mercosul, em Posadas, Argentina, de 4 a 7/12/2017,
na mesa-redonda Dictaduras, activismo en DDHH y res-
puestas estatales en América Latina.
3 Tradução minha do texto original: “A partir de las preocu-
paciones políticas por la democracia, de los desarrollos de
los nuevos movimientos sociales y su mirada sobre la co-
tidianidad, del pensamiento sobre la ciudadanía y la cons-
titución de la subjetividad ciudadana, abonados por la
práctica política de lucha de los movimientos de derechos
humanos, se ha implantado en la región un nuevo marco
inter pretativo de la esfera pública, de la relación entre
Estado y sociedad, y de los mecanismos y articulaciones
entre el plano de las condiciones materiales, las institu-
ciones, la subjetividad y el nivel simbólico-cultural.”
4 Em um dos momentos da escr itura deste texto, veio a
público a notícia do aparecimento de um documento da
CIA, de 1974, escrito por seu então diretor, William Corby,
em que afirma ter o presidente Ernesto Geisel autorizado
a continuidade da política de “execução sumária” dos opo-
sitores do regime militar feita por seu antecessor, Emílio
Garrastazu Médici, reacendendo a polêmica em torno da
revisão da Lei de Anistia de 1979 e a questão da não res-
ponsabilização dos autores dos cr imes de violação dos
direitos humanos, oficialmente reconhecidos pelo relató-
rio da CNV (O Estado de São Paulo, 11 maio 2018: A10).
5 Para detalhamento das linhas gerais que caracterizaram
o processo de construção da memória da ditadura brasi-
leira, a partir da Lei de Anistia, de 1979, que contribuíram
para definir o desenho desta pesquisa, remeto a textos
anteriores (Sarti, 2014, 2015a).
6 O caráter de luta, intrínseco à construção da memória, foi
destacado por Jelin (2003: 16), ao afirmar que o cenário
das lutas políticas pela memória não é simplesmente uma
confrontação entre memória e esquecimento, mas entre
distintas memórias.
rastros da violência: a testemunha

1036

7 O livro K., de Bernardo Kucinski (2005), sobre a busca de


seu pai para localizar a filha desaparecida, é emblemáti-
co da angústia dessa busca.
8 Entrevista com Rita Sipahi, realizada pela pesquisadora
em 27 jan. 2015, em sua casa em São Paulo. Militante po-
lítica, ela foi presa em 1971. Sobre sua prisão, ver seu de-
poimento em Freire, Almada e Ponce (1997: 181-189).
9 Sendo o foco deste artigo o sentido de apelo ao outro conti-
do nos testemunhos da violência silenciada, remeto a tex-
tos anteriores nos quais analiso esse e outros sentidos dos
testemunhos escritos em torno dos acontecimentos duran-
te a ditadura (Sarti, 2014, 2015a, 2015b, 2016a, 2016b, 2019).
10 Essa perspectiva, que atenta para as singularidades dian-
te do que é pensado como extraordinário, inspirou a aná-
lise de relatos sobre a tortura (Sarti, 2019).
11 Essa qualidade referencial fez do testemunho das expe-
riências concentracionárias o marco de uma “literatura
de testemunho”, que se estendeu para as outras experiên-
cias de violência do século XX e XXI. Ressalto aqui o sen-
tido de uma forma radical de resistência atribuído à lite-
ratura de testemunho da experiência concentracionária
na leitura de Caterina Koltai (2016: 24), a partir da ideia
de que “Essa escrita nasceu de uma proximidade anormal
com a morte”. Para a autora, essa literatura “testemunha
a existência de uma referência inconsciente de inclusão
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1023 – 1042 , set. – dez., 2020

indestrutível do indivíduo no devir humano”, como se, em


situações extremas, cada vida representasse a condição
humana em seu conjunto (Koltai, 2016: 27).
12 Nessa perspectiva, remeto à análise de Talal Asad (2011)
sobre a prática da tortura como um dos paradoxos da so-
ciedade secular moderna, já que um de seus motores prin-
cipais é justamente o desejo de acabar com as crueldades
que as religiões justificaram de diferentes formas. O mais
evidente paradoxo, seg undo o autor, é o do signif icado
universal e transcultural pressuposto no artigo quinto da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 −
“Ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou
castigo cruel, desumano ou degradante” −, quando as sen-
sibilidades morais em relação ao que é cruel, (des)huma-
no e degradante variam histórica e culturalmente.
artigo | cynthia sarti

1037

13 Uma das controvertidas questões revisitadas pela tempo-


ralidade na memória da ditadura, sem espaço aqui para seu
devido tratamento, é a categoria moral de “traição” asso-
ciada a falar sob tortura. Contrastando com esse enquadra-
mento, remeto ao relato de Salinas Fortes (2012) sobre essa
experiência cruciante, pensada fora desse registro moral.
14 No caso da ditadura brasileira, a experiência da violência
silenciada que se estende como experiência traumática à
geração seg uinte pode ser obser vada, entre outros, no
f ilme 15 filhos, realizado em 1996 por Mar ia Oliveira e
Marta Nehr ing, ambas f ilhas de vítimas dos cr imes de
Estado durante a ditadura, e também no filme Repare bem
(Les yeux de Bacuri), dirig ido por Maria de Medeiros, em
2012, em coprodução de Brasil, França e Itália, sem deixar
de mencionar o caso emblemático da ditadura argentina
(1976-1983), no que se refere ao trauma intergeracional
decorrente do sequestro das crianças nascidas durante o
cativeiro de suas mães.
15 Tradução minha do texto original: “Las controversias so-
bre los sentidos del pasado se inician con el acontecimien-
to conf lictivo mismo”
16 A história de frei Tito, como indica Arantes, encontra-se
no Relatório da Comissão Especial sobre Mortos e Desa-
parecidos Políticos (Brasil, 2007: 392-393).
17 Agradeço a Maria Claudia Coelho a referência a esse tex-
to de Simmel para pensar as questões tratadas nesta pes-
quisa, em debate na 30 a Reunião Brasileira de Antropolo-
gia, em João Pessoa, em 2016.

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rastros da violência: a testemunha

1042

Rastros da violência: a testemunha


Resumo Palavras-chave
Este texto tem como objetivo discutir a figura da testemu- Testemunha;
nha, a partir da apreensão de seus sentidos nas memórias memória;
de experiências de violência, partindo de uma pesquisa violência;
sobre a memória da ditadura militar brasileira (1964-1985), sofrimento;
da qual emergiram as indagações. Embora a testemunha experiência.
possa coincidir com a vítima que sofreu diretamente a ex-
periência da violência, essas figuras não se confundem. Na
abordagem aqui proposta, a testemunha transcende a ex-
periência da violência, sendo tratada em um registro dis-
tinto daquele da ocorrência da violência. A testemunha
constitui-se no desenrolar do trabalho da memória a par-
tir da inclusão de quem não estava lá, mas se dispõe a
ouvir o relato da dor do outro, colocando a alteridade no
centro do processo de elaboração do sofrimento. Nesse
sentido, argumenta-se que o trabalho de pesquisa confi-
gura um modo de testemunhar.

Traces of violence: the witness


Abstract
Having questions that emerged from a research on memo-
ries of Brazilian military dictatorship (1964-1985) as start-
ing point, this text aims to discuss the witness figure, ap-
prehending its meanings in memories of violence experi-
ences. Although the witness may coincide with the victim
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who has directly experienced the violence, these figures


are not the same. In the approach here proposed, the wit-
ness transcends the experience of violence, being consid-
ered in a distinct level from that where violence occurs.
The witness is constituted as such in the unfolding of the
work of memory by including those who were not there
but who are willing to listen to the account of the other’s
pain, placing otherness at the center of the process of suf-
fering elaboration. In this sense, the text argues that re-
searching is a way of witnessing.
REGISTROS DE PESQUISA
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v10312

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),


Departamento de Educação, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
mylenemizrahi@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0661-2273

Mylene Mizrahi I

O que a “humildade dos objetos” pode nos


dizer sobre a beleza no Rio de Janeiro:
notas sobre uma trajetória de pesquisa

A discussão que diferentes teorias da materialidade propõem soa hoje mais ou


menos familiar nas ciências sociais e nas ciências humanas de modo geral.
Pesquisas contemporâneas em campos de estudos tão díspares como os da
religião e da educação acompanham o que vem sendo chamado de virada ma-
terial, nomeação que subentende uma certa novidade e radicalidade na mu-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1045 – 1056 , set. – dez., 2020

dança, mas que, podemos dizer, é o efeito de leituras críticas em curso desde
os anos 1980. Tais leituras críticas são passíveis de ser amplamente sintetizadas
pelo desmantelar do chamado grande divisor natureza e cultura. Daniel Miller
tem uma posição singular nesse debate: ao mesmo tempo em que é figura
crucial para o projeto de repensar o lugar que as coisas ocupam na análise social
é também reiteradamente acionado em propostas que visam produzir aborda-
gens inovadoras. Esses projetos, ao buscar avançar analítica e conceitualmen-
te no tema, frequentemente tomam como ponto de partida as bases colocadas
por Miller, muitas das vezes sugerindo que o antropólogo britânico poderia ter
ido mais longe no processo de fazer das coisas entrada analítica de pesquisa.
Podemos assim dizer que Miller aglutina, seja por meio de suas próprias
pesquisas, seja por meio das leituras que elas suscitam, muitos dos caminhos
que o tema da materialidade vem traçando. Miller pode ser, portanto, tomado
como um nó que articula essas muitas teorias, ao mesmo tempo em que se
mantém firme naquilo que delas o diferencia. Esse poder articulador, a meu
ver, deriva, de um lado, de sua habilidade de produção e manutenção de cone-
o que a “humildade dos objetos” pode nos dizer sobre a beleza no rio de janeiro

1046

xões, o que se traduz na generosidade para com seus alunos e colaboradores,


e, de outro, de sua defesa incondicional da etnografia como prática distintiva
do modo antropológico de proceder à produção de conhecimento. Como o autor
explicita na introdução a Materiality (Miller, 2005), é a etnografia que garante
que sejamos humildes não somente na relação com os objetos materiais, mas
em nossas elaborações teórico-conceituais, prevenindo-nos no campo das vai-
dades e da armadilha fácil de pensar que estamos “reinventando a roda”.
É assim acompanhando a generosidade analítica e afetiva de Miller que
atendo ao convite dos editores desta edição. Escrever algumas páginas sobre a
relação entre a minha trajetória/obra e a teoria/obra/trajetória dele envolve
retomar, mesmo que brevemente, as muitas teorias da materialidade que sigo
explorando em meu percurso intelectual e acadêmico, que teve por cerne uma
investigação da criatividade junto ao funk carioca. Farei isso passando por mi-
nhas diferentes pesquisas: sobre o figurino funk, que emergiu em minha dis-
sertação de mestrado; sobre a estética funk carioca, que conceituei em minha
tese de doutorado; aquela relativa aos cabelos negros, com os quais elaborei
conceitualmente sobre problemas levantados nas pesquisas anteriores. Em mi-
nha trajetória de pesquisa tenho por suporte analítico a criação musical, o
corpo e as materialidades. Aqui darei ênfase às estéticas corporais para com
elas revisitar o encontro com Daniel Miller.
Voltemos ao que aludi como sendo a posição singular que Miller ocupa
no campo de discussão que se instituiu em torno das materialidades e que diz
respeito ao estatuto ontológico dos objetos materiais. Miller se aproxima de
autores como Alfred Gell em suas propostas de formular abordagens não “lin-
guágicas” para os objetos. Ao mesmo tempo, ele se afasta de tais abordagens
ao defender que o rendimento analítico dos objetos reside precisamente em
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1045 – 1056 , set. – dez., 2020

sua diferença ontológica dos seres humanos. Em uma palavra, da perspectiva


de Miller, os objetos oferecem rendimento analítico, são produtivos analitica-
mente, justamente ao ser conceituados como ontologicamente diferenciados
dos seres humanos. O que nos leva a uma formulação preciosa sua, aquela
relativa à “humildade dos objetos”, com a qual o antropólogo nos remete ao
modo silencioso com que a forma material nos ordena enquanto pensamos que
somos nós que a ordenamos (Miller: 1987).
Tal formulação parece-me preciosa porque a noção de “humildade dos
objetos” reitera o próprio fato de que as coisas estão lá quietas enquanto somos
nós, humanos, a agir. Ao mesmo tempo, a formulação de Miller abre para a
possibilidade de tomarmos as coisas como se agindo sobre o mundo. Um agir
que defensores mais apaixonados de Alfred Gell e também de Bruno Latour
dirão ser conceitualmente muito diferente da noção de agência social, com a
qual ambos os autores elaboraram sobre os efeitos das coisas na vida social.
Mas que nos permite aproximar os três – Miller, Gell e Latour – se consideramos
a crítica auspiciosa feita por Tim Ingold (2012) à noção de agência. Como nota
registro de pesquisa | mylene mizrahi 

1047

este último autor, a ideia de “agência dos objetos” produz como enquadramen-
to necessário concebermos as coisas como incondicionalmente inanimadas, sem
vida. Dependem para agir, outrossim, das instâncias humanas, que seriam, es-
tas sim, as reais detentoras de agência. Tal separação é acionada de modo
evidente por Miller na formulação de sua teoria da materialidade. Podemos,
entretanto, encontrá-la também na concepção de Gell (1998) de que os objetos
de arte são agentes secundários e distribuem a agência primária que tem por
origem a mente criativa humana. Igualmente, a ação social que se institui na
rede de mediadores, como conceituada por Latour (2005), pressupõe como con-
dição necessária a presença de instâncias humanas que, em interação com as
não humanas, produzirão eventos. 1
Seja como for, a noção de “humildade dos objetos” veio ao encontro de
minha própria posição de antropóloga interessada no rendimento que os dis-
cursos em torno da estética adquirem para a análise social, me permitindo
escapar às disputas do campo. Pois se chego a Miller a partir de meus interes-
ses nos usos e significados atribuídos aos bens de consumo, chego às materia-
lidades por meio de uma discussão própria à antropologia da arte, como colo-
cada por Els Lagrou (2007), que toma como ponto de partida as proposições de
Gell a fim de propor caminhos para uma dessubstancialização do objeto. Foi
assim que articulei as formulações de Miller à proposta de uma antropologia
da arte, como colocada por Gell, que buscava resgatar o laço entre forma e
função, rompido pela noção de estética universal. Tratava-se de reconceituar a
estética com meus amigos funk. A “humildade dos objetos” e os discursos sutis,
mas não menos políticos, produzidos pela estética estiveram lado a lado.
A atenção ao caráter humilde dos objetos se afinou a uma abordagem
da estética conduzida pelo acompanhar de seus discursos silenciosos. Foi assim
que conciliei uma abordagem que aposta no potencial de diferenciação onto-
lógica entre pessoas e coisas com as proposições dessubstancialistas de Lagrou
e a coloquei em diálogo com perspectivas usualmente tomadas como antitéti-
cas àquelas epitomizadas por Miller, tanto as relativas aos sistemas classifica-
tórios de bens (Lévi-Strauss, 1989; Sahlins, 2003; Bourdieu, 1984) quanto as
abordagens que defenderam um uso heurístico das coisas na pesquisa antro-
pológica (Henare, Holbraad & Wastell, 2007). A chave para tal liberdade adquiri
não somente por meio de minha formação teórica e conceitual, desde o início
norteada pelo mundo dos objetos, mas pelo treino igualmente fundamental na
etnografia, fundeado no reconhecimento da centralidade que a condução de
um trabalho de campo sistemático e intensivo apresenta para a antropologia.
É, portanto, a partir da articulação das diferentes abordagens da mate-
rialidade que imprimi ao longo de minha trajetória de pesquisa que estabeleço
minha relação de colaboração com Miller. Voltemos a ela.
Minha pesquisa de mestrado se desenrolou majoritariamente no bai-
le funk que ocorria nas noites de sábado e vésperas de feriados em um clube
o que a “humildade dos objetos” pode nos dizer sobre a beleza no rio de janeiro

1048

no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Ao longo de 18 meses acompanhei


rapazes e moças na festa e em suas produções anteriores a esta, fazendo
incursões a residências, locais de trabalho, centros de compras e embeleza-
mento.
Cheguei ao baile com o intuito de testar hipóteses levantadas em pes-
quisa anterior (Mizrahi, 2003). Interessava-me acompanhar os discursos verbais
e não verbais das usuárias de um estilo de calças femininas que até então eu
designara como do segmento jeans. No baile constatei que o que eu conhecia
por meio da categoria midiática “calça da Gang”, fazia parte de um estilo cul-
tural englobante designado pela categoria nativa “calça de moletom stretch”. A
categoria nativa, ao nomear o estilo, desvinculava-o de um produtor particular,
a empresa Gang, ao mesmo tempo em que o designava como expressão da
criatividade cultural. Além disso, e talvez mais importante para o meu ponto
aqui, fazia uma ponte imediata com o tecido empregado na sua produção. Em
vez do criador individual, como expresso por meio da categoria midiática, o
que definia o estilo no baile era a sua materialidade.
Mas as qualidades intrínsecas do objeto só poderiam ter seu significado
acessado a partir da consideração do corpo que a vestia: um corpo específico
em uma dança também específica. Foi assim que adentrar um mundo funk a
partir dos resultados de uma pesquisa em torno da ressignificação da calça
pelo discurso midiático levou-me a produzir uma etnografia do baile com base
em seus elementos estéticos, tomando-o como um todo (Mizrahi, 2019b).
Se parecia ser um jeans, a referida calça era na verdade um simulacro
seu, feito em moletom stretch: uma malha de algodão mesclada ao fio de elas-
tano, a lycra, que após tinturada e lavada poderia adquirir a aparência de jeans.
As propriedades do tecido tornavam-no extremamente elástico, aderente ao
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1045 – 1056 , set. – dez., 2020

corpo e confortável. Enquanto o jeans stretch resulta de um tecido plano mes-


clado ao elastano e essa qualidade faz com que ele estique somente em sua
largura, o moletom stretch é tecido circular que, por definição, estica na largu-
ra e altura, e se torna ainda mais elástico ao ser mesclado ao fio de elastano.
Além disso, sua espessura suporta uma série de ações embelezadoras, como
apliques de cristais, tacheados, rendas, perfurações, concedendo ares barrocos
à peça de roupa e tornando-a ainda mais apropriada para a festa.
A calça permitia liberdade de movimentos a um corpo em dança que
realizava movimentos circulares e realçava um corpo feminino todo ele redon-
do e voluptuoso. Ela expressava, portanto, não apenas um estilo, mas o tipo de
corpo valorizado, o gosto indumentário, a noção de feminino e, por contraste,
seus correlatos masculinos. Foi essa pesquisa que provocou meu encontro com
Miller e me levou a Londres para fazer meu doutorado-sanduíche sob sua su-
pervisão, dessa vez com outro projeto de investigação: o relativo à estética funk
carioca, que conduzi junto à rede de relações do cantor de funk carioca Mr.
Catra, ao longo de outros 18 meses de trabalho de campo (Mizrahi, 2014).
registro de pesquisa | mylene mizrahi 

1049

Em 2006, no início do curso de doutorado e já com minha dissertação


defendida, fui apresentada a Miller por uma colega, Carla Barros, em um con-
gresso sobre consumo que aconteceu no Rio de Janeiro, no qual exporíamos
nossas pesquisas. Miller, na época, montava uma rede global de pesquisadores
sobre os diferentes usos e sentidos do jeans pelo mundo, e ficou muito instiga-
do com meu material, especialmente após observá-lo in loco. Aproveitando sua
passagem pelo Rio organizei com Els Lagrou um workshop para os alunos do
PPGSA-IFCS-UFRJ, mas não pude deixar de levá-lo ao baile em que conduzi a
pesquisa de mestrado, o que lhe rendeu uma noite e tanto!
A materialidade da calça permitia conciliar um corpo e gosto não he-
gemônicos ao gosto global, epitomizado pelo jeans, e foi a partir desses ten-
sionamentos que elaborei meu subprojeto para o Global Denim Project, coor-
denado por Miller, e o capítulo para a coletânea de mesmo nome, organizada
por ele e por Sophie Woodward, com o qual sintetizei os muitos sentidos que
a calça me permitiu desvendar (Mizrahi, 2011).
Passei seis meses em Londres, participando do grupo de pesquisa coor-
denado por Miller, que tinha por dinâmica nos reunir na casa de algum orien-
tando seu. Para uma dessas ocasiões, Daniel sugeriu que realizássemos nosso
encontro em Brighton, na casa de um ex-aluno, já sediado como professor na
Universidade de Sussex. Seria uma boa oportunidade, disse-me Miller, para que
eu conhecesse a popular cidade litorânea.
Nesses encontros, quem geralmente cozinhava ou dava as diretrizes do
cardápio era o dono da casa, quase sempre um estrangeiro, o que trazia sur-
presas interessantes, afinadas com o espírito multicultural londrino. Só após
termos comido um pouco e bebido outro tanto é que apresentávamos os resul-
tados de nossas pesquisas, o que em nada reduzia o rigor do debate. Ao con-
trário, nesses encontros pude experimentar o modo agonístico com que o de-
bate intelectual é conduzido no ambiente acadêmico britânico.
Essas reuniões de discussão de resultados de pesquisa e as muitas apre-
sentações de trabalho que fiz em congressos e seminários contribuíram para
que eu deixasse Londres com o argumento de minha tese estruturado. Argu-
mento que, é preciso dizer, causou certo estranhamento em Miller, por meu
foco privilegiado na pessoa do artista, mais do que na “cultura”. Foi, porém, em
uma última conversa de orientação, em um pub próximo à UCL (University
College London), que Miller generosamente me falou de sua admiração por meu
trabalho, que renderia ainda, cinco anos depois, a quarta capa do livro com o
qual publiquei minha tese de doutorado.
Se no mestrado adentrei o mundo funk por meio da festa e de seus frui-
dores, desvendando os sentidos de um estilo cultural, no doutorado, ao me
deter sobre a produção do universo de relações erigido em torno de um movi-
mento musical, voltei-me para a pessoa do artista. “Esqueci” assim a calça,
para parafrasear processo análogo por meio do qual Els Lagrou deslocou, mo-
o que a “humildade dos objetos” pode nos dizer sobre a beleza no rio de janeiro

1050

mentaneamente, o foco em sua investigação de doutorado. Passei a me dedicar


especialmente à criação e à circulação da música, junto ao coletivo de artistas
articulado em torno de Mr. Catra.
Os objetos, contudo, estiveram sempre ali, alguns mais silenciosos do
que outros. Meu interesse sobre eles se mantinha e volta e meia eu fotografava
um chinelo Havaiana, uma joia em ouro, uma tatuagem, uma bateria eletrôni-
ca, um maço de dinheiro. Meus interlocutores em campo achavam esses mo-
mentos sempre um tanto curiosos, e eu seguia em minha exploração. Interes-
sante aqui, entretanto, é o fato de que o “objeto” que se mostrou realmente
significativo na pesquisa de doutorado foi aquele para o qual eu mesma não
atentei, os cabelos femininos. Se no campo de mestrado foram os objetos em
sua ostensividade que me guiaram na exploração da corporalidade no baile – a
barroca calça de moletom stretch das moças e os cabelos artefatuais, coloridos,
descoloridos, raspados e recortados, dos rapazes – no doutorado foi a sua ubi-
quidade que se mostrou reveladora. Ubiquidade, deve-se notar, igualmente
cara a meu supervisor em Londres (Miller & Woodward, 2007).
Em uma tarde cheguei ao estúdio de gravação que reunia o coletivo de
artistas articulado em torno de Mr. Catra e encontrei-o inativo. Os músicos ti-
nham passado a noite acordados, realizando performances pela cidade com vias
a cumprir a agenda profissional do coletivo. Todos dormiam, exceto Mr. Catra
que, “acostumado com o ritmo”, já tinha saído. Dirigi-me então à casa da famí-
lia, contígua ao estúdio, e me deparei com Silvia, a esposa do artista, não mui-
to disposta para conversas. Thamyris, a filha mais velha, se arrumava para sair
com Cida, ex-cunhada de Silvia e que naquele período vinha realizando servi-
ços domésticos na casa da família. Eu pensei comigo que o melhor que eu teria
a fazer seria ir embora também, mas, antes de minha partida, Silvia sugeriu
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1045 – 1056 , set. – dez., 2020

que eu desse carona para Thamyris e Cida. Eu respondi que sim, claro, comen-
tando que iria para o Leblon e poderia deixá-las em algum ponto que lhes
parecesse conveniente. Silvia, com sarcasmo, disse que “de nada adianta quem
vai para o Leblon oferecer carona para quem está indo para Madureira”. Seu
comentário me desconcertou e ao perceber que as duas não iriam mais comigo,
pois minha carona de nada prestava mesmo, decidi mudar de rumo e levar
Thamyris e Cida para Madureira.
Os cabelos femininos estiveram sempre à minha volta. Desde o mestra-
do, ouvi conversas em torno deles e já na pesquisa de doutorado presenciei, em
visitas à casa da família, eventos de colocação de extensões de cabelos. Mas foi
só após essa minha primeira incursão ao salão de Madureira, propiciada pelas
provocações de Silvia, que passei de fato a atentar para eles. Para tal, contribuiu
ainda uma outra tarde, seguinte a essa.
Estávamos Silvia, Thamyris e Tó, amiga da família e que igualmente
realizava serviços domésticos eventuais na casa, e eu, sentadas descontraida-
mente na sala de estar. Conversávamos amenidades com a televisão ligada, e
registro de pesquisa | mylene mizrahi 

1051

aproveitei para trazer à baila o tema dos cabelos, que tanto tinha me mobili-
zado na semana anterior. Comentei sobre o fato de ainda não ter atentado
para sua importância e sobre minha vontade de olhar sua produção mais de
perto. Silvia e Thamyris se entreolharam e fizeram um comentário jocoso sobre
a pouca velocidade com que dirigi na outra tarde. De fato, eu dirigia em velo-
cidade baixíssima ao longo desses deslocamentos, pois precisava conciliar a
atenção na estrada com a atenção nas conversas que mantínhamos dentro do
carro.
Tó, quase saltando, se levanta do sofá e enfatizando seus gestuais, fala
com firmeza: “o cabelo é a coisa mais importante mapoa!”. De nada valia um
“corpão” sem cabelos, disseram, e acrescentaram que se eu ainda não atentara
para os cabelos era porque os tinha. Em outros termos, eu, uma mulher branca,
não poderia sozinha notar a importância dos onipresentes cabelos femininos,
pois eles não tinha para mim o significado que adquiria para elas. O silêncio
dessa onipresença, porém, revelar-me-ia ainda muitos e muitos significados.
Como disse-me Thamyris quando decidi levar a sério seus discursos em torno
dos cabelos, parecia que eu estava vendo um novo mundo. E estava mesmo.
O adensamento da discussão sobre os cabelos gerou uma série de des-
dobramentos conceituais levados adiante em minha pesquisa de pós-doc e
foram acompanhados de um refinamento da noção de corpo artefatual coloca-
da na tese. Tais desdobramentos, concretizados por meio de quatro diferentes
artigos, estiveram sempre em diálogo com as discussões sobre a materialidade
como colocadas por Miller, ainda que em cada um deles eu privilegiasse a in-
terlocução com um par de autores diferentes. O rendimento conceitual que os
cabelos apresentaram reiteraram o rendimento analítico da noção de “humil-
dade dos objetos”.
Os cabelos ambíguos, como denominei o estilo cuja produção acompa-
nhei com Thamyris, Cida, Tó, Silvia, entre outras, condensam de modo ímpar
a maneira pela qual as coisas e a estética podem ser loquazes em seu silêncio.
Cabelos nem lisos, como os das brancas, mas tampouco crespos, como os afros
ou black. Cabelos com os quais minhas amigas buscavam fluidez por meio da
aparência, fazendo da ambiguidade racial agência, muitas vezes produzidos
por extensões de cabelos humanos, caros e trabalhosos em sua realização. Por
meio desses cabelos e da articulação entre beleza, poder de compra e raça,
minhas amigas subvertiam a sobreposição de raça e classe que se instituiu no
Brasil (Mizrahi, 2015).
Ao acompanhar a produção dos cabelos femininos vi as mulheres pro-
duzirem-se como um em si, ao menos no que tocava à relação com os homens.
E se, para estes, chegar a uma festa enlaçando com cada um de seus braços
uma mulher era o que causava um “baque”, para as mulheres, diferentemente,
o homem cumpria o papel de secretário, motorista, segurança. Nesse mundo
funk, muitas vezes representado como machista e misógino, cercar-se de mui-
o que a “humildade dos objetos” pode nos dizer sobre a beleza no rio de janeiro

1052

tas mulheres fala também de uma fragilidade da condição masculina que se


faz necessariamente na relação com muitas mulheres, aspecto que evidencio
a partir do vai e vem de dinheiro, joias, uísques e mulheres, permitindo com-
plexificar a representação do feminino como submisso aos desejos do homem
(Mizrahi, 2018). Pois a relacionalidade da pessoa feminina residia não em sua
contraparte masculina, mas na relação com a mulher branca. Uma disputa que
era vivenciada junto aos cabelos.
Se a aparência se mostrava fundante para a produção da pessoa femi-
nina funk, o cabelo adquiriu de fato lugar privilegiado nesse processo. Era para
os cabelos que toda entrada extra de dinheiro era invariavelmente destinada.
Ao longo desses anos de relação com essas mulheres, em duas ocasiões me
pediram dinheiro: uma vez para colocar cabelos; na outra vez o caso era de
doença grave. E não foram apenas os marcadores sociais de diferença que foram
trazidos à tona pelos cabelos ambíguos, mas a urgência de pensar a produção
do self por meio do repensar do corpo.
Com a noção de prótese, como explorada por Marilyn Strathern (1991:
76) – coisas que são da pessoa e mais do que a pessoa – e a noção de actant de
Bruno Latour (2005) – o coletivo formado por flesh, materialidades e pessoa –
adensei a ideia de um corpo artefatual. Um corpo cujo dado biológico não era
mais suficiente para o definir e que permitia pensar na pessoa como produzi-
da de modo fluido, processual. Um self que busca escapar às representações e
às cristalizações e que agencia sua aparência de modo a facilitar sua circulação
pelo espaço da cidade (Mizrahi, 2012, 2015). Com seus cabelos minhas amigas
apostavam na dimensão protética da materialidade, refaziam a conectividade
produzida pelos homens por meio da música.
E se Judith Butler (1993) argumenta que o gênero é o resultado não esta-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1045 – 1056 , set. – dez., 2020

bilizado de uma série de efeitos de performances, aliei à “materialidade dos cor-


pos”, a “materialidade dos objetos”, como inaugurada por Miller. Expandi assim
a noção de performatividade de gênero, como formulada por Butler, para pensar
não apenas na produção da pessoa, mas para igualmente colocar a possibilida-
de de pensarmos a raça como performativa (Mizrahi, 2019a). As mulheres foram
tomadas em sua potência criativa, como artistas no sentido amplo do termo.
Adentrei o universo popular carioca de uma maneira muito peculiar, por
meio dos objetos materiais e mais especificamente da indumentária e da mo-
da em uma época em que esses não eram temas correntes nas ciências sociais.
A centralidade analítica que as materialidades adquiriram em minha pesquisa
de mestrado foram deslocadas em minha prática investigativa de doutorado.
Passei a fazer da estética minha entrada conceitual e analítica, seguindo as
coisas em sua significação, o que se desdobrou em dois eixos de pesquisa fun-
damentais: a criação e a subjetivação artística e as estéticas corporais.
Minha pergunta ampla passou a se referir à produção artística, à criati-
vidade, em suma, à produção estética. E foi no processo de perguntar pela es-
registro de pesquisa | mylene mizrahi 

1053

tética – estivesse ela nas formas visuais, sonoras ou artefatuais (Mizrahi, 2007)
– que novamente as relações raciais e de gênero retornaram. Friso que meu
ponto de partida não foi raça e gênero, mas a atenção à estética, mais especi-
ficamente às estéticas corporais e aos cabelos, que colocaram os marcadores
sociais de diferença como urgentes. Os cabelos ambíguos mostraram um estilo
particular de lidar com o racismo e os preconceitos de classe, um modo silen-
cioso de fazê-lo, o que me levou a ampliar o escopo de minha pesquisa com os
cabelos femininos, para além do contexto relacional funk. Passei a conversar
com jovens universitárias negras para explorar cabelos que encerram modos
mais explícitos de lidar com essas mesmas clivagens, como os afros ou as ex-
tensões de cabelos sintéticos coloridos.
Atentar para as materialidades e para a estética me conduziu incialmen-
te às relações de gênero, mais adiante às relações raciais e por fim a um repen-
sar do corpo. Comecei assim minha trajetória de pesquisa a partir de um foco
analítico sobre as materialidades, depois deixei esse foco de lado, repousando,
até que o próprio campo me levou de volta a ele. O que me permitiu ainda
propor tomarmos o consumo como prática criativa, por meio do qual o sujeito
se produz e faz ver ao mundo como o entende e se entende nesse mesmo mun-
do. O consumo pode ser assim um insumo na produção de si, feita essencial-
mente por meio do corpo e da aparência.
Com este breve ensaio busquei dar mostras do modo como a abordagem
da materialidade de Daniel Miller me ajudou a avançar em minhas próprias
teorizações. Penso que a longevidade desse diálogo pode ser atribuída à possi-
bilidade de articulação que as proposições de Miller oferecem com outros au-
tores e formulações que, por caminhos distintos, tiveram por interesse analí-
tico e conceitual as coisas. Talvez tenha sido justamente o caráter humilde que
as coisas findaram por adquirir em minha própria pesquisa a garantia desse
diálogo profícuo.

Recebido em 13/4/2020 | Revisto em 21/9/2020 | Aprovado em 19/10/2020

Mylene Mizrahi é antropóloga, com mestrado e doutorado no PPGSA-


-IFCS-UFRJ. Atualmente é professora do Departamento de Educação e
do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Rio. É autora de A
estética funk carioca: criação e conectividade em Mr. Catra e de Figurino
funk: roupa corpo de dança em um baile carioca, organizadora de Desedu-
cando a educação: mente, materialidade, metáfora. Publicou também arti-
gos e capítulos em periódicos e coletâneas. Seus interesses de pesqui-
sa incluem subjetivação artística, formas expressivas, arte e educação,
estéticas corporais, circulação pela cidade, articulados a raça e gênero.
o que a “humildade dos objetos” pode nos dizer sobre a beleza no rio de janeiro

1054

Nota
1 Iniciei essa discussão em outra ocasião (Mizrahi, 2016) e
a levo adiante em artigo que se encontra em elaboração.

referências bibliográficas
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o que a “humildade dos objetos” pode nos dizer sobre a beleza no rio de janeiro

1056

O que a “humildade dos objetos” pode nos


dizer sobre a beleza no Rio de Janeiro: notas
sobre uma trajetória de pesquisa
Resumo Palavras-chave
Neste texto discorro sobre a relação entre minha trajetória Humildade dos objetos;
acadêmica e conceitual e a teoria, obra e trajetória de pes- ubiquidade;
quisa de Daniel Miller. A partir de trabalho de campo jun- funk carioca;
to ao funk carioca, com ênfase em sua dimensão estética cabelos;
e nas materialidades que o compõem, elaboro sobre a no- moda.
ção de “humildade dos objetos” e exploro o rendimento
que as coisas “ubíquas” podem oferecer para a pesquisa
em ciências sociais. Trago à tona a generosidade analítica
e afetiva que marca minha interlocução com Miller e revi-
sito o período correspondente ao doutorado-sanduíche, em
Londres sob a supervisão do antropólogo inglês. Retomo,
ainda que brevemente, as muitas teorias da materialidade
que acionei nesse processo e que sigo explorando em meu
percurso intelectual e acadêmico.

What the “humility of objects” can tell us


about beauty in Rio de Janeiro: notes on a
research trajectory
Abstract Keywords
I discuss the relationship between my academic and con- Humility of objects;
ceptual trajectory and Daniel Miller’s theory, work and ubiquity;
research trajectory. Departing from my fieldwork within funk carioca;
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1045 – 1056 , set. – dez., 2020

funk carioca – Brazilian electronic music – mainly focused hair;


on its aesthetic dimension and the materialities, I dell fashion.
upon the notion of “humility of objects” and explore the
potentialities that “ubiquitous” things offer for research in
Social Sciences. I bring out the analytical and affective
generosity that marks my interlocution with Miller and
revisit the period I spent in London to carry on my part of
PhD research, under his supervision. I return briefly to dif-
ferent theories of materiality that I explored and continue
to explore in my intellectual and academic path.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v10313

1 UniversityCollege London (UCL), London, United Kingdom


spyer@ alumni.usp.br
https://orcid.org /0000-0003-0951-5345

Juliano Spyer I

As escolhas metodológicas para produzir


pesquisas colaborativas e comparativas:
o caso do “Por que postamos”

O projeto “Por que postamos” (Why we post, em inglês), liderado pelo antropó-
logo Daniel Miller da UCL e realizado entre 2012 e 2018, resultou em 11 livros,
um curso online, um site 1 contendo o resultado da pesquisa de maneira resumi-
da e acessível para leitores não especialistas, traduzido para todas as línguas
dos países em que a pesquisa de campo aconteceu, um canal no YouTube 2 com
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1057 – 1070 , set. – dez., 2020

mais de 100 vídeos editados, e uma série de artigos acadêmicos escritos em


conjunto pelos pesquisadores do projeto, em parceria com outros acadêmicos
ou produzidos individualmente.
Um dos motivos que propiciaram essa quantidade e diversidade de re-
sultados foi a decisão metodológica posta em prática pelos participantes do
projeto de ampliar e aprofundar as formas de colaboração e cooperação entre
pesquisadores. Antropólogos geralmente trabalham sozinhos durante a maior
parte de seus projetos de pesquisa, até a análise estar pronta para publicação
ou para ser apresentada em eventos acadêmicos. Os pesquisadores do “Por que
postamos” colaboraram e cooperaram desde o momento em que o tema do
estudo foi definido, e seguiram interagindo de maneira coordenada ao longo
do processo.
O objetivo deste artigo é descrever como esse experimento metodológi-
co aconteceu e examinar as vantagens e desvantagens das escolhas que guia-
ram o trabalho conjunto dos nove antropólogos que atuaram na equipe entre
2012 e 2017. Os interessados na realização de pesquisas qualitativas compara-
as escolhas metodológicas para produzir pesquisas colaborativas e comparativas

1058

tivas e colaborativas encontrarão mais detalhes sobre os aspectos metodológi-


cos deste projeto no livro comparativo Como o mundo mudou as mídias sociais
(Miller et al., 2019a) e também em artigos publicados em inglês pela equipe
como, por exemplo, Miller et al. (2016, 2019b), Miller (2015, 2016, 2017), Miller e
Sinanan (2017), Haapio-Kirk (2017).
Em seis anos de projeto, quatro foram de trabalho individual e conjunto
envolvendo os participantes do “Por que postamos” e podem ser divididos cla-
ramente em três períodos: a fase preparatória de sete meses antes de partirmos
para o trabalho de campo; os 18 meses em que cada um de nós viveu e trabalhou
em sua localidade; e a análise dos resultados individuais e comparativos quan-
do retornamos à UCL.

Desafios da pesquisa holística


Os locais pesquisados neste projeto foram Inglaterra e Itália na Europa; Turquia
no Oriente Médio; Índia e China na Ásia; Chile, Brasil e Trinidad Tobago na Amé-
rica do Sul. Dois pesquisadores realizaram trabalhos de campo em localidades e
em contextos demográficos diferentes da China. A escolha dessas localidades
está justificada na introdução do livro comparativo do projeto (Miller et al., 2019a).
Do ponto de vista metodológico, um desafio inicial da equipe foi definir
como comparar dados etnográficos resultantes de localidades afastadas entre
si. Como fazer uma pesquisa de campo “clássica”, vivendo junto com o grupo
que se está estudando, e gerar dados e evidências que possam ser comparados
entre chineses do meio rural, chineses migrantes que trabalham em indústrias,
indianos de vilas rurais que hoje são polos tecnológicos, curdos de classe mé-
dia vivendo na Turquia, italianos urbanos de classe média, ingleses de pequenas
cidades afastadas de Londres, moradores de uma área predominantemente
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1057 – 1070 , set. – dez., 2020

pobre em Trinidad e Tobago, migrantes do campo vivendo em uma vila traba-


lhadora nas proximidades de resorts internacionais no Brasil e mineradores de
origem trabalhadora no norte do Chile?
Este artigo não sugere que a pesquisa antropológica feita em grupo, de
maneira colaborativa e comparativa desde o início, sirva para qualquer contexto
nem que ela represente um caminho melhor do que a da investigação conduzida
de maneira individual para a realização de pesquisas etnográficas. Considerando
que pesquisas realizadas coletivamente nesse modelo cooperativo sejam ainda
raras entre antropólogos, o artigo indica algumas possibilidades para a pesquisa
de um tema em contexto global. Esse experimento metodológico também tem
contrapartidas, e esses casos e situações serão mencionados ao longo deste texto.

Pesquisas etnográficas tradicionais


No Departamento de Antropologia da University College London (UCL), assim
como em outros departamentos similares em todo o mundo, o processo de
elaboração de pesquisa de campo constitui um esforço de prever alguns cená-
registro de pesquisa | juliano spyer

1059

rios possíveis durante esse período. Além disso, se entende que a proposta
seja apenas um exercício e que existam muitas oportunidades de o estudante
fazer adaptações e mudanças na hora em que confronta suas expectativas com
a realidade do campo. Muitas coisas podem dar errado em relação ao que a
proposta antecipou, e o estudante responde a essas dificuldades e também às
reflexões novas que o início da pesquisa proporcionou. Não é incomum, por-
tanto, que a tese produzida por muitos dos meus colegas de doutorado tenha
sido sobre assuntos muito diferentes daqueles que cada um deles inicialmen-
te pensou em estudar.
Numa pesquisa colaborativa de proporções globais como a do “Por que
postamos”, não é possível contar com essa liberdade para mudar de curso a
partir de oportunidades que se abram. Uma das condições para permitir a com-
paração de dados entre dois ou mais campos de pesquisa é que se esteja pes-
quisando o mesmo tema. Simultaneamente, entretanto, os participantes tiveram
liberdade para examinar aspectos de seu interesse dentro da temática principal.
O roteiro de trabalho que nossa equipe seguiu foi produzido durante os
meses anteriores à viagem a campo, conforme detalharei adiante. Nosso time
chegou ao trabalho de campo com minucioso roteiro de tarefas que precisavam
ser executadas, muitas vezes concomitantes. Esse documento informava, por
exemplo, temas a observar a cada mês visando à produção de relatórios que
circulavam e eram comentados por todos os participantes.
Nesse sentido, os interesses de pesquisa individuais dos componentes da
nossa equipe estavam submetidos aos objetivos definidos em conjunto durante
as discussões preparatórias da equipe. Isso não significa dizer que não realiza-
mos pesquisas etnográficas, mas antes que nosso trabalho tinha um componen-
te coletivo que nos impunha limitações. No dia a dia os colegas de grupo cum-
priam atividades iguais planejadas por pesquisadores que trabalhavam indivi-
dualmente. Junto com a aplicação de questionários e a realização de entrevistas,
a maior parte do nosso tempo foi dedicada a participar das rotinas do local.

Preparação anteRIOR À pesquisa de campo


O “Por que postamos” teve início com uma fase de sete meses de preparação
para ir a campo realizada em reuniões em salas de trabalho na universidade.
Nesse período, a rotina dos pesquisadores se resumia a participar de reuniões
com a equipe para propor e discutir leituras de textos sobre nosso tema prin-
cipal de pesquisa, as mídias sociais, publicados por antropólogos e também
por outros cientistas sociais. Essas reuniões aconteciam durante pelo menos
metade do dia, praticamente todos os dias. Cada texto nos ajudava na busca
de questões que poderiam ser examinadas coletivamente nas diferentes re-
alidades de campo. Além disso, também identificamos problemas e lacunas
da literatura acadêmica que poderia ser incorporada e ampliada na nossa
pesquisa de campo.
as escolhas metodológicas para produzir pesquisas colaborativas e comparativas

1060

Além de ler e discutir as pesquisas produzidas sobre mídias sociais, nos-


sas reuniões diárias ou quase diárias serviram para definir as regras visando
ao funcionamento conjunto da pesquisa. A meta era criar oportunidades regu-
lares durante a realização do campo para que os participantes da equipe avan-
çassem em conjunto, mantendo o foco pelo menos parcialmente unificado na
produção de evidências e no debate sobre os mesmos tópicos. Esse foi o aspec-
to que possibilitou a realização de uma pesquisa comparativa nos moldes que
definimos, na qual nove pesquisadores estavam espalhados pelo mundo e imer-
sos em contextos culturais e sociais diferentes entre si. Um resultado desses
exercícios foi a produção de um cronograma com os temas que, a cada mês da
pesquisa, deveriam ser foco da atenção do pesquisador.
Por exemplo, em um mês o assunto comum foi registrar as maneiras de
indivíduos e as várias famílias da localidade se conectarem à internet. No caso
do meu campo na Bahia, registrei, por exemplo, que, nos primeiros meses, a
maioria dos moradores não acessava a internet pelo celular, porque os serviços
de sites de redes sociais não funcionavam bem no tipo de smartphone que eles
tinham na época e que a distribuição de acesso no local acontecia a partir de
serviços informais que compravam conectividade e redistribuíam via transmis-
são por rádio. Durante cada mês, portanto, uma das atividades em grupo dos
pesquisadores era examinar assuntos iguais e posteriormente, ao fim de cada
mês, ler e comentar os relatórios sobre o tema produzido pelos outros membros
do grupo. Dessa maneira, produzimos recursos para observar similaridades e
diferenças entre os campos pesquisados.
Junto com as atividades do calendário de cada pesquisador, tivemos
atividades como a realização de entrevistas e a aplicação de questionários,
material produzido durante os encontros preparatórios. Continuavam sendo
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1057 – 1070 , set. – dez., 2020

questões definidas pelo grupo, mas cada pesquisador tinha liberdade para adi-
cionar perguntas que considerasse relevantes para o seu campo.
Além de questionários e roteiros de entrevistas com questões comuns
para os nove campos, estabelecemos que cada uma dessas atividades seria
realizada de maneira sincronizada nas mesmas datas pelos nove pesquisadores.
A coordenação permitiria o uso do material coletado previamente em atividades
futuras. Por exemplo, dependíamos dos resultados das sessões prévias de co-
leta de material visual compartilhado em sites de rede social, aplicação de ques-
tionários e realização de entrevistas para elaborar questionários aplicados
coletivamente no período final das nossas pesquisas.
Ao trabalhar de maneira cooperativa, conseguimos compartilhar a reso-
lução de questões práticas como a mencionada a seguir. Em vez de resolver in-
dividualmente questões práticas da pesquisa, como a formulação do documen-
to de autorização a ser assinado após a gravação de entrevistas em campo, for-
mulamos esse material conjuntamente. Nenhum material foi usado sem ter as
devidas autorizações, incluídas as dos responsáveis legais quando o informante
registro de pesquisa | juliano spyer

1061

era menor de idade. O material recolhido da internet também foi integralmente


anonimizado a partir de normas estabelecidas não por critérios individuais, mas
a partir da colaboração do grupo, considerando contextos antecipados em cada
localidade e país em que as pesquisas aconteceriam. O resultado, do ponto de
vista do projeto, foi termos tido soluções compartilhadas e aprimoradas com
base nas participações do grupo, que posteriormente simplificaram as possibi-
lidades de utilizar o material para estudos comparativos.
Três doutorandos participantes da equipe tiveram vantagens e desvanta-
gens nesse período preparatório em relação à redação dos projetos de qualifica-
ção individuais. O foco do trabalho coletivo em questões metodológicas e no
exame dos principais debates acadêmicos sobre o tema da pesquisa nos ajudou
a redigir partes da revisão bibliográfica necessária para cada um compor o pro-
jeto individual. A intensa rotina de trabalho em grupo, entretanto, limitou o
tempo que os doutorandos tiveram para examinar a literatura específica sobre
seu campo de pesquisa. Visando à aprovação no exame de qualificação, cada
doutorando completou seu próprio projeto lendo e analisando a bibliografia
sobre o local estudado e sobre as pesquisas já feitas sobre mídias sociais no
país em que moraria.
Em momento posterior, depois que a equipe retornou de seus trabalhos
de campo, o professor Daniel Miller, coordenador do projeto, confidenciou sobre
esse período preparatório que seu objetivo principal ao nos ocupar com sessões
intensas de leitura e debate fora fomentar o relacionamento entre nove pesso-
as que não se conheciam previamente. Em sua opinião, a existência de vínculos
de confiança dentro do grupo seria um estímulo importante para os participan-
tes manterem, durante a pesquisa de campo, seus compromissos acordados
coletivamente – apresentados adiante –, como a produção de relatórios, a apli-
cação de questionários ou a realização de entrevistas.

Trabalho conjunto durante a pesquisa de campo


Durante os 18 meses de pesquisa de campo tivemos como referência um do-
cumento produzido coletivamente intitulado “Field work manual” (Manual
para a pesquisa de campo). Esse material, de aproximadamente 50 páginas,
resultado coletivo dos sete meses iniciais de preparação antes das viagens a
campo, se tornou nosso manual de orientação e incluiu o cronograma das
atividades mensais conjuntas, questionários, perguntas para entrevistas, listas
de contato para situações emergenciais, entre muitos outros itens.
O resultado das discussões sobre o trabalho coletivo que gerou esse ma-
nual considerou, primeiramente, que os participantes deveriam compartilhar
entre si, no dia 25 de cada mês, um relatório de cinco mil palavras, em inglês.
Elegemos então os assuntos de cada um desses relatórios. Mensalmente, em
quase todos os 18 meses de trabalho no campo, tivemos um assunto em comum
para prestar atenção particular e produzir um relatório. Essa disciplina manteve
as escolhas metodológicas para produzir pesquisas colaborativas e comparativas

1062

a equipe trabalhando em sintonia e de modo colaborativo. Em vez de estarmos


isolados, cada uma em sua localidade, tínhamos o compromisso de produzir
periodicamente um documento relacionando os usos e as consequências das
mídias sociais a um tema. Esses relatórios eram compartilhados em datas defi-
nidas. Todos os pesquisadores liam os oito relatos dos outros membros da equi-
pe e enviavam de volta a cada autor com suas considerações anotadas na forma
de comentários deixados ao longo de cada texto. A leitura e as anotações eram
atividades individuais, o que significa que todo mês cada um de nós lia aproxi-
madamente um volume de 40 mil palavras com registros das pesquisas nos
demais campos do projeto. O material que resultou dessa prática foi também
útil posteriormente, quando retornamos do campo e iniciamos a fase de análise
e redação dos resultados. Como produzimos relatórios com conteúdo claro e
compreensível para ser lido por outras pessoas, precisamos recorrer menos a
anotações feitas em nossos cadernos de campo, sempre escritas de maneira
menos detalhada e organizada.
Mensalmente, ao longo de toda a pesquisa de campo, no fim do mês,
depois da leitura dos relatórios, tínhamos conversas ao vivo por meio de um
serviço de comunicação por voz pela internet. Falávamos em torno de 90 mi-
nutos sobre nossas impressões dos relatórios lidos no mês e tratávamos também
de questões práticas como problemas de saúde, gastos que não estavam pre-
vistos ou eventos inesperados vividos no campo – por exemplo, a ameaça de
morte que recebi em função do boato de que eu seria um informante da polícia
–, e as experiências dos membros do grupo ajudaram a encontrar soluções. Nes-
se caso, fui orientado a abandonar as visitas a áreas ocupadas ilegalmente e
me envolver com assuntos que não despertassem suspeitas, visitando escolas,
festas infantis e cultos evangélicos.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1057 – 1070 , set. – dez., 2020

O calendário de trabalho do grupo incluiu também a aplicação de dois


questionários, um nos meses iniciais e outro na metade do período da pesqui-
sa, e a realização de 50 entrevistas semiestruturadas, gravadas em áudio e em
vídeo, bem como a coleta de amostras de conteúdo visual postado nas mídias
sociais das pessoas que acompanhamos durante a atuação no campo, cujas
regras tinham sido definidas no período preparatório da pesquisa. Como essa
prática é menos conhecida e aplicada, vale a pena detalhar as orientações
para reunir o material visual e o explorar de maneira comparativa. Em primei-
ro lugar, para evitar que os exemplos gravados representassem usuários de
determinados perfis demográficos (por exemplo, apenas jovens, que costumam
participar das redes sociais com mais frequência do que outros segmentos
etários), definimos a escolha de 20 informantes com perfis demográficos dife-
rentes e proporcionais (em relação a sexo, escolaridade, idade etc.), e durante
uma semana definida, nos incumbiríamos de acessar o perfil dessas pessoas
no Facebook (ou na plataforma mais usada no país) e gravaríamos as 20 últimas
imagens que cada informante havia postado, que poderiam ser fotos pessoais
registro de pesquisa | juliano spyer

1063

ou outros conteúdos, como memes, que o informante tivesse compartilhado


em seu perfil online. O resultado dessa parte do estudo pode ser encontrado no
capítulo 11 do livro comparativo (Miller et al., 2019a) ou no capítulo 3 de cada
uma das nove monografias publicadas a partir do projeto “Por que postamos”
e cujos capítulos seguem igual estrutura, como será explicitado adiante.
Nossas obrigações coletivas não nos impediam de fazer mudanças no
que havia sido definido. Foi o caso, por exemplo, da substituição do tema de
pesquisa “mídias sociais entre pessoas mais velhas” pelo tema “impacto das
mídias sociais na educação e nas escolas”. O primeiro havia sido debatido du-
rante o período de preparação e por isso constava do manual da equipe como
tema a ser observado em um dos meses do trabalho de campo. Ao cabo de alguns
meses, porém, vários pesquisadores mencionaram dificuldades para levantar
dados sobre usuários de mídias sociais com mais idade. No meu caso, vivendo
em uma localidade no extremo da área metropolitana de Salvador, na Bahia, era
raro encontrar pessoas com mais de 40 anos que usassem sites de rede social,
porque tinham dificuldades para ler e consequentemente para navegar por es-
ses serviços usando o computador ou o telefone celular. Na maior parte das
localidades, as pessoas de mais de 50 anos geralmente não usavam o computa-
dor e menos ainda a internet, a não ser com ajuda de intermediários. Por outro
lado, o tema da escola e da educação, que não fora levantado durante discussões
durante os meses preparatórios, era assunto recorrente nas conversas que os
pesquisadores tinham com seus informantes. No meu campo, onde era comum
pais repreenderem os filhos por meio de castigos físicos, eu escutei de algumas
mães que seus filhos – quando eram pegos fazendo o que não deviam – pediam
para apanhar em vez de ser proibidos de usar a internet. Muitos pais conse-
guiam fazer acordos com os filhos no sentido de que se comportassem em sala
de aula e passassem de ano mediante a promessa de lhes dar como prêmio
smartphones ou computadores. Em virtude dessa novidade, o tema da educação,
que não estava no manual, tomou o lugar do outro que não tinha rendido o re-
sultado esperado. A proposta de inclusão do tema da educação nos assuntos
observados coletivamente veio do pesquisador que atuava na China rural, Tom
McDonald. Ele mencionou durante uma de nossas reuniões como a internet se
tornara importante tema de debate na localidade em que ele estava por ser
percebida como algo que comprometia a disciplina dos estudantes.
Em maio de 2014, os nove pesquisadores do projeto “Por que postamos”
deixaram temporariamente as localidades em que conduziam suas pesquisas
para se reunir presencialmente durante um mês, examinar os resultados pre-
liminares de seus trabalhos e definir outras atividades a desenvolver capazes
de aumentar as chances de comparação dos resultados obtidos sobre os usos
e as consequências das mídias sociais em contextos tão distantes e diferentes.
Elaboramos então as perguntas de um questionário que foi aplicado por todos
os pesquisadores nos últimos três meses de campo.
as escolhas metodológicas para produzir pesquisas colaborativas e comparativas

1064

Uma das questões propostas durante esse encontro foi sugerida por Cos-
ta, que estava trabalhando em Madrin, na Turquia. Ela queria saber se nas de-
mais localidades, pais de adolescentes decidiam por seus filhos a aceitação ou
rejeição de um pedido de amizade em rede social. A pergunta foi incluída no
questionário mas, com base nos 12 meses prévios de convívio com os morado-
res da localidade baiana onde eu estava morando, eu sabia que isso não acon-
tecia, ou seja, que filhos não pediam autorização a seus pais para aceitar ou
rejeitar um pedido de amizade no Facebook ou em outra rede social. Apesar
disso, durante a aplicação do questionário, muitos dos participantes começaram
a responder “sim” a essa questão. Posteriormente esclareci que eles estavam
entendendo algo diferente do que a pergunta proposta por Costa pedia. Em vez
de responder sobre pais e mães controlando quem se tornava amigo online do
filho ou filha, eles se referiam a pedidos de amizade que chegavam de pessoas
que eles não conheciam pessoalmente, mas que eram amigos de amigos. Na
localidade em que eu morei era comum receber convites de amizade de pesso-
as desconhecidas. Quem recebia o convite mostrava a foto e o perfil da pessoa
que solicitava o contato para parentes que supostamente conheciam essa pes-
soa, a fim de se informar sobre quem ela era. Essa questão, portanto, deu-me
oportunidade de perguntar mais sobre os critérios e procedimentos no uso das
redes sociais: o que representava esse vínculo? Ele emulava algum tipo de re-
lação fora das interações online ou era algo exclusivo desse ambiente? E de
fato havia fora da internet uma versão desse tipo de relacionamento associado
à ideia de “conhecer de vista”, no qual se sabe quem a pessoa é em função dos
vínculos em comum que existe entre você e essa pessoa.
Este último exemplo resume uma das vantagens de se fazer pesquisas
em grupo, que é ser forçado, ao acompanhar o que acontece nas outras locali-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1057 – 1070 , set. – dez., 2020

dades pesquisadas, a estar atento a aspectos do próprio campo que possivel-


mente não teriam sido percebidos. Depois do choque inicial do pesquisador ao
chegar a um contexto estranho ao seu, gradualmente esse estranhamento se
torna menos intenso e explícito à medida que formamos vínculos de confian-
ça na localidade. Essa “naturalização” dos valores e dos modos de relaciona-
mento locais durante a pesquisa de campo aconteceu com menos intensidade
no caso do projeto “Por que postamos”, devido ao estímulo contínuo para o
exame da alteridade nos demais campos pesquisados.

Análise e redação em grupo


Nosso manual para a pesquisa de campo não considerava, naturalmente, nos-
sas atividades a partir do momento em que voltássemos a nos reencontrar
para começar a analisar as evidências, processar os resultados e redigir as
conclusões de cada pesquisa. Apesar da falta de planejamento específico para
esse momento final, o que acabou acontecendo foi a manutenção da rotina
estabelecida de produção simultânea de textos com os mesmos recortes temá-
registro de pesquisa | juliano spyer

1065

ticos e, em seguida, no coletivo, a avaliação desses conteúdos. Assim escrevemos


os capítulos do livro comparativo (Miller et al., 2019a) e logo depois os capítulos
das monografias individuais. O processo de trabalho dessas duas etapas também
está apresentado no artigo produzido pela equipe do projeto (Miller et al., 2019b).
Para a redação do volume comparativo (Miller et al., 2019a), definimos, a
partir de discussões em grupo e do resultado das pesquisas de campo, quais de-
veriam ser os temas de cada capítulo dessa publicação. Para produzir cada um dos
14 capítulos distribuímos cada tema entre os nove pesquisadores de maneira que
cada capítulo tinha um autor principal. Os participantes mais experientes lidera-
ram a redação de mais de um capítulo. O responsável pelo tema – geralmente o
pesquisador que tivesse com o assunto maior interesse ou familiaridade – produ-
zia a primeira versão do capítulo. Esse material era então repassado em sequência
para dois outros pesquisadores, que revisavam o material e acrescentavam casos
e referências bibliográficas. No último estágio de preparação, cada capítulo volta-
va ao pesquisador que fizera a primeira redação, que, então, o finalizava. Essa
solução permitiu que o livro fosse o resultado do trabalho coletivo e colaborativo
dos participantes, incluindo exemplos de várias localidades pesquisadas.
Na prática, a dinâmica de funcionamento do grupo para escrever esse livro
se parece com a de peer review, que é usada em revistas acadêmicas; no caso do
“Por que postamos”, porém, os revisores não se limitavam a apontar falhas; também
adicionavam reflexões e dados de suas pesquisas. Essa solução nos pareceu mais
próxima da forma de trabalhar adotada pelo grupo e melhor do que adotar a prá-
tica tradicional de produzir uma coletânea em que cada participante da pesquisa
escreve individualmente capítulos sobre um aspecto do estudo usando principal-
mente referências de um campo de pesquisa. Em função da opção pela coautoria
dos capítulos, a maior parte dos nove pesquisadores contribuiu com a redação da
maior parte dos 14 capítulos desse livro, e, por isso, decidimos não atribuir autoria
específica por capítulos. O livro é coassinado por toda a equipe do projeto.
A última etapa de nosso trabalho conjunto foi a redação das monografias.
Cada pesquisador deveria escrever uma monografia com os resultados indivi-
duais de sua pesquisa de campo. Também nessa situação buscamos um modo
de colaboração dos pesquisadores em todos os trabalhos. A solução que viabi-
lizou essa ideia de maneira satisfatória foi estruturar nossos livros com capí-
tulos sobre temas iguais e na mesma sequência. Cada pesquisador escreveria
os capítulos estritamente a partir de seus dados coletados em campo e das
análises da bibliografia que considerasse útil e relevante. Cada pesquisador
produziu sua própria monografia, mas, porque trabalhamos em conjunto, nos
mesmos prazos, sobre o mesmo tema geral em cada capítulo, pudemos mais
uma vez tirar proveito da cooperação da equipe.
Assim, no final de cada ciclo de redação, circulávamos cada versão entre
os membros da equipe. Por exemplo: os nove pesquisadores trabalharam ao
longo da mesma semana para produzir o primeiro rascunho de seus capítulos
as escolhas metodológicas para produzir pesquisas colaborativas e comparativas

1066

iniciais. Esses documentos, então, foram distribuídos, como fizemos durante a


pesquisa de campo, e todos leram e comentaram os rascunhos de todos, enri-
quecendo cada documento. Eram apontadas possíveis referências bibliográficas,
passagens que não estavam claras, indicados casos etnográficos de seus cam-
pos que poderiam ser usados comparativamente e, eventualmente, referidos
relatórios escritos durante as pesquisas de campo com casos etnográficos que
poderiam ser incorporados no capítulo. Ao mesmo tempo, ler os oito capítulos
sobre o mesmo assunto, mas tratando de campos diferentes, servia como fon-
te de inspiração para descrições que poderíamos adicionar e argumentos que
poderíamos também analisar a partir das evidências do próprio campo.

Considerações finais
A principal vantagem dessa solução para o trabalho acadêmico no caso de pes-
quisas feitas em grupo pode ser vista também como desvantagem. O fato de eu
estar trabalhando com oito pessoas obrigou-me a seguir um roteiro rígido e não
mudar de assunto no meio da pesquisa. Em contrapartida, acompanhei o traba-
lho dos outros membros da equipe, tirei proveito de suas reflexões e experiências
etnográficas. Essa experiência de aprendizado que acontece pelo relacionamen-
to dentro de grupos é descrita na literatura antropológica sobre aprendizado
(Lave & Wenger, 1991).
Além de influenciar positivamente na ampliação do impacto da pesquisa,
nossa experiência de trabalho em grupo teve consequências positivas também
no aspecto da saúde mental do pesquisador. O trabalho solitário de pesquisa
acadêmica em geral e antropológica em particular costuma cobrar um preço
alto do estudante, especialmente do antropólogo que se compromete a passar
muitos meses em um lugar distante do seu, como foi o nosso caso. O mesmo
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1057 – 1070 , set. – dez., 2020

estudante, ao retornar, tem uma rotina intelectual solitária porque dificilmente


haverá outro estudante no mesmo departamento trabalhando em pesquisa se-
melhante, estudando populações semelhantes e usando referências teóricas
semelhantes. Por isso é difícil receber ajuda dos colegas, pois eles não estão
familiarizados com a bibliografia específica nem com o agrupamento social
estudado.
Diferentemente dos demais estudantes de nosso departamento, nós nun-
ca tivemos que pedir para colegas o favor de ler nossos manuscritos. Fazer isso
era parte rotineira do trabalho. Consequentemente recebemos muitas sugestões
ao longo de todo o processo. Isso foi útil especialmente para nós, doutorandos,
porque pudemos conviver com pesquisadores mais maduros e experientes na
mesma disciplina, que nos ajudavam do ponto de vista acadêmico, com referên-
cias e análises sobre os assuntos que pesquisamos, e também do ponto de vista
emocional. E, mesmo quando líamos o trabalho de outra pessoa da equipe, tí-
nhamos oportunidades de fortalecer nossas próprias pesquisas, apenas por ver
como o outro chamava a atenção sobre um determinado aspecto que não tínha-
registro de pesquisa | juliano spyer

1067

mos considerado inicialmente; e também ter acesso a referências de livros e


artigos sobre os assuntos que estávamos trabalhando (por exemplo, o uso de
mídias sociais nas escolas), mas escritos por pesquisadores de outros países.
O projeto “Por que postamos” produziu muitos resultados que a limitação
deste artigo, não permite examinar. Mencionei rapidamente no início deste tex-
to como escolhemos as nove localidades pesquisadas, mas podemos ir mais
longe e perguntar por que exatamente essas localidades, por exemplo, na Ásia
ou na América do Sul? Por que a decisão de estudar os efeitos das mídias sociais
de forma comparativa? Em que medida pudemos estabelecer comparações entre
cada localidade e usando quais tipos de evidências? Respostas para essas e
muitas outras questões estão disponíveis em Como o mundo mudou as mídias sociais
(Miller, 2019a), escrito originalmente em inglês pelos nove pesquisadores da
equipe, mas traduzido e disponível em português para a venda em formato im-
presso e gratuitamente em PDF, podendo ser localizado no site do projeto ou via
consulta a sites de busca.3
A intenção deste artigo não é convencer antropólogos e outros cientistas
sociais a abandonar pesquisas feitas individualmente, mas apontar que existem
caminhos alternativos a esse modelo. A maior dificuldade para a realização de
experimentos semelhantes ao do “Por que postamos” talvez seja não uma obje-
ção do pesquisador, mas a limitação de gastos com pesquisas no campo das
humanidades. No nosso campo, o pesquisador geralmente é o responsável por
conseguir os próprios recursos para a pesquisa, particularmente como douto-
rando ou pós-doutorando. As ideias postas em prática durante o projeto “Por que
postamos”, entretanto, podem mobilizar grupos de pesquisa a pensar sobre
maneiras de trabalhar colaborativamente.
Como pesquisador desse projeto, não pude tomar algumas decisões in-
dividuais sobre minha pesquisa; não pude alterar planos sobre o tema pesqui-
sado sem que isso fosse aceito e fizesse sentido para os outros oito participantes
da equipe. Dentro do tema uso e consequências do uso das mídias sociais, con-
tudo, tive igual oportunidade à dos antropólogos de realizar uma pesquisa de
longa duração com base em observação participante. O fato de ter trabalhado
em um grupo não me impediu, durante a pesquisa de campo, de ir a jantares,
participar de conversas na rua e em bares, frequentar rotinas de religiosos em
suas igrejas conversar com o ou a informante sobre aquilo que lhe fosse rele-
vante. A tarefa de enviar relatórios mensais e ler o material dos meus colegas
consumia talvez dois ou três dias de trabalho ao longo do mês, mas poder ob-
servar o que acontecia em mais oito campos sem precisar desviar minha atenção
da localidade, pois estávamos tratando dos mesmos assuntos, tornou minha
percepção mais sensível às particularidades de meu campo.

Recebido em 1/3/2020 | Revisto em 21/9/2020 | Aprovado em 19/10/2020


as escolhas metodológicas para produzir pesquisas colaborativas e comparativas

1068

NOTAS
1 Os livros e vídeos que resultaram desse projeto
estão publicados sob licenças Creative Com-
mons e disponíveis em: <www.ucl.ac.uk /why-
-we-post>.
2 <https://www.youtube.com/user/whywepost>.
3 Todos os livros da coleção “Por que postamos”,
em todas as línguas em que foram traduzidos,
estão disponíveis nesta página: <https://www.
uclpress.co.uk/collections/series-why-we-post>.
Devido ao fato de estar disponível para venda
nos formatos impresso ou ebook, mas também
poder ser baixada integralmente grátis em for-
mato PDF, essa coleção de livros antropológicos
se tornou acessível para bibliotecas, acadêmicos
e estudantes, pr incipalmente em localidades
em que esse material não chegaria, e isso con-
tribuiu para a série ultrapassar a marca de um
milhão de downloads em agosto de 2020.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1057 – 1070 , set. – dez., 2020

Juliano Spyer é mestre e doutor em antropologia


pela University College London. É autor, entre outros, de
Conectado; Social media in emergent Brazil; e Povo de Deus.
Atua como head of Human Insights na startup de
pesquisa Behup.
registro de pesquisa | juliano spyer

1069

referências bibliográficas
Haapio-Kirk, Laura. (2017). Why we post: digital methods
for public anthropology. Teaching Anthropology, 7/1.
Lave, Jean & Wenger, Etienne. (1991). Situated learning: le-
gitimate peripheral participation. Cambr idge: Cambr idge
University Press.
Miller, Daniel. (2017) Anthropolog y is the discipline but
the goal is ethnog raphy. HAU: Journal of Ethnographic
Theory, 7/1, p. 27-31.
Miller, Daniel. (2016). Why we post: the comparative an-
thropolog y of social media. In Proceedings of the 8th ACM
Conference on Web Science.
Miller, Daniel. (2015). “The Results of the Why We Post
Project.” Why We Post, Why We Post – UCL. Disponível em:
<www.youtube.com/watch?v= swj5KRf4Db0>. Acesso em
18 dez. 2020.
Miller, Daniel & Sinanan, Jolina. (2017). Visualising Face-
book: a comparative perspective. London: UCL Press.
Miller, Daniel et al. (2019a). Como o mundo mudou as mídias
sociais. London: UCL Press.
Miller, Daniel et al. (2019b). Contemporary comparative
anthropology – The Why We Post Project. Ethnos, 84/2, p.
283-300.
Miller, Daniel et al. (2016). Why we post. Anthropology
News, 57/9, e44-e47.
as escolhas metodológicas para produzir pesquisas colaborativas e comparativas

1070

As escolhas metodológicas para produzir


pesquisas colaborativas e comparativas: o
caso do “Por que postamos”
Resumo Palavras-chave
Antropólogos geralmente trabalham sozinhos durante a Metodologia,
maior parte de seus projetos de pesquisa, até a análise etnografia;
estar pronta para publicação ou para ser apresentada em pesquisa comparativa;
eventos acadêmicos. Os nove pesquisadores do projeto “Por colaboração;
que postamos”, coordenado pelo antropólogo inglês Daniel trabalho de campo.
Miller, colaboraram e cooperaram desde o momento em
que o tema do estudo foi definido, e seguiram interagindo
de maneira coordenada ao longo do processo. O objetivo
deste artigo é descrever como esse experimento metodo-
lógico aconteceu e examinar as vantagens e desvantagens
das escolhas que guiaram o trabalho conjunto dos nove
antropólogos que atuaram na equipe entre 2012 e 2017.

methodological choices to produce


collaborative and comparative research:
the case of “Why we post”
Abstract Keywords
Anthropologists generally work alone for most of their re- Methodology;
search projects, until the analysis is ready for publication ethnography;
or to be presented at academic events. The nine research- comparative research;
ers from the “Why we post” project, coordinated by the collaboration;
English anthropologist Daniel Miller, collaborated and co- fieldwork.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1057 – 1070 , set. – dez., 2020

operated from the moment the theme of the study was


defined, and continued to interact in a coordinated way
throughout the process. The purpose of this article is to
describe how this methodological experiment took place
and to examine the advantages and disadvantages of the
choices that guided the joint work of the nine anthropolo-
gists who worked on the team between 2012 and 2017.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v10314

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),


pesquisadora convidada
livia.barbosa3 @gmail.com
https://orcid 0000-0002-1739-040

Livia Barbosa I

Daniel Miller e os Estudos


de Consumo no Brasil

Em 2002 convidou-se a editora responsável pela publicação no Brasil do livro


Teoria das compras, de Daniel Miller, para escrever a apresentação da obra, que
eu mesma havia sugerido no contexto de uma coleção multidisciplinar sobre
consumo e sociedade de consumo. Como pesquisadora do tema, eu tinha apre-
sentado uma lista ambiciosa de títulos clássicos, entre os quais constava, tam-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1071 – 1085 , set. – dez., 2020

bém, Material culture and mass consumption, a partir de agora referido como MCMC,
objeto de nossas homenagens pelos 33 anos de publicação.
Teoria das compras foi publicado com o subtítulo O que orienta as escolhas
dos consumidores, talvez como expectativa dos editores de que com isso pudes-
sem atrair gama maior de interessados e atenuar o peso acadêmico da obra. A
apresentação do livro começava com a frase “Daniel Miller não é um autor
conhecido no meio acadêmico brasileiro” (Barbosa, 2002: 11), afirmação que se
viu desmentida ao longo destes últimos 18 anos no âmbito dos estudos de
consumo no Brasil, cuja própria constituição, embora ocorra de forma indepen-
dente, tem nos trabalhos de Daniel Miller uma de suas principais inspirações
teóricas.
MCMC, entretanto, não foi traduzido, como a maioria dos demais livros
recomendados, e a coleção, inicialmente programada para mais de dez títulos, se
encerrou. Refletir sobre a obra teórica inicial de Daniel Miller e sua importância
no âmbito dos novos estudos de consumo, a partir de agora referido como NEC,
se faz, portanto, fundamental pelas contribuições que ela aporta a esse campo.
daniel miller e os estudos de consumo no brasil

1072

Em primeiro lugar, MCMC propõe uma teoria geral do consumo, desta-


cando o papel-chave que este possui na modernidade. Em segundo, a partir do
esquema filosófico de Hegel, especificamente do processo de desenvolvimen-
to do sujeito, Miller sugere uma nova leitura do conceito de objetificação, no
contexto da qual o consumo surge como um mecanismo de transformação de
artefatos alienáveis em cultura inalienável. Em terceiro, o consumidor é rein-
vestido de um papel ativo na “ressocialização” de bens e mercadorias em cul-
tura inalienável. E, por fim, Miller sugere uma reflexão alternativa acerca da
natureza contraditória da sociedade contemporânea ao assumir que os bens
de massa são a nossa cultura. E o são, como muito bem destaca Duarte (2010:
377), porque não só “fazem parte do meio ambiente em que operamos, mas
também porque são uma parte integrante do processo de objetificação pelo
qual nos criamos a nós próprios como sociedade industrial”.

Material Culture e Mass Consumption


MCMC, de Daniel Miller, foi publicado em 1987 ao final de mais de duas décadas
de inúmeras e significativas publicações que inspiraram uma nova abordagem
ao estudo do consumo e das relações da sociedade contemporânea com a ma-
terialidade. Abordagem essa que veio se contrapor a várias décadas de interes-
se acadêmico e teorização social centrados na esfera da produção paralelamen-
te ao tratamento do consumo como mero reflexo da anterior.
Grant McCracken (1987) ao fazer uma revisão crítica daquelas duas dé-
cadas sugere, ironicamente, que se ela fosse uma economia em desenvolvimen-
to corresponderia à etapa do take off do economista W.W. Rostow (1953). Levan-
do essa analogia para os estudos do consumo equivaleria dizer que naquele
momento teria ocorrido o rompimento das resistências contra novos olhares
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1071 – 1085 , set. – dez., 2020

analíticos seguido do estabelecimento de uma nova “dinâmica produtiva” em


termos teóricos. Esse período de take off é considerado pelos pesquisadores um
divisor de águas, para o qual a maioria das disciplinas acadêmicas de ciências
sociais deu sua contribuição aos NEC (NCS, acrônimo em inglês). 1 Dentre as
teses mais expressivas desse momento de take off as desenvolvidas por Daniel
Miller em MCMC se destacam por configurar uma instigante reflexão sobre as
nossas relações com a cultura material e sobre nós mesmos enquanto antro-
pólogos, acadêmicos e membros de uma sociedade de consumo de massa.
Relegada ao sótão das reflexões das ciências sociais por mais de 40 anos
no século XX, a preocupação com a abundância material e seu consumo na
sociedade contemporânea constituíram um objetivo frívolo e alienado para
grande parte do mundo acadêmico e intelectual. Segundo Miller (1987), essa
percepção da cultura material contemporânea como uma forma inferior de
autenticidade primitiva, caso da antropologia clássica, ou como a expressão
alienada/alienante de um capitalismo opressivo que separa o criador da sua
obra, caso marxista, ou ainda como o resultado de uma era obcecada com a
registro de pesquisa | livia barbosa

1073

aparência em detrimento da essência, “consumida” por um tipo de doença


cultural marcada pela superficialidade e insatisfação permanentes, caso dos
frankfurtianos e afins, tem profundas raízes no pensamento filosófico ociden-
tal (Woodward, 2007). O contraponto a essa “ausência de tudo” nos termos
dessa crítica – autenticidade, profundidade existencial, criatividade, capacida-
de de distinguir entre qualidade e mediocridade – encontrar-se-ia em expressões
culturais autênticas e em seu consumo adequado, como ópera, literatura e
belas artes, em sociedades não mais governadas pelo materialismo capitalista.
Assim, quando Miller retoma a questão da cultura material na década
de 1980 e faz dela o objeto teórico central de seu livro, ele está recolocando um
conceito que fora deslocado para a periferia dos temas acadêmicos no centro
das considerações teóricas das ciências sociais como instrumento fundamental
para o entendimento da sociedade e da cultura de massa. Ele se propõe a in-
terrogar o que acontece quando nos defrontamos com a materialidade abun-
dante que nos circunda; como e de que maneira extraímos significados dos
objetos/mercadorias com os quais nos relacionamos; e se o consumo aguça ou
resolve as contradições da sociedade contemporânea.
De acordo com Miller, em vez de nos concentrar no que a cultura de
consumo e suas instituições (indústria cultural, marketing, propaganda etc.)
tentam nos impingir – superficialidade, homogeneidade, insaciabilidade – ou
no que ela é acusada de nos privar – autenticidade, realização pessoal, integri-
dade existencial etc. – deveríamos nos voltar para o que a sociedade de consu-
mo nos permite ser, fazer, sentir e pensar a partir de nossas relações com a
cultura material e o consumo de massa na contemporaneidade. Segundo o
autor, o consumo não é um refúgio para a “alienação contemporânea”, como
enfatizado negativamente por diferentes autores (Adorno & Hokheimer, 1985;
Bauman, 2001). Ao contrário, é o mecanismo pelo qual os atores sociais empre-
endem o esforço cotidiano de extrair sua própria humanidade. É um ato poten-
cialmente criativo, que consiste “na transformação de um objeto alienável pa-
ra a condição de objeto inalienável, investido de conotações específicas” (Miller,
1987: 190).
Essas conotações específicas começam a ser atribuídas à mercadoria no
momento de sua aquisição, seja por intermédio do mercado ou do Estado, quan-
do a natureza única de uma pessoa é expressa na escolha de um item em
particular e/ou na reconfiguração de algum outro. A esse momento inicial segue-
-se um processo ao longo do qual o agente social age/trabalha sobre o artefato
até o ponto de ele não ser mais reconhecível como tendo qualquer relação com
o mundo abstrato e impessoal de onde veio.
Em outros termos, quando as mercadorias emergem do universo produ-
tivo elas constituem conjuntos de potencialidades materiais e simbólicas ines-
pecíficas à espera de ser realizadas. Por outro lado, quando adquiridas/recebi-
das, essas mercadorias são apropriadas e “ressocializadas” no contexto de
daniel miller e os estudos de consumo no brasil

1074

universos particulares individuais e/ou coletivos. O objeto é transformado a


partir de sua associação íntima com um indivíduo e/ou grupo social particular
e das relações entre eles (Miller,1987: 191).
Essas transformações a que Miller se refere são diversas. Envolvem
tanto aquelas a que o artefato é submetido ao longo de sua existência física
quanto sua participação/construção em um ambiente cultural específico.
Valendo-se da quantidade de trabalho dos agentes sociais contida em um pint
of beer, Miller ilustra o que afirmou teoricamente. Em sua opinião, todas as
práticas culturais que constituem a cultura do pub (a compra de rounds, a
escolha da marca de cerveja, a rede de sociabilidade etc.) e que faz do pint o
que ele é no contexto inglês não podem ser reduzidas apenas a processos de
distinção social, como se poderia argumentar a partir de Bourdieu. Essas prá-
ticas configuram uma presença material importante, geradora de sociabilida-
de, de ideias de moralidade e de outros tipos de abstrações e princípios (Mil-
ler,1987: 191). Claro que essa não é uma descrição de todo consumo ou o
objetivo consciente de todos os participantes, como enfatiza Miller. O funda-
mental, contudo, é que é imanente ao consumo.
Se o consumo tem essa potencialidade, a sociedade de consumo e sua
abundante cultura material não representariam, necessariamente, nossa conde-
nação. Ao contrário, a cultura material seria a nossa possibilidade de redenção,
pois por seu intermédio resgataríamos nossa humanidade. Diagnóstico oposto
ao de grande parte dos teóricos que dela trataram, a começar pelo próprio Marx.
Qual é, porém, a estrutura teórica que sustenta essa interpretação do consumo
que Miller nos oferece em MCMC? É o conceito de objetificação de Hegel.
Segundo Hegel a objetificação se constitui em um processo dual, pelo
qual o sujeito em um primeiro momento se autoexternaliza a partir de um ato
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1071 – 1085 , set. – dez., 2020

criativo de diferenciação para em seguida dele se reapropriar. Embora ocorra a


separação entre o sujeito e sua criação, não existem nem a perda nem a elimina-
ção desta última, mas um novo movimento, igual ao anterior. Esse jogo dialético,
progressivo, encontra seu término não por uma externalização/reapropriação
última/definitiva, mas quando o sujeito se torna capaz de visualizar toda a traje-
tória percorrida nesse processo (Miller, 1987; Rosales, 2009; Duarte, 2010).
Em Marx, a noção de objetificação é formulada também através de um
processo dual entre o sujeito e sua externalização no mundo, mas o resultado
é negativo no que concerne à sociedade capitalista. Segundo Marx, a natureza
humana se realiza através do trabalho produtivo. É a posse do resultado mate-
rial desse processo criativo que garante ao sujeito a sua possibilidade de auto-
consciência e o estabelecimento de relações sociais autênticas. Contudo, na
sociedade capitalista de produção em massa o sujeito é expropriado do resul-
tado do seu trabalho, da sua criação. Os objetos ganham existência própria
integrando uma esfera exterior aos indivíduos para além do seu controle, que
perfazem o mundo das mercadorias. Assim, alienados do fruto do seu trabalho,
registro de pesquisa | livia barbosa

1075

os sujeitos se voltam para o consumo como fonte de gratificação “inautêntica”


ou o transformam em um “cenário” a partir do qual “estabelecem, reforçam e
recriam novas formas de relação e estratificação social” baseadas em uma ma-
terialidade fetichizada (Rosales, 2009).
Se a partir de Marx nos habituamos a pensar a mercadoria como o re-
sultado de estruturas opressivas e abstratas, com Miller começamos a vê-la
como a sua própria negação. Essa “luta permanente” para nos apropriarmos de
bens e serviços, não promove a ruptura entre o resultado da atividade criativa
e o seu criador, fonte de toda a alienação. Por conseguinte, não se torna um
entrave à realização humana. Focar nos aspectos materiais da existência, nas
relações que estabelecemos com as coisas que nos cercam, não significa tor-
narmo-nos superficiais, inautênticos e vazios, como alerta Miller (1987). As
coisas, os bens e serviços e a materialidade da qual são feitos não constituem
uma superestrutura distanciada em relação ao mundo social no qual vivemos.
Ao contrário, eles se constituem nas projeções externas da sociedade contem-
porânea industrial, que através do seu consumo reincorpora as suas próprias
externalizações, refundindo-as em cultura inalienável.
A teoria geral do consumo que Miller nos apresenta em MCMC (1987) é
retomada e exemplificada em diferentes publicações posteriores tendo como
base etnografias específicas. Por exemplo, em texto de 1988, o autor mapeia
todo o processo de “humanização” que os moradores de um conjunto habita-
cional de “moradias sociais”, fornecidas pelo Estado, no norte de Londres, rea-
lizam em suas casas como forma de as tornar “suas/deles”. Focalizando as
reformas que os diferentes inquilinos fizeram em suas cozinhas, Miller (1988)
sugere não existir nenhuma relação entre esses procedimentos e a renda dos
moradores. As reformas encontram-se antes relacionadas ao tipo de vida social
e sociabilidade dos inquilinos e com sua tentativa de neutralizar a dimensão
impessoal e institucional dessas “moradias sociais”, transformando-as em uni-
versos particulares que expressam a natureza singular de seus habitantes. Em
Teoria das compras, Miller (1998a) nos mostra como a atividade cotidiana de
aquisição de alimentos traz à tona significativos aspectos normativos e morais
da modernidade, como um éthos de comedimento e sacrifício, justamente o
contrário do discurso abstrato sobre compras em geral, que enfatiza autoindul-
gência, extravagância, excesso e impulsividade e seria característico da con-
temporaneidade (Bauman, /2001). No decorrer de uma aprofundada etnografia
Miller (1998a) constata que a maioria das compras não é realizada em função
das pessoas que as fazem, mas tem como referência pais, filhos e demais “ob-
jetos devocionais”, que necessariamente não se encontram presentes, mas que
são os “nortes” de quem as concretiza. Por isso o título do capítulo inicial é
Making love in supermarkets (Miller,1998a: 15). A dinâmica de proporcionar
prazer de forma escalonada a cada um dos “referentes ausentes” para manter
o orçamento sob controle – o steak para o marido, a sobremesa para filha, o
daniel miller e os estudos de consumo no brasil

1076

refrigerante para o filho, mas nunca todos os desejos de todos – encontra-se


sublinhada por um éthos de comedimento que ao gastar se economiza. Como
sugere Miller, a compra transforma despesas num ritual de devoção para com
aqueles que amamos, e envolve “trabalho” sob a forma de dedicação e esforço,
mas de forma alguma passividade por parte de quem a realiza. Daí Miller as-
sociá-la ao ritual do sacrifício e a suas diferentes etapas: excesso/despesas,
sacrifício/transformação de despesa em comedimento e transcendência/com-
pra como expressão geral de afeto e cuidado.
Várias outros livros como A theory of virtualism (Miller, 1998b), Material
cultures (Miller, 1998c), The comfort of things (Miller, 2008), Stuff (Miller, 2010),
tanto os de autoria individual como os produzidos com colaboradores, têm a
interligá-los justamente o movimento pendular entre abstração/reapropriação
realizado por sujeitos humanos específicos mergulhados em universos mate-
riais concretos. Conceitos que existem como potencialidades materiais ines-
pecíficas, tais como roupas, casa, plataformas digitais como Facebook, são
particularizados a partir de seus efeitos reais na maneira como uma mulher
indiana usa o sari, e uma inglesa o jeans, ou como os posts ingleses no Facebook
são distintos daqueles dos trinadianos. E ilustram com clareza as complexida-
des de nossas relações com os bens materiais e como nos construímos e somos
construídos pela materialidade.
Para Miller (1998a, 1998b, 1998c, 2010), contudo, a continuidade de seu
projeto teórico não se resume apenas a enfatizar a importância da materiali-
dade em nossas vidas, nem o consumo como lócus potencial de extração/pro-
dução de nossa humanidade e/ou, menos ainda, a tratar os objetos como uma
linguagem. Ele acredita que isso já foi demonstrado. A tarefa à frente é desven-
dar como e por que as coisas importam em contextos específicos. Daí o uso da
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1071 – 1085 , set. – dez., 2020

palavra matter, que, como o próprio autor salienta, tem uma conotação mais
emocional do que outros termos assemelhados e refletiria melhor as particu-
laridades daquele para quem ela importa (Miller, 1998). Tarefa essa que só po-
de ser realizada pelo exercício etnográfico aprofundado, a força fundamental
a guiar Miller ao longo de toda a sua trajetória.
A etnografia para Miller é o instrumento metodológico ímpar capaz de
desafiar formas tradicionais e cristalizadas de ver a realidade e, por conseguinte,
de produzir conhecimento relevante sobre o mundo a partir de novos olhares. Por
isso ele enfatiza a necessidade de a antropologia “não ser ideológica”, ou seja
tratar todas as sociedades como iguais, não romantizar o “primitivo” e/ou “fetichi-
zar” o contemporâneo. Ambos são merecedores de atitude respeitosa e empática.
No processo etnográfico, a observação dos sujeitos nas suas condições re-
ais de existência ocupa, segundo Miller, um lugar privilegiado. Ao observar o que
as pessoas fazem, podemos perceber que outras coisas são relevantes além daqui-
lo que elas afirmam que fazem e dizem considerar importante. Coisas que muitas
vezes os sujeitos não reconhecem ou não percebem, mas que podem ser captadas
registro de pesquisa | livia barbosa

1077

em suas ações e seus discursos pelas ambiguidades, justificativas e negações que


invocam. Essa ênfase na observação não significa ignorar as entrevistas ou o falar
com os informantes. Significa não transformar a etnografia em apenas entrevista
e questioná-la permanentemente a partir dos atos e contextos dos sujeitos que a
produzem.
Como Miller (1987: 8) já constatara em MCMC, as pessoas desenvolvem
inúmeras estratégias para transformar os recursos materiais que possuem, sejam
esses oriundos do mercado ou do Estado, em “ambientes expressivos, rotinas
diárias e frequentemente ideais cosmológicos”. De acordo com o autor, o compor-
tamento humano em relação às coisas materiais, quando inserido em contextos
socioculturais mais amplos, constitui-se, do ponto de vista etnográfico, na maior
evidência a ser registrada e interpretada.

Daniel Miller e os Estudos do Consumo no Brasil


No Brasil, os NEC começaram a surgir no final dos anos 1990 e início do século XXI,
com quase 20 anos de defasagem com relação à Europa e aos Estados Unidos.2
Esse período é marcado pela tradução de alguns trabalhos importantes, tais como
os de Colin Campbell (1987), Daniel Miller (1998) e Don Slater (1997) em 2002, Grant
MacCracken (1988) em 2003, seguidos um pouco mais tarde pelos de Mary Douglas
e Baron Isherwood (1979) em 2004, de Pierre Bourdieu (1979) em 2007 e de Arjun
Appadurai, (1986) em 2008, embora a maior parte das publicações clássicas daque-
le período jamais tenha sido traduzida para o português.
Um dos elementos-chave para essas traduções foi a participação de alguns
desses autores em eventos acadêmicos organizados no Brasil por pesquisadores
interessados nos NEC, no início do século XXI;3 outro, a simultânea presença de
estudantes brasileiros em centros europeus, trabalhando em programas de quali-
ficação acadêmica com alguns desses pesquisadores, dentre os quais Miller se
destaca (Barbosa & Wilkinson, 2017).
Essa constatação levanta questões sociologicamente interessantes acerca
da genealogia das traduções de determinados livros e autores para outros univer-
sos acadêmicos e culturais. Como é possível observar, a sequência das traduções
brasileiras citadas não obedece ao aparecimento desses trabalhos tanto na Euro-
pa como nos Estados Unidos. Algumas apresentam atraso de mais de 20 anos em
relação à data da publicação original. Mais interessante ainda é o fato de que sua
ausência não significa que os autores não fossem conhecidos e lidos no Brasil,
como nos casos de Mary Douglas, Pierre Bourdieu e Arjun Appadurai − embora
citados pelos cientistas sociais brasileiros anteriormente a esse período, os três
eram lidos e integrados em contextos não diretamente relacionados aos NEC, co-
mo vieram a ser posteriormente (Barbosa & Wilkinson, 2017). 4
Do ponto de vista institucional, foi também depois de 2000 que cientis-
tas sociais brasileiros começaram a organizar cursos e seminários sobre esse
tema. Em levantamento realizado por Portilho e Galindo (2012) em 250 trabalhos
daniel miller e os estudos de consumo no brasil

1078

apresentados, entre 1980 e 2009, à SBS e à ANPOCS, selecionados a partir da


palavra “consumo” no título ou nas palavras-chave, 236 o foram depois de 2004.
A partir de 2002, livros, dissertações e teses da área de ciências sociais, princi-
palmente de antropologia e comunicação, começam a ser publicados e escritos
tendo o consumo como tema ou palavra-chave. Embora essas publicações e
pesquisas cubram áreas variadas de interesses, como alimentação, vestuário,
moradia, consumo cultural, entre outras (Alcoforado, 2007; Barros, 2007; Goi-
danich, 2012; Gonçalves, 2014; Bueno & Camargo, 2008; Barbosa & Campbell,
2006; Rial et al., 2012; Silva,2010), e disciplinas como antropologia, comunicação
e marketing (Leitão et al., 2006; Migueles, 2007; Bueno & Camargo; 2008, Baccega,
2008; Oliven & Pinheiro-Machado, 2007), duas áreas merecem menção especial:
os estudos das chamadas novas classes médias e o das novas mídias sociais.
Ambas vão ter nos trabalhos de Daniel Miller sobre a cultura material e a an-
tropologia digital importante interlocução.
Independentemente das inúmeras críticas acerca da expressão “novas
classes médias”, do uso político/ideológico das políticas de transferência de
renda e das limitações contidas no entendimento do consumo como cidadania
(Souza, 2010), esse período de efervescência econômica e “consumismo” teve
duas implicações importantes para os estudos de consumo. Por um lado chamou
a atenção do Brasil para os brasileiros como uma sociedade de consumo, rom-
pendo as tradições de análise acadêmica vigentes, nas quais a sociedade bra-
sileira e particularmente os segmentos na base da pirâmide eram definidos por
suas faltas, carências ou presenças “negativas” (Barbosa & Campbell, 2006; Bar-
bosa & Wilkinson, 2017). Por outro, despertou o interesse dos pesquisadores
acerca dos padrões, das práticas e das experiências de consumo associadas a
esses segmentos, (Barros, 2007; Mattoso,2005; Rocha & Silva, 2009; Yaccoub, 2015;
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1071 – 1085 , set. – dez., 2020

Barros, 2015;Torquato, 2013).


A nova cultura material a que eles passaram a ter acesso – produtos
alimentares diferenciados, linha branca nova, eletroeletrônicos de última ge-
ração, carros populares e viagens de avião – oportunizou, do ponto de vista
etnográfico, contextos e situações para expressões de ideais, moralidades, gos-
tos, estilos e anseios testemunhas de suas existências para além da carência
material de suas vidas, que até então os mantinham invisíveis para o resto da
sociedade. Nesse contexto, o consumo como a reapropriação de bens alienáveis
em cultura inalienável e resgate da humanidade de cada um de nós, como
proposto por Miller, encontrou terreno fértil .
As mídias sociais digitais compõem outro tema de investigação em que
os estudos de consumo no Brasil vêm marcando presença desde o final da
década passada, e a influência das pesquisas de Miller nessa área se faz clara-
mente presente (Miller & Slater, 2000; Miller, 2011; 2016). A proposta de uma
antropologia digital visa explorar o vínculo entre as relações socioculturais e
os usos e práticas a que os usuários de diferentes plataformas, dispositivos e
registro de pesquisa | livia barbosa

1079

aplicativos digitais as submetem inter e intrassociedades. Nesse contexto – em


cujo interior novos conceitos estão sendo articulados, como o de polymedia,
humanidades digitais, sociabilidades mensuráveis etc. –, o jogo entre objetifi-
cação/reapropriação central em MCMC pode ser relido nas oposições universa-
lismo/particularismo e/ou global/local, que nos permitem acompanhar o modo
como as diferentes sociedades metabolizam os dispositivos tecnológicos atuais,
reproduzindo lógicas e significados já existentes ao mesmo tempo em que
outros são criados (Rial, 2012; Silva, 2010; Machado, 2015, 2018).
Ao final desta segunda década os estudos de consumo no Brasil apre-
sentam-se diversificados tanto em temas como em orientação teórica, com a
inclusão de autores e teorias relacionados aos NEC. Em levantamentos preli-
minares feitos por Barbosa e Soares (2015) no banco de teses da Capes e nas
bibliografias utilizadas em 13 livros sobre consumo, editados por pesquisadores
de vários cursos de graduação, localizados em diferentes áreas geográficas do
Brasil, publicados entre 2006 e 2015, envolvendo 183 autores, quando se com-
putou a frequência de citação dos diferentes autores, constataram-se três as-
pectos principais. Primeiro, linhas de pesquisa inspiradas pelos NEC, principal-
mente as que focalizam nossas relações com a materialidade como aspecto
constitutivo da vida social, podem ser identificadas e trazem um frescor inter-
pretativo. Nessas, Daniel Miller é um dos autores mais citados. Segundo, temas
que agora aparecem sob o rótulo de consumo, cultura material ou ambos, entre
outros, não teriam sido assim classificados há cerca de 15 ou 20 anos. Terceiro,
estudos relacionados a produtos culturais, comunicação, mídia (com exceção
das mídias digitais), cultura e sociedade de consumo são predominantemente
abordados a partir de uma orientação marxista, frankfurtiana e/ou pós-moder-
na, utilizando-se material empírico como textos ou discursos por uma aborda-
gem predominantemente semiológica.
A partir de 2010, um novo conjunto de temas se faz presente, trazido
pelo crescimento dos novos movimentos sociais, particularmente os associados
a identidades coletivas, que transformaram o consumo em um espaço no qual
direitos podem ser reivindicados, legitimados e/ou contestados, e formas al-
ternativas de consumo como instrumentos de transformação política e expres-
são de comportamento ético começam a ser articuladas. Esse é o caso do meio
ambiente, dos direitos dos animais, da vinculação entre feminismo e vegeta-
rianismo/veganismo entre outros. Muitas das críticas elaboradas em MCMC e
nos trabalhos posteriores de Daniel Miller poderão ganhar novas dimensões e
pertinência analítica. Mas, certamente esses novos temas e significados forne-
cem oportunidade ímpar para mapear as reapropriações específicas que sub-
jazem a essas abstrações globais, de forma a resgatar as múltiplas formas pelas
quais construímos nossas respectivas “humanidades”.

Recebido em 18/5/2020 | Revisto em 11/8/2020 | Aprovado em 07/9/2020


daniel miller e os estudos de consumo no brasil

1080

NOTAS
1 Acknowledging consumption: a review of new studies (Miller,
1995) reúne um conjunto das mais significativas contri-
buições daquele momento.
2 Isso não significa que antes desse período o consumo não
tivesse sido objeto de atenção acadêmica no Brasil. Ao
contrário, uma revisão histórica do tema pode ser encon-
trada em Barbosa e Wilkinson (2017)
3 Dentre esses eventos destaca-se o Enec que em suas nove
edições até o momento e 18 anos de existência trouxe ao
Brasil os seg uintes pesquisadores da área de consumo,
alg uns, aliás, mais de uma vez: Colin Campbell, Frank
Cochoy, Daniel Miller, Alan Warde, Gary Cross, Geert Spa-
argaren, Michele Micheletti, Frank Trentman, Philippe
Steiner e Ken Albala. Richard Wilks participou como pa-
lestrante em uma das edições por videoconferência.
4 Para questão semelhante ver Incômodos best sellers, de José
Carlos Durand (2015), que analisa a maneira como alguns
clássicos da publicidade nos Estados Unidos foram tradu-
zidos, lidos e interpretados no Brasil.
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1071 – 1085 , set. – dez., 2020

Livia Barbosa é doutora em antropologia social pelo PPGAS/UFRJ,


mestre em ciências sociais pela Universidade de Chicago e tem
estudos de pós-doutorado na Universidade de Tokyo e no PPGAS/
UFRJ. É professora da Universidade Federal Fluminense e
pesquisadora convidada da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. É autora de vários livros e artigos, dentre os quais se
destacam O jeitinho brasileiro ou a arte de ser mais igual que os outros;
Igualdade e meritocracia; Sociedade de consumo.
registro de pesquisa | livia barbosa

1081

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registro de pesquisa | livia barbosa

1085

Daniel Miller e os Estudos de Consumo


no Brasil
Palavras-chave Resumo
Cultura material; O texto tem como primeiro objetivo rever as propostas teó-
novos estudos de ricas desenvolvidas por Daniel Miller acerca do significado
consumo; da cultura material no contexto das produções acadêmicas
sociedade de consumo; das ciências sociais em seu hoje clássico Material culture
antropologia do and mass consumption. Nesse livro Miller não só propõe uma
consumo; teoria geral do consumo como apresenta uma releitura do
antropologia digital. processo de objetificação, como desenvolvido por Hegel, e a
partir desse oferece nova leitura para as contradições da
sociedade contemporânea. Em um segundo momento, as
ideias desenvolvidas pelo autor naquela oportunidade são
examinadas em seu entrelaçamento com suas produções e
pesquisas posteriores simultaneamente a sua influência
teórica em alguns dos temas dos estudos de antropologia e
consumo no Brasil, sobressaindo-se os realizados sobre
consumo entre os segmentos na base da pirâmide social e
os de antropologia digital.

DANIEL MILLER AND STUDIES OF CONSUMPTION


IN BRAZIL
Keywords Abstract
Material culture; This article examines the significance of the theoretical
new consumer studies; ideas developed by Daniel Miller on material culture in
consumer society; the broader context of the social sciences in his classic
anthropology of consumption; book Material Culture and Mass Consumption. In this book,
digital anthropology. Miller not only proposes a general theory of consumption
but also presents a new reading of the process of objec-
tification as developed by Hegel and on this basis offers
a new interpretation of the contradictions of contempo-
rary society. The ideas developed in this book are then
analyzed in the light of his later publications, and finally
we discuss the influence Miller’s ideas on anthropology
and consumption studies in Brazil, particularly those
dealing with social groups at the base of the pyramid and
digital anthropology.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v10315

1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro,


Departamento de Antropologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
mccoelho @ bighost.com.br
https://orcid.org /0000-0003-3885-5429
11 Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Departamento de Sociologia, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Maria Claudia Pereira Coelho I
eduardomoura@gmail.com
https://orcid.org /0000-0002-3778-7199
Eduardo Moura Pereira Oliveira II
I

Reflexões sobre o Tempo e as


Emoções na Antropologia:
definições, práticas e políticas 1

Hope is never far away from nostalgia.


David Berliner (2015)

Este texto examina formas de compreender a relação entre emoções, tempo-


ralidade e política. Trabalho de natureza exploratória, seu propósito principal
é articular a análise antropológica de dois sentimentos – a nostalgia e a espe-
rança – com o objetivo de construir um arcabouço conceitual para examinar,
sob o prisma da antropologia das emoções, fenômenos políticos tais como as
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1087 – 1100 , set. – dez., 2020

formas de atuação em movimentos sociais e em disputas eleitorais, tomadas


como um momento em que as vivências subjetivas do passado e do futuro são
ressignificadas no tempo presente.
A articulação aqui proposta nos permite realizar um duplo movimento, no
sentido de compreender as dinâmicas emocionais relacionadas às formas de
sentir o passado, o presente e o futuro como construções culturais não universa-
lizáveis, mas tributárias de configurações sociais e políticas; e os sentimentos não
confinados ao íntimo do sujeito, mas antes capazes de orientar a vida dos indiví-
duos, mobilizando práticas e alimentando expectativas.
O artigo se insere, assim, na área da antropologia das emoções, avançando
no exame do trabalho realizado pelas emoções em fenômenos da vida pública. A
fecundidade teórica dessa orientação analítica para o estudo de fenômenos como
o policiamento, os movimentos sociais e os universos profissionais já foi discutida
por nós em outros trabalhos (Coelho & Durão, 2017) e explorada em campos espe-
cíficos, como a vitimização em situações de violência (Coelho, 2010), o exercício
da autoridade policial (Coelho et al., 2013) e a experiência do exílio (Oliveira, 2018).
reflexões sobre o tempo e as emoções na antropologia: definições, práticas e políticas 

1088

É incontestável que toda experiência emocional apresenta uma dimen-


são temporal, no sentido de sua duração − como, por exemplo, na percepção
de um amor como “eterno” ou na descrição de uma amizade como “de infância”
− ou de sua relação com momentos específicos − a tristeza desencadeada por
ritos funerários, para voltar ao exemplo canônico de Mauss (1980). Há, contudo,
algumas emoções cuja essência reside na forma específica de relação com o
tempo que entretêm, seja pela percepção de sua “passagem”, seja pelo vínculo
que estabelecem entre a subjetividade e o passado, o presente e o futuro.
Assim, por exemplo, o tédio e a ansiedade se definem como uma forma
de relação com o presente, em que o sujeito se vê diante de um tempo “que
não passa”, uma espécie de presente eterno, com a diferença se dando pelo
efeito subjetivo desse “excesso de presente”, apático e resignado no primeiro
caso, aflito e desejoso de libertação no segundo. Esperança e medo, por sua vez,
entabulam uma relação com o futuro marcada ora pelo otimismo, ora pelo
pessimismo; ora pelo engajamento, ora pela paralisia. E ressentimento, sauda-
de, remorso e nostalgia jogam com o passado, expondo modos subjetivos de
lidar com aquilo que é percebido como não existindo mais, sejam perdas, der-
rotas, fracassos ou conquistas, vitórias, sucessos.
Como as lembranças de um passado revivido orientam práticas e dis-
cursos? Como as esperanças e projeções no futuro convocam ações no presen-
te? Tais perguntas permitem ligar o estudo do tempo e das emoções a uma
dimensão política, uma vez associado a expectativas de transformação social,
tal como é possível observar nos discursos políticos de candidatos e mesmo
nos acontecimentos de 2013 que ficaram conhecidos no Brasil como Jornadas
de junho, quando uma série de manifestações ganhou corpo e se alastrou por
diversas cidades do país. Nessas falas, o acionamento e a evocação da esperan-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1087 – 1100 , set. – dez., 2020

ça como nutriente da ação, sejam motivados por fins eleitorais ou inspirados


por princípios de justiça e equidade, ocupam lugar central no direcionamento
discursivo de atores, ainda que no tabuleiro da política suas posições sejam
distintas.
O artigo discute o deslocamento das subjetividades das realidades mais
imediatas, abordando modalidades de se viver, reviver e antecipar o tempo. Sua
natureza é de uma pesquisa bibliográfica que toma por objeto dois textos de
antropólogos articulados de acordo com um ângulo específico: a abordagem
das relações entre a passagem do tempo e uma gramática dos sentimentos, de
modo a ressignificar experiências do passado e expectativas do futuro. A ex-
ploração da relação entre emoções e temporalidade tomará aqui como foco
dois sentimentos descritos na literatura como entretendo relações com o tem-
po capazes de engendrar formas de atuação política: a nostalgia e a esperança.
A exposição está estruturada em duas seções: nostalgia, percepção do
passado e projetos políticos, com base em texto de David Berliner (2015); e es-
perança, percepção do futuro e engajamento político, com base em texto de
registro de pesquisa | maria claudia pereira coelho e eduardo moura pereira oliveira

1089

Vincent Crapanzano (2004). Nas considerações finais, esboçamos algumas su-


gestões relativas à fecundidade analítica do instrumental conceitual aqui deli-
neado, procurando elaborar dois pontos: de que maneira as fronteiras entre
passado e futuro podem ser esmaecidas pela vivência subjetiva desses momen-
tos; e de que modo a relação entre emoções e tempo pode orientar a construção
de arcabouços conceituais para a análise de fenômenos políticos contemporâ-
neos, tais como os movimentos sociais, a propaganda política eleitoral e o exílio.

Nostalgia e esperança
Entre as características da vida moderna, a noção da passagem do tempo se
estabelece na consciência como uma sequência de acontecimentos ordenados
a partir de uma realidade presente e dividida entre as experiências do passado
e as expectativas do futuro. Implica processos subjetivos de revitalização do
que foi e de projeção do que virá, num deslocamento afetivo descompassado
com a ideia de tempo enquanto fluxo contínuo e regular da vida.
Imagens desse descompasso figuram mediante dois sentimentos inscri-
tos no tempo: a nostalgia, revivescência do passado, e a esperança, desabrocho
ao futuro. Com base no pressuposto das discrepâncias entre o tempo objetivo
e a experiência subjetiva, discutimos a seguir essas dimensões, tomando como
referência as teses de David Berliner e Vincent Crapanzano.

O Tempo do “Tarde Demais”: a nostalgia e os confins da perda


Nostalgia é o sentimento de perda inscrito no fluxo do tempo. A origem do termo
se desmembra no grego nostos, no sentido de “retorno ao lugar de origem, ao
ponto inicial” e algos, que significa “dor, tristeza” em relação ao ausente. Entre
os gregos, nostalgia refere-se a um estado de perturbação ou inquietação carac-
terístico daqueles que realizavam longas viagens e se viam tomados pela lem-
brança do que estava distante. Assim, nostalgia aparece como um sentimento
voltado para o ponto inicial, baseado na vivência subjetiva da continuidade de
um passado reativado pela memória e que persiste em vigor no presente.
Segundo Olivia Angé e David Berliner (2015), no livro Anthropology and
nostalgia, o pressuposto a partir do qual a nostalgia pode ser pensada como
categoria das ciências sociais é o da irreversibilidade do tempo. Os autores
consideram a irregularidade rítmica entre as transformações sociais e as vi-
vências subjetivas para expor o contraste entre um tempo que se projeta ao
futuro e um sentido de preservação das bases que serve de referência aos rumos
da cultura e da política. Enquanto o espírito moderno finca raízes em uma
razão voltada para o progresso, a reação nostálgica é a percepção da perma-
nência da própria identidade e a sensação de morte de um passado que não
pode ser revivido.
Cabe às ciências sociais compreender como os indivíduos lembram, co-
memoram e revitalizam seu passado à luz de regras sociais que operam sobre
reflexões sobre o tempo e as emoções na antropologia: definições, práticas e políticas 

1090

a nostalgia. Angé e Berliner (2015) exploram a relação entre as ciências sociais


e a produção de diagnósticos da perda. Posto que as análises do presente tomam
como referência uma época anterior, tendem a se tornar sensíveis ao que se
perdeu no passado ou que está em vias de se perder no presente, seja pelas
constantes transformações provocadas no contexto da formação das metrópo-
les, seja pelo risco do contato entre diferentes culturas de modo a favorecer a
permanência de uma em detrimento das outras.
Na sociologia, os diagnósticos sobre a perda tomam como referência os
processos de urbanização e industrialização para opor tradição e modernidade,
operando a partir da comparação entre épocas. De acordo com Angé e Berliner
(2015: 3), teorias como as de Émile Durkheim, Max Weber, Ferdinand Tönnies e
Georg Simmel guardam em si posturas críticas em relação à emergência de uma
sociedade industrial capaz de estabelecer uma oposição entre o tradicional e o
moderno em termos de degradação social. Na antropologia, a preocupação com
o risco de desaparecimento e o desejo de transmissão cultural do “outro distante”
característico das culturas “tradicionais” assumiu a forma de retóricas permea-
das por um senso de devastação em relação à vida daquela cultura no passado.
Ao entrar em contato com as culturas locais, a postura colonizadora das socieda-
des europeias representava uma ameaça ao sentido de preservação, preocupação
que inspirou, entre os antropólogos, sentimentos e discursos sobre a perda do
outro, o que marcaria certa postura nostálgica nos primeiros trabalhos. As etno-
grafias de Bronislaw Malinowski, Edward Evans-Pritchard, Franz Boas e Marcel
Griaule expressam essa posição, entre muitas outras. É o que David Berliner cha-
mou de exo-nostalgia (2015: 4), um passado vivido pelo outro, ao contrário da
endo-nostalgia, que trata de um passado vivido pessoalmente (2015: 21).
Angé e Berliner identificam a partir dos anos 1960 a emergência de uma
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cultura da nostalgia, com o crescimento das mídias e das técnicas de comer-


cialização. O surgimento de temas cuja orientação estava voltada para o pas-
sado, tais como as técnicas de parto natural, o consumo de comidas orgânicas
e a apreciação de uma estética retrô no design e na cultura, aparecia como
formas contemporâneas de nostalgia. Por sua vez, na política, assim como o
Holocausto e as ditaduras latino-americanas representam um marco para os
estudos da memória, o fim do socialismo e o mundo pós-1989 se tornaram um
paradigma para os estudos da nostalgia (Angé e Berliner, 2015: 1).
A questão lançada por Berliner no texto que abre o livro – Os antropólo-
gos são nostálgicos? – permite identificar duas dimensões do estudo da nos-
talgia do ponto de vista das ciências sociais. O primeiro corresponde a um
esforço de transmissão e preservação das identidades e das tradições, uma
atitude intelectual subjacente ao trabalho de pesquisadores, a antropologia como
nostalgia. Paralelamente, a nostalgia se abre como campo de investigação, sen-
do unidade analítica a partir da qual é realizado o estudo de determinada cul-
tura, nesse caso, a antropologia da nostalgia.
registro de pesquisa | maria claudia pereira coelho e eduardo moura pereira oliveira

1091

Em relação à composição da obra, Angé e Berliner (2015: 11) organizam


os nove artigos a partir de quatro pontos capazes de ordenar os estudos da
nostalgia: o caráter polissêmico da nostalgia e a sua capacidade de gerar va-
riados investimentos cognitivos e emocionais a partir de seu significado; a
compreensão de como as nostalgias são construídas dentro de contextos polí-
ticos e culturais; o nexo entre o sentimento e a ação, aspecto que considera a
capacidade transformadora de práticas nostálgicas associadas a posturas e
discursos políticos; e a forma como a nostalgia não se restringe a uma tempo-
ralidade inscrita no passado, mas, ao contrário, constitui-se em um sentimen-
to capaz de se lançar a esperanças no futuro e dar sentido à vida no presente.
Expostas as dimensões de um estudo das vivências subjetivas voltadas
para o tempo do “tarde demais”, 2 podemos situar a nostalgia à luz de tempos
múltiplos. Sendo a nostalgia o tempo da vivência perdida e irreversível, o que
revela um traço de universalidade marcada pelo crivo do tempo, podemos nos
perguntar sobre os modos particulares de construção do tempo, desse modo
de sentir o passado como algo que escoa irresistível ao longo da vida.

O Tempo do “Ainda Não”: a esperança e os horizontes do possível


Em texto no qual discute diversas teses sobre a esperança, provenientes de
áreas de conhecimento variadas (teologia, sociologia, psiquiatria, filosofia),
Vincent Crapanzano (2004: 98) se propõe a abordar a esperança simultanea-
mente como categoria de análise e de experiência. Seu ponto de partida é o
desequilíbrio entre a enorme atenção dada à esperança na teologia e o lugar
desse sentimento nas ciências sociais. Uma pista inicial seria o lugar da espe-
rança e do medo como bases sobre as quais se assentaria a vida religiosa, em
oposição ao consumismo da vida moderna (berço da sociologia), com sua ên-
fase no imediatismo da gratificação e consequente dificuldade com o “tempo
de espera” que caracterizaria a esperança.
O texto é estruturado em diversas seções que trazem, cada qual, as re-
flexões sobre a esperança provenientes de autores representativos de suas
áreas disciplinares. Do conjunto, é possível abstrair um leque de questões que
compõem uma verdadeira “agenda de pesquisa” sobre a esperança, tais como
a relação entre esperança e desejo; a dimensão de certeza/dúvida quanto à
viabilidade do almejado; a estrutura temporal na qual a esperança se insere; e
a capacidade da esperança de impelir à ação ou, ao contrário, substituí-la, ge-
rando paralisia.
No diálogo com a teologia, Crapanzano (2004: 103) focaliza a diferença
entre esperança e expectativa expondo o conceito de “esperança verdadeira”,
definida como aquela que comporta a crença na certeza do que virá: “a ‘espe-
rança verdadeira’, não importa o quão urgente, ou a crença nela depositada, ou
o conforto que oferece pode fomentar uma retórica de desvio com enorme
potencial econômico e político”. 3
reflexões sobre o tempo e as emoções na antropologia: definições, práticas e políticas 

1092

Na psiquiatria, Crapanzano vai buscar na obra de Eugène Minkowski


uma reflexão sobre a estrutura da experiência temporal na qual a esperança
se baseia. Ela se situaria no tempo do “futuro mediado”, aquele que se insere
entre o “futuro imediato” – tempo da expectativa e da atividade – e o futuro
remoto – tempo das orações.
O problema da relação entre sentimento e tempo é também o que Cra-
panzano (2004: 111) explora na sociologia de Ernst Bloch − aqui, a esperança
seria o tempo do “ainda não”, de uma temporalidade que olha para a frente:
“Ele [Ernst Bloch] argumenta que todos vivemos no futuro porque nos esforçamos.
As coisas do passado só vêm mais tarde. Um ‘presente genuíno’ quase nunca
está lá”. O futuro, contudo, não é um tempo exclusivo da esperança: o medo
encontraria nele também sua temporalidade.
Com base em sua etnografia junto aos brancos sul-africanos nos últimos
anos do apartheid, Crapanzano aborda o tema da relação entre esperança e ação,
afirmando ter encontrado ali, na vivência daqueles que aguardavam o fim do
apartheid apavorados com o que os aguardava, uma “paralisia induzida pela
espera”. Em suas palavras:

Eles não podiam se imaginar fora da situação em que se encontravam. Mesmo que
tivessem uma solução, o que não tinham (ao menos não que pudessem levar a sé-
r io), não podiam ag ir com base nela. Eles simplesmente esperavam. Estavam
aprisionados na estrutura da espera. Aquilo em que tinham esperança era em uma
solução – algo que não conseguiam vislumbrar. Sua esperança era tão indefinida,
que não conseguiam transformá-la em um desejo efetivo” (Crapanzano, 2004: 115).

Os entrevistados de Crapanzano sabiam o que queriam – preservar sua


riqueza e seu status quo –, mas sabiam também que isso não era possível. Seu
antigo status quo estava, por certo, idealizado: segundo Crapanzano (2004: 115),
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estava “repleto de nostalgia”.


Essa esperança estava também atrelada ao medo, que, por sua vez, inten-
sificava a paralisia, o estado de espera, ao qual Crapanzano (2004: 116) se refere
como uma “esperança adoecida”: trata-se de um “campo do desejo em espera”.
Nesse contexto, a esperança aparece atrelada a dois outros sentimentos:
medo e nostalgia. Com o medo, esboça futuros possíveis. Com a nostalgia, imagi-
na uma ponte entre o passado e o futuro que tinge a subjetividade do presente.
Orienta, assim, a inação, a paralisia, nessa combinação entre um passado ideali-
zado a cuja perda se está resignado e um futuro entrevisto como ameaçador.
O trabalho de Crapanzano inscreve a faculdade imaginativa no debate
a respeito do estatuto do real presente nos trabalhos etnográficos. Diante de
uma antropologia voltada para o literalismo, inscrita no paradigma semiótico
fincado nas práticas interpretativas, edificado por Clifford Geertz, introduz o
debate corrente acerca dos limites, das travessias e dos diálogos entre realida-
des distintas. Inspirado pela imagem do poeta francês Yves Bonnefoy a respei-
registro de pesquisa | maria claudia pereira coelho e eduardo moura pereira oliveira

1093

to de uma zona continente posicionada geograficamente atrás dos litorais e


das zonas de fronteira, Crapanzano (2004: 2) considera a hinterland (interior,
em tradução livre) como a área de influência, a zona econômica que fornece
mercadorias aos portos e fomenta o transporte marítimo. Hinterland, palavra
que denota provincianismo, isolamento e atraso, é tomada pelo autor pelo
sentido do que “está atrás”, “a paisagem de fundo”. O ponto reside na relação
entre o íntimo e o horizonte, entre o plano de fundo e a figura, entre o interior
e a borda. As fronteiras são horizontes que se estendem a partir de um aqui-
-agora, uma experiência ora dolorosa, ora prazerosa, realidade insistente per-
turbada pela possibilidade. Trata-se de um terreno imaginativo e fantasioso
sobre o qual repousam as expectativas e as projeções de mundo.
No centro do debate entre tempo e sentimentos, importa a consideração
do modo de vida pelo qual as pessoas compreendem suas experiências à luz de
suas possibilidades. Trata-se de tomar como objeto de investigação a experiên-
cia subjetiva do presente que repousa sobre as chances de realização daquilo
que se deseja ou daquilo que pode acontecer, uma vez diante de um horizonte
temporal, factível ou não. Por esse prisma, as emoções no tempo poderiam ser
pensadas pelos limites entre o aqui-agora e o que está além, um horizonte que
influencia profundamente o modo como experimentamos o mundo.
Crapanzano aponta para os papéis desempenhados pela imaginação e
pela criatividade enquanto fronteira entre realidade e possibilidade. O autor se
dedica ao estudo das disjunções e seus paradoxos, buscando pensar em como
inauguramos e damos por encerradas determinadas etapas da vida, de modo a
organizar diferentes momentos e fases. A partir das considerações sobre o tem-
po aqui apresentadas, é possível pensar em momentos que se reduzem, mas
nunca desaparecem por completo: “Em cada cruzamento há sempre um mo-
mento em que não se está nem em um lado nem no outro, em que não se é nem
o que se era nem o que se será; pois, uma vez que duas coisas são discriminadas,
o que é contíguo nunca chega a se tocar realmente” (Crapanzano, 2005: 61).
Crapanzano reflete sobre o que está entre o real e o possível, momen-
to da passagem que não pode ser enunciado; a travessia e os desafios impos-
tos pelas separações, pelo movimento disjuntivo que vai de um estado a ou-
tro. O percurso teórico no qual Crapanzano se inscreve considera os momen-
tos subjetivos inclassificáveis, limites entre estados íntimos que se constituem
como fronteiras de passagens a novos estados.

Considerações Finais
Em outro lugar (Coelho, 2010), discutimos a importância de estudar as formas
como as emoções se articulam entre si, formando complexos emocionais,
como no caso do amor e do ciúme. É essa a perspectiva adotada por Katz
(2013) para examinar a dinâmica entre humilhação e raiva presente em cenas
de homicídios, em que a agressão física aparece, aos olhos do agressor, como
reflexões sobre o tempo e as emoções na antropologia: definições, práticas e políticas 

1094

a única alternativa para se livrar do sentimento de humilhação provocado por


sua leitura dos atos e palavras da futura vítima como colocando em xeque
valores essenciais para sua autoimagem (alcunhados por Katz de “bem supre-
mo”). A mesma perspectiva orienta a discussão de Coelho (2010) sobre as in-
terseções entre raiva, desprezo e compaixão na experiências de vítimas de
assaltos a residências, em que o sentimento de impotência se transmuta em
uma raiva que (ao contrário dos sujeitos cujos depoimentos são analisados por
Katz) não consegue encontrar vazão em uma agressão física, dando assim lugar
a dois sentimentos descritos na literatura especializada como “emoções de
demarcação de status”: o desprezo (Miller, 1997) e a compaixão (Clark, 1997).
Ainda no registro dos complexos emocionais, Miller (2000) analisa as rela-
ções entre medo, coragem e covardia. Tomando a imagem da guerra como expres-
são máxima da coragem, Miller examina uma série de fontes, na filosofia, na lite-
ratura e particularmente nas memórias dos combatentes, de modo a pontuar a
conexão entre o medo e a coragem. Observa que a coragem nem sempre opera
como um sentimento inversamente proporcional aos temores. O sentido da cora-
gem está além da superação do medo, uma vez que ela é impulsionada por este
sentimento, o que marca um ponto de congruência entre os corajosos e os covar-
des. Significa dizer que, assim como a covardia, a coragem atua com o medo e não
após sua superação, o que desfaz a relação de oposição entre medo e coragem, à
medida que se aproxima da noção de covardia. “O mesmo medo move cada um;
apenas a tendência de ação é diferente” (Miller, 2000: 87).
Nostalgia e esperança parecem formar outro complexo emocional, cuja
articulação tem em seu cerne a relação entretida com o tempo. É assim que a es-
perança surge em texto dedicado à nostalgia, como na passagem que escolhemos
como epígrafe, e a nostalgia surge na análise da esperança “estagnada” que Cra-
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panzano encontra entre os brancos na África do Sul nos últimos momentos do


apartheid.
É essa relação subjetiva com o tempo, tingida por matizes emocionais
distintos, que nos permite adentrar a esfera da relação entre sentimentos, tem-
po e política. Nestas considerações finais, apontamos brevemente a fecundi-
dade analítica dessa relação para pensar diversos fenômenos contemporâneos
da esfera política.
O primeiro fenômeno é o engajamento em movimentos sociais. A im-
portância das emoções para explicar o envolvimento com uma causa vem me-
recendo recentemente a atenção dos cientistas sociais. Um investimento de
fôlego pode ser encontrado na coletânea organizada por Goodwin, Polletta e
Jasper (2001), em que os autores discutem três concepções da ação social – o
ator interessado e calculista, o ator racional movido por princípios, o ator emo-
cional movido por paixões – para advogar em favor da atenção para a dimensão
emocional que move o engajamento em movimentos sociais, discutida a partir
de um conjunto de estudos de caso que compõem a coletânea. No Brasil, recor-
registro de pesquisa | maria claudia pereira coelho e eduardo moura pereira oliveira

1095

remos em outro lugar (Coelho & Durão, 2012) a essa matriz teórica para pensar
especificamente o papel da esperança na atuação do Grupo Cultural AfroReggae
(GCAR). Ali, discutimos duas oposições presentes em um conjunto de pequenas
histórias (tratadas como fábulas) que o grupo conta sobre si mesmo: mártir/
sobrevivente e utopia/esperança. Mostramos, em nossa análise, que o grupo
opta pelo sobrevivente para protagonizar suas narrativas sobre si mesmo, per-
mitindo-nos assim “entender a ação social do GCAR como regida pelo senti-
mento de esperança, capaz de pautar a ação cotidiana em função de um futu-
ro desejado e representado como tangível” (Coelho & Durão, 2012: 925).
Um segundo exemplo de fenômeno da vida política que pode também
ser discutido com base em uma articulação entre esses sentimentos que jogam
com o tempo é a propaganda política eleitoral. Brader (2006: 1) discute algumas
campanhas de propaganda política nas eleições presidenciais norte-americanas,
analisando as implicações da opção pela instilação do medo ou pela incitação
à esperança (e é importante assinalar a menção, ainda que breve, à presença
de “sentimentos enterrados de nostalgia”.
O papel da nostalgia é a chave analítica que orienta a coletânea já dis-
cutida de Angé e Berliner (2015). Nela, um vasto conjunto de fenômenos polí-
ticos é analisado, como, por exemplo, a nostalgia do período imperial vivida
pelos húngaros no contexto pós-socialista (Hann, 2015: 96) e a “experiência de
imersão” dos visitantes de um parque inspirado num bunker soviético, na Li-
tuânia (Lankauskas, 2015: 35).
Em outro lugar (Oliveira, 2018), analisamos também a nostalgia como epi-
centro de uma “gramática emocional do exílio”, tomando como base a composição
dramática do personagem Henrik no romance As brasas, do escritor húngaro Sán-
dor Márai. Na obra, o sentimento de desabrigo decorrente da quebra de fidelidade
entre dois amigos caracteriza um tipo de exílio incorporado por uma dimensão
temporal, no qual o personagem se perde no passado. No entanto, a nostalgia de
Henrik não está restrita ao passado, mas aberta a ouvir novamente o amigo que
regressa e reestabelecer algum grau de correspondência afetiva entre os dois.
Trata-se de uma nostalgia vinculada à esperança de restituição afetiva.
Esse conjunto de exemplos nos estimula, assim, a sugerir a fecundidade
desse arcabouço conceitual formado pelo entrelaçamento de emoções e tempo
para a análise da vida política em múltiplas dimensões, de natureza mais ou
menos explícita. Na política, a tese dos horizontes imaginativos fornece ins-
trumental teórico particularmente fecundo aos estudos sobre os movimentos
sociais e, em especial, sobre certa ordem dos sentimentos em período eleitoral,
como observamos recentemente no Brasil. Considerando a experiência eleito-
ral, cabe uma reflexão sobre a cadeia de experiências e de informações, cons-
tituintes do processo de decisão do voto, e sua relação com o medo de uma
possibilidade indesejada, do ponto de vista daquele que escolhe no presente o
candidato que o representará no futuro.
reflexões sobre o tempo e as emoções na antropologia: definições, práticas e políticas 

1096

E o teor mais ou menos explícito é também um ponto digno de atenção,


uma vez que o potencial dos sentimentos para mover o indivíduo à ação polí-
tica – indo às ruas, subscrevendo petições, publicando, participando de debates
em círculos mais íntimos ou em redes sociais e fazendo suas escolhas como
eleitor –, se por um lado ainda pode exigir um certo trabalho de convencimen-
to quanto à sua relevância junto aos cientistas sociais, por outro parece ser
velho conhecido dos marqueteiros. Para atestar a relevância do problema, bas-
ta lembrar a polarização, de ostensividade talvez poucas vezes vista, entre o
medo e a esperança na campanha para a presidência do Brasil em 2002, em que
a atriz Regina Duarte engajou-se na campanha do candidato José Serra gravan-
do uma fala em que dizia “ter medo do PT” e votar em José Serra porque ele
“lhe dava segurança”. A essa fala, opôs-se o jingle “Brilha uma estrela”, da cam-
panha de Luiz Inácio Lula da Silva, que dizia “sem medo de ser feliz (...) Lula
lá, cresce a esperança”.
Dezesseis anos depois, essa polarização se acirrou radicalmente nas
campanhas presidenciais de 2018, momento em que os candidatos Fernando
Haddad e Jair Bolsonaro apostaram no medo como linha mestra de seus dis-
cursos. Enquanto a propaganda de Haddad destacava os riscos da “violência
política” e da “agressividade” presente nas posições controversas do adversário,
a campanha de Bolsonaro disseminava o discurso da possibilidade de “retorno
da corrupção” e a “ameaça de instauração de uma ditadura”, ora “de esquerda”,
ora “comunista”. A produção discursiva das campanhas incorporou um tom
marcado pela prevalência do medo sobre a esperança, intensificando o “alerta”
em relação ao que “pode acontecer”, em caso de vitória eleitoral do oponente.
O foco do embate se deslocou da esperança do benefício para o medo do ma-
lefício, movimento que tende a justificar as escolhas eleitorais mais pelo regis-
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tro da rejeição do que pelo registro da aceitação. No mesmo processo eleitoral,


cabe observar os movimentos sociais organizados pelas redes, nos quais as
pessoas foram às ruas manifestar seus medos e expressar afeições e repúdios
baseados na imagem de um temível porvir, tal como o “#elenão”.
Em tempos de polarizações extremas, em que tanto se fala sobre os
riscos da “cultura do ódio” para o processo democrático, parece-nos crucial
voltar a atenção das ciências sociais para o papel das emoções na política,
resgatando-as assim do registro meramente instrumental que ocupam nas
estratégias do marketing político e fazendo, do próprio marketing das emoções,
ainda mais um objeto de sua reflexão. Esse arcabouço conceitual que delinea-
mos aqui, articulando emoções, temporalidade e política com base nos senti-
mentos da nostalgia e da esperança, pretende oferecer um primeiro balizamen-
to para essa agenda de pesquisa.

Recebido em 17/1/2019 | Revisto em 03/7/2019 | Aprovado em 29/10/2019


registro de pesquisa | maria claudia pereira coelho e eduardo moura pereira oliveira

1097

Maria Claudia Coelho é professora titular do Departamento de


Antropologia do Instituto de Ciências Sociais da Uerj. É doutora em
sociologia pelo Iuperj e mestre em antropologia social pelo Museu
Nacional/UFRJ. Suas principais áreas de interesse são a
antropologia das emoções, as teorias da dádiva e as representações
da violência. Dentre suas publicações, destacam-se O valor das
intenções e A experiência da fama; a organização, apresentação e
tradução de Estudos sobre interação; e diversos artigos em periódicos
especializados, no Brasil e no exterior.

Eduardo Moura Pereira Oliveira é doutor e mestre em ciências


sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Uerj. Professor do Departamento de Sociologia no Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais (IFCS-UFRJ). Suas principais áreas de
interesse são a antropologia das emoções, as teorias da
modernidade e as narrativas ficcionais. Publicou Teorias e práticas
do poder como violência: reflexões a partir de Benjamin, Derrida e
Agamben.
reflexões sobre o tempo e as emoções na antropologia: definições, práticas e políticas 

1098

NOTAS
1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no
18 o Congresso Mundial IUAES, realizado em Florianópolis,
Santa Catarina, em julho de 2018.
2 A expressão é inspirada na ideia de Ramon Sarró (2009),
quando pensa a antropologia como “a arte” de chegar “tar-
de demais”, de “se atrasar”. Ocorre quando os antropólo-
gos entram em contato com sistemas tradicionais em vias
de colapso e sentem certo arrependimento, dada a sensa-
ção de algo perdido no tempo.
3 Nessa e nas demais citações em idiomas estrangeiros, a
tradução é nossa.

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reflexões sobre o tempo e as emoções na antropologia: definições, práticas e políticas 

1100

Reflexões sobre o Tempo e as Emoções


na Antropologia: definições,
práticas e políticas
Resumo Palavras-chave
Este trabalho propõe uma reflexão sobre as relações entre Emoções;
emoções, tempo e política, tendo como pressuposto a ten- tempo;
são entre as vivências subjetivas e a organização do fluxo esperança;
da vida em passado, presente e futuro. Considerando a plu- nostalgia;
ralidade de sentidos relacionados à experiência do tempo, emoções e política.
exploramos os aspectos sociais e políticos ligados ao deslo-
camento das emoções das realidades imediatas, bem como
as formas pelas quais os indivíduos entretêm relações afe-
tivas com o tempo, revitalizando o passado ou imaginando
o futuro de modo a engendrar formas de atuação política. O
trabalho está organizado em duas seções de revisão biblio-
gráfica relativas à fecundidade analítica de dois sentimen-
tos: a nostalgia, com base em Berliner (2015), e a esperança,
com base em Crapanzano (2004). Nas considerações finais,
examinamos o rendimento heurístico do arcabouço concei-
tual delineado, apresentando algumas possibilidades de
construção de objetos ligados às formas de atuação política.

REFLECTIONS ON Time and Emotions


in Anthropology: definitions, practices
and policies
Abstract
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1087 – 1100 , set. – dez., 2020

This paper deals with the relations between emotions, time Keywords
and politics engendered by the tension between subjective Emotions;
experiences and the organization of the flow of life as past, time;
present and future. It considers the variety of meanings hope;
related to the experience of time in order to explore social nostalgia;
and political aspects associated to the displacement of emo- emotions and politics.
tions from immediate realities and to examine the multiple
affective relations individuals establish with time, revital-
izing the past or imagining the future in order to elicit forms
of political action. Its structure comprehends two sections
dedicated each to bibliographical reviews of two feelings:
nostalgia (based on Berliner, 2015) and hope (based on Cra-
panzano, 2004). Final considerations approach issues con-
cerning the analytical fruitfulness of the conceptual frame-
work hereby outlined, presenting several possibilities to the
construction of objects of research related to forms of po-
litical action.
RESENHAS
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v10316

1 Università degli Studi di Genova, Departamento de Scienze


della Formazione, Gênova, GE, Itália
iafet.leonardibricalli@edu.unige.it
https://orcid.org/0000-0001-5517-6925

Iafet Leonardi Bricalli I

A VIGILÂNCIA COMO CULTURA

Lyon, David. (2018).


The culture of surveillance: watching as a way of life.
Cambridge: Polity Press.

No imaginário social, a vigilância se- não necessariamente errado, ao me-


gue identificada à figura do Big Bro- nos profundamente equivocado.
ther, o personagem que tudo vê do ro- A tese defendida no livro é de que a
mance 1984 (Orwell, 2008). A metáfora vigilância do século XXI caracteriza-se
orwelliana da vigilância projeta a ima- pela participação ativa dos indivíduos
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1103 – 1107 , set. – dez., 2020

gem de um olhar externo, geralmente na própria vigilância. A vigilância se


opressor, destinado a não deixar qual- tornou parte de todo um modo de vida
quer margem à liberdade dos indiví- e por isso a utilização do termo cultura.
duos e que guarda muita semelhança Ao contrário do entendimento da vigi-
com o modelo panóptico da vigilância, lância como algo externo, imposto a
criticamente analisado por Foucault nós, a vigilância como parte da cultura
(2009), a partir dos escritos do filósofo se irradia pela sociedade e torna-se al-
utilitarista Jeremy Bentham. go que os cidadãos comuns aceitam
Em The culture of surveillance, David (conscientemente ou não), negociam,
Lyon − diretor do Centro de Estudos de se envolvem, desejam ou mesmo resis-
Vigilância e professor de sociologia da tem. O que antes era um aspecto insti-
Queen’s University, em Kingston, On- tucional de disciplina e controle social
tário, Canadá, que se ocupa do tema da da modernidade, hoje está internaliza-
vigilância há mais de 30 anos − mostra do, constitui uma parcela das reflexões
que pensar a vigilância do século XXI diárias e das práticas cotidianas dos
nos termos orwellianos se mostra, se cidadãos comuns.
a vigilância como cultura

1104

O livro é estruturado em três par- tros ou de si mesmo) quanto de resis-


tes e dividido em seis capítulos. A pri- tência (proteção criptografada de da-
meira, “Culture in context”, é formada dos pessoais na internet, uso de ves-
pelo capítulo inicial, “Crucibles of cul- tuários que limitam o reconhecimen-
ture”, em que o autor fornece as pistas to por câmeras, rejeição de uso de
conceituais das quais dependerá o cartões fidelidade etc.). Trata-se, por-
restante do livro. A cultura da vigilân- tanto, de um conceito guarda-chuva,
cia deve ser entendida no interior de que objetiva reunir diferentes mani-
um movimento maior da modernida- festações de um modo de vida ligado
de, com a emergência do que Zigmunt à vigilância, cujos efeitos, ainda, va-
Bauman denomina modernidade lí- riam de acordo com o tipo de socieda-
quida (a vigilância é uma de suas va- de e dependem de variáveis como
riações e foi tema de publicação que classe, raça e gênero. O uso do concei-
apresenta um diálogo de Bauman to de cultura da vigilância se justifica
(2013) com Lyon). A modernidade lí- posto que objetiva distinguir-se dos
quida confunde-se com a era digital e conceitos de Estado de vigilância e
nasceu de um significante desloca- sociedade de vigilância, que já não são
mento cultural (relacionado à mudan- adequados ao século XXI, pois partem
ça do mundo do trabalho e da produ- do pressuposto da vigilância como al-
ção para o mundo do consumo) que go exercido a partir de um ponto ex-
substitui disciplina e controle por terno. Ambos, portanto, são insufi-
desempenho. Obediência, lei e obriga- cientes em dar conta de como os cida-
ção convivem e muitas vezes são subs- dãos atualmente se engajam de modo
tituídos pelo apoio à liberdade e aos ativo na vigilância.
desejos. A segunda parte do livro, “Cultural
O conceito de cultura da vigilância currents”, contém os capítulos dois,
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1103 – 1107 , set. – dez., 2020

não descreve uma situação unificada. três e quatro. O dois, “From conve-
Abrange desde aspectos dos imaginá- nience to compliance”, ilustra a ma-
rios de vigilância, construídos pela neira como o caráter ubíquo da vigi-
nossa exposição contínua a filmes, lância contribui para moldar um ima-
séries, livros, reportagens, câmeras, ginário social que naturaliza a vigilân-
controles biométricos etc., que não cia − e alimenta suas práticas −, que
nos deixam nunca esquecer de que a por sua vez alimenta os imaginários,
vigilância é uma fato da vida moderna, num movimento circular. O autor
até aspectos das práticas de vigilância, mostra, por exemplo, como práticas
a nossa contribuição para o desenrolar de vigilância de aeroportos contri-
de uma vida ligada à vigilância, que buem para criar insegurança, ansie-
pode ser tanto de envolvimento (ins- dade e medo, particularmente sobre
talação de câmeras em residências ou grupos sociais já estigmatizados, co-
veículos, registro de situações cotidia- mo o dos árabes. Destaca ainda, um
nas a partir de smartphones e uso de tipo de vigilância mais sutil, que é o
mídias sociais para vigilância de ou- tratamento de dados por parte de re-
resenha | iafet leonardi bricalli

1105

des de varejo, que podem ser usados uma vez que os dispositivos de rede
para construção de perfis de usuários estão embebidos no ambiente vivido
visando moldar políticas de marketing e são partes das interações cotidianas.
ou definir acesso a melhores condi- Nas mídias sociais assistir aos outros
ções de pagamento. As pessoas, por é parte da história, mas tornar-se vi-
sua vez, respondem intencionalmente sível é a outra parte. Trata-se de uma
à vigilância, organizando suas vidas vigilância sobre si mesmo, uma busca
em torno dela, protegendo suas casas constante de aperfeiçoamento e de-
e os membros de sua família ou che- sempenho, uma concorrência a si
cando o que os seus parceiros ou mesmo e aos outros, motivada por
crianças estão fazendo. busca de pertencimento e adequação,
O capítulo três, “From novelty to e reveladora de narcisismo. A “virada
normalization”, aborda o modo como participatória”, ou seja, quando são os
os imaginários e as práticas da vigi- próprios indivíduos que se revelam
lância se relacionam com a atração sem a necessidade de uma participa-
exercida pelas tecnologias. Exemplos: ção externa, ocorre dentro de uma
reconhecimento facial como jogos em mudança político-econômica de um
aplicativos ou no Facebook; design de complexo de “vigilância-industrial”
smartphones; as smartcities; e o uso, vo- em que a vigilância era vista como
luntário ou não, de sensores nos cor- algo mau, para um complexo de “vigi-
pos e nos vestuários para medir de- lância-inovação”, em que ela é consi-
sempenhos individuais. A parte final derada uma força para o bem.
do capítulo é muito importante, pois A terceira parte do livro, “Co-crea-
Lyon mostra como a criação de perfis tion: culture, ethics, politics”, é forma-
a partir do cruzamento dos dados da da pelos capítulos cinco e seis. O cinco,
vigilância podem ser instrumentos de “Total transparency”, objetiva trazer
classificação social. Baseada na gestão para a discussão os temas explorados
de riscos e oportunidades, tal classi- nos capítulos anteriores à luz de um
ficação pode determinar a quem se romance intitulado O círculo, escrito
deve destinar bens e serviços ou quem por Dave Eggers. Segundo Lyon, o livro
deve ser considerado suspeito ou cri- é paradigmático na ilustração do que
minoso. Isso pode afetar acessos a o autor entende por vigilância no sé-
serviços de saúde, crédito, segurança culo XXI, assim como 1984 o foi para a
social, educação e opções de emprego. vigilância do século XX. O “Big Brother
O capítulo quatro, “From online to está assistindo você” muda para “Tudo
onlife”, ilustra o campo em que a cul- o que acontece deve ser conhecido’. O
tura da vigilância talvez melhor se livro é uma metáfora do imperativo da
manifeste: as atividades online diárias, transparência que comanda todos os
particularmente nas mídias sociais. aspectos da vida cotidiana de todos os
Como o próprio título do capítulo su- cidadãos comuns e representa uma
gere, hoje é praticamente impossível distopia que, ao contrário do caráter
separar a vida online da vida offline, sombrio de 1984, possui contornos su-
a vigilância como cultura

1106

aves mas nem por isso menos preocu- desempenho para explicar a cultura
pantes, ao evidenciar a padronização da vigilância em sua forma mais ca-
de estilos, a aversão ao diferente, ao racterística, as atividades online diá-
estrangeiro, ao Outro. rias nas mídias sociais, faltou explici-
No capítulo seis, “Hidden hopes”, tar que a captura das subjetividades
Lyon pretende fugir de abordagens é justamente uma das dimensões
deterministas segundo as quais nada mais importantes do capitalismo con-
pode ser feito para deter as forças po- temporâneo (Dardot & Laval, 2014). Em
líticas e econômicas globais que mol- outras palavras, não basta dizer que a
dam a cultura da vigilância, pois, se- vigilância funciona a partir de nós; é
gundo o autor, a ação humana nunca preciso enfatizar como o capitalismo
é restrita aos códigos da cultura do- funciona a partir de nós, uma aborda-
minante. É uma tentativa de encontrar gem que traz ainda novos elementos
brechas na cultura da vigilância de para se pensar o que significa, de fato,
modo a utilizá-la de modo positivo. capitalismo de vig ilância (Zuboff,
Nas palavras de Lyon, uma vigilância 2015), conceito que se limita à previ-
para os outros e não sobre os outros. são e modificação do comportamento
Como o fundamental da vigilância do humano e ao tratamento econômico
século XXI é a participação ativa dos dos dados produzidos pelos usuários.
indivíduos, então isso exige um olhar
autorreflexivo para nossas próprias Recebida em 14/3/2020 |
vontades e desejos de assistir, regis- Aprovada em 21/7/2020
trar e exibir nossas vidas e a dos ou-
tros. Resistir à vigilância não é apenas
encontrar meios de se proteger da
vigilância (privacidade), mas encon-
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1103 – 1107 , set. – dez., 2020

trar maneiras de canalizar a vigilância


para aspectos de cuidado, atenção e
proteção do outro.
The culture of surveillance possui o
mérito de enxergar a importante mu-
dança de paradigma que a vigilância
experimentou no século XXI. Embora
David Lyon reconheça em diversas
passagens do texto que essa cultura
foi e é moldada por forças políticas e
econômicas, ele as associa à mudança
do mundo do trabalho e da produção
para o mundo do consumo, mas sem
explicar como efetivamente atuam
essas forças. Quando o autor cita os
papéis do desejo, da performance e do
resenha | iafet leonardi bricalli

1107

Referências bibliográficas

Bauman, Zygmunt. (2013). Vigilância


líquida: diálogos com David Lyon. Rio de
Janeiro: Zahar.
Dardot, Pierre & Laval, Chr istian.
(2016) [2009]. A nova razão do mundo:
ensaio sobre a sociedade neoliberal. São
Paulo: Editora Boitempo.
Foucault, Michel. (2009) [1975]. Vigiar
e punir: história da violência nas prisões.
Petrópolis: Vozes.
Or well, George. (2005) [1949 ]. 1984.
São Paulo: Companhia Editora Nacio-
nal.
Zuboff, Soshana. (2015). Big other:
surveillance capitalism and the pros-
pects of an information civilization.
Journal of Information Technology, 30, p.
75-89.

Iafet Leonardi Bricalli é doutorando em sociologia pela


Università degli Studi di Genova, Itália. É licenciado, bacharel e
mestre em geografia pela Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES). É coautor com Cláudio Zanotelli de Vigilância
urbana: os paradoxos da utilização de câmeras em espaços públicos
da cidade de Vila Velha – ES, e autor de The paradoxes in the use of
the panopticon as a theoretical reference in urban video-surveillance
studies: a case study of a CCTV system of a Brazilian city e de O
governo da insegurança nas cidades brasileiras contemporâneas: um
exercício de análise à luz das contribuições de Michel Foucault sobre
os poderes e suas espacialidades.
http://dx.doi.org /10.1590 /2238-38752020v10317

1 University of Texas at San Antonio, Department of Anthropology,


San Antonio, Texas, USA
michael.cepek@utsa.edu
https://orcid.org/0000-0001-8635-8561

Michael L. Cepek I

FEEDING AND OWNING IN AMAZONIA

Costa, Luiz. (2017).


The owners of kinship: asymmetrical relations
in Indigenous Amazonia, Chicago: HAU Books.

Luiz Costa’s The owners of kinship: asym- The existence of an extensive ethno-
metrical relations in Indigenous Amazonia graphic and linguistic corpus of Kan-
is a major achievement. Incorporating amari materials gives Costa the abil-
decades of Amazonianist anthropol- ity and freedom to focus on a specific
ogy as its conditions of conceptual and dynamic: the way in which the act of
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1109 – 1113 , sep. – dec., 2020

analytical possibility, it stands as a “feeding” creates bonds of dependence


compelling example of a form of schol- that make the feeder the -warah of the
arship that has become fully realized fed. Costa’s baptismal ethnographic
only in recent years. Costa’s attune- moment was his consternation with
ment to Amazonian ethnology turns the apparently split meaning of the
his ethnography of Brazil’s Kanamari term. In Portuguese, Costa’s Kanamari
people into a transformative engage- collaborators translated -warah as
ment with core regionialist theories. “body” but also as “owner,” “master,”
It is this centripetal/centrifugal orien- and “chief.” “Body-owner” – what could
tation – inward to Kanamari specifici- such an expression mean?
ties and outward to Amazonia-wide To think of the agent that feeds a be-
themes – that makes The owners of kin- ing as their “body” requires real con-
ship a perfect answer to the question ceptual struggle. As such, The owners
of why Amazonianist anthropology has of kinship is aligned with the ontologi-
become one of the discipline’s most cal turn, which asks us to allow mo-
unique and inventive subfields. ments of ethnographic contingency to
feeding and owning in amazonia

1110

transform our deepest theoretical as- cell,” of the processes Fausto describes.
sumptions. Despite the strangeness Costa’s choice to highlight the practice
of his realization, Costa explains that of pet-keeping serves as an effective
though the prototypical example of response to Joanna Overing’s charge
feeding is a woman giving food to her (2003): that Amazonianists who dwell
pet, its meaning extends to the wider on the capture and incorporation of
notion of “provisioning.” In this sense, alterity through warfare and cannibal-
the Kanamari concept of one’s body ism exoticize Amazonian indigeneity
as that which encompasses and as- and ignore its more characteristic
sures one’s existence is similar to an quality as a kind of humdrum, peace-
idea held by the young Marx. In his ful, and symmetrical sociality. What
early writings, Marx (1964) argues that could be more “mundane,” in Costa’s
our “real body” is our “inorganic body,” words, than raising the infant animals
or the features of the social and mate- that Kanamari hunters bring back to
rial world that lie outside ourselves their villages? Even here, Costa argues,
yet enable our lives through what Ber- feeding emerges as a way to use asym-
tell Ollman (1976) calls our “internal metrical means to transform preda-
relations” with them. For Marx, as for tion into commensality, or “kinship.”
the Kanamari, our body is that which Costa employs the idea of feeding to
allows us to live by providing our understand many aspects of Kanamari
means of existence. In this sense, be- culture and history. His first substan-
cause of our asymmetrical depend- tive chapter examines how feeding
ence on it, it is not that difficult to and the dependency it generates oper-
understand how our “body” can also ate in aligned though distinct ways in
be our “owner.” pet-keeping and shamanism. The sec-
Costa’s main intervention into the ond offers a conceptual and linguistic
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1109 – 1113 , sep. – dec., 2020

Amazonianist literature is his trans- analysis of the relationship between


formation of Carlos Fausto’s idea of feeding and the figure of the body-
“ f a m i l i a r i z i n g p re d a t i o n ” ( Fa u s t o, owner. The third ingeniously reinter-
1999). The phrase refers to the prac- prets Amazonian couvade practices to
tices of adoptive filiation Amazonians examine how feeding familiarizes the
employ to incorporate alterity as a enmity of the newborn child. The
resource for their individual and col- fourth uses the idea of feeding to ex-
lective self-production. Costa argues amine past relations between Kan-
that Fausto is wrong to prioritize war- amari “subgroups,” the structures of
fare and shamanism as the main dependence that followed their disap-
means of familiarizing enemy capaci- pearance during the Rubber Boom, and
ties. By delving into his own data and the recent orientation to Brazil’s na-
other Amazonianist ethnographies, tional Indian agency as a feeder ca-
Costa argues that it is actually the pable of generating new forms of kin-
capturing and raising of pets that is ship. The fifth examines a set of myths
the most telling example, or “basic and rituals to describe how feeding
review | michael l. cepek

1111

and kinship emerged from a preexist- as I know Costa would respond con-
ing state of generalized predation vincingly to my suggestions concern-
centered on the figure of the jaguar. ing any missteps in his work. None-
What impressed me most about Cos- theless, one must try.
ta’s book is how he used the “schema” First, Costa’s analysis can feel overly
of feeding as a conceptual key to de- abstract and schematic. It is, after all,
velop a cumulative understanding of a difficult book. His copious morpho-
Kanamari culture and history from l og i c a l b re a k d ow n s o f K a n a m a r i
chapter to chapter. In other words, its lexemes and phrases cloak his work
structure as well as its argument make in intellectual authority, but I am not
The owners of kinship a powerful testa- sure they add much to his arguments.
ment to the productivity of the tools Even more, I worry that they alienate
it employs. Such tools include Costa’s many readers, as they are too techni-
own ethnographic data as well as ac- cal for the average ethnographer but
counts of “variants” of Kanamari con- too general for the specialist linguist.
cepts and practices found in dozens At no point did I doubt Costa’s ethnog-
of other Amazonianist ethnographies. raphy, but I did want to see more of
Much more than the writings of sen- his “primary material.” As a novelist
ior Amazonianists who switched only would say, I wished Costa would have
gradually from particularism to com- “shown” more and “told” less. Costa
parativism, Costa’s ethnography- continuously tells the reader how Kan-
cum-ethnology emerges from the gate amari people act/speak/think/feel. Yet
as a mature example of what Carlos he provides few in-depth descriptions
Fausto (personal communication) of actual events and interactions. In
once described to me as neo-structur- addition, the book is relatively free of
alist, “neo-classical, Franco-Brazilian fleshed-out individuals and extensive
anthropology”. This theoretical orien- verbatim statements.
tation has become the most conceptu- Many of Costa’s claims are provocative
ally productive approach in Amazoni- – for example, that Kanamari parents
anist anthropology, and reading The view their newborns as feared ene-
owners of kinship tells us why. mies, or that the main reason the Kan-
The owners of kinship is that rare book amari detest “whites” is because they
that is so compelling that one cannot consume the livestock they raise. Yet
help but attempt to find faults with it Costa does not show how such posi-
in order to feel more secure about tions are voiced or enacted by actual
one’s own data and approach. As an people in actual contexts. Because of
Amazonianist interested in many of the omission, no matter how much
the same questions as Costa, strug- conceptual sense Kanamari stances
gling to articulate the ways in which make, the reader is left unsure wheth-
my anthropology differs from The own- er they actually shape Kanamari
ers of kinship is an incredibly produc- thought, affect, and experience. In
tive exercise. But it can also feel futile, short, one can finish The owners of kin-
feeding and owning in amazonia

1112

ship understanding the conceptual I told Costa how my data did not
structure of Kanamari culture, but she match some of his general claims – for
might have little sense of what life example, that Cofán people have a
feels like for a Kanamari person. lexeme that unambiguously means
Costa’s discussion of dependence, “body” and that some of them attempt
magnification, and agency begs for an to entice their pets to reproduce – he
engagement with the question of was fascinated rather than doubtful.
“value.” How do these concepts figure Costa’s curiosity should not surprise
in Kanamari conceptualizations of an us. After all, his interpretation of how
ideal life? As Kanamari people pursue the Kanamari couvade protects the
their ideals, what capacities and inca- parents rather than the child is a star-
pacities do they create in themselves tling rejection of an Amazonianist
and their consociates? By exploring commonplace. Ultimately, Costa’s
these questions, Costa’s book could careful yet creative syntheses are
have become the first monograph to what make The owners of kinship so
utilize all three of Eduardo Viveiros de easy to appreciate. By putting the Kan-
Castro’s “analytical styles” of Amazo- amari into open-ended conversation
nianist anthropology (Viveiros de Cas- with so many other Amazonians,
tro, 1996). Costa combines the “sym- Costa affirms, transforms, and adds to
bolic economy of alterity” and “moral the conceptual models that regional
economy of intimacy” approaches by specialists use to interpret their data.
exploring how feeding transforms If I could suggest one ethnography to
alterity into commensality. But Kan- bring to the field for a neophyte Am-
amari society is also deeply asym- azonianist, it would be The owners of
metrical. Value and inequality are kinship. It asks so many questions, of-
central to the “political economy of fers so many answers, and makes so
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1109 – 1113 , sep. – dec., 2020

control” approach, and if Costa had many suggestions about where one
used it, he would have been the first might look, what one might find, and
to pull off a miraculous Amazonianist how one might make sense of it.
hat trick.
Finally, most ethnographers trained in Received on 27/7/2020|
a more Boasian, North American tradi- Approved on 2/9/2020
tion will be skeptical of Costa’s gen-
eralities. He writes about “the Amazo-
nian owner” (155), “Amazonian social
theory” (229), and what is true
“throughout Amazonia” (115, 226). He
even issues absolutes: “in Amazonia,
filiation is always an adoptive filiation”
(22) and “the process of kinship in
Amazonia always involves making kin
out of others” (229). To his credit, when
review | michael l. cepek

1113

bibliography
Fausto, Carlos. (1999). Of enemies
and pets: warfare and shamanism in
Amazonia. American Ethnologist, 26/4,
p. 933-956.
Marx, Karl. (1964) [1844]. The economic
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Edited by Dirk J. Struik. New York:
International Publishers.
Ollman, Bertell. (1976). Alienation:
Marx’s conception of man in capitalist
society. Cambr idge: Cambr idge Uni-
versity Press.
Overing, Joanna. (2003). In praise of
the everyday: trust and the art of so-
cial living in an Amazonian commu-
nity. Ethnos, 68/3, p. 1-22.
Viveiros de Castro, Eduardo. (1996).
Images of nature and society in Ama-
zonian ethnolog y. Annual Review of
Anthropology, 25, p. 179-200.

Michael L. Cepek is author of Life in oil: Cofán


survival in the petroleum fields of Amazonia.
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL



Sociologia & Antropologia busca contribuir para a divulgação, expansão e
aprimoramento do conhecimento sociológico e antropológico em seus diversos
campos temáticos e perspectivas teóricas, valorizando a troca profícua entre
as distintas tradições teóricas que configuram as duas disciplinas. Sociologia
& Antropologia almeja, portanto, a colaboração, a um só tempo crítica e
compreensiva, entre as perspectivas sociológica e antropológica, favorecendo
a comunicação dinâmica e o debate sobre questões teóricas, empíricas,
históricas e analíticas cruciais. Reconhecendo a natureza pluriparadigmática
do conhecimento social, a Revista valoriza assim as oportunidades de
intercâmbio entre pontos de vista convergentes e divergentes nesses diferentes
campos do conhecimento. Essa é a proposta expressa pelo símbolo “&”, que,
no título da revista Sociologia & Antropologia, interliga as denominações das
disciplinas que nos referenciam.

Sociologia & Antropologia aceita os seguintes tipos de contribuição em


português, inglês e espanhgol:
1) Artigos inéditos (até 9 mil palavras incluindo referências
bibliográficas e notas)
2) Registros de pesquisa (até 4.400 palavras). Esta seção inclui:
a. Apresentação de fontes e documentos de interesse para a história das
ciências sociais
b. Notas de pesquisa com fotografias
c. Balanço bibliográfico de temas e questões das ciências sociais
3) Resenhas bibliográficas (até 1.600 palavras).
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4) Entrevistas

Manuscritos originais podem ser submetidos em português, espanhol,


inglês e francês, porém os textos somente serão publicados em português,
espanhol e inglês. Se necessário, o autor se responsabilizará pela tradução.
Excepcionalmente será concedido auxílio financeiro.

A pertinência para publicação será avaliada, numa primeira etapa, pela


Comissão Editorial no que diz respeito à adequação ao perfil e à linha
editorial da revista e, se aprovados, numa segunda etapa, por pareceristas ad
hoc brasileiros e estrangeiros, sempre doutores, de reconhecida expertise tema
no que diz respeito ao conteúdo e à qualidade das contribuições.

A revista funciona sob o princípio do duplo anonimato: os artigos serão


submetidos a dois pareceristas ad hoc e, em caso de pareceres
contraditórios, uma terceira avaliação será requerida. Sendo
identificado conflito de interesse da parte dos pareceristas, o texto será
1116

reencaminhado para avaliação. Os artigos serão avaliados de acordo


com os critérios de qualidade e rigor dos argumentos, validade dos dados,
oportunidade e relevância para sua área de pesquisa, atualidade e adequação das
referências.

A editoria demanda de todos os autores e avaliadores que declarem


possíveis conflitos de interesse relacionados a manuscritos submetidos a
Sociologia & Antropologia. Entende-se conflito de interesse como qualquer
interesse comercial, financeiro ou pessoal relacionados a dados ou questões
do estudo de um ou mais autores que levem a potenciais conflitos entre as
partes envolvidas. Conflitos de interesse podem influenciar os resultados e
conclusões de um estudo e do processo de avaliação. A sua existência não
impede a submissão de um artigo ou sua publicação na revista, porém, os
autores deverão explicar a razão do conflito aos editores, que tomarão uma
decisão sobre o encaminhamento do manuscrito.

A revista encaminhará, em prazo estimado de aproximadamente (6) seis


meses, uma carta de decisão sobre o artigo recebido, anexando, de acordo
com cada caso, os devidos pareceres. Um dos seguintes resultados será
informado: (a) aceito sem alterações; (b) aceito mediante pequenas revisões;
(c) reformular e reapresentar para nova avaliação; e (d) negado. Ao revisar os
manuscritos aceitos para publicação, os autores devem marcar todas as
alterações feitas no texto e justificar devidamente quaisquer eventuais
exigências ou recomendações de pareceristas não atendidas.

O periódico segue as diretrizes dos Códigos de Ética do Committee on


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Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (<http://
www.cnpq.br/web/guest/diretrizes>) e da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (<http://www.fapesp.br/boaspraticas/>).

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE COLABORAÇÕES


Forma e preparação de textos

O texto completo não deverá conter os nomes dos autores e deverá incluir
notas substantivas (de fim de texto) em algarismos arábicos; referências
bibliográficas; título e resumo (entre cem e 150 palavras) acompanhado
de cinco palavras-chave, em português e inglês; e, quando for o caso,
os créditos das imagens utilizadas. Agradecimentos e notas biográficas
dos autores (de até 90 palavras) incluindo formação, instituição, cargo,
áreas de interesse e principais publicações deverão ser enviados em
arquivo separado.
1117

Desenhos, fotografias, gráficos, mapas, quadros e tabelas devem conter


título e fonte, e estar numerados. Além de constarem no corpo do
artigo, as imagens deverão ser encaminhadas em arquivo separado do
texto, em formato .tiff (de preferência) ou .jpg e em alta resolução (300
dpi), medindo no mínimo 17cm (3.000 pixels) pelo lado maior. No caso
de imagens que exijam autorização para reprodução, a obtenção da
mesma caberá ao autor.

Os textos deverão ser escritos em fonte Times New Roman, tamanho 12,
recuo padrão de início de parágrafo, alinhamento justificado,
espaçamento duplo e em páginas de tamanho A4 (210x297cm), numa
única face.

As notas devem vir ao final do texto, não podendo consistir em simples


referências bibliográficas. Estas devem aparecer no corpo do texto com
o seguinte formato:
(sobrenome do autor, ano de publicação),
conforme o exemplo: (Tilly, 1996)

No caso de citações, quando a transcrição ultrapassar cinco linhas


deverá ser centralizada em margens menores do que as do corpo do
artigo; quando menor do que cinco linhas, deverá ser feita no próprio
corpo do texto entre aspas. Em ambos os casos a referência seguirá o
formato:
(sobrenome do autor, ano de publicação: páginas),
conforme os exemplos:
(Tilly, 1996: 105)
(Tilly, 1996: 105-106)

As referências bibliográficas em ordem alfabética de sobrenome devem vir


após as notas, seguindo o formato que aparece nos seguintes exemplos (os
demais elementos complementares são de uso facultativo):
1. Livro
Pinto, Luis de Aguiar Costa. (1949). Lutas de famílias no Brasil: introdução
ao seu estudo. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
2. Livro de dois autores
Cardoso, Fernando Henrique & Ianni, Octávio. (1960). Cor e mobilidade
social em Florianópolis: aspectos das relações entre negros e brancos numa
comunidade do Brasil meridional. São Paulo: Companhia Editora Nacional.
3. Livro de vários autores
Wagley, Charles et al. (1952). Race and class in rural Brasil. Paris: Unesco.
4. Capítulo de livro
Fernandes, Florestan. (2008). Os movimentos sociais no “meio negro”. In: A
integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Globo, p. 7-134 (vol. 2).
1118

5. Coletânea
Botelho, André & Schwarcz, Lilia Moritz (orgs.). (2009). Um enigma
chamado Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.
6. Artigo em coletânea organizada pelo mesmo autor
Gonçalves, José Reginaldo Santos. (2007). Teorias antropológicas e
objetos materiais. In: Antropologia dos objetos: coleções, museus e
patrimônios. Rio de Janeiro: Iphan, p. 13-42.
7. Artigo em coletânea organizada pelo autor em conjunto com outro
Villas Bôas, Glaucia. (2008). O insolidarismo revisitado em O problema do
sindicato único no Brasil. In: Villas Bôas, Glaucia; Pessanha, Elina Gonçalves
da Fonte & Morel, Regina Lúcia de Moraes. Evaristo de Moraes Filho, um
intelectual humanista. Rio de Janeiro: Topbooks, p. 61-84.
8. Artigo em coletânea organizada por outro autor
Alexander, Jeffrey. (1999). A importância dos clássicos. In: Giddens,
Anthony & Jonathan Turner (orgs.). Teoria social hoje. São Paulo: Ed.
Unesp, p. 23-89.
9. A rtigo em Periódico
Lévi-Strauss, Claude. (1988). Exode sur exode. L’Homme, XXVIII/2–3,
p. 13-23.
10. Tese Acadêmica
Veiga Junior, Maurício Hoelz. (2010). Homens livres, mundo privado:
violência e pessoalização numa sequência sociológica. Dissertação de
Mestrado. PPGSA /Universidade Federal do Rio de Janeiro.
11. Segunda ocorrência seguida do mesmo autor
Luhmann, Niklas. (2010). Introdução à teoria dos sistemas. Petrópolis:
sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1115 – 1120 , set. – dez., 2020

Vozes.
Luhmann, Niklas. (1991). O amor como paixão. Lisboa/Rio de Janeiro:
Difel/Bertrand Brasil.
12. Consultas on-line
Sallum Jr., Brasílio & Casarões, Guilherme. (2011). O impeachment de
Collor: literatura e processo. Disponível em <http://www.acessa.com/gr
amsci/?page =visualizar&id=1374>. Acesso em 9 jun. 2011.
1119

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Sociologia & Antropologia não assume responsabilidade por conceitos
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1120

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sociol. antropol. | rio de janeiro, v.10.03: 1115 – 1120 , set. – dez., 2020
Preâmbulo. O valor e os benefícios provenientes da pesquisa dependem essencialmente da sua inte-
gridade. Embora haja diferenças entre países e entre disciplinas na maneira pela qual a pesquisa é
organizada e conduzida, há também princípios e responsabilidades profissionais comuns que são
fundamentais para a integridade da mesma, onde quer que seja realizada.
PRINCÍPIOS
Honestidade em todos os aspectos da pesquisa.
Responsabilização na condução da pesquisa.
Respeito e imparcialidade profissionais no trabalho com outros.
Boa gestão da pesquisa em benefício de outros.
RESPONSABILIDADES
1. Integridade: Os pesquisadores devem assim como, em todas as atividades de
assumir a responsabilidade pela revisão.
confiabilidade de suas pesquisas. 10. Comunicação pública: Os pesquisadores
2. Cumprimento com as regras: Os devem limitar seus comentários profissionais à
pesquisadores devem estar cientes das regras sua própria área de especialização
e políticas de pesquisa e segui-las em todas as reconhecida quando participarem em
etapas. discussões públicas sobre a aplicação e
3. Métodos de pesquisa: Os pesquisadores relevância de resultados de pesquisa, e devem
devem utilizar métodos de pesquisa distinguir claramente entre comentários
apropriados, embasar as conclusões em uma profissionais e opiniões baseadas em visões
análise crítica das evidências e relatar os pessoais.
achados e interpretações de maneira integral 11. Notificação de práticas de pesquisa
e objetiva. irresponsáveis: Os pesquisadores devem
4. Documentação da pesquisa: Os notificar às autoridades competentes qualquer
pesquisadores devem manter documentação suspeita de má conduta profissional, inclusive
clara e precisa de suas pesquisas, de maneira a fabricação e/ou falsificação de resultados,
que sempre permita a averiguação e plágio e outras práticas de pesquisa
replicação do seu trabalho por outros. irresponsáveis que comprometam a
5. Resultados: Os pesquisadores devem confiabilidade da pesquisa, tais como
compartilhar seus dados e achados pronta e desleixo, inclusão inapropriada de autores,
abertamente, após assegurarem a negligência no relato de dados conflitantes ou
oportunidade de estabelecer a prioridade e uso de métodos analíticos enganosos.
propriedade sobre os mesmos. 12. Resposta a alegações de práticas de
6. Autoria: Os pesquisadores devem assumir pesquisa irresponsáveis: As instituições de
plena responsabilidade pelas suas pesquisa, assim como as revistas,
contribuições em todas as publicações, organizações profissionais e agências que
solicitações de financiamento, relatórios e tiverem compromissos com a pesquisa em
outras representações de suas pesquisas. A questão devem dispor de procedimentos para
lista de autores deve sempre incluir todos responder a alegações de má conduta e outras
aqueles (mas apenas aqueles) que atendam os práticas de pesquisa irresponsáveis, assim
critérios de autoria. como proteger aqueles que, de boa fé, tenham
7. Agradecimentos na publicação: Nas denunciado tais comportamentos. Quando for
publicações, os pesquisadores devem confirmada a má conduta ou outra prática de
reconhecer os nomes e papéis daqueles que pesquisa irresponsável, devem ser tomadas as
fizeram contribuições significativas à pesquisa, medidas cabíveis prontamente, inclusive a
inclusive redatores, financiadores, correção da documentação da pesquisa.
patrocinadores e outros, mas que não atendem 13. Ambientes de pesquisa: As instituições de
aos critérios de autoria. pesquisa devem criar e sustentar ambientes
8. Revisão de pares: Ao participar da que incentivem a integridade através da
avaliação do trabalho de outros, os educação, políticas claras e normas razoáveis
pesquisadores devem fornecer pareceres para o progresso da pesquisa, ao mesmo
imparciais, oportunos e rigorosos. tempo em que fomentam ambientes de
9. Conflitos de interesse: Os pesquisadores trabalho que apóiem a integridade da mesma.
devem revelar quaisquer conflitos de interesse, 14. Considerações sociais: Os pesquisadores
sejam financeiros ou de outra natureza, que e as instituições de pesquisa devem reconhecer
possam comprometer a confiabilidade de seu que têm uma obrigação ética no sentido de
trabalho nos projetos, publicações e pesar os benefícios sociais contra os riscos
comunicações públicas de suas pesquisas, inerentes apresentados pelo seu trabalho.

A Declaração de Singapura sobre Integridade em Pesquisa foi desenvolvida como parte da II Conferência Mundial sobre Integridade
em Pesquisa, realizada de 21 a 24 de julho de 2010, em Singapura, como guia global para a condução responsável de pesquisas. Não
é um documento regulatório, nem representa as políticas oficiais dos países e organizações que financiaram ou participaram na Con-
ferência. Para informações sobre políticas oficiais, normas e regras na área de integridade em pesquisa, devem ser consultadas as
agências nacionais e organizações apropriadas. A Declaração original em inglês está disponível em: <http://www.singapore
statement.org>.
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